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5 O que nos faz pensar nº24, outubro de 2008 Análise das Três Teses do Tratado do Não-Ser de Górgias de Leontinos Aldo Lopes Dinucci * Análise das Três Teses do Tratado do Não-Ser de Górgias de Leontinos * Professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe. Resumo Com a séria intenção de refutar o fundamento de todas as filosofias que têm a pre- tensão de produzir um discurso verdadeiro sobre a estrutura da realidade, Górgias desenvolve suas três famosas teses: Nada é; Ainda que fosse, seria incognoscível; Ainda que fosse cognoscível, seria incomunicável. Górgias é o primeiro a perceber o caráter problemático na noção de ser e os problemas de conhecimento e linguagem derivados disto. Palavras-chave: Ontologia – Sofística – Górgias – Filosofia Clássica Abstract With the serious purpose of refuting the foundations of all philosophies that have the pretension of making an true discourse on the structure of reality, Gorgias deve- lops his tree famous thesis: Nothing is; Even if it was, it could not be knowable; Even if it was knowable, it could not be communicated. Gorgias is the first to recognize the problematic character of the notion of being and the problems of knowledge and language derived from this. Key-words: Ontology – Sophistic – Gorgias – Classical Philosophy O texto original do Tratado do Não-Ser não chegou até nós, mas sim duas paráfrases suas: uma na obra de Sexto Empírico e outra num pequeno tratado anexado à obra de Aristóteles, tratado este que sabemos hoje não ser da auto- ria do próprio Aristóteles. A paráfrase de Sexto aparece em sua obra Adversus Mathematicus (VII, 65 ss.); a do Pseudo-Aristóteles, no pequeno tratado Sobre

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5O que nos faz pensar n24, outubro de 2008Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de LeontinosAldo Lopes Dinucci *Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de Leontinos*Professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.ResumoCom a sria inteno de refutar o fundamento de todas as filosofias que tm a pre-tenso de produzir um discurso verdadeiro sobre a estrutura da realidade, Grgias desenvolvesuastrsfamosasteses:Nada;Aindaquefosse,seriaincognoscvel; Ainda que fosse cognoscvel, seria incomunicvel.Grgias o primeiro a perceber o carter problemtico na noo de ser e os problemas de conhecimento e linguagem derivados disto.Palavras-chave: Ontologia Sofstica Grgias Filosofia ClssicaAbstractWith the serious purpose ofrefuting the foundations of all philosophies that have the pretension of making an true discourse on the structure of reality, Gorgias deve-lops his tree famous thesis: Nothing is; Even if it was, it could not be knowable; Even if it was knowable, it could not be communicated. Gorgias is the first to recognize the problematic character of the notion of being and the problems of knowledge and language derived from this.Key-words: Ontology Sophistic Gorgias Classical PhilosophyOtextooriginaldoTratadodoNo-Sernochegouatns,massimduas parfrases suas: uma na obra de Sexto Emprico e outra num pequeno tratado anexado obra de Aristteles, tratado este que sabemos hoje no ser da auto-ria do prprio Aristteles. A parfrase de Sexto aparece em sua obra Adversus Mathematicus (VII, 65 ss.); a do Pseudo-Aristteles, no pequeno tratado Sobre 6 Aldo Lopes DinucciMelisso, Xenfanes e Grgias (que chamaremos doravante de MXG). Esta lti-ma considerada como a melhor parfrase, por ser mais completa e precisa que aquela de Sexto. AparfrasedeSextopossuialgunsinconvenientes:emprimeirolugar, foi composta sete sculos aps a morte de Grgias; em segundo lugar, possui toda uma elaborao que em si mesma estranha a Grgias, como a colocao do problema no incio do Tratado (VII, 65 ss.), certas formalizaes lgicas e todoumvocabulrioprprioEscolaCtica(Cassin:1995,pp.121-122). A parfrase de Sexto foi a mais transmitida ( a nica colocada entre os frag-mentos de Grgias por Diels-Kranz, por exemplo), e esta foi provavelmente a razo principal de se considerar Grgias como um ctico.AparfrasedoMXGanteriordeSexto,masnosabemosaocerto quem a escreveu nem quando: alguns manuscritos antigos afirmam ser obra doprprioAristteles(hiptesehojedescartada),outrosmanuscritosafir-mam ser da autoria de Teofrasto (Cassin: 1995, pp. 121-122); Diels (1952, pp. 148-149) afirma ser obra de um peripattico do sculo trs a. C.; Unters-teiner (1993, p. 149) cr ser obra proveniente da Escola de Mgara. Apesar de no sabermos quem seu autor, o MXG reconhecidamente contm a melhor parfrasedoTratado,muitoemboraestejacorrompidoemalgunstrechos. Utilizaremos, portanto, o texto do MXG na anlise que faremos a seguir, re-correndo a Sexto apenas quanto este for capaz de complementar nossa anlise do Tratado.Uma opinio sobre o Tratado do No-Ser de Grgias muito difundida en-tre os acadmicos: aquela de Gomperz (1912), segundo a qual tal obra nada mais que uma irnica reduo ao absurdo da doutrina de Parmnides. Con-sideremos, porm, a possibilidade de que