O Reino Do Kongo Sua Origem Meridional

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Ao interrogar-se sobre a origem do Reino do Kôngo, no título do seu novo livro, Patrício Batsîkama retoma e actualiza a questão central presente na obra dos historiadores, antropólogos, sociólogos, linguistas e arqueólogos que se têm debruçado sobre o mais importante estado costeiro da África Central.

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    ZZTypewriter

  • ATusmba Mnica

    In memorian deVatnga MiguelMolley Julieta smbu Sadi

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  • SUMRIOPREFCIO 13

    APRESENTAO 15

    NOTA dO AuTOR 19

    CAPTulO I 23ESTRuTuRAS E INSTITuIES dO KNgO 1.EStRUtURaSadMInIStRatIvaSdOkngO 23 2.FIlOSOFIaEcOSMOvISOkngO:OSpRIncpIOSFUndantES 24 3.aORganIzaOtRIpaRtItEdaSOcIEdadE 28 4.aORganIzaOtRIpaRtIdadOtERRItRIOdOREInO 29 5.ORganIzaOtRIpaRtItEEpOdER:adEMOcRacIakngO 32 a)pOdERlEgISlatIvO 32 B)pOdERExEcUtIvO 33 c)pOdERMIlItaR 34

    CAPITulO II 65SER !KuNg ORIgEM dO KNgO? 1.SIgnIFIcaOdOStERMOS 65 2.anlISEdEtOpnIMOSEORganIzaOtERRItORIal 68 3.alInhagEMqUEREInaSEMpREEStRangEIRa 77

    CAPTulO III 97AS ORIgENS dO KNgO E A ARquEOlOgIA 1.IntROdUO 97 2.apEdRadOFEItIOESUaSIMpRESSES 105

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  • CAPTulO IV 115ORIgEM dO REINO dO KNgO SEguNdO OS dAdOS RElIgIOSOS 1.IntROdUO 115 2.BndUdyakngO 115 3.UMaRElEItURacIEntFIca 118

    CAPTulO V 127AS ORIgENS dE ACORdO COM O CAlENdRIO KNgO 1.nOESdEcalEndRIO:OdIaEaSEManakngO 127 2.nOESdEcalEndRIO:OMSkngO 131 3.OShERIScIvIlIzadORESEOcalEndRIOdaFUndaO 134

    CAPTulO VI 145dA dESCObERTA AO dEClNIO dO KNgO 1.aIntROdUOdOcRIStIanISMOnOREInOdOkngO 145 2.daMORtEdEdOMjOOaEntROnIzaOdEdOMaFOnSOI 148 3.dEdOMaFOnSOIadOMantnIO 150 4.dEdOMantnIOaOdEclnIOdOkngO 153 5.dOnaBEatRIzEaREUnIFIcaOdOkngO 157

    CAPTulO VII 161ORIgEM dO REINO dO KNgOE A SuA HISTRIA 1.hIStRIaMEMRIa 161 2.hIStRIanaRRaO 172 3.hIStRIaanlISE 179

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  • CONSIdERAES FINAIS 189

    APNdICE anExO#1 191 anExO#2 196

    bIblIOgRAFIA REFERncIaSBIBlIOgRFIcaSSOBREOkngO: a)lIvROS 213 B)aRtIgOSSOBREOkngO 216 c)FOntESpRIMRIaSSOBREkngO(FOntESORaIS) 219 REFERncIaSBIBlIOgRFIcaSSOBRE!kUng a)lIvROS 220 B)aRtIgOSSOBREOS!kUng 220 c)FOntESpRIMRIaS(FOntESORaIS) 221 REFERncIaSBIBlIOgRFIcaSSOBREangOla a)lIvROS 221 B)aRtIgOSSOBREangOla 223 c)aRqUIvOSSOBREangOla 223 REFERncIaSBIBlIOgRaFIcaSSOBREFRIca a)lIvROS 224 B)aRtIgOSSOBREFRIca 226 REFERncIaSBIBlIOgRFIcaSgERaIS a)lIvROS 227 B)aRtIgOS 229

    NdICE REMISSIVO 231

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  • AgRAdECIMENTOSNo h glria que desconhece prvia assistncia, pois todo xito

    deriva de apoio. Por isto sou imensamente grato aos meus avs maternos, Vatnga Miguel e Molley Julieta smbu, e paternos, Raphal batskama-ba-Mampuya ma Ndwla e bumputu Ernestina. Eles so, na verdade, os primeiros pilares deste trabalho. Na origem distante deste meu trajecto est ainda o professor Kalubi Mukola, do antigo Instituto Pedaggico Nacional de Kinsa (Rd Cngo), a quem devo a mesma gratido.

    No Museu Nacional de Antropologia de Angola foi possvel conti-nuarmos o trabalho de investigao, entre os anos 1995 a 2000, graas Manzmbi Vuvu Fernando, Francisco Xavier Ymbo e Kamba Kavula Mateus, e ao Professor Virglio Rodrigues Coelho todos muito obrigado. A ateno de Maria Ana de Oliveira durante todo esse perodo merece ser destacado, bem como os valiosos prstimos de Emanuel Esteves. A Rosa Cruz e Silva por ter aceitado o nosso dilogo; ao John Thornton pelo debate metodolgico, e a Zakeu Zengo pelo acompanhamento na tarefa de organizao textual e redaco. todos muito obrigado.

    Endereo especial gratido a Empesa Nacional de Seguros de Angola (ENSA) e ao banco de Comrcio e Indstria de Angola (bCI), empresas que prestaram importante apoio financeiro para enriquecer a bibliografia deste trabalho. Ao mdico e Coronel Matondo Michel (noko docteur), ao engenheiro lufywulwsu Michel e ao linguista Menga Thomas vai minha gratido e considerao por tudo. Nesta lista reitero ainda minha gratido ao gelogo Kelo luzaymo Sebastio, a empresria Paulina dikila e ao briga-deiro Nelito barros.

    No posso esquecer o meu irmo (pintor, escultor e artista plstico laureado) Antnio Tomas Ana Etona, tributrio da corrente esttica Etonismo, cuja expanso atravs do espao acadmico angolano1 me ajudou muitas vezes a actualizar a riqueza dos dados recolhidos e das fontes de informao.

    Por ltimo manifestamos a nossa perfeita considerao ao Presidente do Conselho de Administrao do banco de Poupana e Crdito (bPC), dr. Paixo 1 Essas incurses de interaco e troca de conhecimento, com o espao do conhecimento, sobre cultura e arte angolana que o Etonismo divulga tem sido tambm internacional. Estivemos j em dois congressos Internacionais de Esttica, (i) no Middle-East Technical university em Ankara, METu, Turquia, em 2007, (ii) e no Peking university, beijing/China, em 2010. Participamos ainda no Congresso Mundial de Filosofia, no Seoul National university, Seul/Coreia do Sul, em 2009. Estivemos igualmente no Kansas universsity, em 2007, e na university of Texas at Austin, em 2008. Em frica estivemos em douala/Camares, em 2006, em dakar/Senegal em 2007, e Cap Town/frica do Sul, em 2009. Ao nvel de Angola percorremos importantes instituies acadmicas como o Instituto Superior Privado de Angola, ISPRA (2006), a universidade Agostinho Neto (2006), o Instituto Superior da Educao/benguela (2007); a universidade Jean-Piaget (2007 e 2008); o Seminrio Maior de Filosofia de benguela (2007) e o Ncleo de direito do Huambo (universidade Agostinho Neto, 2009). Ainda, em 2006, apresentamos o tema do Etonismo no III Simpsio sobre a Cultura Nacional de Angola, e mais recentemente estivemos para a mesma tarefa em berlim, na Academia local de Cincias, em Maio de 2011. Em todos estas ocasies tem sido possvel ampliar o dilogo com estudiosos e acadmicos em torno da investigao das origens do Reino do Kngo o que muito contribui para alargar a pretenso deste livro como pesquisa.

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  • Antnio Jnior, por ter permitido o financiamento exclusivo da publicao do relatrio deste projecto, oferecendo assim classe acadmica e cientfica, em parti-cular, e ao povo angolano, em geral, o acesso mais uma humilde pedra no edifcio bibliogrfico sobre a rica Histria de Angola. que receba a gratido no s do autor, mas tambm do leitor annimo.

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  • PREFCIOAps a publicao de As origens do Reino do Kngo, Patrcio batskama

    nos prope, aqui, um estudo que , na realidade, continuao daquela primeira.Com efeito, interessado a agregar, o mais possvel, elementos orais e antro-

    polgicos do provvel aporte do eixo meridional, fundador, do conjunto federal, o autor engaja-se num exerccio, paciente, de reexame, a luz dessas tradies de carcter histrico, de princpios construtores das estruturas sociais e polticas do Reino e da constante concepo edificadora, trptico. E, no se priva de plantar novas propostas de leitura da geografia poltica da unio.

    Para no negligenciar nenhuma pista nas corpora, o neto de Raphal [batskama] aprecia, prudentemente, pntano homofnico e homogrfico obrigue! as coincidncias lingusticas atestadas no falar da velha populao !kung ou Khoi; arrastadas, provavelmente, desde mais de 2000 anos, numa evoluo de interaces civilizacionais francamente desequilibradas com os migrantes, dominadores ou engolidores, bantu. A apresentao desses traos justifica-se pela recolha de lendas supondo a presena de um substrato humano pr-kngo de tipo pygmaio.

    A inevitvel pista ovimbundu examinada, bastante substancialmente, nas suas similitudes de natureza toponmica ou de concepo ligada as origens e a organizao das linhagens de poder; boa direco de investigao, sendo as populaes dos Planaltos centrais, notoriamente, o resultado das diferentes vagas migratrias, vindas do setentrio e do oriente.

    O mesmo exerccio de concordncias bantu, confirmativo, entre os Kngo e os Herero, os Nyaneka-Humbe e, acessoriamente, os Kwanyama e os Cokwe, proposto.

    O autor apresenta, em seguida, o essencial das provas arqueolgicas que confirmam a cristalizao da especificidade kngo a volta do fim do primeiro milnio da nossa era, estabelecendo laos de parentesco com a cultura material (cermica, vestgios metalrgicos, etc.) com os bantu meridionais.

    A fim de avaliar o aporte do Sul a fundao do Kngo dya Nttela, o autor no exclui as volteis reconstrues mticas, contemporneas, de gnese, de base cosmognica ou espcio-temporal.

    Examina, finalmente, sempre nesta linha de investigao, as ligaes austrinas da formao da arquitectura monrquica instalada nos Planaltos de Pembacassi, partir das irrefragveis fontes histor, as das primeiras relaes de autores portugueses, italianos e holandeses, mas igualmente as correspondncias dos prprios soberanos do Kngo.

    Esta anlise , tambm, feita a partir das releituras de investigadores contemporneos.

    O mrito da presente obra, que estala um estudo de grande viso, e de ter posto em filigrana, na base de fontes orais, arqueolgicas e escritas, um povoamento

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  • antekongo, de estdio visivelmente neoltico, constitudo de grupos pygmaios e strandlopers, comunidades bem negrides mais no locutores de lnguas bantu, como ns tnhamos suposto2.

    Essas populaes sero, gradualmente, absorvidas, antes do incio da nossa era, pelos poderosos bantu, metalurgistas, cuja uma franja ocupar a regio do baixo Rio, partir da floresta equatorial, mas cujo essencial contornar, com razo, essa temvel e densa barreira vegetal. Avanaro atravs das linhas de florestas tropofilas e savanas orientais e austrais.

    um dos reflexos histricos desta hiptese de esquema de expanso o posicionamento estratgico, avuncular, do Ne Mbata, chefe do Estado oriental do conjunto federativo, facto atestado nas fontes escritas e recitais kngo. Enfim, a outra evoluo indicativa e o reconhecimento pelos prprios Kngo, da presena, no seu seio, de componentes mbundu, quer dizer de assimilados.

