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70 Letramento e oralidade: um encontro necessário na Educação Infantil Ellen Barbosa Moura * Resumo O objetivo deste trabalho é possibilitar reflexão acerca do letramento e algumas de suas implicações na Educação Infantil. Diante disso faz-se um histórico desse segmento, a fim de entender seus meandros atuais, e uma discussão sobre o papel da oralidade para o mesmo. Tal contenda se dará a partir dos conceitos defendidos por autores como Rojo, Tfouni, Goulart, Frago, Havelock. O histórico vai versar sobre o atendimento à criança brasileira ao longo da história. Este é marcado por descaso e interesses políticos e econômicos, esses são alguns dos fatores que explicam as dificuldades e necessidade de pesquisa na atualidade. E a questão do letramento e da oralidade surge como um dos assuntos amplamente discutidos na atualidade dentro da Educação Infantil. Essas reflexões possibilitam a percepção de que - a despeito dos grandes avanços – tanto o atendimento à infância quanto o letramento ainda têm muito que “caminhar”, no intuito de se tornarem práticas reais, conhecidas e realizadas na educação brasileira. Palavras-chave: Alfabetização; Linguagem oral; História da infância; Criança. Literacy and orality: a necessary meeting in childhood education Abstract The objective of this paper is to enable reflection on the literacy and some of its implications in early childhood education. Thus, know the history of this segment in order to understand its intricacies nowadays and a discussion of the role of orality to it. This discussion will be based on the concepts advocated by scientists such as Rojo, Tfouni Goulart, Frago, Havelock, among others. History will relate the care of children throughout Brazilian history. This is marded by neglect, political and economic interests. These are some of the factors that explain the difficulties and the need for research nowadays. And the issue of literacy and orality appears as one of the topics widely discussed at present within the early childhood education.These reflections enable the perception that, despite the great progress - both child care and literacy still have much to "walk" in order to become a meaningful reality, known and performed by Brazilian education. Key words: Literacy; Oral language; History of childhood; Child. * ELLEN BARBOSA MOURA é Mestre em Educação pela UFF.

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    Letramento e oralidade:

    um encontro necessrio na Educao Infantil

    Ellen Barbosa Moura*

    Resumo

    O objetivo deste trabalho possibilitar reflexo acerca do letramento e algumas de suas implicaes na Educao Infantil. Diante disso faz-se um histrico desse segmento, a fim de entender seus meandros atuais, e uma discusso sobre o papel da oralidade para o mesmo. Tal contenda se dar a partir dos conceitos defendidos por autores como Rojo, Tfouni, Goulart, Frago, Havelock. O histrico vai versar sobre o atendimento criana brasileira ao longo da histria. Este marcado por descaso e interesses polticos e econmicos, esses so alguns dos fatores que explicam as dificuldades e necessidade de pesquisa na atualidade. E a questo do letramento e da oralidade surge como um dos assuntos amplamente discutidos na atualidade dentro da Educao Infantil. Essas reflexes possibilitam a percepo de que - a despeito dos grandes avanos tanto o atendimento infncia quanto o letramento ainda tm muito que caminhar, no intuito de se tornarem prticas reais, conhecidas e realizadas na educao brasileira.

    Palavras-chave: Alfabetizao; Linguagem oral; Histria da infncia; Criana.

    Literacy and orality: a necessary meeting in childhood education

    Abstract

    The objective of this paper is to enable reflection on the literacy and some of its implications in early childhood education. Thus, know the history of this segment in order to understand its intricacies nowadays and a discussion of the role of orality to it. This discussion will be based on the concepts advocated by scientists such as Rojo, Tfouni Goulart, Frago, Havelock, among others. History will relate the care of children throughout Brazilian history. This is marded by neglect, political and economic interests. These are some of the factors that explain the difficulties and the need for research nowadays. And the issue of literacy and orality appears as one of the topics widely discussed at present within the early childhood education.These reflections enable the perception that, despite the great progress - both child care and literacy still have much to "walk" in order to become a meaningful reality, known and performed by Brazilian education.

