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    HVMANITAS

    Vol.

    XLVIII (1996)

    MARIADO CU FIALHO

    Universidadede Coimbra

    DIPO EM COLONO : O

    TESTAMENTO

    POTICO

    DE

    SFOCLES*

    Os grandes

    epincios

    silenciados, o peso arrastado de um sculo de

    glria e de criao do esprito esboroado em guerras civis, misria e crise das

    prprias razes, a cegueira reconhecida tarde demais desse perigoso

    abismo de seduo do poder em que caiu.

    esta

    Atenas,

    espectadora

    do fim

    de sculo, para quem o velho poeta lega, como ltima criao, a chegada a

    uma Atenas mtica do derradeiro cansao de dipo, guiado pela frgil Ant-

    gona, a ecoar a convico de valores dos gloriosos anos da pea homnima,

    O silncio, o peso arrastado dos anos e de uma cegueira miservel

    marcam a lentido de movimento na abertura do Coloneus. O cego parece

    ter chegado ao limite das suas foras e anseia por um assento(,

    9),

    depoisdelongo eincerto

    cam inho.

    Aps a primeira fala de dipo e de Antgona est recortado, com

    nitidez, o contraste entre a imagem de degradao fsica e sofrimento

    humano e a fecundidade exuberante e fresca da natureza. Antes de qualquer

    toponmia, esta paisagem

    impe-se

    e atrai, por uma espcie de fascnio,

    como obviamente sagrada. Reconhece Antgona (16-18):

    ' ' , ,

    ,

    ,

    .

    ' ' '

    Que

    este lugar onde estamos sagrado, bem visvel pela

    profuso de loureiro, oliveira e vinha.

    nele

    se abriga umcoro

    incan-

    svel de rouxinis a entoar melodias.

    Este trabalho corresponde a

    um

    desenvolvimento do texto que serviu de base

    minha lio nas provas para obteno do ttulo de Professor Agregado,

    em10.11.1995.

    Cumpre-me e apraz-me deixar aqui bem patente o meu vivo reconhecimento a

    um Mestre e Amigo a quem tanto devo desde o limiar da minha carreira univer

    sitria o Professor Doutor Miguel Baptista Pereira.

    s

    indicaes bibliogrficas

    que me forneceu, assim como, profundidade da sua reflexo filosfica que to

    estimulante e generosamente sabe comunicar, muito ficou a dever este estudo.

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    MARIA

    DO

    CEU FIALHO

    s depois se situa pela identificao de uma referncia as mura

    lhas de Atenas, vistas ao longe .

    Quando o terceiro actor entra em cena, no prlogo, e se dirige ao par,

    esto j estabelecidos trs motivos fundamentais para o acontecer dramtico

    e que se intersectam e marcam o ponto para onde os itinerrios convergem

    a, onde o velho dipo parou. So eles o motivo do assento procurado e

    encontrado para o repouso , o do espao sagrado e o da polis, Atenas, cujo

    centro edificado se avista ao longe.

    Antgona,

    na sua funo de guia e na devoo familiar j con

    sagrada, quem abre, ao cego, essa trplice dimenso de um espao no

    conhecido, mas em breve reconhecido como seu. A consanguinidade repre-

    4

    senta outro elemento determinante na construo da pea .

    Com a natural satisfao de constatar que a regio habitada e que

    em breve se vai tornar possvel o contacto humano, contrasta o agitado

    aparecimento do Estrangeiro de Colono, movido pelo horror do sacrilgio, a

    expulsar o cego do seu assento o local, por ser sagrado, intransponvel

    e a dimenso sacral que o marca

    phobos,

    pelas divindades que o pos

    suem (39-40):

    , '

    a

    ,

    ,

    .

    Ningum

    frequenta

    e

    ningum

    habita.

    que pertence s

    terrveis deusas, filhas da Terra e do Escuro.

    Vv. 14-15.

    O motivo do repouso e a imagem do final da caminhada como termo

    apetecido para uma existncia de sofrimento no so desenvolvidos neste trabalho

    por terem j ocupado parte da 'minha dissertao de Doutoramento,Luz e Trevas no

    Teatro de Sfocles,Coimbra, 1992, pp. 108-119[Luz e Trevas].

    Precioso contributo para o estudo da importncia da referncia espacial no

    prlogo e da sua carga existencial , antes de mais, o trabalho de H. W. Schmidt,

    Das

    Spaetwerk des

    Sophokles,

    Tuebingen, Diss. 1961, pp. 8-20. Veja-se tambm

    R. P. Winnington-Ingram,

    Sophocles. An Interpretation,

    Cambridge, 1980, pp. 339-

    340 e C. Segai,Tragedy and Civilization,Cambridge,

    1981,

    pp.362-368.

    J. Jouanna, "Espaces Sacrs, Rites et Oracles dans VOedipe

    Colone de

    Sophocle"REG,108, 1995, 38-58 demonstra como no espao dramtico se entrete

    cem vrias dimenses de espao sagrado, num alargamento progressivo at glo

    balidade da polis. Entre o do bosque das

    Ernias

    correspondente ao espao

    cnico e o de Atenas, Colono, com os seus espaos sagrados virtuais (o altar de

    Posidon e Atena Hpia, o futuro e incerto local do tmulo de dipo) representa a

    instncia intermdia.

    Vide Luz e Trevas,pp. 129-148.

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    DIPO EM COLONO:

    O

    TESTAMENTO POTICO DE

    SFOCLES

    31

    A genealogia que Sfocles atribui s Eumnides parece ser criao

    sua, combinando parte da filiao das

    Ernias-Eumnides

    esquilianas, 'filhas

    da Noite' convertida a Noite, por convenincia, em entidade masculina

    com um elemento da filiao na Teogonia hesidica, onde as Ernias

    nascem da Terra,Gaia,e do sangue de Urano mutilado .

    Entidades tenebrosas, marcadas pelas suas razes, manifestam-se

    como fora ctnia, ligadas ao mbito do mundo subterrneo, dos mortos,

    mas tambm do mistrio da fertilidade e pujana que a paisagem atesta e que

    o seu nome prev um de entre nomes possveis, como diversas so as suas

    7

    manifestaes . Entidade s infalveis, na o mnivid ncia vigilan te qu e o

    Coloniata lhes aponta e que parece contrastar, partida, com a cegueira

    daquele que trilhou terra proibida.

    Mas em pouco perceber o espectador que todo o lugar, no apenas o

    bosque inabordvel das deusas, est marcado por uma natureza sacra, onde

    divindades mais antigas e mais recentes coabitam o Tit Prometeu e

    Posidon, da gerao olmpica, a par de entidades

    ctnias,

    como o heri

    epnimode C olono.

    Este santurio alargado encerra um marco onde o espao da vida luz

    do sol e o mundo nfero se tocam, o Limiar de Bronze que d acesso ao

    Hades, chamado 'pilar de Atenas' .Oque quer dizer que o recinto de Colono

    onde dipo chegou representa, na pea, como que a moldura sagrada do

    horizonte de Atenas, cuja fora reside no convvio entre vrias instncias do

    divino e no mistrio da interseco de vida e morte, de aliana temor-

    -fecundidade, numa vivncia que no cabe em palavras, nem por elas se

    5

    Veja-se, por exemplo, Eu. 321-322, 416, 745, 791-792, 821-822, 844,

    1034.

    Teogonia, 185.

    Sobre a discusso da identidade das Ernias e das Eumnides veja-se Luz e

    Trevas,p p.114-116, n.24.

    Partindo, embora, de pressupostos diferentes (a tese de Rohde, retomada por

    Nilsson, de que as Ernias arquetpicas so 'des revenants des victimes') veja-se

    posio anloga no excelente artigo de H. Lloyd-Jones, Les Erinyes dans la

    Tragedie Grecque ,

    REG,

    102, 1989, 1-9, onde o autor critica implacavelmente e

    com razo a tese contrria de A. L. Brown, exposta em

    Eumnides

    in Greek

    Tragedy , CQ,34, 1984, 260-281).

    Tratar-se-ia de uma fenda em rochas ou de uma caverna, nas imediaes do

    espao representado pela cena, e que Kamerbeek refere ter sido provavelmente

    identificado na actualidade, e que, segundo a crena, constitua um dos acessos ao

    Hades. A designao de 'limiar de bronze' dever-se-ia ao facto de terem sido

    escavados alguns degraus de bronze no incio da descida (Jebb, Kamerbeek. Cf. v.

    1591), ou simplesm ente a uma concepo j atestada em H omero (cf. //. 8.

    15)

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    32 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    transmite: a reverncia pela

    (63), o 'convvio ntimo' da mais

    profunda religiosidade, cuja expresso o silncio recolhido. Como dir o

    Coro de Ancios da tica (125-133):

    v

    ' ,

    ,

    ' ,

    ,

    ...jamais

    pisaria

    bosque

    intransponvel destas virgens ind

    mitas, cujo nome arrepia pronunciar. Ns passamos ao largo sem um

    olhar, sem um som, sem uma palavra, apenas com a linguagem do

    recolhimento piedoso.

    Mas a vinda do Coloniata surte o efeito oposto e, em vez da fuga, o

    nome das 'Eumnides que tudo vem'

    (r ' , 42)

    suscita, no cego, uma

    reaco de familiaridade, determinada por alguma

    certeza interior (44-45):

    '

    '

    '

    '

    .

    Acolham elas, ento, este suplicante, j que no deixarei mais

    este lugar.

    que o seu nome acorda em dipo uma estranha e decisiva sintonia

    que a todos escapa. Nele reconhece o proscrito (46):

    ' .

    A palavrasenhado meu

    destino.

    O

    motivo,

    recorrente em todo o prlogo e j objecto do profundo

    9

    estudo de Hans-Werner Schmidt, acima citado , do 'assento' e 'repouso',

    Vide supra n. 2.