    Em suma, a presente anlise confirma a nossa assero sobre o facto de que os intensos movimentos migratrios dos bantu ter constitudo perodos de grande dinmica histrica e antropolgica; e, nas origens, o pas de Nimi a lukeni no escapou a isso.

    Simo SOUINDOULA

    Historiador/Expert da uNESCO

    2 Souindoula, S. (1985), Migraes, fuses e fundamentos histricos antigos dos povos bantu ociden-tais, in Muntu, Revue Scientifique et Culturelle du CICIBA, n. 2, I Semestre [1985], libreville, gabo.

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  • APRESENTAOAo interrogar-se sobre a origem do Reino do Kngo, no ttulo do seu novo livro,

    Patrcio batskama retoma e actualiza a questo central presente na obra dos historia-dores, antroplogos, socilogos, linguistas e arquelogos que se tm debruado sobre o mais importante estado costeiro da frica Central.

    Neste longo e complexo processo de construo social do passado da civili-zao Kngo, a procura das origens reais e histricas, tanto do clebre reino como de outros reinos e chefados com sistemas polticos idnticos, tem-se fundamentado em tradies histricas orais que no s explicam a origem da realeza sagrada como tambm legitimam a organizao social estabelecida, produzindo e reproduzindo uma memria identitria do estado e das formaes socioculturais (grupos tnicos).

    Os mitos da fundao, j recolhidos e transcritos por europeus, a partir dos finais do sculo XVI, atribuem a origem do Reino do Kngo, ou seja, a criao de um estado cujo vrtice era ocupado pelo Mwene Kngo, chefe supremo, iniciado, investido e detentor do nome do heri fundador, a uma influncia estrangeira, isto , vinda de um chefe, heri conquistador, civilizador e fundador de uma nova ordem poltico-religiosa, jurdica e econmica que, por sua vez, se expandiu a partir do novo centro tambm ele criador e organizador.

    desta forma, as narrativas distinguem e separam o espao-tempo de origem do fundador do espao-tempo da fundao, distncia de ruptura trans-posta por um movimento migratrio que se reproduziu noutros movimentos de expanso fundadora. Estas tradies orais tm sido interpretadas como narrativas de acontecimentos reais ou simplesmente com referentes empricos e reconhe-cidas como fontes histricas, com base em modelos explicativos disciplinares iniciados na Europa pelo pensamento iluminista e que influenciaram diferentes teorias historiogrficas e antropolgicas.

    Nesta perspectiva e com base nos trabalhos pioneiros de Karl laman, Jean Van Wing, Jean Cuvelier, Jan Vansina, entre outros, a questo das origens dos antepas-sados fundadores, assim como a histria das migraes tornaram-se reas temticas privilegiadas pelos historiadores-antroplogos africanos, conhecedores da lngua dos habitantes, e que tm trabalhado sobre a vasta rea cultural Kngo, distribuda actual-mente por vrias regies da Repblica do gabo, da Repblica do Congo, do Sudoeste da Repblica democrtica do Congo e do Norte de Angola. O conhecimento dos Kngo pelas suas elites intelectuais, a partir da dcada de 70 do sculo passado, tem sido produzido em contextos cientficos e acadmicos dos referidos pases. Na escola histo-riogrfica de brazaville, destacam-se os nomes Thophile Obenga e Abraham Ndinga-Mbo, em Kinshasa, salienta-se a obra de Raphael batsikama e, em luanda, Patrcio batsikama publicou em 2010 uma obra sobre As Origens do Reino do Kngo, trabalho acadmico defendido, em 1995, na universidade Pedaggica Nacional de Kinshasa.

    Nas representaes historiogrficas e antropolgicas da cultura Kngo identificam-se hipotticas e contraditrias origens dos processos de disperso

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    populacional e de difuso cultural, reconstituem-se provveis percursos migra-trios, interpretam-se as suas causas e propem-se cronologias. Estas obras, para alm do seu valor cientfico, tm contribudo para produzir e reproduzir uma conscincia identitria da unidade da grande rea cultural Kngo, simultaneamente pr-nacional, transnacional e componente das construes multiculturais das nacionalidades da frica Central. Tais processos de criao identitria coexistem tambm com a representao de uma unidade cultural tradicional bantu, de origem comum subsariana e assente na religio tradicional africana (Cheik Anta diop, Placide Tempels, Raul Altuna), perspectiva cultivada pelo Centro Internacional das Civilizaes bantu de libreville, na Repblica do gabo.

    O ponto de partida de Patrcio batsikama neste novo texto dedicado s origens do Reino do Kngo, precisamente uma enumerao dos princpios nucleares vinculativos que teriam organizado e teriam identificado a referida cultura, e foi precisamente, num desses princpios (as nossas cabeas esto sempre dirigidas para norte, Nsundi, os nossos ps sempre direccionados para o sul, Mbamba) que batsikama fundamentou a sua tese da origem meridional dos Kngo. A orientao sul > centro > norte vista como ordenadora das represen-taes espaciais da majestosa e bem ordenada tripartio da estrutura social e poltica Kngo.

    A base social do antigo reino seria composta por trs linhagens, lukeni, Nsaku e Npanzu, e, nas representaes simblicas do territrio, estes nomes eram atribudos sucessivamente, de sul para norte, a trs zonas rectangulares paralelas nas quais se dividiam e subdividiam as provncias e os distritos do estado. O Reino estava organizado territorialmente, de sul para norte, em trs provncias (Mpngala, Mulaza, Mpnzu) que rodeavam uma quarta (Kati), com estatuto central, onde estava implantada a mbanza Kngo.

    Estas provncias ter-se-iam mantido unidas at chegada dos portu-gueses. A provncia Mpngala estendia-se do Kwanza ao Kunene (Repblica de Angola), Mulaza ocupava o leste e o Nordeste do Reino (Angola e Repblica democrtica do Congo), Mpnzu estendia-se da margem direita do Rio Mwanza (Congo) at Repblica do gabo, abrangendo a Repblica democrtica e a Repblica do Congo, e Kati abarcava o Noroeste de Angola, alargando-se a parte da Repblica democrtica do Congo. Cada uma destas quatro regies (provncias) dividia-se, de sul para norte, em trs sub-regies (distritos), Mbmba, Mpmba e Nsndi, situando-se a capital de cada regio na circunscrio central.

    A partir daqui, Patrcio batsikama inicia uma busca interpretativa da origem dos Kngo, na vastssima regio do sul de Angola, e, compa-rando elementos recolhidos em pocas diferentes, estabelece redes de relaes descontnuas, a nvel do significado simblico e das semelhanas de topnimos, termos e organizaes territoriais entre os Kngo e as populaes bosqumanos (!Kung), Kwanyma e umbundu. Constatou, tambm, a existncia de mitos de fundao, no Sul de Angola, com estrutura idntica aos

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    do Kngo. E com base neste sistema de relaes construdas que defende uma linha migratria dos Kngo a partir das terras meridionais angolanas, colocando a hiptese do Kngo dya Mpngala ter estado inicialmente nos territrios ocupados no presente pelos !Kung e pelos Herero.

    Reconhecendo a importncia fundamental das pesquisas arqueolgicas no conhecimento dos processos evolutivos na rea cultural Kngo e confrontado com a escassez de trabalhos produzidos nesta rea, batsikama retoma e aprofunda os estudos interpretativos sobre a famosa Pedra do Feitio, existente nas margens do Rio Mwanza (Congo) e j conhecida dos europeus no sculo XVIII. As semelhanas estabelecidas entre os motivos gravados na Pedra do Feitio e de outros presentes na arte Ckwe e nas gravuras de Citundu-hulu permitiram reforar a tese da origem meridional dos Kngo.

    Procurando estabelecer uma cronologia para datar a hipottica migrao das populaes de sul para norte, Patrcio batsikama debrua-se agora sobre uma narrativa mtica das origens do Reino, produzida pelo movimento religioso bundu dya Kngo, liderado por Ne Mwanda Nsimi que mantinha uma estreita relao intelectual com o historiador Raphael batsikama, o que revela um processo singular de produo e reproduo da histria Kngo pelas elites locais, num contexto de proselitismo religioso. A tentativa de estabelecer uma cronologia da origem do estado desen-volvida atravs da articulao do calendrio Kngo antigo com a tradio mtica da fundao do reino por 27 heris civilizadores, interpretada como narrativa de acontecimentos reais. Esta engenhosa abordagem permitiu ao investigador angolano defender a hiptese do Reino do Kngo se ter iniciado no Sul de Angola, nas regies do Rio Zambeze, entre o sculo V a.C. e o sculo II da nossa era.

    ultrapassada a questo das origens, Patrcio batsikama debrua-se sobre o complexo percurso histrico da descoberta ao declnio do Kngo, dominado pela cultura e poderosa influncia poltico-religiosa dos europeus. Os religiosos catlicos tentaram cristianizar e europeizar o Reino do Kngo e os portugueses interferiram na sua vida poltica, pondo em causa o sistema tradicional de sucesso, eleio e consa-grao do rei, originando conflitos violentos que levaram desorganizao do Estado. O considerado grande rei nacionalista Ndo Ntoni tentou afastar os portugueses do Kngo, mas foi derrotado na batalha de Ambwila (1665) e os milhares de combatentes africanos mortos so hoje celebrados pelas elites como heris congoleses.

    No sculo XVIII, a Associao Kimpazi, liderada por beatriz Chimpa Vita, desencadeou o chamado movimento sincrtico Antonianista (estudado por Antnio Custdio gonalves, John Thorton) que tentou restabelecer a unidade do Reino e restaurar os valores da cultura Kngo. Contudo, se o processo de declnio e extino do Estado prosseguiu nos sculos XIX e XX, a representao da unidade e grandeza da civilizao Kngo no deixou de alimentar at hoje o imaginrio de grupos polticos e de intelectuais que assumem e cultivam a herana cultural do grande Reino.

    Consolidada a sua interpretao geral da gnese e evoluo do Reino do Kngo, o autor analisa agora sistematicamente as micro-verses explicativas das origens (norte, leste, sul) identificveis no s nas tradies orais mtico-hist-

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  • 18O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    ricas, recolhidas em vrios chefados, transcritas e retranscritas por europeus, nos sculos XVI, XVII e XVIII, mas tambm na correspondncia dos antigos Reis, publicada pelos historiadores.

    desta forma, pde reforar a hiptese da origem meridional (a origem das vrias origens) se encontrar nos zimbabweanos de expresso proto-kikongo que se formaram no espao scio-poltico !Kung. Consequentemente, a gnese dos Kngo associada aos primeiros bantu e prestigiosa influncia da cultura Zimbabwe.

    So tambm objecto de anlise crtica as origens hipotticas do Reino, defen-didas por dois importantes investigadores no-Kngo, Jean Van Wing e Jean Cuvelier, bons conhecedores da lngua kikongo e autores de contributos fundamentais para o conhecimento das culturas da frica central.

    O padre Jean Van Wing realizou extensas recolhas sobre a histria dos cls e linhagens Mpngu, em cuja rea residiu, e, recorrendo a textos de Cavazzi e Cadornega, tentou justificar uma origem oriental dos Kngo. Por sua vez, Jean Cuvelier, missionrio em Matadi, promoveu recolhas organizadas e sistemticas da histria dos cls e linhagens a norte do Rio Mwanza (Congo), e defendeu a hiptese de uma origem setentrional do Estado, na regio de Mayombe, tese que tem tido importantes seguidores.

    Por fim, o autor classifica e compara criticamente as virtualidades e limitaes dos trs modos de produo da histria antropolgica Kngo: histria-memria tradi-cional (tradies histricas orais ou mtico-histricas), histria-narrativa escrita e histria-anlise comparativa e explicativa.

    As trs formas de elaborao social da memria histrica das origens permitiram incluir e posicionar indivduos, cls, linhagens, formaes sociocul-turais, pases e os respectivos territrios no universo civilizacional Kngo, sujeito a profundas mudanas e a fortes convulses que intensificaram novas formas de diferenciao cultural.

