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Navegação e contrabando na fronteira meridional do Brasil, nos séculos
XVIII e XIX.
Marcia Naomi Kuniochi
Resumo: Na formação do território do Rio Grande do Sul, as disputas entre portugueses
e espanhóis motivaram o povoamento, que se efetivou do na passagem do século XVIII
para o XIX, em torno do comércio de derivados do gado bravio, que vivia solto na
fronteira aberta. A parte litorânea desse território compreende dois grandes lagos, Mirim
e dos Patos, que confere um atributo especial àqueles que sabem navegar por essas
águas e dilui as diferenças políticas na fronteira meridional do Brasil.
Resumo: En la formación del territorio de Río Grande hace Sul, los conflictos entre los
portuguéses y los españoles motivaron el establecimiento, que fue ejecutado de en el
paso del siglo XVIII para el XIX, alrededor del comercio de derivado de los ganados
salvajes, que vivieron libremente en la frontera abierta. La parte costera de ese territorio
entiende dos lagos: Lagoa Mirim y Lagoa dos Patos, que comprueba una cualidad
especial los que conozcan navega para esas aguas y él diluye las diferencias políticas en
la frontera meridional del Brasil.
I summarize: In the formation of the territory of Rio Grande do Sul, the disputes
between Portuguese and Spaniards motivated the settlement, that was executed of the in
the passage of the century XVIII for the XIX, around the trade of derived of the wild
cattle, that lived free in the open border. The coastal part of that territory understands
two great lakes, Lagoa Mirim and Lagoa dos Patos, that it checks a special attribute the
those that know navigate for those waters and it dilutes the political differences in the
southern border of Brazil.
Palavras-chave: navegação, contrabando, fronteira meridional
Palabra-llave: navegación, contrabando, frontera meridional
Word-key: navigation, smuggling, southern border
O processo histórico da região meridional do Brasil desenrolou-se, ao longo do
século XVIII, em conflitos múltiplos entre castelhanos e portugueses, e destes com
Professora Adjunta da FURG, Universidade Federal do Rio Grande.
missionários jesuítas e diversos grupos autóctones, dentre eles, índios Tape, Minuanos e
Charruas. Por se tratar de um espaço fronteiriço aberto, a convivência entre todos esses
grupos sociais variava de conflitos armados ao estabelecimento de cooperação para a
troca e transporte de mercadorias.
Essa dinâmica de convivência conflituosa foi retratada por Fabrício Pereira
Prado1, quando escreveu sobre o estabelecimento de Colônia Sacramento no Rio da
Prata para rivalizar com o domínio de Buenos Aires na região.
A história de Colônia Sacramento, ainda que temporalmente breve, foi repleta de
acontecimentos marcantes, passando por fases de prosperidade a períodos de carência e
fome, ocasionados pelas guerras incessantes entre espanhóis e portugueses. O Tratado
de Madri vem por um fim a tudo isso, quando estabeleceu a permuta entre Sacramento e
a região das Missões.
Para regularizar a convivência entre os diferentes grupos sociais, na região, foi
realizada a demarcação dos limites, entre 1753 e 1755, quando Gomes Freire de
Andrade, governador do Rio de Janeiro, esteve em Colônia junto com o encarregado de
Espanha, Marquês de Valdelírios.2
Uma das conseqüências das definições políticas foi o estabelecimento de limites
às idas e vindas daqueles que freqüentavam a região. A campanha fora até então uma
imensa área, onde vivia-se da tomadia de gado nos campos indivisos, que foi
fundamental para o estabelecimento das estâncias e da atividade pecuária. O gado
arrebanhado era selvagem ou xucro, e os criadores (denominados localmente de
estancieiros, da mesma forma que nos territórios espanhóis) não domesticavam seus
rebanhos e não submetiam o gado a currais, evitando qualquer tipo de marcação.
No período de 1765 a 1825, as reses mansas constituíam apenas de 13 a 26% do
gado vacum existente no Rio Grande e, enquanto subsistiram os rebanhos selvagens, a
domesticação do gado não progrediu nas fazendas do Rio Grande. “Espanhóis,
portugueses, índios e negros realizavam, conjuntamente, arreadas e contrabando. Essas
atividades não eram exclusividade dos súditos de algumas das duas Coroas, mas eram
praticadas pelo conjunto dos habitantes dessa zona-fronteira, forjando solidariedade que
suplantavam a lealdade a seus reis...”3
1 A Colônia do Sacramento: o extremo sul da América portuguesa no século XVIII. Porto Alegre: F.P. Prado, 20022 Idem, p. 583 Helen Osório – O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007, p.64
A unicidade do território dificultava o estabelecimento da propriedade da terra,
além do fato de que autoridades de ambos os lados incentivavam a fixação de colonos
em suas terras, independente da sua naturalidade e origem. Foi justamente essa disputa,
no lado português, que havia incentivado a fixação de povoamentos: Colônia
Sacramento, Laguna e Rio Grande.
