02 Revista Pilares Da Historia

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Textos sobre a História de Duque de Caxias e da Baixada Fluminense. Ano II - nº 02 - maio de 2003 ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DO INSTITUTO HISTÓRICO Órgão de divulgação conjunta: Instituto Histórico Vereador Thomé Siqueira Barreto / Câmara Municipal de Duque de Caxias e Associação dos Amigos do Instituto Histórico. NESTA EDIÇÃO: Tensões e interações das relações sociais em torno do regime escravista na Freguesia de Santo Antônio de Jacutinga. Estrada de Ferro Rio D`Ouro - A ferrovia das águas. Fluxos e interações da rede de memória e história na Baixada Fluminense. Aqueles anos verdes da nossa história. O debate étnico e a união dos homens de cor em Duque de Caxias. CÂMARA MUNICIPAL DE DUQUE DE CAXIAS

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  • Textos sobre aHistria de Duque de Caxias

    e da Baixada Fluminense.

    Ano II - n 02 - maio de 2003

    ASSOCIAO DOS AMIGOS DOINSTITUTO HISTRICO

    rgo de divulgao conjunta:Instituto Histrico Vereador Thom Siqueira Barreto / Cmara Municipal de Duque de Caxias eAssociao dos Amigos do Instituto Histrico.

    NESTA EDIO:

    Tenses e interaes das relaes sociais em torno do regime escravistana Freguesia de Santo Antnio de Jacutinga.

    Estrada de Ferro Rio D`Ouro - A ferrovia das guas.

    Fluxos e interaes da rede de memria e histria na Baixada Fluminense.

    Aqueles anos verdes da nossa histria.

    O debate tnico e a unio dos homens de cor em Duque de Caxias.

    CMARA MUNICIPAL DE DUQUE DE CAXIAS

  • REVISTA PILARES DA HISTRIA EDITORIAL

    rgo de divulgao conjunta:

    Alexandre dos Santos MarquesCarlos S Bezerra

    Ruyter PoubelSandra Godinho Maggessi PereiraTania Maria da Silva Amaro de Almeida

    Odemir Capistrano SilvaRogrio Torres

    Alda Regina Siqueira AssumpoJos Rogrio Lopes de OliveiraManoel Mathias Thibrcio FilhoRoselena Braz VeillardSuely Alves SilvaWellington Deus Loureno da Silva

    CONSELHO EDITORIAL:

    COLABORADORES:

    PRESIDENTE DA CMDC:

    PRESIDENTE DA ASAMIH:

    ASSESSORIA DE IMPRENSA E DIVULGAO DA CMDC:

    DIRETORA DO INSTITUTO HISTRICO:

    DIRETOR GERAL DA CMDC:

    FOTOS / CAPA: Agnaldo Werneck

    CORRESPONDNCIA:

    Tania Maria da Silva Amaro de Almeida

    Laurecy de Souza Villar

    Vereador Laury de Souza Villar

    Maria Vitria Souza Guimares Leal

    Antonio Pfister

    Rua Paulo Lins, 41 - Jardim 25 de AgostoCEP: 25071-140 - Duque de Caxias - RJTelefone: 2671-6298 ramal 247site: http://www.cmdc.rj.gov.br/

    Panormica do Bairro 25 de Agosto -dcada de 50, vendo-se as atuais PraaRoberto Silveira e Rua Conde de Porto Alegre.Acervo Iconogrfico do Instituto Histrico

    INSTITUTO HISTRICO VEREADOR THOM SIQUEIRA BARRETO /CMARA MUNICIPAL DE DUQUEDE CAXIAS e ASSOCIAO DOSAMIGOS DO INSTITUTO HISTRICO

    A FEITURA DO TEMPOPilares da Histria sada os 60 anos de

    emancipao do municpio de Duque de Caxias, os 50 anos de fundao da Folha da Cidade e os 30 anos de criao do Instituto Histrico Vereador Thom Siqueira Barreto, da Cmara Municipal de Duque de Caxias, por coincidncia inaugurado durante a gesto na qual era vice-presidente, o pai do atual presidente dessa casa legislativa. As comemoraes viro a seu tempo, oportunidade alis para refletir sobre o significado efetivo dessas datas para a cidade. At porque, datas, fatos, locais e nomes servem para desenhar contornos e estabelecer contextos e pertinncias, mas o trabalho de construir os planos da histria demanda bem mais: exige tambm inventividade e ousadia. Sem imaginao, no se formulam hipteses. E no fosse o atrevimento de gente como Giordano Bruno, quanto tempo no teriam ficado perdidas em estrelas mortas as teorias de Coprnico, Galileu e Kepler, por exemplo?

    Efetivamente, esses cientistas representam todo um perodo de emergncia de pensamento fecundo. Todavia, o trao de originalidade essencial que carregam, no carregam solitariamente, feito cavaleiros andantes em quixotescas aventuras. H ainda Nicolau de Cusa, Aristarco de Samos, Tycho Brahe, afora os annimos de sempre, que sempre contam, indispensveis, na feitura do tempo, porm no contam a histria porque a histria (a oficial) parece no querer ouvi-los. E para reparar o equvoco dessa espcie de surdez, preciso trazer ao presente, aos contemporneos, o que a memria dos esquecidos, principalmente, em suas diversas modalidades, guardou no apenas para recordar um passado melhor (para quem?). Recordar, se de fato viver, igualmente fundamental para a reflexo e a anlise historiogrfica. No caso, para configurar, na dinmica do cotidiano da Baixada Fluminense, a dinmica da nossa histria.

    A nossa Pilares segue essa orientao. Suas pginas abertas so espaos poltico-culturais, portanto, espaos de sociabilidade. A transcrio de documentos primrios e o uso de depoimentos orais, caso da seo Memria Viva, cuja estria tivemos infelizmente de adiar, constituem instrumentos valiosos para o estudo de temas de mbito limitado ou amplo. Sem dvida, com as tcnicas apropriadas, com o obrigatrio rigor metodolgico, com a indispensvel disciplina, tais instrumentos permitem ao pesquisador fazer perguntas ao documento, confront-lo com outras fontes, quem sabe desmitific-lo, localizando e contextualizando o evento na trama histrica. Cabe a cada um dar a essas linhas e agulhas a costura e o relevo que lhe ditarem as suas convices, os seus talentos e clusula inegocivel as regras da lealdade devida aos interlocutores no debate do qual participe. Agora, ao debate.

  • O Instituto Histrico Vereador Thom Siqueira Barreto / Cmara Municipalde Duque de Caxias e a Associao dos Amigos do Instituto Histricoagradecem o apoio:

    CEMPEDOCH-BFCentro de Memria, Pesquisa e Documentao da Histria da Baixada Fluminense

    Dos Autores

    IPAHBInstituto de Pesquisas e Anlises Histricas e de Cincias Sociais da BaixadaFluminense

    De todos que participaram direta ou indiretamente da produo deste trabalho edaqueles que se empenham no difcil processo da permanente construo ereconstruo da nossa histria.

    FEUDUCFundao Educacional de Duque de Caxias / Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Duque de Caxias

  • onte obrigatria de estudo para muitos pesquisadores, o Instituto Histrico Vereador Thom Siqueira Barreto, que completou 30 anos este ano, um verdadeiro guardio de nossa histria e da Baixada Fluminense. So mais de 5 mil reprodues fotogrficas, 890 F

    documentos textuais, 505 livros e revistas, 1.219 jornais, objetos raros e a primeira tribuna do Legislativo de 1947. So trs dcadas de intenso trabalho de divulgao e proteo dos principais fatos econmicos, sociais, polticos e culturais da regio.

    Professores, alunos e a populao, em geral, tm a sua disposio um vasto material que visualiza bem as mudanas estruturais ocorridas, ao longo dos anos, na Baixada Fluminense. Proteger este acervo e fazer o resgate do patrimnio histrico e cultural so, tambm, atribuies do poder pblico, pois a cultura um instrumento vivo de realizao do cidado.

    Tenho especial carinho pelo Instituto Histrico, que foi inaugurado no dia 31 de janeiro de 1973, perodo em que meu saudoso pai, Laury Villar, exerceu a vice-presidncia desta casa Legislativa. Acho fundamental o trabalho sistemtico de promoo e de preservao da memria de Duque de Caxias e da Baixada. Regio, que possui aproximadamente quatro milhes de habitantes e, que vida por cultura. Apio os profissionais capacitados do Instituto Histrico que se dedicam em conservar um tesouro de valor incalculvel. Tambm fomentamos a cultura, na Cmara, atravs do Corredor Cultural: Sala de Leitura Doutor Moacyr Rodrigues do Carmo, Teatro Procpio Ferreira e Instituto Histrico, difundindo todas as manifestaes culturais.

    MENSAGEM DO PRESIDENTE DA CMARA MUNICIPAL

    Vereador Laury Villar

  • No dia 30 de abril, celebramos outra data de extrema importncia para a regio: o Dia da Baixada Fluminense. Evento de grande ressonncia que promove o resgate histrico e cultural das tradies dos municpios da regio. So shows, palestras, recitais, exposies fotogrficas, filmes e apresentaes de peas, que contam um pouco da rica histria de cada municpio. O Dia da Baixada fundamental para que possamos divulgar e preservar nossas razes.

    O patrono de Duque de Caxias e do Exrcito Brasileiro, Luiz Alves de Lima e Silva, completar, no dia 25 de agosto, 200 anos de nascimento. O militar mais condecorado do Brasil deu um exemplo de patriotismo e civismo em defesa da nao. Ele dedicou sua vida na manuteno da ordem dentro e fora do territrio nacional. Foi um exemplo de militar e nunca perdeu uma batalha. Foram mais de 60 anos de excepcionais e relevantes servios como poltico e administrador pblico, como soldado de vocao, a servio da unidade, da paz social, da integridade e da soberania do Brasil. O ttulo de Baro de Caxias, que recebeu em 1841, em defesa do Maranho, expressa muito bem a sua atuao: disciplina, administrao, vitria, justia, igualdade e glria.

    Ainda dentro das datas histricas, no dia 31 de dezembro de 2003, o municpio de Duque de Caxias completar 60 anos de emancipao. Da separao de Nova Iguau, em 31 de dezembro de 1943, at os dias atuais, a cidade se transformou num gigante. A atual administrao resgatou o orgulho do cidado caxiense. Conquistamos crescimento social, educacional, esportivo e temos uma cidade ordenada e um parque industrial que no pra de crescer. A confiana no trabalho e a transparncia na gesto pblica atraram os empresrios, que encontraram na cidade um porto seguro para seus investimentos. Duque de Caxias livrou-se do estigma do passado e, agora, aponta seus refletores de cidade modelo e de progresso pas afora.

  • NDICE

    TENSES E INTERAES DAS RELAES SOCIAIS EM TORNO DOREGIME ESCRAVISTA NA FREGUESIA DE SANTO ANTNIO DA JACUTINGA

    Nielson Rosa Bezerra

    ESTRADA DE FERRO RIO DOURO - A FERROVIA DAS GUAS

    O DEBATE TNICO E A UNIO DOS HOMENS DE COR EM DUQUE DE CAXIAS

    FLUXOS E INTERAES DA REDE DE MEMRIA E HISTRIA NA BAIXADA FLUMINENSE

    AQUELES ANOS VERDES DA NOSSA HISTRIA

    Guilherme Peres de Carvalho

    Marlcia dos Santos Souza

    Ana Lucia Silva Enne

    Jornal Tpico / 1958Merity, 1900 / Nasce uma Cidade

    Odemir Capistrano Silva

    Associao dos Amigos do Instituto Histrico

    ..........................................................................................07.