    Em ltima anlise, esta obra de Patrcio batsikama produz e difunde uma relao imaginria primordial dos Kngo com o sul de Angola e a cultura bantu dos Zimbabwe, recriando, prestigiando e reconfigurando a unidade identitria histrica, cultural e simblica de uma civilizao fragmentada no mundo da frica contempornea.

    Ponta delgada, 30 de Novembro de 2010.Rui de Sousa Martins3

    3 Professor de Antropologia Cultural da universidade dos Aores. director do Museu de Vila Franca do Campo.

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  • NOTA dO AuTOREste trabalho est em linha de continuao com As Origens do reino do

    Kngo, publicado em 2010 pela editora Maymba (Angola), do qual segundo volume. Neste novo texto importa destacar dois aspectos titulo de esclarecimento: (1) as fontes escritas utilizadas, com destaque para (i) arquivos e (ii) monografias; (2) e a grafia dos termos em kikngo.

    Fontes e breve comentrio

    (i) Arquivos

    A biblioteca municipal de Turin (Itlia) muito rica em termos de textos sobre frica, particularmente sobre Angola e seu antigo reino Kngo, muitos dos quais annimos e ainda no publicados. Na biblioteca Ricardiana, na Florena/Itlia, identificamos tambm vrios manuscritos impressos e reunidos sob formatos de microfilmes, como o caso da Relatione, de Rui Pina, que trata sobre o Kngo. A nossa opo de estender nossa investigao aos manuscritos e arquivos antigos deveu-se em parte necessidade de compulsar a riqueza da pesquisa oral desenvolvida por diversos estudiosos no tempo colonial, que ainda hoje continua a ocupar espao privilegiado nos trabalhos de autores e estudiosos contemporneos do reino do Kngo, como ficar patente neste livro.

    Os arquivos que datam dos sculos XVI, XVII e XVIII constituem quatro formas de positivar no tempo a memria4 kngo. Contudo, permanece ainda fundamental, at hoje, esclarecer a compreenso da memria kngo que resulta desses trabalhos de recolha de tradies, precisamente por causa da abundncia de imprecises, incoerncias e m f prprias de um tempo em que o conhecimento sobre os povos da terra era construido numa perspectiva paralela aos interesses e estruturas do poder cultural das potncias colonizadoras. desta feita, buscamos de alguma forma desenvolver uma leitura correctiva dos antigos relatos encontrados nos textos desses arquivos, por um lado. Por outro, tentamos desenvolver uma compensao metodolgica, originalmente ausente desses trabalhos, na reconside-rao dos relatos tradicionais arrolados nesses arquivos.

    Como se sabe, a Tradio Oral como memria sustentada por outras insti-tuies. Em primeira instncia, formada numa espcie de sociedade secreta, ela muitas vezes veiculada mediante uma retrica que nem mesmo o prprio narrador natural compreende, pois o texto oral quer apenas ilustrar o acontecido. Em segunda instncia temos a instituio familiar. Repetida constantemente na

    4 Os gregos estabeleciam a distino entre mneme, simples presena no esprito da lembrana, com anamnesis, reminiscncia, que resulta de um esforo para recordar e representar o acontecido (Joo, M., Memria, Histria e Educao, in: NW Noroeste, Revista de Histria, Ncleo de Estudos Hist-ricos, universidade de Minho, braga, 2005, p. 83).

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  • 20O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    sucesso linhagtica das famlias atravs de contos sagrados, provrbios e anedotas longevas, com propsitos educativos bem determinados, a tradio oral oferece a fora da identidade, diverso e continuidade cultural.

    Assim, por exemplo, temos no primeiro caso (i) relatos e provrbios histricos; (ii) antropomorfizao do acontecimento e seus suportes institu-cionais legais que so (a) a iniciao pblica, os (b) museus de cada linhagem e o (c) comportamento psicossocial. No segundo temos os (i) cnticos de cerimnias, os provrbios de diverso e vida ldica, as (ii) criaes artsticas e suas instituies educativas que podem dar-se por meio de (a) aprendizagem peculiar, do tipo secreta (iniciao), confinado ao (b) espao pblico comum e geralmente imbricado na (c) cosmogonia local.5

    Como se pode depreender disso tudo, a Tradio Oral como memria ainda que o seu relato seja dinmico no existe isoladamente. Ela completada por outras instituies sociais e culturais. O seu estudo histo-riogrfico implicar sempre uma leitura crtica dos seus suportes insti-tucionais, como na compreenso que Anta diop faculta sobre a histria de Clepatra contada pela memria egpcia e analisada pelos historiadores.6

    Com isso podemos concluir que a Histria (como cincia), em relao a Tradio Oral (como memria), inspira-se do modelo desta ltima enquanto discurso das lembranas. Primeiro porque a convergncia das memrias gera uma outra memria ideolgica (Hegel), mas tambm, por causa de um princpio que determina o decurso da prpria Histria. Segundo, porque desenham-se as virtualidades e limitaes dos trs modos de produo da histria (antropolgica): histria-memria tradicional (tradies histricas orais ou mtico-histricas), histria-narrativa escrita positivando o que apenas era narrado, e histria-anlise comparativa e explicativa.

    (ii) Monografias

    Existem muitas monografias interessantes sobre o reino do Kngo, algumas utilizando metodologias que interessaram particularmente nossa linha de pesquisa. Se uns apresentam trabalhos inditos e originais, outros reproduzem sob outros prismas teses clssicas que j deviam estar (e nalguns casos esto) em reviso.

    Este o caso de, entre outros, John Thornton (2001), Jan Vansina (1985/2010), Wyatt Macgaffey (2003). So raros os autores que se interessam a abordar a Origem do reino do Kngo. Thornton vai buscar interrogar-se sobre a ancianidade da Tradio Oral, enquanto Jan Vansina apresenta padres interpre-tativos da memria colectiva (oficial) inerente a Tradio oral africana, especial-mente da frica central. O trabalho de Macgaffey original por apresentar uma plataforma da antropologia histrica, principalmente para o Kngo, onde intervm

    5 batsikama, P. As origens do reino do Kngo. luanda: Mayamba, pp.26-49.6 diop, C.A.; LUnitt culturelle de lAfrique Noire. Paris: Presence Africaine, 1982, p. 112.

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    inmeras memrias e as suas transformaes atravs do tempo. Sobre as origens, todos eles retomam as verses antigas, nalguns casos com enfoques interpretativos interessantes e contextualizados.

    Os prprios historiadores africanos, desde a publicao de Histria de frica, patrocinada pela uNESCO, pretendem discutir epistemologicamente a bivalncia da Memria - ora como suporte orientador do comportamento social, ora como fonte histrica. Com isso, tenta-se produzir uma historiografia intrnseca. So no entanto poucos os que se debruam sobre reino do Kngo, princi-palmente Raphal batskama (1999), Fukyawu-bunseki (2009), Theophile Obenga (2003), Abraham Ndinga-Mbo (1997), entre outros.

    Reservamos o terceiro volume desta pesquisa como espao para desen-volvermos uma leitura analtica e crtica sobre os autores mais contempo-rneos ocupados com o tema. As razes de no referir a eles j neste volume prendem-se a vrios factores, entre os quais o facto de (i) repetirem as teses antigas a partir de novas fontes; (ii) utilizarem metodologias que parecem limitar-se ao propsito de reconfirmao de velhas teses com novos olhares; (iii) parecem no se interessar a tentar procurar a partir da prpria estrutura das fontes mtodos apropriados ao desenvolvimento cientfico e coetanio do tema, tal como ns tentamos estabelecer no primeiro volume deste estudo. Por essas trs razes que optamos por remeter a um terceiro relatrio nosso olhar crtico sobre a pertinncia e abrangncia dos escritos desses autores, do sculo XVI ao sculo XXI. Ao todo estamos a analisar mais de 300 fontes escritas, quer elas primrias, quer secundrias.

    destaco aqui o artigo de Rui Martim, Mito e realidade no noroeste de Angola (in: Revista Arquipelago - Histria 22 Srie, III, 1999), que oferece um amplo resumo das grandes teses conhecidas e publicadas sobre a origem do Kngo, em que oferece uma belssima interpretao da pluralidade das Origens do reino do Kngo, bem como as influncias dessas origens sobre a sociedade kngo em geral, destacando duas linhagens principais: a origem meridional, que teria na raiz o pas dos bushong (J. Van Wing), linhagem tambm adoptada pelo historiador Rafael batskama, e a origem setentrional, que teria na raiz o pas dos Teke (J. Vansina).

    Morfologia grfica Kikngo

    Optamos por realar na nossa escrita a fontica kngo dos termos, admitindo mesmo certa dualizao dos termos afectados para apresentar o leitor s variaes decorrentes do dinamismo da interaco entre as lnguas nacionais de Angola, no caso vertente o kikngo, e a lngua oficial da unidade nacional, o portugus.

    Assim, na morfologia kikngo destacamos o uso do acento circunflexo, que indicar uma quantidade fnica de diferenciao do valor definicional de alguns termos que, sem recurso a este instrumento, arriscaramos a considerar pap como Papa. Assim, por exemplo, temos:

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    Bika: dar nome; Bka: deixar;Bubu: hoje, agora; Bbu (ki): segundo lugar;Buka (wuka): ajudar um doente; Bka: quebrar.A velha forma mu comprime-se em :

    Mukelo: keloMulke: lkeMudmba: dmbaMubati: mbati

    dois i juntos tornam-se y, e dois u fazem w:

    Ki-i-se : kyse Mu-u-na: mwnaKi-i-di: kydi Mvu-u-ma: mvwmadi-i-mbu: dymbu su-u-lu: nswluKi-i-zi: kyzi Tu-u-la: twla.

    Nos idiomas antigos g, ou h, variante de v; nos outros idomas do kikngo de Mbnza-Kngo, por exemplo, dizia-se gata ou hata o que se diz actualmente vata; gna (hna) passou a ser vna. Contudo, g ser sempre seguido de h para dar em gh:

    1) Gh (h) em velho Kikngo torna-se v no Kikngo actual: ghata: vata; ghnda: vnda; ghnda: vnda; ghmbula: vambla; ghna: vna.

    2) F e S no kikngo antigo tornam-se v e z no kikngo actual: malafu: malavu; mbfo: mbvo; manzefo: manzevo; lmfo: lmvo; msa: mza; masa: maza; madso: madzo; ndosi: ndzi; vusa: vuza; kwsa: kwza...

    3) Mu, prefixo ou pronome do kikngo antigo, torn-se no kikngo actual: mukazi: kazi; muti: ti; mubati: mbati; mulasa: laza; muksu: kzu; bamutlele wo: batlele wo; tumutangidi muknda: tutangidi knda; lumulbila masa: tulmbela maza...

    Comeamos este volume com um captulo que foi escrito inicialmente pelo historiador Raphal batskama, de quem nos consideramos um grato discpulo. Retomamos a sua pesquisa como ponto de partida para a tese central deste volume, que a origem meridional do Reino do Kngo. portanto com alegria e satisfao que apresentamos ao leitor este trabalho, produto de doze anos (1996-2006) de estudos e pesquisa para reter o fundamental das matrias que adiante passamos a partilhar.

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  • CAPTulO I

    ESTRuTuRAS E INSTITuIES

    dO KNgO11. Estruturas administrativas do Kngo

    quando a Europa penetra a frica central no sculo XV, o feudalismo2 deter-minava o comportamento social e administrativo de quase toda a Europa.3 O feuda-lismo implica que as terras e as pessoas pertenam a algumas pessoas poderosas, os Senhores, cujas possesses em termos de terras no tinham limites, e podiam ter Feudatrios alm das fronteiras dos seus feudos, de tal forma que um rei podia ser Suserano de um outro rei.