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    DIPO

    EM

    COLONO:

    O TESTAMENTO POTICODESOFOCLES 33

    associado

    ao que

    percorre toda

    a

    pea,

    do

    'caminho',

    da 'caminhada',

    integrados ambos

    na

    dramtica do espao, comea

    a

    ganhar referncias mais

    profundas

    que o

    mero descanso fsico

    beira de

    um

    qualquer trilho.

    , um dos

    termos

    usados

    para

    olugar de

    repouso,

    na b o c ado

    Coloniata

    e na boca docego ,deixa

    insinuar aqui,

    na

    polissemia

    que o

    grego lheconhece,ovalorda

    residncia definitivaque otmulo representa

    e, emltima instncia, o dealtar. Como

    ,

    altar ,

    se

    referir dipoem

    breveaobosque ondeasdeusas tm culto ,talvezaecoaraalianadeAtena

    com as divindades, aoprometer-lhes, nas

    Eumnides,

    a

    onde

    sero

    respeitadas

    (Eu.

    805).

    O caminhodoproscrito, que para aqui dirigiuosseus passos guiadose

    que penosamente searrastanaaberturadapea, ganha adensidadede uma

    metfora preparada

    nas

    razes

    da

    tradio literria grega

    e a que

    Sfocles

    confereumcunho original, comoomostra Otfried Becker o deitinerrio

    existencial, entendido ohomem como caminhante numrumo marcado pela

    sua prpria experincia, seja ela de sofrimento ou desespero, como em

    Electra ouFiloctetes, cegueira momentnea ou morte prxima, como,por

    exemplo, emAjax .

    O velho cego, proscrito e vagabundo (, . 50),

    anseia

    pelo

    termodos seus rumos

    como

    repouso derradeiro.

    O

    espao sagrado, onde vida

    e morte seinterpenetram, aest.dipoa ele serecolhe como suplicante

    das Eumnides, reconhecendo-o como determinantedo seudestino.

    Uma nova fora lheanima aspalavras. Como suplicante, dependeda

    vontade doscidados datica, para quem oColoniata transfere a deciso

    sobrea suapermanncia norecinto proibido e bvioque a afinidade

    sentida com as deusas incompatvel com a vivncia religiosa dos habi

    tantesda

    polis.

    Ser tenso

    o

    processo

    de

    radicao.

    Mas, por seu

    turno,

    a

    postura

    de

    suplicante

    no

    corresponde j, quanto

    comunidade humana,

    ao

    tradicional

    pedido

    de

    quem vem, como Ulisses

    na

    terra

    dos

    Feaces, pedir abrigo

    e

    apoio

    sem nada

    ter em

    troca,

    a no ser o

    vnculo

    da

    gratido. dipo considera,

    13

    antes, pequeno

    o

    favor recebido

    em

    troca

    de

    auxlio futuro '.Ena fora

    da

    sua promessa garanteumaviso infalvel daspalavras' ,

    Vv.

    36;

    45.Cf. 112.

    Vv. 84; 90.

    Das

    Bild des Weges und verwante

    Vorstellungen im fruehgriechischen

    Denken,

    Berlin, 1937, pp.

    191sqq.Cf.LuzeTrevas,

    pp.111

    sqq.

    V.72.

    I4

    V.74.

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    34 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    a ecoar a omnividncia das deusas tutelares e em singular contraste com a

    sua face de cegueira.

    Latente ainda, o paradoxo do cego que v, e que constitui instncia

    determinante da metfora dramtica do

    Tyrannos

    , ganhar fora na prece

    s deusas, para se ir afirmando at ao momento final da heroizao para que

    dipo caminhar, como despojado das trevas fsicas, a conduzir os que o

    apoiaram.

    dramaticamente

    importante que o valor da

    ddiva insinuada no

    seja conhecido por quem deve permitir o acolhimento de dipo, como seja o

    grupo de Ancios da tica que constitui o Coro e, em ltima instncia, o

    soberano a quem competir a deciso final Teseu. Por isso Sfocles

    justificar a partida do Coloniata com o objectivo de chamar os concidados

    a deliberar, o que prepara a entrada do Coro no prodo, permitindo, assim, a

    dipo, a prece de acolhimento s Eumnides com a intimidade e abertura de

    novo isolamento.

    As 'de viso terrvel' para os mortais () so para ele 'doces

    filhas da Treva ancestral' ( ) ,

    no

    acolhi-

    mento

    definitivo que lhe

    prometem

    e que

    confirmado como descanso da

    existncia de sofrimentos, morte ansiada e h muito anunciada por Apolo.

    Mas a proximidade com as Eumnides vai mais fundo, j que sua

    sombra tutelar tem dipo a promessa olmpica, para o seu tmulo, de uma

    terrvel fora (que ecoa as promessas de Atena s deusas da

    Oresteia).

    Fora

    no enxergvel agora, na aparncia frgil e degradada da sua figura; poder

    ambivalente de benefcio e maldio ,como recompensa ou castigo de quem

    19

    o acolheu ou expulsou; promessa consignada pelo sinal dos deuses .

    O comportamento de Atenas, pela voz dos Ancios da tica e de

    Teseu, corresponder sujeio a uma difcil prova de compaixo e piedade.

    A invocao da polis, na prece, bem como a atitude do Coloniata, de

    pr o veredicto nas mos dos

    politai,

    conferem resposta ao pedido e

    postura de dipo uma dimenso simultaneamente religiosa e poltica, tal

    como o veredicto do Arepago, presidido por Atena, ao suplicante Orestes,

    no terceiro drama da trilogia esquiliana.

    A entrada do Coro, preparada, como se disse, no prlogo, est longe

    da cadncia anapstica da marcha dos Marinheiros de Salamina, no

    Ajax,

    ou

    Vide

    Luz e Trevas,

    pp .

    49-106.

    16

    V.84.

    17

    V.106.

    Confronte-se comapromessadeAtena,Eu.903-915.

    , 9

    V , 9 5 .

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    DIPO EM COLONO:

    O TESTAMENTO POTICO DE SFOCLES 35

    da torrente lrica dos prodos de Traqunias, Antgona, Rei dipo.

    Processa-se como uma cena de busca de um sacrlego, que quase evoca a

    aco de Ulisses no prlogo do

    jax,

    mas sem a presena tutelar de Atena.

    A frase entrecortada pela perplexidade que a situao provoca e o

    gesto suspende-se com a sbita apario de dipo surgido do bosque, a res

    ponder, como objecto da procura. Essa viso inesperada, sada do bosque

    proibido,

    os olhos cegos pela mutilao devidamente caracterizada na

    mscara provoca o efeito similar da apario de umdaimon assusta-

    21

    dor, cujo primeiro efeito o tremendum : 'terrvel de ver, terrvel de

    escutar' ,como terrvel a viso das deusas.

    A presena do inusitado suplicante provoca a perturbao das normas

    da comunidade criando, como Burton nota ser tpico das tragdias de splica

    3

    sobreviventes , dilemas quase intolerveis para aqueles a quem apela.

    O sentido religioso do Coro pe-no perante um sacrilgio insustent

    vel,ao mesmo tempo que frente a um suplicante. Mas pouco a pouco deixa

    Sfocles transparecer que o elemento humano da compaixo se vai insi

    nuando na atitude desta personagem colectiva, fazendo-a sentir, para l das

    normas infringidas pelo vagabundo e do seu aspecto repulsivo, o sofrimento

    e o peso dos anos

    Para esta compaixo deixa Sfocles uma via aberta pela caracterizao

    do Coro. So homens simples e piedosos da tica, no propriamente da urbe

    Veja-se R. B. Burton,

    The Chorus in Sophocles 'Tragedies,

    Oxford, 1980,

    p.

    254.

    Como se sabe, este um dos dois constituintes fundamentais da experincia

    do sagrado, sendo o outro

    ofascinosum.

    Para o estudo da natureza e diversidade nas experincias possveis de temor e

    fascnio e na sua associao, no mbito do sagrado, fundamental o trabalho de

    R. Otto,

    Le Sacr,

    Paris, 1929 (trad. francesa da 18

    a

    ed. alem). Diz o autor na

    pg. 57: Le contenu qualificatif du numineux dont le mystrieux est la forme est

    d'unepart

    1'lment

    rpulsif que nous avons dj analys, le

    tremendum

    auquel se

    rattache la

    majestas.

    D'autre part,

    c'est

    en

    mme temps

    quelque chose qui exerce un

    attrait particulier, qui captive,

    fascine

    et forme avec l'lment rpulsif du

    tremendum

    une trange harmonie de contrastes .

    V. 141:

    , .

    Aesch.

    Supp.

    e

    Eu.;

    Eur.

    Her. Supp. HF

    .VideR.B.Burton,

    op. cit.

    p. 272.

    Deixame, no entanto, reservas a classificao de

    HF

    como tragdia de

    splica.

    Para H. Walker,

    Theseus and Athens

    Oxford Univ. Press, 1995, p. 173 a pea

    representa

    culminarnaturalda

    evoluo literria das tragdias de splica'.

    24

    Oque visvel a partir de 151-152. Cf.

    e.g.

    vv. 161, 165, 176-177.

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    36 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    ateniense, marcados por um profundo amor sua terra natal, que conhecem

    tambm o peso dos anos. No ficam, pois, insensveis a uma velhice alque-

    25

    brada e, ao contrrio da sua, erradicada de uma ptria apoptolis (207) .

    esse perfil doCoro que viabilizar a particular sintonia com dipo

    no confronto com Creonte e o far viver, na imaginao, o ardor do combate

    pelas jovens raptadas e libertadas pela fora dos deuses e dos homens da sua

    polis,

    ou que o emocionar na cena do reencontro, que ocupa o episdio III,

    para lastimar, em termos que no so alheios aos da elegia de Mimnermo, a

    pesada e atribulada velhice que faz desejar no ter nascido ou pisar o trilho

    da morte clere.