    Seo ICONOGRAFIA

    Seo MEMRIA VIVA

    Seo TRANSCRIO

    Tania Maria da Silva Amaro de Almeida

    Antnio Augusto BrazOdemir Capistrano Silva

    Rogrio Torres da Cunha /

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  • s relaes sociais e econmicas de carter perifrico cidade do Rio de Janeiro que ocorrem na regio que atualmente denominamos Baixada Fluminense so originrias do processo de colonizao europia iniciado no Brasil a partir do sculo XVI, quando, desde ento, houve uma insero A

    desta regio em um contexto de produo e de entreposto de mercadorias voltadas para o abastecimento do centro urbano que, posteriormente, se tornaria a capital do imprio, bem como para a circulao no mercado internacional.

    A partir da segunda metade do sculo XVI, iniciou-se a ocupao da regio do entorno da baa de Guanabara, bem como a efetiva implementao da empresa colonizadora europia. No perodo entre o sculo XVI e XVII, a economia que se efetivou com a explorao da regio foi marcada por uma relativa produo de cana, pela manufatura do acar e do aguardente, uma produtividade mais significativa do cultivo dos chamados produtos de subsistncia, complementados por uma larga explorao baseada no extrativismo vegetal, alm da construo de olarias. Outra caracterstica econmica que marcou a regio desde o incio da explorao europia foi a utilizao da rica disposio hidrogrfica da regio para o escoamento das mercadorias que eram produzidas. Durante este perodo, os rios tiveram uma importncia estratgica para o dinamismo econmico da regio, pois exerceram a funo de estradas, sendo importante, do ponto de vista econmico, para o escoamento de mercadorias, bem como do ponto de vista social, pois atravs deles circulavam pessoas, informaes, etc. No entanto, importante reafirmar a relevncia

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    TENSES E INTERAES DAS RELAES SOCIAIS EM TORNO DO REGIME ESCRAVISTA

    NA FREGUESIA DE SANTO ANTNIO DA JACUTINGA

    1Nielson Rosa Bezerra

    1Mestrando em Histria pela Universidade Severino Sombra / Vassouras / RJ. Professor assistente do

    departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Duque de Caxias / FEUDUC. Pesquisador do Centro de Memria, Pesquisa e Documentao de Histria da Baixada Fluminense / CEMPEDOCHBF e scio fundador da Associao de Professores e Pesquisadores da Histria / APPH-CLIO. Diretor tesoureiro da Associao dos Amigos do Instituto Histrico de Duque de Caxias / Asamih. Professor do Colgio Santo Antnio em Duque de Caxias, e da rede pblica em Japeri.

  • perifrica da regio no modelo colonial, tendo em vista que o eixo econmico que sustentava a colnia brasileira e sua relao com a metrpole era a produo

    2canavieira do Nordeste. Em nossa opinio, a insero da regio que atualmente denominamos Baixada

    Fluminense no contexto colonial se deu a partir do sculo XVIII, quando o eixo econmico do Brasil e de Portugal se voltou para o ouro descoberto em Minas Gerais. Com a necessidade do escoamento do ouro e o abastecimento da provncia mineira, toda a regio passou a ter uma maior importncia, tendo em vista que se tornou uma estratgica rea de passagem, por conta de seus rios, anteriormente assinalados, bem como pelas estradas que foram abertas serra acima para que o trnsito de mercadorias fosse dinamizado. importante demarcar que mesmo tendo indcios de uma maior

    3assimilao das riquezas coloniais neste perodo , a regio ocupou sobretudo a posio de entreposto comercial. Podemos ainda afirmar que esta disposio econmica tambm foi marcante durante o sculo XIX, quando o escoamento do ouro foi substitudo pelo escoamento do caf produzido na regio do Vale do Paraba.

    Apesar do carter secundrio dentro da lgica produtiva do Brasil neste perodo, destaque-se que houve um acmulo de riquezas por uma minoria privilegiada da populao que se estabeleceu na regio, atravs da venda das mercadorias produzidas localmente, com o armazenamento e o transporte das mercadorias que eram trazidas do interior do Brasil e que se destinavam ao porto do Rio de Janeiro, aluguel de escravos e negcios de tabernas que serviam para um comrcio local e para o pousio de tropas, viajantes, autoridades, etc. Ainda importante lembrar que todas as atividades descritas foram se acumulando na regio, pois no vislumbramos a

    4economia da regio de forma cclica.A produo da regio era essencialmente agrria, mas no podemos v-la

    apenas nesse contexto, pois tambm se forjou como rea de passagem, o que nos permite pensar que a sociedade que se estabeleceu, apesar de fortes caractersticas rurais, tambm tem fortes traos caractersticos do setor urbano, por conta da circulao de pessoas e da proximidade com a cidade do Rio de Janeiro.

    Para melhor compreender a regio durante o sculo XIX, sobretudo com respeito s relaes complexas que caracterizaram a sociedade que estava organizada sob o regime escravista, abordaremos as negociaes e os conflitos entre senhores, escravos e homens livres pobres. Tomaremos por base a Freguesia de Santo Antnio da Jacutinga, sua produo econmica e as relaes sociais que se davam no cotidiano

    2Ver SCHWARTZ, Stwart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. So Paulo: Cia.

    das Letras, 1988. 3Esta assimilao pode ser exemplificada pelas igrejas barrocas que foram construdas na regio durante o

    sculo XVIII, algumas com bastante ostentao de riquezas, como o caso da Igreja da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar.4Neste sentido, descordamos da viso de Waldick Pereira, pois este autor estabelece uma lgica de ciclos

    para explicar a economia iguauana deste perodo. PEREIRA, Waldick. Cana caf e laranja: histria econmica de Nova Iguau. Rio de Janeiro: FGV, 1977. Sobre este aspecto da economia de regio, j defendemos nossa posio em BEZERRA, Nielson Rosa. Pau para toda a obra: a importncia da madeira na histria econmica do Recncavo Guanabarino. In Hidra de Igoass: Cadernos de textos de Histria Local e Regional. Ano I, n II. Duque de Caxias: CEMPEDOCH-BF/APPH-CLIO, 1999.

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  • de seus agentes sociais. Acreditamos que possvel no apenas estudar esta freguesia, mas tambm toda a Vila de Iguau, bem como todo o Recncavo da Guanabara atravs dela, pois vemos como uma possibilidade salutar a associao do estudo de uma histria local com um mtodo de microanlise voltado para as mincias e as

    5particularidades, pois o indcio pode revelar a particularidade daquilo que se v. Quanto freguesia de Santo Antnio de Jacutinga, estendia-se o territrio

    para o norte, ao Morro Grande da Cava, prxima a atual estao de Jos de Bulhes, dividindo-se a com a de Nossa Senhora da Piedade de Iguau. Deste ponto corria o limite pela margem meridional do Iguau, buscando o rumo da fazenda de So Bento at chegar ao porto dos Saveiros, exclusive, limitando-se tambm com a freguesia de Nossa Senhora do Pilar. A leste era banhado pela Guanabara e tinha ao sul a freguesia

    6de Meriti; a oeste ficava a de Marapicu. Percebe-se que se fizermos uma breve transposio geogrfica para a composio atual da Baixada Fluminense, podemos afirmar que esta freguesia compunha os territrios de partes dos municpios de Nova Iguau, Belford Roxo, So Joo de Meriti e Duque de Caxias. A importncia econmica desta freguesia tambm pode ser ressaltada pela presena dos rios Iguau, Sarapu, Meriti, entre outros, importantes vias de transporte e comunicao que cortavam o territrio de Jacutinga.

    Analisando relatrio do marqus do Lavradio (1779-89), a freguesia de Jacutinga merece destaque, pois so apresentados seis engenhos: Madureira, Posse, Maxambomba, Brejo, Cachoeira, S. Antnio do Mato e N. S. da Conceio, com produo significativa de acar (163 caixas) e de aguardente (77 pipas e meia). Apresenta-se ainda uma produo de subsistncia tambm significativa, totalizando 20 mil sacas de farinha, 600 de feijo, 600 de milho, 6 mil de arroz, sendo um total

    7geral de 27.200 sacas de alimentos de subsistncia por ano. A partir de um comparativo com as demais freguesias, Jacutinga no pode ser considerada uma grande produtora de exportao. No entanto, em relao produo de subsistncia, destinada ao consumo endgeno e ao comrcio regional, esta freguesia destaca-se como a mais importante no contexto local.

    Sobre esta problemtica, Marlcia dos Santos Souza afirma: interessante observar que mais da metade da mo de obra escrava no estava sendo empregada nos engenhos aucareiros e mesmo as que se encontravam nos engenhos tambm produziam arroz, milho e farinha. Isso sem contar nas que eram utilizados no transporte, na manuteno das vias fluviais, nas olarias e na criao de animais, o que indica uma lgica interna coabitando com as

    8determinaes externas da metrpole portuguesa .5Cf. FREITAS, Marcos C. Da Micro-Histria Histria das Idias. So Paulo: Cortez, 1999, p. 22.

    6Ver FORTE, Jos Matoso Maia. Memria de Fundao de Iguass. Rio de Janeiro: Typ. Jornal do

    Commrcio, 1993, p. 89.7Cf. SOUZA, Marlcia dos Santos. Economia e sociedade iguauana. Niteri: UFF. Mestrado em Histria,

    2000 (mimeo).8Cf. SOUZA, Marlcia dos Santos. Economia e sociedade iguauana. Niteri: UFF. Mestrado em Histria,

    2000 (mimeo).

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  • Considerando os dados demogrficos apresentados pelo mesmo relatrio, podemos perceber que Jacutinga a segunda freguesia mais populosa da regio, perdendo apenas para Nossa Senhora do Pilar, cujo porto era um dos principais entrepostos do ouro de Minas Gerais, sendo ponto de partida e de chegada para aqueles que tomavam o Caminho Novo de Garcia Pais. Entre os 13.054 habitantes da regio, 3.540 foram contabilizados como residentes em Jacutinga, sendo que 1.402 eram homens livres (39,6%) e 2.130 eram escravos (60,4%). Esta diversidade nas atividades econmicas, que eram exercidas pelo contingente escravo, nos permite considerar a autonomia escrava defendida por Flvio dos Santos Gomes atravs da

    9idia de campo negro. Esta autonomia em torno do eixo escravista nos apresenta possibilidades de interaes entre os senhores, os escravos e os homens livres pobres que configuravam a sociedade da Vila de Iguau durante o sculo XIX.

    essencial no desprezar nem as tenses que a privao da liberdade provocava nas relaes sociais, inclusive com a prtica de crimes, delitos, fugas e formao de comunidades quilombolas por parte dos escravos, nem o constante controle do trabalho, bem como a organizao de expedies de represso aos quilombos da regio, organizadas pelos senhores. No entanto, as negociaes e as interaes entre os grupos sociais diversos marcaram as relaes na regio, pois a autonomia conquistada pelos escravos permitia uma circulao ampla no entorno da vila, at mesmo com eventuais visitas corte, como ocorria com os escravos barqueiros ou lancheiros. Alm desses, devemos considerar os escravos que detinham a possibilidade de cuidar de pequenas roas, principalmente os escravos da fazenda Iguau, da Ordem de So Bento.