    Este esprito feudalista sensivelmente assumido no primeiro relato que apresenta o Reino do Kngo ao mundo do conhecimento, o famoso Relatione, que escreveu duarte lopes sob orientao tcnica do gegrafo Filipo Pigaffetta. Para citar apenas este, eis o que nesse relato se escreve sobre o Reino do Kongo: [no Kngo] tudo pertence ao rei que reparte as tarefas, as riquezas e as terras consoante o seu bel prazer.4 Conforme esta compreenso, o rei do Kongo tinha como suseranos as autoridades de Angola, de Matmba5, de Mpngu e de lwnngu.6

    1 devemos a autoria deste primeiro captulo a Raphal batskama ba Mampuya ma Ndwla. Retomamos e actualizamos os dados segundo os quais o Kngo apresentado desde Pigafetta/lopez (1591) continua a ser o mesmo, no s para os autores actuais, mas tambm para muitos historiadores documentalistas, que as consideram como verdades histricas padronizadas. Embora a ideia de um reino do Kngo vasto (desde Norte de Nambia at gabo) ainda precise de solidificar-se por via de fundamentao em estudos lingusticos, arqueolgicos, antropolgicos, etc., a nossa tese (herdada de Raphal batskama, em quem existe desde 1970) simples: a origem primordial do reino do Kngo (ligada origem dos reis) situar-se-ia no Sul, de maneira que a origem setentrional seria apenas uma origem ltima dos reis do Kngo. Mas, de acordo com os dados recolhidos em ampla pesquisa de campo, analisados no s no primeiro estudo (As Origens do Reino do Kngo), mas tambm no presente, h cada vez mais evidente necessidade de rever a Histria do reino do Kngo.2 Este regime foi relativamente abolido em 1789, dois sculos depois da descoberta do reino do Kngo. A obra de duarte lopez, reescrita por Filipo Pigafetta, continha um duplo paradoxo: 1) escrito original-mente por algum (duarte lopez) que nunca saiu da capital Mbnza-Kngo e corrigido por algum que nunca conheceu o reino do Kngo (Filippo Pigafetta); 2) escrito por um europeu do sculo XV, o texto consubstanciava-se, mesmo esforando-se por assumir uma imparcialidade cientfica, numa ideologia feudalista.3 Como se sabe, o sistema econmico feudal chega ao fim depois da Revoluo francesa.4 Cf. F. Pigafetta, Description du royaume de Congo et des contres environnantes. Traduction de W. ball, Nauwelaert, louvain: 1968, pp.66, 67.5 Para giovani Cavazzi os reinos do Congo, Angola e Matmba pertenciam a um s reino. Ver: Cavazzi de Montecccolo, J. A, Descrio histrica dos trs reinos do Congo, Angola e Matamba. Vol. I, Junta de Investigaes do ultramar, lisboa: 1965, p.156 Idem, pp. 31, 40 e 68.

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    Como se pode depreender desse relato, o autor apoia-se claramente no feudalismo para interpretar a estrutura administrativa do reino do Kongo, terri-trio em que nunca estivera antes, tal como atesta o conhecimento histrico.7 Assim, considerada a importncia da contribuio pioneira desses estudiosos europeus sobre o tema, quer historiadores quer antroplogos da mesma origem espao-temporal, somos quase sempre induzidos a partir de noes de um reino do Kongo fantasmagrico8 na discusso bibliogrfica da organizao adminis-trativa fundante desse velho reino de Angola.

    Ao invs, seremos aqui fiis metodologia do nosso trabalho de investi-gao, iniciada no primeiro volume deste trabalho, para atestar as noes gerais de organizao e pensamento por meio dos quais o Reino de Kongo se legitima como um Estado e nao. Assim, comearemos pela cosmoviso que estrutura os princpios fundamentais de vida e de organizao, sobre os quais se funda tambm as suas origens remotas.

    2. Filosofia e cosmoviso Kngo: os princpios fundantes

    Tal como j indiciamos no primeiro volume desta investigao9, a fundao do reino do Kongo resultou de uma longa experincia de encontros, cruzamentos e convvios humanos durante a ocupao das terras quase no habitadas10 em que se instalar geograficamente o terri-trio dos kngo. A ideia de conquistador que a historiografia moderna associa a um Ntinu Wene, chamado Ne lukeni, que ocupa Mbnza-Kngo, parece-nos tambm uma mera transplantao lingustica e nocional de estudiosos europeus.11

    quando se visita, a ttulo de exemplo, os museus de Florena, nota-se como patente a noo de conquista tanto nas esculturas quanto nas pinturas

    7 F. Pigaffetta nunca viajou para o reino do Kngo, e duarte lopez descrevia regies que nunca conheceu e nem explorou pessoalmente.8 Sobre as vicissitudes da Relatione, o professor Willy bal escreve: le crdit dont jouissait luvre diminua fortement, lorsqu la fin du XVII sicle se manifesta une raction violente, excessive dailleurs, contre les conceptions que les gographes antrieurs se faisaient de lintrieur de lAfrique. les Anglais surtout, oposant battel son contemporain lopez, jetrent le discrdit sur la Relatione. Cependant, notons-le, une expdition sen fit encore en 1728, Venise . E continua: Au XVIII sicle et au dbut du XIX sicle, les compilations caractristiques de lpoque ne sont pas avares de critiques ladresse de Pigafetta et lopez (bal, W., Desciption, p.XXV).9 bATSIKAMA, P. As Origens do Reino do Kongo. luanda: Mayamba, 2010, 370p.10 de acordo com os relatos da ocupao que recolhem Jean Cuvelier e Jean Van Wing, e relatos que recolhemos juntos dos Ckwe, umbndu, Nyaneka, eram regies fracamente habitados. As terras no eram suficientemente ocupadas para fazer face as invases de um povo migrante, tecnologicamente mais forte e politicamente mais slido.11 O cenrio semelhante aos negrilogos, em relao as negritudes africanas. A mentalidade feuda-lista de estudiosos europeus antigos fomentou consideravelmente uma leitura da frica de acordo com concepes no-africanas, levando obviamente a uma compreenso equivocada de importantes factos africanos. Ver a este respeito a obra de Stanislas Spero K. Adotevi, Negritude et negrologues (Plon/union geral ddition, em Paris, no ano de 1972). Para uma ampla discusso, conferir ainda Allier, R., le non-civilis et nous. diffrence irrductible ou identit foncire, Payot, Paris, 1927 ; Asante, Molefi Kete, The Afrocentric Idea, Temple university Press, Philadelphia, 1987, entre outros.

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    gigantes que neles se exibem.12 O facto que tal noo de conquista em nada tem a ver com as conquistas associadas e registadas nas pinturas parietais e rupestres do espao kngo.13 Assim, para evitarmos enveredar pelos caminhos de todo esprito acadmico no kngo, comearemos por enumerar e definir alguns princpios axiolgicos de vida Kngo14, que constituem a cosmoviso humana fundamental da vida e da histria dos Kngo, com base nos quais discutimos, ao longo do texto, as razes fundamentais em que se estrutura a fundao do Kngo, tal como a apresentamos.

    a) Integridade e indivisibilidade do territrio: Kngo tadi: ka bsuembasinga15 - Kngo uma pedra impossvel de dividir em partes.

    b) Emigrao e/ou ocupao do reino: Nsndi tufila tu, Mbmba tulambdila mlu16 - enquanto as nossas cabeas so sempre dirigidas ao Norte (Nsndi), os nossos ps so direccionados para o Sul (Mbmba).17

    c) Respeito da personalidade humana: Mbwa zngi, nkulu zngi, kimfwetete katnueknda; muntu, mfumu ka wnduembata, ngo ka bakatuleknda18 - assim como no permitido pisar a pequena formiga, tambm proibido atentar contra a vida de um servo, at mesmo a de um co. Assim como no se pode abater um leopardo, rei da selva, no se pode maltratar (bater) a um ser humano, que o rei do seu meio.

    d) Paz e tranquilidade no reino: Ku Lmbu ke kwakota ngulu ye mbwa. Twavwikwa luwusu kwa ynampluka, twalungwa muna maknda ma nkosi ye ngo19 - Ao Palcio (pas) no tenha acesso nem porco nem co

    12 Citamos aqui Florena por ser o epicentro do Renascimento, cujo esprito permeou todos os registos historiogrficos e antropolgicos de quase toda a modernidade nascente. Embora Joseph Ki-Zerbo deixe a entender na sua obra que as sucesses ao trono em toda a frica pr-colonial foram sempre sangrentas (Ki-Zerbo, LHistoire de lAfrique noire, Hachete, Paris), levando a que alguns analistas localizem a as razes dos problemas polticos da frica contempornea, em relao o Reino do Kongo ns pensamos no s o contrrio, como pretendemos mesmo determinar e denunciar as influncias do esprito de conquis-tador associado com o estudo da realidade histrica do continente.13 A ocupao pelos Zimabbweyanos, ou bantu, do espao em que os Khoi Khoi e os San eram ocupantes autctones marcada por alianas entre os naturalizados e os autctones. A fora no se configura a como o instrumento facilitador por execelncia para a ocupao, como veremos mais adiante. Existiram, isto sim, conflictos entre os Zimbabweyanos em questes pontuais, tais como a violao de direitos fronteirios e a no observncia das regras de estruturao social. Entretanto, todos estes aspectos enquadram-se num sistema de cooperao pr-estabelecido, no que so casos isolados de relaes de conflito. A famosa conquista de Nimia lukeni (ou Ne lukeni), pintada com noes de romanismo pelos antigos estudiosos, parece ser um outro tipo em relao conquista tipicamente romana, ou europeia do perodo pr-moderno.14 A determinao desses princpios decorrem de estudos que conduzimos sobre as relaes sociais (antropologia dos costumes) e as posturas comportamentais tpicas dos Kongo, geralmente encerradas nos enunciados filosficos dos provrbios, adgios e contos que permeam a cultura Kongo. Assim, o acesso a tais instrumentos do pensamento tradicional ser aqui feito por meio de recurso lngua Kongo. 15 Cuvelier J., op. cit., p. 100; Mertens J., Les chefs couronns chez les Bakngo orientaux, I.R.C.b., bruxelles: 1942, p. 122.16 Op. cit., pp. 5, 6, 27-29, 34, 59, 77 e 123; Planquaert M., Les Jaga et les Bayaka du Kwngu, Tervuern: 1932, p. 49.17 A partir deste princpio indiciamos, no primeiro volume deste estudo, a nossa tese de uma origem meridional do reino do Kongo, que nesse volume passamos a ampliar e fundamentar.18 Ibid., p. 70.19 Ibid., p.12.

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    (inimigo). quando estamos sempre cobertos de bno que progredimos no entendimento, na unio e na concrdia.

    e) Cidadania: Wakndwa mvila mu Kngo, wyi wa ntuma nkuni ye maza20 - Aquele que no pertence a uma de suas trs linhagens escravo no Kongo, eternamente destinado a recolha de lenha e gua.

    f) Nacionalidade: Mpmbele ndngandi luzmbo, kansi mpngiaku muna mazimi ye mvila - Mesmo sendo o Mpmbele originrio de Zombo, por sua linhagem sanguinea seu irmo (compatriota).

    g) Unio: Tusnga bungudi vwa kwa ntalu. Tu akimpalakani, lumbota-mbota mu lmbua maza: ana fwmbika, ana veteka; efmbwa kana mfmbilu, evetekwa kwa mpndi ye lngo21 - A unio um precioso tesouro; assim como os lumbota-mbota22 entrelaados a beira de um rio, as correntes podem envergar-nos mas jamais sero capazes de nos desunir.

    h) Equidade das leis: Nsi ya lukndu, i nsi ya lubndu; kaknda, bndwidi; kabnda, kndwidi23 - No mesmo pas em que a lei severa, h tambm tolerncia.

    i) Igualdade dos cidados perante a Lei: Mfumu ye mfumu: Ngnga ye ngnga Todos somos mestres, todos somos senhores.24

    j) Direito de contestar (direito da oposio): Bana batle, bana basekole, literalmente: onde h os que dizem, deve haver os que contradizem.25

    k) Respeito aos estrangeiros: Nznza ka vnguenkuta26 - proibido intimidar ao estrangeiro, e Tukundenznza, ke tukayilwa kwa nznza ko27 - recebamos os estrangeiros com hospitalidade e reverncia, mas recebamos nada deles.

    l) Autoridade competente: Kngo dya kngoa ngolo; vo kuna ye ngolo ko, Kngo katuma dyo ko28 - o governo do Kngo pertence ao Mu-Kngo mais capaz; Sem as capacidades necessrias, inutil pretender dirigir o Kngo... Isto porque mu mpu mu zngilnga nsi29, isto , a vida do pas depende da capacidade daquele que exerce o poder.

    m) Eleio popular da autoridade: Tadi lengo-lengo, vo kulengomokene dyo ko, Kngo kuyla dyo ko - Sou (o povo) que nem uma

    20 Ibid., pp. 43, 61 e 87.21 Ibid., pp. 10, 53 e 8922 um tipo de rvore selvagem, geralmente situado beira de rios, cujos ramos crescem em forma de feixes de razes cipoadas que se entrelaam de forma anrquica formando um imenso feixe entrelaado que torna praticamente impossvel a tarefa de desuni-los sem recurso ao corte radical e paciente de cada ramo.23 Cuvelier J., op cit., p. 76.24 Este provrbio uma frmula que introduz um orador em cena diante de uma assembleia delibera-tiva, proclamando que todos os cidados so iguais no Kngo.25 Esta tambm uma frmula legislativa que introduz em cena os oradores tradicionalmente chamados de mpovi, responsveis pelo contraditrio num parlamento de cidados.26 Cuvelier J., op cit., p. 6927 Ibid., p. 141 e Jaffr C., LAfrique aux Africains, le Ngouzisme au Congo, in Etudes, Rvue Catho-lique dintrt gnral, Paris n. de Mars 1934, p.659.28 Cuvelier J., op cit., p. 44.29 Van Wing J., Etudes Bakngo, Histoire et Sociologie, goemaere, bruxelles: 1921, p.144.

