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    CONDUO MELDICA/HARMNICA DAS DISSONNCIAS NA HARMONIA DAPRTICA COMUM: DEFININDO PARMETROS PARA UMA ANLISE MUSICAL

    Francisco Koetz Wildt

    RESUMO: Este trabalho apresenta passos iniciais de uma pesquisa rumo definio edesenvolvimento de um objeto de estudo. Discute-se um dos principais aspectos da harmonia tonal,relacionado ao tratamento de notas estranhas aos acordes, sendo este tratamento dividido em duascategorias diferentes em termos da resoluo das dissonncias: o tratamento meldico, no qual asdissonncias so resolvidas em consonncias; e o tratamento harmnico, no qual as dissonncias soincorporadas estrutura do acorde.

    PALAVRAS-CHAVE: anlise musical, harmonia tonal, notas estranhas aos acordes, repertriopianstico.

    ABSTRACT: This work presents some initial steps taken by its author towards the definition and

    development of a subject for research. It discusses one of the main aspects of harmony which is

    related to the melodic treatment of non-harmonic tones, being this treatment separated in two differentcategories in terms of their resolution: the melodic treatment, by which dissonaces are resolved intoconsonances; and the harmonic treatment, when dissonances are absorbed into the chordal structure

    instead of being resolved.

    KEYWORDS: musical analysis, tonal harmony, non-harmonic tones, piano repertoire.

    A presente comunicao faz parte de um estudo em fase inicial, o qual serdesenvolvido dentro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Artes e cujo foco serdesenvolvido dentro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Artes e que ter o seu focovoltado ao estudo do repertrio pianstico na msica brasileira. Esta pesquisa em incioencontra-se em relao direta com projeto de extenso Brasil no Piano, no qual o repertrioem questo tem sido trabalhado juntamente com os alunos participantes em atividades delevantamento de repertrio e performance pianstica. O que se apresenta aqui um primeiro

    passo desta pesquisa, antecedendo at mesmo a abordagem do repertrio em si. O objetivo dopresente estudo estabelecer os critrios de anlise musical que devero direcionar aabordagem terica do repertrio em questo.

    Sabemos que a anlise musical um campo terico abrangente, no s do ponto devista tcnico como tambm do ponto de vista das diferentes possibilidades no que se refere sua finalidade. A anlise de uma obra musical pode se dar com diferentes objetivos, desdeobter maior compreenso da estrutura formal de uma pea, demonstrar a possibilidade de

    Mestre em Msica pela UFRGS, professor efetivo da Faculdade de Artes do Paran, pesquisador do Grupo dePesquisa Interdisciplinar em Artes da FAP.

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    aplicao de um paradigma terico, situar determinada obra ou compositor historicamente,complementar uma discusso de aspectos sociais e histricos da msica at as finalidadesprticas como a memorizao de uma partitura para execuo pblica. Uma vez definido ombito de aplicao da anlise ou de sua finalidade, h ainda uma variedade de parmetrosmusicais que podem ser abordados na anlise, j que diversos aspectos da msica podem ser

    enfocados, incluindo forma, estrutura temtica, ritmo, harmonia etc.Para que possa ser estabelecido um parmetro analtico, optou-se por dar incio a umestudo voltado ao aspecto harmnico examinando, em princpio, o tpico especfico dotratamento dado s chamadas notas estranhas aos acordes ou no harmnicas. Tal estudo temcomo horizonte a ser alcanado a verificao da idia de que h duas formas gerais de setratar notas no pertencentes a um acorde: uma em que as notas no pertencentes estruturatridica so resolvidas em consonncia, estando em conformidade com os casos descritos emtratados de harmonia (bordadura, apojatura, notas de passagem etc.) e outra em que asdissonncias so conduzidas de maneira mais livre. Cabe ressaltar que o universo musicaldelimitando a pesquisa um repertrio ainda essencialmente tonal, entendido luz da teoriaharmnica tradicional, estando entre os princpios que norteiam tal discurso musical aantinomia entre consonncia e dissonncia e o diatonismo maior/menor. Trata-se do que

    Piston define como o perodo da prtica comum compreendido entre os sculos XVIII evirada do sculo XIX para XX, onde este sistema harmnico d lugar a outras estruturaesmusicais tais como a atonalidade, a pantonalidade, o dodecafonismo, serialismo etc.