    Podemos afirmar que o eixo que delineou a economia e as relaes sociais na regio, durante o perodo colonial e imperial, foi o escravismo. Portanto, a principal mo-de-obra empregada era a dos negros africanos e de seus descendentes que foram submetidos condio do trabalho compulsrio. Porm vrios elementos representantes dos mais variados segmentos sociais se estabeleceram ou passavam pela regio. Desta forma, possvel considerar que a formao social da regio se deu de modo complexo, com agentes sociais heterogneos, marcados por conflitos e tenses, mas tambm por interaes e negociaes, medida que os interesses econmicos eram postos e considerados, as aes e reaes sociais eram praticadas e as expresses culturais eram sincretizadas e recriadas.

    As complexidades sociais que ocorreram no Recncavo da Guanabara durante o sculo XIX se opem ao modelo sistmico da escravido. No se pode considerar uma organizao sistemtica nas relaes cujos agentes so seres humanos, com vontades, desejos e interesses pessoais e coletivos, sejam em condies adversas ou gozando das benesses cujo contexto escravista poderia oferecer. Portanto, metaforicamente, a escravido no poderia ser um jogo de damas, onde pedras pretas e brancas se opem e, num constante conflito, procuram eliminar uma as outras, sem muitas possibilidades de deslocamento ou de aes. Em nossa concepo, a escravido poderia ser um jogo de xadrez, cujo conflito tambm permanente, mas as opes de jogadas, de interaes so ampliadas, algumas peas, por exemplo, podem

    9GOMES, op. Cit.

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  • pular casas, deslocar-se em vrias direes. Os agentes sociais, mesmo dentro de um regime escravista, tm reas de aes diferenciadas, participam de redes de solidariedade, avanam para alm das regras impostas, pois a escravido no se resume s relaes econmicas, compreendendo tambm relaes socioculturais.

    No pretendemos participar dos extremismos e das radicalizaes historiogrficas que por muito tempo caracterizaram as produes sobre a escravido. Muitas obras sobre o assunto tm caracterizado uma metodizao excessiva, onde as relaes so sempre sistemticas, o que em nossas perspectivas limita as discusses em relao ao assunto. Mas tambm no se pode cair no outro extremo, ou seja, banalizar o conflito; as relaes escravistas no eram uma maravilha, nem tampouco a condio de escravo representava dignidade social ou cidadania. Em nossa perspectiva, as relaes sociais que delinearam o regime escravista foram de tenses, conflitos e violncia, mas tambm no podemos ignorar as interaes, os intercmbios e as negociaes que existiam entre os grupos sociais.

    Sobre a complexidade dos constantes conflitos que existiam na sociedade escravista, marcada pelas interaes e pelas tenses que existiam, Joo Jos Reis e Eduardo Silva nos mostram que o conflito principal - aquele que ope senhores de um lado e escravos de outro - no pode resumir toda a histria da sociedade escravista. A falta de unidade nas classes subalternas desdobra-se sem cessar. Primeiro, entre africanos de diferentes procedncias, lnguas e culturas; depois, entre protagonistas, s vezes rivais, na dura luta pela sobrevivncia: crioulos versus forasteiros africanos;

    10forros versus escravos; negros versus mestios.Sendo assim, podemos interpretar as relaes escravistas a partir dos vrios

    elementos de identificao que os seus agentes detinham, sejam eles, senhores, escravos ou homens livres pobres. importante ainda assinalar que estes trs grupos no so especificamente homogneos, ou seja, no determinante que todos os senhores participavam da represso institucionalizada, nem tampouco todos os indivduos de origem africana tinham uma percepo de luta coletiva contra a ordem escravista. Esta linha de interpretao fica mais fcil de ser apreendida quando encaramos a escravido para alm de um sistema social; quando a percebemos como uma relao pessoal, podemos identificar que os conflitos no se davam apenas na

    11oposio entre senhores e escravos intermediada apenas pelas aes violentas. Pretendemos estudar a escravido como um modelo social, no como um objeto dotado de propriedades, mas sim como um conjunto de inter-relaes mveis dentro

    12de configuraes em constantes adaptaes.As interaes se davam em diversos aspectos da dinmica das relaes sociais,

    fossem elas dentro de um controle, considerados pelos senhores e pelas autoridades como elementos fundamentais para a ordem social, ou dentro de situaes de

    10 Ver REIS, Joo Jos e SILVA, Eduardo. Negociao e conflito: a resistncia negra no Brasil escravista. So Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 70. 11 Ver LARA, Silvia H. Campos da violncia: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 12

    Cf. LEVI, Giovani. A herana imaterial: trajetria de um exorcista no Piemonte do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p. 17.

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  • desordem social, por conta de formas de resistncia condio escrava. Flvio dos Santos Gomes demonstra esta complexidade social no contexto da formao e manuteno de quilombos na regio do rio Iguau.

    Podemos ver em todas estas conexes e contatos entre quilombolas, cativos taberneiros, que tambm podia envolver caixeiros viajantes, mascates, lavradores, agregados, arrendatrios fazendeiros e at mesmo autoridades locais (muitas das quais proprietrias de fazendas), bem mais do que um simples negcio baseado apenas numa relao econmica.(...) Era um verdadeiro campo negro no qual as aes dos variados agentes histricos envolvidos tinham lgicas prprias,

    13intercruzando solidariedades e conflitos.Com o presente texto, pretendemos negar a condio de apenas mercadoria, de

    coisa dos escravos, negando as posies da conhecida escola sociolgica paulista, representada por Octvio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes, que relegaram a resistncia escrava a uma abordagem secundria em funo da tese da

    14coisificao do escravo . Apesar de serem submetidos a uma migrao compulsria, por conta do trfico negreiro, e por estarem inseridos em um extrato social cuja precariedade de sobrevivncia evidente, os escravos eram pessoas, agentes, elementos fundamentais nas relaes e nas transformaes sociais de seu tempo, tendo notoriedade no apenas pela condio de escravo, mas tambm pelas tenses e interaes, intencionados em conquistar a liberdade ou melhores condies de vida e trabalho, que cunhavam com agentes de outros grupos sociais, que com eles configuravam a sociedade da poca.

    Portanto, estamos considerando os escravos como agentes sociais, capazes de demonstrar, negociar e impor os seus interesses atravs de diversas estratgias. Neste sentido podemos considerar os argumentos de Sidney Chalhoub:

    Os negros tinham suas prprias concepes sobre o que era cativeiro justo, ou pelo menos tolervel: suas relaes afetivas mereciam algum tipo de considerao; os castigos fsicos precisavam ser moderados e aplicados por motivo justo; havia maneiras mais ou menos estabelecidas de os cativos manifestarem sua opinio no momento decisivo da

    15venda.Assim, mesmo com as diversas situaes adversas que a escravido poderia

    impor, os escravos eram capazes de constituir argumentos que lhes possibilitassem

    13GOMES, F. S. Histria de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro

    sculo XIX. Dissertao de mestrado. Campinas: Unicamp, 1992, p. 75. 14

    Entre outros, cf.: CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e escravido no Brasil meridional. So Paulo: Difel, 1962; IANNI, Octvio. As metamorfoses do escravo. So Paulo: Difel, 1962; FERNANDES, Florestan. A integrao do negro na sociedade de classes. So Paulo: Edusp, 1965. 15

    CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravido na corte. So Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 27.

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  • apresentar suas prprias vises da escravido, o que tornava o cenrio das relaes sociais ainda mais complexo, principalmente quando entendemos esta sociedade para alm de uma configurao social bipolar, como o caso da Vila de Iguau, no sculo XIX, quando podemos identificar pelo menos trs grupos sociais especficos: senhores, escravos e homens livres pobres.

    Interessa s nossas reflexes esta configurao social, formatada por trs segmentos especficos. Os senhores, que eram os proprietrios de terras e escravos, detentores de poder poltico e prestgio, elementos que participavam da administrao pblica, caracterizando a formao de uma elite local. Os escravos, que eram os africanos e seus descendentes que, a partir do trabalho compulsrio, formavam a mo-de-obra fundamental para a mobilidade econmica da regio. Apesar de viverem a condio de propriedade pertencente a outro, lutavam contra a situao escrava atravs de vrias formas de resistncia, sejam elas formas coletivas, como a organizao de quilombos s margens dos vrios rios da regio, ou atravs das negociaes que lhes rendiam determinadas autonomias, o que podemos considerar como conquistas individuais e cotidianas. E os homens livres pobres, que eram pessoas que formavam o segmento dos desprestigiados, pois apesar de no estarem sob a condio de propriedade, figuravam na marginalidade poltica, social e econmica. Nesta categoria so identificados os negros libertos, alm de agricultores

    16pobres, tropeiros, mestios, taberneiros, entre outros.Com a configurao social descrita, podemos perceber que no existe

    exatamente uma bipolaridade social entre senhores e escravos, pois um terceiro segmento social os homens livres pobres j contribui para a desmitificao desta idia, alm da prpria heterogeneidade no interior dos grupos sociais descritos.

    Nesse sentido, podemos considerar que a luta contra a condio escrava se dava de formas diversas, desde uma atividade realizada de forma incorreta, propositadamente, at as fugas coletivas, passando por animosidades individuais, pessoais e violentas, como um suicdio, por exemplo.

    A resistncia escrava, ocorrida no Recncavo da Guanabara, durante o sculo XIX, no se deu apenas atravs de formao de comunidades quilombolas. As relaes complexas figuradas por pessoas com diversidades de identidade nos permitem constatar que a resistncia era constante, realizada atravs das tenses e das interaes tpicas do regime escravista e da sociedade que se configurou neste perodo.

    A proliferao de quilombos e a formao de uma rede de solidariedade que se formou em torno de sua manuteno, de acordo com os diversos interesses dos agentes formadores desta rede, so, sobretudo, um smbolo da resistncia escrava no Recncavo da Guanabara. Esta rede de solidariedade era formada pelos prprios quilombolas, pelos taberneiros, que lucravam com o comrcio de lenha, bem como por outros escravos que estavam inseridos em categorias de atividades que lhes permitia uma certa autonomia e uma ampla circulao nos espaos de negociao da

    16Ver BEZERRA, Nielson Rosa. Rebeldia e represso na Baixada Fluminense sculo XIX. In Hidra de

    Igoass: Cadernos de textos de Histria Local e Regional. Ano II, edio especial. Duque de Caxias, Clio, 2000, p. 25-32.