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    pedra muito escorregadia (tadi lengo-lengo), quem com ela no familiariza jamais chegar ao poder.30

    n) Investidura:Kimfumu, salu kya tmbikwa31 - o poder um assunto de inves-tidura (isto , no h poder naquele em quem no foi investido por quem o detm).

    o) Aprendizagem da arte de governar e exercer poder. Wazola yla, teka tebwa kungulu32: corte todo o cabelo se queres governar.

    p) Mandatao constitucional dos cargos: Zngu kya bumpati, i zngu kya Bungnga33: a durao de um mandato (bumpati), poltico ou administrativo, deve ser consagrada na lei sagrada (bungnga), neste caso a Constituio.

    q) Respeito da Lei: Kodya dya myo, ka dikomwa, ka dikatulwa lngo34 - No caracol (kdya) da vida, a autoridade no pode tirar nem aumentar uma lei ao seu bel-prazer. Isto , uma Constituio no pode variar consoante o detentor do poder.

    r) Linhagem do poder35: Na Mbnza wuylanga, Na Mavngu ka ylnga ko36 No Kngo, somente os descendentes de lukeni (Mbnza) exercem o poder tanto poltico, administrativo, quanto judicirio no Kngo.

    s) Responsabilidade: Vita watnga tu, ke mabndu ko Em tempo de guerra contam-se as cabeas e no a quantidade de regimentos.37

    t) Autonomia no poder: Na Mbmba kote, Na Nsndi kote, ke vena wubngula kotea kweno ko38 Tanto aquele que governa em Mbmba, quanto aquele que governa em Nsndi, tm cada um os seus deveres (nenhum dos dois poder interferir nas prerrogativas do outro).

    u) Hierarquia: Nkusua mbakala ka sngwa ye mbnde. Vo nkusu, nkusu ; vo mbnde, mbnde; vo ngone, ngone ; vo mfngi, mfngi O sulbaterno no pode merecer a mesma considerao que o seu superior (nkusua mbakala).

    v) Democracia: Ndngole, ndngole: sya ayi mtu39 Toda a autoridade deve exercer o poder com as orelhas. Isto , o poder no consiste somente em ditar ordens, mas tambm em escutar o povo.

    30 Estamos diante de um adgio cujo sentido fundamental : chega-se ao poder mendigando-o do povo (como quem brinca com a pedra escorregadia). Por isto aquele que tem o poder chamado de mendigo, pedinte, isto , Kiyala moko, tal como o demonstra batskama ba Mampuya, op cit., p. 231, e tal como o fizemos no volume I desta investigao: batskama, P. As origens do reino do Kngo, pp.258-259.31 Cuvelier J., Traditions congolaises, in Congo, T.II, n. de Septembre, 1931, p.199.32 bahelele, J.N., Kinzonzi ye ntekoloandi Makundu, E.P.I., Kimpese: 1956, p.3033 batskama, R., op. cit., p. 230; dartevelle, E., Les Nzmbu, monnaie du royaume de Congo, Socit Royale belge dAnthropologie et de Prhistoire, bruxelles: 1950, pp. 12, 24 et 25; Mertens, J., op cit., p.442; bittrmieux, l., La socit secrte des Bakhimba au Mayombe, I.R.C.b., bruxelles: 1936, p.3934 dartevelle, E., op cit., p.23.35 Refere-se tradicional tridimensionalidade do poder pblico: poder poltico, poder administra-tivo e poder judicirio, excluida a ideia de se o seu exerccio democrtica ou no. Adiante veremos o caso peculiar do Kngo.36 bahelele, J.N., op cit., p.57.37 Tal como tradicionalmente utilizado, o adgio inclui a noo de que todo o lder deve consciencia-lizar-se de que o erro dos seus liderados seu erro.38 Cuvelier, op cit., pp. 16, 68, 125; Van Wing, J., Etudes Bakongo, descle de brouwer, bruxelles: 1959, p.37, 77. Estes autores tero confundido o termo koto com kote, fazendo crer que tratava-se de algum saco para recolher os impostos. Ora kote ou lubngo (luvngo), ou ainda nkuwu, um manto de poder.39 Cuvelier, J., op cit., p.92

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    w) Diligncia: Wundyeka mfndi, kundyeki dyambu ko40 Faa jejum de funge, jamais do conhecimento em que h a instruo.

    x) Pragmatismo: Tukmbevwa, ke tukmbi mmbo ko41 Aclamamos as realizaes e no as promessas.

    y) Liberdade de comrcio: Knga sa, kukngi kela ko. Vo knge kela, mbngo yifwidi ye nzala42 Ao povo pode-se privar momentanea-mente as liberdades individuais, mas no se deve privar o comrcio para no provocar fome nao.

    z) Respeito ao patrimnio pblico: Kyame i vwa, kyeto ka vwa ko o que meu acaba, mas o que nosso que perdura.

    aa) Direito pblico da terra: Mbngo mu toto, fwa dya knda, ka yidynga muntu mosi ko43 - a terra e tudo o que ela produz pertence comunidade (ao povo). A ningum permitido apoderar-se isoladamente.

    ab) Defesa do territrio: Nsi yakmbo zimboma: tsimpangala um pas sem foras de defesa que nem hangar sem tecto.

    ac) Vigilncia do territrio: Na Mata ma Kngo, ngo kana lle, nsnsiakila ka yilndi lka ko44 Tal como a cauda do leopardo que dorme, os soldados do Kngo vigiam e movimentam-se noite e dia.

    ad) Honra: Tobola nkosi, tobola ngo: lulndo mbuta45: seja sempre mais forte46 e mais poderoso que o leo e o leopardo, mas jamais se canse de em tudo ser honrado.

    3. A organizao tripartite da sociedade

    Tal como se evidencia historicamente, a sociedade Kngo parece estru-turar-se em trs linhagens: Nsaku, Mpnzu e lukeni (Makukwa matatu malmbe Kngo). Cada uma destas dimenses governativas constitui uma linhagem, uma luvila47, que do ponto de vista da organizao social remete a Kinsaku, Kimpnzu e Kilukeni.48 Eis as outras associaes destas linhagens:

    a) ZNGA, qual esto associadas outras expresses linhagticas, tais como Kilukeni, Kalnga, Kibwnde, Kimbmba, Kinnga, Kingyo, Kinknga,

    40 Martins, J, Sabedoria Cabinda, lisboa, 1968, p. 70 e batskama, R., op. cit., p. 23141 Cuvelier, J., op cit., pp. 77 e 10142 Ibid., pp. 30, 77, 105, 121, 138 e 14143 Ta Masmba luvwa, Fu kya nsi kweyi kina? in Kukiele, Revue diocsaine de Matadi, n. 7, 1956, p.9344 Cuvelier, J., op cit., pp. 22, 24, 28, 29, 31, 103 e 141 ; Van Wing, J., op cit., p. 37, 51, 53 e 59; Mertens, J., op cit., p.422.45 Mertens, J., op cit. p. 347 e 394; batskama, op cit., 235.46 bal, W., Description du Royaume de Congo et des Contres Environnantes par Filippo Pigafetta et Duarte Lopes (1591), Paris/louvain: Ed. Nauwelaerts, 1961, p.117, 13247 Luvila, de lu, prefixo indicando uma qualidade, um defeito, e de vila: ligar, unir: qualidade daquilo que ligado; o lao, conjunto de descendentes de um ancestral comum.48 O prefixo Ki podendo indicar, entre outro, uma qualidade ou um desfeito: Kinsaku, Kimpnzu e Kilukeni podem respectivamente significar a qualidade, o parentesco de Nsaku, Mpnzu e lukeni.

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  • 29O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    Kinknge, Kiznga, Kikyngala, Kynza, Mafuta, Makngo, Madngu, Manynga, Maymba, Mahnga, Mbnda, Mbngala, Mbnza, Mbnda, Mpngala, Nknga, Ynga, etc.

    b) NSAKU, qual se associa designaes linhagticas como Kinsaku, Kikmba, Kinkala, Kinsmbo, Kyaka, Kiyidi (Kividi), Kwmba, lmba, lmbe, lukuti, Makaba, Mandyangu, Mankunku, Masaki, Kyowa, Mfumvu, Mpmba, Mvmba, Mvmba, Mvika, Matsnga, Musnge, Mwla, Ndngi, Ngmbi, Nimi, Nkuwu, laza, Nsnga, Nsmbo, Nsngi, Nsngu, Ntmba, Nyati, Vita Nimi, Vnda, Vuzi, etc.

    c) MPNZU, qual se associa outras designaes, entre as quais busmba, Kimbmbi, Kimbmbe, Kilwngu, Kinkosi, Kinkmba, Kilmbo, Mawngu (Mavngu), Mangungu, Mbawuka, Mbmbi, Mboma Ndngo, Mbuma, Mfulama, Mfuti, Mfutila, Mpnda, Mpnga, Mpudi, Mpngu, Mpakasa, Mwngu, Mwnza, Ndmba, Ngola (Ngolo), Ngoma, Ngmbe, Ndngo, knzia znga, Nsndi, Ntmbu, etc.

    4. A Organizao tripartite do territrio do reino

    Parece que se atribui maior considerao aos territrios, tal como reza a Tradio Oral nas seguintes citaes:

    1: Ne Kyngala, nkwa mpu makumatatu zakndwa tatu.49 Ne Kyngala quer dizer Sua Majestade Rei do Kngo, cujo poder expresso, tal como veremos, num jogo de trinta coroas menos trs;

    2: Kuna Kngo-dya-Mpngala, [tku dya] nzndu mavwa matatu50, isto , no Kngo-dya-Mpngala [a origem] de nove vezes trs bigornas;

    3: Kngo dina wngu mavwa matatu51, isto , o Kngo, reino cujo poder constitudo por nove vezes trs argolas;

    4: Mbnda, Na Kngo, wabandakana mavwa matatu ma lnga vana Wne wa Kngo52: Mbnda, o soberano do Kngo, (que) leva ass nove vezes trs argolas da Majestade do reino.

    Ora, as sub-regies (distritos) e zonas (territrios) formam as bandas de terras consideradas como rectangulares, paralelas umas das outras, assim como as regies (provncias), seguindo a mesma circunscrio: a do Sul, com o nome de lukeni; a segunda e a terceira (do meio e do norte), tomando respectiva-mente os nomes de Nsaku e de Mpnzu (Fig. #1). deve ser notado que a capital (Ngnda, Mbnza, Kimbnza ou Kimbnda) de cada trada devia obrigatoria-mente se encontrar na circunscrio do meio.