Grgias pretenda, com oTratado, provar que a noo de ser vazia e inconsistente. H razes com as quais se pode defender essa tese. Cito a seguir duas particularmente importantes. Em primeiro lugar, as recentes investigaes de Kahn e seus seguidores sobre o uso do verbo ser em grego nos levam a uma outra interpretao da expresso clebre que abre o Tratado: Ouk einai phesin ouden (MXG, 979a, 1-5). O verbo ser (aqui no infinitivo presente) era comumente traduzido por existir, e a frase recebiaentocomotraduo[Grgias]dizquenenhumacoisa existe.Tal tese era ento tomada como uma ironia de Grgias. Kerferd (1984, p. 94 ss.), desenvolvendo a interpretao de Kahn sobre asignificaodoverboseremgrego(interpretaosegundoaqualtantoo uso existencial como o predicativo do verbo ser se remetem a um uso mais fundamental, mais prximo do predicativo que do existencial), chega con-7cluso de que os filsofos gregos preocupavam-se especialmente com proble-mas de predicao, que eles tendiam antes a considerar como problemas de inferncia de qualidades e caractersticas de objetos no mundo real nossa volta (ibidem, p. 95)1. Assim, o dito de Grgias seria mais bem traduzido do seguinte modo: [Grgias] diz que nenhuma coisa . Colocada dessa forma, a frase no soa mais como algo absurdo, mas como a afirmao de que nada em sentido estrito, de que coisa nenhuma possui as caractersticas prprias concepo parmendica do ser: nada eterno, incriado, uno, imutvel etc. Outra razo em favor da seriedade do Tratado que, como observa Unters-teiner (1993, p. 233), Iscrates, o maior discpulo de Grgias, toma a srio as teses deste ltimo, bem como Plato, o qual, no Fedro (267a), declara que Grgias renuncia ao conhecimento da verdade em favor do verossimilhante. Aristteles,damesmaforma,consideraseriamenteasdoutrinasdeGrgias em IV, 4 da Metafsica, e sobre elas teria tambm escrito um tratado que no nos chegou, mas que mencionado por Digenes Larcio (Vida dos Filsofos Ilustres,V,25).CitemosaindaSextoEmprico,oqual,emsuaparfrasedo Tratado, reafirma a seriedade do mesmo (Ad. Math., VII, 65 ss.)2. UmpontocomumentretodososcomentadoresdeGrgiasqueeste dirige as teses do Tratado contra Parmnides e seu discpulo Melisso3. O pr-prio ttulo do Tratado uma deliberada inverso dos ttulos de Sobre o Ser de ParmnideseSobreaNaturezaouSobreoSer,deMelisso.Veremos,porm, que o Tratado se dirige no apenas contra Parmnides e Melisso, mas contra todo e qualquer sistema filosfico que inclua uma ontologia positiva. Como nos diz Untersteiner, Grgias...[...] No se props a eliminar o pensamento, mas constata sua dissoluo [...]. O pensamento inteiro, assim como o ser, minado por antinomias des-trutivas [...]. O Tratado do No-Ser [...] contm uma impiedosa sucesso de antinomias que destroem todas as doutrinas filosficas, cada uma delas nadificando a outra e se nadificando por sua vez (1993, p. 212).A filosofia grega, at o sculo IV a. C., ao falar do ser, no considera o conceito de existncia como separado do conceito de ser. Tal distino s foi realizada posteriormente (cf. Kerferd: 1984, p. 95). Quanto a isso, diz-nos Sexto: Grgias de Leontinos contava-se entre os que rejeitaram o critrio de ordem, mas no partiu do mesmo pressuposto que os seguidores de Protgoras. Com efeito, no seu Tratado sobre o No-Ser ou Sobre a Natureza defende trs pontos capitais [...].Cf. Guthrie: 1969, p. 193; Kerferd: 1984, p. 71; Duprel: 1948, p. 63; Cassin: 1995, cap 1.321Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de Leontinos8 Aldo Lopes DinucciComoveremosadiante,Grgiasnoselimitaademonstrarqueoser impossvel como uno parmendico, mas tambm que impossvel como ml-tiplo,segundoaconcepodosfsicos.Emtermosaristotlicos,atesede Grgias nada equivale a afirmar que as coisas no tm essncia. Grgias demonstraquequalquerdiscursoquetenteatingirofundamentodarea-lidade,isto,quetenteselanarparaalmdocampodascoisassensveis buscando um elemento estvel em que se apoiar, est fadado a conter em si mesmo contradies. Aristteles confirma o que estamos dizendo em relao a essa inteno de Grgias no Tratado quando afirma, em IV, 4 da Metafsica, ao criticar o pensamento gorgiano, que este e outros que se identificam com seu pensamento destroem a substncia e a essncia (Metafsica, IV, 4, 1007a 20. Cf. Aubenque: 1994, p. 135). TantonoTratadodoNo-SerquantonoPalamedesenoHelena,Grgias utiliza redues ao absurdo. O mtodo de reduo ao absurdo, como se sabe, tem sua inveno creditada a Zeno por Aristteles, e Zeno o utiliza no de-senvolvimentodeseusfamososparadoxos.AdiferenacrucialentreZeno e Grgias, no que se refere aplicao da reduo ao absurdo, que Zeno busca, com seus argumentos, defender o Ser parmendico contra o ataque dos pluralistas, enquanto que Grgias, utilizando argumentos do prprio Zeno (MXG, 979a 20 ss.) e de Melisso, faz com que as teses de Parmnides e dos Fsicos se anulem mutuamente.A primeira tese do Tratado (Ouden estin) famosa por seu carter parado-xal e pode ter as seguintes significaes:Coisa nenhuma existe no sentido de que as coisas no esto a, e de que o mundo equivalente a nada: este sentido