Post on 02-Aug-2015
T odo aprendizado resulta de abertura para o outro. É mistura e mestiçagem.
Apesar disso, ao invés de construirmos um saber tolerante e amigo da diferença, há sé
culos insistimos em buscar uma razão as
séptica, que aspira à imobilidade de uma
perfeição ilusória. Ainda pretendemos ela
borar filosofias da pureza, no fundo movi
das não pelo desejo de conhecer, mas pela
compulsão a dominar.
A Michel Serres interessa a busca de um outro saber: uma filosofia mestiça. Por
mais judiciosa que uma idéia se apresente,
diz, ela se ~orna atroz se reina sem partilha. Nenhuma solução é única, nem dura para sempre; nenhuma ciência ou disciplina tem sentido se não se abre para o que lhe é
exterior. Por isso, desde o início deste livro,
o espírito do sábio não se cobre com o manto de Salomão, o compenetrado reisol que a tudo subordina, mas com o casa
co furta-cor de Arlequim, o desengonçado
imperador da lua que se mistura com seus sóditos. Os ruídos, os desvios, as imperfeições da experiência integram, legitimamente, o processo de conhecimento.
Para Serres, as grandes instituições universitárias não são capazes de propor esse aprendizado que valoriza a mestiçagem. Cultivam condições contrárias ao exercício do pensamento, consomem redundâncias, repetem imagens velhas e vivem de impressos sucessivamente copiados. Ensinam ciências humanas que não falam do mundo e ciências naturais que silenciam sobre os homens. Não suportam a sutileza insinuante do saber dirigido para a invenção, que por isso se torna um saber solitário, no entanto imprescindível para combater a construção de um mundo homogêneo, loucamente lógico e racional
mente trágico.
-"
Filosofia Mestiça
Título original: Le Tiers-Instruit
© :E:ditions François Bourin, 1991
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
S51f
93-0158
Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22251-050 Tel. 286-7822 - Fax 286-6755
Endereço telegráfico! NEOFRONT Telex: 34695 ENFS BR
Rio de Janeiro, RI
Revisão de tradução Evelyne Jacobs
Revisão tipográfica Tereza da Rocha
.: CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte . SindiÚto Nacional dos Editores de Livro~, RJ
··f Serres, Michel
Filosofia mestiça::: Le tiers-instruit / Michel Serres; tradução Maria Ignez Duque Estrada. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1993.
Tradução de: Le tiers-instruit ISBN 85-209-0405-X
1. Ciências sociais e filosofia. 2. Filosofia francesa. I. Título.
CDD - 194 CDU - I (44)
Para Anne-Marie.
Emmanuelle e Stéphanie
PUC-RGS
Bl8l-n "\ c-o , I '-.. ,t. ~,./<::' C::NTRAl
.., ;J"U - r-··'''-· ____ . ,--~ @~~:~\:J. Loc,o,.W:
._ I'
';)\;~, ~~Ç,'5b
CONSULTA LOCAl..
Philomuthos, philosophos pós. Philosophos, philomuthos pós.'"
Aristóteles
... Filomito, de certo modo, fIlósofo.
Filósofo, de certo modo, filomito.
~
Como aconteceu de as ciências humanas ou sociais não falarem jamais sobre o mundo. como se os grupos permanecessem suspensos no vazio? Como as ciências ditas duras deixam os homens de lado? ( ... ) Como nossos principais saberes se perpetuam hemiplégicos? Fazê-los aprender a caminhar com os dois pés, a utilizar as duas mãos, me parece ser um dos deveres da fIlosofia: você sabe, .le tier-instruit designa os corpos completados de canhotos ditos contrariados; é o elogio dos mestiços e das misturas, que causam horror aos fIlósofos da pureza.
Michel Serres, Eclaircissements, 1992
r !
Sumário
Laicidade ............................................................................................ I
CRIAR ................................................................................................ 7
Homenagem ................................................................................ 9
Corpo ........................................................................................... 9
Sentido ......................................................................................... 12
Nascimento do mestiço .............................................................. 13
Aprendizagem ............................................................................. 14
Cérebro ........................................................................................ 17
Nascimento e conhecimento ...................................................... 18 Escrever........................................................................................ 20
Sexo .............................................................................................. 21
Quimera ....................................................................................... 25
Dobra e nó ....................................... c........................................... 28
Primeiras recordações ................................................................. 30 Rosácea ......................................................................................... 32
Trilha, música ............................................................................. 35
Dança: minueto do lugar mestiço ............................................ 37
Magnificência .............................................................................. 38
Alegria, dilatação, engendramento ........................................... 40
INSTRUIR .......................................................................................... 45
Dia ................................................................................................ 47
Noite ............................................................................................. 51
Claro-escuro ................................................................................ 52
! I
o lugar mestiço ........................................................................... 54
O terceiro homem ...................................................................... 57 60 Instruir ou engendrar ................................................................ .
A terceira pessoa: procedência .................................................. 62
A terceira mulher: concepção .................................................... 64 66 o mestiço instruído: ancestrais ................................................ .
O mestiço instruído, de nOVO: origem ..................................... 70 79 Engendramento na aurora ...................................................... o ••
O problema do mal ................................................................... . 81
Guerra por teses .......................................................................... 86
O estilista e o gramático ............................................................ 89
Paz sobre as espêcies .................................................................. 102
Núpcias da Terra com seus sucessivos senhores ........ , ............. 102
Paz e vida pela invenção. Encontrar ........................................ 106
Um outro nome para o mestiço instruído .............................. 117
O casal genérico da história. Morte e imortalidade ............... lI8
EDUCAR ............................................................................................ 131
Lei do rei: nada de novo sob o sol ................. ·· .. ················ .. ···· 133 O novo sob o sol, em outro lugar ............................................ 145
O novo sob o sol, aqui ............................................................... 152
Eu. Noite ...................................................................................... 165
Tu. Dia ......................................................................................... 178
A terceira pessoa: fogo ............................................................... 185
laicidade
De volta de uma inspeção às terras lunares, Arlequim, imperador,
aparece no palco para dar uma entrevista coletiva. Que maravilhas
viu, atravessando lugares tão extraordinários? O público está na ex
pectativa de grandes extravagâncias.
- Não, não - ele responde às perguntas que o pressionam -,
em toda parte tudo é como aqui, em tudo idêntico ao que se pode ver
comumente sobre o globo terráqueo. Só mudam os graus de grande
za e beleza.
Decepcionado, o auditório não acredita: lá fora, obviamente,
tem que ser diferente! Será que ele não conseguiu observar nada du
rante a viagem? Primeiro mudos, estupefatos, todos começam a se
agitar, enquarito Arlequim repete doutamente a lição: nada de novo
sob o Sol, nada de novo na Lua. A palavra do rei Salomão precede a
do potentado satélite. Nada mais a dizer, sem comentários. Real ou
imperial, quem detém o poder só encontra de fato, no espaço, obe
diência à sua potência, portanto à sua lei: o poder não se desloca. E,
quando o faz, a;::ança sobre um tapete vermelho. Assim, a razão s6
encontra a sua regra debaixo dos seus pés.
Altivo, Arlequim desafia a platéia com um desdém e uma arro
gância ridículos.
No meio da sala, que se torna tumultuada, algum belo e maldoso
espírito se levanta e estende a mão para indicar o casaco de Arlequim.
- Hei! - grita ele - você aí, que diz que tudo em toda parte é
como aqui, quer que a gente acredite também que sua capa é feita de
uma mesma peça, tanto na frente como na traseira?
Atônito, o póblico não sabe mais se deve calar-se ou rir. De fato,
a roupa do rei anuncia o inverso do que ele pretende. Composição
descombinada, feita de pedaços, de trapos de todos os tamanhos, mil
formas e co·res variadas, de idades diversas, de proveniências dife
rentes, mal alinhavados, justapostos sem harmonia, sem nenhuma
atenção às combinações, remendados segundo as circunstâncias, à
medida das necessidades, dos acidentes e das contingências, será que
mostra uma espécie de mapa-múndi, o mapa das viagens do artista,
como uma mala constelada de marcas? O lá-fora, então, nunca é
como aqui. Nenhuma peça se parece com qualquer outra, nenhuma
província poderia jamais ser comparada com tal outra, e todas as
culturas diferem. A pelerine-portulano desmente o que pretende o
Rei da Lua.
Vejam com seus próprios olhos esta paisagem zebrada, tigrada,
matizada, mourisca, recamada, entristecida, açoitada, lacunar, ocela
da, multicolorida, rasgada, de cordões atados, de fitas cruzadas, de
franjas puídas, inesperada em todo canto, miserável, gloriosa, magní
fica de cortar o fôlego e de fazer o coração bater.
Poderosa e banal, a palavra reina, monótona, e vitrifica o espaçoj
soberbo de miséria, o traje, improvável, deslumbra. O imperador
derrisório, que repete como um papagaio, se envolve num mapa do
mundo com multiplicidades mal ajeitadas. Verbo puro e simples,
roupa compósita e mal combinada, reluzente, bela como uma coisa:
que escolher?
- Tu te vestes como o roteiro de tuas viagens? - diz ainda o
belo espírito pérfido.
Todo mundo ri. Eis o rei apanhado e envergonhado.
Arlequim logo adivinha a única saída para o ridículo da situação:
basta tirar este casaco que o desmente. Levanta-se, hesitante, olha
boquiaberto os panos de seu traje; em seguida, com ar de bobo, olha
para o póblico e de novo para seu casaco, como que tomado de
vergonha. A platéia ri, um pouco abobalhada. Ele demora, se faz
esperar. O Imperador da Lua enfim se decide.
2
r I
Arlequim se despe. Após muitas caretas e contorsões inábeis, acaba por deixar cair aos seus pés o casaco disparatado.
Um outro envoltório cambiante aparece então: por baixo do pri
meiro véu, ele usa um segundo farrapo. Estupefata, a platéia ri de
novo. É preciso então recomeçar, já que o segundo envoltório, seme
lhante ao casaco, se compõe de novas peças e de velhos pedaços.
Impossível descrever a segunda túnica sem repetir, como uma litania: tigrada, matizada, zebrada, constelada ...
Arlequim continua então a desvestir-se. Sucessivamente apare
cem uma outra roupa mourisca, uma nova túnica recamada, em se
guida uma espécie de véu estriado e ainda uma malha ocelada, mul
ticolorida ... A sala explode, cada vez mais surpreendida. Arlequim
nunca chega ao último traje, enquanto o penúltimo reproduz exata
mente o antepenúltimo: diversificado, compósito. rasgado ... Sobre
si, Arlequim traz uma camada espessa desses casacos de arlequim.
Infindamente, o nu recua sob as máscaras; e o vivo, sob a boneca
ou a estátua inchada de trapos. Decerto, o primeiro casaco deixa per
ceber a justaposição das peças, mas a multiplicidade e o cruzamento
dos sucessivos envoltórios a mostram, enquanto também a dissimu
lam. Cebola, alcachofra, Arlequim nunca acaba de se desfolhar ou de
escamar suas capas cambiantes, e o póblico não pára mais de rir.
De repente, silêncio. Seriedade e até gravidade descem sobre a
sala, eis o rei nu. Retirado, o último disfarce acaba de cair.
Estuporl Tatuado, o Imperador da Lua exibe uma pele multicor,
muito mais ~?r do que pele. Todo corpo parece uma impressão digi
tal. Como um quadro sobre uma tapeçaria, a tatuagem - estriada, matizada, recamada, tigrada, adamascada, mourisca _ é um obstá
culo para o olhar, tanto quanto os trajes ou os casacos que jazem no chão.
Quando cai o último véu, o segredo se liberta, tão complicado
como o conjunto de barreiras que o protegiam. Até mesmo a pele de
Arlequim desmente a unidade pretendida por suas palavras. Também ela é um casaco de arlequim.
3
A platéia tenta rir ainda, mas não consegue: seria preciso talvez
que o homem se esfolasse. Assobios, apupos ... pode-se pedir a alguém para arrancar a própria pele?
A platéia viu e fica em suspenso; poderia ouvir-se uma mosca a
voar. Arlequim não é imperador, nem mesmo derrisório. Arlequim
só é Arlequim, múltiplo e diverso, ondulante e plural, quando se
veste e se desveste: nomeado, condecorado porque se protege, se de
fende e se esconde, múltipla e indefinidamente. Brutalmente, os es
pectadores, juntos, acabam de esclarecer todo o mistério.
Ei-Io agora desvendado, entregue sem defesa à intuição. Arle
quim é hermafrodita, corpo mesclado, macho e mulher. Escândalo
na sala, perturbada até as lágrimas. O andrógino nu mistura os gêne
ros sem que se possam distinguir as vizinhanças, lugares ou bordas
onde terminam e começam os sexos: homem perdido na fêmea, mu
lher mesclada com o macho. Eis como ele Ou ela se mostra: monstro.
Monstro? Esfinge, animal e donzela; centauro, macho e cavalo;
unicórnio, quimera, corpo compósito e misturado; onde e como dis
tinguir o lugar da solda ou do corte, o sulco onde a ligação se ata e se aperta, a cicatriz onde se juntam os lábios, o da direita e o da esquer
da, o de cima e o de baixo, mas também o anjo e a besta, o vencedor
vaidoso, modesto ou vingador, e a humilde ou repugnante vítima, o
inerte e o vivo, o miserável e o riquíssimo, o tolo cabal e o louco vivo,
o gênio e o imbecil, o senhor e o escravo, o imperador e o palhaço.
Monstro, é verdade, mas normal. Que semblante afastar, agora, para
melhor conhecer o lugar de junção? Arlequim-Hermafrodita serve-se das duas mãos, não como am
bidestro mas como canhoto completado, destro até do lado esquerdo, viu-se claramente quando ele se despia, suas capas dando viravol
tas nos dois lados. Encantos da infância e rugas próprias dos idosos,
misturados, levam a que se pergunte sua idade: adolescente ou an
cião? Mas, quando apareceram a pele e a carne, todos descobriram
sobretudo sua mestiçagem: mulato, temperado, híbrido em geral, e
em que medida? Um quarto de sangue negro? Um oitavo? E se ele não
brincasse mais de rei, mesmo de comédia, daria vontade de chamá-lo
4
I
l
de bastardo ou mestíçado, cruzado. Sangue misto, marrom, amarranzado, impuro.
Que nos poderia exibir agora o monstro comum, tatuado, ambidestro, hermafrodita e mestiço sob a própria pele? Sim, o sangue e a
carne. A ciência fala de órgãos, de funções, de Células e de moléculas, para finalmente confessar: faz tempo não se fala mais de vida nos
laboratórios; mas ela nunca se refere à carne que, precisamente, designa, num dado lugar do corpo, aqui e agora, a mistura de músculos
e de sangue, de pele e de pêlos, de ossos, de nervos e de funções diversas, que mescla aquilo que o saber pertinente analisa. A vida
joga os dados e embaralha as cartas. Arlequim põe à mostra, para terminar, a sua carne. Misturados, a carne e o sangue mestiço de
Arlequim parecem confundir-se ainda com um casaco de arlequim.
Há algum tempo, numerosos espectadores já tinham deixado a sala, cansados dos golpes teatrais frustrados, irritados com essa vira
volta da comédia em tragédia, tendo chegado para rir, decepcionan
do-se por ter que pensar. Alguns mesmo, especialistas eruditos sem
dúvida, haviam compreendido, por Sua própria conta, que cada porção do Seu saber parece também com o caSaco de Arlequim, cada um
trabalhando na interseção ou na interferência de várias outras ciên
cias e, às vezes, de todas, quase. Assim, Sua academia, ou enciclopédia, se aproximava formalmente da comedia dell'arte.