    Definindo ainda o lugar preciso a que pertencer este estudo, preciso considerar asubdiviso do elemento harmnico em alguns aspectos, como: a entidade vertical do acorde em seu estado fundamental e inverses, a relao entre diferentes acordes numa progresso, atonalidade e a relao dos acordes com um centro tonal (campo harmnico e funesharmnicas), e a conduo das vozes, isto , o aspecto horizontal (contraponto), o qual poderelacionar-se tambm com o uso de inverses e com o tratamento dado s notas dissonantes.Corra (2006), ao resumir alguns dos postulados tericos que do as bases para uma teoriaharmnica da prtica comum, a partir o estudo de autores como Dalhaus, Nattiez, Schoenberge Rameau colocam a existncia de quatro princpios transcendentes que norteiam o estudo daharmonia tonal: a srie harmnica ou sistema natural de ressonncia, a escala, a superposiode intervalos de teras para construo de acordes1 e o ciclo das quintas. Da escala, obtm-seo movimento linear das notas, isto , o elemento meldico. Nesse movimento linear, temos aconduo das vozes, o tratamento meldico individual de cada uma das vozes as quais,verticalmente, compem os acordes.

    Corra afirma que a movimentao linear dos sons da escala pode ocasionarsobreposies de notas estranhas aos acordes, ou seja, dissonncias; a resoluo destasdissonncias responsvel por conferir direcionamento ao fluxo harmnico. Neste sentido,podemos acrescentar que o conceito de dissonncia no vem apenas do choque ou sonoridadeconflitante entre as notas de um intervalo, mas tambm da noo de pertencimento ou no deuma nota a uma estrutura vertical reconhecida como acorde. E que o tratamento dispensado s

    notas estranhas aos acordes estabelece uma relao entre o aspecto linear e o aspecto verticalda harmonia, j que a verticalidade que proporciona a noo de dissonncia ouconsonncia2. Mas acima de tudo, uma que vez que se atribui ao tratamento das notas noharmnicas a funo de conferir direcionamento ao fluxo harmnico, infere-se que o

    1 Zamacois descreve a formao dos acordes como uma superposio de teras, mas tambm como a adio deuma tera e uma quinta sobre uma nota fundamental (1997, p. 29).2 Deve-se considerar a noo de dissonncia tambm no movimento meldico como, por exemplo, no saltos detrtono ou de segunda aumentada, proibidos no ensino do contraponto (CARVALHO, 2002, p.23). No entanto, a dimenso vertical da msica que nos proporciona de forma mais patente o sentido de dissonncia ou de notasestranhas ao acorde.

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    antagonismo entre as noes de dissonncia e de consonncia fator inseparvel da idia demsica tonal. Uma vez que a msica se d intimamente associada s idias de tempo e demovimento, tecnicamente falando necessrio que haja um fio condutor, o qual podeencontrar-se o impulso gerado pela expectativa da resoluo de uma dissonncia.

    O tratamento das notas no harmnicas vincula-se, ao mesmo tempo, ao elemento

    linear escalar da msica e ao aspecto vertical, uma vez que a idia de dissonncia aqui sed com base no no pertencimento a uma determinada estrutura tridica. Do ponto de vistalinear, a resoluo da dissonncia se d conforme princpio manifesto no seguinte enunciado:

    O movimento por grau conjunto implica numa relao dissonante entre tons vizinhos pordefinio, pois a segunda maior e a segunda menor so definidas como dissonncias. O outrolado desta moeda o fato de que qualquer intervalo dissonante pode ser convertido numintervalo consonante por meio do deslocamento conjunto (por segunda maior ou menor) de umde seus componentes3; em outras palavras, qualquer dissonncia tem a possibilidade daresoluo, por grau conjunto, numa consonncia. (PISTON, 1987, p. 110).

