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CONSIDERAÇÕES A PROPÓSITO DE DOIS CASOS DE GAGUEIRA ANTONIO B. LEFÈVRE* A gagueira ou, mais corretamente, a espasmofemia é um distúrbio da linguagem do grupo das disfemias, caraterizado pela ocorrência de espasmos tônicos ou clônicos que se interpõem ao livre desenvolvimento do ritmo normal da expressão verbal. Poucos assuntos, no tão controvertido campo dos distúrbios da linguagem, têm despertado tantas discussões como a gagueira. Os que a estudaram dividem-se em dois grupos à primeira vista inconciliáveis: de um lado, os neurologistas que vêem, na base do distúrbio, um pro- cesso orgânico de natureza eminentemente neurológica, admitindo quan- do muito que o variado colorido psiconeurótico, identificável na quase totalidade dos gagos, constitui elemento superajuntado — efeito e não causa do distúrbio — enquanto que, de outro lado, os psiquiatras e, mais particularmente, os psicanalistas procuram explicar a gagueira como ma- nifestação de uma neurose. Lee Travis, em seu livro 1 expõe argumentos dos defensores da pri- meira hipótese. Em linhas gerais, afirma que o gago, como muitos dos portadores de distúrbios da linguagem, não chega a atingir um perfeito nível de maturação do sistema nervoso central; em virtude disto, não desenvolve plenamente a capacidade de integrar as atividades dos níveis neurofisiológicos mais elevados interessados na linguagem, estando pre- disposto à desintegração dos mesmos por numerosos estímulos, endó- genos e exógenos. Explicando mais claramente: há uma meta a ser atingida no processo de maturação; essa meta consiste no estabeleci- mento de um grau de domínio para as excitações provenientes de um hemisfério cerebral, a fim de que o organismo possa funcionar como um todo harmônico. Se, por um traumatismo, por moléstia ou qualquer alteração no processo normal do desenvolvimento, esta dominância se torna insuficiente ou não chega a estabelecer-se, originam-se muitos dis- túrbios neuromusculares, entre os quais se destaca a gagueira como um dos mais importantes. No gago, em lugar da energia nervosa ser mo- Entregue para publicação em 3 outubro 1945. * Assistente de Clínica Neurológica na Faculdade de Medicina da Uni- versidade de São Paulo (Prof. Adherbal Tolosa). 1. Travis, L. E. — Speech Pathology. D. Appleton-Century Co., New York-London, 1931.

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  • CONSIDERAES A PROPSITO DE DOIS CASOS D E GAGUEIRA

    ANTONIO B. LEFVRE*

    A gagueira ou, mais corretamente, a espasmofemia um distrbio da linguagem do grupo das disfemias, caraterizado pela ocorrncia de espasmos tnicos ou clnicos que se interpem ao livre desenvolvimento do ritmo normal da expresso verbal.

    Poucos assuntos, no to controvertido campo dos distrbios da linguagem, tm despertado tantas discusses como a gagueira. Os que a estudaram dividem-se em dois grupos primeira vista inconciliveis: de um lado, os neurologistas que vem, na base do distrbio, um pro-cesso orgnico de natureza eminentemente neurolgica, admitindo quan-do muito que o variado colorido psiconeurtico, identificvel na quase totalidade dos gagos, constitui elemento superajuntado efeito e no causa do distrbio enquanto que, de outro lado, os psiquiatras e, mais particularmente, os psicanalistas procuram explicar a gagueira como ma-nifestao de uma neurose.