    49 Cuvelier J., op cit., pp 7 et 3850 Ibid., p. 51; Van Wing J. op cit., p.155.51 Ibid., p. 1352 Ibid., p. 141.

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  • 30O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    Contudo, se cada regio (provncias ou departamentos) contava ao todo nove zonas (territrios), administrativamente elas possuam apenas sete, pelo facto de que a autoridade de cada regio foi ao mesmo tempo responsvel por trs zonas da sub-regio do meio. Esta ltima circunscrio recebeu, por isso, o nome de Kimvmba, isto , a sub-regio que mantm a sua integridade (Fig. #2).

    Muitos autores falaram da existncia de sete circunscries por provncia. Assim, o rei Ndo luvwlu (dom lvaro I), isto , znga Mpnzu IV (1578-1614), numa carta sua ao papa (datada de 20 Janeiro de 1583) falava entre outros assuntos dos sete reinos de Kngo-dya-Mulaza53; segundo, Monsenhor A. le Roy, citando R. E. dennet, relata que o povo de loango ocupava sete provncias54; terceiro, o

    53 Cuvelier J & Jadin l, LAncien Congo daprs les archives romaines, Acadmie Royale des Sciences Coloniales, bruxelles: 1954, p.161.54 le Roy, A., La religion des primitifs, g. beauchesne, Paris: 1925, p.97.

    Fig.#1 - As sub-regies (Distritos) so consideradas como sendo rectangulares paralelas.

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  • 31O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    Padre Jrme de Montesarchio assinala que em 1666 em Mbmba cinco principais chefes revoltaram-se e que apenas dois permaneciam fis55; quarto, o Padre domingos botelho, citado por bontinck, declara ter visitado pessoalmente todos os sete reinos do Kngo.56

    55 bouveignes O. & Cuvelier J., Jrme de Montesarchio, Aptre du vieux Congo, lavigerie, Namur: 1951, p.18056 bontinck, F., Diaire congolais de fra Luca da Caltanisetta, Nauwelaert, louvain: 1970, p.XXXIX.

    Fig.#2 - As sete zonas administrativas duma regio ou provncia (nmeros rabes) e suascircunscries polticas (nmeros romanos).

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  • 32O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    Nestes exemplos so referidas no somente as regies (provncias), mas tambm as sub-regies (distritos) que tinham, cada um, sete circunscries. o caso de Mbmba, tal como dissemos. quanto ao sete reinos do Kngo do Padre botelho, tratar-se-ia aqui das sete zonas administrativas da parte central do Kngo. Esta parte correspondia apenas a da totalidade territorial desse reino, tal como foi descrito por Pigafetta.

    A administrao Kngo utilizava uma terminologia prpria para designar as circunscries. Assim, Kinkosi, para regio ou provncia; Kimbuku, para distrito; Kikayi, zona ou territrio; Kifuka ou Mumvuka, colectividade local (Comuna).

    5. Organizao tripartite e poder: a democracia Kngo57

    No nosso primeiro volume desta investigao58 escrevemos o seguinte, a respeito desta organizao tripartite, quanto ao significado simblico de cada partio:

    NSAKu: Sacerdcio, Presbiterado; Religio (Magia), consagrao das Autoridades, diplomacia, Constituio, Poder Judicirio, Poder legislativo.

    MPNZu: guerra, Indstria, Segurana da Corte, Segurana do Pas, direito Eleitoral.

    ZNgA59: Administrao, Justia, Poder Executivo (limitado), poder poltico (limitado), Classe das Elites das Migraes.60

    So essas Makukwa matatu malmbe Kngo que remetem ao plano geral da gerncia pblica do reino. Tudo indica que os Nsku e os Mpnzu seriam os verdadeiros detentores do poder executivo, que exerceram atravs da sua Me Nznga.61 Assim, temos:

    a) Poder legislativo

    Os membros dos corpos legislativos e os colgios eleitorais, cujas responsabili-dades podemos encontrar nos relatos linhagticos, so geralmente chamados Ngudi-za-nkama (Ngdia nkma, no singular): quer dizer, as mes da vida com poder de auto-voto. Independentemente de pertencer linhagem Nsaku ou Mpnzu, levavam 57 Neste ponto adoptamos uma concluso sensivelmente diferente daquilo que apresenta Raphal batskama no seu artigo Structures et institutions du Kngo (em francs). Optamos por apresentar comparaes daquilo que reza a tradio em relao aos testemunhos oculares dos Padres e cronistas, registados sobre Kngo nos sculos XVI e XVII.58 As origens do reino do Kngo, luanda: Maymba, 2010, pp.340-34159 Em kimbundu o termo designa o chapu do chefe: mugnga (tal como escreve-se geralmente). Ora, no princpio kngo , tal como citamos Jean Van Wing atrs, mu mpu mu zngilnga nsi, isto , no chapu de chefe est reunido o pas. A relao entre mpu, chapu, e o verbo zngilnga remete mesma raiz que muginga.60 Conforme antecipamos no primeiro volume desta pesquisa (Vide Parte II, Captulo IV, ponto 5: democracia no velho Kngo), sobre a necessidade de voltar a este tema com ulteriores esclarecimentos, mais do que isto tentaremos agora reconstruir a Histria por meio da comparao entre fontes bibliogr-ficas e dados fornecidos pela Tradio.61 Ver o princpio h): Mbnza uma outra apelao de lukeni, ou znga.

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  • 33O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    o patrnimo de Mfutila62, rigorosamente em todas escalas do poder: (1) Mfutila wfuta wna ngo muna mfkoloandi,63 o instrutor que prepara as autoridades; (2) os Myala64: Myala mya znga, Ni Nsngi wasngela bankwa yla vana mbzia Nknga: o instrutor que mostrava como governar na Corte do Kngo.

    Os membros da famlia Nsaku e os de Mpanzu so de facto conside-rados como verdadeiros detentores do poder porque orientam e estabelecem os parmetros de comportamento social. As linhagens afiliadas a Nsaku reclamam sempre o direito de ser mais velho da sociedade, por isso todo administrativo eleito (do municpio ao trono) deve ser consagrado pelo Nsaku Ne Vunda.

    b) Poder Executivo

    As famlias descendentes de Maznga eram detentoras do poder executivo em amplo sentido: (i) ocupavam os cargos administrativos de todos os escales do poder executivo, desde o municpio, o districto, a provncia at o reino inteiro: Maznga wazngila, ntua makanda mawnso znga wavta yala mu Kngo65 ; (ii) a todos os kngo da linhagem de Maznga delegado esse poder tradicional de fazer e comandar: Maznga ma Tona, mvla nene Kavwta nsnga, nnga meno ma nkosi ye ngo. Teleka kateleka; lnga kalnga.66

    Na consmoviso dos Kngo o poder pertence ao mais velho uterino. Numa casa, o primeiro filho tem a autoridade sobre o resto. Nessa lgica, o verda-deiro poder pertenceria aos membros da famlia de Nsaku. Perceberemos que os Nsku (pertencentes linhagem Nsaku) partilham esse poder com os Mpnzu. Na forma prpria do exerccio desta partilha, os descendentes de Maznga so apenas ministros no sentido latino do termo. No Kngo ele so considerados como delegados de Nsaku e Mpnzu para executar os actos da governao. justa-mente nesse sentido que Raphal batskama diz que o poder a considerado como um ser humano, tendo um lado material e um lado espiritual. O lado material foi delegado aos Maznga, que deviam obedincia as aces comandadas pelo esprito (clebro) dos Nsaku.

    quando este poder no era executado, ou era apenas timidamente executado, os Makta e Manknnku recuperavam-no para si, e submetiam a autoridade cessante a uma nova fase de iniciao para a sua eventual re-introduo. O poder s lhe era devolvido se sobrevivesse este outro longo ciclo de rituais e cerimnias de empodera-nento e sagraco: snga, meno ma ksi ye ngo, tal como se leu.62 Mfutila, de m, prefixo indicando a aco e futa, dar a forma ideal a cabea do beb, mas tambm educar, instruir. Mfutila , pois, equivalente de instrutor, pedagogo, preceptor. Nas outras regies, utiliza-se Mbngu ou Mahngu para o mesmo sentido.63 Cf. Cuvelier, J., Nkutama mvila za maknda, Tumba, 1953, p.41.64 Myala ou Mayla: de Ma, prefixo de agente; e de yla : governar, comandar, aquele que governa. Mas especialmente aqui significa aquele que governa as autoridades.65 Cuvelier, J., Nkutama mvila za maknda, Tumba, 1934, p.21. Traduo livre: Maznga protege todas famlias e znga foi o primeiro a reinar no Kngo.66 Cuvelier, J., Nkutama mvila za maknda, Tumba, 1934, pp.21-22. Traduo: Maznga, Chefe da Expedio/Explorao uma linhagem poderosa que leva insgnias do poder (braceletes/colares, dentes e unhas de leo e leopardo) linhagem que proteje a sociedade.

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  • 34O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    c) Poder militar

    Eram os membros da famlia Mpnzu que detinham monoplio em matria de poder militar. Este poder, que incluia os mitos da fundao que desenham os limites do comportamento social, era completado pelo poder religioso atribudo aos membros de Nsaku. desta forma, o poder militar era auxiliado pelo poder religioso, fazendo prevalecer uma ordem tradicional na qual a proeza militar deve quase tudo capacidade religiosa de dominar os fenmenos.

    A Tradio clara quanto ao legado de que a guerra oficio dos Mpnzu: (1) Mpnzu, com o significado de que o poderoso conquistador afiliado de Mpdi; (2) Mpdi, a fora militar activa, designa o conjunto dos guerreiros que agiam de acordo com as leis estabelecidas, chamadas de Mpngu za Baklu; (3) Mpngu, que no singular significa criador, aproxima-se semanticamente da lei militar como parte integrante das leis dos Ancestrais; (4) Mpanda,67 cujo sentido primeiro tecelo, mas que designa sobretudo o estratega da guerra. Assim, estamos perante diversos especialistas em matria de guerra, tal como se organizava no reino do Kngo. J assinalamos que Mpnzu, Mpdi, Mpngu e Mpnda (Mvngi) so patrnimos que designam a linhagem dos besi Kimpnzu.

    Como se pode notar desta breve resenha, a realidade kngo sobre a diviso dos poderes, e sobre os poderes que existiam efectivamente no reino, diversa e suas acepes so diferentes em relao a noo actual de diviso e separao de poderes. O primeiro e o ltimo constituem uma s substncia nocional do poder, que comporta simultaneamente a ideia de lei e fora. Os reis e os administrativos so, de facto, servidores do povo (minsterium) que executam o que os dois primeiros deter-minam. Foi depois da evangelizao, em 1491, e mais tarde com o reinado decisivo de dom Afonso I Mvmba znga, que comearam a mudar as instituies kngo para adquirir uma face pr-ocidental. Antes disso apenas os znga poderiam ser Mfmu, no sentido do Heri civilizador que vai buscar a sua legitimidade adminis-trativa/executiva junto do povo. Isto , os znga eram instrumentos operacionais para concretizar as polticas traadas pelas duas outras famlias.

    a partir dessa estrutura tripartida, permitindo que as responsabili-dades pblicas empenhadas no bem comum sejam legitimamente caucionadas, que ter sido gerido o reino do Kngo. logo a partida temos a separao desses poderes com as instituies sociais e religiosas fortemente enraizadas, para evitar violao ou subverso de responsabilidades.68

    quem tambm confirma isso Andrew bettel, que viveu entre os Kngo de lwngu:

    A capital de Loango era no centro de quatro administraes sob direco de quatro chefes que eram filhos da irm do rei, [e que] no podiam

    67 de facto, o patrnimo MPNdA MVNgI quase nulo na nomeclatura da cidadania kngo. O Heri civilizador chamado Mpnda Mvngi era no s criador ou estilista das criaes. Importa salientar que, em matrias de guerra, Mpnda Mvngi ter sido o estratega das guerras da conquista.68 balandier, g., La vie quotidienne au royaume du Kongo du XVI au XVIIIe sicle, Hachette, Paris: [1965] 2009, p.28, 64.