Quando todos já estavam virando as costas, quando os candeei
ros davam si:'}ais de fraqueza e sentia-se que naquela noite a impro
visação termInaria em fiasco, alguém lançou um súbito apelo, como
se algo novo estivesse acontecendo num lugar onde tudo, até então,
se repetira. O público inteiro se voltou de um só golpe e todos os
olhares convergiram para o palco, dramaticamente iluminado pelos últimos fogos moribundos dos projetores.
- Pierrôl Pierrô! - gritaram - Pierrô lunar!
No lugar exato do Imperador da Lua erguia-se agora uma massa
ofuscante, incandescente, mais clara que pálida, mais transparente
5
que diáfana, liliácea, nevada, cândida, pura e virginal, inteiramente
branca.
- Pierrô! Pierrôl - gritavam ainda os tolos, quando a cortina se
fechou. Eles saíram perguntando:
- Como as mil cores do casaco podem se dissolver numa soma
branca?
- Assim como o corpo - respondiam os doutos - assimila e
retém as diversas diferenças vividas durante as viagens e volta para
casa mestiçado de novos gestos e de novos costumes, fundidos nas
suas atitudes e funções a ponto de fazê-lo acreditar que nada mudou
para ele, também o milagre laico da tolerância, da neutralidade indulgente, acolhe, na paz, todas as aprendizagens, para delas fazer brotar a liberdade de invenção e, portanto, de pensamento.
6
I
i
I 1 l .
Criar
Homenagem
Corpo
Sentido
Nascimento do mestiço
Aprendizagem
Cérebro
Nascimento e conhecimento
Escrever
Sexo
Quimera
Dobra e nó
Primeiras recordações
Rosácea
Trilha, música
Dança
Magnificência
Alegria, dilatação, engendramento
-" I •
i
Homenagem
Obrigado. Meu reconhecimento comovido dirige-se em primeiro lu
gar ao falecido mestre, cujo rosto, voz e mãos permanecerão presen
tes em minha memória até a morte; há algumas décadas, ele fez de
mim aquilo a que a maioria destra se refere, compassiva, como um
canhoto contrariado, mas que descrevo, alegremente, como uma me
tade completada. Nenhum acontecimento esculpiu meu corpo com
maiores conseqüências, ninguém decidiu por mim mais revolucio
nariamente o sentido.
Por uma vez, o corpo docente, que se ergue para discursar e
convencer, ou se inclina para escrever, apresenta-se a seu público em
sua ingenuidade nua: como um organismo, dando lugar à língua e ao
pensamento com certeza, mas antes de tudo modelado carnalmente
por um mestre anônimo, ao qual agradeço.
Corpo
Ninguém põe em dúvida a bondade da reforma que permitiu aos
canhotos, meus irmãos, escrever conforme sua mão. Contrariá-los os
teria lançado em uma população confusa de gagos, perversos ou neu
róticos, diz a teoria. Em princípio, faço parte desse grupo tão doente,
ao qual hoje dou a palavra e represento. Estranha notícia: tudo cami
nha da melhor forma no melhor corpo possível.
Como descrever um destro? Como um organismo cortado, so
frendo de grave hemiplegia. A caneta, a faca, o martelo ou a raquete
se juntam numa só mão, enquanto a outra nada segura. Quentes e
9
flexíveis, um lado do próprio corpo e sua extensão vivem arrastando
atrás de si uma espécie de gêmeo cadavérico, hirto e frio, desprezível
e impotente: inconsciente.
Eis somente a metade da verdade. Como descrever, por sua vez,
um canhoto? Como um organismo atravessado por uma rachadura,
paraplégico, doente. Lápis, garfo, bola, tesoura convêm à sua única
mão, enquanto a outra pende, adormecida. Alerta, suave, presente,
eis uma face do espaço e da vida, enquanto o meio-corpo puxa ou
empurra sem equilíbrio possível um duplo duro, ausente, morto,
peso sem força, massa inconsciente sem língua.
Feitas as contas, um vale o outro. Cada um, divorciado, se com
põe de dois gêmeos, dos quais só um, seja qual for, de um lado ou do
outro, tem direito à vida, enquanto o segundo nem chegou a nascer.
E então, dar aos canhotos o direito de assim permanecerem equivale
a fazer com que se tornem destros: outros destros, do outro lado. A
liberação da esquerda me parece agora uma decisão de direita.
Os corpos hemiplégicos se reconhecem entre si e impõem a to
dos a permanência na tola patologia da divisão.
Não, nós não somos um, somos dois. Canhoto ou destro, não
$e compõe o corpo de cada um de dois irmãos inimigos, gêmeos
idênticos embora enantiomorfos, isto é, ao mesmo tempo simétricos
e assimétricos, gêmeos concorrentes e contrariados, dos quais um
sempre foi morto pelo outro e leva seu cadáver a tiracolo, como esses
generais da antiga Roma arrastavam, em seu triunfo, os adversários
vencidos e escravizados? O uso de apenas a metade de seu corpo,
considerado universal por certos etnólogos, não remontará a ime
moráveis práticas de sacrifício? Destro ou canhoto jamais toleram
um outro a seu lado, exceto morto ou natimorto.
Eu prego contra a pena de morte neste assunto, prego pelo corpo
reconciliado, pela amizade entre os irmãos; a favor, enfim, desta to
lerância rara ou, quem sabe, do amor, que se regozija quando o ou
tro, em sua vizinhança mais próxima, vive feliz e, para assim tornar
se, tenha tido ao menos a chance ou o direito de nascer.
10
o cérebro se divide em duas metades que, por feixes cruzados, se comunicam com o outro lado do corpo, respectivamente. A hemi
plegia paralisa ao mesmo tempo ou o lado esquerdo do corpo e o
lado direito do cérebro, ou a esquerda deste e a direita do outro.
Parece-me melhor viver, falar ou pensar com todos os órgãos do que
amputar do seu conjunto uma metade negra. Ninguém dá valor a
esse princípio, a despeito de sua bela, harmoniosa e plena evidência:
COmo explicar a paixão da humanidade - em sua totalidade, parece
- por uma doença que obriga nosso meio-corpo a se colar a um cadáver, como num casamento repulsivo?
Portanto, obrigado, em primeiro lugar, àquele que me formou
na plenitude e na saturação próprias a um corpo completo.
Nada confere mais sentido do que mudar de sentido. Relatarei por meio de imagens a lembrança da mutação.
Ninguém sabe nadar de fato antes de ter atravessado, sozinho, um rio largo e impetuoso, um braço de mar agitado só existe cb~
em uma piscina, território para pedestres em massa.
Parta, mergulhe. Depois de ter deixado a margem, você conti
.. nuará durante algum tempo muito mais perto dela do que da outra
à sua frente, tempo bastante, pelo menos, para que seu corpo se
aplique ao cálculo e silenciosamente reflita que ainda pode voltar.
Áté um certo limiar, você conserva esta segurança: o mesmo que
dizer que ainda não partiu. Do outro lado da aventura, o pé confia na
aproximação, desde que tenha ultrapassado um segundo limiar: você
está tão p~.óximo da margem que pode dizer que já chegou. Margem
direita oú'esquerda, não importa, nos dois casos: terra ou chão. Você
não nada, espera para andar, como quem salta, decola e atinge o chão, mas não permanece em vôo.
Ao contrário, o nadador sabe que um segundo rio corre neste
que todo mundo vê, entre os dois limiares, atrás ou à frente dos quais
quaisquer seguranças desapareceram: ali ele abandona toda a referência.
11
Sentido
A verdadeira passagem ocorre no meio. Qualquer sentido que o nado
tome, o solo jaz a dezenas ou centenas de metros sob o ventre ou a
quilômetros atrás e na frente. Eis o nadador sozinho. Deve atravessar,
para aprender a solidão. Esta se reconhece no desvanecimento das
referências. Num primeiro momento, o corpo relativiza o sentido: que im
porta esquerda ou direita, desde que fique junto à terra?, diz. Mas, no
meio da travessia, mesmo o solo lhe falta, acabam os domínios. Então
o corpo voa e esquece o que é sólido, não mais na expectativa das
descobertas estáveis, mas como instalando-se para sempre em sua
vida estrangeira: braços e pernas entram numa fraca e fluida portân
da, a pele se adapta ao ambiente turbulento, pára a vertigem da ca
beça porque doravante ela s6 pode contar com seu próprio suporte;
sob pena de afogar-se, ganha confiança na braçada lenta.
O observador de fora facilmente acredita que aquele que muda
está passando de um domínio para outro: de pé em Calais como se
estivesse em Douvres, como se bastasse tirar um segundo passaporte.
Não. Isto seria assim se o meio se reduzisse a um ponto sem dimen
sões, como no caso do salto. O corpo que atravessa aprende certa
mente um segundo mundo, aquele para o qual se dirige, onde se fala
outra língua. Mas ele se inicia sobretudo num terceiro, pelo qual
transita. Ele não andará mais nem se erguerá mais como quando só sabia
ficar de pé ou andar: bípede antes desse evento, ei-Io agora carne e
peixe. Não apenas mudou de margem, de linguagem, de costumes, de
gênero, de espécie; também conheceu o traço de união: homem-rã. O
primeiro animal desfruta de um domínio, o segundo bicho também,
mas o estranho vivente que um dia entrou no rio branco que corre
dentro do rio visível, e que teve que se adaptar, sob pena de morte, às
suas águas extravagantes, abandonou qualquer domínio. Por meio desse novo nascimento, ei-Io exilado de verdade. Pri
vado de casa. Morto sem sepultura. Intermediário. Anjo. Mensagei-
12
ro. Traço de união. Para sempre expulso de todas as comunidades,
mas um pouco, e levemente, em todas. Arlequim, já.
Nascimento do mesti~o'
Ele chega à outra margem: antes canhoto, agora você o encontra
destro; outrora gascão, hoje parece francófono ou anglomaníaco.
Você o acredita naturalizado, convertido, virado ao avesso, transtor
nado. De fato, você tem razão. Em verdade, ele habita, embora dolo
rosamente, a segunda margem. Você o considera simples? Não, com
certeza duplo. Tornado destro, ele permanece canhoto. Bilíngüe não
quer dizer apenas que fala duas línguas: ele passa incessantemente
pelas folhas do dicionário. Bem adaptado, mas fiel àquilo que foi.
Esqueceu, obrigatoriamente, mas mesmo assim se recorda. Acredita
que ele seja duplo?
Mas você não leva em conta a passagem, o sofrimento, a coragem
do aprendizado, os tormentos do náufrago provável, a rachadura
_ aberta no tórax pelo estiramento dos braços, das pernas e da líng~,
longo traço de esquecimento e de memória que marca o eixo longi
tudinal desses rios infernais, chamados amnésias por nossos ances
trais. Você o crê duplo, ambidestro, dicionário, e ei-Io triplo ou mes
tiço, habitando as duas margens e vagando pelo meio, ali para onde
convergem os dois sentidos, mais o sentido do rio que corre e o
sentido do vento, mais as inclinações inquietas produzidas pelas bra
çadas, e as numerosas intenções que provocam decisões; nesse rio
dentro do rio, rachadura no meio do corpo, forma-se uma bússola,
ou rotunefa, de onde divergem vinte sentidos ou cem mil. Você o
acreditara triplo?
Equivocou-se outra vez, ei-Io múltiplo. Fonte ou intercambiador
de sentido, relativizando para sempre a esquerda, a direita e a terra de
onde saem todas as direções, ele integrou um compasso em seu corpo
Tiers: terceiro, terço, outro, estranho, misturado, mestiço. Preferimos esta úl
tima acepção, por fidelidade ao pensamento do autor. (N. da T.)
13
líquido. Pensava que ele estivesse convertido, invertido, virado ao
avesso, transtornado? Sim. Mais ainda: universal. Sobre o eixo móvel
do rio e do corpo, estremece, comovida, a nascente do sentido.
Aprendizagem
Ao atravessar o rio e entregar-se completamente nu ao domínio da
margem à frente, ele acaba de aprender uma coisa mestiça. O outro
lado, os novos costumes, uma língua estrangeira, é claro. Mas, acima
disso, acaba de aprender a aprendizagem nesse meio branco que não
tem sentido para encontrar todos os sentidos. No ápice do crânio, em
turbilhão, se atarraxa o redemoinho da cabeleira, lugar-meio onde se
integram todas as direções.
-.U niversal significa: aquilo que, embora sendo único, ver!~
~~.?s os sentidos. O infinito entra no corpo de quem, por muito
tempo, atravessa um rio' perigoso e largo o bastante para oferecer
essas paragens distantes onde, seja qual for a direção que se adote ou
se decida, a referência permanece indiferentemente afastada. Então,
o solitário, vagando sem pertencer a nada, tudo pode receber e inte
grar: todos os sentidos se equivalem. Terá atravessado a totalidade d~
concreto para entrar em abstra<[ão?
Perceberão os mestres que s6 ensinaram, no s~ntido plenoy _a-.9,ue
~s aos quais contrariaram, ou melhor, kQID .... p.l~taram, aq~~les._<lue
obrigaram a atravessar?
De fato, nada aprendi sem que tenha partidoLD&r!!...~!1Jij~~i __ ~!n~
guém sem convidá-lo a deixar o ninho.
Partir exige um dilaceramento que arranca u~3_:e.<I:rt!.~0 ~.c:'rpo
à parte que permanece aderente à margem do nas.çil11:,t:.~to!.,A.Yizi
-;hança do~rentesco, à casa e à aldeia dos usuáriQs~ .<L.f.~lt.~~a da
Ííngua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende.
Sim, parte, divide-te em partes. Teus semelhantes talvez te conde-- .. _~~---"--~--_. __ .-nem como um irmão de~~~rE.~do. Eras único e referenciado. Tor-
nar-te-ás vários, às vezes incoerente como o univer.~~ que_~?:o i~!s:!o, explodiu, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa, ----.-:":-~----_.- - - -- '. ". -'.-
14
..!
Eelo menos a tua explosão em mundos à Earte. Tudo começa por este nada .
.Nenhum aprendizado dispensa a viagem. $ob a orientação de
um guia, a educaçã~_ emp~!ra r..~ra fora. Parte, sai. Sai do ventre de
tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa do pai e pelas pai
sagens juvenis. Ao vento, sob a chuva: do lado de fora faltam abrigos.
Tuas idéias iniciais só repetem palavras antigas. jovem: velho papa
gaio. Viagem das crianças, eis o sentido lato da palavra grega pedago
gia. Aprender lança a errância.
Explodir em pedaços para se lançar em um caminho de destino
incerto exige um heroísmo que sobretudo a infância parece capaz de
mostrar, embora ela deva ser seduzida para encetá-lo. Seduzir: con
duzir para outro lugar. Bifurcar a direção dita natural. Nenhum gesto
da mão que segura uma raquete obedece a uma atitude que o cor
po tomaria espontaneamente, nenhuma palavra em inglês emana de
uma forma que uma boca francesa esboçaria com facilidade, olhos
bem abertos não garantem a idéia da geometria, nem o vento e os
pássaros nos ensinam a música ... só resta tomar o corpo, a língua ou
a alma a contrapelo. Bifurcar quer dizer obrigatoriamente decidir-se \
por um caminho transversal qU~5:Q~duz_-ª- um.JugarjgrrQra_çlQ._ .So!?te- "* tudo: jamais tomar a estrada fácil, melhor atraves_~r o rio a nado.