    A validade deste princpio no se encontra apenas nas regras apresentadas por manuaisde contraponto e de harmonia, mas pode ser tambm ser verificada por meio de um exame do

    repertrio musical cuja organizao guiada pela oposio consonncia/dissonncia, isto ,do perodo denominado por Piston como prtica comum. No se faz necessrio, portanto,definir em que medida a msica feita por meio da obedincia a um conjunto de regras pr-existentes ou se as regras que so sistematizadas por meio da observao da msica. Opresente estudo parte do pressuposto que a msica tonal tem a oposio entre dissonncia econsonncia como um de seus princpios estticos fundamentais. Tambm no se fazindispensvel, portanto, uma anlise acstica da dissonncia ainda que isso seja possvel, -uma vez que se trata de um princpio esttico e no fsico que orienta as consideraes aquiapresentadas.

    Partindo do princpio contido na citao acima, em que se descreve a resoluomeldica da dissonncia, pode-se inferir que h duas formas possveis de se tratar uma notaestranha a um acorde: realizando a resoluo por grau conjunto em direo a uma notaconsonante ou no confirmando essa possibilidade dando origem a um tratamento livre dadissonncia. Corra refere-se ao tratamento mais livre das notas estranhas aos acordes comoemancipao da dissonncia, onde As notas dissonantes dos acordes dispensamquaisquer tratamentos especiais (2006, p. 88). J Piston faz a distino entre as possveisabordagens das notas dissonantes atravs dos termos notas harmnicas e notas meldicas: noprimeiro caso, por no serem preparadas nem resolvidas, tais notas aparecem como parteintegrante do acorde e so movimentadas no no sentido de resoluo, mas como se houvesseum arpejamento da harmonia; j no segundo caso, constituem uma ocorrncia meldica, ondeh resoluo linear da dissonncia (pp. 335 e 369). O exemplo abaixo ilustra a resoluomeldica por grau conjunto da dcima terceira sobre a quinta do acorde de stima dadominante no ltimo tempo do compasso (mo direita) alcanando-se a tnica, tambm por

    grau conjunto, numa cadncia autntica (Chopin, Estudo op. 10 No. 8 em F maior):

    3 ...of one of its factors, no original

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    Conforme Piston, um intervalo de dcima terceira sobre um acorde dominante pode ouno ser tratado melodicamente, isto , como dissonncia a ser resolvida (apojatura ou retardo),podendo muitas vezes ser absorvido como nota integrante dessa harmonia. O mesmo ocorreria

    com a nona, sendo que j no perodo clssico a resoluo do acorde de nona da dominante sedava, em alguns casos, atravs do

    arpejamento do fator dissonante, princpio aplicado a nenhum outro acorde na prticacomum (tambm chamado dissoluo por alguns tericos). como se a nona fosseconsiderada um harmnico a sonoridade dominante, muito alto na srie para precisarfazer parte na resoluo efetuada pela stima do acorde (1987, p. 335).

    A tendncia, no entanto, de absorver notas superiores stima na estrutura do acorde,parece ser prpria da harmonia dominante a qual, por sua natureza instvel, pode abrir espaopara a presena de outras notas. Ainda assim, o tratamento da nona e da dcima terceira comonotas estranhas ao acorde mesmo na harmonia dominante, tambm freqente.

    Cabe ressaltar que o tratamento meldico da dissonncia conforme descrito acima no privilgio de uma escrita rigorosamente polifnica. E nem exclusivo da melodia solistanuma textura homofnica. Por exemplo, nas sonatas para piano de Mozart, exemplo notriodo estilo de melodia acompanhada, o contraponto se encontra presente tambm na conduode vozes internas as quais compem as harmonias. Quando temos um acompanhamento noestilo basso dAlberti perfazendo um nico acorde, no h a uma noo to expressa decontraponto, apenas uma harmonia com efeito de movimento rtmico. Mas na mudana de umacorde para o outro, a conduo que a conduo das vozes aparecer inevitavelmente, deforma mais perceptvel na voz do baixo.