    Se o kommos que constitui o prodo se encaminha no sentido do

    abrandamento do Coro, at ao selar da promessa :

    ov ' ,

    , .

    doteupouso,ancio, jamais algum te arrancar fora,

    surge, naturalmente, o desejo de conhecer a identidade do estrangeiro

    acolhido.

    A relutncia em identificar-se e a premncia imposta pelo Coro

    lembram o tipo de dilogo entre o soberano doTyrannos,o Servo Tebano e o

    Mensageiro de Corinto, e marcam um segundo tempo no prodo. Pela

    primeira vez so evocados os antigos males de dipo, nascidos da sua

    origem

    e do seu destino monstruosos, o que desvincula um Coro horrorizado

    das promessas anteriores e o leva ao movimento de expulso do pouso

    prometido.

    A atitude no traduz inconstncia de comportamento, prpria de um

    27

    carcter pouco marcado, como o julga severamente Paulsen , mas justi-

    fica-se pela natureza excepcional do estrangeiro: no se est perante um

    simples, mas um duplo sacrilgio, j que um precito, poludo, a pisar solo

    sagrado. Por seu turno, o Coro age perfeitamente dentro dosparmetros

    ticos da poca, que a tica aristotlica consigna, como o nota M. Whitlock-

    Como

    empolino passar Teseu a considerar (637).

    26

    Vv.

    176-177.

    VideT. Paulsen,Die Rolle des Chorsinden spaetenSophokles-Tragoedien,

    Bari, 1989, cap. 3, que pe em relevo o que entende ser a fraqueza do Coro, em

    contraste com a magnanimidade de Teseu.

    O

    autor chega mesmo a entender a

    curiosidade dos Ancios em conhecer os factos do passado de dipo como uma cruel

    insensibilidade.

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    DIPO EM

    COLONO:

    O

    TESTAMENTO

    POTICO DE

    SOFOCLES

    37

    28

    Blundell gratificar os amigos, penalizar os inimigos, numa lgica de

    . ~

    29

    retribuio

    que sanciona

    ajusta

    vingana :

    '

    -

    ,

    ,

    .

    '

    .

    .

    No vir

    destino

    castigar

    algum que se haja vingado de

    ofensas recebidas. Um engano pede outro engano em troca, e a

    recompensa o dissabor , no o sucesso' . Tu, sai ento destes

    lugares, afasta-te, abandona a minha terra. No vs ainda trazer

    minha cidade o peso de uma culpa

    A mondia inaugural do episdio I, entoada por Antgona e que j

    despertou injustificadas suspeitas de autenticidade, conforme o atesta o

    escoliasta , reala a funo de mediadora que o pblico conhece nesta

    32

    figura e logra, por outro lado, pela argumentao emotiva, mas onde o

    tpico dos crimes paternos contra vontade j est presente { ,

    239240),

    captar a compaixo do Coro sobre si, para a fazer estender, de

    novo, a dipo.

    O

    tempo de espera entre a compaixo renovada do Coro e a vinda de

    Teseu dramaticamente aproveitado pelo poeta para fazer destrinar os

    parmetros dentro dos quais o destino de dipo agora encarado, por

    diferena com o tratamento trgico noTyrannos.

    Seja uma evoluo de perspectivas tico-jurdicas, acontecida no lapso

    33

    de tempo que separa as duas peas, como sustenta Adkins", seja uma

    Helping Friends

    and

    Harming Enemies.

    A Study in

    Sophocles

    and

    Greek

    Ethics,Cambridge University Press, 1989, 229-230.

    29

    Vv.229-236.

    .

    .

    Cf. Burton,op. cit.

    p.255.

    A. Adkins,

    Merit and Responsibility,

    Oxford, 1960,

    105.

    Quanto

    insistncia

    do

    motivo

    do

    acto involuntrio

    na

    pea, veja-sc

    T.

    Rosenmeyer,

    The W rathofOedipus ,Phoenix ,6,1952, 92-112.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    10/32

    38 MARIA DO CEU FIALHO

    intencionalidade diversa que comanda a nova mitopotica, uma radical

    diferena marca o cego recm-mutilado da primeira pea, ao clamar-se, no

    xodo, como

    ( executor pormo prpria',

    1331)

    dos seus males,

    do velho proscrito, que se considera, nos seus actos, mais vtima que agente

    (267). que, na ignorncia, limitou-se, dentro dos parmetros da tica de

    retaliao, a pagar ofensas

    recebidas ,21 ,

    Esta

    nova perspectiva fundamental para o sentido da pea. que

    assim, se o carcter anormal do destino de dipo se mantm inaltervel, na

    monstruosa infraco de leis naturais que subverte os prprios fundamentos

    da sociedade humana, para alm desse destino h ainda espao para a

    t

    35

    pergunta :

    ...

    ;

    Ora comoposso eu serm au pornatureza?

    Desenvolvida a defesa em

    moldes

    onde so reconhecveis ecos da

    retrica do tempo, Sfocles prepara o acolhimento possvel na xenostasis

    sagrada e indicia o primeiro movimento, no cego, de distanciamento quanto

    a uma consanguinidade manchada por crimes e distores. O que condio

    para que a compaixo sem reservas de Teseu no parea manchada pela

    impulsividade excessiva, mas pela humanidade sbia do governante ideal.

    O aflorar do tema do passado e da desarmonia constitucional da casa

    dos Labdcidas representa, por sua vez, o passo inaugural num crescendo

    iminente com a chegada de Ismena, a dar corpo ao tradicional papel do

    Mensageiro na tragdia, e com a primeira das maldies sobre os filhos em

    luta. Maldio que faz recrudescer, no suplicante de Colono, o propsito de

    propiciar acharis ao hospedeiro protector, enquanto se anuncia, dentro de

    um moto peculiar na tragdia de splica, a vinda prxima do perseguidor e

    o momento de testar os compromissos assumidos.

    Mas a defesa e rejeio dos velhos crimes, trs vezes abordadas e com

    vigor crescente (a primeira vez no incio do Episdio I; a segunda em

    contexto lrico, no agitadokommosque separa a sada de Ismena da chegada

    Vide

    Whitlock

    Blundell,

    op .cit.

    227-228.

    Sobre a temtica da vingana e recompensa na pea veja-se tambm

    D.A.Hester, "To Help

    One's

    Friends and Harm

    One's

    Enemies. A Study in the

    Oedipus at Colonus

    Antichthon,

    11,

    1977,22-41.

    "V.270.

    3

    Vv. 389-390; 396-397. Cf.720-721.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    11/32

    DIPO EM

    COLONO: O

    TESTAMENTO POTICO DE

    SFOCLES

    39

    de Teseu; a terceira em tom de vigorosa argumentao retrica no agon com

    Creonte), retomam um momento do prlogo que paulatinamente se apro

    funda, e com que Teseu se mostrar, em breve, em profunda sintonia ao agir

    37

    pela compaixo, para alm do aspecto do cego ou do seu destino .

    Refiro-me capacidade de ultrapassar as aparncias ou as conjunturas

    externas, para chegar a uma verdadeira disposio interior do indivduo, que

    as transcende. Disposio essa que, marcada pela excepcionalidade mas

    distanciada do mon struoso, dar acesso heroizao final.

    Estes so aspectos que mobilizam a reflexo do velho poeta, como

    vemos na fora que anima o lao indissocivel entre Filoctetes e o seu arco,

    para l da fraqueza e repelncia do guerreiro abandonado' .

    se a

    consonncia com as deusas do bosque representou o primeiro

    marco na revelao de um a fora imprecisa, latente na decrepitude fsica, o

    relato de Ismena, sobre a cupidez de poder dos filhos de dipo, faz brotar,

    violenta, a fora da orge

    (411),

    verbalizada como maldio familiar, a ante

    cipar, em vida, o duplo poder de amaldioar ou beneficiar que a dipo pro

    metido para o tmu lo, sob a gide das deusas tambm terrveis e propcias.

    O

    par feminino, agora reunido ao pai, integra-se num quadro de

    oposio simtrica com os filhos vares Etocles e Polinices. O que o

    poeta faz notar ao espectador, mas tambm ao prprio dipo, que no

    deixa de lastimar as filhas e reconhecer nelas a sua fonte de sobrevivncia

    (eg. 340-341). Sobrevivncia cuja responsabilidade a lei tica impe aos

    descendentes masculinos e que, no cumprida, denuncivel e passvel de

    pena judicial. Trata-se da conhecida lei da geroboskia ou

    gerotrophia

    .

    Whitlock Blundell, op.cit.XiQ-lZl, nota, nesse aspecto, uma reaco

    contrastiva entre o Coro e Teseu. Este oferece-se para ajudar o mendigo, no apenas

    na base da compaixo (556), mas na da simpatia pessoal e da comprenso da

    efemeridade do humano - o que, para a autora, enaltece primordialmente os funda

    mentos meramente humanos da amizade, antes da referncia a qualquer imperativo

    religioso.

    Penso que a questo vai mais longe: o imperativo religioso comum levaria a

    uma reaco de repdio semelhante do Coro, aps conhecer a identidade do

    suplicante.

    Reconhece-o C. Whitman, 'Apocalypse:

    Oedipus

    at Colonus , Oxford

    Readings

    in

    GreekTragedy,

    ed. E. Segai, Oxford Univ. Press, 1982, 235 sqq.:

    The clmax of Oedipus' triumph over society appears in the scene with

    Theseus, who recognizeshimat once as a superior being (631 ff.).It is essencially

    Athenian interpretation of aretewhich underlies this scene and makes it moving.

    Theseus

    represents

    Athens ;

    wlthout

    hesitation he penetrates

    ali

    the disguises of

    fortune

    and circumstance and arrives at the true man.

    Vide

    e.g.Plutarco,

    M.