levou considerao do Tratado como uma pardia. Coisa nenhuma no sentido de que o verbo ser incapaz de, servindo como cpula, nos revelar as verdadeiras conexes presentes entre sujeitos e predicados no mundo real, pois sua prpria noo contraditria. Esta a interpretaoquelivraoTratadodaacusaodepardiaeconcentra-seno uso predicativo do verbo ser.Coisa nenhuma no sentido de que a noo de ser no pode designar qualquercaractersticaouatributodascoisas.Ascoisasnosoe,poresta razo, qualquer discurso que pretenda falar do real nessa esfera de abstrao est fadado a conter em si mesmo inconsistncias e, conseqentemente, fada-do a ser falso. Trata-se, portanto, da crtica ao uso existencial do verbo ser.PartindodahiptesejapresentadaacimadequeoTratadonomera pardia, consideraremos que a expresso Ouden estin expressa simultanea-9mente nos sentidos predicativo e existencial, o primeiro referindo-se ques-to epistemolgica e o segundo questo ontolgica. GrgiasnosanuncianoinciodoTratadodoNo-Sersuaprimeiratese: Nem ser nem no-ser (MXG, 979a 25 ss.). Sobre isso podemos discorrer do seguinte modo: Que relao existe entre ser e no-ser? So coisas distintas ousoamesmacoisa?Sesocoisasdistintas,ambosso,identificando-se quanto ao ser. Mas a ser e no-ser seriam o mesmo, e nada seria. Se, porm, so distintos, cabendo ao ser no ser e ao no-ser ser, alm do absurdo de o no-ser ser, o ser no seria e, mais uma vez, nada seria. E se o ser fosse e o no-ser no fosse, ainda assim o no-ser seria no-ser, voltando o no-ser a ser e de novo nada seria. E se o ser fosse tudo, tambm seria no-ser e novamente nada seria. Por fim, se so a mesma coisa, ser no-ser, e vice-versa e segue nada sendo.Esse discurso subentende a questo crucial da ontologia, que a seguinte: seoseralgodeterminado,comodefini-loedistingui-lodono-ser?Ora, tudoabsolutamente,deumaformaoudeoutra.Assim,comosepoderia separar o ser de seja l o que fosse, se o que quer que fosse que fizesse frontei-ra com o ser deveria tambm ser? O ser, como gnero supremo de tudo, no admite tal separao, pois ele aquilo no que as demais coisas se colocam, ele o cenrio onde tudo mais disposto. Porm, sendo aquilo que comum a todas as coisas, o ser no se distingue de nada, nem do no-ser, que, ao ser mencionado, passa instantaneamente a ser.Eis a tragdia: ao ser comum a tudo e indefinvel, ele no se distingue de nada. Ele nada. No h nada que seja de fato. As coisas no tm a proprie-dade de ser: o ser no lhes uma caracterstica, pois o ser no caracterstico de nada. Dizer que uma coisa existe o mesmo que nada, pois, ao dizermos o nome de uma coisa, a coisa nomeada passa instantaneamente a existir de um modo ou de outro, como realidade ou fico, como possibilidade ou mesmo como impossibilidade (quando, por exemplo, dizemos impossvel que...). Assim, o ser no caracterstica das coisas, e quando dizemos que algo ou no , no estamos, de fato, dizendo nada. Podemos tirar as duas seguintes concluses a partir da argumentao que acabamos de expor: o verbo ser incapaz de nos informar sobre as relaes entre as coisas do mundo real, pois, quando dizemos que alguma coisa , no sabemos se ela ao modo do ser ou do no-ser. Alm disto, a prpria concep-o do ser inconsistente, contraditria e vazia, de modo que nenhuma coisa pode ter o ser como uma de suas caractersticas ou propriedades. Nem muito menososerporsimesmopodeexistir,poisosernopodeestarpresente Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de Leontinos10 Aldo Lopes Dinuccientre as coisas do mundo, j que sua noo engloba sua anttese destruidora: o no-ser. O ser, por assim dizer, deixaria de estar entre as coisas do mundo no exato instante em que viesse a ser, pois, neste instante crucial, j no mais seria. Iscrates confirma essa interpretao no que se refere impossibilidade de que as coisas contenham em si o ser (e correlativamente o no-ser) entre suas caractersticas, bem como a impossibilidade de que o ser (e correlativamente o no-ser) esteja entre as coisas do mundo:ComoquerealmentealgumpoderiaultrapassarGrgias,queousou afirmar que nenhum ser existe [ou ] [...] enquanto Parmnides e Melisso sustentavam que existia um s ser, [...] Grgias [sustentava] que absoluta-mente nenhum. (Iscrates: 10, 3)Osdemaisargumentosemfavordaprimeiratesenadamaisfazemque salientaraimpossibilidadedequeascoisaspossuamosercomoumapro-priedade e que o prprio ser seja possvel como uma das coisas do mundo. Para isso, primeiramente, Grgias usa o argumento de Melisso que trata da eternidade e da gerao:Depois de seu argumento, [Grgias] diz que se [algo] , , em verdade, ou no-gerado ou gerado. Se [] no-gerado, concede, pelas teses de Melisso, queinfinito:noentanto,oinfinitonopoderiaserempartealguma. Pois nem seria em si prprio nem em outro. Pois, deste modo, haveria dois infinitos, tanto aquele que em quanto aquele no qual , de acordo com o argumento de Zeno sobre o espao coisa nenhuma seria em parte alguma. (MXG, 979b, 20 ss.)Talidentificaoentreeterno,semprincpioeinfinitodependedeuma assimilao do infinito espacial ao temporal. Isso no problema aqui, pois tal tese de