    O fato de uma determinada escrita musical quebrar expectativas em torno dotratamento de notas no harmnicas no faz com que o princpio que gera tais expectativasdeixe de existir. Quando uma passagem musical apresenta tratamento livre de uma nota no

    harmnica, isto geralmente se d levando em conta a memria de inmeras situaes em quea nota j foi tratada da forma prescrita. Assim, quando ouvimos uma resoluo meldicacomo a da passagem (Chopin Balada op. 23 em sol m, compasso 35):

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    pgina 12), no se pode negar a memria de resolues como a que se ouve nos doiscompassos finais da Allemande da sute 3, tambm em sol menor, de J. S. Bach:

    .Considerado o trinado cadencial o qual envolve a nota superior, temos a sonoridade da

    dcima terceira menor nesta harmonia dominante. Ora, em Bach, a nota em questo resolvida por grau conjunto numa consonncia, a quinta do acorde. No caso de Chopin e aescolha de peas numa mesma tonalidade deliberada o si bemol no confirma a tendncia

    esperada na progresso de um acorde I 6/4 cadencial para o V, onde a tera do I6/4 tende adescer para a quinta do V para ento resolver na tnica, mas salta descendentemente, por umintervalo de quarta diminuta para o f#, a tera do acorde dominante (D7).Ainda na Balada, otrecho imediatamente a seguir manifesta maior complexidade no que se refere ao uso de notasno harmnicas. Tomemos a primeira metade do compasso logo em seguida resoluo dacadncia em sol menor:

    Se considerarmos a harmonia do primeiro tempo do segundo compasso do exemploacima como sol menor tnica esperada aps uma cadncia longamente preparada o fnatural, presente em ambas as mos, constituiria uma stima menor (escala menor natural)4. A

    4 Observe-se a mo esquerda, onde vemos uma sria de apojaturas. A mo direita, por sua vez, realiza umadiminuio rtmica do padro apresentado pela mo esquerda, com uma ornamentao das apojaturas.

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    stima, na harmonia da prtica comum, pede resoluo por grau conjunto, normalmente para atera do prximo acorde. No entanto, se tal resoluo meldica se der num mesmo acorde,resulta numa sexta, tambm nota no harmnica. J que o f natural deste exemplo resolve nomi bemol, sexta menor em relao tnica, teramos: ou a resoluo da dissonncia numaoutra nota no harmnica, gerando uma nova suspenso s resolvida na segunda metade do

    compasso, quando o mi bemol resolve sobre o r da harmonia dominante; ou o uso livre denotas dissonantes sobre a harmonia da tnica. Por outro lado, poderamos considerar aformao de um acorde de Eb, no qual o f natural constituiria uma apojatura de nona.

    Tal ambigidade tambm pode ser observada na harmonia seguinte, segunda metadedo mesmo compasso onde se pode analisar o acorde como sendo D ou F#dim. No entanto,neste caso a harmonia dominante inequvoca, sendo que o parentesco por demais prximoentre V7(9) e o VIIdim faz com que tais acordes muitas vezes acabem por fundir-se numnico. Ainda assim, a ambigidade entre V7 e VII diminuto permite uma dupla interpretaodo mi bemol na mo esquerda: ou a stima diminuta do VII ou a nona menor do V7,resolvendo na fundamental do acorde e caracterizando uma apojatura.

    Pode-se inferir da anlise acima que a ambigidade harmnica pode ser um fator deabertura ao uso livre de notas no harmnicas, ou pelo menos de interpretao ambgua das

    notas que seriam pertencentes ou no a um acorde, de modo a diluir as noes de consonnciae dissonncia. Na sonata de Mozart KV 333 em Si bemol maior podemos destacar um casoem que a definio de estruturas tridicas aparece implcita, tambm gerando ambigidade naanlise harmnica. Nos compassos iniciais do terceiro movimento da sonatac, o tema dorond apresentado em apenas duas vozes, de modo que os acordes aparecem figurados pelomovimento linear da cada voz.