Era essencial a ligação por terra entre Laguna e Colônia para o estabelecimento
do fornecimento de animais para o a região central do Brasil. O abastecimento de mulas,
na primeira metade do século XVIII, teve início com o boom da mineração, quando
tornou-se necessária a utilização de animais aptos para tiro e carga, para a vazão dos
produtos de exportação e para a movimentação das cargas que abasteciam o interior da
Colônia.4
A rota terrestre, ligando Sacramento ao sudeste do Brasil começou a ser
explorada por tropeiros em meio às guerras de defesa da cidadela portuguesa no Rio da
Prata. Numa das vezes em que o porto de Colônia esteve tomado pelos espanhóis e,
conseqüentemente, a navegação, interrompida, muitos buscaram outras alternativas de
negócios, dando início então ao caminho por terra, que ligava o Rio da Prata à região
central do Brasil. Essa rota ficou conhecida como o Caminho das Tropas.5
Porém, em 1761, “o rei de Portugal decidira proibir a existência de mulas em
seus territórios na América. Havia muitos anos que criadores de Bahia, Pernambuco,
Piauí e Maranhão queixavam-se da introdução das bestas vindas dos domínios
espanhóis do Prata. Sua majestade julgou que era melhor acabar com elas de vez.” A
partir dessa medida, passava a ser contrabando “o comércio de muares entre os
domínios lusos e espanhóis na América, passível de apreensão e punição pecuniária”.6
Tiago Gil localiza nesse período o início de uma nova fase no contrabando na
região. Quando estudou os negócios illícitos na fronteira meridional do Brasil,
encontrou documentos que indicavam a passagem de mercadorias pela rota da Lagoa
Mirim, onde embarcações atravessavam essas águas para transpor mercadorias de um
lado ao outro da fronteira entre o Brasil e terras do atual Uruguai:
Pepe deve ter sido muito popular entre os portugueses. Fora citado como notório contrabandista em 1784. Três anos depois, fora novamente apontado por sete dos 21 depoentes de uma devassa. Em 1784, a testemunha João Coutinho do Amorim
4 Martha Daisson Hameister – O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (1727-1763). Dissertação de Mestrado apresentada na UFRJ, 2002, p. 755 Cf. Hameister, op. cit., p. 100-1336 Tiago Luís Gil – Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 111-2
disse que Pepe havia trazido uma carga de couros em uma grande canoa, pela lagoa Mirim, até a vila do Rio Grande. Seu depoimento envolvia ainda dois negociantes da vila do Rio Grande, Domingos Rodrigues e Manuel Rodrigues Lima, sobre os quais pouco se sabe. Pepe teria alugado a canoa para fazer contrabando, que fora apreendido pelo depoente. Ainda assim, algum tempo depois Pepe agiu novamente. Desta vez levava ‘a carga de quatorze rolos de tabaco de fumo e alguma porção de biscoito’ em uma canoa de quatro remos, que fora igualmente apreendida, desta vez no ‘sangradouro’ na Lagoa Mirim.7
Gil discute o contrabando a partir de relatos feitos pelos próprios demarcadores
dos limites territoriais, quando apontavam para a existência, nas proximidades do rio
Cebollatí (nordeste do atual Uruguai), de muitos changadores, nome porque eram
conhecidos aqueles que viviam das atividades de matança de reses, cujos couros eram
vendidos para os comerciantes platinos.
Cabe lembrar que a exportação de couros para o mercado europeu fora a razão
principal, até então, da disputa entre os homens de Colônia Sacramente e de Buenos
Aires. Além do mais, era justamente na obtenção dos couros que foram estabelecidos os
vínculos com as populações indígenas, que freqüentavam a campanha e já tinham o
costume de fazer as arreadas para a obtenção do produto.
Nessa fase, o trajeto das canoas pela Lagoa Mirim tinha por meta atingir o
sangradouro, localizado na entrada ao Canal de São Gonçalo, que, por sua vez, serve de
ligação com a Lagoa dos Patos8, cujas águas deságuam na barra do Rio Grande, onde
estava localizada a vila e porto do mesmo nome.
Quando Colônia Sacramento fora desocupada, muitas famílias migraram para
Rio Grande, onde se estabeleceram negociantes para dar continuidade às exportações de
couros para o mercado exterior.
Na passagem acima, Tiago Gil faz comenta um caso de um famoso
contrabandista espanhol da região (Pepe), que tinha como parceiro, nas terras
portuguesas, o coronel Rafael Pinto Bandeira, nome importante no Rio Grande de Sul,
que chegou a ocupar o cargo de presidente da província. O autor cita um depoimento de
um negociante de Rio Grande que afirma ter presenciado, certa vez, a venda de uma
canoa de Pinto Bandeira ao dito espanhol para conduzir couros da campanha.
Esses detalhes são interessantes pois mostram que as mercadorias também
seguiam pelos caminhos das águas, uma vez que essa parte do litoral sul compreende
7 Idem. p.1148 O termo correto geograficamente seria Laguna dos Patos, porém, a historiografia faz uso desse termo e também evita confusões com a designação da cidade de Laguna.
terras que, em época de chuvas, ficam encharcadas, formando os banhados, por onde se
transita somente a cavalo. Por sua vez, essas mesmas terras, em período de estiagem,
transformam-se em largas zonas de areia, que dificulta igualmente o tráfego de veículos.
Dessa maneira, as condições naturais do território impedia a utilização de carroças para
o transporte de mercadorias, o que explica a passagem dos couros pelas águas de rios,
lagoas e canais.
Tudo isso justifica o fato de antigos tropeiros também serem proprietários de
canoas. No caso de Rafael Pinto Bandeira, ele tinha fortes ligações com índios
minuanos e guaranis, tanto que sua primeira esposa, Bárbara Vitória, era filha do
cacique minuano Miguel Caraí; o segundo casamento de Rafael também foi com uma
indígena, desta vez guarani – Maria Madalena. Essas ligações já vinham de
antepassados, uma vez que seu avô, José Pinto Bandeira, um dos primeiros moradores
de Laguna, fora casado com Catarina de Brito, filha do capitão-mor de Laguna,
Francisco Brito Peixoto, com uma indígena carijó.9
A travessia das águas poderia igualmente remeter a tradições dos povos
indígenas, tanto no uso como na construção das embarcações. Tiago Gil faz referência a
depoimentos que “Rafael teria mandado construir grandes canoas para fazer seu
contrabando”, e em outra ocasião “é citada a propriedade de Rafael sobre várias canoas,
sendo que algumas teriam sido construídas defronte a uma de suas estâncias. A
acusação, nesse momento, referia-se à possibilidade de Rafael ter se utilizado de pregos
e madeiras da Fazenda Real para a construção de tais embarcações”.10
O curioso nisso tudo é que, segundo Gil, fazendo uso de seu “nome e prestígio”,
Rafael exercia “poder e controle social” a ponto de manter um espião que ficava junto à
lagoa Mirim para inibir outras tentativas de contrabando: a “devassa de 1787 cita casos
de violências cometidas por Rafel contra comerciante da vila de Rio Grande,
especialmente do ‘Povo Novo’, que, ao que parece, foram expulsos desta localidade por
obra dele”. 11
Essa devassa foi originada por uma denúncia contra Rafael Pinto Bandeira, feita
pelo capitão de ordenanças Manuel José de Alencastre que, após contenda com Rafael,
escrevera uma longa carta ao vice-rei “detalhando abusos que Rafael e seus aliados
cometiam naquela fronteira”. Essa denúncia gerou a devassa de 1787, em que aparecem
9 Fábio Kuhn - Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América portuguesa- século XVIII . Niterói: Tese de doutorado defendida na UFF, 2006, p. 208-21010 Tiago Luís Gil, op. cit., p. 17711 Idem, p.182
21 depoentes, sendo que apenas seis confirmaram que Pinto Bandeira contrabandeava
na região.