    Key words: Literacy; Oral language; History of childhood; Child.

    * ELLEN BARBOSA MOURA Mestre em Educao pela UFF.

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    Breves consideraes sobre a histria

    da infncia

    O estudo da histria da Educao Infantil deve partir do estudo da histria da criana. Sobre esse assunto o historiador Philippe Aris (1978) nos revela que o sentimento da infncia uma construo social, inveno de uma nova forma de organizao da sociedade e de uma nova mentalidade que passa a ver a criana como algum que precisa ser cuidada, educada e preparada para a vida futura. Segundo o autor, o conceito de infncia comea a surgir no final do sculo XVII, consolidando-se ao longo dos sculos e se afirmando no sculo XIX.

    Antes disso, a criana era ignorada pela sociedade dos adultos, no havendo nenhuma ateno ou cuidados especficos com esses indivduos. Isso porque, nessa poca, a mortalidade infantil1 era demasiadamente alta e por

    1 Aris explica que esse descaso com a infncia era uma consequncia direta e inevitvel da demografia da poca. Assim, a criana era um ser insignificante e muitas vezes mal tratado.

    isso essa sociedade no se permitia considerar esses infantis como pessoas possuidoras de alma. O nico fato que diferenciava a criana de um adulto era o tamanho, pois as que conseguiam sobreviver eram vestidas e tratadas como adultos em miniatura.

    Em outra fase a criana passa a ter diferenciao e ser tratada como um ser

    Alm disso, reinava um sentimento de que nasciam vrias crianas para conservar apenas algumas (1978 p. 56-57). Ele remonta essa histria a partir da anlise de pinturas, retratos, literatura e roupas da poca. Demonstra que at o sculo XII as crianas apareciam nas pinturas como adultos em miniaturas, no sculo XIII comeam a aparecer figuras de anjo (infncias santas), no sculo XVI surgem a representao via puto (crianas sem roupa) e retratos de crianas mortas ao lado da famlia. Esse fato marca o incio da mudana no conceito de infncia, pois comeam a considerar que elas tinham alma. Esse acontecimento deve-se muito a cristianizao. Diante disso, assistiu-se no sculo XVII o fato de que toda famlia passa a querer possuir retratos de seus filhos, enquanto eles ainda so crianas. Assim, o retrato de crianas sozinhas e vivas, se tornou comum.

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    frgil e inocente, porm imperfeito e irracional e assim cabia educao transformar esses pequenos seres em adultos. O tempo todo ela era considerada o adulto de amanh, no tendo, por isso, identidade prpria, uma vez que no se constitua como um sujeito.

    Admite-se, na atualidade, que a criana um ser diferente do adulto em pensamento, necessidades e problemas. Entende-se que a infncia tem prioridade sobre os demais estgios da vida, devido no s sua maior fragilidade, mas, sobretudo por carregar as esperanas de continuidade no futuro.

    Essa mudana acompanhou o desenvolvimento das sociedades industriais, com suas conquistas em conforto material e melhoria nos padres de sade e nos padres de natalidade e mortalidade infantil. medida que essas taxas decrescem e que a expectativa de vida aumenta, a criana passa a ser um bem mais raro e valioso, tendo uma probabilidade mais alta de sobreviver idade adulta. Um das conseqncias geradas por esse fato que na atualidade o investimento tanto dos pais quanto da sociedade vem crescendo vertiginosamente em relao a esta faixa etria.

    O Brasil e o atendimento infncia

    Por considerar que o histrico essencial, quando se pretende entender qualquer acontecimento, trataremos, em linhas gerais, da histria de como se desenvolveu o atendimento criana no Brasil. Esse fato pode ser dividido em quatro grandes fases, nas quais o atendimento infncia foi se modificando.

    A primeira fase pode ser considerada como a etapa da falta de atendimento, na qual a criana era pouco considerada

    e diante disso, at meados do sculo XIX, o atendimento infncia brasileira praticamente inexistia. O nico tipo de atendimento existente era feito via conventos e orfanatos. Esses construam em seus prdios as rodas dos expostos, nas quais as mes abandonavam seus filhos, que eram recolhidos e cuidados.