    579 e.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    12/32

    40 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    A denncia dramtica feita por dipo formulada atravs da subver

    so de papis familiares, correspondente a uma natureza distorcida e in

    fractora

    onde, afinal, se reconhece mais latamente a natureza infractora e

    distorcida de uma raa. Toda a cena expressivamente marcada pela

    frequncia, em nexo, de cognatos das razes */ */ *,*/

    * * e *, a perpassar a saudao filha, o dilogo sobre as

    4

    informaes comunicadas e finalmente a maldio .

    Ismena reconhece, talvez num eco da trilogia tebana de Esquilo ou dos

    /41

    poemas do ciclo pico tebano, a fora da

    que se abate sobre

    os irmos na disputa do poder e que redunda no exlio de Polinices e na

    guerra civil iminente.

    Os orculos recentes, que fazem descobrir no proscrito um inesperado

    peso poltico, levaro, em breve, os chefes tebanos a procur-lo: a mesma

    ausncia de escrpulos, a mesma instrumentalizao do indivduo, outrora

    sacrificado, em benefcio de fins polticos, como em Filoctetes. omesmo

    ressentimento

    erecusa,que emdipo ganha fora pela liberdade de o poder

    fazer e pela estatura do prncipe ideal que o assistir, num compromisso

    assumido.

    Mas pelo dilogo entre pai e filha vai o espectador compreendendo

    que a

    casa

    real de Tebas apenas o espao onde particularmente se con

    centram as perverses. que a prpria

    polis

    tebana est longe de se mostrar

    como o espao idealmente organizado, vtima de maus timoneiros, como

    argumentar Teseu no seu agon com Creonte (919). Tebas que procura

    tambm reaver dipo, conferindo fora de representao a quem vier para o

    demover. Esclarece Ismena :

    '

    .

    Tu sers um dia procurado vivo ou morto pelos homens

    daquela terra, em funo da sua prosperidade.

    Tebas que se prepara para a utilizao instrumentalizadora e

    desumanizante, fixando o cego e o seu tmulo, no no espao da

    polis

    materna, mas na fronteira, como eterno aptrida, donde lhe utilizar o poder

    Este aspecto, da distoro de naturezas e do distanciamento de dipo em

    relao sua casta, particularmente sua prognie masculina, foi tratado em Luz e

    Trevas,

    pp.

    129sqq.,

    pelo que me abstenho de aqui o desenvolver.

    Veja-se, sobre o assunto, H.D. Cameron,Studies on the Seven against

    Thebes, ofAeschylos,

    Paris,1971,cap.II.

    42

    Vv. 389-390.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    13/32

    DIPO

    EM

    COLONO:

    O TESTAMENTO POTICO DE SOFOCLES 41

    sem se poluir. Atitude radicalmente oposta que tomar Teseu que, sem

    conhecer os benefcios trazidos por dipo, nele v o homem sofredor at ao

    extremo, nele v o exemplo da fragilidade do destino humano, que a todos

    toca potencialmente.

    Numa compaixo que a

    sophrosyne

    aprofunda, Teseu sabe receb-lo.

    que conhece, pela

    experincia e capacidade de reflexo, o que Ulisses

    aprende no espectculo da loucura de jax, utilizado por Atena como cruel

    mas eficaz pedagogia :

    ' OJV, c

    .

    que eu bem sei que sou um homem e que do dia de amanh

    nada me cabe em sorte a mais do que a ti.

    Tebas no est apta a penetrar para alm da face das circunstncias,

    porque a sua relao com o sagrado se cristaliza num mero formalismo que

    44

    o desvirtua .No compreende que o que os deuses se preparam para oferecer

    a dipo uma possibilidade de redeno, tardia mas poderosa, no espao

    que a sua morte tocar o tmulo. O toque de dipo est agora para alm

    da poluio ou sacrilgio e de um passado que o marca, como experincia de

    sofrimento, mas no o culpabiliza.

    Ao destino de proscrito, de excludo, o votou Tebas outrora, com um

    exlio consentido pelo silncio dos seus filhos. Ao destino de proscrito o quer

    fixarpost mortem, utilizando-o como perigoso instrumento de magia. os

    prprios deuses colaboram nessa adeso de Tebas e dos Labdcidas a um

    plano de aparncia que vir a ser a sua runa.

    A maldio que dipo lana sobre a sua descendncia masculina

    manifesta, pois, o primeiro sinal da fora anunciada, aqui, ainda, sob a

    forma de palavra operante. Mas esta maldio no apenas fruto da clera e

    da vontade; provm tambm do conhecimento do que distingue verdade e

    Vv.567-568.

    Sobre o valor pedaggico do prlogo de jax escrevi algumas

    reflexes em pedagogia pela loucuranojaxde Sfocles

    1

    Humanitas,

    47, t.

    1,

    1995,97-113.

    O desvirtuamento da religio e desateno da sua essncia atravs do culto

    prioritrio da prtica formal frequente objecto de censura por Cristo no seu tempo,

    como o atesta, por exemplo, Mateus, 12, 1-13 (cf. Lucas

    6.1-11),

    quanto discusso

    sobre o Sbado, ou Lucas, 5.33 sqq., na discusso sobre o jejum ou sobre as

    ablues (Lucas, 11.37-42).

  • 7/24/2019 04_Fialho

    14/32

    42 MARIA DO CEU FIALHO

    aparncia.

    que os

    orculos dados a Tebas indiciam fragmentos de uma

    realidade mais profunda que nem tebanos nem Labdcidas podem captar.

    Estamos perante a caracterstica apreenso parcial e fatal da palavra divina

    pelo homem, que a dramaturgia de Sofocles utiliza como smbolo da

    limitao humana em contraste com o fundo de absoluto divino .

    Os orculos sobre a dependncia do poder de Tebas da figura de dipo

    e sobre a ameaa que representa para Tebas o no cuidar eventualmente do

    tmulo conjugam-se num plano mais profundo, que o da promessa que

    dipo tem, h muito, consigo: o espao do seu sepulcro ser fonte de

    benesses para quem o acolher e de danos para quem o tiver repudiado.

    esse

    espao, aberto, no entanto, liberdade do proscrito, tem como lugar

    privilegiado o cho sagrado da tica. a situao neste plano mais pro

    fundo de conhecimento que confere s palavras do cego esse poder omni-

    vidente que j se lhes havia anunciado.

    Se a vinda de Creonte preparada nesta cena, em parte como repre

    sentativa do comportamento de Tebas, a chegada de Teseu, para quem o

    Coro remete a deciso ltima sobre dipo, assume o carcter de advento do

    governante ideal e de representante da boa polis. O seu retrato idealizado e

    um tanto impessoal integra-se em certa tendncia de caracterizao e trata

    mento tipificante do mtico rei de Atenas na tragdia tica .

    Como j foi referido, Teseu justifica, pela compaixo nascida da

    sophrosyne,

    de uma experincia humana interiorizada e reflectida, a ddiva

    cuja existncia desconhece em absoluto que o cego tem para oferecer.

    Ao contrrio de Tebas e dos seus senhores, Teseu capaz de sintonizar, para

    alm das circunstncias externas, no plano das quais a situao presente de

    sacrilgio, com a humanidade sofredora em extremo do caminhante.

    Teseu sabe ler a identidade do filho de Laio nuns olhos mutilados e

    num aspecto miservel, mas reconhece que, para l da mera identificao de

    um nome e um destino, reside uma existncia excepcional, no limite da

    adversidade e do sofrimento.

    Recordemos, por exemplo, a funo dos orculos em

    Ajax

    ou

    Traqunias.

    Sobre o assunto

    leia-se

    H. Diller, 'Goettliches

    und

    menschliches Wissen bei

    Sophokles',

    Kleine Schriften zur antiken Literatur,

    Muenchen, 1971,

    255-271.

    46

    Veja-se o tratamento de Teseu na parte final deAs

    Suplicantes

    de Eur-

    pides

    {Vide

    H. Walker,

    Theseus and Athens,

    Oxford Univ. Press, 1995, p. 147

    et passim)

    e confronte-se com a perspectiva do autor sobre a figura em

    Hracles

    (pp.

    132

    sqq.).

    Vejam-se as pginas atrs indicadas do artigo de Whitman j citado.

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    DIPO EM

    COLONO:

    O

    TESTAMENTO POTICO DE

    SFOCLES

    43

    A dipo impe-se-lhe a sua evidente nobreza de carcter

    (

    yev

    , 569).

    Sabeo,

    assim, apto a receber para si e para a sua c idade o

    carcter da benesse que consigo traz :

    ,

    '

    '

    .

    Eu

    venho

    para te conceder o meu prprio corpo como uma

    ddiva. No aprecivel vista. Mas os proveitos que ele consigo traz

    so mais valiosos que a beleza da forma.

    Este particular suplicante, que se apresenta com benefcios, pede

    apenas a garantia de um tmulo no bosque sagrado.Oque Teseu chama um

    insignificante favor, na ignorncia das lutas que se avizinham, representa

    e o cego sintetiza-o na esticomitia apoio na luta pelo sentido de uma

    existncia, condensado no momento da morte, e na integrao da morte no

    49

    espao sagrado a que esta vocacionada :

    TH.

    ahfji

    ,

    '

    .

    .

    .

    .

    T ESEU

    em relao aos ltimos momentos da tua vida que diriges o

    teu pedido. Mas o tempo que vives at l, ou o votas ao esquecimento,

    ou em nada o avalias.

    DIPO

    que neles, para mim, se condensa tudo o resto.

    Opacto ser selado no final do episdio. Mas o que a solenidade de

    um compromisso h-de selar por palavras evidencia-se, como aliana natural

    Vv. 576-578.

    '

    Vv. 583-585.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    16/32

    44 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    e bvia, na relao das duas figuras, aproximadas pelo horizonte do sagrado:

    50

    e expressivo que dipo dispense Teseu de formular um juramento .