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  • 35O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    reinar.69 O primeiro chamava-se Mani Cabango, o segundo Mani Salag, o terceiro Mani Boek, o quarto Mani Kai que se tornava rei. Depois da morte do rei, Mani [Kayi] sucede ao trono, Mani Boek toma o lugar de Kai, Salag toma aquele de Boek, Cabango o de Salag e sucessivamente. Cada um entre eles esperava a sua vez para se tornar rei.70

    Pergunta-se: porque os filhos da irm do rei no podem reinar, se na realidade devem todos pertencer a mesma linhagem dos reinantes, das autoridades execu-tivas? Resposta: porque o seu tio (nkzi) ainda est a reinar (e vivo). de facto todos eles esto a reinar nos seus respectivos lugares, mas na linguagem do autor que apresenta-nos esse testemunho, reinar relaciona-se ao rei. bettel no quer dizer, como alguns fizeram observar, que os sobrinhos do rei no tenham direito ao trono.

    Acontece que existe um sistema que funciona desta forma: (1) morre o rei, e comea-se a apresentao dos candidatos que devem passar por uma escolha na competncia dos Nsaku/Mpnzu atravs dos seus Mfutila e Myala. O sucessor imediato seria um certo Mani Nkayi, e tendo em conta a estrutura scio-territorial, devem existir trs Mani Nkayi; (2) as escalas inferiores a que pertence Mani Nkayi (trs em cada), que vo ficar desocupadas, passaro a ser ocupadas posteriormente, razo pela qual bettel s fala de um candidato em cada escala. Convinha trs candi-datos em cada posto, em princpio.

    Sem considerar o regime especial da sub-regio do centro em cada depar-tamento71, o reino, embora estejamos a antecipar, era constitudo de quatro regies (provncias) tendo cada uma quatro territrios, e cada territrio contendo quatro colectividades (comunas).72

    Assim compreende-se esta hierarquia de circunscrio onde encontramos Cabango73 na base da escala, Salag74 no segundo grau, Mani Mbuku no terceiro e Mani Kyi que sucede ao rei, no quarto. O quarto grau aqui, no contexto da descrio de bettel, Mani Nkosi, tal como se diz na regio.

    Tendo em conta a descrio de bettel que est nas regies de lwngu, isto , Kngo-dya-Mpnzu, o rei (Mani Kngo) estaria no sexto, tal como faz perceber dennet que situa lwngu como a terceira parte do reino do Kngo.75 Mertens apresenta-nos a forma como as candidaturas aos cargos era feita, na discrio do colgio eleitoral.76

    69 No se trata aqui da irm do rei no sentido europeu do termo. Trata-se de qualquer membro por descendncia uterina a Maznga/lukeni.70 Pinkerton J., The strange adventures of Andrew battel, in A general collection of the Best and Most interesting voyages and travels in all parts of the World, london: 1814, vol. 16, p. 331, citado por A. Fu-Kiawu, Le Mukngo et le monde qui lentourait. Cosmogonie kngo, ONRd, Kinssa : 1969, p. 109.71 Ve a Fig.#1.72 Ver o ponto c) Terceira regio (provncia) : Mpnzu.73 Kabngu seria aqui o ttulo dum chefe de localidade cujo nome Kibngu ou ainda bngu. Caso Kabngu seja o que dapper menciona, tal como citado por Cuvelier J., (Traditions congolaises, Congo, T. II, #4, bruxelas: 1930, p. 474), designa o governador da regio (provncia = de Mpnzu, que ainda chamado de Kibngu ou bngu).74 Salag (Nsla ou at mesmo Nsngala) parece ser um ttulo derivado de nome de um municpio.75 dennett R.E., At the back of the Black Mans mind, p.35, citado por le Roy A., La religion des primi-tives, beauchesne, Paris: 1925, pp.97-98.76 Mertens J., op cit., pp. 69 e 348

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  • 36O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    uma vez eleito o digno representante, os Mfutila e os Myla iro ensinar o eleito a Histria, a arte de falar, as sentenas, as mximas, os provrbios, etc.77 A finalizao dessa instruo foi certificada pelas trs argolas (lnga78) que eram colocadas no brao esquerdo do eleito como signo de representante e defensor da integridade dos makukwa matatu malmbe Kngo.79

    Os trs makukwa aqui so as provncias do reino: Kngo-dya-Mpngala ou Mbmba, no Sul, o Sul-de-Este e Sul-do-Oeste; Kngo-dya-Mulaza ou Mpmba-Kazi, ou ainda Kwmba que se estende a leste e finalmente Nordeste; temos

    depois Kngo-dya-Mpnzu ou Kabngu, que ocupa a parte de frica Equatorial (francesa). Ver a figura #3.

    77 Idem, pp. 52, 56, 60, 102, 303 e 409.78 lnga: do prefixo N e lnga, com o sentido de ser completo, refere-se aquele que recebeu uma formao completa para exercer responsabilidades sociais.79 Mertens J., op cit., pp. 69 et 348

    Fig.#3 - Le lu-KNGO-lo ou a coroa Kngo nas suas quatro partes constituintes

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  • 37O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    A parte do meio foi chamada Zita-dya-nza pela Tradio, ou ainda Kngo-dya-Kati. Foi ainda considerada como a parte pertencente me de Nsaku, Mpnzu e lukeni que so Kngo-dya-Mulaza, Kngo-dya-Mpnzu e Kngo-dya-Mpngala. Eis como a Tradio a representa, segundo Cuvelier: znga waznga Kngo, mlu malmbuka vana ntndua nkuwu,80 isto , znga que junta o Kngo, os seus ps majestosamente posados num tapete luxuoso. Pigafetta tambm tentou descrever esta parte sob a designao de kmba Wungdi, associada com o actual Mbnza Kngo, e que passar por isso a representar a origem de todos os Kngo.81

    A repartio territorial e as populaes que l viviam salvo no Zita-dya-nza apresentada por Pigafetta, embora com srias lacunas pode ser recuperada a partir de alguns nomes que a literatura histrica e antropolgica representa como

    80 Cuvelier J., op cit., p. 134.81 Parece-nos que seja uma tentativa de explicar a preteno da ento regio de So Salvador ser a terra de origem de todos os Kngo.

    Fig.#4 - O lu-KNGO-lo ou a coroa Kngo e a colonizao.

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  • 38O REINO DO KNGO E A SUA ORIGEM MERIDIONAL

    raas e tribos.82 E, como cada bairro (comuna) nessa repartio contava quatro colectividades locais, chega-se a vrias tribos. No municpio, repartido em trs bairros, habitavam 12 tribos (4 x 3), 36 numa provncia (12 x 3) e 144 em todo o pas.

    1.1 Primeira provncia: KNGO - DYA - MPNGALA

    Esta provncia se localizaria na parte de Angola que fica entre as regies ao Norte do Kwnza at possivelmente mais alm do rio Kunene. possvel que nos finais do sculo XV, aquando da entrada do reino do Kngo na literatura europeia, esta parte tenha sido reduzida ou, ainda, repartida naturalmente em kinkyi83 dispersos, com as consequentes influncias do desmembramento territorial, sem no entanto perder o embrionrio sentido social e poltico, tal como ficou patente nos sculos XVI com os Jagas84, sculo XVII com Nznga Mbande85 e sculo XVIII com os Imbngala.86 Eis porque as lendas das origens ainda do importncia mesma lgica da criao do reino do Kngo, tal como j o mostramos.87

    Ponto controverso a nossa tentativa de localizar no Sul a origem primordial das populaes que iro fundar o reino do Kngo, sobretudo porque a produo

    82 E. laman apud Sderberg, b., Les instruments de musique au Bas-Congo et dans les rgions avoi-sinantes. The Ethnographical Museum of Sweden, Stockolm: 1956, p.18 e lebel, P., lOnomastique, dans LHistoire et ses mthodes, la Pliade, Paris: 1961, p. 706.83 Kinky o equivalente moderno de municpio, onde na cosmogonia kngo comeava a centrali-zao dos poderes. Razo pela qual foi tido como pequeno pas em relao ao trono de Mbnza Kngo.84 Rafael batskama apresenta os Jagas como famlias militares kngo revoltosos que vo destruir o reino do Kngo. As razes deste acto poderiam basear-se na ideia de golpe de Estado, mas uma anlise mais profunda dos documentos disponveis da poca permite concluir que a revolta resultou de um acordo entre os Yaka e os cidados de Kngo dya Mbngala para repor a ordem e a tradio depois do fracasso de Mpnzua Kintnu (Mpngua lngu/Mpnzua lmbu) em faze-lo. Este acordo justi-ficaria o facto de, da em diante, um enviado dos Imbngala reclamar o trono a cada nova eleio no Kngo. quem fala sobre isso Cavazzi, que ser amplamente citado por Jean Van Wing e, mais tarde por batskama, R., Voici les Jagas ou lHistoire dun peuple bien malgr lui, Kinshasa : 1971, pp.45-67; Childs, g.M., Umbundu Kinship & Character. Being a Description of the Social Structure and Individual Development of the Ovimbundu of Angola, with observations concerning the Bearing on the Enterprise of Christian Missions of Certain Ohases of the Life and Culture Described. Oxford university Press, london-New York-Toronto: 1949, p.185-188).85 Antnio Cavazzi narra com pormenores Antnio Cardonega o faz resumidamente a biografia da rainha dona Ana de Sousa Nznga Mbnde. Para este autor, a sua conquista do reino de Matmba deveu-se em parte ao treinamento militar por ela realizado junto dos Jagas. Mesmo com a forte resistncia dos portugueses, a presena dos Yaka em quase todo o reino como povo devastador ser uma realidade permanente, com particular concentrao em Matmba e toda regio nordeste da regio Imbngala (ver lamal acima citado). Recentemente foi lanado uma nova traduo do manuscrito original de Cavazzi, redigido especialmente para a rainha, pelas edies de Chandeigne, em Paris. O prefcio dessa edio da autoria do casal investigador John Thornton e linda Heywood. A regio de Matmba conquistada pela rainha znga, ento povoada pelos Yaka e outros povos, est localizada na regio noreste do Imbngala.86 A fama dos Imbngala, conhecidos como Jagas, se espalharia at pela Europa dessa poca. Andrew bettel, que foi escravizado por esse povo, relatou a grande monstruosidade dos mesmos enquanto guer-reiros, sempre obcecados com o lema de dar a vida para salvar a ptria. Alguns autores eropeus no entanto consideraro os jagas como povo no Kongo, tal como faz Isabel Henrique (que cita Salles, Carvalho, entre outros): Os Portugueses chegam foz do Kngo em 1482, instalam-se no territrio que vai ser mais tarde a cidade de luanda. A criao do imprio lnda deve na viso portuguesa entrar nesta grelha cronolgica. A relao de causa a efeito assim tornada visvel, reforada pela importncia da invaso do Kngo pelos Jaga. Henriques, I.C., Percursos da modernidade em Angolap.156. Para esta autora os Jagas so Imbngala e no kongo, o que evidencia que ela no saiba poca da escrita que Kngo-dya-Mbngala Mpasi foi uma das trs provncias e a mais antiga do reino do Kngo.87 batskama, P., As origens do reino do Kngo, pp. 247-280

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    cientfica sobre o assunto no parece bastante e consistente. Contudo, as infor-maes reunidas por Hermenegildo Capello e Roberto Ivens na interessante viagem de explorao antropolgica que empreenderam ao sul de Angola88, nos meados e fim do sculo XIX, so interessantes e bastante encorajadoras para a tarefa que nos assiste. um certo esforo investigativo ainda ser necessrio nestes tempos para que se reuna dados que possam ser comparados e confrontar as informaes dessa e outras fontes possveis. Contudo, mesmo em face de tais limitaes circuns-tanciais, podemos aqui abordar com ateno especial esse territrio meridional angolano, que se chamaria Mbngala, ou Kngo dya Mbngala, para reconstruir a sua populao e distribui-la ao seu espao.