    A segunda fase caracterizada por um carter mdico-assistencialista. Isso porque, no final do sculo XIX e incio do XX, uma srie de fatores, em especial o combate mortalidade, impulsionou a abertura de creches e jardins de infncia no pas, porm de forma tmida e praticamente sem participao governamental. Esses projetos tinham carter preconceituoso e valorizavam as crianas de forma diferente.

    Com o advento da Repblica (1889) e a embrionria industrializao, as mulheres comearam a trabalhar nas fbricas, j que os maridos estavam laborando no campo. Esse fato comeou a mudar o perfil da populao e aumentar a preocupao quanto ao lugar de deixar os filhos. Diante disso, tem-se durante a Repblica um aumento de 15 creches em 1921 para 47 em 1924 e de 12 para 42 jardins de infncia na mesma poca. (KUHLMAN Jr., 2000: 8). Ainda nessa fase, temos, entre os anos 30 e 60, uma mudana no que tange ao discurso do governo quanto Educao Infantil, pois essa passa a ser proferida como importante e necessria. Entretanto, o governo se diz sem recursos suficientes para financi-la e convoca os civis (associaes particulares) a ajudarem-no na tarefa de manter as instituies destinadas proteo da infncia.

    A terceira fase tem incio por volta da dcada de 60 e marcada por um atendimento de cunho assistencialista e compensatrio. A expanso do

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    atendimento infncia no Brasil, a partir de meados dos anos 70, seguiu um modelo de baixo custo, o que propiciou a entrada do denominado leigo na rea. Dos anos 70 aos 80 houve um incremento dessa expanso por meio do programas que tinham esse objetivo. (ROSEMBERG, 1999).

    A origem da educao compensatria remete aos Estados Unidos e Europa durante e no ps-Segunda Guerra. Ela teve como principais pensadores os tericos: Pestalozzi, Froebel, Montessori e McMillan. A pr-escola era encarada por esses educadores,

    como uma forma de superar a misria,

    a pobreza, a negligncia das famlias. (KRAMER, 1992: 25).

    Uma srie de acontecimentos sociais e polticos como: a LDB de 61(que passou a considerar a educao pr-primria como parte do sistema de ensino e a preconizar que as empresas deveriam abrir instituies de educao pr-primria); a lei 5692, de 71 (que legislou que os sistemas educacionais deveriam velar para que as crianas at sete anos recebessem educao pr-escolar); o aumento da demanda burguesa pelos jardins de infncia; as reivindicaes pelo carter educativo nesse ensino; e uma srie de lutas impostas pela sociedade brasileira em busca de direitos e cidadania aumentaram a presso sobre os governos e elites pelo direito da criana educao.

    A fase atual, que se caracteriza por uma mudana considervel no atendimento infncia, apesar de conviver com as concepes anteriores, marca uma preocupao quanto ao carter educativo e de direito da criana por educao de qualidade. Ela teve incio no final da dcada de 80 e estende-se at a poca presente. Os documentos que comprovam essa tendncia so: 1) a

    Constituio de 1988; 2) o Estatuto da Criana e do Adolescente, de 1990; 3) a Lei de Diretrizes e bases da Educao Nacional 9394, de 1996.

    Contudo, a promulgao da lei no garante a superao de conceitos e definies que historicamente foram se consolidando, o que traz desafios para pesquisadores, professores, educadores e pessoas ligadas ao atendimento de crianas menores de cinco anos. Sendo assim, convivemos hoje com aes inovadoras, mas tambm com atos que desconsideram esse ensino e sua importncia.

    A Educao Infantil e o letramento

    Diante dessa situao, que de um lado demonstra avanos reais e de outro a convivncia com concepes antigas, emergem vrias discusses sobre esse segmento. Um dos fatores presentes nas discusses trata da alfabetizao dos alunos atendidos na Educao Infantil e consequentemente sobre o letramento.