    No so j o tradicional suplicante e o hspede, mas dois homens

    excepcionais que mutuamente se enriquecem

    -

    um, na garantia assumida

    da sua liberdade para a morte e no modo como a sua natureza se manifestar

    post mortem

    , integrado, de uma forma peculiar, no cosmos da polis , o

    outro na fora incompreensvel que oferecida sua

    polis

    e parece garantir

    prpriaphysisde Atenas a sua perdurao para alm de todos os acidentes

    .

    52

    temporais .

    Esse equilbrio e interdependncia de figuras constri-se a partir de

    uma subtil inverso de papis o protector compassivo, que conhece a

    fragilidade do destino humano, em breve levado por dipo, quase como

    um discpulo, ao reconhecimento de uma realidade mais lata, que o cego

    53

    vislumbra, e na qual assegurar apoio indefectvel contra futuros perigos :

    ,

    ,

    ' '

    ,

    ,

    , ' ,

    , '

    .

    carssimo filho de Egeu, s aos deuses no advm algum dia

    a velhice ou a morte. Tudo o resto o confunde o tempo todo-poderoso:

    esgota-se a fora da terra, esgota-se a do corpo; morre a lealdade; a

    deslealdade floresce e nunca uma disposio constante se mantm

    entre amigos ou de cidade para cidade.

    Para uns agora, para outros em tempo vindouro, o encanto se

    converte em dissabor e este, de novo, em amizade.

    V. 650.

    Vide

    P. Burian,

    'Suppliant

    and Saviour: Oedipus at Colonus',

    Phoenix,

    28,

    1974,408-429.

    Veja-se o excelente artigo de L. Slatkin,

    Oedipus

    at Colonus: Exile and

    Integration', Greek Tragedy and Politicai Theory,ed. P. Euben, University of

    Califrnia

    Press,

    1986,210-221.

    53

    Vv. 607-615.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    17/32

    DIPO

    EM COLONO:

    O TESTAMENTO POTICO DE SOFOCLES 45

    O

    estsimo I, muito mais do que um mero canto de boas-vindas ou de

    elogio patritico pretext ado a partir do episdio que termina, como j se

    54 *

    afirmou , amplifica o acolhimento de dipo como uma inves tidura poti co-

    -religiosa de cidadania no solo tico.

    Ouamos o poeta (668-719):

    .

    a

    , , -

    ,

    , '

    -

    ,

    .

    ' ' -

    ,

    %

    '

    \

    , '

    ^,

    '

    , '

    .

    54

    Vejase .

    Paulsen, op. cit.

    125128. Sobre a descrio de Colono diz o

    autor corresponder dolocus amoenus.Mas como estudo da significao profunda e

    ambgua da paisagem, veja-se Mc Devitt, 'The Nightingale and the

    Olive', Antidosis.

    Festschr. W. Kraus z.70. Geburtstag,Wien, 1972, 227-237, bem comoLuz e Trevas,

    pp .

    124

    sqq.

  • 7/24/2019 04_Fialho

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    46 MARIA DO CEU FIALHO

    .

    ' ,

    '

    ,

    ' ,

    ,

    ,

    '

    vtv

    :

    .

    .

    ,

    , ,

    ,

    , , .

    ,

    , ,

    .

    l

    a

    est.

    Neste

    pas

    de

    esplndidos

    corc is, estrangeiro,

    mais bela

    manso da terra tu chegaste: Colono alvinitente. Aqui, a doce

    filomela entoa seus

    lamentos,

    na verde espessura dos vales que fre-

    quenta. A hera sombria lh e serve de morada e, do deus, a inviolvel

    ramagem de m il frutos, que no conhece o sol, nem os ventos de

    todasa s tempestades.

    Este o lugar sempre frequentado pelo Bquico Dioniso, em

    companhiadas deusas que o criaram.

  • 7/24/2019 04_Fialho

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    DIPO EM COLONO: OTESTAMENTOPOTICODE SOFOCLES 47

    Tantstr.

    sob o orvalho do

    cu, dia aps dia, sem cessar, em belos

    cachos floresce o narciso, das grandes deusas coroa ancestral, e o

    aafro de brilho dourado. no secam as fontes insomnes de onde

    brotam as guas vagabundas do Cefiso. Mas sempre, nos seus dias, se

    apressa a fecundar com a pura linfa os campos deste pas rico em

    plancies.

    Nem das Musas os coros lhe nutrem averso, nem Afrodite de

    rdeas doiradas.

    2

    a

    est.

    Aqui cresce uma planta, como jamais ouvi dizer que a sia

    tivesse ou a vasta ilha drica de Plops, indomvel rebento que a si

    mesmo se refaz, das lanas inimigas o terror: nesta regio floresce

    com pujana a oliveira de glauca folhagem, que a nossos filhos d o

    sustento.

    no h jovem nem homem marcado pela velhice que a

    destrua com

    afaria

    do seu brao. Pois o olhar sempre atento de Zeus

    das Oliveiras a vigia, e Atena de olhos garos.

    2

    a

    antstr.

    Outro precioso atributo da cidade nossa me devo ainda

    referir, o dom de um grande deus, o nosso orgulho supremo: o

    vigor dos cavalos, dos poldros e do mar.

    Tu,

    filho de Cronos, a esse orgulho a fizeste ascender,

    Posidon soberano, criador primeiro, nas nossas estradas, do freio

    que domina os cavalos.

    tambm o remo, na sua perfeio, ao mar

    adaptado com justeza,salta em companhia das cinquenta Nereides.

    A presena da dimenso sagrada da

    polis

    ntida, na celebrao da

    plenitude do seu cosmos: o cho sagrado, os deuses que o frequentam e o

    elemento humano, com a sua capacidade de criar e construir como ser,

    afinal, de civilizao. Capacidade radicada na harmonia e na assistncia do

    . . 55

    divino .

    5

    Veja-se o captulo dedicado ao estudo desta pea por C. Segai no seu livro

    Tragedy and Civilization. An Interpretation of Sophocles, Harvard Univ. Press,

    1981,362-408.

    Nota o autor que mesmo aquilo que considerado aquisio da civilizao,

    como o poder de dominar o cavalo ou navegar, aqui sentido como ddiva divina:

    "As in the Oresteia, the civilizing power of Athens in the Coloneus lies in its

    reverence for the gods" (p. 377).

  • 7/24/2019 04_Fialho

    20/32

    48 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    Colono e toda a

    polis

    tica, evocados, pois, como um imenso santu

    rio, abrem-se em acolhimento atravs de um dos dois constituintes da

    experincia do sagrado analisada por Rudolph Otto

    ofascinosum,

    a que

    Antgona havia sido sensvel no prlogo .

    Otremendum

    agitara o Coloniata

    e o Coro perante o bosque das Ermias e o seu hspede e insinua-se, na

    intimidade da paisagem da primeira estrofe do estsimo, atravs da sua

    sombra e inviolabilidade.

    A atraco atravs do fascnio toma aqui a forma de uma quase

    experincia esttica da paisagem familiar, evocada numa esplndida forma

    plstica de apelo aos sentidos que radicam, afinal, o homem no mundo que

    habita. esse mundo,que o de um mbito, como referi, familiar, da polis,

    ao converter-se, por momentos, em objecto esttico, dentro da tragdia,

    ganha a profundidade de espao privilegiado, para alm da vivncia

    57

    distrada e rotineira que tece o quotidiano dos

    politai .

    Esse o tempo em que a

    polis

    espectadora se entrega, surpreendida,

    ao acontecer simultaneamente festivo e cultual que a tragdia significa como

    58

    acontecer mtico .

    Tempo de celebrao, tempo do sagrado invaso do intemporal no

    quotidiano, representa a suspenso da transitoriedade num envolvimento de

    perenidade que a eleva. O rouxinol que a mitologia conhece votado ao

    lamento eterno est aqui presente, na intimidade de um abrigo alheio ao sol

    e intemprie, marcado pela epifania sempre prestes do deus Dioniso

    possui-o, como Afrodite ao jardim de Safo na sombra das rosas e no

    murmrio das fontes. Incessante a florao do narciso e a pujana das

    vides, incessante, tambm, o fluir das guas.

    Tempo de celebrao, tempo do sagrado momento onde morte e

    renascimento se cruzam, num mistrio de nova vida. A ele se associam

    Dioniso e o par Derhter e Persfone, presentes na sua flor emblemtica: o

    narciso e o aafro.

    A ambivalncia de elementos da paisagem da primeira estrofe e

    antstrofe, que j foi notada e fundamentada na exegese do texto feita por

    59

    McDevitt , coroada, na segunda estrofe, por um elemento vegetal que

    Vide supran. 21.

    VideMikel Dufrenne, Phnomnologie de VExprience Esthtique, Paris,

    1967,

    vol.

    I,

    Cap.

    V: 'ObjetEsthtique et Monde'.

    58

    Veja-se K. Huebner, Die Wahrheit

    des Mythos,

    Muenchen, 1985, cap.

    Die

    griechische Tragoedie

    ais

    mythisches Ereignis', e sobretudo o 3: 'Die

    griechische Tragoedie

    ais

    kultischmythisches

    Fest

    1

    .

    Vide

    supra n. 54

    op. cit.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    21/32

    DIPO EM COLONO: O

    TESTAMENTO

    POTICO

    DE SFOCLES 49

    estabelece particular aliana entre homens, deuses e terra a oliveira,

    sustento' de geraes, a oliveira pertena de Atena e de Zeus Morios,

    a oliveira que, a partir da rvore queimada pelos Persas no Arepago e

    depois reverdescida das prprias cinzas, se torna smbolo da perenidade

    indestrutvel de Atenas . A ele voltarei mais

    adiante.

    o seio desta

    physis

    regeneradoraque envolve e integra

    dipo, pro-

    metendo-lhe

    a defesa dessa integrao.