    Lee Travis, em seu livro 1 expe argumentos dos defensores da pri-meira hiptese. Em linhas gerais, afirma que o gago, como muitos dos portadores de distrbios da linguagem, no chega a atingir um perfeito nvel de maturao do sistema nervoso central; em virtude disto, no desenvolve plenamente a capacidade de integrar as atividades dos nveis neurofisiolgicos mais elevados interessados na linguagem, estando pre-disposto desintegrao dos mesmos por numerosos estmulos, end-genos e exgenos. Explicando mais claramente: h uma meta a ser atingida no processo de maturao; essa meta consiste no estabeleci-mento de um grau de domnio para as excitaes provenientes de um hemisfrio cerebral, a fim de que o organismo possa funcionar como um todo harmnico. Se, por um traumatismo, por molstia ou qualquer alterao no processo normal do desenvolvimento, esta dominncia se torna insuficiente ou no chega a estabelecer-se, originam-se muitos dis-trbios neuromusculares, entre os quais se destaca a gagueira como um dos mais importantes. No gago, em lugar da energia nervosa ser mo-

    Entregue para publicao em 3 outubro 1945. * Assistente de Clnica Neurolgica na Faculdade de Medicina da Uni-

    versidade de So Paulo (Prof . Adherbal T o l o s a ) . 1. Travis, L . E. Speech Pathology. D . Appleton-Century Co. , N e w

    Y o r k - L o n d o n , 1931.

  • bilizada por um centro de grande potencialidade, ela mobilizada por dois centros de potencial igual, ou aproximadamente igual, resultando dsse fato uma competio, uma falta de sincronizao nos movimentos musculares dos rgos perifricos da linguagem. Os sintomas e sinais da gagueira seriam resultantes da competio entre os dois hemisfrios cerebrais. A dominncia de um hemisfrio sbre outro seria medida por um limiar de dominncia que carateriza a diferena de potenciali-dade entre os hemisfrios. Nos casos em que no houver diferena al-guma na atividade cerebral, isto , quando no existir dominncia, o in-divduo gagueja em tda e qualquer circunstncia; quando essa domi-nncia chega a se estabelecer, mas a margem muito pequena, um pe-queno estmulo emocional ou uma leve fadiga mental podem anular sse leve predomnio e provocar a gagueira. O mesmo no se d quando a margem bem larga, de tal maneira que nunca chega a ser anulada a diferena de potencialidade entre os dois hemisfrios.

    Na gagueira, o que se d, em poucas palavras, uma falta de siner-gia nos rgos perifricos da linguagem, resultando da, principalmente, um conflito entre os movimentos respiratrios torcicos e abdominais. O aparelho respiratrio, que deveria funcionar como um todo se esti-vesse submetido ao de um hemisfrio dominante, encontra-se, na realidade, atuando sob o contrle de nveis superiores trabalhando de-sarmnica e mesmo antagnicamente. Os registros grficos obtidos du-rante a ocorrncia das interrupes do livre curso da expresso oral de-monstram bem o que pode resultar da ao desarmnica das musculatu-ras abdominal e torcica. Essa desarmonia pode atingir propores de um verdadeiro conflito que torna impossvel a emisso normal da lin-guagem, pois no se forma a corrente de ar expiratria necessria para a fonao e articulao. Alm disto, outros setores da atividade mus-cular de rgos perifricos da linguagem vo sofrer os efeitos dessa de-sarmonia. Alis, seria suficiente recordarmos um fato de observao corrente que vem a ser a grande desarmonia que se nota nos gestos dos gagos gestos fisionmicos ou manuais que muito freqentemente so mesmo considerados movimentos parasitas. Os espasmos que se verificam na musculatura da laringe demonstram tambm de maneira bem objetiva o que acaba de ser afirmado.

    J havia sido notada, pelos que estudam os distrbios da lingua-gem, a relao existente entre a gagueira e a utilizao predominante dos membros. E' preciso que compreendamos bem claramente o que vem a ser essa utilizao predominante de um dos membros. O uso de pre-ferncia da mo direita, por exemplo, na grande maioria dos atos da vida diria no argumento suficiente para se afirmar que esta mo seja dominante. O manodextrismo pode ser uma manifestao peri-frica que mascara a tendncia para um predomnio do hemicorpo es-querdo em certos casos. A imitao ou mesmo o aprendizado so

  • muito conhecidos os preconceitos que atribuem, sem qualquer razo l-gica, certas deficincias aos indivduos conhotos contribuem para que se estabelea ste manodextrismo artificial em indivduos naturalmente canhotos.