    REVISTA PILARES DA HISTRIA - MAIO 2003REVISTA PILARES DA HISTRIA - MAIO 2003 13 13

  • regio, como o caso dos escravos barqueiros e dos escravos do mosteiro de So Bento, da Fazenda Iguau. Percebemos que alguns dos agentes desta rede eram escravos que utilizavam a sua autonomia para atender os seus prprios interesses,

    17sejam eles de carter econmico, ou mesmo social.Tendo por base o Livro de Registro do Escrivo do Juiz de Paz da Freguesia de

    Santo Antnio da Jacutinga, aberto no Rio de Janeiro em 11 de junho de 1831, pelo 18vereador Antnio Gomes Brito , podemos inferir que a autonomia escrava era

    bastante significativa, pois o nmero considervel de alforrias que so negociadas entre os escravos e seus senhores nos permite, inclusive, elaborar a hiptese do acmulo monetrio entre os escravos atravs de trabalhos que lhes permitam um

    19ganho razovel . Por ser uma regio de caractersticas predominantemente agrrias, de incio entendemos a roa e o cultivo de produtos em feriados e dias santos como a principal atividade em funo da autonomia. No entanto, se considerarmos que esta regio, de forma geral, foi um importante entreposto comercial do ouro mineiro (sc. XVIII) e do caf do Vale do Paraba (sc. XIX), poderemos considerar uma multiplicidade de atividades econmicas para alm do cultivo e do escoamento. Sendo assim, as atividades em que os escravos eram empregados tambm se multiplicavam, podendo eles ter outros ofcios que permitiam a autonomia, o acmulo de capital e a negociao das alforrias.

    Atravs do citado livro pudemos inferir e analisar, entre os anos de 1832 e o ano de 1871, 76 cartas de liberdade, totalizando um nmero de 91 escravos libertos. Desta forma, percebe-se que em algumas alforrias eram assinaladas a liberdade de mais de um escravo. No so raras as ocasies em que famlias inteiras negociavam e eram libertadas atravs de um nico documento, o que nos permite avaliar estratgias e negociaes coletivas para a obteno de busca da liberdade.

    Entre o total de liberdades at agora examinadas, 31% delas eram condicionais. Essas condies eram mais variadas, tais como acompanhar o senhor at a morte, trabalhar para o senhor por mais algum tempo determinado, acompanhar o senhor at uma data previamente estabelecida. Os outros 69% das liberdades eram imediatas, ou seja sem condies algumas para que o escravos pudesse seguir o seu destino e viver como se de ventre livre fosse de hoje para sempre.

    Outro aspecto bastante interessante para analisarmos as relaes entre senhores e escravos que compunham parte da configurao social da regio durante o sculo XIX, so as formas com que se deram as aquisies das liberdades. Entre o total examinado, podemos constatar que em 52% dos casos os senhores expressavam claramente que a liberdade estava sendo concedida por amor, bondade e de forma totalmente gratuita, independentemente de ser condicionada ou no. Mas em 21% das cartas analisadas no decorrer do texto, expressava-se a liberdade em valores monetrios, ou seja, ela era comprada. Em 27% dos casos, o tipo de negociao no

    17Ver GOMES, Flvio dos Santos, op. cit.

    18Esse livro faz parte do acervo documental do Cartrio da 1 Circunscrio de Nova Iguau.

    19Cf. MACHADO, Maria Helena. P. T. Em torno da autonomia escrava: uma nova direo para histria

    social da escravido. In Revista Brasileira de Histria: Escravido. V. 8, n 16. So Paulo, 1988, p. 143-160.

    REVISTA PILARES DA HISTRIA - MAIO 2003REVISTA PILARES DA HISTRIA - MAIO 200314 14

  • era identificado, ou seja, o documento, apesar de no expressar valores, tambm no utilizava o termo gratuito, dar, conceder, no mximo utilizada a expresso passar.

    Como os dados apresentados, podemos afirmar uma complexidade bastante interessante no conjunto das relaes sociais, pois sobre as liberdades gratuitas preciso levar em considerao a ideologia da liberdade que at a Lei do Ventre Livre deveria ser assistida pela vontade do senhor. As alforrias no identificadas tambm podem estar inseridas neste contexto, sendo a ausncia de uma precisa definio fruto de diversas possibilidades, desde a prpria forma da redao do documento at as presses que o escravo conseguia exercer na negociao ou at mesmo a chamada ideologia da alforria.

    As alforrias declaradas oriundas de uma negociao monetria com valores expressos nas cartas de alforria representam 21% do total, o que nos permite considerar um interessante poder de acmulo de peclio para este fim, atravs de uma autonomia do trabalho escravo, bem como um interessante poder de negociao por parte dos escravos, j que na maioria das vezes ausente o nome de intermedirios. Ainda sobre o poder de negociao, imprescindvel assinalar que toda alforria negociada, sejam em quais campos que a possamos enquadrar, pois aes das mais variadas eram fatalmente exercidas para que o escravo recebesse sua alforria gratuitamente e pelo amor de seu senhor. A autonomia e o poder de negociao dos escravos tornam-se ainda mais intrigantes quando nos deparamos com a diviso por sexo dos libertos: homens, 42%; mulheres, 58%. Estes nmeros demonstram que os homens, que eram maioria entre os

    20quilombolas, apresentados por Flvio Gomes, tambm participavam de aes pela liberdade por meio de negociaes com peclios adquiridos de suas atividades sejam na roa ou em outras atividades oriundas de uma regio de passagem. Mas a maioria dos libertos eram mulheres, que tinham suas opes de negociao mais ampliadas, tais como a prpria roa e as atividades no comrcio de entreposto, bem como as atividades de porta para dentro, alm do uso do prprio corpo para acumular dinheiro ou mesmo seduzir os senhores.

    Esta quantificao que apresentamos nos permite uma viso bastante interessante das possibilidades de negociao entre senhores e escravos, para alm do conflito violento em uma sociedade marcada pelas tenses provenientes do regime baseado na escravido. No entanto, acreditamos que estes dados ainda so insuficientes para um panorama ainda mais interessante dessas relaes. Para tanto, vemos como necessrio nos debruarmos nas mincias, nas particularidades desses casos, pois desta forma de abordagem todos so falsamente homogneos, quando sabemos que a sociedade, assim como os seus agentes so heterogneos, portanto, com formas diferenciadas para se relacionar atravs do regime escravista. Embora o tipo de documentao no seja muito favorvel para uma micro-anlise, imaginamos ser possvel identificar as estruturas invisveis segundo as quais esse vivido se

    21articula. Por conta de nossas limitaes segundo a tipificao das fontes,

    20GOMES, op. cit.

    21 LEVI, Giovani, op. cit.

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  • trabalharemos, neste momento, com situaes exemplares de algumas mensuraes feitas anteriormente, de forma que tenhamos, mesmo que reduzido, um conjunto de indcios que nos possibilite identificar a complexidade social da qual estamos falando e que geralmente fica escondida por baixo do cobertor de nmeros que caracterizam algumas obras sobre o tema.

    Tomando por base as alforrias por ns classificadas como compradas, teremos uma idia generalizada desse aspecto do problema; ficaremos sabendo tambm que os escravos economizavam pequenas quantias que lhes era possvel acumular atravs das fissuras do regime, e intermediados, ou diretamente, negociavam com os seus senhores. Porm podemos intensificar a tenso e a projeo desta negociao atravs de um olhar mais cuidadoso, que nos permita inferir alm da autonomia do escravo e seu poder relativo de acumular bens, uma credibilidade no mercado, j que algumas alforrias so vendidas como se fosse a crdito. Este o caso de Simplcio Crioulo, escravo de Thom Ferreira Barbosa, cuja carta de liberdade tinha a seguinte justificativa: Pelos bons servios deixo por meu falecimento forro liberto, com a obrigao do dito escravo dar cento e dois mil e trezentos ris ao herdeiro que fica com esta carta. Mas no mesmo documento, em uma de suas margens, segundo o registro, identificamos o seguinte: Se continha mais em a dita carta = Recebi a quantia de quatro doblas.

    Estas informaes nos permitem identificar no apenas o poder de negociar sua liberdade atravs da compra, mas a perspectiva de um acmulo de dinheiro no decorrer do seu cotidiano. Esta linha interpretativa nos parece melhor argumentada com o caso da crioula Silvria, escrava de Lus de Jos de Vasconcelos, que em 19 de agosto de 1844 tem a sua liberdade condicionada registrada da seguinte forma: Concedo-lhe a liberdade sendo de baixo das condies seguintes de me acompanhar e servir durante a minha vida e por meu falecimento.

    Este seria mais um registro de uma liberdade condicionada se mais a diante, no mesmo livro, no encontrssemos o seguinte registro sobre a mesma crioula e o mesmo senhor: Desisto da Carta que tem a condio da dita escrava me servir enquanto eu vivo, mas agora porm como eu tinha recebido da mesma a quantia porque foi avaliada no Inventrio que a recebi 250 mil ris e por esta razo fao esta carta para que da data dela fao goze de plena liberdade. Portanto, possvel problematizar para alm de classificaes generalizantes em liberdades condicionadas e liberdades definitivas atravs de comparaes de acordo com as percentagens numricas de cada uma delas. Os exemplos aqui apresentados j nos permitem atentar para detalhes cujos mtodos globalizantes nos furtam de termos uma idia mais clara das complexidades.

    Sobre o poder de acmulo de dinheiro para uma possvel compra da liberdade, bastante interessante o caso da parda Luza, de 40 anos, e sua filha de 7 meses, ainda no batizada, ambas escravas de Joo Dias Machado, cuja carta de liberdade, de 1871, dizia o seguinte: as quais dou igual e plena liberdade para dela gozar, como se de ventre livre nascesse, por ter recebido da mesma a quantia de sete contos e vinte mil ris, em dinheiro deste imprio. Esta seria mais uma carta de alforria que dava a liberdade, adquirida atravs da compra, me e sua filha. Porm entre todos os registros de cartas de liberdade analisados, sem dvida estas foram as que tiveram o valor mais elevado.

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  • Seria bastante esclarecedor para as nossas reflexes se comparssemos o valor dos escravos inventariados junto com os bens do comendador Bento Domingos Viana,

    22em 1869. Entre os 15 escravos arrolados neste inventrio, o de maior valor Faustino Moambique, Lancheiro de trinta e oito annos, por um conto e trezentos mil ris. (1:300$000). Entre os demais bens, podemos destacar Uma caza para vivenda, e armazem contiguo a mesma que serve para negocio, tudo digo negocio e Porto de receber Cargas, tudo bastante arruinado do Capim acharo valer, de dous contos e duzentos mil ris. (2:200$000).

    Deste modo, podemos supor que as avaliaes so do mesmo perodo, ou seja, o contexto do regime escravista pode ser considerado o mesmo. Numa abordagem globalizante, nos dois casos estamos tratando de avaliao de escravos, normalmente os do sexo masculino, que tinham um ofcio definido e de idade mediana e eram os mais bem avaliados. Mas como podemos perceber, a diacronia bastante incmoda para um olhar superficial, que seria incapaz de nos permitir ampliar nossas reflexes, caso nos contentassemos com o debruar sobre as aparentes sincronias.

    Os exemplos apresentados so apenas uma pequena demonstrao do que achamos que possvel realizar nos estudos desta natureza. Principalmente, por conta da extenso deste texto, no poderemos nos alongar, mas estamos conscientes de que ainda necessrio maior consistncia em nossas crticas e em nossas posies analticas, mas esperamos contribuir para a efervescncia deste debate no seio da produo acadmica.