    No Brasil, o letramento vem sendo alvo de pesquisas e discusses acadmicas desde meados dos anos 80, porm sua implicao na prtica vem acontecendo de forma lenta e gradual. Quanto Educao Infantil e sua representatividade para os estudos do letramento, chama a ateno o aspecto da oralidade, to presente e pungente durante esses primeiros anos de escolarizao. Diante do exposto, faz-se necessria uma discusso sobre o conceito de letramento, do termo letramento e uma visita aos autores que debruam sua ateno sobre a oralidade e sua importncia.

    A teorizao sobre letramento teve incio nos Estados Unidos, pouco depois da Segunda Guerra Mundial e em outros pases europeus, pois se percebeu que muitos dos sujeitos tidos como

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    alfabetizados no conseguiam lidar satisfatoriamente com as demandas sociais de leitura e escrita do dia a dia.

    No Brasil, os estudos acerca do tema letramento iniciaram-se mais efetivamente na segunda metade da dcada de 1980. Hoje, ele assunto de debate em diversas outras reas como: Educao, Antropologia, Histria e Sociologia, para citarmos apenas algumas. Pesquisadores no Brasil, seguindo as tradies Americana e Europia, comeam a perceber que, embora escolarizadas, algumas pessoas no fazem uso de seu conhecimento de leitura e escrita de modo funcional, ou seja, no conseguem se comunicar com sucesso em suas interaes sociais, pessoais e profissionais. Diante disso, por volta dos anos 90 aconteceu uma retomada da discusso sobre a funo da oralidade, como importante para esse fenmeno.

    A palavra letramento surgiu para nomear a busca de se registrar usos e funes da modalidade escrita em processos sociais de comunicao. Diferentes comunidades podem ter diferentes prticas de letramento. O termo difere-se de alfabetizao uma vez que esta se refere ao processo de ensino e aprendizagem do cdigo escrito. Os usos feitos da leitura e da escrita so socialmente determinados, e, portanto, tm valor e significados especficos para cada comunidade. Segundo Soares (1998),

    Alfabetizao e letramento so aes distintas, mas inseparveis. A alfabetizao consiste na ao de capacitar o indivduo a ler e escrever, enquanto o letramento enquadra-se no mbito social de apropriao da escrita e de suas prticas sociais.

    A questo da oralidade considerada pela escola como secundria, pois o

    foco do ensino recai sobre a escrita. A maioria dos professores, desde o maternal (que atende crianas com trs anos) at a classe de alfabetizao, est preocupada em instrumentalizar, ou seja, oferecer aos alunos contato indiscriminado e muitas vezes amalgamado com materiais escritos, tais como: escrita do nome; trabalho com rtulos, cpia de coisas do quadro, entre outros. Ento, desconsideram, ou consideram de forma equivocada, a oralidade e sua importncia para a constituio do letramento do sujeito. Com isso, a fala e a escuta desses alunos deixam de ter importncia no cotidiano escolar e no se explora esse aspecto. A escola considera o oral como uma ponte para o escrito e ao mesmo tempo quer impor a escrita oralidade.

    Essa viso institucionalizou-se e tornou-se parmetro para prticas pedaggicas convencionais. Chega-se at a determinar o bom desempenho em linguagem oral como um dos fatores necessrios alfabetizao, acreditando-se que a pronunciao correta (aquela ditada pela escrita da norma padro) das palavras pode possibilitar a alfabetizao e ser parmetro para um bom desempenho social. Essa relao est em consonncia com o modelo autnomo de letramento relatado por Street (1984), no qual a relao oralidade/escrita tem sido proposta como se houvesse dois plos extremos de diferenciao formal ou processual entre linguagem oral e escrita. (ROJO, 1995).

    O oral e o escrito so diferentes e cada um tem sua importncia nica e concomitantemente conjunta na constituio do letramento. Ceclia Goulart chama a ateno para o fato de que a oralidade no nem pior, nem melhor. Ela uma aquisio de

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    discursividade que atende perfeitamente aos seus propsitos2.

    Autores como Frago, Tfouni, Kleiman, Goulart, entre outros oferecem uma viso ampliada sobre essa questo e consideram de forma clara e precisa a importncia da oralidade no letramento.