    O movimento meldico da mo esquerda apresenta um arpejamento das harmoniasGm (VI) e F7 (V7), enquanto a mo direita realiza um arpejo do acorde Bb. A superposiodas duas trades resultaria num acorde Gm7, cuja stima menor no resolvida por grauconjunto. E no compasso 2, a mo direita toca as notas mi bemol e sol, sendo esta ltima umanona sobre o acorde F7, no preparada e nem resolvida por grau conjunto. Seriam, portanto,notas livres, dissonncias sem nenhum tratamento especial? Na verdade, os compassos 9 e

    10 esclarecem a questo, apresentando claramente o que ocorre harmonicamente nesta frasepor meio do uso de acompanhamento tipo Basso dAlberti: uma progresso I VI II V7.

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    Tal progresso aparece, portanto, de forma implcita nos dois primeiros compassos, demodo que os graus I e VI, parecem mesclar-se no c. 1, gerando ambigidade na interpretaodos acordes que se formam e tambm quanto ao pertencimento ou no das notas da melodiaaos acordes. Por outro lado, na cadenza deste movimento, temos o tema claramente expressoem apenas duas harmonias, I e V7:

    O compositor demonstra que a frase poderia ser resumida harmonicamente em apenastnica e dominante, nos levando a entender o sol da mo direita como uma nona sem

    preparao nem resoluo. Poderamos considerar a mudana I VI presente na abertura domovimento como um enriquecimento de I e o II V7 como um desdobramento de V7. Issorefora a ambigidade dos primeiros compassos, pois endossa o fato de que umaharmonizao da frase com apenas dois acordes possvel. Assim, VI apareceria como umacorde de tnica, substituindo o I no primeiro compasso5.

    5A categorizao funcional dos acordes visa entender o papel que diferentes formaes podem desempenharnuma sucesso de acordes, em se contexto musical, envolvendo as frases e cadncias, bem como na interligaoentre diferentes idias. A teoria normalmente referida como tradicional, que considera a trade como estruturaharmnica bsica, fora da qual qualquer nota passa a ser tratada como dissonncia, estipula princpios desucesso entre os diferentes acordes diatnicos. Neste sentido, procura-se normatizar progresses mais fortes oumais fracas tonalmente, progresses incomuns e mais comuns. Aqui, os termos tnica, subdominante e

    dominante mantm-se em princpio ligadas aos graus da escala sobre os quais essas trades so construdas (I, IVe V). Piston se refere a esses graus como graus tonais, que seriam os graus que definem com maior clareza atonalidade. Ele afirma, no entanto, que a harmonia dominante (V) tende a absorver o VII. E que a harmoniasubdominante (IV), por sua vez, tende a absorver o II. Esse autor categoriza como graus modais o III e o VI, porserem essencialmente diferentes nos modos maior e menor, definindo portanto o modo. Quanto aos grausmodais, sabemos que o III e o III e VI podem aparecer com a sua fundamental alterada por um semitomascendente na forma meldica do modo menor, mas a prtica comum demonstra um uso mais freqente dessesgraus com as suas fundamentais bemolizadas em relao tnica (tera menor e sexta menor). O acordedominante, por sua vez mantm-se idntico em sua estrutura, tanto no modo maior quanto menor, variandoapenas com relao nona e dcima terceira os quais, por sua vez, correspondem s fundamentais dos grausmodais.