    A aco dramtica que decorre do incio do episdio II at ao dilogo

    lrico-epirremtico do episdio IV representa, em traos largos, numa

    primeira fase, o momento da ameaa, mas tambm do testemunho da

    palavra de Teseu e da sua

    polis,

    traduzido em actos na defesa contra

    Creonte; a segunda fase a da confirmao da palavra de dipo e de

    aprofundamento da sua escolha, quando rejeita violenta e definitivamente a

    eventualidade de nova adeso sua casta, na pessoa de Polinices, tambm

    escorraado de Tebas e apoiado pela simpatia de Antgona.

    Mas a chegada de Creonte e o seu

    agon

    com dipo, as suas aces e o

    confronto com Teseu retomam e precisam os contornos da natureza desvir

    tuada de Tebas, j esboados no episdio I. Alis, a ameaa que constitui a

    sua vinda como representante da polis tebana pairava j desde as palavras de

    Ismena.

    Marcante em Creonte a retrica fcil e aveludada da hipocrisia, que

    se apressa a construir um auto-retrato respeitvel e humanssimo de quem a

    usa: o peso dos anos e da representatividade, a sua pessoa indefesa, a estirpe,

    a compaixo e um respeito religioso exemplar que lhe permitem o tom

    sempre moralizante dos primeiros discursos. Tenta primeiro a

    captado

    do

    Coro,

    depois a de dipo, comiserando-se com o seu destino e o de Antgona

    enquanto se inclui, agora, a si mesmo, num infortnio que afecta todo o

    genos

    (753-754) para, em nome do

    genos

    e da urbe, lembrar ao cego os

    deveres que o ligam cidade que o gerou.

    por demais evidente, como j se viu, que a dipo, situado num

    plano de conhecimento que o sofrimento e os deuses lhe abriram, o

    argumento do

    genos

    postio e suscita, pelo contrrio, a fria acusadora do

    futuro heri. Em causa est, no comportamento do tradicional tirano, a

    rotura entre o gesto e o ser, entre a aparncia e a realidade, que enformam o

    V. i

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    22/32

    50 MARIA DO CEUFIALHO

    que ento se entendia como uma dicotomia palavra/acto, to discutida pela

    sofstica do tempo . dipo denuncia-o (782):

    , ' .

    ...em palavras benefcios; mas em aces prejuzos.

    Creonte , de facto, o verdadeiro representante de Tebas, nesse ater-se

    ao plano das aparncias, que cultiva, corrompendo o valor da palavra e

    desvalorizando a palavra do outro. Creonte, como nota Slatkin, no ouve

    ningum, enquanto Teseu aceita Edipo sem o questionar .

    Em breve se contradir em actos, como o cego prev, e a violncia,

    que afirma no usar, us-la- contra os princpios e o territrio do estado

    ateniense o que faz da sua vinda uma invaso e contra o estatuto de

    inviolabilidade do suplicante o que faz das suas afirmaes de rectido

    mero

    farisasmo

    de exterioridades.

    O peso das velhas infraces prepondera no tratamento que d a

    dipo. O que far dipo rejeitar, com violncia e pela ltima vez, toda a

    carga de culpa e participao activa e consciente nessa trama

    anti-natural

    que o marcou e de que agora luta por se libertar. Creonte acaba por

    representar, afinal, um bice violento viabilidade da utilizao sem escr

    pulos que Tebas tenta fazer do indivduo como instrumento

    de

    magia do

    poder.

    Do mesmo modo que esvazia o indivduo de humanidade, assim esva

    zia tambm a palavra de sentido,

    instrumentalizando-a.

    No pode, pois,

    conhecer a verdadeira fora que a anima, a eficcia verdadeira que lhe

    advm da sua identificao com os feitos e intenes numa harmonia de

    verdade e rectido

    onde

    Teseu se movimenta. Atesta-o o seu pronto gesto de

    defesa, apoiado pelo Coro.

    nesse mbito, num nvel mais profundo, que dipo se situa, pela

    fora eficaz das suas palavras de benesse ou maldio. A, nesse plano, a

    palavra sagrada como um juramento, ou dispensvel, pela eloquncia das

    aces (por isso Teseu dispensado de jurar '), ou, mais radicalmente ainda,

    ultrapassada pela fora do mistrio transbordante, do inefvel.

    O

    silncio

    rodear a morte-apoteose do heri.

    Para o que se entendia como a dicotomia palavra/aco, testemunhvel

    nesta cena, e para a oposio Teseu/Creonte, veja-se C. Whitman,

    op .cit.

    238

    sqq.

    62

    Op.cit.219.

    63

    V.650.

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    DIPO EMCOLONO:

    O

    TESTAMENTO

    POTICO

    DE SOFOCLES 51

    Mas Creonte no conhece, sequer, a outra fronteira da palavra, a do

    silncio sobre o que vedado verbalizar, porque monstruoso, tremendo,

    como

    sao

    os velhos crimes da sua casta :

    01,

    \ . , ?'

    , ,

    DIPO

    ...Tu no tens sentido de justia, mas pensas que prprio falar

    de todos os assuntos, dos que so abordveis e daqueles que um ho

    mem no deve abordar...

    Tebas e Creonte constroem o universo antipdico do estado ateniense

    enquanto harmonia, piedade, justia e liberdade. Percebe-se, pela boca de

    Teseu que a natureza original de Tebas, enquanto polis, no pode ser

    m '

    ,

    mas tambm se entende, na pea, que os maus chefes facilmente desvirtuam

    esse equilbrio original, formando-se entre eles e a cidade dephysis adul

    terada um todo pernicioso, uma ameaa para outrapolisque justa e se v

    agredida no seu solo, nos seus fundamentos.

    No de estranhar que os ancios do Coro, inaptos, pelo peso dos

    anos, a tomar parte no combate, nele participem emotivamente, visua-

    lizando-o

    pelo entusiasmo. a fora de Atenas que se empenha na luta, a

    atestar a sua eficcia com que os deuses so coniventes . Tal como na

    vitria ateniense contra a cavalaria tebana, em 407, s portas de Colono.

    Vv. 1000-1001.

    65

    Vv.

    9 19sqq.

    Outra

    a opinio de F. Zeitlin, " Thebes, Theater of Self and Society in

    Athenian

    Drama",

    Greek Tragedy and Politicai Theory,

    p.

    113 sqq.

    que v j na

    origem

    de Tebas, a autoctonia reforada pelo incesto, uma natureza negativa. No

    mesmo

    trabalho defende a autora que Tebas apresenta

    polis

    ateniense o seu

    modelo

    negativo

    (p.l

    12).

    Demtere Persfone, Atena, Posidon, Zeus, Apolo,Artemisso invocados

    na reconstituio

    imaginria da

    batalha,

    no Estsimo II.

    O

    valor e funo deste estsimo que no meramente decorativo foram

    avaliados

    por M.

    O.

    Pulqurio em

    Problemtica da Tragdia Sofocliana,

    Coimbra,

    1968,

    pp. 144-145, onde salienta que "a viso entusistica da batalha" constitui um

    processo

    original de substituir "por um brilhante trecho lrico a banal descrio da

    batalha

    feita por um mensageiro".

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    52 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    A vinda de Polinices distanciada da expulso de Creonte pela cena

    de afecto que une dipo s filhas recuperadas por aco de Teseu. De novo,

    patente e explcita, a manifestao de uma

    arete

    em acto, que deixa falar,

    por si, as aces. Afirma Teseu (1143-1146):

    .

    '

    ,

    No conheo a avidez de conferir mais brilho existncia por

    palavras que por actos.

    vou demonstrarto: quanto aos juramentos

    qu ete fiz, anenhum deles te faltei, ancio.

    Tambm a fora da linguagem cnica do breve episdio III assume um

    vigor que a faz preponderar sobre o discurso e converte este, quase, num

    prolongamento a sublinhar aquela. O abrao em que se envolvem pai e filhas

    imagem viva do reencontro de dipo com a sua fora, a sua integridade

    ameaada pela ablao da

    trophe

    verdadeira . Teseu, ao restitui-las, salvou

    a integridade e a liberdade de dipo

    (1129):

    .

    Aquilo qu e eu tenho, pela tua

    aco o tenho, pela de mais

    ningum

    Deste modo, a interveno de Teseu a interceder pela recepo de um

    suplicante recm-chegado impe a dipo, dentro da tica da amizade, que

    esse favor seja concedido como pequena retribuio devida, charin

    (1183).

    Argumento a que Antgona, alis, recorre ao aperceber-se da identidade do

    suplicante' .

    O episdio IV compreende, na vinda de Polinices, uma micro-estru-

    tura trgica dentro do contexto do drama a splica junto do protagonista

    do drama, por sua vez suplicante aceite.

    Esta primeira apreenso da cena deveria criar a expectativa de uma

    possvel resposta favorvel ao estrangeiro que se avizinha, reverente, em

    contraste com Creonte. Expectativa que a interveno mediadora de Ant-

    'Vide Luze

    Trevas,

    pp.

    142-143.

    'Vv.l 181-1184.

  • 7/24/2019 04_Fialho

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    DIPOEM COLONO:

    O

    TESTAMENTO

    POTICO

    DE SOFOCLES 53

    gona, a atestar a sinceridade de sentimentos de Polinices, poderia reforar.

    Por seu turno, Sfocles altera a tradio esquiliana da primogenitura de

    Etocles.O primognito , aqui, o prncipe expulso que arrasta para Tebas

    um exrcito de aliados, em luta pelo que entende serem os seus direitos. Para

    o bom sucesso da empresa tenta a adeso paterna.

    A splica rejeitada, sem que se sinta, nisso, impiedade religiosa.

    dipo situa-se j para alm do mero sistema normativo poltico-religioso,

    depois de ultrapassar o limiar do sacrilgio e l se regenerar, atravs da

    firme aliana com um a cidade modelar e o seu chefe. Por seu turno, aceder

    splica corresponderia a quebrar o vnculo de aliana com a sua nova polis,

    pagando favores com danos futuros. Mas, acima de tudo, em causa estaria o

    sentido da etapa final da sua existncia e a prpria transfigurao da sua

    excepcionalidade.