_Partir. Sair. ~~~~~-se ?m dia sed~~ir. To~ar-se vário~~_~_7"~~!~var o exterior, bifurcar em algum lugar. Eis as três primeiras estra
nhezas, as três variedades de alteridade, os três primeiros l!l04~s~~e_
expor. Porque não há aprendizado sem exposição, às vezes ~!jg9.~)
,?-O outro. ,Nunca mais s~_~~ei g~em2.?!:.l:! ... <?~_~_e ___ c:.~_t?~, ~~_()_n4_~~~p_~Q..~ ~onde vou, por onde passar. Eu me exponho ao outro, às ~stranhezas.
Por onde, esta é a quarta questão, colocada com novos dispên
dios. O guia temporário e o mestre conhecem o lugar para onde
levam o iniciado, que ainda o ignora mas a seu tempo o descobrirá.
Esse espaço existe, terra, cidade, língua, gesto ou teorema. A viagem
é para lá. Mas a corrida segue curvas de nível, segundo um desempe
nho ou um perfil que dependem ao mesmo tempo das pernas do
corredor e do terreno que ele atravessa, chão pedregoso, deserto ou
15
mar, pântano ou parede. Ele não se apressa, de saída, em direção à meta, ao alvo, tenso em direção à sua finalidade. Não, o jogo da
pedagogia não é jogado a dois, viajante e destino, mas a três. O lugar mestiço* intervém aí como soleira da passagem. Ora, quase sempre
nem o aluno nem o iniciador conhecem o lugar e o uso des~~ po.:!~. Um dia, a qualquer momento, cada um passa pelo meio desse rio
branco, estado estranho de mudança de fase, que se pode chamar de
sensibilidade, palavra que significa a possibilidade ou capacidade em
todos os sentidos. Sensível, por exemplo, a balança oscila para cima
e para baixo ao mesmo tempo, vibrando, bem no meio, nos dois
sentidos; sensível também é a criança que vai andar, quando se lança
num desequilíbrio reequilibrado. Observe-a também quando mergu
lha na fala, na leitura ou na escrita, desembaraçada e embaraçada
entre o sentido e o não-sentido. Quão hipersensíveis, afetados, rejei
tando a afetação, fomos no momento de transpor todos os portais da
juventude. Esse estado vibra como uma instabilidade, uma metaesta
bilidade, como um mestiço não excluso entre o equilíbrio e o dese
quilíbrio, entre o ser e o nada. A sensibilidade habita um lugar central
e periférico: em forma de estrela.
Você já jogou alguma vez no gol de seu time quando um adver
sário se preparava, bem de perto, para um chute direto? Descontraí
do, como que livre, o corpo faz a mímica do particípio futuro, prepa
rado para se distender: para o alto, rente à terra ou à meia altura, nos
dois sentidos, esquerda e direita; na direção do centro do plexo solar,
uma plataforma estrelada lança seus ramos virtuais em todos os sen
tidos ao mesmo tempo, como um buquê de axônios. É este o estado
de sensibilidade vibrante, desperta, alerta, atenta, chamamento para
a fera que rasteja, espreita, espia, solicitação em todos os sentidos
para toda a admirável rede de neurônios. Corra para a rede, pronto
No original, tierce place. O tiers-point, em arquitetura, é o ponto de intercessão
de dois arcos; em perspectiva, é o ponto arbitrário para onde convergem as
diagonais. O sentido de tíerce place, portanto,~~ ~g~2_.das intercessões, _ das
I!lis~urél~1_c!~ __ mestiçagens. (N. da T.)
16
1
para o voleio: ainda no particípio futuro, a raquete se destina ao
mesmo tempo a todos os golpes juntos, como se o corpo, colocado
em deseqUilíbrio por todos os lados, apertasse uma bola de tempo,
uma esfera de sentidos, e liberasse a partir do tórax uma estrela-do
mar. No centro da estrela se esconde o lugar mestiço, que outrora
chamei de alma, pressentida na passagem de um desfiladeiro dificil
de atravessar. Ele habita esse pólo da sensibilidade, dessa capacidade
virtual, ao mesmó tempo que se atira e se retém, quer dizer, se lança
pela metade, ao longo dos ramos flutuantes do astro que explora o espaço, como um sol.
Cérebro
Se o corpo ou a alma sabem disso, o cérebro não o ignora. Durante o
sono, como durante a vigília, ele vibra e salta em todos os sentidos ao
mesmo tempo, de modo que a curva complexa que deixa sobre o
plano do eletroencefalograma exprime ou imita a sua autonomia em
bola, em buquê, ou em bilhões de estrelas; sob a abóbada craniana
cintilam constelações. Multiplamente sensível, ele se aproxima da
rede para o voleio; ou, guardião exímio, prepara-se para receber bo
las de todos os ângulos do espaço e em todos os momentos do tem
po ... balança generalizada, criança audaciosa que se lança numa em
preitada incerta, boca que vai gaguejar entre o barulho e a palavra,
entre sim e não, o claro e o escuro, a mentira e a verdade, língua,
lábios e palato abrigam este mestiço incluso. O cérebro se ativa para
esquadrinhar o espaço-tempo: como? Ao que tudo indica, estando lá
e cá ao mésmo tempo, contínua e descontinuamente. Saltando ou
cintilando, ele habita esse lugar mestiço, descoberto pelo nado que atravessa o rio.
Assim como a inteligência, a promessa de invenção ... permaneça
por muito tempo como esse jogador, essa criança, esse vigia, que
balança ou nada, essa virgem que se prepara para decidir. Corpo,
músculos, nervos, sentidos e sensibilidade, alma, cérebro e conheci
mento, tudo converge para esse lugar mestiço, em forma de estrela:
17
cuid(;1do à esquerda, passe pela direita, atenção para o alto e corra por
baixo ...
,Ele, o lugar mestiço, se .~emeia no tempo e no espaço., No meio
da janela que atravessa, o corpo sabe que passou para fora, que acaba
de entrar em outro mundo. O espaço e nossas histórias são densos
em tais marcos: eixo do rio, do braço do mar que se ultrapassa ao
nadar. Aqui parece acabar a aventura, quando a viagem atinge um
estádio; mestiço incluso certamente, uma vez que aqui alguma coisa
termina e não termina ao mesmo tempo. Eis o local da parede, variá
vel de acordo com o dia e com aquele que a escala, onde este desco
bre, certa manhã, que passará, mesmo que a tempestade exploda.
Mestiço incluso: não chegou, porém conseguiu. Eis o momento de
trabalho em que, de sóbito, como por graça, tudo se torna fácil e não
se sabe por quê. Bem no meio, a obra se encaixa. Eis o instante em
que anos de treinamento, de vontade, de persistência, de repente
entram e se instalam no esquema corporal ou na naturalidade cate
gorial; neste meio-dia, começo e termino ao mesmO tempo, sei que
falarei chinês mesmo que não o fale ainda, que resolverei as equações
do problema, recuperarei a saóde, terminarei a travessia. Tão real
este patamar, que às vezes engana: eis aí o cume onde começa a
corrida, enquanto o debutante crê que ela finalmente esgotou seus
obstáculos; falso meio, às vezes mestiço imaginário.
Nascimento e conhecimento
Não sei o que me leva a dizer que essaS q~atro provas ou exposições
maiores da pedagogia - estilhaçamento do corpo em partes, expul
são para o exterior, escolha necessária do caminho transversal e para
doxal, e enfim passagem pelo lugar mestiço -, nós já as suportamos
nas primeiras horas de noSSO nascimento, quando foi necessário, não
sem alguma efusão de sangue, ou esmagamento da cabeça, nos arran
car de um corpo ao qual o nosso se integrava, pois vivíamos apenas
como parte do corpo materno, sofrer um empurrão irresistível para
18 r
o frio irrespirável do lado de fora, ter que tomar um caminho que
nenhuma opressão anterior previa, passar enfim por uma garganta
apertada e recentemente dilatada, pronta para se fechar de novo, sob
o risco de nos abafar, de nos estrangular, de apertar o cordão em
volta do pescoço, sufocar, morrer de asfixia no conduto obstruído,
estenosado, apertado, fechado ... de modo que, uma vez que está vivo,
cada um, como eu, sabe disso, de tudo isso, dessa agonia de nascer,
essa morte para viver em outro lugar" isto é, aqui, em outro tempo,
quer dizer, agora, e que, uma vez que está aí, de pé com o coração
batend~, arfando, já sabe e, portanto, já é possível adaptar-se, apren
der: morrer-viver como mestiço incluso.
Nós todos já passamos por esse colo, esse lugar estranho e natu
ral da montanha, onde o mais alto dos pontos baixos se iguala exata
mente ao mais baixo dos pontos altos. Já aprendemos que o fim de
uma agonia podia de repente equivaler ao óltimo capítulo da vida.
Nascimento, conhecimento: que exposiçãO é mais terrível ao mais
imenso dos riscos?
No curso dessas experiências, o tempo não brota nem da posição
- nela está o equilíbrio das estátuas -, nem da oposição, segunda
estabilidade, da qual nada pode advir, nem da relação das duas, arca
ou arco estático de imobilidade perene, mas de um desvio do equilí
brio que arremessa ou lança a posição para fora dela mesma, para o
desequilíbrio que a exclui de seu repouso, exatamente de um desa
prumo: a língua usual o exprime expressamente pela palavra exposi
ção. No eixo do rio cuja corrente se inflama, o nadador, como quem
enfrenta urri' risco qualquer, se expõe.
O tempo se expõe e, no espaço, brota de lugares onde não deve
ria estar. No espaço se disseminam sítios de exposição onde o tempo
se estende.
EJicorregadio, o ,lugar mestiço expõe o passante. Mas nada se
passa sem este escorregão. Ninguém jamais se modificou, nem coisa
,3.1guma DO mundo, sem se recuperar de u~da. Toda evolução e
todo aprendizado exigem a passagem pelo lugar mesti50. De forma
19
que o conhecimento, seja pensamento ou invenção, não cessa de pas
sar de um lugar mestiço a outro, se expondo sempre port~nto, _e
~quele que conhece, pensa ou inventa logo se torna um passante fl?es:
tiço. Nem posto nem oposto, incessantemente exposto. Pouco em equilíbrio, e também raramente em desequilíbrio, sempre desviado
do lugar, errante, sem moradia fixa . .-Caracteriza-o o não-lugar, sim,
o alargamento, portanto a liberdade ou, melhor ainda, o desaJ'rumo, -;'ta condição constrangedora e soberana da conduç~';;-~~rç!Jde.
Eis já quase descrito o mestiço instruído, cuja instrução jamais
termina: naturalmente, e também através de suas experiências, ele
acaba de entrar no tempo; deixou seu lugar, seu ser e seu ali, sua
aldeia natal, excluído do paraíso atravessou vários rios, consciente de
perigos e riscos; eis que agora decola da própria terra: habitará ele o
tempo? Não, ninguém habita o tempo, porque ele exclui os mestiços e
desaloja todo mundo imediatamente. É por isso que todos vivemos,
a partir de então, desalojados.
Escrever
Durante esta viagem de pedagogia, então, não aconselharei ninguém
a deixar que uma criança permaneça canhota à vontade, sobretudo
para escrever. Trabalho extraordinário, o escrever mobiliza e recruta
um conjunto tão refinado de músculos e terminações nervosas que,
em comparação, qualquer ofício manual fino, como a óptica e a re
lojoaria, é grosseiro. Ensinar esta alta capacidade a uma população
torna-a, em primeiro lugar, uma coletividade de pessoas destras -
observe-se de passagem esta palavra, pela qual os mestres destros
fazem a sua publicidade para hemiplégicos. Eles poderão vir a ser
cirurgiões do cérebro, mecânicos de precisão, qualquer coisa; desco
brir a alta precisão muscular e nervosa abre para a exatidão do pen
samento.
Estrear neste mundo novo invertendo o corpo exige um abando
no perturbador. Minha vida se reduz talvez à memória desse mo-
20 l'
menta lancinante em que o corpo explode em partes e atravessa um
rio transverso, onde correm as águas da lembrança e do esquecimen
!o. l!ma parte é arrancaçla, ~utra permanece. Descoberta e abertura
cuja cicatrização diferenciada será descrita, a seguir, por toda uma vida profissional ligada à escrita.
Essa cicatriz seguirá com fidelidade a antiga sutura da alma e do
corpo? O canhoto dito contrariado se torna ambidestro? Não, mais
provavelmente um corpo cruzado, como uma quimera: continua ca
nhoto para a tesoura, ° martelo, a foice, o florim, a bola, a raquete, para o gesto expressivo, salvo para a sociedade - neste caso, o corpo
-; nunca deixará de pertencer à minoria desajeitada, sinistra, como
se diz em latim - viva a língua grega que a diz aristocrata! Mas é des-
tro para a caneta e o garfo, aperta a mão certa ao ser apresentado _
aqui a alma -; bem educado p~ra a vida pública mas canhoto na ca
-'rícia e na vida privada. A esses organismos completos, as mãos cheias.
/"---Como adquirir enfim tolerância e não-violência, senão colocan- - '\',
i do-se no ponto de vista do outro, sa~e~ do Outro lado?
""'------- Não aconselharei ninguém a privar uma criança dessa aventura,
da travessia do rio, dessa riqueza, desse tesouro que nunca consegui
esgotar, pois e!e _co~t~m virtualmente a aprendizagem~ o, universo da
t,?lerância e o cintilamento solar da atenção. Os chamados canhotos
contrariados vivem em um mundo que a maioria dos outros só ex
plora pela metade, Conhecem limite e privação, enquanto eu sou completo: hermafrodita lateral.
Sexo
Apenas alguns viventes desfrutam de um sexo, enquanto tudo no
mundo, inerte ou vivo, é munido de um sentido. Este vai mais longe,
mais fundo, que aquele. Além disso, esquerda e direita se dizem mais
coisas do que macho e fêmea e separam mais universalmente do que a distinção por gênero.
Os astros giram e avançam orientados, como as partículas em
torno do núcleo do átomo, Cristais e moléculas são lateralizados,
21
com simetrias e assimetrias altamente refinadas. Sentido e orientação não têm origem nos homens nem em suas preferências, suas inclina
ções, mas no mundo inerte antes do vivo, e no vivo antes da cultura.