Nesses depoimentos, uma questão fundamental “rondava o nome de Rafael” – o
uso de canoas. Alguns informantes davam indicações de ações ousadas do investigado,
que resultaram no confisco de embarcações, como no caso em que é citado o mercador
de São José do Norte, José Rodrigues, cuja embarcação fora utilizada durante dois anos
para o negócio ilícito, aparecendo inclusive os nomes de todos os “patrões”, que
comandaram a tal canoa. Além disso, Rafael fora acusado de “usar índios e escravos
como marinheiros sem nunca os pagar”.12
Outras histórias aparecem sobre construção de canoas e o uso delas na lagoa
Mirim. De qualquer maneira, os relatos sobre o contrabando, na fronteira lacustre
gaucha, enfatizam o emprego de embarcações para percorrer rios, canais e lagoas. Tudo
isso mostra que esse tipo de transporte era fundamental para a movimentação de pessoas
e mercadorias, principalmente, quando esses deslocamentos poderiam vir a ser focos de
perseguições e denúncias.
Além disso, por se tratar de um espaço fronteiriço aberto, a convivência entre
todos esses grupos sociais dependia do conhecimento de rotas, desvios e pontos
estratégicos para embarque e desembarque de mercadorias. Para isso, olhar o território a
partir das rotas de navegação interior pode propiciar uma nova dimensão da convivência
entre os diferentes grupos sociais. A fronteira pode evidenciar diferenças étnicas,
políticas e econômicas e, ao mesmo tempo, integrar esses mesmos grupos por causa da
separação colocada: ultrapassar a linha de demarcação passaria a ser um atributo para
poucos, porém, almejado por muitos.
Os caminhos pelas águas: as rotas de navegação pelas lagoas Mirim e dos
Patos, interligadas pelo canal de São Gonçalo
Quando comenta os transportes em geral, até o século XVIII, Fernand Braudel
afirma que a lentidão ainda predominava nesse setor: “as navegações são intermináveis,
os transportes terrestres estão como que paralisados”. Além dessa lentidão, os
transportes caracterizavam-se pela fixidez de itinerários, não importa se nos pampas
12 Idem, p.183
argentinos ou na Sibéria, “transportadores e viajantes são prisioneiros de um leque
limitado de opções”.13
Braudel ilustra esses comentários com descrições de trajetos:
Em 1776, um médico suíço, Jacob Fries, major do exército russo, faz em 178 o longo caminho de Omsk a Tomsk (890 km), a uma velocidade média de 5 km por hora, trocando regularmente de cavalos em cada muda para ter a certeza de chegar à seguinte sem problemas. (...) No interior da Argentina, ainda no século XVIII. tanto faz viajar a bordo das pesadas carroças puxadas por bois que chegam carregadas de trigo ou de couros a Buenos Aires e regressam vazias a Mendonza, Santiago do Chile ou Jujuy, em direção ao Peru, como ir de mula ou a cabalo: trata-se de regular a marcha de maneira a atravessar em tempo útil os depoblados, os desertos e de tentar encontrar casas, aldeias, fontes, vendedores de ovos e de carne fresca.14
Por esses exemplos é possível verificar que, nas longas viagens, principalmente
em territórios pouco conhecidos, encontrar um local para descansar, alimentar a si e aos
animais dependia de pontos estratégicos, o que impedia alterações significativas dos
trajetos.
As deficiências dos meios de transportes e as dificuldades enfrentadas por aqueles
que ousavam atravessar regiões distantes ficam mais evidente quando lemos os relatos
dos viajantes, por exemplo, que percorreram o território meridional do Brasil. Quando
chegou a Rio Grande, Saint-Hilaire traça um desenho da paisagem local, que já deixava
transparecer a paisagem áspera do lugar:
Como disse, encontrei em sua extremidade oriental terrenos pantanosos que se prolongam em estreita orla às margens de Mangueira; além disso, vi, apenas, cômoros de areia esbranquiçada e extremamente fina, onde crescem, aqui e ali, alguns pés de senecio (1.833 bis). Em todo trecho da península por onde andei não vi uma árvore sequer e é bem possível que haja no Rio Grande mulheres que nunca tenham visto outras, a não ser algumas laranjeiras, pessegueiros e figueiras selvagens plantadas em seus pomares.15
A aridez do local ficava realçada pelo terreno plano coberto de areia, que se
tornava mais inóspito quando as condições metereológicas mantinham dias a fio com
chuvas e ventos intermináveis. Mais tarde, depois de deixar Rio Grande, enquanto
passava pelo Taim, entre a Lagoa Mirim e o oceano Atlântico, em direção ao território
do atual Uruguai, volta a comentar sobre o terreno, quando explica o significado de
banhado – nome dado “aos terrenos banhados por uma pequena quantidade d’água que,
13 Fernand Braudel – Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995, v. 1, p. 37914 Idem, p. 38015 Auguste de Saint-Hilaire – Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, p. 94
às vezes, se escoa. Neles crescem, ordinariamente, grandes ervas; são menos lamacentos
que os pântanos propriamente ditos, e podem ser considerados como espécie de
transição entre os pântanos e os lagos”.16
Essas descrições dão conta da paisagem da campanha próxima ao litoral, onde as
terras ficam encharcadas, nos períodos chuvosos, e arenosos, quando a seca se
prolongava por mais tempo, tendendo á formação de cômoros, que se movem pela ação
do vento minuano, que sopra do pólo sem nenhum obstáculo, dado que não havia
árvores de porte, que barrassem os efeitos dessa forte corrente de ar.
O banhado, descrito por Saint-Hilaire, ficava próximo à Capilha, um pequeno
povoado, às margens da Lagoa Mirim, justamente quando o lago começa a estreitar-se e
ficar próximo ao sangradouro, onde tem início o Canal de São Gonçalo. O nome da
localidade devia-se à presença de uma capela, existente desde o século XVIII, cujo
nome mostra a influência dos castelhanos que haviam ocupado a região.
Neste local, foi apreendida a canoa do contrabandista espanhol Pepe, parceiro de
Rafael Pinto Bandeira, conforme foi citado anteriormente.
Nas histórias sobre o contrabando de Rafael Pinto Bandeira, as mercadorias
saíam do rio Cebollatí, em terras do atual Uruguai, atravessavam a Lagoa Mirim,
ingressava no Sangradouro para entrar no atual Canal de São Gonçalo, que deságua na
Lagoa dos Patos, atingindo o oceano Atlântico justamente na altura do porto do Rio
Grande.