    O significado, e at a pertinncia, da cena de Polinices tm sido lar

    gamente discutidas pela crtica. Entendo que ela contrabalana, como

    ameaa heroizao de dipo, a de Creonte. a ltima e a mais forte das

    ameaas, porque se insinua pela persuaso, no pela fora, porque surge

    rodeada pelo respeito religioso e por uma sintonia, embora extempornea,

    7

    com a situao de dipo. Mas, como nota W hitlock Blundell , o espectculo

    de infortnio que Polinices tem diante de si e o comove agora fruto da sua

    prpria aco no passado em que agia em consonncia com Etocles.

    Se o arrependimento verdadeiro e penso que Sfocles assim o

    71

    quis representar, alm do mais atravs do ponto de vista de Antgona o

    filho de dipo no deixa, por isso, de estar mergulhado numa cegueira

    trgica que o impede de reflexo sobre os seus motivos e sobre a loucura que

    o arrastar, a si e ao seu exrcito, para a runa.

    O

    prprio argumento dos laos de sangue nasce da incapacidade

    de Polinices reconhecer a situao, j que desperta em dipo a memria

    de injustias passadas e abre caminho para a forma como o cego rejeita,

    72 73

    em Polinices, os dois filhos : prim eiro pelo silncio ressentido , depois

    70

    Op. cit.

    238-248.

    Veja-se vv.

    1250-1251.

    Tambm o incitamento de 1280-1283 expressivo

    quanto confiana de Antgona na sinceridade do irmo.

    Sobre a interpretao da cena, bem como sobre a atitude de Polinices, veja-se

    Luz e Trevas,pp. 144sqq.e M. C. Fialho, Sfocles. dipo em Colono, introd. trad.e

    notas,

    Coimbra, 1996, pp. 19-21.

    Tambm o Coro de Sete contra Tebas, aps a sada de Etocles para o

    combate, se refere aos dois irmos, sobretudo no estsimo III, equiparando-os na sua

    aco e destino.

    Vv. 1271-1272, 1350.

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    54 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    pela fora da maldio que convoca as deusas do lugar e delas se

    75

    aproxima .

    Pela maldio se desvincula radicalmente da relao dephysis com a

    prognie infractora das justas relaes entre si e para com o pai e a

    condena a um fim iminente, marcado pela vocao do sangue poludo :

    ' .

    ' ,

    \

    . '

    ,

    , .

    '

    ,

    ,

    ',

    '

    vs ambos... foi outro homem no eu quem vos gerou

    por isso que a divindade tem os olhos fixos em ti e no

    ainda como o far em breve, se verdade que os teus exrcitos

    avanam sobre Tebas. que no ser possvel arrasar aquela cidade:

    pelo contrrio, tu hs-de cair, manchado por crime de sangue, e teu

    irmo cair de igual maneira.

    Estas maldies sobre vs ambos j eu as havia soltado antes,

    mas agora convoco-as a acorrer em meu auxlio, para que aprendais

    que necessrio honrar os progenitores e no vot-los ao desprezo, l

    porque, tal como sois, nascestes de um pai cego

    A cegueira fsica do pai assume agora conotaes de cegueira gentica

    e existencial dos filhos que Polinices representa, na sua sada para um

    destino que sabe ser de runa, como o de Etocles nosSete contra Tebas.

    Mas a mesma cegueira fsica abre-se, em dipo, numa viso terrvel,

    denunciada, desde o prlogo, na eficcia implacvel da maldio: 'palavras

    omnividentes', anunciara o velho caminhante (74).

    V.1391.

    Lembremos que as velhas Ernias se apodavam tambm de Maldies

    vivas,Arai, como bem visvel nasEumnides. Por trs vezes, na sua longa rhesis

    de

    1348-1396

    apela dipo para a fora das suas

    arai

    (1375, 1384, 1389).

    76

    Vv. 1369-1379.

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    DIPO EM COLONO:

    O

    TESTAMENTO

    POTICO

    DE SOFOCLES 55

    A desarmonia endgena da raa est agora distanciada e condenada

    eni definitivo. O destino monstruoso de parricdio e incesto foi regenerado

    em excepcionalidade trgica pelo sofrimento, a que os deuses abriram nova

    fora no limite extremo, quando o heri acolhido no seio da terra, no

    tmulo.

    Essa fora representa a potencializao da novaphysis individual que

    em dipo se revela, propiciada pelo esforo e pela harmonia dapolis ideal

    manifestada em actos. A eficcia dessa fora situa-se para alm da morte,

    mas aflora, j ntida, no acontecer dramtico, enquanto se impe, na

    convergncia de dipo e Teseu, o aprofundamento de uma viso interior do

    primeiro e a capacidade de aprendizagem pelo segundo de uma nova e mais

    profunda apreciao de valores, para alm da aparncia da forma ou das

    normas institudas. Convergncia baseada em princpios humanos como a

    compaixo e aphilia, encarados e vividos no horizonte da

    polis

    e dos seus

    fundamentos sagrados.

    Amadureceu a promessa divina e o pacto celebrado. Os deuses tm

    pressa e o mistrio do tmulo chama dipo. Por isso a partida de Polinices

    77

    quase coincide com o trovo h muito anunciado .

    O

    Coro apercebe-se que

    foras terrveis e incompreensveis se jogam naquele momento. A agitao

    do dilogo lrico-epirremtico estimulada pela manifestao divina, no

    estrpito celeste e no raio, cujo efeito luminoso no visvel suscitado na

    imaginao pela palavra. Os Ancios da tica so envolvidos num ver

    dadeiro e indefinvel

    pavor sacer :

    ' '

    ' .

    .

    Escuta, tremendo estrpito que sobre ns se abate, inex

    primvel, da mo de Zeus. Os cabelos se me eriam por completo de

    terror. Tolhida est minha alma, pois um raio se inflama de novo no

    cu.

    Destacada agora, entre o efeito do

    bronteion,

    a agitao atemorizada

    do Coro e a perplexidade de Antgona, ganha vulto a serenidade e certeza de

    77

    Cf.v.95.

    Vv. 1462-1466.

    Veja se

    o captulo IV do livro citado deR.Otto dedicado

    ao 'Mysterium tremendum'.

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    28/32

    56 MARIA DO CU FIALHO

    dipo, que reconhece o instante como momento decisivo da sua existncia

    ( ,

    1508).

    O

    cego dominaagora a cena, nessa

    esmagadora

    convergncia, simul

    taneamente evidente e misteriosa, dos deuses e do seu destino. Nela se

    transfigura a sua pessoa dramtica, mediante um itinerrio preparado desde

    o prlogo. Atinge agora uma autoridade majestosa que o vai distanciando

    dos que o acompanham, na plenitude de uma viso interior que adeso ao

    divino, adeso sua natureza individual brotada da excepcionalidade,

    modelada pelo sofrimento e possibilitada pela compaixo e

    philia

    daquele

    que foi capaz de ver para alm da forma, mais fundo no homem e no

    incompreensvel do seu destino.

    Quando j nada sou -

    reconhecera dipo a

    Ismena, ao saber do seu futuro poder

    ento que me torno um homem

    (V

    ' ,

    q

    )

    .

    7 9

    .

    Diferentemente do caso dos outros cegos sofoclianos, a viso interior

    no permanece em relao paradoxal com a cegueira fsica

    80

    . As categorias

    subvertem-se e esbatem-se, porque o plano em que se move agora dipo est

    para alm delas um plano fundador e no fundado e, por isso mesmo,

    incompreensvel, inominvel.

    A despedida luz

    (O

    luz, para mim sem brilho, que outrora foste

    minha, de algum modo, pela ltima vez te sente o meu corpo

    sl

    ),

    nota

    B.Seidensticker

    82

    , assume laivos de um adeus prpria cegueira fsica.

    dipo agora o mestre, o profeta, mas tambm o guia, na acepo

    simultaneamente fsica e espiritual da palavra, que, num eloquente efeito

    cnico, abandona o palco sem ser tocado, conduzindo quem o acompanha ao

    caminho da despedida

    83

    . A, finalmente, se cumprir o ritual de purificao

    iniciado por Ismena e interrompido por Creonte.

    79

    V. 393.

    80

    R. Buxton,'Blindness and

    Limits:

    Sophocles and the Logic of Myth', JHS,

    100, 1980, 25 nota queSfoclesconstri a cena como se dipo recuperasse a vista a

    partir da sua viso interior.

    81

    Vv. 1549-1550: &

    ,

    fpff

    , '

    .

    'Beziehungen zwischen beiden Oedipusdramen des Sophokles',

    Hermes,

    100, 1972, 255274.

    83

    M.G. Shields 'Sight and Blindness Imagery in the Oedipus Coloneus ,

    Phoenix, 15, 1961, 71 sq. observa: Therecurrent symbolism of sight and blindness

    hasburst the confines of the verbal order;it has beentransposed to the visual order

    of actiongaining

    ali

    theaddedpower of spectacle .

    A

    riqueza e quaseautonomiada linguagem

    cnica estudada por D.Sealeno

    captulo dedicado pea em Vision and Stagecraft in Sophocles, London, 1982.

    A questo dedico tambm parte substancial do meu estudo

    Luz e Trevas,

    107-156.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    29/32

    DIPOEMCOLONO: OTESTAMENTO POTICO DE SOFOCLES 57

    dipo ser despojado dos velhos farrapos da sua existncia e revestido

    de novas roupagens. Com elas passar o limiar tremendo e fascinante, onde

    vida e morte se tocam, para reforar, recolhido agora em harmonia no

    mistrio de um novo seio materno, o vigor de Atenas.

    A benesse e a maldio continuam, no entanto, aphysis renascida de

    dipo para alm da sua mortal existncia.