As coisas se inclinam: campos de força, auroras boreais, turbulências,
ciclones, manchas sobre o planeta Júpiter ... o universo nasceu, diz-se,
de uma ruptura de simetria. O sentido percorre portanto a imensidão
do céu, entra na máquina do detalhe e cavalga a seta do tempo. De
pois passa para as conchas, levogiros, dextrogiros, aos crustáceos que
ostentam uma pinça grande ao lado da outra, menor, nisto heter6ce
los, em seguida a todos os corpos, aos nossos, aos olhos, às abas das
narinas, à raiz dos cabelos e ao equilíbrio algo rompido do peito feminino: o seio esquerdo sobrepuja o seio direito, pelo menos estatis
ticamente. Atravessa nossos corpos e se coloca nos objetos fabrica
dos. O canhoto se infiltra com dificuldade na floresta da tecnologia
destra. A orientação convém enfim a nossas preferências, a nossas divi
sões culturais, os vermelhos no poder e os brancos como réus, ou ao
contrário, pelo hemiciclo das revoluções. A política, pequena, no fim
da fila, loucamente recomeça. Se o tribunal da sociologia me conde
nasse por não ter dito que o mundo s6 se orienta pela projeção de
suas divisões ou pela imposiçãO de suas escolhas, acho que responde
ria: e, contudo, ele gira. O mundo é lateralizado em toda parte; ele é
assim. A orientação vai do local ao global e do pequeno ao grande,
átomos e astros, da matéria inerte ao ser vivo, cristais e conchas, da
natureza à cultura, do puro ao aplicado, do espaço ao tempo, das coisas às línguas: atravessa tudo, até mesmo, sem dificuldade, as pas
sagens que a filosofia considera as mais delicadas. Ora, a divisão por gênero diz respeito somente aos viventes se
xuados, a alguns papéis sociais, às vezes à linguagem. Pouca coisa, em
suma. Todo mundo diz, sem saber o que repete, que a bússola, indi
cando o norte, permite que nos orientemos. E se eu, aquitânio, cali
forniano, habitante do sudoeste, decidisse me orientar pelo sul? Ou
22
.L
l'
então: vá sempre em frente, nos dizem, sem reparar que a retidão
recomenda dobrar a estibordo. Como pode a justiça se apresentar sob a imagem publicitária da balança equilibrada, quando o próprio termo 'direito' a faz pender sempre para uma mão? Neste caso, leva
do pela inclinação, o dizer não é inclinado pelo gênero. Em suma, o sexo pesa menos que o sentido, ou o macho que a
direita. Costumamos viver mais mergulhados no turbilhão latera
lizado que na emoção sexual. Esta comparação mostra a experiência
do canhoto, contrariado ou completo, no interior da primeira parti
lha, como mais intensa e mais ampla que a experiência mítica, do
andrógino, no interior da segunda. O canhoto vai até o objeto, dos cristais às estrelas, aberto para o mundo, por conseqüência cognos
cente. O hermafrodita se detém na carne, voltado sobre si, forçosamente narcisista.
Nada, então, na natureza inerte ou animada, nem na cultura da
linguagem ou da imagem, se refere a um espaço ou a um tempo
homogêneos ou isótropos, reversíveis, que se possa repartir à vonta
de, de maneira perfeitamente equilibrada ou simétrica. Não existe
indiferença balanceada. Não há centro nem eixo, inencontráveis ou ausentes.
A orientação pode então ser considerada originária, invariante,
irredutível, tão constantemente física que se torna metafísica. Por
meio dela, universal, estabelecemos comunicação com o universo
que nasceu, repito, desse clinamen antigo, rejuvenescido por nossas
ciências cOI]:temporâneas sob a denominação de ruptura de simetria.
LeibnÍz chega a identificá-la com a razão de ser das coisas: elas
existem em vez de nada. Pode-se assim descrever o princípio da razão
como uma diferencial de sentido e desenhá-lo por meio de uma pe
quena seta partindo do centro ausente e inencontrável para se dirigir
não importa para onde. Sua inclinação surge então como um raio, em lugares e tempos improváveis.
Donde se conclui que o ambidestro não tem razão de ser: nulo,
abaixo do sentido, no zero, indeciso, banal, não codificado, doente
23
de não ter carências. O destro ou O" canhoto vivem num semimundo
e deitam-se num sentido, de um lado, virados sobre uma metade.
Fracionários, mas justificados pela razão de ser: cegos, além disso,
para seu complemento morto, privados do liame virtual com o outro
sentido; o macho procura a fêmea que atrai, e o sexo brilha com o
desejo do instante somador, enquanto a partilha do sentido é despro
vida disso. Nada permite à direita esperar um encontro com a es
querda, o pontilhado até ela se apaga. O hermafrodita, raro, se en
contra tão freqüentemente quanto os coitos mesmo frustrados, ou as
fêmeas grávidas ... enquanto o corpo completo dorme tranqüilo, pois
não pode virar do avesso, nem se converter jamais. Universo pleno,
um ou soma de metades.
O ambidestro: neutro; os outros dois: metades; só o canhoto
contrariado perfaz o pleno e a unidade. Zero; duas metades; um in
divíduo indiviso. Um mundo, ou antes um universo, fragmentos ou
nada. Quem não é canhoto completo se vê constrangido à análise,
porque vive entre a divisão e a destruição.
Quem se sente pleno não vê, nem experimenta, o limite. Assim,
não compreende o corte, a falta, o desejo desenfreado de transgredir
uma fronteira inacessível que ele se pergunte por onde passa. Levei
muito tempo para compreender minha sorte inexprimível em não
conseguir compreender essas extravagâncias.
Como aquela que consiste, por exemplo, em repetir que todas as
sociedades se fundamentam na troca. Não: a seta simples, assimé
trica, mais elementar, dá ao parasita, sem discussão, o primeiro lugar,
perigoso, trágico, expo~to. Precisa-se do direito, no mínimo, e da
moral, no máximo, para construir, pacientemente, a seta dupla das
trocas globalmente equilibradas. Em todo canto e sempre, a orienta
ção começa; falta ainda construir os diferentes balanceamentos. A
troca, portanto, fica em segundo lugar.
Da escrita à pena, nossa época passa ao teclado. Nele, a quantos
compositores a mão esquerda faz falta! Esta acompanha, dizem eles,
serviçal, escrava, sombra da outra. Não: as mãos fazem amor, ao
24
entrelaçarem as notas; que barbárie tão habitual é deixar uma delas
quase passiva! Andróginas às vezes, em miraculosas partituras que nos fazem ouvi-las verdadeiramente bilateralizadas.
O próprio piano ilustra o corpo completo, bem plano, codifica
do em toda parte, o corpo se assemelha mesmo a esta mesa. Teclados
cortados, mesas quebradas, dos quais só se podem ler os fragmentos
ou as análises, pianos baixos, cujo alto se perderia no cinza, apagado
pelas nuvens, instrumentos agudos, em que o baixo se perde na som
bra profunda, eis os canhotos ou os destros. Ora, amanhã não escre
veremos mais com esta única mão que segura o lápis ou a caneta
sobre uma página, orientados ou desorientados, mas com duas mãos
complementares sobre teclados ou outros consoles. A questão da es
crita está mudada: quem sabe, teremos que formar também destros
completados por sua esquerda. Estamos saindo da civilização reta do
estilo para entrar na dos teclados, planária, volumosa e descentrada.
Isso nos mudará, corpos e almas, e isso transformará o tempo.
Quimera
Onde soa o centro do piano? Em torno do terceiro lá? Ouça o xis ou
o ixe da escala ascendente da esquerda para a direita, e encontre, nas
proximidades de algum meio, a cascata de notas escorrendo do alto
para o baixo; escute a quimera e o ponto de encaixe. Neste ponto da
escala, vernal, jaz a encruzilhada, sob a estátua de Hermafrodite; este
lugar primaveril se encontra no corpo, eu o conheço como dor e
como fonte, cicatriz e origem, tesouro e dobra secreta; uma atadura
por ele pasSa, como o curativo de um segundo caminho e deste como
ligadura do primeiro. Não rasgue a bandagem da quimera.
Nossos ancestrais procuravam justamente o lugar misterioso on
de o corpo se ata à alma, os laços e as dobras desse nó.
O canhoto contrariado se parece com uma quimera que levasse
sua alma à direita, porque escreve do lado das obras de cultura, e séu
corpo à esquerda, porque ali segura a sua ferramenta de trabalho para
ganhar a vida; eis um mundo contínuo, passando por suas entranhas,
25
i , ,
que une o vivente à cultura pura, mão para trabalhar a terra ou catar
o grão, mão para escrever com estilo ou compor música, entron
camento para o lugar vernal, onde o trabalho corporal encontra no
penso, como prolongamento normal, o pensamento altamente abs
trato.
Esse monstro completo, quero dizer, normal, unicórnio, esfinge,
mulher-serpente ou sereia, constrói um universo conexo, passando
pelos encaixes do centro, que une a vida privada ao coletivo exterior,
mão para a carícia, lado para o sinal e a saudação, onde se tocam e se
misturam os espaços de jogo e a gravidade refinada, canhoto na bola
e destro na caneta, passagem pelo ponto decisivo, onde o sentido de
sensação se transforma em sentido de significação, onde a solidão se
abre, onde a atenção livre torna-se produtiva, onde o riso se mesclará
com lágrimas, onde o rigor se refina em beleza.
O canhoto contrariado-completado escorrega constantemente
sobre o penso ou a conexão, pratic,a,cem vezes por dia a escolha pela
qual o suor industrioso se dirige às singularidades da arte, pelo qual
o trabalho medíocre e insistente se expande em obra, pelo qual as
fermentações putrescentes da terra se extinguem no universal sob
forma pura. <Leogre' ou <tigroa', saído do tigre e ,da leoa, ou da tigreza
e do leão, mestiço, Arlequim, animal cruzado, alçado desde sempre à
destra acadêmica, continuando canhoto para a vida banal e de base,
ele liga, ata, costura, articula, cicatriza, harmoniza, teve que passar
por cem mortes e chegar aqui, dilacerado sob a bandagem derrisória,
alma-lago de lágrimas no centro do tórax, constrói seu jogo de duas
mãos, passando, repassando, acariciando e marcando este lugar do
meio curado, vernal, novo, sólido, sereno, mais jovem que a infância
envelhecida.
Deve-se fazer uma cruz para localizar um centro e um caminho
penoso para chegar nele. Uma só reta ou um só lado não bastam. É
preciso um corpo cruzado, passando pelos órgãos do centro, coração,
ventre, plexo solar, sexo, língua, nariz de sapiência e de sabor, atra
vessando o reconhecimento dos lugares axiais, para que a língua co
mece de verdade, para que apareça o sexo; como podem, um canhoto
26
ou um destro divididos, localizar seu centro, deitados como estão ao
longo do mesmo leito? Um leito, para os ventos, não forma uma rosa.
Precisa-se de muitos, e também que eles se cruzem no centro do
compasso, para que o sentido desabroche. Terão um sexo, uma lín
gua, os infelizes, como será que eles ocupam a rosa multiplamente cruzada de seus cérebros?
Uma borda do corpo bem assinalada, tão fortemente existente que se toma como referência, atrai para si, faz perder o centro; pode
ríamos chamá-la de borda de gravidade, sempre levada, como uma
bola descentrada, a tocar o solo do mesmo lado: ídolo budista senta
do sobre as pernas cruzadas. Mesmo a massa global, forte e escura ali,
se desvanece pouco a pouco na neblina, à medida que nos afastamos
desse lado, até flutuar, quase ausente, seu peso leve, em tom desbota
do. O lateralizado se parece com um estandarte tremulando ao vento.
Seu corpo tem terras raras, lugares desconhecidos, locais onde o ma
pa ainda está em branco. Como dizer de outro modo, seja qual for a
iluminação ou o valor dados às nuances, que seu centro, claro-es
curo, participa da consciência e do inconsciente? Língua entalhada,
sexo cortado. Ou o sexo é cortado, secção, ou ele é cruzado, intersec
ção. Corpo cortado ou corpo cruzado não definem um centro equivalente, nem sequer o mesmo animal.
As duas bandas ou caminhos se encontram no lugar de inter
secção, mestiço, simples, duplo e cruzado: ausente, excluído, podero
samente presente. O cérebro é simples, duplo e cruzado, como um
quiasma, como uma quimera: é através dela, modelo do corpo, que
pensamos, pelo menos organicamente. O canhoto contrariado tem
um corpo modelado por seu próprio cérebro, organismo completo
que remete continuamente ao modelo central, em cruz. E a todos os órgãos axiais.
Da mesma forma simples, duplo e cruzado, o sexo assim se no
meia: secção, porque sua divisão deve fazer aparecer o claro e o es
curo, o consciente lado forte e o inconsciente lado fraco, no caso
habitual das pessoas lateralizadas; ou então podemos entendê-lo no
27
sentido de intersecção, pela dupla orientação. A grande cruz da quimera desenha e produz essa intersecção que, mais ainda, quer dizer
produto. Descoberta luminosa: o sentido produz o sexo, os dois sen
tidos são seus fatores. O desejo, no meio, é o encontro agudo, incisi
vo, vivo, desses dois sentidos que formam o mundo e nos fazem
participar dele. O cérebro é simples, duplo e cruzado, intersecção e produto. O
sexo é simples, duplo e cruzado. A língua, no centro, é simples, dupla
e cruzada, sopra sempre dúvida, e tripla, feita para traduzir) cantar o
quimérico. Fendida, a língua se bifurca, fala com duas vozes, com
dois sentidos. Ela também é produzida pelo sentido. Baixa, aguda,
forte ou fraca, clara, obscura, verdadeira ou falsa, rigorosa, imaginá
ria, mentirosa ou leal, estrangeira ou vernácula, atraente, repugnan
te, sempre polarizada. Sensata, insensata. Mas, de repente, passando
de um sentido ao outro, e depois ao não-sentido, através de um lugar
mestiço.
Dobra e nó
Sei lá, mas sei o que se passa no centro. Conheço o envoltório, no
meei-o penso ou curativo, cruz ou cruzamento. Qual faixa fica por
cima, qual por baixo? Essa pergunta elementar se coloca quando seguramos nas mãos
duas hastes e nos preparamos para fazer um nó, antiga prática de
marujos e tecelões, ou teoria dos grafos, esta bem nova. Por baixo,
por cima. É como se brincássemos de main chaude. '" Penélope, tecelã,
entrelaça as malhas assim. Direito, avesso. Todo nó complexo se des
mancha em tantas dobras locais onde a mesma questão- se recoloca.
Por cima, por baixo. Outra maneira de ligar o esquerdo e o direito,
basta inclinar-se um pouco e logo se percebe isso. As duas mãos te-
Na brincadeira de main chaude, duas crianças testam seus reflexos, uma ten
tando retirar sua mão da posição inferior e acertar um tapa na mão da outra,
originalmente colocada sobre a sua. (N. da T.)
28
"
_.
cem ou tricotam juntas, complementares, como ainda agora corriam
sobre o teclado. Simples e duplas, elas se cruzam: em que sentido?
Antes de ensinar as crianças a usar o console e o teclado, ensine-as a
tecer ou tricotar.
Ora então, caso sigamos atentamente a linguagem, o termo com
plexo, vindo da dobra e do nó, designa e até mesmo descreve uma
situação um pouco mais entravada que a multiplicação. Dedica
da somente ao número, esta não se importa com o lugar, enquanto
aquele o leva em conta. O complexo designa um conjunto de dobras
quando passa da aritmética, simples desconto, para a topologia, que
não despreza as dobraduras.
Afinal, o complexo sempre descreveu tal situação, e em física,
por exemplo, uma rede, elétrica ou de outra espécie, na qual nume
rosos fios passam alguns por cima de outros, e outros por baixo de
alguns, portanto estes à esquerda ou à direita daqueles, como se quei
rai desenho de topologia combinatória, nó generalizado, denomina
do complexo pela primeira vez por J .R. Listing, em língua alemã, e
utilizado por Maxwell em sua teoria dos campos elétricos. Tal rede de
fios ou de forças, interceptada algumas vezes pelas resistências ou
pelas capacidades, é chamada comumente pelos físicos de ponto de
Wheatstone.
Quando esse ponto se equilibra entre dois bornes, nenhum apa
relho de medição o consegue detectar. O complexo, então, é inobser
vável: nem visto, nem conhecido. Existindo, porém, enorme e emba
raçado às vezes, entravado, entrelaçado, entretanto mergulhado em;
por essa nulidade da diferença de potencial, ele só existe em potência,
como uma memória negra, a meio-caminho entre a presença e a
ausência, o esquecimento e a recordação, a energia local e a incapa
cidade global. Ali descoberto, o inconsciente, rede admirável de ma
lhas e de nós estranhos, faz parte da família lógica dos mestiços. Se
existe, jaz nas proximidades do meio e, como ele, tende a se perder no
negrume da memória, e depois a ocupar todo o espaço e todo o
tempo.