Peões do bando de Pinto Bandeira vigiavam a Lagoa Mirim, a espreita de que
outros pudessem concorrer com o grupo nesse negócio ilícito. Os itinerários não
variavam muito, pois navegar na lagoa tinha o inconveniente de se topar com os
temíveis bancos de areia, que ameaçavam qualquer embarcação desprevenida, e
impediam muitas vezes a passagem do baixio do Sangradouro, cujos sedimentos
oriundos dos rios, que deságuam na Lagoa Mirim, diminuía ainda mais seu calado.17
A dificuldade na passagem pelo Sangradouro era justificada pelos inúmeros
naufrágios acontecidos nas imediações. Em vista disso, um vilarejo como a Capilla,
próxima ao local, servia para descarregar as mercadorias para deixar as canoas mais
leves, de modo que, depois que o Sangradouro fosse ultrapassado, já seguro no Canal de
São Gonçalo, fosse possível ter as mercadorias novamente depositadas nas
embarcações.16 Idem, p. 13817 Edemar Dias Xavier Júnior - Navegação na região hidrográfica da fronteira meridional do Brasil. Monografia de Licenciatura, Rio Grande: FURG, 2005, p. 10-13
Se não havia como mudar o itinerário, o conhecimento dos trajetos e de
estratégias para viabilizar o acesso ao Canal de São Gonçalo e chegar à Lagoa dos
Patos, onde ficava a saída para o mar, era fundamental para a locomoção por essas
bandas.
Na passagem do século XVIII para o XIX, uma capela, cercada por um
agrupamento de casas, ou uma estância eram importantes pontos de referência nos
trajetos, tanto para tropeiros, que percorriam a região por terra, como para as
embarcações, que singravam pelas lagoas.
Além do mais, essas localidades acabavam tendo uma função estratégica para dar
suporte aos viajantes e seus animais, quando vinham por terra, e embarcações, quando
iam ou vinham pelo canal de São Gonçalo. Para as embarcações, não era um porto
seguro, era somente um ponto que servia para o embarque e desembarque de
mercadorias.
Nas lagoas, os canais de navegação costumam ficar distantes das praias e
margens. Mesmo assim, os povoados foram se fixando na orla lacustre e a forma como
as embarcações eram carregadas dava-se por meio de outras menores, que faziam
inúmeras viagens entre a praia e o navio, que se mantinha estacionado no canal de
navegação.
Nessas localidades, o regime das águas sofre alterações em função de chuvas e
períodos de estiagem: quando as águas estão baixas, deixam descobertos imensos
bancos de areia, que formam longas praias lacustres, onde ficam estacionadas as canoas
menores; quando a maré sobe, é possível percorrer de barco, onde antes era areia, a
distância da margem ao canal de navegação.
O mapa a seguir mostra a região do litoral sul do Rio Grande do Sul:
Mapa do litoral sul do Rio Grande do Sul
Fonte: Dados cartográficos Google, 2009
No mapa acima, aparece em asterisco a Lagoa Mirim, e no lado esquerdo, está
localizada a então vila de Jaguarão, na fronteira como Uruguai. O Canal de São Gonçalo
liga a lagoa Mirim com Pelotas, que fica às margens da Lagoa dos Patos, por onde se
atinge o porto de Rio Grande e está localizada a barra, em que as águas das lagoas
deságuam no Oceano Atlântico.
No passado, essas vias de navegação aproximavam localidades que, por via
terrestre, em razão das dificuldades dos meios de comunicação da época, não teriam um
contato maior.
Deixando para trás o início do povoamento e as atividades ilícitas de Pinto
Bandeira, nos setecentos, vemos, no século XIX, no ano de 1847, o jornal O
Riograndense anunciar a saída de barcos de Rio Grande a Jaguarão, com escala em
Pelotas.
A vila de Jaguarão estava localizada às margens do rio de mesmo nome, cujas
águas deságuam na Lagoa Mirim, e suas margens têm, de um lado, a campanha gaúcha
do lado brasileiro e, do outro lado, terras uruguaias. A viagem de Rio Grande a Jaguarão
durava dois dias, pela barca de vapor Porto-Alegrense, com escala em Pelotas, quando o
vapor adentrava no Canal de São Gonçalo até atingir a Lagoa Mirim, por onde navegava
até atingir o rio Jaguarão, mais ou menos na metade da lagoa, onde ficava a pequena
vila. Dessa localidade brasileira, as mercadorias ainda poderiam abastecer vilarejos do
Uruguai, como as do Departamento de Trinta e Três, da mesma forma que, no retorno,
os produtos poderiam ser enviados para serem vendidos e exportados pelo porto do Rio
Grande.18
Por sua vez, a navegabilidade do Canal de São Gonçalo explica o número
respeitável de charqueadas, localizadas às suas margens, onde também desemboca o rio
Pelotas, sede de outras propriedades rurais. Ester Gutierrrez destaca o uso do transporte
fluvial e lacustre, que serviam aos proprietários das charqueadas de Pelotas, e cita o
caso do barão e baronesa de Butui, cujos inventários registram as seguintes
embarcações: a barca Pombinha, o patacho Moreira e os iates São Jerônimo e Santa
Rita, sendo que ainda possuíam parte no patacho Cassio e um quinto do reboque a vapor
de Rio Grande19.