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    Voltando ao exemplo da Balada em sol menor, notvel ainda que o motivo dasegunda regio temtica da Balada configura-se na no resoluo meldica de uma dcimaterceira sobre um acorde da dominante. Assim resulta que, de maneira geral, notasconsideradas no pertencentes aos acordes podem consideradas tanto harmonicamente quantomelodicamente. No entanto, Piston afirma no ter havido, no perodo da prtica comum, a

    inteno deliberada de que tais notas passassem a ser parte integrante do acordes. O autor citacomo uma das razes para isso o fato de que a msica no referido perodo pode ser semprereduzida a uma escrita a quatro partes (vozes). Assim, num acorde composto por cinco notas,um dos sons constituintes do acorde deve ser suprimido. Ocorre que

    a omisso de uma das notas do acorde enfraquece o sentido de estrutura de teras e fazcom que o ouvido aceite os tons superiores como notas meldicas dependentes de umfundo harmnico simples, normalmente uma trade ou um acorde de stima dadominante (p.370).

    Observe-se que no caso do acorde dominante, a preponderncia do trtono e a sua

    instabilidade permitem a omisso da quinta, a qual no tem tendncia forte de resoluo, semtanto prejuzo ao reconhecimento da harmonia. A tendncia de absorver notas superiores stima na estrutura do acorde parece ser prpria da harmonia dominante a qual, por suanatureza instvel, abre espao para a presena de outras notas(isso foi tirado de outro lugar ecolado aqui). J nos acordes construdos sobre os demais graus da escala o contraste entre otratamento harmnico e meldico das notas estranhas se faz mais patente, uma vez que aomisso de um dos fatores constituintes da trade neste caso mais determinante doenfraquecimento da sua definio acordal.

    Com este estudo, espera-se alcanar tambm a verificao de uma hiptese, segundo aqual o tratamento mais ou menos livre das notas no harmnicas poderia ser consideradocomo um elemento importante na determinao da sonoridade de uma pea, aparecendopossivelmente como fator de modernidade no discurso harmnico6. Tal idia de

    modernidade normalmente associada a alguns compositores ou perodos musicais, sendoque um dos compositores sempre presentes em comentrios acerca de inovao musical Chopin. O verbete dedicado a este compositor no dicionrio Grove traz a seguinteobservao:

    A harmonia de Chopin foi nitidamente inovadora. Atravs de contrastes meldicos,acordes ambguos, cadncias retardadas ou surpreendentes, modulaes remotas ouoscilantes (s vezes, muitas em rpida sucesso), stimas dominantes no resolvidas e,ocasionalmente, excurses no cromatismo ou na modalidade, ele levou osprocedimentos consagrados de dissonncia e tonalidade para territrios at entoinexplorados.

    Temperley, ao falar sobre Chopin, consonante com a citao anterior: Chopin umdos grandes inovadores da harmonia no sculo dezenove. Muitas vezes as inovaesharmnicas de Chopin foram revolucionrias, mas o aspecto mais importante da suaoriginalidade foi a expanso, para territrios ainda no explorados, dos processos dadissonncia cromtica e da modulao at ento aceitos. Nessas observaes, vemos a idiade modernidade associada inovao, extraindo-se a idia de moderno do seu mbito deaplicao estritamente histrica, ou ainda do sentido cronolgico. Representa no

    6 O termo modernidade aqui empregado no seu sentido de senso comum, significando algo inovadoresteticamente.

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    necessariamente aquilo que mais recente, mas a idia de algo que se distancia deprocedimentos tidos como mais comuns.

    Assim, no se pretende colocar este ou outro elemento de modernidadenecessariamente como inovao no sentido cronolgico e evolutivo, uma vez que certaoposio entre procedimentos harmnicos tidos como mais comuns tonalmente falando e

    procedimentos que consideramos mais livres ou modernos pode ser detectados coexistindoem diferentes perodos da histria da msica. Alm disso, o sentido de modernidadepassa ater mais sentido a partir do instante em que uma nica prtica harmnica passa a ser de usocomum. Desse modo, no seria necessariamente apropriado considerar moderno o quecompositores dos sculos XIII ou XIV fizeram ao empregar livremente vrias dissonnciasentre o incio e o fim de uma seo, uma vez que a tonalidade e o pensamento harmnicovertical no haviam ainda se estabelecido tal como a partir do sculo XVIII. Bach, emcadncias de alguns de seus corais, ao resolver um V num I, no resolvia a voz que tem asensvel encaminhando-a em direo tnica, mas descendo uma tera para a quinta do I.Assim, temos que o trtono presente no acorde dominante no resolvidocontrapontisticamente conforme sua tendncia tradicional7. Esta opo pode se dar devido auma confluncia de duas necessidades que passam a se impor como sendo de primeira ordem