29
Primeiras recordações
Dia. Durante o dia, Penélope tece, compõe, monta a sua tapeçaria,
segundo o cartão perdido de que ninguém fala, mas que segue o
plano e mostra cenas da viagem, ilha de Circe, Nausícaa que joga a
bola na areia da praia. Palifemo cego no interior da caverna, as Se
reias de seios nus cercando o estreito do encantamento ... peça após
peça, dia após dia, tear para a amante, etapa para o amante, ária para
o aedo ou o trovador, décima de versos para Homero, como se todos
os quatro produzissem juntos, sob a iluminação diurna: um, a sua
corrida à vela, a outra, a cena sobre a tela, o escritor sua página bem
alinhada, o cantor sua partitura de melodia, a cada um sua tarefa
cotidiana. Seguimos, escutamos, lemos, vemos os diferentes quadros, mer
gulhados no encantamento da música: a feiticeira fatal, a jovem com
suas amigas, o monstro caolho e, enfileiradas sob o vento da melodia,
lábios abertos pelo vento silencioso das vozes, as mulheres-peixes de
busto alto elevado acima d'água, iluminadas pelo sol.
Noite. Ora, quando desce o crepúsculo, quando o marinheiro
empina suas velas e a lira se cala, quando a noite proíbe o gênio de
escrever e o leitor de ler e ver, diz-se que Penélope desfaz a peça
tecida, apaga Circe, depois sua ilha, a bola desaparece antes dos bra
ços de Nausícaa, o Cíclope perde seu único olho: os fios se desatam,
o tecido desaparece, as notas musicais caem da pauta que se desfia. A
sombra carrega os fantasmas, a melodia involui para o silêncio ... não
se vêem mais as Sereias nem a boca áfona e musical nem os seios
sedutores representados acima da espuma. Esse desatamento significa que não precisamos nem de tela nem
de mapa nem de partitura gravada nem de poema escrito nem, por
certo, de memória. A vida nos basta e nossas negras entranhas. O que
foi tecido ontem, as cadências e as estrofes penetraram bem nítidas
na nossa carne e no esquecimento obscuro, enterradas vivas na som
bra do corpo ou na penumbra da alma, na noite do tempo, sem
30 -"
tomar lugar, não mais embaraçosas que um braço ou um órgão qual
quer. Pode-se desfazê-las sem dano. Elas continuam aí sem estar aí. A
noite se recorda do dia sem o conter; um nada lembra alguma coisa;
a memória, musical, não ocupa espaço. As vozes silenciam e então
trabalham, no escuro, para a clara inteligência.
Nossa flexibilidade contém a tapeçaria demolida, os cartões au
sentes e a melodia tácita, sem outro estorvo além dos músculos, dos
nervos, do coração. Derretida, a recordação se faz carne: ela semi
ressuscita, já vibrante, do mar negro.
Manhã. Creio jamais tê-las ouvido cantar, nenhuma velha avó
me contou sobre elas, vi somente uma vez esse perfil fugaz, li apenas
um resumo malfeito; entretanto, meu corpo, esta manhã, sem difi
culdade, reconstitui, surgidas do mar e de suas grutas profundas, as
ovelhas que saem, enormes, do antro escuro do monstro caolho, a
inquietante Circe que faz emergir marujos de porcos imundos, a bola
que, dançante, descreve um arco, para fora do amontoado em que se
acotovelam as companheiras de Nausícaa, as Sereias mudas, de peito
alto sobre as ondas cantantes.
Todos ressuscitam do túmulo vazio, dos fios desmanchados, dos
versos apagados, do silêncio, de meus flancos, da ausência, da carne
calma e palpitante, de meu tórax sonoro saindo do mar negro.
Tu que escutas ou vês essas figuras surgirem da sombra sob a luz
refinada da música, da narrativa escandida ou do ritmo do tecido,
esquece-as sem hesitar, desfaz em ti esta noite sem pena os fios que as
aprisionam ou as notas e as palavras que as evocam, vais cantarolar
um dia p~á as tuas netas, compreendendo enfim, nessa noite, o que
aprendeste outrora cegamente: a fada mágica e uma mocinha ingê
nua jogando bola, um caolho perigoso ou uma vítima cega e, tácitas,
as Sereias canoras de seios alvos acima d'água. De cor.
Esquecidas em nossos corpos, as Sereias se recordam; cantam o
poema. Sem espaço, a música prende a nós a ilha sem memória.
Diluído na carne, sem deixar qualquer traço, o lugar mestiço, em
torno do qual bate o ritmo e vibra a música.
31
I' !
Rosácea
Treme e vibra no tempo o que se passa no centro.
O voleador e o goleiro sabem esperar e preparar ao mesmo tem
po e no instante preciso a queda baixa, o pulo fulgurante para um
ponto longínquo, o lance rápido e curto, o salto em altura, o desvio
brusco se o ataque vem de frente ... esquerda, direita, acima, abaixo,
como seus membros conseguem se desatar? Como, eu não sei dizer,
mas sei que o corpo sabe fazê-lo, porque dorme e vigia tranqüilo.
Ele se coloca em desequilíbrio, em desvio, por todos os lados.
Sabe, portanto, prestar atenção. Livre de sentidos. Suas hastes desata
das, flutuando, com todos os nóS abertos e não cortados, braços e
pernas em branco, cabeça vazia; circular como uma rotunda, alto
como uma plataforma de causalidade nula, ele se torna, ouso dizer,
possível. Imóvel, com a potência de mover-se. A tapeçaria de ainda
agora se desfaz. Dir-se-ia a mancha clara, irradiada em todos os sen
tidos, da rosácea de uma catedral. Atento, na espera, o corpo se coloca. Os filósofos chamam de
tese o ato de colocar: um objeto, um fato, uma afirmação verdadeira.
O corpo não se coloca como uma pedra ou uma estátua que se imo
biliza segundo as leis da estática, repousando sobre seu pedestal e em
torno de um centro de gravidade, estável, equilibrada, abandonada às
regras do repouso. Há quem defina o movimento como uma série de
equilíbrios, como uma seqüência de repousos. O corpo parece estátua quando dorme e torna-se uma após a
morte. Nos dois casos, ele repousa, algumas vezes colocado sobre um
dos lados. Canhoto do lado esquerdo, destro do outro. A orientação
desempenha então o papel de uma segunda gravidade. De pé, sinto
minhas pernas pesadas e minha cabeça bastante leve. Pés de pele às
vezes calosa, idéias voando, palavras emitidas por um sopro. Como
se a sustentação produzisse por si só partilhas longamente disputadas
na arena dos filósofos. O espiritual participa do sopro, leve, o real do
pesado, volumoso. Não é por um vago sentimento do próprio corpo
que oS teimosos se batem?
32
I
l-I .
Ora, se O corpo parece estátua, por seu peso dirigido para baixo,
com essa estátua ele esculpe uma segunda, por sua lateralização para
a direita ou a esquerda. Ele repousa sobre seus pés, mas puxado para
um lado. Seria preciso desenhar uma componente oblíqua que daria
a vertical verdadeira do vivente permanentemente atraído por essa
diagonal, que formaria com a normal o ângulo da sua própria queda.
Tudo pende e se expõe do lado em que ele cairá.
Quando você é considerado realista, dizem que tem os pés na
terra. Os pés, não as mãos nem a cabeça. O importante jaz embaixo.
Esquecem-se de indagar que pé primeiro: esquerdo ou direito? Qual
dos dois, único e bem determinado, você já tem em sua cova? Aí está
com propriedade a estátua do corpo próprio, inclinada como um
colosso à moda antiga, uma perna projetada para a frente, para dar a
ilusão de andar. Aí está sua tese habitual: o repouso. Ele, aquele pé na
frente, dorme estirado de um lado. Aí estão as forças da morte.
Ao contrário, ele se levanta, desperta: atento, espera. Saído do
repouso, não mais se abandona: aberto a qualquer eventualidade. O
que virá pode chegar de qualquer direção no horizonte. Cuida então
de apagar todas as forças que faziam de si uma estátua colocada, uma
tese estática. Contudo, não se move, mas anula o ângulo de queda
fatal, apaga o melhor que pode sua gravidade; inundando de subjeti
vidade sua elasticidade muscular, esquece rápido que se inclina num
sentido e se coloca diferente, o jogador de tênis subindo à rede para
o volejo, o goleiro em estado de alerta, vigilante. Preenche seu espaço
equivalentemente: alto, tanto quanto baixo, direita como esquerda,
deixa suas preferências e determinações, abandona suas pertinências
e tanto metllor o faz se muitas vezes atravessou o velho rio branco.
Ei-lo corpo completado.
Donde se vê que o teimoso, que grita pela esquerda ou pela direi
ta, ou pelo baixo real ou pelo alto espiritual, carece verdadeiramente
de atenção. Ele não fica, como um filho um dia pediu ao rei seu pai,
à esquerda e à direita. O vigilante que espia, ou o pesquisador aplica
do, em suspenso, torna-se logo um canhoto contrariado.
Este, ao invés, presta sempre atenção, pleno de virtualidade,
33
transbordante de possibilidade e de capacidade; todo em potência, ao
pé da letra, ele se expõe em todos os sentidos, como um pequeno sol.
Durante a sua paixão, apagou todas as suas determinações, ou me
lhor, as completou. De nenhum modo anjo, nem fera, pois a dupla negação produz um neutro estúpido e nulo, mas anjo e fera juntos,
vagando sem pertinência, corpo misturado, ascendendo ao possível.
O existente é possível, em primeiro lugar. O corpO entra em posse de
sua capacidade. Exatamente, ele se eleva em potência, sobe a mon
tante de toda passagem ao ato. Não falamos aqui do corpo indeciso,
embora este se ponha a montante de toda decisão, embora preceda o
corte. A indecisão exprime uma doença de jusante e a pré-decisão a
potência da nascente. Pré-eis, * diz-se na melhor linguagem: virgem.
O corpo atento embranquece como a neve virginal. A atenção e a
espera se voltam para a brancura. O corpo inteiro busca a vizinhança
do centro para se enovelar o mais possível. Impossível? Ele habita
esses pequenos modelos reduzidos: cérebro, sexo, língua, pequenos
corpos cruzados. Procura a dobra do cruzamento, lugar onde os sen
tidos se trocam uns com os outros, como se fundidos, acorrentados.
Mude de direção, você será forçado à atenção. E isto se parece com o
sol de rosáceas: exposição em todos os sentidos.
Arle:quim se torna Pierrô.
O cérebro, o sexo, a língua expõem os possíveis à espera, sendo
eles próprios órgãos ou funções do possível. No ponto de cruzamento, a questão do nó, esquerda, direita, embaixo, em cima, não se
coloca mais, é antes a sua forma que se expõe. A encruzilhada, aberta,
descerrada, translúcida em seus caminhos, pertence a todas as suas
vias, de maneira estável e instável. Praça branca, rond-point estrelado,
flutuante. Tudo freme em torno do eixo ou do centro transparente e
em suas vizinhanças. O cérebro espera, imenso complexo de vigilân-
>I- O prefixo latino eis significa aquém. Pré-eis, portanto, é um neologismo que
poderia ser traduzido como "antes de aquém". Précis, sem hífen, significa pre
ciso, fixo. (N. da T.)
34
cia, oscilando multiplamente, tremendo, vibrando no tempo como
seu próprio eletroencefalograma. O sexo hesita, branco de espera e de
capacidade; brilhando exatamente de potência, ele se agitai a língua
duvida e se embaraça, reticente, branca de possível, como uma plata
forma de causalidade nula, oscilante como a música e os sons que a
transportam, faiscante.
Conjunto de tremores, marcas essenciais, e talvez segredo da
vida, cujo nascimento é reconhecido pelas palpitações, regulares no
caso do coração, caoticamente erráticas e complexas para a cabeça ou
o sistema nervoso.
Trilha, música
Voltemos à pequena seta diferencial, minúsculo desvio fundamental
de nossa razão de ser. Deitar do lado esquerdo ou direito, passi
vos, afasta-nos muito desta seta. A inquietude, ínfima, tremula perto
do centro ausente: desvio originário do repouso. Destros e canhotos
dormem no fundo do leito com um sentido morto, como se diz a
propósito do leito do vento ou do braço morto de um córrego. É
preciso que o canhoto se exponha em direção à direita, e o destro em
direção à esquerda, para despertar de sua quietude animal ou de seu
sono mortal, para aquecer sua paralisia. Fazendo isso, eles passam
pelo centro.
Aquele que parte de uma margem e a deixa, mas a conserva para
tentar atingir a da frente e habitá-la, adotá-la, transita pelo eixo, de
modo que <: .. corpo experimenta a rasgadura no tórax, ou no ventre,
no meio da boca ou entre os olhos, feita pela seta originária. Esquar
tejado por seu estiramento, exposto. Como anseia pelas margens da
esquerda e da direita ao mesmo tempo, deve atravessar sem parar.
Assim, sua vida, seu tempo e seu lugar naturais vibram, tremem, se
agitam, palpitam, vacilam, hesitam, duvidam em torno da falha in
quieta, sempre desperta, soando como uma corda vibrante.
A orientação originária parte do centro ausente e inencontrá
vel, como se ali se enraizasse: o raio que o assinala, e o esconde
35
com suas fulgurações e ocultações, pisca sobre tudo como um pe
queno sol. Não encontramos o centro e nos inclinamos a deixá-lo. Volta
mo-nos para a direita, para a esquerda, para nos afastar dele. Temos
medo? Não sabemos nem podemos habitar sobre esta falha, este eixo
ou dentro deste turbilhão: quem construiria sua casa no meio da
correnteza? Nenhuma instituição, nenhum sistema, nenhuma ciên
cia, nenhuma língua, gesto ou pensamento se fundará neste lugar
móvel. Que é o fundamento último mas nada fundamenta.
Podemos apenas nos dirigir para ele, mas no momento de atingi
lo nós o deixamos, impulsionados pelas setas que partem dele. Passa
mos ali não mais que um instante infinitesimal. Tempo e lugar de
extrema atenção.
Voltamos para trás. Pelo mesmo esforço e com o mesmo elã, o
mesmo movimento, estamos nos dirigindo, mas em sentido contrá
rio, para ele. E, novamente, carregados, o ultrapassamos no momen
to de atingí-Io. Não permanecemos nele mais do que um breve lapso
de tempo. Então viramos para o outro lado. Retomamos, ao inverso,
o mesmo caminho. atraídos por essa ausência e indefinidamente re
chaçados por ela. Voltamos mais uma vez. Atravessamos sem trégua
o rio, na oblíqua na diagonal ou na transversal, em todos os sentidos
possíveis do espaço e do tempo, volta, ida da direita para a esquerda,
de frente para trás, de alto a baixo, por cima, por baixo.
Assim nascem o ritmo, os balanços, as cadências, os acalantos, os
refrões, as cirandas, a música, os estribilhos, melopéias, a dois tem
pos e a dois pés, a quatro pés e a três tempos, breves, longas, breves
novamente, rimas femininas, rimas masculinas, juntas ou alternadas,
a dança, a valsa, o par ou ímpar, os rodopios de vertigem, a cama no
mar quando o navio joga entre vagalhões turbulentos, as orações e os
ritos, o sino que toca com regularidade, todas as vibrações anteriores
à língua; todos os movimentos passam e repassam sobre este centro
ausente, onde coisa alguma jamais se detém, entre o nada e o ser,
pólo ou fundação última que só desviado de si suporta alguma coisa;
eis porque a experiência, a existência e o êxtase se exprimem pela
36
mesma palavra de exposição que fala do desvio da equivalência ...
embriaguês, deslumbramento, coroando o abalo geminado do amor.