Melisso, e Grgias nada faz seno aceit-la para imediatamente provar seu absurdo. GrgiasfazumaconcessoaMelisso:poisbem,seoserno-gerado (eterno),entoeleinfinito.Masdasurgeoproblema,pois,seinfinito, no em parte alguma. O argumento de Zeno em questo nos informado por Aristteles: A dificuldade de Zeno exige uma explicao: pois se tudo o que existe tem um lugar, o lugar tambm ter um lugar, e assim ad infini-tum(Aristteles,Fsica,V,1,209a23).Assim,sealgono-gerado,epor conseqncia eterno e infinito, no pode ser em parte alguma, pois tem de ao mesmo tempo conter a si prprio, sendo no um mas dois e, como vemos pelofragmentodeAristteles,aseguirtrs,eassimpordiante.Portanto,a partir de argumentos prprios da escola eletica, Grgias demonstra a impos-sibilidade do ser parmendico. Na continuao, Grgias argumenta que, na verdade, o ser no pode ser gerado: Ento, devido a isto, no no-gerado nem gerado. Portanto, nada seria gerado nem a partir do ser nem a partir do no-ser. Pois, se fosse gerado a partir do ser, se transformaria, o que impossvel, pois se o ser se trans-formasse no mais seria algo que propriamente, do mesmo modo que, se tambm o no-ser fosse gerado, no mais seria algo que no . Nem cer-tamente seria gerado a partir do ser. Se, com efeito, o no-ser no , coisa alguma poderia ser gerada a partir do nada. No entanto, se o no-ser a partir do no-ser, no gerado devido s razes pelas quais precisamente tampouco gerado a partir do ser. Se, ento, necessrio que se algo seja, , em verdade, no-gerado ou gerado, e se isto impossvel, impossvel tambm que algo seja. (MXG, 979b, 26 ss.) O ser s poderia ser gerado ou a partir do ser ou a partir do no-ser. Se fosse gerado a partir do ser, o ser se transformaria, o que impossvel, pois sua natureza exclui o devir. Correlativamente, o no-ser no pode ser gerado, pois ento no mais seria algo que no . Ou seja: se o ser se transformasse no que no , ainda assim ele se transformaria em alguma coisa que . Porm, se o no-ser no , nada pode ser gerado, pois a prpria gerao supe o no-ser, sem o qual o ser no pode vir a ser outro que no ele mesmo. Se, finalmente, o no-ser fosse porque algo que no , nada poderia ser gerado, porque ser um caso anlogo da gerao do ser a partir do ser, que Grgias j demonstrou que no pode ocorrer.Em outros termos, o ser no pode vir do no-ser, j que o no-ser nada . Tampouco o ser pode vir do ser, pois deixaria de ser, na transformao, o que era, o que absurdo, pois o ser. O no-ser tambm no pode advir por nada ser. E mesmo se o ser se tornar no-ser, ainda assim se torna algo que . Porm, necessrio que o no-ser seja alguma coisa para que haja gerao, seno no haver aquilo para o que o ser caminhe, para que o ser venha a ser na medida em que no . Sem o no-ser, tudo fica esttico e impossvel de se modificar ou ser gerado. Com o no-ser, tudo anulado, pois o ser infalivel-mente se confunde com o no-ser e deixa de ser.11 Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de Leontinos12 Aldo Lopes DinucciPor outro lado, o ser no pode ser ao mesmo tempo no-gerado (eterno) e gerado. Esta concluso s se estabelece explicitamente na parfrase de Sexto: Estes dois predicados se excluem um ao outro, e se o ser eterno, ele no gerado, se gerado, ele no eterno (Sexto, Ad. Math., 72). Como todas as coisas s podem ser ou geradas ou no-geradas, e como o ser no nem uma coisa nem outra, nem muito menos ambas simultaneamente, ento nenhuma coisa .Grgiasentodesenvolveoutroargumento:unoemltiplonopodem ser predicados do ser e, portanto, nenhuma coisa :Ademais, se algo , ou um ou mais numerosos, diz [Grgias]: no entanto, seno[] nem um nemmltiplas coisas, coisaalguma seria. Ediz ele certamente um no seria, porque o um seria verdadeiramente incorpreo, na medida em que no possui nenhuma grandeza, o que refutado pelo ar-gumento de Zeno. Mas se no um, nada seria absolutamente. Pois, no sendo um, tambm no pode ser mltiplas coisas. Mas, se no nem um nem mltiplas coisas, diz [Grgias], coisa nenhuma . (MXG, 979b ss.) EstetrechodoMXGapresentalacunas.Quantoalusoquefeitaa Zeno, ela se refere a um argumento segundo o qual o que no possui nem grandeza nem espessura nem massa no pode existir. Simplcio nos informa sobre o argumento de Zeno em questo:Nada , nem poderia ser, o que nem tamanho nem solidez nem espessura [possui]: Pois, diz [Zeno], se fosse adicionado a outra coisa que , nada maior produziria; pois, em razo de ser de nenhum tamanho, nada capaz de acrescentar ao tamanho quando adicionado. E assim, a partir disto, oqueadicionadonadaseria.Masse,quandoretirado,ooutrono menor, nem, ao contrrio, quando adicionado, o outro ser aumentado, evidente que nada o que foi adicionado, nem o que foi subtrado. (Sim-plcio, Fsica, 139, 9)interessantenotarqueZenoconcebeuesseargumentocontraaplu-ralidade,oquesecomprovacomoquenosdizSimplciologonoincio dotextoqueacabamosdecitar:Sehouvesseumapluralidade,ascoi-sasseriamtantograndesquantopequenas;tograndesapontodeserem infinitasemtamanho,topequenasapontodenotertamanhoalgum. AcompanhemosofragmentodeSimplcioparacompreendermosintei-ramenteaintenodeGrgiasaofazerusodesseargumentodeZeno:Mas, se