    Havelock declara que a conscincia moderna da oralidade remonta o sculo XIII, quando surge uma determinada noo do papel da lngua falada em oposio escrita, porm ela s se torna uma categoria da comunicao humana ligada a oralidade primria em 1963 na obra de Walter Ong, Orality and literacy, de 1982.

    Segundo o autor, essa exploso de interesse ps-63 se deve publicao entre 1962 e 1963 de cinco obras fundamentais (...) que podem ser vistas como iluminando, frequentemente sem o

    saberem, o papel da oralidade na

    histria da cultura humana e a sua

    relao com a literacia. (HAVELOCK, 1998: 39). As obras citadas so; La Pense sauvage, de Levi Strauss, The consequences of literacy,de Watt e Goody, The Gutenberg e Galaxy, de McLuhan, Animal species and Evolution, de Mayr e Preface to Plato, de Havelock.

    Tal interesse simultneo podia ser explicado, diz Havelock, como um fenmeno de nosso tempo, por si s peculiar, que respondia a alguma profunda experincia contempornea de meio de controle do pblico que hoje atormenta as esperanas de qualquer oratria do passado.

    Havelock apresenta uma discusso que parte do pressuposto de que um paradoxo pensar que quando intentamos

    2 Anotaes de aula ministrada pelas professoras Ceclia Goulart e Andra Berenblum, na disciplina sobre letramento, no dia 28 de marco de 2005 na Universidade Federal Fluminense.

    compreender a oralidade, a principal fonte material que h para examinar textual. Considera que h sempre uma barreira para a compreenso da oralidade que a contaminao pelo idioma letrado.

    Como pode o conhecimento da oralidade ser derivada do seu contrrio? Pode a imagem da oralidade ser adequadamente verbalizada na descrio textual, que utiliza um vocabulrio e uma sintaxe prprios para a textualizao, no para a oralidade? (1998: 61).

    Segundo o referido autor, o falar cotidiano uma caracterstica to universal que no uma ao refletida. Porm para que uma teoria sobre a oralidade primria seja pensada, isso se faz necessrio, pois somente como o alargamento das proposies possvel entender esse fenmeno. Mas o autor diz que a teoria oralista tem de chegar a um acordo com a comunicao, no enquanto espontnea e no permanente, mas enquanto preservada de forma duradoura.

    difcil para a sociedade letrada entender e pensar na oralidade primria pelo fato de no se ter outra experincia que no a letrada. Mas, uma forma de entender essa diferena perceber que na oralidade primria as relaes entre os seres humanos e a psicologia so reguladas exclusivamente pela acstica.

    A oralidade grega usava da poesia, por seu carter prazeroso, rtmico e capacidade de converter o pensamento em fala rtmica. Assim, todos os ensinamentos eram transmitidos a partir de uma acstica nica que no s era repetvel, mas recomendvel para reutilizao. Havelock promove um pensamento sobre a oralidade, suas especificidades e seu valor para a constituio do ser humano.

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    Em suma, na sociedade oral a tradio ensinada pela ao:

    Para o ensino, a sociedade oral providenciou um contexto performativo adequado e que eram partilhados em grandes festivais e audincias. A audincia oral participava no apenas por e escutar passivamente e por memorizar, mas por uma participao ativa na linguagem usada. Aplaudia, danava e cantava coletivamente, em resposta ao canto do bardo. (HAVELOCK, 1998: 96).

    Nessa mesma linha de raciocnio temos o autor Antonio Frago que amplia e traz importantes contribuies medida que ele, atravs de sua produo, invoca e provoca vrias reflexes e questionamentos acerca da questo da interao oralidade/escrita. Assim como Havelock, ele considera que a compreenso da oralidade e sua lgica so fundamentais para o entendimento da escrita.