A empresa, responsável pelo serviço de reboque de navios da barra para o porto,
foi formada em 1848, em Rio Grande, com o capital de negociantes da região e de
Mauá, de quem foi a iniciativa, que empregava para o serviço o vapor “Rio Grande”.20
A barra do Rio Grande era um local temido pelos pilotos em razão da
dificuldade em manobrar os navios para entrar no canal, que dá passagem à Lagoa dos
Patos. O relato de Luccock sobre a entrada da barra, em 1809, dá uma idéia dos perigos
dessa operação, principalmente no tempo em que não havia um “possante rebocador”
para realizar as manobras:
O Capitão, tendo-se postado no tope do mastro, avistou esses baixios e os canais dentre eles, com mais nitidez do que se estivesse sobre o tombadilho, dando-nos instruções sobre a maneira de governar. Afinal surgiu um bote que veio ao nosso encontro, com um piloto a bordo que, por meio de sinais apropriados, nos prestou idêntico serviço. Esses sinais não só indicam a rota que o navio deve seguir, como, às vezes, lhe aconselham a que se deite âncora onde está, para que ele a possa transpor. O primeiro desses sinais é dado erguendo-se do bote uma bandeirinha, na direção que o navio deve tomar; os outros dois, abaixando completamente a bandeira. (...) Quando alcançamos o bote, este não nos entregou o piloto, mas prosseguiu um pouco à frente, sondando com uma longa vara, que
18 Edemar Dias Xavier Junior, op. cit., p. 5 19 Ester J. B. Gutierrez – Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2001, p. 8220 Visconde de Mauá – Autobiografia. Rio de Janeiro: Liv. Ed. Zelio Valverde, 1943, p. 106-7
viravam de ponta a ponta com agilidade, à medida que avançávamos através de uma barra rasa e ampla, situada numa angra profunda e perigosa.21
O viajante continua a detalhar outras manobras, cuja morosidade e cuidados
adiavam o desembarque de viajantes, que ansiavam chegar em terra firme. Se a entrada
para a Lagoa dos Patos era cheia de perigos, no seu interior, havia uma movimentação
de iates, canoas e outras embarcações, levando e trazendo mercadorias e passageiros de
diferentes pontos dos rios, lagos e banhados da região.
Ao longo do século XIX, é possível constatar que várias vilas foram formadas,
voltadas para a lagoa, como Santa Vitória na Lagoa Mirim; Jaguarão no rio de mesmo
nome; Santa Isabel, no Canal de São Gonçalo; Porto Alegre, São Lourenço, Pelotas e
Rio Grande, de um lado da Lagoa dos Patos e, do outro, Mostardas, Tavares, Estreito,
Bujuru e São José do Norte.
De forma diversa, quando se observa a estreita faixa de terra que compreende o
litoral, entre o mar e a lagoa, não há uma localidade sequer voltada para o Oceano
Atlântico. Se a entrada da barra oferecia muitos perigos para os pilotos, dentro das
lagoas, a população local conseguia recursos para a sobrevivência tanto da pesca como
de lavoura. Nem sempre existiam atracadouros seguros. Normalmente, pequenas canoas
faziam o trajeto das margens das lagoas aos canais de navegação; ou então, quando
havia um pequeno arroio, que desaguava na lagoa, uma fileira de casas com
atracadouros eram construídas ao longo desses cursos d’água, onde “no inverno, os iates
chegam até aqui, mas no verão ficam retidos à embocadura do rio, pelas areias e uma
enorme quantidade de aguapé (Pontedina)”.22
Arreadas e contrabando na fronteira meridional do Brasil
Em meio a essa rotina de navegação lacustre e fluvial, havia a fronteira política
entre o Brasil e o Uruguai, cuja linha imaginária passa no meio das águas da Lagoa
Mirim. Do mesmo modo que circulavam pessoas e mercadorias nas imediações da
fronteira, a tentação para ganhos adicionais ou sonegação de impostos na passagem de
um lado ao outro da linha demarcatória permanecia.
21 John Luccock – Notas sobre o Rio de Janeiro e parte meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975, p. 114-522 Auguste de Saint-Hilaire, op. cit., p. 151. Esse relato do Arroio São Miguel, próximo ao Chuí, pode ser verificado atualmente nas proximidades do antigo porto de Santa Vitória do Palmar.
O anúncio publicado, em 1848, no jornal de Rio Grande, é um exemplo da
continuidade das atividades ilícitas:
Capitania do porto. Copia. Ilmo. Sr. Constando que o porto dessa cidade para a de Pelotas e Villa de Jaguarão navegarão algumas pequenas embarcações tripuladas com estrangeiros e principalmente de sardos e genoveses, e competindo ás captanias dos portos, na forma do regulamento junto ao decreto n 447 de 19 de maio de 1846, o arrolamento dessas embarcações, e da gente do mar que as tripulão; digni-se V.S., a bem do serviço público, informar-me circunstanciadamente a tal respeito para se poder conhecer não só quaes as embarcações que navegão para aqueles lugares, onde segundo as informações obtidas, fazem muitos contrabandos, mas também qual o direito, que os estrangeiros tem, para navegarem em nossos rios do interior, e por isso, sendo possível, V.S. me enviará um mapa das mesmas embarcações e o número de estrangeiros que se empregarão n’esse serviço e a que nação pertencem, afim de que tudo seja levado ao conhecimento das autoridades superiores, para deliberar o que melhor convier. Deos guarde a V.S. Thesouraria da província de São Pedro do Sul, 15 de janeiro de 1848 – ILM.SPC. Antonio Caetano Ferraz, capitão do porto. – O Inspector Vicente José da Costa Cabral. – Está Conforme – Ignácio Joaquim da Silveira, Secretário.23
No texto, fica evidente a preocupação das autoridades com o contrabando e com
a presença de estrangeiros nas tripulações dos navios, que navegavam nos rios do
interior, principalmente, no trajeto para a fronteira, como é o caso da linha Rio Grande-
Pelotas-Jaguarão. O cuidado com os estrangeiros, que circulavam no vapor, se dava
justamente porque Jaguarão está localizada às margens do rio de mesmo nome, que
marca a divisa com o Uruguai.
Além disso, muitos estancieiros costumavam ter terras nas duas margens do rio,
o que facilitava a negociação da venda dos animais nos dois lados da fronteira. Isso
sempre gerou muitas desavenças entre ambas as partes, o que pode ser comprovado por
um caso rumoroso que chegou a causar problemas nas relações internacionais entre os
dois países.
Entre junho e agosto de 1850 saiu publicado no jornal Riograndense, de Rio
Grande, uma série de artigos denunciando as ações do Barão de Jacuhy em terras
uruguaias. No período, o Uruguai encontrava-se envolvido em conflitos locais, o que
justificaria as intervenções do militar brasileiro, segundo o jornal, face às desordens no
país vizinho.