fosse, cada coisa deveria ter um certo tamanho ou figura, e uma parte disto deveria estar a uma certa distncia da outra parte; e o mesmo argumentoserveparaaparteemfrentedistoistotambmteralgum tamanho, e alguma parte disto estar na frente. E a mesma coisa dizer isto uma vez e prosseguir dizendo isto indefinidamente; pois nenhuma tal parteseraltimanemqualquerparteestarsemrelaocomoutra. (Simplcio, Fsica, 141, 1) Grgias tambm utiliza essa parte do argumento de Zeno contra a pr-pria doutrina eletica. Tal argumento explcito em Sexto (Ad. Math., 73): se o ser uno no incorpreo, ele ou quantidade ou continuidade ou grandeza em todos estes casos ele ser composto de um nmero indeterminado de partes,nosendo,portanto,nemindivisvelnemuno.Oser,porm,no pode ser mltiplo: a multiplicidade lemos em Sexto (Ad. Math., 74) uma combinao de unidades, e uma vez destruda a unidade, destri-se a multi-plicidade. Ou seja: se o ser fosse mltiplo, essa multiplicidade necessariamen-te seria composta por unidades; essas unidades, como vimos, no poderiam ser imateriais, mas teriam de ser compostas por partes, e assim ad infinitum. Portanto, nenhuma coisa .Neste ltimo argumento vemos que a argumentao de Grgias se volta no apenas contra a concepo do ser de Parmnides, mas tambm contra as concepesdosfsicos,poisdemonstradaaimpossibilidadedequeoser sejacompreendidocomoumamultiplicidadesemqueistoacarreteincon-sistncia: Esta argumentao de Grgias contra o uno e o mltiplo observa Unters-teiner (1993, p. 218) , da mesma forma que a argumentao precedente, se prende de maneira crtica ao mesmo tempo ao monismo (especialmente sob a forma que ele tinha tomado na metafsica dos eleatas) e ao pluralis-mo, utilizando argumentos tomados do eleatismo, e mais particularmente aZeno;assim,chegaele[Grgias]concluso[...],queaquelaescola no havia posto em evidncia, de que este pretenso ser absolutamente no existe.13 Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de Leontinos14 Aldo Lopes DinucciA seguir Grgias considera a hiptese do ser em movimento:E,tambm,coisanenhumasemoveria.Pois,movendo-se,nopossuiria mais a mesma forma, mas, por um lado, o ser seria o no-ser, e, por outro, o no-ser viria a ser, ademais, se perfizesse o movimento, pelo que se des-locaria, no sendo contnuo, seria dividido, mas, onde dividido, o ser no est no lugar em que dividido. De modo que, movendo-se todas as partes, portodasaspartesdividido.Noentanto,sendoassim,noemparte alguma.Poisfaltaser,aondedividido,diz[Grgias],echamaistode dividido ao invs de vazio, do mesmo modo que est escrito nos argumentos creditados a Leucipo. (MXG, 980a 2-9)Untersteiner afirma que certamente Grgias, em seu texto original, prece-dia a crtica do movimento com uma crtica do repouso (1993, p. 218) que osatomistas,porexemplo,poderiamfornecer.NaparfrasedeSextonem sequer aparece a crtica ao movimento. Como observa Levi (1941, p. 20-21), tanto aqui quanto nas passagens anteriores, Grgias destina seus argumentos contra todas as metafsicas que tenham de algum modo buscado determinar a natureza da realidade:EstetextomostraafirmaLevi(ibidem),porargumentostiradosdo eleatismo, que impossvel atribuir o movimento realidade. Fazendo isto, ele critica todas as metafsicas [tanto a dos fsicos quanto aquelas implcitas nosensocomum]exceodoeleatas;masestapolmicaeraaparente-mente precedida de uma outra, hoje perdida, que, dirigida contra o eleatis-mo, tendia a provar a impossibilidade do ser em repouso. E Grgias teria concludo seu raciocnio deste modo: como o ser deve se encontrar num ou noutro destes estados e como estes dois so impossveis, nada .Temosdoisargumentoscontraomovimentonotextoqueacabamosde citardoMXG.Oprimeiromostraaimpossibilidadedequehajaummovi-mento por alterao em algo que seja: pois, ao transformar-se ou alterar-se, deixaria de ser o que (o ser se transformaria no no-ser), enquanto que o no-ser,pelatransformao,viriaaser.Osegundoargumentotratadaim-possibilidadedequealgoquesejasemovaportranslao.Apassagemdo MXGbastantetruncada,masLevi(1941,p.22)interpreta-asobaluzde um comentrio de Aristteles relativo a Melisso, comentrio que citaremos a seguir para tornar mais clara a argumentao do MXG:Algunsdosantigosfilsofos[AristtelesacabaradecitarMelissoeDe-mcrito] sustentam que o ser deve necessariamente ser uno e imvel; pois eles argumentavam que o vazio no existe, mas que, se no h um vazio existindo separadamente, o ser no poderia ser movido; nem, novamente, poderiahaverumamultiplicidadedecoisas,jquenohnadaqueas mantenha separadas; e eles declaram que, se algum sustenta que o mundo no contnuo, mas mantm contato em separao, isto no diferente de dizer que as coisas so muitas (e no uma) e que h um vazio. Pois se o mundo totalmente divisvel, no h nenhum um e por esta razo nenhu-ma multiplicidade, mas o todo um vazio. [Por esta razo], eles dizem que igualmentenecessrionegaraexistnciadomovimento.