    na situao em questo: 1) a voz que estava com a sensvel dever ceder espao voz dosoprano para que esta possa terminar na tnica, e 2) o compositor quer uma sonoridadecompleta no ltimo acorde, no podendo por isso o contralto fazer unssono com o soprano natnica, gerando a omisso da quinta neste acorde. No entanto, a resoluo da sensvel natnica, ainda que no numa mesma voz, percebida pelo ouvinte como passando do contraltoao soprano. Neste caso, portanto, a escolha pela no resoluo rigorosa do trtono no se dcom vistas em uma sonoridade inovadora, mas obedecendo a uma necessidade musical a qualse impe conduo das vozes.

    Segundo a hiptese formulada, poderamos dizer que um dos aspectos caractersticosde uma harmonia a qual o ouvido tende a reconhecer como mais moderna o de no darconfirmao resoluo mais esperada de notas no harmnicas. Quando se comparam obrasde compositores como Mozart e de Chopin, em muitos casos na conduo de vozes, ao noconfirmar tendncias de resoluo contrapontstica mais esperadas as quais foram, ao longodo tempo sistematizadas em forma de regras que reconhecemos o elemento demodernidade8. Podemos observar, por exemplo, que a harmonia da msica popular notadamente do jazz e, no Brasil, da Bossa Nova e MPB passou a prescindir do tratamentotradicional exigido pelo uso das notas no harmnicas, de modo que os acordes passaram aincorporar tais notas na sua estrutura. Tal pensamento tem sua forma extrema no jazzmoderno, onde a noo escalar e a harmnica no sentido verticalizante acabam por se fundir.O pianista e professor Mark Levine expressa esta idia ao dar a seguinte orientao aosestudantes de piano e improvisao:

    Certamente voc ter que praticar escalas para que possa us-las quando vocimprovisar, mas os melhores msicos de jazz pensam nelas mais como uma gamadisponvel de notas a serem tocadas num dado acorde, ao invs de d-r-mi-f-sol eassim por diante (1999).

    7 Isto , stima do V7 descendo por grau conjunto tera do I e tera do V7 dirigindo-se tnica.8 No se pretende aqui afirmar que este seja o nico elemento chave de modernidade na estruturao harmnicade uma pea musical, mas que podemos reconhecer como um dos fatos a serem observados no desenrolar dahistria da msica ocidental compreendida no perodo denomimado por Piston de prtica comum, aincorporao de notas no harmnicas estrutura dos acordes.

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    E mais adiante, a escala e o acorde so, na maior parte das vezes, duas formas de umamesma coisa. O conceito de dissonncia ir se restringir a notas as quais no podem coexistirnuma verticalidade devido preponderncia de uma categoria harmnica funcional sobreoutra. O caso mais importante disso a impossibilidade das funes tnica e dominantecoexistirem verticalmente.

    As consideraes feitas at aqui procuram estabelecer um ponto de partida para oaprofundamento da investigao acerca da harmonia como um elemento determinante dodiscurso musical tonal. Ao longo deste processo de estudo e pesquisa, procurar-se-estabelecer pontos de contato entre teoria e repertrio, numa relao em que o exame deexemplos do repertrio tradicional dar o apoio para que se defina linha de pensamento. Restaainda o caminho todo a ser percorrido, no qual se espera colocar luz sobre pontos importantesda definio de um parmetro de anlise, mesmo que nem sempre para responder perguntasfundamentais, mas ao menos para que se possa fazer a escolha de quais perguntas formular.

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