    H grande nmero de provas utilizveis em neurologia para a ve-rificao desta predominncia natural. Testes para o exame da fra de preenso, da firmeza das mos, da velocidade dos movimentos, da coordenao na realizao de movimentos delicados, da viso unilateral, da escrita em espelho, da escrita simultnea com as duas mos e outros ainda de mais difcil realizao na prtica clnica, tais como registro cinematogrfico dos movimentos oculares, a medida da cronaxia nas duas metades do corpo e, mais recentemente, a eletrencefalografia, vieram demonstrar como muitas vezes somos iludidos nesse terreno pelos exa-mes superficiais. Por sses testes podemos muitas vezes verificar se-guramente que indivduos, geralmente considerados como dextros, tm na realidade uma ntida tendncia para o predomnio do hemicorpo es-querdo. No iremos entrar, aqui, na discusso de um assunto que seria importante para compreendermos plenamente o problema, isto , a ra-zo porque, na grande maioria dos casos, o hemisfrio esquerdo predo-mina sbre o direito. Tm sido apontadas inmeras causas para expli-car sse fato; uma delas e talvez a mais importante refere-se ao fato de ser mais ampla, no feto, a irrigao sangnea do hemisfrio esquerdo.

    Travis e Bryngelson 2 , realizando o teste da viso unilateral em 301 indivduos gagos que se diziam dextros, verificaram que, em 60% de-les, predominava a viso do olho esquerdo ou ento no havia predo-mnio ntido de qualquer do lados. Travis 1 , com a prova da escrita em espelho, e H. Jaspers 3 , com a escrita simultnea, verificaram que boa percentagem dos indivduos gagos considerados dextros eram, na rea-lidade, naturalmente canhotos. Essas verificaes so de grande im-portncia prtica, pois, ao mesmo tempo que explicam a patogenia do distrbio, ditam uma norma racional de teraputica. Eu mesmo j pude verificar um caso que atesta, de maneira indiscutvel, o valor desta hiptese proposta por Travis e os que o seguem. Tratava-se de uma criana de 3 anos, canhota naturalmente, em que os pais estavam pro-curando desenvolver, artificialmente, o manodextrismo. Coincidindo com essa interveno paterna, comeou a se instalar um ntido quadro de gagueira. J tm sido descritos numerosos casos de gagueira em que se descobriu sse desenvolvimento artificial do predomnio da mo direita.

    2 . Cit. Jaspers 8. 3 . Jaspers, H . A laboratory study of diagnose indices of bilateral

    neuromuscular organisation in stutterers and normal speakers. Psychologica l Monographs . Psychologica l Review Publications 43:194, 1932.

  • A prova teraputica , nestes casos, absolutamente decisiva. Fa-gan 4 tratou 33 gagos segundo a tcnica proposta por Travis, isto , pro-curando, por intermdio de exerccios, desenvolver o predomnio da me-tade naturalmente dominante e que havia sido contrariada. Todos os atos da vida cotidiana passam a ser desempenhados com a mo corres-pondente ao hemicorpo naturalmente dominante: comer, pentear-se, apa-nhar e arremessar objetos, etc. Alm disto, so indicados exerccios em que o paciente deve falar, ao mesmo tempo que escreve com a mo naturalmente dominante, iniciando os movimentos da escrita um pouco antes que os da palavra falada. sse exercco muito importante, pois baseia-se na presuno de que o escrever determina um predomnio motor geral e, tambm, no fato de que, havendo ntimas e profundas relaes entre a palavra falada e a palavra escrita, o desenvolvimento do predomnio cerebral no que diz respeito a uma, repercutir benefica-mente sbre a outra. Seria desnecessrio lembrarmos as ntimas rela-es existentes entre a palavra falada e a escrita; recordemos as afasias em que, a no ser em casos excepcionais, que so por alguns rotulados como casos de afasia histrica, os distrbios da escrita so superponveis aos da palavra falada. Fagan pde verificar progressos quase que di-rios, em 33 gagos submetidos a stes exerccios, com notvel reduo dos espasmos tnicos e clnicos. Desses doentes, 23 foram treinados para o desenvolvimento do predomnio da mo esquerda, naturalmente predominante, e os 10 restantes foram treinados para fortalecer o pre-domnio da mo direita, insuficientemente predominante. Desses doen-tes, 26, ou seja, 79% ou curaram ou melhoraram grandemente. Os 7 restantes abandonaram o tratamento, que durou, em mdia, 14 meses.