O jornal também reproduz discussões, ocorridas na Câmara dos Deputados,
sobre ações do barão de Jacuí na fronteira do Brasil com o Uruguai: “violencias e
vexames feitos aos Brasileiros que tem estancias do lado Oriental são tantos e tão
23 O Riograndense, 01/02/1848, p. 3. (Apud Edemar Dias Xavier Junior, op. cit., p. 15) O grifo é meu.
repetidos, que qualquer povo assim opprimido tarde ou cedo se insurgirá, e que por isso
há muito perigo de uma explosão sem se lhe poder valer”.24
Nessa época, o Uruguai estava envolvido com os problemas políticos da
Confederação Argentina, cujo líder, Rosas, pretendia estender seu poder ao território
uruguaio, sendo o ponto culminante dessa luta o cerco da cidade de Montevidéu, pelas
tropas de Oribe e Rosas: “Rosas cada vez mais divide os homens em dois partidos,
como Oribe os divide no Uruguai. De um lado, liberais democráticos; de outro,
nacionalistas tradicionais”.25
O “perigo de uma explosão” na fronteira brasileira refletia essa instabilidade
política, que repercutia para toda a Campanha a divisão entre Blancos e Colorados,
tanto no lado argentino e uruguaio, como no lado brasileiro, sendo que, neste último,
mais especificamente no Rio Grande do Sul.
Por isso, as violências nas fronteiras eram fruto da instabilidade política, quando
as terras podiam ser poderosas armas, tanto que muitos proprietários do Rio Grande do
Sul perderam terras e animais, que tinham no lado uruguaio, dentre eles o barão de
Jacuí.
Na correspondência política da época, aparecem alusões a esses problemas,
conforme mostra Lídia Besouchet, quando reproduz as cartas do enviado uruguaio ao
Brasil, Andrés Lamas, ao chefe político de seu partido – Manuel Herrera y Obes:
“Entre las medidas adoptadas a virtud de esa resolución son las principales: promover uma alianza com el Paraguay e conservar y fomentar las reuniones del Barón de Jacuhy a sus amigos, induciéndoles a que se mantengan dentro de los limites del Imperio hasta el momento oportuno.
Por supuesto que este gobierno está decidido a no persiguir al referido Baron ni adoptar respecto a él ninguna de las medidas que naturalmente exigirá el dictador Rosas. Al contrario, entiendo que si por médio blandos no se le reduce a esperar los sucesos em las fronteras brasileñas y de una nueva incursión, resultase que las fuerzas enemigas le persiguisen dentro de esas fronteras, el nuevo presidente, el señor Pimenta Bueno, lleva ordenes para oponerse a semejante perseguición, rechazando la fuerza com la fuerza.”26
Essas desavenças haviam se agravado quando “Oribe prohibio não só a
exportação de gado para a minha província, como impede que os Brazileiros possão
24 O Riograndense, 27/06/185025 Lídia Besouchet – “Prefácio e notas”. Correspondência política de Mauá no Rio da Prata (1850-1885). São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1977, p. 1726 Lídia Besouchet, op. cit., p.21
dispor delle mesmo no Estado Oriental”. Assim explica o deputado riograndense
Fernandes Chaves, no discurso proferido na Câmara dos Deputados.27
O estado de coisas na fronteira estava chegando a tal ponto que poderia alastrar a
guerra para o território brasileiro. Tal agravamento pode ser apreendido pelo teor do
texto do Correio de Porto-Alegre, que cobra do Governo Imperial uma atitude ao
desacato dos “súditos rebellados e dos que, abusando do asylo em território brasileiro,
compromettem as relações e os interesses políticos das duas nações com o Brasil”.28
Helga Piccolo comenta sobre o que chama de “bolsões de poder privado”, que
estavam “centrados em torno de oligarquias rurais que viviam praticamente
independentes do poder central”, descrevendo assim as epopéias do barão:
“As famosas ‘califórnias’ do Barão de Jacuí, Francisco Pedro de Abreu, no final da década de quarenta, diante da apregoada neutralidade do governo imperial em relação às lutas internas do Uruguai, retomando o gado que os partidários de Oribe haviam levado de propriedades brasileiras, revelam a força dos interesses privados e a ‘independência’ do ‘caudilho’”.29
Em 1850, estava havendo uma movimentação política para por fim aos conflitos,
justamente com o auxílio do governo imperial, por meio da ação do político uruguaio
Andrés Lamas, que fora enviado ao Brasil para buscar recursos para por fim ao
interminável conflito. O governo brasileiro indicou o então negociante Irineu
Evangelista de Sousa para suprir as necessidades financeiras, solicitadas pelo enviado
uruguaio. Foi dessa maneira que teve início uma longa carreira de empreendimentos do
futuro barão e visconde de Mauá, no Uruguai.
Em sua Autobiografia, o negociante relata sua participação com recursos
financeiros “para prestar os auxílios indispensáveis”, que foram formalizados por meio
de um “tratado secreto com o representante do governo da praça desta corte”.30 Mauá
confirma o segredo mantido sobre o auxílio financeiro do governo imperial ao governo
uruguaio que, segundo Piccolo, manteria o discurso de neutralidade do Brasil. Para isso,
o ministro Paulino José Soares, depois Visconde do Uruguai, recomendou os préstimos
do negociante brasileiro para a realização do empréstimo em nome do Brasil.
Porém, o intermediário escolhido também era originário da região, onde agiam os
rebelados gaúchos. Irineu Evangelista de Souza nascera em Arroio Grande, situada a
27 Trechos do discurso foram reproduzidos no jornal O Riograndense, 27/06/1850, p.1-228 O Riograndense, 13/07/1850, p.329 Helga Iracema Landgraf Piccolo – “A política rio-grandense no Império”. José Hildebrando Dacanal & Sergius Gonzaga (orgs.) – RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p.101-230 Visconde de Mauá, op.cit., p. 116-7
alguns quilômetros de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. Era filho de um pequeno
estancieiro, que fora assassinado, ao ser confundido com ladrões de gado, “quando
conduzia uma tropa para vender”, segundo conta seu biógrafo Cláudio Ganns.31
A região era a mesma onde o barão de Jacuí realizava suas “califórnias” para
reaver o gado de brasileiros, apreendido por Oribe.