(Aristteles, Gerao e Corrupo, A, 8, 325a 2. Cf. Untersteiner: 1993, p. 243 ss., nota 63)Assim, Grgias demonstra, no exame da primeira tese, que qualquer dis-curso que pretenda falar acerca das coisas em sentido geral (isto , falar do ser das coisas) est fadado a ser anulado no apenas pelo discurso contrrio, mas tambm por si mesmo, em razo da inconsistncia inerente noo de ser. Portanto, a rota para um discurso geral sobre o ser j foi fechada. Quando Grgias parte da afirmao Ainda que as coisas sejam, elas so incognosc-veis, que constitui a segunda tese do Tratado, ele o faz para penetrar em outra esfera de sua argumentao contra a pretenso de se descrever racionalmente aestruturadarealidade.Grgiaspassaraatacaroquehojechamamosde teoria do conhecimento:[...] depois destas mesmas demonstraes, [Grgias] diz que, se , incog-noscvel. Com efeito, necessrio que todas as coisas pensadas sejam, (10) e o no-ser, j que no , no pode ser pensado. No entanto, sendo assim, ningum diria nada falso, diz [Grgias], nem mesmo se diz que carros de guerracombatemnomar.Poisnestecasotodasascoisasseriam.E,com efeito,porcausadisto,ascoisasvistaseascoisasouvidassero,porque cadaumadelaspensada.Mas,senoassim,mas,domesmomodo que as coisas que vemos, em nada mais so onde as vemos, assim as coisas que vemos no mais so pensadas onde as vemos (e, com efeito, do mesmo modo que tanto muitos a vem estas coisas quanto muitos estas coisas pen-sassem), por que, portanto, seria mais evidente que tal coisa ? Mas no evidente que esse tipo de coisas verdadeiro. De modo que, se tais coisas tambm so, para ns seriam incognoscveis. (MXG, 980a ss.)15 Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de Leontinos16 Aldo Lopes DinucciNesteponto,maisumaveznecessriocompararestetrechodoMXG com o texto que trata do mesmo tema na parfrase de Sexto:Se aquilo que pensamos no existe como ser, o ser no pensado [...] Se, de fato, as coisas pensadas existem como seres, tudo o que se pensa existe, independentemente da forma como for pensado, o que inverossmil [...] Alm disto, se aquilo que pensamos existe como ser, as coisas que no exis-tem no podem ser pensadas. Por conseguinte, a coisas contrrias advm o contrrio e o ser o contrrio do no-ser. E assim, pelo menos, se ao ser aconteceuserpensado,aono-seracontecernoserpensado.Masisto absurdo.TambmCila,Quimeraemuitasoutrascoisasnoexistentes sopensadas.Portanto,osernopensado.Talcomoaquiloquesev se diz visvel por ser visto, o que se ouve torna-se audvel por ser ouvido, e no rejeitamos as coisas visveis por no as ouvirmos, nem repudiamos as audveis por no serem vistas pois cada uma dessas coisas dever ser percebida pelo sentido que lhe prprio e no por outro do mesmo modo, aquilo que pensamos, ainda que no seja percebido pela vista nem escutado pelo ouvido, existir porque apreendido pelo seu prprio critrio. Assim, sealgumpensaquecarrosdecavaloscorremrapidamentesobreomar, embora no os veja, dever acreditar na existncia de carros correndo ra-pidamentesobreomar.Pormistoabsurdo.Logo,osernopensado nem tampouco apreendido. (Ad. Math., 77 ss. )Grgias trata, na segunda tese, da impossibilidade de se atingir o ser das coisas, quer elas sejam o efeito da percepo quer elas tenham sido elabo-radas pela atividade intelectual (Untersteiner, 1993, p. 219). Como observa Levi (1941, p. 26), a segunda tese de Grgias se dirige contra todas as dou-trinas filosficas. As coisas (pragmata), a respeito das quais afirmada a im-possibilidade de conhecer que sejam, devem ser compreendidas no sentido maisamplopossvel,comocomponentesdorealemgeral,estendidoao sentido monista ou pluralista, concebido com gerado ou no-gerado, e assim por diante (Levi: 1941, p. 22). Alm disto, acrescenta Untersteiner (1993, p. 220), tais coisas englobam tudo o que passvel de ser objeto da experincia humana, seja coisa sensvel, imaginada ou especulada. O texto de Sexto que acabamos de citar acima se inicia com o que podera-mos chamar de argumento contra a apreenso do ser das coisas pensadas, isto , das coisas concebidas unicamente por meio do pensamento. Este argumen-to,observaUntersteiner(1993,p.222),sedirigecontratodososfilsofos pr-socrticos. Como se sabe, todos eles conceberam um fundamento para a realidade. Todos esses elementos so unicamente pensados e jamais experien-ciados (quando, por exemplo, Herclito diz ser o fogo o elemento de todas as coisas, ele no se refere ao fogo sensvel, mas aos elementos que compem o fogo e todas as outras coisas elementos estes, claro, no sensveis). Sabemos que surge contradio quando dizemos que tal ou qual elemento o ser, o fundamento do real. Porm, vamos supor que possamos pensar esse contraditrio fundamento da realidade. A adoo dessa hiptese de trabalho permitiraGrgiasadicionarmaisumargumentocontraacapacidadedo pensamento de conhecer o ser. Para que o pensamento se ocupe de coisas que so, necessrio que tanto as coisas pensadas sejam quanto o no-ser no seja pensado. Mas, se assim o fosse, no erraramos jamais ao pensar: sempre pen-saramos coisas que so. Porm, muitos seres que pensamos decididamente noso(como,porexemplo,aQuimera).Mesmoadmitindoahiptesede podermos pensar o ser, no h qualquer