    Com efeito, comecemos por analisar a seguinte citao de H. baumann:

    Todo o Sul-Angola estaria ligado com Oeste, inclusive os Ambos estabelecidos no Sudeste africano; encontramos os (Ovi-)Mboundo, os (A)Mboundous e os Ngangela-Mbouela-Mboundas ao Sul-Este de Angola e os Tchokwe, Luena, Louimbi-Songo-Mbangala ao Nordeste da mesma provncia.89 O grupo Ambo, inclusive os Ndonga, o Houmb, os Hnda e os Ndombe, marca a transio entre os Hereros e os Mboundous90 tanto linguisticamente quer de ponto de vista da civilizao.91

    Vamos agora tentar organizar essa balbrdia de topnimos e informaes, visando nosso intento. Os Ambos (Ambundu, bambundu), os Mbunda, os Ndundu e mesmo os Humbe (Wmbu ou Hmbu), seriam os diferentes habitantes de Mpmbu de Kngo-dya-Mpngala.92 Os bambnda se chamam a eles prprios Ambunu, escreveu Torday, que aqui seriam as raas do Mpmbu de bandndu ou Kngo-dya-Mulaza.93 Os Padres luca e Marcellino, dois missionrios do sculo XVII, designam-os Mubmbi, uma designao que J. Cuvelier e F. bonctinck identificam com bawmbu.94 Mubmbi que deriva do verbo bmba (agarrar, apossar-se, assenhorar-se) um sinnimo incontestvel de mubndi ou mumbnda. rigor, as tribos de Ngangela (sic), Mbwla95 e Ndngo, por exemplo, s podem ser encontrados, seguindo a 88 Capello, H. & Ivens, R., De Benguella s terras de Iaca descripo de uma viagem na frica Central e Ocidental, lisboa: Imprensa Nacional, I e II volumes, 1881. Fora, reeditados recentemente pelas edies Europa-Amrica, lisboa.89 H. baumann, op cit., pp.146, 158 e 16290 Nessa paragem, o termo Mboundous designa uma das famlias do Estado Kngo ligado com a sua posio geogrfica e linhagem.91 Ovi ou simplesmente Vi, prefixo marcando o plural em alguns dialectos do Kngo-dya-Mpngala, o equivalente de Mi ou bi : Ovindele = omundele, isto , os brancos. Ovilimbu = obidimbu, isto , os macacos.92 Pode se localizar cinco grupos de Mpmbu: (1) os do Sul, em relao a todas regies que compem o Nsndi; (2) dos de leste, que limitam o reino do Kngo, tal como descrito por Filippo Pigafetta; (3) os do municpio de Nsndi, nesse distrito de Nsndi; (4) os de cada limite que separa os municpios um do outro; (5) os do Norte que delimitam o bloco setentrional de Nsndi.93 Tratando-se daquilo que se encontra estabelecido na cidade de Kinssa, isto , o Mpmbu de Zita-dya-Nza, Stanley no ter se enganado quando chamou os seus habitantes ora de Wambndu, ora de bawmbu (Stanley H.M., Cinq annes au Congo, M. dreyfous, Paris: pp. 204, 222 e 236).94 Cuvelier J., LAncien royaume de Congo, descle de brouwer, bruges: 1946, p.342.95 de acordo com um dos ancios nosso informante, o soba Soba Kaluvndu Pedro, Huila vem de

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    semntica,96 num Mbmba (no caso da primeira), num Mpmba (a segunda) e num Nsndi (a terceira).

    do Sul ao Norte, em harmonia com o princpio da emigrao97, comea-se no Mpmbu austral (do Kngo-dya-Mpngala) passando por todo Mpmbu que incluia, no sentido Este-Oeste, os territrios de Mpmbu, Ndngo e lulmbe.98

    O resto deste Mbmba seria constitudo da seguinte maneira:

    a) MbMbA = colectividades de locais (bairros) de Mbnda e de Mbmba; a leste, aquelas de Mpngala (Ngangela) e de Ngnda99 (Hnda);

    Assim Antnio Cadornega escreve: o capito mor lopo Soares lao fazendo aquella conquista do reino de benguela, muitas jornadas pello serto dentro, chegar a este caudalozo rio Cuneni, e que outra banda delle tinha suas terras e senhorio hum rei ou apontentado por nome Mazumbo a Calunga.100 Este seria o espao fronteirio setentrional de Mbmba de Mbngala (benguela): Mazmbu ou Maymbua Kalnga seria o Mpmbu de Mbmba Kalnga.

    b) MPMbA, ter sido formado pelos bairros de Mpmba e de Ndmbo a Oeste circunscries que Pigafetta chamou respectivamente de Tshimpemba e Malmba101 e por Mbwla102 e Kwmba (lwmbi), a leste. Esta zona deveria, de igual modo, ser a parte dos Yaka103 do Sul do Kunene, sbre a qual falou Antnio Cavazzi, citado tambm por Planquaert.104 Alis, Mesquitela lima publicou as suas investigaes sobre esses Kyaka em obra de trs volumes.105

    c) NSNdI, que dependiam dos bairros de Mpmbu e lulmbe a Oeste; de Matmba e de Mbmbe, duas circunscries que Cavazzi situa ao Sul de bengale (Mbngala), na direco de Oriente.106

    Muwela, ou Muwla, nome de uma localidade existente na actual regio da Huila. Para defender essa tradio, argumenta que a actual organizao dos territrios em provncias coisa do tempo colonial. Muwela era o Ondjango de onde amos resolver os assuntos da terra, disse, para continuar: l (no Muwla) que todos os nossos antepassados iam homenagear e enterrar os seus Mwata, desde Mavnga (Mahnga) at Kamunda. J sobre Kamnda o Soba est confiante de que existiam vrias locali-dades com este nome nas provncias de benguela, Humbo e Hula, que significa geralmente pequena montanha. Os Mwta foram estabelecer-se em Kamnda, casaram, fizeram filhos e tornaram-se um povo grande; mas o Muwla que era o local de encontro, concluiu.96 Cf. Cuvelier J., idem, p. 19.97 Ver nossa abordagem deste assunto no primeiro volume deste estudo, captulo I.98 Ver fig.#5. lulmbe (lu-hmbo), isto , crculo, Mpmbu.99 de acordo com o mapa de J. de Oliveira deniz, reestruturado por Mesquita lima, os Hnda so vizi-nhos dos gambo, Nkumbe e Ngngela na provncia de Cunene. Cf. Serrano, C., Angola: nascimento de uma nao. luanda: Kilombelombe, 2009, p.122.100 Cadornega, A., Histria das guerras angolanas III, p.175-176101 Pigafetta F., Le Congo, vridique description du royaume africain appel Congo (traduction de l. Cahun) J.J. gay, bruxelles: 1883, pp.58 e 190.102 Essa localizao geogrfica confirmada pelo mapa de Jos Perreira diniz. Cf. Serrano, C., Angola: nascimento de uma nao, pp.120-122.103 lima, M., Os Kyaka de Angola, Ed. Tvola Redonda, lisboa: 1988.104 Planquaert M., op cit., p.70105 lIMA, M., Os Kiaka de Angola, Ed. Tavotra redonda, lisboa, 1989.106 labat J.b., op cit., T.I., p.74 e 75; Cavazzi A., op cit., p. 13.

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    depois da fundao do Kngo-dya-Mpngala, iniciariam as separaes internas entre as populaes e uma busca de novas conquistas territoriais.107 Entre os Kwanyama, por exemplo, h muitos antigos relatos desta separao, no obstante misturadas com subsdios mais recentes. E como veremos mais tarde, as populaes !Kung ainda lembram do nobre ding, ou Senhor [de] Tsnga108, que se separou da Assembleia a volta da fogueira para sair em conquista de outros domnios territoriais. Para melhor compreenso dessa mistura, aqui propcio decompor essa lenda tradicional em suas unidades oracionais, embora tal exerccio no seja cmodo. Comecemos por citar Inncia gomes de Oliveira:

    Atendendo regio, se as condies climticas permaneceram, era possvel que na estao seca ao evaporar-se a gua das chuvas encon-trassem peixes com abundncia nas cacimbas...

    A tradio oral conserva a narrativa da separao dos Cuanuama da tribo Donga, do Sodeste Africano, facto que explica a adopo da nomenclatura atribuda a tribo.

    No h na realidade um ponto intermedirio que possa explicar o perodo da dominao do caador Musindi, a constituio da sua tribo e a separao da Donga.

    Apenas vem confirmar que a famlia tribal vem do Sudoeste e que sofrendo uma crise de crescimento, e consequentemente alimentar, a Cuanhama se separa, conduzida por um patriarca, procura de uma terra no-ocupada para se estabelecer.

    A lenda apenas encerra a separao dos Ovakwanyama os da carne.

    Uma fraco da tribo Donga [demando] o Norte para l da floresta situada cara de vveres, tendo encontrado grande abundncia de caa e peixe, resolveu estabelecer-se, [enviada] esta notcia ao Soba. Quando os emissrios trouxeram ordem para que o grupo regressasse terra ancestral, desobedeceram, [limitado] o antigo chefe a pronunciar: deixai-os com a sua carne.109

    Incia gomes de Oliveira sublinha que essa separao dos Kwanyama com os donga, Kwamati e divale dataria j na poca da penetrao dos Europeus no continente negro. No entanto luc de Heusch, que estuda as origens dos lnda, conta a mesma lenda que alude a uma lagoa a secar por razes climticas como motivo para a migrao. Na descrio paradigmtica da nossa tabela de compa-

    107 Miller expressa esse proposito logo no incio do seu texto sobre The Imbangala and the chronology of Early Central African History, publicado pelo Journal of African History em londres. Ver a nossa bibliografia.108 Enquanto os informadores fazem deles duas personalidades diferentes, as anlises antropolgicas e histricas tecem a hiptese de ambos significarem a mesma personalidade, ou dois agentes sociais da mesma linhagem das autoridades.109 de Oliveira, I.g., A evoluo histrica dos Cunhama, p.7. Essa autora cita Carlos Estermann (Ester-mann, C., Etnografia de Angola, os No-bantu, p.80).

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    rao analtica, esta Verso lnda110 estaria na origem dessa migrao. Vamos aqui utiliz-la como amostra para anlise.

    A separao referida seria aquela que: 1) levou possivelmente a instalao das populaes Kwanyama onde hoje esto; 2) ter hipoteticamente levado a que essas populaes se denominem, ou sejam denominadas, de Kwanyama. Isto indiciaria que haveria antes uma outra designao que os denominava. qual seria?

    A emigrao sob gide de Musndi muito popular entre vrias populaes na regio que vamos agora adentrar (Kngo-dya-Mulaza), regio de entre-Kwngu-Kwlu. Ora, no s a populao dessa regio parece ser anterior a essa poca da penetrao europeia, como tambm, diante de dados e artefactos arqueolgicos da regio dos Kwnama, poderemos possivelmente atestar essa anterioridade.

    Com efeito, em Abril de 1999, na fronteira entre as provncias de Huambo e benguela, mais exactamente no municpio de balmbo, assistimos a escavao de uma sepultura de aproximadamente 1,20cm para o enterro de um cadver. durante a escavao apareceram alguns restos de vasos, cerca de quatro, que acabamos recolhendo para examinar por curiosidade antropolgica. Notamos, entre vrios aspectos, que as mesmas apresentavam as caractersticas da geome-trizao Ckwe. Curiosamente os escavadores, ao emergir desses objectos, desis-tiram de continuar a escavao naquele exacto permetro pois, tal como nos foi depois explicado, aqueles objectos eram sagrados por causa dos desenhos nele gravados que o povo foi capaz de reconhecer como tais.111

    Alguns anos antes disso, como investigadores do museu nacional de antro-pologia de