    Infelizmente, o tipo de fonte no bastante suficiente para uma anlise segura das particularidades e mincias que nos revelariam as riquezas provenientes dessas relaes baseadas nas negociaes, principalmente quando consideramos as tenses inseridas em qualquer relao social, principalmente se tratando do regime escravista. Porm, esperamos que possamos contribuir para o enriquecimento do debate acadmico sobre a escravido e sobre a Baixada Fluminense, atravs de um dilogo constante do estudo de uma Histria Local e Regional com o mtodo da

    23microanlise. bom ressaltar que no de nossa inteno desmerecer qualquer mtodo

    historiogrfico, bem como elucidar todas as complexidades sociais que se avultaram na regio do Recncavo da Guanabara durante o sculo XIX, mas importante destacar que memorialistas e historiadores sejam capazes de investigar para alm das problemticas aparentes e, em nossa concepo, isso possvel atravs da ampliao dos mtodos de abordagem sobre o estudo de uma Histria Local e Regional, atravs da anlise micro-histrica que s renovadora se conseguir revelar seu carter bifronte, ou seja, se contemplar a diacronia com a mesma reverncia com que

    24contempla a sincronia. Neste caso, propomos uma maior ateno para os detalhes, os indcios, onde poderemos, alm de analisar as estruturas sociais, desenvolver tambm um estudo das mentalidades coletivas, tornando-se isso possvel quando nos dispusermos a exercer o processo de investigao histrica, ampliando o campo de viso e de interpretao do objeto, atravs de um olhar microscpico e regionalizado.2223

    24

    CEMPEDOCH-BF. Inventrio do Comendador Bento Domingues Viana. Vila de Iguau, 1869.Sobre o conceito de microanlise ou micro-histria, ver VAINFAS, Ronaldo. Micro-histria: os

    protagonistas annimos da Histria. Rio de Janeiro: Campus, 2002.Ver FREITAS, op. cit., p. 21.

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  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    _________. Rebeldia e Represso na Baixada Fluminense - Sculo XIX. In Hidra de Igoass: Caderno de Textos de Histria Local e Regional. Ano II - Edio Especial. Duque de Caxias, Clio, 2000. P. 25-32.

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    FORTE, Jos Matoso Maia. Memria da Fundao de Iguass. Rio de Janeiro: Typ. Jornal do Comrcio, 1933.

    FREITAS, Marcos C. Da Micro-histria Histria das Idias. S. Paulo: Cortez, 1999.GOMES, F. S. Histria de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio

    de Janeiro sculo XIX. Dissertao de Mestrado. Campinans: Unicamp, 1992.IANNI, Octvio. As metamorfoses do escravo. S. PAULO: Difel, 1962. MACHADO, Maria Helena P. T. Em torno da autonomia escrava: uma nova direo

    para a histria social da escravido. In Revista Brasileira de Histria: Escravido, v. 8, n 16. So Paulo, 1988, p. 143-160.

    LARA, Silvia H. Campos da violncia: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

    LEVI, Giovani. A herana imaterial: Trajetria de um exorcista no Piemonte do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.

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    REIS, Joo Jos e SILVA, Eduardo. Negociao e conflito: a resistncia negra no Brasil escravista. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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  • ESTRADA DE FERRO RIO D'OURO A FERROVIA DAS GUAS

    1Guilherme Peres

    1Membro da Academia de Letras e Artes de Nova Iguau e da Academia de Letras e Artes de So Joo de

    Meriti. Fundador do Instituto de Pesquisas e Anlises Histricas e de Cincias Sociais da Baixada Fluminense IPAHB.

    Rio de Janeiro civiliza-se. Essa era a manchete dos jornais em 1851, quando a empresa de Irineu Evangelista de Souza, o futuro baro de Mau, trocava os lampies pblicos de azeite de peixe por bicos de gs e iniciava, Oem seguida, a construo da primeira ferrovia do Brasil, inaugurada em

    1854 com destino a Petrpolis. As primeiras linhas de bonde puxado a burro eram instaladas nas Laranjeiras, dando incio aos transportes coletivos da cidade. D. Pedro II, chegando de uma exposio na Filadlfia em 1876, trazia consigo um aparelho telefnico presenteado por Graham Bell, incio dos servios telefnicos que, aprovados, foram instalados nas estaes ferrovirias da Estrada de Ferro D. Pedro II, numa extenso de 70 quilmetros, a partir do campo de Sant`Ana. A inaugurao dos cabos submarinos telegrficos para a Europa foi um acontecimento que colocava o Rio entre as cidades mais progressistas do mundo durante aquela segunda metade do sculo XIX.

    Entretanto, a gua ainda no havia chegado s torneiras do carioca. Carregada em barris e latas na cabea dos escravos, vendidas de porta em porta, era colhida em algum dos chafarizes das esquinas, que ainda mantinha o hbito, nos hotis e residncias, das pequenas bacias e jarros de loua com gua nos quartos, para a lavagem do rosto e adjacncias.

    Era necessrio, urgentemente, resolver o abastecimento de gua na cidade. O empreiteiro Antnio Gabrielli, que trazia consigo, como carta de recomendao, o trabalho de abastecimento feito em Viena, constando de duas cartas de crdito de 50.000 libras cada uma, ganhou a concorrncia que compreendia a captao da gua na serra do Tingu, na Baixada Fluminense, aberta pelo governo imperial.

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  • Desde 1870, o engenheiro Antnio P. Rebouas, visitando essa regio, havia indicado os mananciais do rio d'Ouro e da serra do Tingu para o abastecimento da cidade. Em um relatrio datado desse ano, aquele notvel engenheiro, tambm indicava a necessidade de ser construdo um reservatrio com 100 milhes de litros de capacidade...implantados no centro da cidade.

    Sentiu-se logo a dificuldade para o transporte dos tubos de ferro que chegariam da Inglaterra em busca daquela fonte, onde a gua seria recolhida em grandes reservatrios e conduzida aos menores, para ser distribuda cidade. Uma estrada de ferro seria a soluo. Foram importados tambm trilhos, locomotivas e demais materiais ferrovirios para a grande empreitada.

    Estvamos em agosto de 1876. Ergueu-se na praia do Caju uma ponte sobre estacas, com guindastes para o recolhimento do material chegado por via martima. Os trilhos foram assentados em direo ao subrbio de Benfica e Manguinhos , na rua da Alegria, paralela estrada Real de Santa Cruz, em um trecho mais tarde denominado Suburbana. Na estrada da Pavuna, hoje Automvel Clube, corriam os trilhos em direo quele lugarejo para alcanar a estrada da Polcia, onde seriam assentadas suas linhas at Engenho do Brejo, hoje Belford Roxo, seguindo at os mananciais do rio d'Ouro, perfazendo um trecho de 53 quilmetros. Estava assentado o tronco bsico para o abastecimento do Rio de Janeiro.

    Sucessivamente, foram captados os rios So Pedro, Santo Antnio e o rio d'Ouro, cujas obras de aduo ficaram prontas em 1880. Ao trmino desse trabalho, foi entregue tambm o reservatrio do Pedregulho, com capacidade de 74 milhes de litros, mas, apesar de todo esse esforo de abastecimento, com o aumento da populao, sobreveio uma grande seca nos ltimos anos do reinado de D. Pedro II, causando o episdio conhecido como gua em seis dias, comentado no captulo final deste ensaio.

    TRANSPORTE DE PASSAGEIROSSomente em 1883, em carter provisrio, comearam a circular os primeiros

    trens de passageiros que partiam do Caju em direo represa rio d'Ouro.A Baixada Fluminense seria mais tarde dividida em trs sub-ramais: ramal de

    So Pedro, hoje Jaceruba; ramal de Tingu, que se iniciava em Cava (estao Jos Bulhes), e o ramal de Xerm, partindo do Brejo, hoje Belford Roxo.

    Em 1896, os trens de passageiros passaram a circular com melhor regularidade partindo do Caju, atravessando a rua Bela, Benfica etc., at passar por Iraj, em direo Pavuna.

    Nesta estao, ltima parada antes de adentrar a Baixada, v-se o antigo canal onde ficava o porto rodeado de trapiches outrora pertencentes ao comendador Tavares Guerra. Prximo a ele, uma esttua em ferro de mulher oferecia gua aos passantes por uma cornucpia chamada Bica da Mulata.

    Nas terras de Meriti, os trilhos foram assentados sobre a antiga Estrada da Polcia, que, partindo da Pavuna, iam encontrar-se com as terras de Iguass, em continuao estrada que, vindo da Corte, finalizava no rio Preto.

    A prxima estao Vila Rosaly, que substituiu a Parada Alcntara, e homenageou a esposa do doutor Rubens Farrula, iniciativa da Empresa Territorial Lar

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  • Econmico, loteando as terras denominadas Morro da Botica ou dos Barbados, em referncia aos pastores israelitas que residiam prximo ao cemitrio dessa comunidade e usavam barbas longas.

    Coelho da Rocha - Recebeu o nome do proprietrio dessas terras, Manoel Jos Coelho da Rocha, que as cedeu para a passagem dos trilhos e colocao dos dutos, lutando posteriormente para sua transformao em transporte de passageiros. Seu neto Almerindo Coelho da Rocha, herdeiro do que sobrou da antiga fazenda criada por Cristvo Mendes Leito em 1739, desfez-se dela, vendendo-a para loteamento.

    Belford Roxo - Antiga fazenda do Brejo e anteriormente Calhamao, lembrando o antigo canal do Calhamao aberto pelo visconde de Barbacena (seu antigo proprietrio), e que formava um brao do rio Sarapuy. Sua estao recebeu este nome em homenagem a Raimundo Teixeira Belford Roxo, chefe da 1 diviso da inspetoria de guas. Havia em frente a esta estao um artstico chafariz de ferro jorrando gua, que o povo denominou Bica da Mulata, cuja figura mitolgica de uma mulher branca sobraando uma cornucpia oferecia aos passantes o lquido precioso, que a oxidao do ferro transformou em mulata. Cpia da esttua existente na Pavuna.

    Areia Branca - Como o nome sugere, esta parada era cercada de extenso areal.Helipolis - De Hlios = Sol e polis = cidade, ou Cidade do Sol. Denominao

    de uma antiga cidade do Egito cujos habitantes adoravam o deus R.Itaipu - De Ita = pedra + ip = onde a gua faz rudo, do tupi-guarani, onde a

    gua estronda. Retiro - Nome do rio que esta ferrovia transpunha (atual Miguel Couto).Figueira - Nome do proprietrio das terras em que foram assentados os trilhos.Jos Bulhes - Tambm proprietrio da localidade pertencente povoao de

    Cava, incio de outro ramal com destino a Tingu.Cachoeira - Em suas terras corriam volumosas guas que desciam da serra do

    Comrcio, compostas dos rios Sabino e Boa Vista, servindo s adutoras do So Pedro.Paineira - Homenageia uma rvore abundante no Sudeste, da famlia das

    malvceas (atual Adrianpolis).Rio do Ouro - Faz jus ao rio do mesmo nome que corre pouco alm de sua

    estao.Santo Antnio - Neste trecho, a linha atravessava as terras da fazenda da

    limeira, pertencentes Finnie, Irmos & Cia., e corria sobre trs pontilhes.Saudade - Parada que assimilou o nome de antiga fazenda da regio ainda dos

    tempos das sesmarias, pertencente a uma famlia portuguesa.So Pedro - Era o ponto final da linha deste ramal, situada na base da serra do

    Couto. Os trilhos, porm, prosseguiam para o caso de manuteno at atravessarem os crregos Maria da Penha, Jequitib e o rio So Pedro, chegando casa do administrador, nos limites do morgadio de Mato Grosso e nas vizinhanas das terras do marqus de So Joo Marcos, Pedro Dias Paes Leme, descendente de Ferno Dias, o caador de esmeraldas (atual Jaceruba).