    Os que divergem do ponto de vista defendido por Travis no do a menor importncia a esta hiptese etiopatognica, ou a consideram de importncia secundria. Afirmam eles ser a gagueira uma das mani-festaes de um quadro neurtico geral. Ainda recentemente, Bernard Meyer 5 publicou um longo estudo em que procura, dentro dste ponto de vista, combater as idias de Travis. Para le, o gago um indivduo que est freqentemente interrompendo sua palavra, no porque exista um conflito entre os hemisfrios cerebrais, mas sim porque h um con-flito entre suas tendncias inconscientes e conscientes. A gagueira interpretada como um fenmeno de inibio destinado a impedir a rea-lizao de um ato. A linguagem livre e fluente implica na expresso

    4 . Fagan, L . B. A clinico-experimental approach to the reeducation of the speech of stutterers. Psychological Monographs . Psychological R e -view Publications 43:225, 1932.

    5. Meyer, B. G. Psychosomat ic aspects of stuttering. J. Nerv. a. Ment. Dis. 101:127 (fevereiro) 1945.

  • de certos impulsos interditos; a gagueira seria uma barreira interposta ao seu livre fluxo.

    OBSERVAO 1 I. S., com 17 anos de idade, foi examinado em fevereiro de 1 9 4 5 (clnica particular). Em seus antecedentes mrbidos nada h de grande importncia. Foi sempre indivduo de hbitos metdicos, estudioso, tendo cur-sado o ginsio com facilidade, colocando-se sempre entre os primeiros alunos da turma. Foi sempre reconhecido como indivduo calmo e se reconhece como tal. Em seus antecedentes familiais h, de interessante, o fato de sua progenitora ser canhota. O paciente tambm canhoto, tendo sempre usado exclusivamente a mo esquerda, at entrar para o colgio, quando comeou a ser treinado para o uso da mo direita. Apesar de ter sido intensamente treinado neste sentido, ainda conserva sua tendncia natural para o uso da mo esquerda em certo nme-ro de atividades. assim que, por exemplo, muitas vezes percebe que est co -mendo com a mo esquerda. Interrogado durante o exame confessou, no sem certa surpresa, que, sistematicamente, d corda no relgio com a mo esquerda. A gagueira do paciente iniciou-se h crca de 4 ou 5 anos, tendo-se instalado de maneira lenta e progressiva. No se recorda de qualquer trauma emocional nesta ocasio. Sua linguagem apresenta espasmos tnicos e clnicos no incio ou no meio das palavras. No h qualquer palavra ou fonema cuja pronncia des-perte especialmente o exagro dstes espasmos. Gagueja " c o m qualquer pala-vra" , principalmente quando est emocionado. Canta e assobia bem. De ma-neira geral, pode-se afirmar que seu distrbio no muito grave, no chegando a prejudicar grandemente suas atividades. O exame neurolgico de rotina nada revelou de anormal. Sua gesticulao manual correta, porm a gesticulao facial exagerada e desarmnica, podendo-se dizer que, freqentemente, ela ex-cessiva, sem adaptao perfeita ao que a linguagem est exprimindo. A o exame especializado, pudemos notar, sem qualquer dvida, a veracidade da informao prestada pelo paciente, no sentido que seus membros esquerdos so naturalmente predominantes. A prova da escrita em espelho, todas as provas cronomtricas da bateria de Grace-Arthur, mostraram claramente ste domnio. O psicodiagnstico de Rorschach veio demonstrar objetivamente a inexistncia de qualquer compo-nente neurtico na base do processo. Voltaremos mais adiante aos resultados dste exame, fazendo uma anlise comparativa dos resultados dos protocolos dos dois pacientes que observamos. Estabelecida, assim, a etiologia do distrbio, ins-titumos um mtodo de tratamento semelhante. ao proposto por Travis, acrescido de ginstica respiratria, rtmica e exerccios articulatrios. O paciente, muito colaborador, prestou-se de boa vontade aos exerccios e, ao fim de 4 meses, teve alta curado. Por esta ocasio, o paciente gaguejava apenas quando emocionado, porm muito raramente, e, mesmo assim, conseguia controlar perfeitamente o dis-trbio articular depois de restabelecer o ritmo respiratrio normal, alterado nestas eventualidades. De tal forma mostrava-se o paciente entusiasmado com os re-sultados obtidos que, numa das ltimas vezes que o vi, manifestou sua inteno de fazer concurso para " speaker" da estao de rdio de sua terra natal. Para consolidar a cura, aconselhamos uma mudana de ambiente, o que foi cumprido pelo paciente, que se mudou para So Paulo, onde continuar a ser observado.