    Teseu, o hspede e protector de h pouco, agora o discpulo, guar

    diodo

    '

    mistrio interdito que no deve ser violado pela palavra

    84

    .

    S a ele concedido o penetrar no espao do numinoso porque

    provou, desde o primeiro instante, ser capaz de uma viso profunda,

    privilegiada, de homem e governante excepcional, que lhe deu acesso

    excepcionalidade de dipo atravs de uma disposio que lhe foi conferida

    pela suasophrosyneque pendor inato, intuio e reflexo, conhecimento e

    exerccio.

    O sagrado aproxima e irmana aqueles que envolve numa experincia

    comum. A aliana entre dipo, ainda humano e j tocado pelos deuses, e

    Teseu sela-se no sagrado, no silncio, preservada da banalizao do quo

    tidiano e do vulgo.O tmulo de dipo ficar, diferentemente do de outros

    heris com culto prprio, num espao oculto e intocvel do

    no-divulgado,

    resguardado do tempo profano. Mas ficar, em simultneo, virtualmente em

    qualquer ponto do bosque de Colono, a inundar e enriquecer, na potncia

    dessa impreciso, o quotidiano da polis.

    Essa mesma aliana celebrada no dever fixar-se apenas num ins

    tante de despedida, mas cumprir-se, num ritual renovado no tempo, entre

    dipo e os sucessores do mtico rei de Atenas, pela transmisso do segredo.

    A renovao no assenta no apoio do heri a uma cadeia de sucesso

    hereditria no essa a vocao da sua fora nem a do ideal de demo

    cracia ateniense. Uma aretalogia diversa se impe, fundada, no na casta

    gentica, mas numa nova concepo dephysisque se adivinha, radicada no

    valor individual daquele que sabe, pelo sentimento profundo do religioso e

    pela

    sophrosyne,

    reconhecer os verdadeiros valores, tal como Teseu

    85

    .

    Essa a condio fundamental para que o tmulo do heri suporte a

    perenidade indefectvel dapolis ateniense e reprima as foras de agresso,

    concretizadas na ameaa tebana.

    M

    V. 1526.

    85

    Cf.

    vv .

    1530-1532.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    30/32

    58 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    Recolhido dipo na intimidade do seu tmulo, Teseu reconhece, pelo

    seu prprio gesto, a fora esmagadora, o

    tremendum (, 1651) que

    torna

    a

    viso do sagrado difcil de suportar, como j o Antigo Testamento o

    experimenta tambm

    86

    :

    .

    ' ,

    '

    ,

    '

    '

    ,

    .

    '

    .

    MENSAGEIRO

    ...Mas

    quando nos

    havamos j afastado, passados alguns

    momentos, olhmos para trs e percebemos distncia que o cego j

    l no estava apenas o nosso rei, com a mo sobre a fronte, a

    proteger os olhos, como se um tremendo horror se houvesse revelado,

    intolervel vista.

    um pouco depois

    no logo de seguida

    vemo-lo a adorar em simultneo a terra e o Olimpo divino: ambos

    numa s prece.

    A inusitada prece de Teseu, que abrange num s gesto o culto do

    ctnio e do olmpico, espelha uma face do mistrio onde convergem di

    menses do divino de espaos antagnicos e se tocam nessa zona de limiar

    entre vida e morte, atravessada pelo heri, e que , afinal, em sentido

    alargado, o espao da existncia humana.

    A compreenso de Teseu nica e modelar. O Coro aceita-a e a ela

    adere, na f da

    polis

    no bom governante. Antgona e Ismena no esto aptas

    a compreender, mesmo que a inaptido se chame amor filial, como se

    antevia j pela cena de Polinices

    87

    .

    86

    Vv. 1647-1655.

    87

    A argumentao de Antgona, junto de dipo, para que preste ouvidos ao

    filho,

    baseada na fora dos laos familiares constitui uma perigosa mediao, j que

    atender o filho implicaria, para dipo, regressar s razes e abandonar o destino

    prometido.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    31/32

    DIPO

    EM

    COLONO: O

    TESTAMENTO

    POTICO

    DE SOFOCLES 59

    Antgona, a mediadora, pertence, de qualquer modo, ao espao

    tebano, relao de sangue a que regressa

    88

    .

    A saga volta a Tebas, mas dipo pertence agora a A tenas, consa grado

    pelo mito de Colono e pela sua investidura esttica na

    poiesis

    trgica de

    Sfocles.

    Qual a palavra potica final do velho dramaturgo de Colono, chegado

    tambm ao termo de uma caminhada quase to longa quanto o sculo de

    Pricles, espectador e participante empenhado na vida de uma

    polis

    que

    conheceu inexcedvel prestgio e grandeza e conhece agora as a ma rguras da

    misria e d a degradao poltica e de valores?

    O

    destinosui

    generis

    do heri

    e a sua ddiva no se apresentam, decerto, no drama, como chave-mestra da

    crena num revivalismo de hegem onia poltica, irremediavelmente perdida .

    A fora apotropaica do tmulo, dirigida como a orge do heri contra

    os inimigos de Atenas, atinge fundamentalmente Tebas. Mas a Tebas que o

    ateniense conhece como o potencial e histrico agressor do sc.V ganha,

    atravs da metfora dramtica, um valor signifivativo mais profundo, com

    razes no prprio mito o espao da infraco natural e da deso rdem, da

    polis desvirtuada, do primitivismo mgico, que instrumentaliza e no

    apreende o fundamento da relao com o divino, espao do desrespeito

    humano e poltico, , enfim, o espao da barbrie

    89

    .

    Tambm Esquilo havia revestido de traos de excesso e de barbrie o

    exrcito invasor que, nos

    Septem,

    atenta contra a integridade da cida de

    9 0

    .

    No contra o inimigo longnquo, o culturalmente diferente com

    quem a Hlade se confrontou na Guerras Persas, que o heri torna operante

    a sua maldio, mas contra uma ameaa de barbrie que pulsa por dentro do

    prprio espao poltico e cultural grego e pe em risco a sobrevivncia e

    identidade de Atenas, abrindo

    polis

    uma experincia trgica colectiva.

    Experincia recentemente sofrida, com a investida tebana rechaada em

    Colono em 407, e ainda a requerer depurao.

    88

    C. Segaiop .cit.401

    sqq.

    89

    Segai vai, mesmo, mais longe: ope o espao tebano como o do selvagem

    ao ateniense como o da civilizao.

    90

    Lembremos, por exemplo, a descrio do exrcito inimigo no seu alarido e

    movimento desordenado, o comportamento dos sete chefes e o seu pacto selado pelo

    sangue de touro e, sobretudo, o valor simblico determinante da descrio dos

    escudos, cuja figurao pretende influenciar os destinos da batalha, como um ins

    trumento mgico. Veja-se M. C. Fialho, A Nau da Maldio. Estudo sobre Sete

    contraTebas,Coimbra, 1996,pp.51-56e 57-75.

  • 7/24/2019 04_Fialho

    32/32

    60 MARIA DO

    CEU

    FIALHO

    A condio de benesse prometida o mistrio do tmulo, transmitido

    na sucesso de homens excepcionais, capazes do bom governo da cidade,

    como uma aliana renovada entre o chefe poltico e o poder do heri

    eloquente: A benesse ocorre, como no tempo do pacto original, na harmonia

    entre a

    polis

    e os seus prprios fundamentos sagrados, a terra e o divino,

    ctnio e olmpico, donde brota o duplo alimento, material e espiritual da sua

    physis e onde se situa a sacrossanta fora que, anterior a qualquer lei

    instituda, instncia instauradora de preceitos, como o reconhece Antgona

    na pea

    homnima

    9

    '.

    Essa harmonia abre uma crescente capacidade de percepo, como em

    Teseu, de reflexo e viso interior, vitais para a cidade. Seja ela capaz, e

    assim o cr o poeta, de reflectir a partir da sua experincia trgica e se

    repensar e revigorar a partir do que a fundamenta e lhe d natureza,

    despojando-se, como dipo no instante supremo, dos farrapos do sofrimento

    e dos valores gastos e degradados de todas as demagogias e traies, para

    renascer de si mesma, qual

    rebento que a si mesmo

    se refaz'

    como

    a velha oliveira do

    Erection. Queimada pelos Persas, pela

    barbrie na prpria

    polis,

    ela renasce das suas prprias cinzas

    92

    , visvel no

    alto do Arepago, a coroar o estsimo I.

    uma hegemonia de ndole bem diversa, aquela para que aponta

    Sfocles, baseada em valores do esprito e numa harmonia da cidade consigo

    mesma aristotelicamente falando, numa verdadeira

    eudaimonia

    poltica.

    A apoteose de dipo suporta a apoteose possvel para a cidade e o

    poeta abre aos seus concidados a vivncia dessa possibilidade atravs do

    mito tornado obra esttica, representao do sagrado num momento de festa

    e de culto, que o tempo da tragdia. Tempo em que o quotidiano se

    suspende para buscar, na libertao que representa a festa e em que o

    esttico e o religioso se associam, o seu prprio sentido '.

    A apoteose de dipo tambm, assim, apoteose da tragdia que o

    ltimo dos grandes trgicos deixou, perpetuada, ao Ocidente

    94

    .

    Ara.

    450-457.

    J

    Cf.

    Herdoto,

    8.55.

    93

    Veja-se K. Huebner,

    op. cit.

    cap . XI: 'Das mytische Fest'.

    94

    Cf.

    Segai, op .

    cit.

    406:

    'At the end of

    the

    Coloneus

    Oedipus

    sumsup and

    visually enacts

    the

    tragic road

    of

    life,

    now

    traveled

    to an

    incomprehensible

    end,

    through

    and beyond tragedy

    to

    a virtual apotheosis.

    It

    is

    an

    apotheosis

    not

    only

    of

    the

    tragic hero but

    of

    tragedy

    itself.'