    Sub -ramal do TinguJos Bulhes - Incio dos trilhos que partiam em direo Norte em busca da

    raiz da serra do Tingu.

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  • So Bernardino - Situada em terras da fazenda So Bernardino, pertencente a Jacintho Manoel de Souza e Mello, um dos opulentos comerciantes da Vila de Iguass, com a firma Soares & Mello, onde se v sua bela casa assobradada em uma elevao do terreno e sinalizada por um caminho que, partindo da estao e ladeado por uma alameda de palmeiras imperiais, ia terminar na entrada principal deste palacete.

    Iguass - Sinalizava a regio da antiga Vila de Iguass. Com uma estrada perpendicular linha, encontrar-se-ia esta antiga sede do municpio e um dos portos fluviais mais notveis da ento Provncia do Rio de Janeiro.

    Barreira - Prximo a esta parada, os trilhos cortam um morro argiloso, justificando seu nome. Aqui foram instaladas, nos anos 30, as granjas da Conceio, que dividiram uma rea de 200 alqueires em lotes para chcaras e stios

    Tingu - Fim de linha na velha estao de passageiros. Situada na margem esquerda da serra Velha, entretanto, seus trilhos continuavam para a direita na extenso de 6 quilmetros, at a represa do Bacuburu.

    Sub-ramal do MantiquiraBelford Roxo - Partindo desta estao em direo nordeste, a linha transpe o

    rio Botas e atinge a garganta do Manuel Igncio, cujo nome se refere a Manoel Igncio de Andrade Souto Maior Pinto Coelho, marqus de Itanham, senhor do morgadio de Matto Grosso, cujas terras pertenceram ao brigadeiro Francisco de Paula de Bulhes Sayo. Assim como a fazenda Monte Alegre, que entre seus herdeiros, contava com d. Alice Sayo, casada com o doutor Joo de Carvalho Arajo, que viria a ser diretor da Estrada de Ferro Central do Brasil.

    Aurora - Nome tambm de uma velha fazenda que existiu na regio, cortada pelos rios Sayo, Botas e o rio Baby.

    Baby - Nome da parada, herdado do rio que era atravessado um pouco antes.Parada 43 - Era antiga posio quilomtrica da parada a contar do Caju

    (42.408m).Lamaro - Do radical de lama, significa a lagoa formada pelas chuvas nas

    depresses do terreno.Mantiquira ou Mantiqueira - Antiga Joo Pinto. Deu-lhe o nome o rio em

    cujo vale estende-se a linha que se dirige s represas do Galro. a estao de entroncamento da linha do Xerm. Est situada na velha Fazenda da Posse, pertencente famlia Pereira de Sampaio. Dos mananciais que abasteciam o Rio de Janeiro, o Mantiquira o que contribua com maior volume de gua.

    Galro - Parada e fim da linha situada na antiga fazenda do cnego Galro, comprada pelo governo em 1886 ao seu ento proprietrio Manuel Ubelhart Lengruber.

    Mantiquira a Joo PintoOutro ramal partindo da Mantiquira tomava rumo norte e passava por Piedade.

    Pequena parada, aps transpor 8 bueiros at chegar em Xerm.Xerm - Situada na povoao que constituiu a sede do 6 distrito do Pilar, no

    municpio de Nova Iguau, tem seu nome originado no antigo proprietrio dessas

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  • terras, o ingls John Charing, que desde 1725, estava ocupado em alugar barcos para transporte, atravs do rio do Couto (ou Pilar), na passagem do Caminho do Ouro. Convivendo com escravos e pessoas de pouca instruo, teve seu nome modificado para Cherem e, posteriormente, definindo sua corruptela em Xerm.

    Joo Pinto - Final da linha deste sub-ramal junto represa para a captao das guas do rio do mesmo nome.

    Registro - Este sub-ramal partia de Xerm em direo s represas do Cov, Itapic, Paraso, Alfa e Perptua.

    GUA EM SEIS DIASO vero de 1888 trouxe conseqncias terrveis ao Rio de Janeiro, com a

    permanente estiagem que j durava alguns meses. Alm da seca que se anunciava nas poucas torneiras e chafarizes espalhados pela cidade, o povo sofria tambm com uma epidemia de varola que se abateu sobre a metrpole. Reunido com o Conselho de Estados, o imperador D. Pedro II resolveu abrir concorrncia para o aumento de captao de guas, que viessem suprir a populao do precioso lquido.

    Todas as propostas apresentadas relatavam um longo perodo de trabalho, justificado pela dificuldade e distncia da regio, mesmo com o aproveitamento dos reservatrios e da canalizao construdos na serra dos rgos. Note-se que esse episdio da gua em seis dias, que faz parte da histria do Rio de Janeiro, foi executado aproveitando-se todo o complexo hidrulico e ferrovirio existente, assentados 12 anos antes, e no como registram alguns historiadores, com o assentamento dos trilhos, aguadutos etc.

    Ao escrever uma carta ao jornal Dirio de Notcias, cujo proprietrio era Rui Barbosa, em maro de 1889, o jovem e recm-formado na Escola Politcnica do Rio de Janeiro, doutor Paulo de Frontin, impressionou a todos quantos a leram, pois esse afirmava que poderia aumentar o volume de gua fornecido cidade, com mais 15 milhes de litros dirios, no prazo recorde de 6 dias, ao preo de 80 contos de ris.

    O imperador mandou cham-lo para expor melhor suas idias e, dias mais tarde, junto com o ministro Teodoro da Silva, era assinado um contrato no dia 16 de maro de 1889, que tambm lhe daria o direito de usar os tubos de ferro estocados no depsito, dois trens, 800 trabalhadores, igual nmero de machados, foices, etc, tendo como seus colaboradores principais os doutores Pereira Passos, Jlio Paranagu e Diogo de Vasconcelos, assessorados por alunos da Politcnica.

    Ao transformar o Caju, estao inicial da rio d'Ouro em depsito e escritrio central, Paulo de Frontin iniciava naquele mesmo dia uma corrida contra o tempo. Dezenas de carroas, puxadas por burros e cavalos, iam transportando para a mesma estao centenas de tubos que ele pedira, e que se encontravam nos depsitos da rua Estcio de S tudo se movimentando, os operrios, as carroas, os engenheiros, os bondes e o trem especial... sob um tremendo temporal, que a todos encharcava impiedosamente.

    Na Baixada Fluminense, os trabalhadores alojaram-se na estao de Tingu e galpes vizinhos, para o incio do trabalho de captao das guas ainda no aproveitadas, da serra Velha e outras prximas, que atravs de calhas seriam conduzidas para a represa do Barrelo.

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  • A fazenda do baro de Tingu, onde se alojaram os engenheiros, recebia diariamente diversas personalidades da poca, como nos conta Brasil Gerson: Capistrano de Abreu, Coelho Neto e Barata Ribeiro, entre outros, que iam visit-los e incentiv-los, citando trechos de Coelho Neto que mais parecem trechos de ensaios literrios, descrevendo os trabalhos noturnos na floresta: com archotes nas mos, como num fantasmagrico e lento ballet de vaga-lumes gigantes.

    No final dos seis dias a cidade recebia, no os 15 milhes de litros prometidos, mas 16. Recebido triunfalmente pela populao na estao do Caju, o doutor Frontin desfilou num 'landau' puxado por belos cavalos brancos, em manifestao promovida pelo Derby Clube e a Escola Politcnica, incluindo uma visita a vrias redaes de jornais.

    A MONTANHA DAS GUASContornada pelo paredo da serra do Mar, a Baixada Fluminense tem o

    privilgio de possuir em seu subsolo, uma das maiores riquezas naturais da regio: a gua. Entretanto, a histria revela a angstia durante muitos anos de seus habitantes em t-la canalizada para seu uso. Explorada pelo Rio de Janeiro desde os tempos coloniais, a devastao dessas matas tem sido responsvel pelo nefasto trabalho de eroso e dificultando em sua fonte o armazenamento de gua das chuvas. Vtima da extrao de lenha e carvo para as locomotivas e uso domstico, teve na estagnao de suas nascentes a grande responsvel pelas febres palustres que atacaram a regio na segunda metade do sculo XIX.

    Para atender o abastecimento do precioso lquido na capital, o imperador anunciou a compra de terras regadas por gua potvel para abastecimento da Corte junto ao vale do rio So Pedro. Apresentaram-se diversos proprietrios, entre eles o doutor Manoel Peixoto de Lacerda Werneck e sua mulher, de Vassouras; e d. Maria Isabel do Nascimento, de Sant'Ana das Palmeiras, encabeando uma dzia de assinaturas na proposta endereada ao monarca: que tratando o governo de vossa Magestade Imperial para o estado, dos diversos terrenos junto ao rio So Pedro, necessrio para que tenha lugar a canalizao e abastecimentos da gua para esta corte, e sendo suplicantes proprietrios de parte desses terrenos, vem oferece-los ao governo pelo preo razovel que se ajustar, mediante acordo com os suplicantes.

    Segundo o saudoso professor Ruy Afrnio, estes terrenos com mais de 400 alqueires, foram vendidos por cem contos de ris. Mesmo na poca, quantia irrisria para tal rea, acrescida da doao de terras feita por Francisco Pinto Duarte, o baro de Tingu.

    Canalizadas as guas do rio So Pedro em 1877 e seus afluentes, seguiram-se as do rio D'Ouro, em 1880 com os seguintes aguadouros: Limeira, Honrio, Soldado Nery, Santo Antnio e d'Ouro, que vo engrossar as nascentes do Sabino e Augusta.

    Na serra do Tingu, em 1893, foram captados os crregos do Macuco, Bacur, Esperana, Serra Velha, Esperana, Comprido, Bacubur e Ponta.

    Em Xerm, nova adutora construda em 1908, na busca de seus mananciais: Paraso, Alvo, Perptua, Joo Pinto e Registro.

    As guas do Mantiqueira, canalizadas em 1912, sero comentadas em captulo parte deste ensaio, transcrevendo o trabalho insalubre a que ficaram expostos os

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  • trabalhadores naquela regio. Conduzidas para essa adutora, vieram se juntar os mananciais Fazenda, Ribeiro, Mantiqueira, Guerra, Aniceto, Galro e Mato Grosso.

    Ao final desses trabalhos, cinco grandes adutoras atravessavam o solo da Baixada Fluminense em direo ao Rio de Janeiro, sem que aqui ficasse uma gota. A do So Pedro juntava-se com a do rio d'Ouro, para se juntar com a do Tingu em Vila de Cava. Essas trs vo se encontrar com mais duas, a do Xerm e do Mantiqueira em Belford Roxo, da seguindo as cinco para o Pedregulho.

    MANTIQUEIRAO inferno das guas No inverno de 1912, um reprter da Gazeta de Notcias, tradicional jornal

    que circulava no Rio de Janeiro, visitou a regio da Mantiqueira, ltimo baluarte a ser vencido na guerra de abastecimento das guas para a capital, e deixou registrado o sofrimento de centenas de trabalhadores e dirigentes, atacados pelas febres palustres que grassavam naquele territrio.