    OBSERVAO 2 S. P. O., com 1 7 anos de idade, examinado no Ambulatrio de Neurologia do Hospital das Clnicas (Servio do Prof. A . To losa ) . Trata-se de um rapaz de procedncia mais modesta e nvel cultural mais baixo que o pa-ciente da observao 1, trabalhando atualmente em escritrio comercial. Sua ga-gueira bem mais grave do que a do paciente da observao anterior. Os es-pasmos, tnicos principalmente, so de tal ordem que muitas vezes o paciente per-manece mais de 30 segundos esforando-se para pronunciar uma palavra. Du-

  • rante stes espasmos, a mmica facial se altera, os lbios projetam-se para frente, emitindo perdigotos abundantemente, o que vem concorrer para agravar seu es-tado emocional. Esta situao rompe-se geralmente quando o paciente realiza uma inspirao profunda para compensar a expirao forada ocorrida durante a vigncia do espasmo tnico. Neste paciente, no pudemos notar qualquer sinal que pudesse levar a supor uma etiologia semelhante quela apontada na primeira observao. le foi sempre dextro. Seu exame neurolgico de rotina no revela qualquer alterao alm da que nos ocupa no momento. Relata sua progenitora que a gagueira do paciente conseqncia de um grande susto sofrido pelo mesmo com a idade de 8 anos, aproximadamente. Estava le em companhia de outros garotos roubando frutas em uma chcara quando surgiu um indivduo armado de uma espingarda, gritando que ia mat-los. O paciente ficou de tal forma emo-cionado que no conseguiu dar sequer um passo para fugir, tendo ficado " sem fala" por bastante tempo. Quando voltou a falar, estava gago como hoje. le sofre extraordinariamente com seu defeito, e limita-se a falar apenas o indispens-vel, isso mesmo em uma voz de intensidade muito mais baixa do que a do comum das pessoas. Permanece a maior parte do tempo calado, principalmente porque, no escritrio onde trabalha, existem algumas moas que, segundo informa, caoam abertamente de seu defeito.

    O psicodiagnstico de Rorschach, realizado nos dois pacientes, re-velou diferenas ntidas entre as duas personalidades, sendo de notar que, por feliz coincidncia, eles tm a mesma idade, o que vem tornar mais simples a comparao entre os dois protocolos.

    O primeiro paciente, I. S., apresenta um protocolo muito mais bri-lhante sob o ponto de vista da inteligncia. De um total de 30 respos-tas, 15 so globais e 6 de movimento. Alm disto, algumas respostas originais bem vistas, o tipo de percepo G D ( ( D d ) ) , a sucesso orde-nada, tudo isto depondo em favor de um bom nvel mental, confirman-do os dados colhidos no exame direto. Em evidente contraste, obser-vamos, no protocolo do segundo paciente, um nvel mental to baixo que seramos obrigados a fazer um diagnstico de debilidade mental