Sol. Tudo acompanha, no duplo sentido, o lugar mestiço.
Dan~a: minueto do lugar mesti~o
Homens e mulheres dançam juntos frente à frente, mas suas linhas
respectivas são ligeiramente decaladas, de modo que cada mulher fica
diante do espaço vazio entre dois homens e só vê isso, ao passo que
cada homem responde à mesma lacuna entre duas mulheres. Toda
mulher finge gostar desse intervalo furado, enquanto os homens cal
culam seu amor pela ausência de mulheres cercada de mulheres. As
sim, cada qual se encontra só em sua suficiência morna e sua infelicidade.
Então, cansado de sofrer, cada um abre os braços, como faziam
outrora os suplicantes, e cada mão encontra uma mão à sua esquerda
e outra à sua direita: uma espécie de cadeia cruzada se forma, alter
nada. Cada um entretrém uma relação amorosa com os dois cor
respondentes que contornam o intervalo que ele compreende como
parte de seu destino, mas como as duas outras, elas também se rela
cionam às duas sombras que tém em frente, que enquadram os seus
espaços, nenhum deles vê ninguém, nem fala a alguém, e ninguém
lhes responde: esta cadeia de súplicas produz a multiplicação da ne
cessidade de suplicar. Duplo impedimento. Seguem-se daí as figuras
da dança, por estações e passagens, e suas substituições infinitas.
Malha elementar ou trama de relações humanas reais, nunca reta
mas em múttiplos arabescos, alças, laçadas ou hélices nos quartos ou
nas salas, nas praças, essa cadeia se parece um pouco com uma pauta
musical em que as notas tomariam aos poucos o mesmo lugar para
que se possa ouvir uma forma familiar num ritmo regular, galope,
tango, be-bop, minueto;- emana da linha, contínua desde que nosso
mundo é mundo, o rumor monótono que canta o indefinido mal de amor.
37
Figura central da dança. A filosofia mestiça ama os corpos mistu
rados. Post coitum omne animal triste; isso define muito bem, de fato,
o animal: aquele que se entristece após o coito.
Portanto, é homem aquele que, após o coito, ri.
Magnificência
Reconheço em mim um ser-aí tranqüilo e estável, núcleo denso que
não se mexe, como se parecesse o meu centro de gravidade ou a ele se
unisse. Sujeito, é certo, pois nada se estende por baixo dele, colocado,
depositado no mais baixo. O próprio corpo se deita ou se encolhe em
torno dessa posição abaixada, mas ainda gira em relação a esse ponto
quando se ergue, se projeta, salta, anda, corre ou nada, passa a bola
ou avança, segura uma ferramenta ou observa, viaja ou presta aten
ção, conhece, inventa.
Quem sou eu, primeiro? Esta pedra negra. Peso resultante e re
baixado dos vetores da preguiça e de minhas passividades caseiras, ele
se dirige para o centro da Terra. Embora localizados diversamente, os
homens como um todo não desfrutam senão de um só ser-aí, que faz
seu gênero ou sua espécie, raiz única de vida e de signo que dá ao
homem o nome de húmus. Esta seta de gravidade se dirige para a
morte, comum, sem dúvida alojada no mesmo centro.
Alerta! Atenção! Tal acontecimento, tal estado de espírito, um
projeto ou o pensamento passam, exigem, solicitam: então sobrevém
um deslocamento. Exatamente o desvio da marcha: a criança vai em
busca de fortuna no mundo, avança um pé em relação ao outro co
locado, enraizado, raiz dirigida para o centro da Terra, embora cubra
uma localidade.
Por um desequilíbrio sem preocupação nem certeza, com uma
inquietude incoativa, risonha e arriscada, o ser acaba de colocar o ali.
Ele se expõe. Deixa o abaixamento e se ergue. Acredita e estende sua
rama. Salta. Deixa o estável e se afasta. Anda, corre. Deixa a margem
e se atira. Nada. Abandona o hábito para experimentar. Evolui. Dá.
38
Oferece. Ama. Passa a bola. Esquece sua própria terra, sobe, viaja,
vagueia, conhece, observa, inventa, pensa. Não repete mais. Eu penso
ou eu amo, portanto eu não sou; eu penso ou eu amo, portanto eu
não sou eu; eu penso ou eu amo, portanto eu não estou mais aí. Zarpei do ser-aí.
Meçamos quantos palmos há entre o pé esquerdo e o direito, a
altura do salto, o desnível da corrida, largura de vistas, volume dos
conhecimentos, o espaço que a errância desenha, o mapa do deserto
atravessado. Essa distância separa animal e árvore, árvore e areia es
tável. O ser-aí se enraíza deste lugar para o centro comum do mundo
e se apóia no mais baixo desse eixo, dir-se-ia um vegetal. Abrir O
espaço para esse equilíbrio imóvel projeta um segundo ponto ou
lugar que merece ser chamado de exposto: deslocamento que inventa
um espaço entre a posição e a exposição. Desvio ou deslocamento
não se referem mais ao centro da Terra nem à comunidade da invariância e do peso.
Quem sou eu? Primeiro esta indesenraizável posição estável. Ár
vore ou vegetal, algum legume. Quem sou eu depois? Não estou mais
aí, não sou mais eu, exponho-me: sou essa exposição-aí. Estou no
outro passo, não mais no enraizamento, mas nas extremidades, mó
veis com o vento, galhos, no cume da montanha, no Outro lado do
mundo onde parto, movimento animal, ondulação réptil, vôo, corri
da ... sou também aquilo que conheço, interrogo ou penso, estátua, círculo ou tu, a quem amo.
Finalmente, quem sou eu, no total? O conjunto do volume entre
o ser-aí e o ponto exposto, entre a posição deposta neste lugar, tese
mais comtlmente baixa, e a exposição. Essa distância cobre no míni
mo toda a árvore e, às vezes, um enorme espaço. Chamo a esta grande dimensão: alma.
Magni-ficat anima mea: essa grandeza, literalmente, produz,
constrói1 faz minha alma. Sempre proporcional à exposição. As almas
grandes se expõem muito, e muito pouco as pusilânimes. A alegria as
preenche, cumula-as, como podem aprofundá-las a miséria e a dor.
39
Chamemos magnificência o trabalho operado dentro do tórax
por esse desvio, cuja medida e volume são medíocres Ou amplos,
entre os dois pólos da posiçãO, de um lado ponto baixo e estável do
lugar ou do ali, colocado, descolocado, e ponto alto, não-lugar ou
alargamento da alma, risco e liberação, explosão. Não há ser animal,
ou animado, sem esses dois pontos, nem ser humano, mesmo mes
quinho, sem viagem nesse deslocamento. A morte vem de retornar ao
ser-aí, embaixo.
Ao descrever na medida exata a construção da alma, no momen
to mesmo em que ela se forma, por dilatação ou trabalho no útero de
um novo espaço sob a força de um vivente equivalente ao verbo, o
salmo nomeia esses dois pontos: a humildade da criada, para a parte
baixa, evocando assim o húmus, portanto o homem ao mesmo tem
po que a terra; e para o Muito-Alto, a santidade de Deus. Não deixa
de ter sentido, com efeito, chamar Deus ao conjunto infinito de to
dos os pontos de exposição. Em troca, ele faz em mim grandes coisas:
fecit mihi magna ... palavras que repetem o magni-ficat identicamente,
mas invertendo sua ordem. Deus magnifica minha alma; minha alma
magnifica Deus; desvio entre nada e tudo, a grandeza faz Deus e
minha alma.
Alegria, dilatasão, engendramento
Sobre essa escala ereta, a criada mede duas vezes o volume em forma
ção: para baixo, por sua alegria, exultação, exaltação, nomes verticais
da exposição; para o alto, pelo olhar que o próprio Deus lança para
trás sobre sua humildade; altura, portanto, medida duas vezes, dire
tamente e em sentido inverso. Resultado quase métrico: o espaço da
alma ocupa o desvio, exaltado ao pé da letra, da Terra a Deus.
A mais modesta experiência de alegria confirma que a alma en
che com seu canto a glória dos céus ou, com seu nada, o mundo. E da
mesma forma para o tempo: a beatitude corre de geração em geração,
de modo que a alma beata habita a omnitude despojada do espaço e
da história.
40 t~
Acompanhada da alegria, a experiência abre seu espaço, que vai
dali para fora e pode ir da Terra a Deus, para construir ou dilatar a
alma, através do desbastamento ou da perfuração de uma passagem,
de um patamar, de uma porta, de um porto, pelos quais se acede a
um desses lugares expostos. A experiência os atravessa e se expõe.
Entre o nada e o tudo, ela estende um espaço e um tempo, como um
braço livre e flutuante. O êxtase exprime um fim dessa viagem, um
estabelecimento, temporariamente estável, ou, melhor, um desvio ao
equilíbrio em torno desse ponto exposto, em sua vizinhança, um diferencial de tempo.
Programado, o instinto bestial se fecha sobre si, colocado. O
animal é um ser-aÍ. Expondo-se pela experiência, o homem entra no
tempo e o abre. Não há humano sem experiência.
Chamemos alma à variedade de espaço e de tempo dilatável de
sua posição natal para todas as exposições. Assim o tórax, o útero, a
boca, o estômago, o sexo e o coração se dilatam e se preenchem: de
vento, de vida, de vinho, de canções, de bens, de prazeres, do Outro
ou do reconhecimento: da fome, da sede, da miséria e do ressenti
mento também. O estiramento aumenta com a alegria e as desgraças.
Somos costurados com tecidos elásticos. O aprendizado abre no cor
po um lugar de mestiçagens, para ser preenchido por outras pessoas. Ele se torna gordo.
Alegria. De volta ao vale, habito ainda o cume da montanha que
na última semana escalei, dilato-me daqui até o alto, sim, daqui de
baixo em direção ao Muito-Alto; minha alma, baixa, vagueia, em sua
variedade de tempo e de espaço, o cume do Gouter, o Mont Blanc e
a geleira dOs Grands-Mulets. Não, não me recordo, mas sua magni
ficência, penetrada em mim, aqui permanece: meu corpo teve que
crescer, como se alargou outrora às dimensões do maciço do Everest. Et exaltavit humiles ...
Assim armei minha tenda, desde a mais frágil juventude entre as
idealidades matemáticas, lá no alto, e as longitudes longínquas, além
da água. Erro pelo mundo e pelo atrás-dos-mundos, a abstração ou
sada, as paisagens, as culturas e as línguas, as castas sociais ... minha
41
alma se expõe em conhecimentos, como se arriscou e se arrisca ainda
deslizando nas geleiras. Abrir a porta, perfurar a parede, em última
instância se expor à morte. Uma vida de experiências abre a trilha,
curta ou comprida, estéril ou produtiva, do nada à morte, transitan
do pela alegria, indefinidamente dilatada.
Não há humano sem experiência, sem essa exposiçãO que progri
de até a explosão; não há humano sem essas dilatações.
De repente elas, em pleno meio do corpo, se preenchem com um
mestiço, que sou eu sem ser eu. Pelo aprendizado, o eu se engendra.
As grandezas sociais, falsas, aniquilam esse desvio: soberbos, ri
cos e potentados se colocam eles mesmos sobre seus lugares próprios,
suas sedes, seus bens, seu poderio, sua glória e, afastando-os res
pectivamente desses lugares, dispersos, de suas riquezas, vazios, e
de ,seu poder, derrubado, Deus de fato os aumenta, os magnifica ...
deposuit potentes de sede ... et divites dimisit inanes ... Somente então o
desvio se reproduz e eles se tornam grandes, grandes pela dispersão
ou pela inanidade, grandes porque depostos, três medidas verdadei
ras de grandeza e de volume.
Experimentando, com fome no peito, estômago, útero e coração
(re-cordatus miseri-cordiae, eis ainda uma dimensão medida), o es
paço imenso de minha alma exposta, recebo, humilde, no ponto bai
xo do lugar terrestre, os bens espargidos do ponto alto, não-lugar de
Deus, que enchem até a borda ... esurientes implevit bonis ... esse mag
nífico desvio a que chamamos eu.
O salmo da Virgem inventa a alma como a medida, em grande
za e volume, dessa dilatação. Ontologicamente, a alma é grande; a
grandeza, metricamente, a produz. Psicologicamente, a alma é ale
gria. Eticamente, ao contrário, a contração e o apequenamento a
destroem: pecado mortal de pequenez, de pusilanimidade.
Sem conhecer sentido nem direção, nossa errância vai do ser-aí
para a exposição, da humildade, verdadeira essência do humano, pa
ra o não-lugar ausente e alto, nossa realização; e esse movimento cria
o desvio da exaltação, nossa grandeza e nosso ser, distância vazia ou
plena, miserável e jubilosa. A miséria e a alegria juntas preenchem a
42
I L
experiência fundamental que podemos ter do ser, da vida, do mundo, dos outros e do pensamento.
Ela se refere pouco a um lugar sujeito, mas sobretudo a esse
espaço cujo sujeito, humilde, constitui apenas o lábio ou o bordo
inferior, e cujo segundo lugar, exposto, marca a outra extremidade:
exatamente a borda do outro. Assim minha alma, no lugar mestiço,
equivale a essa grandeza que limita, embaixo, o eu local da terra e, em
cima, uma multidão de outros de toda ordem.
Nesses lugares altos, expostos, sem os quais não somos nada
um eu sem alegria -, mora o próprio Deus, apelação omnivalente,
universal, integral, soma cujas versões indefinidas se nomeiam suces
sivamente cimo do Gouter, tal idealidade, este aeroporto do outro
lado do mundo, tu a quem amo e que me amaste, o mundo cuja
beleza me maravilha e ao qual me dou, o objeto que observo e que me
enche de informação, o pensamento que desenvolvo e a linguagem
que jorra sobre mim, a multidão doce desses em torno dos quais
gravito, tu, vocês, estrangeiros ou familiares ... não há portanto ho
mem sem Deus, sem essa função- Deus, sem a criação e a experiência
desse abismo exposto, do qual sou apenas a margem baixa, um lábio
local e terroso, sem esse espaço alto e grande, dilatável, que experi
mento aqui e agora em meu tórax, meu coração, meu estômago, meu
útero, minha alma ... sem essa abertura para a soma da alteridade.
O espaço dilatado pela aprendizagem é preenchido pelo outro
com um ser, um terceiro, eu e não-eu, ao qual um dia não darei à luz.
No sujeito, primeira pessoa, os outros engendram uma terceira pessoa, finalmente bem educada.
Manhã. Trevas. Silêncio. Despertar. Pequenos gestos já vivos. Ei
la pronta, a força nOva. Armada a bomba. Oferecida a alegria. Que
fazer? Sim, empreender e, decerto, com grandeza. Partir além dos
mares, construir, descobrir ... O entusiasmo traz, na madrugada, a
volta ao mundo, ele e eu de volta à manhã da criação. Onipotência:
tudo se torna possível. Magnificência: esta potência tende à grandeza.
43
Qual? Onde, como e por quê? Então, no momento de decidir, na
lembrança da história, que só promove as grandes coisas por meio
dos mortos, dos pés aos olhos e de um ombro ao outro, meu corpo,
feito por ela, chora a grandeza. Presente, nele, evidente, invasora ...
sem uso.
Nada de social ou de histórico, salvo através de crimes e de men
tiras, nem a vitória que pisoteia mil vencidos, nem a excelência que
depõe a coorte dos medíocres, nada a forma, a mostra ou a dá.