    Ao embarcar na estao de Alfredo Maia, s 7 horas, na velha maria-fumaa, o reprter registra a lentido da carroa, que se arrasta entre o bucolismo da regio rural, quarenta e cinco minutos depois chegamos a estao de Inhama, onde aguardamos a sada do trem da Estrada do Rio d'Ouro que partiu as 8:05. Em sua sonolenta viagem, desfilam, atravs da janela, grandes roas, campinas vastas, pastos de gado, que o reprter, num rasgo de inspirao comenta: proporo que a locomotiva avanava o panorama crescia em beleza, em encanto e em surpresas suaves. Em um vago de primeira classe, nota a presena de apenas trs passageiros, e nos dois vages restantes atulhavam-se um bando de gente de roupas grossas e mos calosas.

    Ao chegar estao de Belford Roxo, antigo Brejo, fica espera do trem com destino a Xerm, pois aqui comea o ramal. O vago que compe o comboio chama-se lastro, puxado pela locomotiva nmero 38, e consiste em uma prancha aberta que conduz os operrios que trabalham na canalizao das guas potveis. A linha tem inmeras subidas e descidas e atravessa uma zona pitoresca, pelo menos para quem l vai pela primeira vez, ora corta rampas altssimas, ora corta pntanos colricos de vegetao, ora margina florestas de rvores floridas. Uma msica suave se envolvia com o ranger dos trilhos e os silvos breves da locomotiva, quando um operrio tocava harmnica de boca enquanto outros jogavam domin ou merendavam.

    Atravessando o rio Iguass, o reprter anota a presena de imensos pntanos a margear os trilhos, resultado da devastao sofrida durante sculos de explorao. s 4:40 o lastro chegou ao lugar denominado ponta dos trilhos, kilometro 27.

    Em Mantiqueira, posto central do imenso exrcito de operrios que trabalham na serra, registra-se uma centena de ranchos de sap dispostos sem simetria. Em um armazm onde os trabalhadores fazem compras e o proprietrio deve enriquecer antes de ns termos gua, dirigido por um tal, seu Peixoto. Os operrios sem dinheiro, compram ali pelo sistema de vales ao portador assinados pelo chefe da turma. O troco dado por meio de fichas, que s tem valor na mesma casa.

    Em frente ao armazm, um grande barraco coberto de sap servia de hospital, e ali vamos encontrar um mdico sanitarista j famoso trabalhando no Servio de

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  • Sade Pblica: o doutor Carlos Chagas, junto com o doutor Arthur Neiva, a cargo dos quais est a profilaxia da febre palustre. Construdo para abrigar 40 enfermos, s contava com 12 leitos. Inaugurado no dia 20 de maro, quarenta dias depois, isto , no dia 30 de abril, tinham dado entrada nesse barraco necessrio 119 enfermos, todos, absolutamente todos, de febre palustre.

    Mais de mil homens, contratados para captarem gua na serra do Mantiqueira, agora lutavam para salvar a vida, vtimas dos desmatamentos que transformaram charcos e pantanais no celeiro da febre amarela. Recolhidos quele hospital, com o nmero reduzido de leitos, o reprter deve ter visto homens semimortos envolvidos em lenis deitados no solo. Olhando as janelas, tapadas de telas de arame, para evitar a entrada dos mosquitos, verdadeiros enxames pelo ar.

    O volume de gua captado de 150 milhes de litros... acham-se nesse servio 1400 operrios distribudos da maneira seguinte: 500 operrios para a construo da Joo Pinto, que dista 6 kilometros do Mantiquira, sob a direo dos Drs. Lima e Silva e Gonalves Novaes; 300 operrios para a canalizao das guas, sob a direo do Dr. Borges Fortes; 500 operrios em Mantiqueira, Galro e Mato Grosso sob a direo dos Drs. Galdino Faria e Imbuzeiro. O chefe do prolongamento da estrada at o kilometro 37 o Dr. Joo Silva, ao cargo dos qual esto as obras de arte da estrada.

    O reprter, obrigado a pernoitar no acampamento por falta de transporte, registra : foram armados em frente de cada tenda, grandes fogueiras para espantar os mosquitos, verdadeiras nuvens de pernilongos. De onde estava, divisa o paredo da serra dos rgos: tocado ao luar o negro spero da serra, ns estvamos nas fraldas dos rgos, a pegar entre os horrores da morte, a gua para a civilizao.

    No delrio da febre, alguns gritavam vozes desconexas que agrediam o silncio do hospital, a poucos metros de onde estavam acampados: jacars! H muitos jacars! Vivem nos charcos os jacars. Os jacars e os mosquitos nesta terra nascem dos pauis como o capim na terra, e eu tenho medo dos jacars.

    Nossa homenagem a esses trabalhadores annimos e ao reprter da Gazeta de Notcias que, em 1912 transitou pela histria, deixando registrado para a posteridade o nico depoimento de que temos notcia em forma de reportagem, hoje transformado em um fragmento de jornal. Reportou a desdita desses homens em frangalhos, mortos-vivos perdidos na imensido da serra, desafiando a morte na captao de gua potvel to necessrio vida. Relatou a epopia da luta de conquista do solo na Baixada Fluminense, em busca de melhores condies sociais, e nos orgulhamos hoje de transmitir esse conhecimento s novas geraes.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    PEIXOTO, Ruy Afrnio. Imagens Iguaanas. Edio do autor.BARROS, Ney Alberto Gonalves. Estrada de Ferro Rio D'Ouro. Rio de Janeiro, Apostila, 1999 (mimeo).SANTOS, Noronha. Meios de transporte no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1996.VASCONCELOS, Max. Vias Brasileiras de Comunicao. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1935.

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  • O DEBATE TNICO E A UNIO CULTURAL DOS HOMENS DE COR EM DUQUE DE CAXIAS

    presente artigo pretende provocar uma reflexo acerca do debate tnico construdo em Duque de Caxias nos anos 50 e 60 do sculo XX. Ao mesmo tempo, suscitar a importncia de um trabalho com maior flego em torno Oda condio do negro na Baixada Fluminense e das diferentes falas acerca

    do debate tnico no perodo citado.

    O debate tnico e a Unio Cultural dos Homens de CorA populao caxiense nos anos 50 e 60 constitui-se de forma significativa pela

    presena de negros. Segundo o censo de 1955, a populao de Caxias era composta por maioria de negros e pardos. Evidentemente que ainda era necessrio relativizar o nmero da populao branca, visto que, usualmente, a concepo do que vinha a ser negro restringia-se cor da pele. Logo, apesar de ser filho de negro, um indivduo com a pele mais clara poderia ser considerado branco ou moreno.

    1Marlcia dos Santos SouzaApresentao

    1 Mestre em Histria pela Universidade Federal Fluminense / UFF. Professora da rede pblica estadual.

    Diretora do SEPE/Duque de Caxias. Chefe do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Duque de Caxias / FEUDUC. Diretora de Pesquisa do Centro de Memria, Pesquisa e Documentao de Histria da Baixada Fluminense / CEMPEDOCH- BF.

    Classificao por cor

    Homens Mulheres Total

    Brancos 22.002 20.708 42.710 Pretos 10.695 10.482 21.177

    Amarelos 15 13 28 Pardos 14.108 13. 678 27.786 Total 47.173 45. 286 92.459

    OBS: Somando-se o nmero de populao negra e parda teremos um total de 48.968.Fonte: Censo Demogrfico do Estado do Rio de Janeiro. Srie Regional, Volume XXIII,

    Tomo 1. RJ: IBGE, 1955:69.

    Populao Presente por Sexo e Cor no Municpio de Duque de Caxias Ano: 1955

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  • Apesar dessa presena, os registros e pesquisas em torno do negro na Baixada so incipientes. Essa presena permanece ainda hoje no silncio e no esquecimento da historiografia. Durante o nosso levantamento de fontes conseguimos localizar nas obras de Santos Lemos e nas de Solano Trindade a presena negra em Caxias nos anos 50 e 60.

    No caso do primeiro, Caxias aparece como lugar da excluso do negro. Ele publicou trs obras narrativas de memrias da cidade nos anos 50 e 60: Sangue no 311 (1967), O Negro Sabar (1977) e os Donos da Cidade (1980). O conjunto de suas obras faz parte de uma srie nomeada Crimes que Abalaram Caxias.

    Santos Lemos apresentado na obra Sangue no 311 por Lauro da Silva Mello. Inicialmente como jornalista, depois como escrivo de polcia, como advogado e em fins de 60, como delegado de uma cidade interiorana do estado. Segundo ele, Santos Lemos era um homem baixo, simples, que conhecia o submundo naquele perodo, descrevendo-o com habilidade em suas obras. Alguns chegaram a apont-lo como o socilogo da cidade. Las Costa Velho o descreve na mesma obra como a testemunha dos atos selvagens.

    Durante mais de 15 anos Santos Lemos viveu neste mundo. Chegou a ser correspondente de 8 jornais da antiga capital federal... O ambiente asqueroso chegou a

    2transform-lo num alcolatra.O prprio Lemos apresentava-se como aquele que estava to envolvido com o

    3submundo que a ele havia se incorporado. Quando Santos Lemos escreveu O Negro Sabar, j era delegado, reprter e membro da Academia Duquecaxiense de Letras e Artes. Nesta obra, narra a trajetria de Ismael Gonalves da Silva, conhecido como Sabar, e ao mesmo tempo da cidade fronteiria capital federal. Carlos Ramos a define como uma narrativa da vida turbulenta do famoso bandido como pretexto para apresentar a realidade de uma poca e de uma cidade, uma cidade reduto migratrio de nordestinos que ganham a capital federal e faziam da ainda selvagem regio o seu dormitrio.

    Lemos afirma no prefcio que sua obra O Negro Sabar uma descrio da cidade no perodo de 1952-64 e da biografia de um homem, filho de coveiro, nascido em Mag e fruto das suas condies materiais e da discriminao racial. Sabar apresentado como um homem negro alto, freqentador dos rendez-vous da cidade, principalmente o da Olinda de Macedo, situado no centro de Caxias, prximo sede da prefeitura. Adorava uma maconha, uma cachaa, um baralho, um bilhar e a branca Rosa para se deitar. Algumas vezes atuava como cafeto dela e realizava pequenos assaltos. Quando a coisa apertava, sumia por um tempo, mas logo retornava. Em situaes de fuga, poderia esconder-se provisoriamente no terreiro de Joozinho da Gomia. Sem formao e emprego, Sabar era o retrato de muitos negros e negras da cidade. Para sobreviver, eles viviam da prostituio, dos assaltos, da venda de maconha, das jogatinas, dos trabalhos pesados e temporrios ou ainda nos empregos de baixa remunerao.2 LEMOS, 1967: 10.

    3Lemos presenciou a sada de policiais com um preso que seria transferido no dia seguinte. Ele foi obrigado

    a acompanh-los at a Rio-Petrpolis e a participar da execuo do preso. Isto foi imposto pelos policiais como garantia de seu silncio.