    grave em desacordo com o que se podia prever do exame direto no fora a ressalva de Ewald Bohm, que lembra a necessidade de se pensar nas pseudo-debilidades histricas ou nas neuroses traumticas, quando, em certos casos, h, nas respostas, uma perseverao de ele-mentos anatmicos, o que alis berrante no protocolo em considera-o (10 respostas anatmicas num total de 25). Notamos ainda dife-renas bem evidentes em outros elementos dos dois protocolos. E' as-sim que, no primeiro, observamos 6 respostas M, enquanto que, no se-gundo, no h uma sequer, quando muito uma Fm. Estes dados so importantes porque as respostas M so indicativas de uma vida interior rica, revelando uma capacidade de mobilizar com certa liberdade e se-gurana as camadas mais profundas da personalidade. No segundo protocolo vamos verificar uma verdadeira barragem destas camadas para a. imaginao associativa. Rorschach dava grande importncia pre-sena das respostas Fm na ausncia de M, o que para le era um evi-dente sinal de neurose. Alm desta indicao, h outras que falam em

  • favor d uma neurose na segunda observao: 1) O choque sombrio nos primeiros cartes, revelado por grande nmero de F e pela ste-reotipia quase que absoluta; 2) o choque cr nos ltimos cartes colo-ridos, bem revelado pelas observaes "aqui est difcil de descrever" e "nesta aqui estou perdido!" nos cartes 9 e 10 respectivamente, obser-vaes que foram os nicos comentrios feitos pelo paciente no decor-rer do exame. ste choque cr manifestou-se tambm pelas respostas fugidias e afastadas da realidade e, mais do que isto, por uma resposta C no mesmo carto 10 sbre o qual dissera "nesta aqui estou perdido!", que veio revelar a existncia de uma reao no inibida, que conseguiu escapar censura, que no pde ser controlada. Podemos dizer que o protocolo do segundo paciente aproxima-se muito daquele que consi-derado caraterstico da histeria para Rosanoff: a estereotipia de rgos (10 respostas anatmicas relacionadas com o aparelho respiratrio), uma gritante extratensividade ( O M : 5 C ) , um baixo F + % (21%) , o cho-que cr, o predomnio de CF e C, com a inexistncia de FC, que tra-duziria, se presente, uma tentativa de adaptao, uma afetividade con-trolada, enfim, uma personalidade emocionalmente madura. No pri-meiro protocolo, bem ao contrrio, nada encontramos que pudesse fazer supor a existncia de neurose. O predomnio das FC sbre as CF re-vela tendncia estabilidade, adaptao. H uma resposta Cies re-veladora da ansiedade e de uma tendncia a se dominar em pblico, justificvel se levarmos em conta o grande nmero de M, indicando estarem as camadas mais profundas da personalidade suscetveis de agresso por parte do meio ambiente. No encontramos fatores neu-rticos; bem ao contrrio, o fator neurtico mais importantes para Klopfer e Kelley no aqui encontrado. Absolutamente, no h cho-que cr. Encontramos, certamente, alguns elementos discordantes no protocolo; discordantes mas no indicativos de neurose. H, evidente-mente, um conflito entre o nmero elevado de M (6) e o relativamente baixo de F + % (33) , aliado ao relativamente elevado de An.%. (43%) . Isto talvez possa ser explicado por se tratar de um adolescente. Alis, o psicodiagnstico miocintico, feito neste doente e interpretado pelo prprio prof. Mira y Lopez, evidenciou apenas ste conflito entre os diversos elementos da personalidade, conflito ste que o caraterstico maior da adolescncia.

    Como pretendi demonstrar por estas duas muito resumidas obser-vaes, parece-me que no so inconciliveis os dois pontos de vista enunciados inicialmente. Verificamos, na primeira observao, que impossvel fugir-se evidncia de que, na base do distrbio articulato-rio, h uir conflito de predomnio entre os hemisfrios cerebrais; os

  • dados colhidos na histria e na observao clnica, bem como a prova teraputica no deixam margem a dvidas. No segundo caso, em que nada disto foi verificado, obtivemos seguras indicaes de que se trata de um neurtico. Seria necessrio apenas completarmos esta observa-o com o resultado da teraputica orientada neste sentido, para poder-mos afirmar, sem qualquer dvida, ste ponto de vista; ste paciente continua ainda em observao, e posteriormente talvez se possa acres-centar algum novo elemento no estudo de seu distrbio articulatorio.

    Rua Marechal Bittencourt, 491 So Paulo