garantia de que pensamos algo que , em vez de simplesmente nos ocupamos das coisas que no so. Esse problema abrir caminho para o descarte da possibilidade de que o homem disponha de qualquer funo com a qual ele possa captar a realidade no que diz respeito ao que ela supostamente possuiria de eterno e imutvel, osupostoserdascoisas.Todososfilsofosquecremnapossibilidadede queohomematinjaoconhecimentoverdadeirosobreorealconcebemno homemalgumafunoprivilegiada,capazdegarantirapenetrabilidadedo mundopelarazoedeforneceraoserhumanoumconhecimentodaquilo que se mantm constante atravs da mudana. Chamemos essa nobre funo deintuiointelectual.Grgiasatacajustamenteapossibilidadedequeo homem disponha de uma tal intuio intelectual, e seu argumento pode ser assim sintetizado: (1) O visvel dito visvel porque visto, porque apreen-dido pelo olhar; o mesmo vale para todo o sensvel. (2) Ora, no deixamos de crer que percebemos tais coisas sensveis por no perceb-las por um outro sentido. Assim, se vemos algo, o fato de no ouvi-lo no compromete a sua viso. Da mesma forma, se ouvimos algo, mas no o vemos, no rejeitamos o som da coisa simplesmente por faltar-nos sua imagem. Desse modo, cada coisa percebida pelo sentido que lhe prprio e no por outro. (3) Entre-tanto, as coisas pensadas s sero percebidas se apreendidas pelo seu prprio critrio, se o ser humano dispuser de alguma faculdade capaz de apreender o ser. (4) Porm, o fato de pensarmos em alguma coisa no contribui para que aceitemos a realidade do ser dela prpria. Se, por um lado, contamos entre ascoisasdomundoascoisasquevemossemterdeouvi-lastambm,no 17 Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de Leontinos18 Aldo Lopes Dinuccipodemos contar entre as coisas do mundo as coisas que pensamos sem que tambm a percebamos por algum dos sentidos;no fosse assim, teramos de crernarealidadedeporcosvoandoagrandesaltitudesspelosimplesde fato de pensarmos sobre eles. Porm, o ser das coisas no apreendido por nenhum sentido especfico: o ser humano no dispe de qualquer faculdade de intuio intelectual.Grgiasdisparaentooseuterceirogolpecontratodaequalquerdou-trina filosfica que queira produzir um discurso sobre a realidade ltima do mundo. Grgias, ao defender a primeira tese do tratado, contesta a prpria noo de ser e qualquer noo que aponte nas coisas um elemento que es-cape ao fluxo ininterrupto da mudana. Em seguida, defendendo a segunda tese, argumenta contra a possibilidade de que o homem disponha de alguma capacidade de captar o suposto ser das coisas. Grgias se volta ento contra o ltimo elemento atravs do qual seria possvel fundar um discurso uno sobre as coisas: a linguagem.AargumentaodeGrgiasemfavordaterceiratesedoTratado(qual seja: ainda que alguma coisa fosse e fosse cognoscvel, no seria comunicvel a outrem), pode ser dividida em duas partes principais, a primeira demons-trando a heterogeneidade do logos e do real, e a segunda, o carter relativo, individualeincomunicveldetodoconhecimento.Passemosanliseda primeira parte do argumento, a afirmao da heterogeneidade do logose do real. Quanto a isto, diz-nos o MXG:E,comefeito,sesocognoscveis,como,diz[Grgias],poderiaalgum comunic-las a outrem? Pois, diz, como poderia algum comunicar a outro, pela palavra, aquilo que v? Ou como poderia alguma coisa ser evidente para algum que a escute e no a veja? Pois, do mesmo modo que a viso noconheceossons,assimaaudionoouveascores,masossons:e aquelequediz,diz,masnoacornemacoisa.Portanto,comopoderia algum, no tendo determinada coisa no esprito, vir a t-la no esprito por intermdio de outra pessoa, atravs da palavra ou do signo, que diferente da coisa, a no ser que ou, por um lado, veja-a, se for uma cor, ou, por ou-tro, escute-a, se for um som? Pois, a princpio, ningum diz nem o som nem a cor, mas a palavra. De modo que no possvel pensar a cor, mas v-la, tambm no possvel pensar o som, mas ouvi-lo. (MXG, 980a 18 ss.)Aqui, todos os comentadores concordam estar implcita a teoria da per-cepodeEmpdocles,segundoaqualdiminutaspartculasemanamdos corpos, partculas que, de acordo com seu tamanho, penetram nos diferentes sentidos, produzindo as diferentes percepes (Cf. Plato, Mnon, 76a ss.). O argumento de Grgias pode ser sintetizado da seguinte maneira: (1) Aquilo que vemos visto, mas no ouvido. Da mesma forma, o que ouvimos ou-vido e no visto, e o mesmo vale para todas as percepes. (2) No podemos experienciar uma percepo prpria de um sentido atravs de outro sentido. (3) Assim tambm a palavra no pode comunicar a outro algo que ouvimos ou vemos ou percebemos por qualquer outro sentido. Pois, da mesma forma que o som no pode nos fazer experienciar a cor e o sabor, o logos, enquanto signo, no pode nos fazer experienciar qualquer uma das coisas que apreen-demos pelos sentidos. A parfrase de Sexto confirma essa reconstruo:Se for verdade que h coisas visveis e audveis e, na generalidade, percep-tveisaossentidosseresestessituadosnoexteriore,dentreestes,as visveis so apreendidas pela vista, enquanto as audveis o so pelo ouvido, enodeoutromodo,comopodementosercomunicadosaoutrem?Na