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  • Aps a tentativa de um assalto, Sabar foi preso. Lemos relatou as torturas sofridas por ele na Delegacia 311, inclusive as surras de pau-de-arara que o deixaram quase morto e com seqelas terrveis. Quando saiu da priso, Sabar estava impossibilitado de realizar trabalhos pesados, restando-lhe a prestao de servio nas casas de famlia, encerando e limpando. Dormia de favor na garagem da delegacia, graas interferncia de Lemos.

    Sabar visto na obra como um bom malandro, vtima da violncia policial e das estruturas econmicas. Ironicamente, regenerou-se a partir do sofrimento, sendo incorporado ao prprio espao da delegacia. Sabar seria o retrato do homem que virou suco, fisicamente impossibilitado, no ameaava mais a ordem pblica.

    Lemos dedica parte de suas obras para descrever o racismo em Caxias e registra vrias falas de negros e negras, portadores de uma conscincia da discriminao racial. Em Sangue no 311, ele relata que em 1954, a Cmara sancionou uma deliberao que impedia a renovao das licenas dos hotis que exploravam o lenocnio. O delegado Amyl Ney Reychard enviou uma ronda para assegurar o fechamento dos hotis, dos rendez-vous e das boates. Vrias mulheres foram presas, mas segundo Lemos, apenas as negras e as velhas eram trancafiadas.

    As bonitinhas ou com fama, apenas transferiam-se da esquina do pecado para um hotel das luxrias, de braos dados com o alcagete, soldado ou investigador, pois quase todos tinham seus amantes no bas fond ou variavam cada noite com uma meretriz, que nunca era

    4presa.Algumas prisioneiras eram libertadas pelos cafetes preocupados com o

    prejuzo de uma noite. J as negras e velhas no escapavam da ronda e da permanncia no xadrez. Ele nos apresenta Cofap, uma mulher extremamente gorda, com 40 anos e mais de 25 de prostituio. Viera moa do Nordeste. Como no conseguiu emprego, prostituiu-se para matar a fome. Era uma meretriz barata, que servia aos trocadores de

    5nibus ou estudantes nos lugares escuros do shopping center.J Alzirinha era mulata de nariz achatado, gostava de cachaa e de maconha.

    Nada sabiam dela, exceto que era baixa e que sabia dar cabeada e rasteira como homem. No tinha medo da polcia e gostava de xingar os casais bem comportados. Jamais dormia com um homem que fosse da polcia, dizendo: Nem pagando! No gosto de Tira. S sabem fazer desgraa da gente, protegem os brancos, batem nos

    6pretos. Em cima da mame aqui, eles no sobem.Alzirinha tinha uma luta com o mundo: o da discriminao racial. Achava que a pobreza que sofreu no Nordeste, o seu disvirginamento na plantao de cana em Pernambuco e a prostituio nas ruas imundas de Caxias,

    7eram produtos de sua epiderme escura.4 LEMOS, 1967: 76.

    5 LEMOS, 1967: 77.6 LEMOS, 1967: 81.7 Idem

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  • A conscincia do racismo sofrido estava presente nos relatos dos atores que o autor nos apresenta. Ele descrevia com certa admirao o sbio Fi, atravessador de ervas e que vivia do aluguel de umas casinhas em uma vila. Alm disso, havia ainda os michs de sua companheira apaixonada Geralda. Apesar de ser chamado de Rei da Maconha, Fi no era considerado perigoso. Dificilmente era preso, porque dava propina para a polcia. Santos Lemos chamava Fi de sbio porque conhecia a histria do povo negro, de Zumbi e explicava a condio do negro na atualidade. Para ele, a vida na cidade era uma reatualizao do passado escravo. A situao de explorao, o envolvimento com a maconha e com a prostituio, a violncia expressa pelas prises dos negros e pelo fato de os pretos encherem o cemitrio do Corte Oito eram os novos sinais da escravido imposta. Ele dizia sobre Palmares:

    ... queriam viver suas vidinhas, livres, trabalhando para eles mesmos. Brancos para l, negros para c... mas os homens brancos no se contiveram, era folga demais dos negros. Precisavam dos crioulos para a lavoura. A Histria se repete. Os brancos de hoje, os poderosos de Caxias, querem acabar com os negros, com os pobres, querem

    8galgar postos sobre os cadveres dos homens de cor.Fi responsabilizava o racismo e a pobreza pela sua prpria condio e a de

    Geralda, que se prostituiu aos 15 anos, aps seu pai ter abandonado sua me.Ao lermos as trs obras de Lemos nos perguntamos o porqu da nfase dada

    discriminao racial na cidade. Seria por conta do envolvimento pessoal que ele mantinha com esses negros ou pelo fato de o racismo ser to acentuado na cidade que era impossvel no se referir a ele? Talvez as duas coisas. O prprio autor afirmou em suas obras que os personagens narrados no eram virtuais, e sim, reais. Sua histria contada uma narrativa do que via, era seu testemunho.

    A condio de pobreza do negro na cidade, associada vinculao de sua imagem marginalidade, fez com que negros letrados, mdicos, advogados, artistas e profissionais liberais apostassem em iniciativas de afirmao do negro. Surge ento em Caxias um ncleo da Unio Cultural Brasileira dos Homens de Cor - UCBHC , em 1949. As instituies de assistncia e culturais, como os clubes negros e as unies

    9culturais, proliferavam pelo pas aps o fechamento da Frente Negra Brasileira em 1937.

    A UCBHC de Caxias possua uma sede no centro da cidade com biblioteca, assistncia mdica, dentria e jurdica. Era composta por uma diretoria, duas subdiretorias, uma em Tingu e outra em Parada Anglica. Possua ainda vrios departamentos, como o feminino, o de propaganda, o de cultura e os de assistncia. A Unio organizava festejos, almoos, comemoraes nos dias da famlia negra e datas consideradas importantes, promovia atividades culturais que dessem visibilidade ao artista negro, movia processos em defesa dos associados, realizava concursos de

    8 LEMOS, 1980: 24.9A Frente Negra Brasileira foi criada em 1931 e congregava cerca de 200 grupos e instituies. Voltadas

    para a luta contra a discriminao racial, articulavam variadas aes de protesto a condio do negro. Ver SANTOS, Paulo Roberto dos. Instituies Afro-Brasileiras. RJ: Centro de Estudos Afro-Asiticos, 1984.

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  • beleza etc. Em 1954, Lea da Cruz Valentim foi coroada rainha da Unio Cultural, tendo obtido 4.521 votos. Sua votao expressa, de certa forma, o alcance do

    10envolvimento da Unio.Lemos dizia que a UCBHC era um instrumento dos negros metidos a branco

    que se valiam da lei e da cultura para fazer frente ao branco. Eles lutavam com bailes e livros contra os brancos, sempre cada vez mais poderosos, que s queriam as negras para a cozinha ou para a cama. Nos bailes da Unio Cultural, gente como Sabar no

    11seria bem-vinda. Para Sabar, restava seu amigo Fi, Rosa e Joozinho da Gomia.Santos Lemos chamava os candombls de malditos, dizia que o som dos

    atabaques fazia parte do cenrio da cidade e que o babalorix Joozinho da Gomia era um dos mais importantes donos da cidade. Joozinho era baiano, catlico at os 16 anos, quando uma doena o levou ao candombl. Tornou-se filho de santo de Jubiab (Severiano Manoel de Abreu) permanecendo em sua casa por trs anos. Passou a morar e atender na casa de sua madrinha, na Estrada da Liberdade. Posteriormente, precisou de um espao maior, instalando sua casa na Rua da Gomia, no bairro de So Caetano. As festas, os jogos de bzios, os ritos de iniciao tornaram sua casa conhecida, ampliando assim o nmero de seguidores de Joozinho. Entre os

    12visitantes mais conhecidos estava Jorge Amado. Em fins de 1942, veio para o Rio de Janeiro para instalar no Distrito Federal sua

    nova casa. Contudo, as perseguies s religies de origem africana o fizeram retornar Bahia. Em 1948, com 34 anos, retornou ao Rio e instalou sua casa em uma periferia do Distrito Federal: Duque de Caxias. Segundo a revista O Cruzeiro, em dias de festa o

    13terreiro de Joozinho reunia mais de 6.000 crentes do candombl.No dia do sepultamento do rei do candombl, em 1971, mais de 4.000 filhos

    de santo do babalorix acompanharam o cortejo, o que revelou a sua popularidade na regio. Entre os polticos importantes que mantinham contato com Joozinho, podemos destacar: Ademar de Barros, Getlio Vargas, Juscelino Kubitschek, embaixadores da Frana, do Paraguai e da Inglaterra, ministros do governo brasileiro,

    14etc.Em 1956, Joozinho da Gomia foi levado ao Tribunal de Umbanda por ter

    desfilado no baile de carnaval, no Teatro Joo Caetano, travestido de Arlete, uma vedete da poca. Cerca de 3.800 tendas de Umbanda do Rio de Janeiro julgaram seu comportamento. Segundo a imprensa, a diretoria da Confederao Umbandista deixou os bzios resolverem, e ele foi absolvido.

    Atravs das manchetes de 1956, foi possvel identificar as crticas ao comportamento ousado do babalorix e aos presentes caros recebidos em troca de favores. Na revista O Cruzeiro de 17 de maro de 1956, um jornalista indagou a

    10 Luta Democrtica, 25 de maio de 1954.

    11 LEMOS, 1980: 78-79.

    12VARGAS, Francisco. Joozinho da Gomia: Candombl Perde o Rei. In: O Cruzeiro, 31 de maro de

    1971: 28-32.13

    LEMOS, Ubiratan de. Joozinho da Gomia no Tribunal de Umbanda In: Revista O Cruzeiro, 17 de maro de 1956.14

    O Cruzeiro, 31/03/1971.

    REVISTA PILARES DA HISTRIA - MAIO 2003REVISTA PILARES DA HISTRIA - MAIO 2003 31 31

  • Joozinho acerca das acusaes feitas contra ele, principalmente no que se referia cobrana de entradas no terreiro e aceitao de presentes caros em troca de favores. Frente s acusaes, Joozinho respondeu:

    Voc conhece esse tipo de pessoa. Mas o que eu posso fazer para calar a lngua dessa gente... J sei que falaram dos carros, das porcelanas que tenho em casa. Sim meu velho, eu tenho recebido alguns presentes por insistncia dos que foram beneficiados por favores meus. Mas no cultivo uma indstria de presentes, note bem! Tenho profisso liberal. Sou costureiro, alfaiate e crio porcos. Apesar de ser um criador-mirim, ponho o suficiente para

    15comprar o feijo e a carne seca.Joozinho era tido como um diplomata, um mediador entre os seus filhos e

    autoridades polticas que compunham a sua esfera de influncia. Era tido tambm como um acoiteiro de seus filhos de santo, mesmo daqueles que fugiam da polcia. A partir de 1952, ele manteve uma escola primria gratuita para 30 crianas, alargando ainda mais o seu prestgio. Associou-se Sociedade Pr-Melhoramentos da Vila Leopoldina, contribuindo financeiramente para os investimentos de melhoria no bairro. Produzia cantos religiosos e tornou-se o babalorix mais importante da regio fluminense.

    Segundo Newley, Joozinho era o maior benfeitor de Caxias e recebia em mdia 140 pessoas por dia. Ele conseguiu uma bolsa de estudos e emprego na Frana para o fsico Natanael Ror, e atravs dos contatos mantidos com diplomatas franceses, ajudava seus fil