Em meio aos debates sobre essas ações na fronteira, saiu um comunicado,
publicado no jornal de Rio Grande:
COMMUNICADONovo periódioco Estrella do Sul diz que a alfândega do Norte era o centro do contrabando na região e que as mudanças estruturais vêm acabar com isso. O Estrella critica e pede o afastamento do ministro da fazenda deste cargo, mas o quer em outro ministério. A folha acusa Carruthers Sousa e Cª de grande contrabando, dominação do ministério, corrupção das alfândegas, etc. A firma é acusada pelo Estrella de importar contrabandos da barra até o Rio Grande, usando a companhia de reboques a vapor. Ainda afirma-se que Carruthers Sousa e Cª costumam entrar no Norte com grandes caixas as quais não se sabe o que contém. O autor do manifesto diz que “Irineo da Ponta d’Arêa” é um digno brasileiro que fundou no Brasil uma fábrica que oferece com qualidade e baixo preço as máquinas indispensáveis para a agricultura e navegação. A casa deles é uma das poucas estrangeiras que tem associado brasileiros e brasileiras rio-grandenses a seus interesses, completa o autor. No final, pede-se para que o periódio Estrella prove as acusações proferidas contra todos, pelo bem do país.
assinado “J” <(anônimo)>32
O texto cita o “Irineo da Ponta d’Arêa”, referindo-se a Irineu Evangelista de
Sousa, proprietário da fundição de ferro Ponta d’Arêa, no Rio de Janeiro, que
funcionava desde 1846, na fabricação de navios a vapor a outros maquinários.33
Carruthers Sousa e Cª era a firma por meio da qual o empresário tinha estabelecido
seus negócios em Rio Grande, desde 1845, dentre eles a “Companhia de rebocadores a
vapor para o Rio Grande”, para levar os navios da entrada da barra para o porto. Por
isso a acusação de que os rebocadores estariam entrando com “grandes caixas” em São
José do Norte, vila situada bem na entrada do canal para a Lagoa dos Patos, do lado
oposto da margem em que está localizado o porto do Rio Grande.
O anúncio ainda faz alusão à relação do empreendedor com o “ministério” do
Governo Imperial, que lhe facilitaria o trânsito nas alfândegas. Cabe lembrar que o
tratado secreto para “prestar auxílios” ao Uruguai, sob a intermediação de Andrés
31 Cláudio Ganns – “Prefácio”. Visconde de Mauá , op. cit., p. 1832 O Riograndense, 18/07/1850, p.2-333 Visconde de Mauá, op. cit., p. 100-107
Lamas e Irineu Evangelista de Souza, data de 06 de setembro de 1850, enquanto que o
anúncio saiu publicado em 18 de julho do mesmo ano.
Porém, o auxílio já vinha sendo prestado antes dessas datas porque o trato
acordado previa um auxílio inicial de “18.000 pesos mensais a juros de 6% a contar de
1o. de julho, por espaço de 13 meses, portanto até agosto de 1851”.34 Isso evidencia que,
na época do anúncio, em julho, foi justamente quando começou a ser fornecido as
parcelas mensais do auxílio financeiro ao governo uruguaio. De alguma forma, isso
poderia chegado ao conhecimento de pessoas influentes no Rio Grande do Sul,
contrários ao posicionamento escolhido por Irineu Evangelista.
Quando Lídia Besouchet identificou a divisão entre Blancos e Colorados, como
sendo de um lado, “liberais democráticos”, e de outro, “nacionalistas tradicionais”,
reproduz a versão que transparece no texto da Autobiografia de Mauá. Nesta obra, o
autor não esconde sua condenação aos ideais tradicionalistas, que predominava em
grande parte da Campanha gaúcha, seja argentino, uruguaio ou brasileiro. Muitas vezes,
atribui a isso a resistência a inovações, que enfrentou ao longo de sua carreira
empresarial e bancária. Em várias ocasiões ficou em posição antagônica a de seus
conterrâneos e nunca fez questão de negar suas opiniões.
Se o clima na fronteira estava tenso, motivado pelas “califórnias” do barão de
Jacuí, os jornais da época traziam para suas páginas as diferentes opiniões, assinadas ou
não, que atacavam ou defendiam os personagens envolvidos. É caso de se perguntar se
as denúncias de contrabando contra Mauá já eram de conhecimento geral e só
apareceram nas folhas dos jornais para fazer frente ao debate sobre as ações ilícitas de
Jacuí, que representava os “bolsões de poder privado” da oligarquia rural rio-grandense.
Ainda sobre o anúncio acima, como Mauá não havia recebido os títulos de
nobreza pelo qual ficou conhecido, é chamado de o “Irineo da Ponta d’Arêa”. A menção
pode ter uma conotação pejorativa, quando enfatiza o fato de ser um dono de negócio.
O comunicado sobre o contrabando da firma de Irineu Evangelista pode ter sido
usado para desfocar os ataques ao barão de Jacuí. A referência pejorativa ao negócio do
“Ponta d’Area” pode estar contrapondo às ações de um representante da oligarquia rural
e portador de título nobiliárquico de barão, no caso de Jacuí, cujas ações ilícitas podem
ser mais facilmente legitimadas.
Além disso, a mesma acusação de que “a alfândega do Norte era o centro do
contrabando na região” remete à rede de contrabando de Rafael Pinto Bandeira, em
34 Cf. nota de Cláudio Ganns na Autobiografia do visconde de Mauá, op. cit., p. 116
cujas denúncias, também citam um mercador de São José do Norte, José Rodrigues,
cuja embarcação fora utilizada durante dois anos pelo bando para a realização do
contrabando.
Se alguns anos depois, Irineo Evangelista de Sousa estava sendo acusado de
contrabando por conterrâneos do sul, não se pode negar que era de seu conhecimento
todos esses dissabores que envolviam os negócios na fronteira: seja na condução de
animais, que eram atravessados de um lado para o outro das águas; seja por meio de
embarcações, que, desde a época de Rafael Pinto Bandeira, levavam mercadorias de um
lado ao outro de rios e lagoas.
Tanto Rafael como Mauá conheciam muito bem a região e saberiam os
caminhos por onde as mercadorias lícitas e ilícitas passavam. O uso de embarcações, da
fronteira lacustre com o Uruguai até o porto do Rio Grande, pode dar uma outra
dimensão dos caminhos e estratégias utilizados para levar mercadorias e homens do
interior para o litoral e vice-versa.
Por tudo isso, o porto do Rio Grande sempre manteve sua importância
estratégica, tanto como sendo o último porto brasileiro, antes do Rio da Prata, quanto
por ser a porta de entrada das lagoas e rios que levam para o interior do continente, na
fronteira meridional do Brasil.
Porto do Rio Grande: onde as águas do interior encontram a saída para o
mar.