    Infelizmente, o que acontece na escola, na maioria das vezes, um abandono da oralidade aps a insero da alfabetizao, pois essa pressupe a primazia da escrita em detrimento do oral. Porm, importante ressaltar que, mesmo antes da alfabetizao a oralidade no foco principal, j que muitas vezes o que se tem a idia da escrita sendo trabalhada atravs do oral. Isso porque, grande parte dos professores e pedagogos no tem conscincia da importncia e especificidade desse fenmeno. Esse fato explica muitas prticas pedaggicas que impem aos alunos uma escrita desconectada da sua realidade e que nada diz ou no entendida pelos aprendentes.

    Exemplo notrio e muito pesquisado dessa prtica so as cartilhas: feitas, pensadas e utilizadas a partir de

    matrizes que consideram que o importante o aluno ter contato com a escrita e sua repetio, pois assim ele aprende a ler e escrever. Diante disso, impem aos alunos leituras e cpias de trechos como: A vov viu a uva, ou ainda, Vav vov de Vivi.

    Mesmo nas prticas, aparentemente, menos tradicionais esse fato observvel. Um bom exemplo a o exposto por Kleiman (1995) quando, relatando sua pesquisa, traz o caso de uma professora alfabetizadora que era poetiza, se expressava e tinha um bom conhecimento sobre a escrita e em sua prtica de alfabetizar elaborava exerccios de rima, mas considerava erro quando seus alunos rimavam palavras como pastel a cu.

    Essas prticas confirmam aquilo que Frago vem chamar de interao entre oralidade e escrita por dissociao, atravs da qual, normalmente, a oralidade relegada a segundo plano em relao escrita e depreciada. Como exemplo histrico e literrio desse fenmeno o autor cita alguns trechos da histria de Dom Quixote. Em algumas passagens de dilogos entre Quixote e Sancho Pana ele demonstra que o primeiro representava a primazia da cultura letrada versus o segundo que era representante da oralidade. Essa diferenciao entre oral e letrado se d na prpria hierarquia que existia entre os dois.

    Kleiman considera que:

    (...) o fenmeno do letramento, ento extrapola o mundo da escrita tal qual ele concebido pelas instituies que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agncias de letramento, preocupa-se, no com o letramento, prtica social, mas com

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    apenas um tipo de prtica de letramento, a alfabetizao (...). (1995: 20).

    Ela mostra que a oralidade constituidora do letramento medida que, atravs dela, os sujeitos tm contato direto com a sociedade letrada e suas caractersticas, adquirindo assim, em seu discurso oral, marcas da lngua escrita. De fato, a oralidade objeto de anlise de muitos estudos sobre letramento (...) em certas classes sociais, as crianas so letradas, no

    sentido de possurem estratgias orais

    letradas, antes mesmo de serem

    alfabetizadas. (1995:18). Esse fato fica claro quando se observa prticas e dilogo de crianas e adultos no alfabetizados, pois esses trazem em sua fala, palavras e aes caractersticas da lngua escrita. Por exemplo, sobre as crianas, Kleiman declara que (...) sua oralidade comea a ter as

    caractersticas da oralidade letrada,

    uma vez que junto me, nas

    atividades do cotidiano, que essas

    prticas orais so adquiridas (1995:18).

    Roxane Rojo defende, e comprova, atravs de suas pesquisas, que a oralidade essencial na constituio do letramento durante a infncia. Para a autora, a oralidade fundante do letramento, j que a partir do contato, via oralidade, que a criana constitui sua relao com a escrita.

    (...) o modo de participao da criana ainda na oralidade, nestas prticas de leitura e escritura, dependentes do grau de letramento familiar (e acrescentaramos da instituio escolar e ou pr-escolar em que a criana esta inserida), que lhe permite construir uma relao com a escrita enquanto prtica discursiva e enquanto objeto. (LEMOS, 1988 In: ROJO, 1995:123).

    Uma das maiores contribuies de Rojo para a Educao Infantil so suas pesquisas com os contos de fadas atravs dos jogos de linguagem. A partir da comprova empiricamente que por meio desses a criana constri conhecimentos e uma discursividade letrada, nos quais aparecem elementos como: nomeao, reconhecimento, antecipao, complementaridade, que demonstram marcas discursivas da escrita na oralidade.