Ora, com a experiência garantida desde minha infância, violenta,
pesada, exigente, jaz e se dilata em mim a grandeza. Todos os dias,
então, ela desperta uma energia pronta, isso já há várias décadas, para
se precipitar ao primeiro chamado, vigilante atento, servidor fiel,
devotado até a morte, mas só a ela obediente.
Tal onipotência matinal livre, tal exigência imensa, pode se es
gotar em uma obra; mas esta raramente atinge a grandeza, e sem
dúvida anonimamente, pois não se trata de mim, mas dela, que pro
duz e engravidará de mim. Então, a potência sem uso continua in
tacta, juvenil e fresca até na velhice. Exatamente virginal. Ela canta o
Magnificat.
Ora, nada pode fazer dessa experiência uma exceção. Cada um,
sem dúvida, pelo menos um dia, passa por essa dilatação formidável
do ser, em volume, força e virtualidade explosivas, essa brisa livre,
essa grandeza desempregada, virgem a despeito do que se faça, a in
finita punição de ficar à margem: a possibilidade infinita de aprender.
Por que teimar em não chamar de alma a essa intensidade vagan
te, mundo e pensamento possíveis em pleno meio do corpo, como
uma rosácea ou um pequeno sol?
44
_.
Instruir
Dia
Noite
Claro-escuro
O lugar mestiço
O terceiro homem
Instruir ou engendrar
A terceira pessoa: procedência
A terceira mulher: concepção
O mestiço instruído: ancestrais
O mestiço instruído, de novo: origem
Engendramento na aurora
O problema do mal
Guerra por teses
O estilista e o gramático
paz sobre as espécies
Núpcias da Terra
Paz e vida pela invenção. Encontrar
Um outro nome para o mestiço instruído
O casal genérico da história
-"
Dia
Nem o sol nem a Terra situam-se no centro do mundo. A filosofia
glorificou outrora a revolução copernicana por ter expulsado nosso
planeta desse posto, mas Kepler descobriu que o movimento geral
dos astros segue órbitas elípticas, que se referem, é certo, quando em
conjunto, ao doador solar de força e luz. Mas cada uma, além disso,
tem um segundo foco, do qual não se fala nunca, tão eficaz e neces
sário quanto o primeiro, uma espécie de segundo sol negro. Ao sol
branco, brilhante e único, correspondem vários focos obscuros que
podem ser reunidos numa espécie de zona de forma anelar, exposta,
quer dizer, colocada à margem do sol.
Além disso, nenhum desses dois pólos se encontra no meio.
O centro real de cada órbita jaz exatamente em um lugar mesti
ço, justamente entre seus dois focos, o globo fulgurante e o ponto
obscuro. Não, nem o sol nem a Terra se encontram no meio, e sim
uma zona perdida, mestiça, da qual se fala ainda menos do que de
seus parceiros solares.
Da mesma forma, um afastamento mensurável separa, do sol do
conhecimerito, um segundo foco negro, pelo menos tão ativo, embo
ra escuro. Termo de uso corrente, a pesquisa, cuja raiz latina vem do
círculo, assim como enciclopédia, palavra erudita que o douto Rabe
lais recopiou, em grego, da precedente, falam juntas da gnoseologia
circular, centrada unicamente num dispensador de luz. Ao falar em
centro de pesquisa, a língua, redundante, tresvaria e se atrasa, porque
existem, em nossos saberes, segundos focos afastados do primeiro,
que encurvam os ciclos perfeitos de maneira excêntrica. Sim, o co-
47
nhecimento funciona elipticamente, como Kepler disse outrora a res
peito do sistema planetário. Os fracos e os simples, pobres ou analfabetos, toda a suave mul
tidão tão menosprezada pelos doutos, que não a vêem senão como
objeto de seus estudos, os excluídos do saber canônico se orientam
com freqüência por esses pontos negros, sem dúvida porque eles não
OS cegam nem os sufocam, ou porque os sustentam assim como o sol
deslumbra os filósofos. Além do mais, reconheceriam os próprios
sábios os momentos solares, os momentos de conhecimento potente,
se não os misturassem às longas horas de sol negro? A verdadeira
intuição se acompanha de uma indispensável fraqueza? E o que deve
a ela? Pela claridade, o conhecimento se descentra, como o mundo,
mas, como ele, em seu elã, na energia de seu movimento. Ignoramos
o que nos incita a deixar a ignorância, motivações e finalidades, e
mais ainda para onde se dirige o saber. A motricidade se encontra
dividida entre a fonte ofuscante de luz e um segundo ponto obscu
ro. O não-saber contorna o saber e a ele se mistura. Una, concer
nente ao mesmo mundo e aos mesmos homens, a pesquisa gira, se
gundo seus objetos, em torno de um centro igualmente distante dos
dois focos. Medir o desvio constante desses dois pólos, considerar o que a
estrela flamejante deve ao ponto cego, e este à primeira, buscar as
razões de uma tal distância, avaliar a produtividade da zona obscura
e mesmo a fecundidade desse par, e não mais simples comando ou
regulação atrativa - o que perderia uma sem a outra? -, eis o pro
grama da Instrução Mestiça, segundo a lei de Kepler.
O que dizer dos novos centros? No passado, chamava-se centão a
um poema cujos versos, ou fragmentos de versos, eram tomados de
diversos autores. Por extensão, deveríamos chamar assim toda espé
cie de obra, literária, histórica, musical ou teórica, fabricada com
peças e pedaços copiados. Transcreva um modelo e você será acusado
de plágio. Copie cem, e será doutor. Exemplo: esse estudo das raízes
48
.I.
greco-latinas da palavra centro se reduz a um centão. Palavra pouco
usual, na verdade, enquanto o pot-pourri que ela descreve se apresen
ta com freqüência.
A língua latina, então, já conhecia a palavra e a coisa, já se com
punham essas salsadas também chamadas de sátiras, donde se vê que
a preguiça não tem idade. Mas antes de designar uma tal antologia,
para declamar, cantar ou citar, ela chamava cento ao pano feito de
pedaços remendados, um trapo de tecido compósito. Eis de volta o
casaco de Arlequim, comediante situado no centro do palco e deste livro.
O termo francês, cujo desaparecimento no meio da abundância
de objetos que deveria designar eu deploro, remete, como seu equi
valente em latim, ao grego kentrôn, que traduz exatamente cento e o
centão, poema feito de pedaços tirados de diversas fontes e casaco
remendado, um desempenhando o papel de imagem do outro. Mas,
antes e em primeiro lugar, kentrôn designa o aguilhão com o qual o
lavrador estimulava, antigamente, a parelha de bois da charrua, a
arma no ventre da abelha ou na traseira do escorpião, mas também
um chicote de pregos, instrumento de tortura.
Ora, a mesma palavra designa o instrumento de punição e aquele
que a sofre ou a merece, a vítima. O centro, portanto, acaba por
indicar o miserável, condenado às esporas ou ao aguilhão mortal, e
descreve o seu lúgar. Kentrôn então traduz o centro do círculo, o
ponto agudo, a singularidade situados em seu meio. O lugar do pal
co, onde Arlequim se despiu. Não me lembro mais em que cidade de
minha infância a praça central era chamada com esse nome: praça
dos CentõeS.
Sozinha, sem trabalho, a língua fala com várias vozes e conta sem
primeira pessoa o desfolhar do prelúdio. Eis o casaco, centão remen
dado, mais o relato simplesmente aditivo e compósito da queda das
folhas sucessivas do traje ou das páginas que narram o desvestimen
to; eis, também, o Imperador da Lua no centro, alvo da caçoada do
público e logo seu saco de pancadas, sob as vaias e os apupos; eis,
enfim, o que Arlequim traz no centro de seu centro, no interior de
49
todas as dobras de suas vestes, ou por baixo de todas as suas roupas
de baixo: o que ele é, um e vários. Ele é o ponto central onde estiver, reunião multicor, em um
pcinto de interseção indivisível, direções I e mundos em toda volta. O
casaco desse pavão vaidoso cintila com os olhos daqueles que o
olham, olhares azuis e negros, olhadas verdes e castanhas. A palavra
centro por si só descreve ao mesmO tempo o um e o múltiplo, o um
por seu sentido espacial patente, intersecção, e o outro, reunião, pe
las raízes lingüísticas ocultas; os dois, enfim, em geometria. Segundo a história das ciências, a língua conta que o centro do
círculo ou o centro em geral, esta idealidade pura, longe de designar,
no começo, o lugar calmo onde se discute em plena igualdade demo
crática serena, descreve o traço deixado pelo aguilhão, o estímulo sob
um estilo distinto, mas também o prego e O chicote do supliciado, o
local do suplício e lugar do rei ridicularizado: a geometria chega por
último, carregando atrás de si esse passado, como uma negra cau
da de cometa, atrás do coração brilhante. Algum São Sebastião criva
do de flechas está cravado ali, perfurado, flagelado, atrás ou sob a
transparência desse puro conceito de centro, cuja limpidez esconde,
melhor do que uma tela, esses resíduos de alta formação arcaica. A
história das ciências dá lugar, incorpora, uma antropologia da geo
metria como esta, pura, esquecida. Surge o segundo sol negro, distante do brilhante; nosso deslum
bramento especulativo diante do centro do círculo oculto. Há som
bra nas vizinhanças desta luz e, sob esse conceito sereno, há dor. No
centro jaz o centão: recoberto de peças, composto de pedaços. É nesta
singularidade, no limite pontual e quase ausente, que o mundo intei
ro se reúne e se encontra, se justapõe muitas vezes, às vezes se funde.
No centro jaz o sujeito, jogado sob essas peças, receptor de infor
mação e de dor. Criação, instrução, educação formam esse sujeito central, à ima
gem do centro do mundo. Brilhante e sombrio, o mundo converge
para ele.
50
L r
Noite
A imagética astronômica, cujos faustos correm de Platão a Kant e
mais além, para canonizar as relações do saber e da luz, do mundo e
do sujeito, raramente repara quanto os observadores, noctâmbulos,
trabalham, quase sempre à noite.
Não só o conhecimento se descentra e reclama apoio junto aos
segundos sóis negros, como o próprio centro, meio-lugar quase nulo,
se dissemina subitamente no universo, meio imenso onde o mundo
terrestre, solar e planetário se reduz a um cantão. No curso de longas
noites sombrias observam-se, mescladas, essas luzes e trevas originá
rias de milhões de sóis brilhantes e com buracos ditos negros.
Canonizado pela massacrante realeza do dia, nosso saber erigiu
indevidamente o sistema solar, local, em lei generalizada. Ora, meio
dia não significa mais que o pequeno principado de uma anã próxi
ma. Nós recebemos de longe a luz de outros sóis, alguns deles gigan
tes, mas afogados na sombra.
Não só, segundo a revolução kepleriana, o sol deixou o centro,
mas existem miríades de sóis. Ausente ou quase da primeira figura, o
centro se reproduz, multiplicado, pela totalidade do universo. Seu
quase-nada é disseminado indefinidamente. A revolução astrofísica
perdeu a conta do número de vezes.
Existem sujeitos por toda parte, entre a luz e a sombra.
Traduzidos do espaço para a temporalidade, a nostalgia ou o
narcisismo, que sonham com um sujeito no centro de tudo, engen
draram a ..estranha idéia de que existem dois análogos desse centro
no tempo, o começo e o agora, este último continuamente opti
mizado como o momento em que sabemos melhor o máximo de
coisas.
Por que, de fato, como o espaço, o tempo não semearia em si, ele
também, uma infmidade de centros ou instantes capitais? Quantos
começos e fins terão verdadeiramente lugar neste momento? Sim, o
agora sempre começa um novo destino, ou fecha uma era, ou perma-
51
nece gentilmente indiferente. Escolha entre essas três verdades equi
valentes. Mestiço de dois pólos, brilhante e sombrio, o centro passa de
parte nenhuma a toda parte, espaço ou tempo, e de nada se torna
múltiplo.
Ele não dá somente a luz, mas também a força, graças a seu papel
de atratOr. Desde Kepler, cada planeta não se encontra atraído exclu
sivamente pelo sol, mas também pelo outro foco negro. A partir daí
passamos a conhecer uma multiplicidade de atratores de formas di
versas, produzindo ordens caóticas. A pesquisa ou enciclopédia dos conhecimentos, antigamente
considerada redonda, segue uma história semelhante; torna-se elípti
ca ou com dois focos atrativos, já em Augusto Comte constituídos
pelas ciências exatas e as ciências sociais, física e sociologia, antes de
se dispersar hoje e desfrutar, também ela, de vários centros ou atra
tores; mudam a forma e o conceito da antiga enciclopédia, mas não
podemos, mesmo assim, denominá-la caopédia! Isso não significa que se abandonem as leis, maS que a previsão
baixe até uma relativa imprevisibilidade. Isso aproxima as ciências e
as próprias coisas, pois ninguém sabe nem pode prever a invenção
das leis, ainda que elas habitassem o cúmulo da razão e do deter
minismo. Em ambos os casos, do saber e do universo, existe a histó
ria, através dessa mistura de previsão e de imprevisibilidade; inversa
mente, conceber a história a partir daí torna-se fácil, uma vez que
não cessa em nenhum lugar esse encontro entre a razão determinada
e o caos. Uma certa desordem favorece a síntese.
Claro-escuro
o sol perde a senhoria sobre o conhecimento: ele não é mais seu
último fim e seu primeiro começo, mas se reduz a um pequeno cone
de poeira clara, saído de uma rachadura na caixa negra do espaço. O
52 T
meio-dia produz apenas um ofuscamento oblíquo. Não saímos das
nossas ignorâncias e das nossas limitações. A luz não inunda mais o
volume, não ocupa o espaço, não garante para si o lugar inteiro,
como um deus sob o reino daquilo que nunca será novo, mas nos
chega, como um raio projetado entre miríades, em singulares cores
espectrais. Vinda de um sol, cada faixa interrogada, multicolorida,
tigrada, irisada, zebrada, fornece informações diferenciadas. O casa
co de Arlequim, Imperador da Lua, representa também este saber de
noite.
Sob o sol único e total resplandecia a unidade do conhecimento.
Na aurora, sua luz extingue a multiplicidade incontável de estrelas
diferentes. Desde o leste, nada de novo. Nada de novo desde que esse
fogo nos ilumina, desde as idades da luz: desde o sol grego, o Deus
único e a ciência clássica, desde Platão, a sabedoria de Salomão, Luís
o Grande e a Aufklarung, esse saber de dia perdera o tempo. Nenhum
desses nomes, dessas eras, ditas novas, nunca mudaram o regime,
sempre o mesmo, da luz, única e intemporal.
Eis o novo. Não mais ingenuamente oposta ao dia, como a igno
rância ao conhecimento - que bela chance é o ritmo nictemeral para
aquelas simples e cruéis divisões entre o erro e a verdade, a ciência e
os sonhos, o obscurantismo e o progresso! -, mas semeada de cores
e de negro, a noite faz a soma dos próprios dias do conhecer. Assim,
arlequina e cromática, a mestiça instrução, como as precedentes, vem
dos noctâmbulos dos observatórios do espaço, que misturam ao dia
a noite que, por sua vez, integra os dias das galáxias às noites dos
buracos negros; essa mistura engendra uma terceira luz.
Deixamos para trás o Bem platônico, a idade das Luzes, a vitória
exclusiva da ciência clássica, a história unitária de nossos pais. Nunca
as religiões triunfantes, os políticos em glória, a ciência que se acre
ditava no apogeu quando apenas começava, a história sem falsifica
ção, toleraram imagens de uma tal discrição ou retenção, nem a mis
tura da qual o tempo nasce.