Em meados do século XIX, a cidade do Rio Grande abrigava uma série de casas
comerciais estrangeiras e representantes comerciais de negociantes do Rio de Janeiro. A
presença de um significativo corpo mercantil remete ao fato de que o comércio, lícito e
ilícito, está na origem da ocupação da fronteira meridional do Brasil por causa da bacia
do Rio da Prata, importante acesso ao interior do continente sul-americano, cuja
navegação fluvial permitia que as mercadorias chegassem em menor tempo ao interior
brasileiro e regiões do cone sul e território andino.35
A localização estratégica, como último porto brasileiro antes do Rio da Prata, fez
com que, pouco mais de um século após sua fundação, ocorrida em 1737, a vila de Rio
Grande São Pedro se transformasse em um dos principais fornecedores de
35 Cf. Alice Piffer Canabrava - O comércio Português no Rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1984
carregamentos de mercadorias, enviadas ao Rio de Janeiro.36 As mercadorias enviadas
consistiam em subprodutos do gado: charque, para o mercado interno; e couros e sebo,
para serem reexportados, principalmente, para a Europa.
Ao longo do século XIX, a criação de animais em estâncias estava sendo
disseminada no território rio-grandense, e já eram escassos os gaúchos que viviam da
caça ao boi bravio. Porém, ainda não havia cercas para dividir as propriedades, de modo
que o gado continuava atravessando a fronteira entre a província do Rio Grande do Sul
e a República uruguaia, sem que houvesse controle ou barreiras.
A unicidade do território na fronteira meridional do Brasil permitia que os
negócios se desenvolvessem, simultaneamente, nos dois países. E foi, justamente, com
base nessa conformação, que se deu o desenvolvimento dos negócios mercantis no porto
do Rio Grande. Nesse sentido, a fronteira serve de integração social e econômica no
extremo sul do Brasil, e deve ser analisada nessa amplitude, ou seja, “a fronteira integra
e não separa”.37
Em função da navegabilidade das lagoas e rios, boa parte das mercadorias
destinadas ao Rio Grande do Sul e países adjacentes era oriunda de navios atracados no
porto riograndino e distribuídas por embarcações, que faziam linhas periódicas para
Porto Alegre, Pelotas, e cidades fronteiriças com o Uruguai – Santa Vitória do Palmar e
Jaguarão.
Rio Grande é o último ponto de parada para o abastecimento de navios que se
dirigem para o sul do continente sul-americano. A tabela contendo a partida de navios
para um único mês pode dar uma dimensão da natureza das atividades do porto:
No. de embarcações saídas do porto do Rio Grande – janeiro/1850Destino: portos brasileiros Destino: portos estrangeirosLocalidade nº de embarcações Localidade nº de embarcaçõesRio de Janeiro 43 Falmouth 8Santa Catarina 8 Gotemburgo 6Paranaguá 7 Cork 6Santa Catarina 7 Boston 5Norte 1 New York 5
Buceo 3Montevidéu 3Baltimore 2
36 Tabelas contendo carregamento, mercadorias e nomes dos negociantes estão contidos em minha tese de doutorado: Crédito, negócios e acumjlação. Rio de Janeiro: 1844-1857, defendida na área de História Econômica, da FFLCH-USP, em 200137 Cf. Heloísa Jochims Reichel – “Introdução”. As raízes históricas do Mercosul: a Região Platina colonial. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1996
Buenos Aires 2Cádis 2Bristol 1Califórnia 1Liverpool 1
Total 66 Total 45Fonte: O Riograndense. Rio Grande, janeiro/1850
A quantidade de navios e a diversidade de localidades nacionais e estrangeiras
mostram que o porto do Rio Grande tinha uma movimentação mercantil de expressão. A
análise dos pontos de destino indica que, dentre as localidades brasileiras, havia uma
concentração de embarcações para Rio de Janeiro; por outro lado, as linhas
internacionais apresentam uma maior variedade de destinos, com destaque para as
localidades inglesas (Falmouth, Bristol e Liverpool) e americanas (Boston, New York,
Baltimore e Califórnia).
Com relação às mercadorias transportadas para o Rio de Janeiro, era destinado
um grande número de carregamentos de charque e, para o exterior, uma variedade de
subprodutos do gado: couros, chifre, sebo e outros.
Por sua vez, o comércio desses subprodutos esteve na origem da ocupação dos
pampas, seja riograndense, uruguaio ou argentino. Tanto que a antiga localidade de
Colônia Sacramento vivia da exportação de couros para o mercado europeu, até meados
do século XVIII, quando então, em função do Tratado de Madri, os portugueses foram
obrigados a abandonar a embocadura do Prata e muitos negociantes migraram para a
barra da Lagoa dos Patos, dando origem à cidade do Rio Grande.
Nesse sentido, é possível inferir que Rio Grande herdou parte do comércio de
Colônia Sacramento e, por ocasião da fundação da vila, em 1734, muitas redes
mercantis que aí se instalaram já vinham atuando na região do Rio da Prata, há algum
tempo. Essa atuação estaria em consonância com o conceito de longa duração de
Braudel, uma vez que muitos comerciantes deram prosseguimento à exportação de
couros e outros derivados, conforme faziam, via Colônia Sacramento.
O comércio e a navegação no Rio da Prata foi sempre palco de disputas, tanto
entre europeus, como entre as jovens nações americanas. Desde sua fundação, o porto
do Rio Grande, naturalmente, passou a integrar o roteiro de navios que trafegavam no
Atlântico Sul, e as rede mercantis internacionais logo instalaram seus representantes.
Dada a complexidade das operações mercantis e cambiais para viabilizar a
importação e exportação de mercadorias, as rotas marítimas costumam ser dominadas
por essas redes internacionais. Ao contrário, desde a abertura do Caminho das Tropas,
as rotas terrestres deram a portugueses e brasileiros a oportunidade de atravessarem
grandes distâncias, até o centro do país, por meio do conhecimento estratégico dos
caminhos das tropas, pelo litoral e terras interiores.
Nesse caso, em Rio Grande, a posição de Irineu Evangelista de Souza era
privilegiada, uma vez que ele estava inserido em uma rede internacional, por meio da
casa de negócios Carruthers Sousa & C., e ao mesmo tempo conhecia o território da
fronteira, em razão de sua origem, e certamente mantinha contato com parentes e
amigos que moravam na região.
Em meio a tudo isso, o comércio lícito e ilícito se imbricava, sendo atributo das
redes de negócios saber explorar as oportunidades, pois sabiam os caminhos e
estratégias para ultrapassar barreiras fiscais e fronteiras políticas.
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