    Outro assunto abordado por Rojo e que merece maior ateno na Educao Infantil, e demais segmentos, a questo da afonia infantil como parte da construo de conhecimentos. Esse fato, na grande maioria das vezes, desconsiderado ou desconhecido pelo educador, causando aes e reaes errneas. Isso porque silncio diante de uma solicitao, normalmente, interpretado como um no saber ou uma recusa de participao por parte do aprendente. Por conseguinte, a ao rotineira obrigar a criana a falar, desconsiderando assim o seu processo e tempo de construo de conhecimento. Talvez, pois isso, uma hiptese levantada atravs da reflexo, esteja nesse episdio, que acontece desde a Educao Infantil, um dos fatores que contribui para o incio do assujeitamento do indivduo, atravs do qual, pela escolarizao, ele passa a responder aquilo que o professor quer ouvir e no aquilo que ele quer dizer ou expor suas dvidas e dialogar sobre as questes estudadas.

    No Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (volume 3) a questo da oralidade tratada de forma dicotmica. Isso porque de um lado ele explicita a questo do letramento da seguinte forma:

    Pesquisas na rea de linguagem tendem a reconhecer que o processo

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    de letramento est associado tanto construo do discurso oral como do discurso escrito. Principalmente nos meios urbanos, onde grande parte das crianas, desde pequenas, esto em contato com a linguagem escrita por meio de seus diferentes portadores de texto. (RCNI, v. 3, 1998:121).

    Por outro lado, nas colocaes ao longo do texto sobre o desenvolvimento da linguagem oral, a mesma tida como natural e desenvolvida pelo contato com os adultos; entretanto, no cita e nem chama a ateno para o fato anteriormente citado de que a oralidade faz parte do letramento. J a parte sobre o desenvolvimento da linguagem escrita comea da seguinte maneira: Nas sociedades letradas, as crianas, desde

    os primeiros meses, esto em

    permanente contato com a lngua

    escrita. (RCNEI, v. 3, 1998:127).

    Esses dados demonstram que muitas so as lutas e avanos necessrios para que o letramento se torne uma prtica e acontea de forma a abarcar o atendimento infncia e populao brasileira em sua totalidade e que a oralidade seja encarada como parte do letramento.

    Outros autores tratam desse assunto, porm por questes didticas e pelas limitaes do texto, finalizaremos o trabalho realizando uma inferncia sobre a importncia e necessidade de que esses estudos acadmicos acerca do assunto tratado tenham e/ou criem um canal de interlocuo com a prtica e sejam amplamente divulgados no intuito de melhorar a qualidade da educao.

    importante ressaltar que os eventos de letramento trazem em sua definio uma indispensvel contribuio para essa discusso sobre letramento e oralidade na Educao Infantil medida que possibilita a compreenso de que

    toda discusso oral que esteja mediada pela escrita um evento de letramento, pois possibilita ao sujeito uma construo e reconstruo de conhecimentos a partir da discursividade oral marcada pela discursividade escrita.

    Consideraes finais

    Essas reflexes sobre o histrico da Educao Infantil, o letramento e a importncia da oralidade para o mesmo possibilitam a percepo de que, a despeito dos avanos, tanto a atendimento infncia quanto o letramento ainda tm muito que caminhar, a fim de se tornarem prticas reais, conhecidas e realizadas pela educao brasileira. Isso porque, apesar das pesquisas e de estarem presentes nos discursos, muitos so os fatores, tais como: econmicos, interesses polticos, ideologia dominante, m formao dos docentes, m distribuio de renda, que dificultam o desenrolar e desenvolvimento dessas questes.

    Contudo, necessria a esperana e a luta de cada um dos pesquisadores, educadores, pedagogos, e demais pessoas conscientes e envolvidas com as questes da infncia, a fim de mudar a realidade atual e fazer do respeito, da igualdade e da qualidade a tnica da teoria e da prtica na educao. Pois, parafraseando Jos de Alencar, importante ressaltar que a razo primordial de toda a superioridade humana sem dvida a vontade, obviamente que s o desejo no muda as realidades, mas ele essencial no processo de conscientizao e politizao do povo brasileiro.

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