verdade, com a palavra que identificamos algo, mas a palavra no nem aquilo que [] nem o ser: logo, no comunicamos o ser aos que nos rodeiam, mas sim a palavra, que diferente das coisas visveis. (Sexto, Ad. Math., 83-84)J sabemos que Grgias, ao defender a primeira tese do Tratado, refuta a possibilidade de que alguma coisa seja em sentido estrito, e que, ao defender a segunda tese, refuta a possibilidade de que o ser das coisas (aquilo que nas coisaspermaneceriaconstanteatravsdasmudanas)fosseapreendidopor uma capacidade qualquer distinta dos sentidos. Ora, aquele ser no-sensvel e imutvel certamente no pode ser objeto da experincia. Podemos citar o seguintepensamentodeGrgias,quenoschegouatravsdeumfragmento srio, como prova de que Grgias realmente pensava assim: Aquilo que ne-nhuma mo toca, nem nenhum olho v, como o pode a lngua expressar ou a orelha do ouvinte perceber? (Barbosa & Castro: 1993, p. 64). Tudo o que nosresta,portanto,averiguarsepodemoscomunicaraomenosesseser sensvel das coisas, o qual, ainda que submetido ao fluxo irrefrevel da mu-dana, se nos apresenta diante dos sentidos. Tomando a teoria da percepo deEmpdocles,vemosquenemsequerpodemoscomunicarasqualidades sensveisdascoisas:ologos,coisasensvelentreascoisassensveis,com certeza distinto das outras coisas sensveis que nos cercam. Assim, da mesma forma que um som determinado no nos comunica qualquer outra qualidade 19 Anlise das Trs Teses do Tratado do No-Ser de Grgias de Leontinos20 Aldo Lopes Dinuccisensvel(nemsequeroutrossons)mastosomenteelemesmo,damesma forma o logosnada transmite seno a si prprio.AparfrasedeSextonosinformaamaneiracomoGrgiasconcebiao processo pelo qual se dava a formao das palavras:Na verdade, a partir do encontro do sabor, origina-se em ns a palavra pro-duzida de acordo com aquele, e tambm a partir da impresso da cor nasce a palavra conforme a esta cor. Se for assim, a palavra no expresso da coisa exterior, mas a coisa exterior que se torna reveladora da palavra. (Ad. Math., 83-84)Assim, a palavra surge como um turvo reflexo da realidade e, ao ser for-mada, j no guarda qualquer semelhana com a coisa que a engendrou, da mesmaformaqueapedracaindon'guaoriginaondasquenoguardam qualquersemelhanacomapedraqueasoriginou.Portanto,osentidoda palavra s pode ser dado pela sensao que a origina; ou, como diz Sexto, a coisa sensvel que revela a palavra. Cabeaquiumaquesto:possvelaomenoscomunicaressaexperin-ciapessoalcarentedequalquerfatorobjetivo?possvelparaoshomens transmitirunsaosoutrosassuasrespectivaspercepesnummundoonde ascoisasnodispemdequalqueressncia,dequalquercaractersticaque consiga se desembaraar do fluxo ininterrupto da mudana? Esse o proble-ma derradeiro com o qual o Tratado se encerra, e a resposta a isto ser que a relatividade individual torna todo conhecimento incomunicvel:Se, no entanto, tambm admissvel tanto conhecer quanto ler a palavra, comooqueescutaternoespritoamesmacoisa?Poisnopossvelo mesmo estar simultaneamente em numerosas pessoas, pois um seria dois. Se, no entanto, diz [Grgias], o mesmo tambm fosse em muitas pessoas, nada impede que no parea semelhante para eles, j que no sendo nem so semelhantes para todos nem [esto] no mesmo lugar: pois, se algo fos-sedetalqualidade,seriaum,masnodois.Noentanto,nemmesmoo prprio homem parece perceber coisas semelhantes ao mesmo tempo, mas coisasdiferentespelaaudioepelaviso,ediferentementetantoagora quantoantes,demodoquedificilmentealgumperceberiaumamesma coisa idntica a uma outra, assim, nada , se algo, incognoscvel, mas se cognoscvel ningum poderia comunicar o mesmo a outra pessoa, tanto porque as coisas no so as palavras quanto porque ningum tem no esp-rito a mesma coisa que outra pessoa. (MXG, 980b 10 ss.)Num mundo carente de qualquer universalidade, a comunicao em sen-tido estrito totalmente impossvel. Grgias enumera as seguintes razes que explicamessaimpossibilidade:(1)Paraqueacomunicaosedesse,seria preciso que a mesma coisa pensada estivesse simultaneamente em vrios su-jeitos distintos. Porm, neste caso, o um seria dois ou mais, o que absurdo. (2)Aindaquetalsimultaneidadeocorresse,haveriaumfalandoeoutroes-cutando, e aquele que fala engendra uma sensao diferente daquilo acerca doquepretendecomunicare,maisumavez,acomunicaoimpossvel. (3) Alm disso, nem sequer o mesmo sujeito experimenta a mesma coisa de modo idntico agora e depois. E mesmo simultaneamente, atravs dos dife-rentes sentidos, o mesmo sujeito no perceber a mesma coisa, mas uma pela viso, outra pela audio etc. Assim, a comunicao entre os homens sob o prisma de uma universalidade objetiva absolutamente impossvel.Referncias BibliogrficasAubenque. Le Problme de Ltre chez Aristote. 2 ed. Paris: Quadrige, 1994.Barbosa & Castro. Grgias: Testemunhos e Fragmentos. Lisboa: Colibri, 1993.Bett. The Sophistis and Relativism. In: Phronesis, 34 (1989) pp. 139-69.Cassin. LEffect Sophistique. Paris: Gallimard, 1995.Diles-Kranz. Die Fragmente der Vorsokratiker. 6 ed. Berlim, 1952.Dinucci, Aldo. 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