Eis que chega a idade dos luzires. O conhecimento clareia o lu
gar. Tremulante. Colorido. Frágil. Mesclado. Instável. Circunstancial.
53
Penumbroso. Atravancado. No raio de claridade, furta-cor, saturado
de partículas, dançam os átomos. O Rei Sol vê seus louros pulveriza
dos. Longe de iluminar o universal, ele pisca sob quantidades de pó.
Eis a idade dos clarões e das ocultações locais, a idade do cintila
mento. Daqui para diante, preferiremos talvez o cromatismo da luz à
sua unidade, a velocidade à claridade?
Mas, novamente, de onde vem essa sombra necessária, tão mis
turada à luz, na mestiça instrução?
Vem da dor, como aquela que o centro ocultava?
o lugar mestiço
Toda elipse tem um centro e dois focos: aí está um trio, um conjunto
de três. Mas a que chamamos mestiço, neste caso? Um terceiro lugar,
um terceiro homem, a terceira pessoa?
Como mestiço no meio dos outros, alguém pode se encontrar
em posição delicada e ambígua, se não está envolvido - ou se o está
demais - com a situação. Portador, por exemplo, de boas ou más
notícias, intérprete, ele se aproveita, às vezes imensamente, de uma
situação que, com freqüência, se inverte; então pode ver-se impiedo
samente escorraçado, excluído como parasita. Aproveitador ou men
sageiro, muito bem ou muito mal situado, o terceiro, no centro, sofre
ou abusa, entre os dois outros. Expulso por interferir demais, inter
ceptar, intrometer-se.
E aquele que ocupava lugar demais o perde.
De duas pessoas que se contradizem espera-se que uma esteja
errada e a outra certa: não há terceira opção possível; diz-se que o
Mestiço está excluído; ou melhor: não existe um meio. De verdade?
Notável a esse respeito, a língua francesa o define como um ponto ou
um fio quase ausente, como um plano ou uma variedade sem espes
sura nem dimensão e, contudo, inesperadamente, como a totalida
de do volume no qual vivemos; nosso ambiente. Nova inversão: do
meio-lugar, pequena localidade excluída, não concernida, prestes a
desvanecer-se, para o meio, como universo em torno de nós.
54
I
L ! .
E o que não tinha mais lugar o ocupa todo.
Como uma corda vibrante que soa, o mestiço não cessa de osci
lar - de cintilar - entre as boas notícias e as más, entre a vantagem
e o desprezo, a indiferença e o interesse, a informação e a dor, a
morte e a vida, o nascimento e a expulsão, o tudo e O nada, o zero e
o infinito, o ponto do qual jamais se fala, entre os dois focos, solar e
negro, e o universo que ele semeia.
No século V antes de Jesus Cristo, alguns anônimos sábios gre
gos descobriram, em geometria, a demonstração apagógica, isto é,
pelo absurdo. Medindo a diagonal de um quadrado de lado igual a
um, eles perceberam que seu comprimento não podia ser expresso
nem por um número par nem por um ímpar. Desta contradição, o
mestiço devia ser excluído. Mas, com isso, não existiria a dita diago
nal; ora, ela existe, formando um xis, decorando, justamente, o meio
lugar do quadrado que ela separa em dois sem meio, impondo-se à
intuição. Ela existe, portanto, mas é inefável. Dizia-se que era indizí
vel, irracional, diferente. Ora bem, uma multiplicidade de situações
semelhantes apareceu, subitamente, nos números e nos grafos: a ál
gebra dos reais, a verdadeira, a grande matemática acabava de nascer.
Ela surgiu do mestiço excluído, desta impossível situação: nem
isto, nem o seu contrário; desta fonte indecidível, do absurdo que
acua a diagonal do quadrado, nem par nem ímpar, ausência de meio
entre essas duas impossibilidades de dizê-la. A partir daí, a descober
ta dos reais, jorrando como um gêiser desta falha ausente, impôs a
todos os outros números conhecidos, pelo menos naquela época, a
redução a ~asos-limite dessa nova forma, de início um meio-lugar
absurdo, portanto nulo, em seguida invasor, meio quase total. Logo
só se encontrará por toda parte esse mestiço, tão depressa quanto foi
proclamada a sua exclusão. Ele não era nada, e eis que se torna tudo
- ou quase. Absurdo quer dizer surdo: o tumulto que o Gênesis diz
ter precedido a criação não terá vindo depois de semelhante silêncio?
Quem ocupava lugar demais o perde; quem não tinha nenhum o
ocupa por inteiro; o nada pode tornar-se tudo, que, por sua vez, pode
55
desmoronar no nada. Lei de transformação com bifurcações impre
visíveis.
O parasita a segue, pequeno animal que, 'multiplicando-se para
mudar de escala, produz epidemias, levando à morte conjuntos gi
gantescos de animais enormes, mas que, desta forma, se expõe a de
saparecer; o próprio Hermes* a reproduz, em sua conduta habitual
de intermediário, através da qual se espera que transmita mensagens
como um vidro transparente, portanto nulo, mas que transforma
toda a paisagem cultural a cada informação, meio-lugar se fazendo
meio: animal e deus odiosos e indispensáveis, anjos bons e maus
juntos, mediadores, operadores da mudança.
Assim enunciada, a dita lei, lição de antigos livros, governa as
transformações reais e os engendramentos. Poderá também produzir
o tempo, não aquele dos relógios, mas o nosso, o das nossas almas, de
nossos conhecimentos, o tempo das coisas e da história?
Da história, será? Aqueles que não pertenciam nem à nobreza
nem ao clero, eram agrupados pelo Antigo Regime numa terceira
classe: o terceiro estado. ** Ele não era nada, não concernido, fre
qüentemente excluído, e quis tornar-se alguma coisa, com o sucesso
que conhecemos. Hoje, da mesma forma, levado por seu crescimento
demográfico gigante e sob o risco econômico de morrer, o Terceiro
Mundo*** pede para se desenvolver. Que acontecerá?
Ora, no saber e na instrução existe também um terceiro lugar,
posição que hoje é nula entre duas outras, a ciência exata, formal,
objetiva, poderosa, e do outro lado o que chamamos de cultura, mo
ribunda. Donde a criação de um terceiro homem, o mestiço instruí-
,. Na Grécia antiga, Hermes era padroeiro dos viajantes, mensageiros e merca
dores ambulantes, além de mediador entre deuses e homens. (N. da T.)
,.,. O tiers état. Aqui, em vez de "mestiço", usamos "terceiro" por força da ex
pressão consagrada pela história. Preserva-se, no entanto, a idéia de mistura
e mestiçagem. No Antigo Regime francês, o terceiro estado designava todos
aqueles que não pertenciam nem à nobreza, nem ao clero. (N. da T.)
**" Tiers Monde.
56 l'
do, que não era nada; aparece hoje, torna-se alguma coisa e cresce.
Ele nasce dentro deste livro, no qual lhe desejo, como pai, longa vida.
Eis um apólogo que distingue os dois lugares: será que você so
nha em conquistar, algum dia, o Prêmio Nobel em medicina, econo
mia ou ciências físicas? Trabalhe então em uma rica universidade de
língua inglesa. Mas, para a literatura, tendo em vista a mesma recom
pensa, vale mais escrever e viver no Terceiro Mundo. Essa tripla dis
tância - geográfica, de fortuna e de especialidade - mostra a di
mensão do desprezo no qual incorre hoje a estima outrora conferida
às letras: culturas da miséria e miséria da cultura.
Será possível retardar o inevitável confronto entre o Norte, feliz,
sábio, afortunado, e o Sul miserável, com a invenção dessa cultura
mestiça? Há nisso, ao mesmo tempo, sabedoria, na esfera intelectual,
justiça, em matéria econômica, a Terra a proteger, assim como a paz, nosso bem supremo.
A epistemologia e a pedagogia encontram, como vimos há pouco
com o centro, a exclusão, a dor, a violência e a pobreza; o problema
do mal se cruza com o saber. Eis a sombra.
Como Kepler nos ensinou, acreditamos que no centro comum
do mundo brilha o sol universal do saber e da razão, mas que a
sombra se dispersa nos segundos focos dos diferentes planetas; acon
tece-me hoje pensar, ao contrário, que o problema do mal passa por
uma involução no centro comum de todas as culturas e que mil sóis
de saberes diversos cintilam no meio comum dessa dolorosa sombra universal.
Sofro: isto se diz em toda parte desde sempre; nós pensamos: este
cogito, especialista, só concerne às comunidades raras.
Temos que nos instruir sobre o lugar mestiço, situado entre esses dois focos.
o terceiro homem
A terceira pessoa povoa nOSsas palavras e nossas línguas. Dialogue
mos, falemos, que o deus Hermes de novo circule entre nós; confie-
57
mo-nos, portanto: eu converso contigo, vocês se dirigem a nós, o do
micílio lingüístico de nosso domínio abriga a primeira e a segunda
pessoas, entendidas no singular ou no plural. Tão bem-definida e
fechada que permanecemos surdos a tudo, salvo ao que se passa den
tro dela; essa esfera inclui o mesmo e o outro, enquanto exclui os
terceiros, ausentes, nulos ou ridículos.
No decorrer do diálogo, ele ou ela, aquilo, elas ou eles designam,
justamente como terceiros, a exclusão ou o exterior do conjunto fe
chado de nossa conversa, a não-pertinência à nossa comunicação,
lugar mestiço portanto, mais precisamente aquele, aquela, aquilo,
aquelas e aqueles sem os quais, sem o que, ou de quem e de que nós
falamos, mestiço excluso e incluso.
Essas terceiras pessoas gramaticais, geralmente derivadas de pro
nomes ou adjetivos demonstrativos, são então, exatamente, demons
trativamente, esses mestiços dos quais já conhecemos os avatares ló
gicos, geométricos e sociais precedentes. Passamos os braços pelas
janelas do domínio, para mostrá-los ou designá-los com o dedo, lá
fora. Ora, para esses terceiros, novamente, a mesma lei implacável
descreve uma mesma transformação: o nada pode tornar-se tudo,
que pode desmoronar no nada. A terceira pessoa, excluída, mal situa
da sobre o fio do meio-lugar, raramente leva o nome de uma pessoa,
já que empresta o seu a um demonstrativo. Mas pode tornar-se o
meio de tudo e, em particular, de nós, que nos debruçamos sobre a
linguagem, meio objetivo e intersubjetivo no qual mergulham, desde
sempre, nossas línguas. Além disso, e ainda, essa relação do nada com
o tudo revela o segredo do engendramento, do devenir e do tempo.
A partir do mestiço excluso ou da terceira pessoa, as figuras não
mais percorrem o espaço lacunar dos exemplos precedentes, cuja
origem poder-se-ia atribuir ao acaso de rubricas diversas. Mas, ao
contrário, elas preenchem, saturam o universo ontológico. Da mes
ma forma, neste livro, o retrato do mestiço instruído, eu na primeira
pessoa, tu, qualquer outro, na segunda, de repente é abundante e
engendra um, dois, dez modelos, tantos mestiços quantos se desejar.
58 i-c
O ensino é esta semeadura.
Eis, portanto, a terceira pessoa tornada totalidade do coletivo social que cerca aqueles que falam dela; neste caso, ela se nomeia: a
gente ou cada um ou todos ou os outros. Ou cheia ou expulsa. Em se
gundo lugar, ela se torna o conjunto dos objetos ou da objetividade
em geral; em torno de nós, sem nós, o este, isto, aquilo que indicamos
com o dedo. Em terceiro, o mundo como tal, ou físico, o impessoal,
exatamente denominado na terceira pessoa: chove, troveja, neva; as
intempéries designam de novo, e em profundidade, o operador tem
poral. Em quarto, o próprio Ser: a expressão francesa do ser-aí, il y a,
traduz, palavra por palavra, usando justamente a terceira pessoa e seu
locativo, o dasein alemão. Finalmente, a moral: é preciso, imperativo tão impessoal quanto o objetivo chove.
A terceira pessoa acompanha, portanto, o contorno ou a síntese
do saber e de seus objetos. Quem até hoje teria sonhado com uma tal
soma? Em segurar com uma só mão os fios de uma tal totalidade?
O Mestiço e sua lei vibrante de exclusão e de inclusão fundamen
tam assim as ciências, exatas e humanas, as primeiras regulando-se
apenas pela demonstração rigorosa, baseada no princípio do mestiço
excluso (vemos, comprovadamente e, sem dúvida, pela primeira vez,
quão fácil é passar do demonstrativo lingüístico, pronome e adjetivo,
simples gesto do índice estendido que mostra o lado de fora, o amea
ça ou admira - o iste latino de desprezo torna-se ille de glória _, à
demonstração que conclui decididamente a favor do funcionamento
sob controle cerrado da exclusão), e as segundas baseadas no devenir
global da exclusão local, que define ou designa, antes de tudo, um
determinado,.indivíduo, e depois, subitamente, a totalidade da inclu
são social; t;ata-se, nos dois casos, do mesmo fundamento e, mais
ainda, eles se fundam um ao outro. Da exclusão social e humana,
passa-se ao mestiço excluso que, por sua vez, torna rigoro,sa _ belo
duplo sentido - a conduta coletiva e o conjunto de suas conseqüên
cias. Eis finalmente descoberta uma passagem do Norte-Oeste, onde
se nasce com Os dois sentidos, onde os começos se substituem um pelo outro e portanto se engendram um ao outro.
59
Eles fundamentam metafisicamente a física, ao mesmo tempo
ligando-a à demonstração, dando à natureza sua objetividade geral
e fazendo funcionar os fenômenos naturais independentemente da
intenção das pessoas envolvidas no discurso e em seu domínio.
Fundamentam a ontologia do próprio ser e, além disso, o tempo e
a história, fornecendo o operador das transformações. Finalmente,
fundamentam a moral, descobrindo uma lei de conduta não re
ferenciada a nenhuma vontade particular, exterior à esfera da comu
nicação. A terceira pessoa - única e universal, fora de todo sujeito na
primeira e na segunda pessoas - funda então todo o real exterior,
confere objetividade ao seu conjunto. Eis, fora de qualquer logos, a
razão do realismo, filosofia indemonstrável sem essa terceira pessoa,
e agora, graças a ela, mais do que demonstrável, pois está presente na
raiz de todas as demonstrações. Eis o objetivo e o fim da filosofia da comunicação que leva a
mensagem de Hermes, mestiço entre a primeira e a segunda pessoas,
circulando entre suas relações: nem ela nem seu d~us podem dispen
sar o que não é ela nem ele.
Instruir ou engendrar
Donde o conhecimento, a experiência e a instrução. Antigamente
chamava-se pedagogo ao escravo que conduzia à escola o filho da
nobreza. Hermes os acompanhava também, às vezes, como guia. O
pequeno deixa a casa da família; saída, segundo nascimento. Todo
aprendizado exige eSsa viagem com o outrO em direção à alteridade.
Durante essa passagem, muitas coisas mudam. Amai a língua que faz do escravo o senhor, e, portanto, da via
gem uma escola em si mesma, e dessa emigração uma instrução. O
escravo conhece o estar fora, o exterior, a exclusão, o que significa
emigrar; mais forte e adulto, ele chega a se equiparar ao infante mais
sortudo, em uma igualdade temporária que torna possível a comuni
cação. Vagueando na floresta, Branca de Neve também encontrou
60
,
velhos anões; ancestrais porque velhos, mas crianças pelo tamanho,
quase-igualdade que lhe permitiu ficar protegida e tornar-se proteto
ra; sempre criança e já madura; mãe, logo, e filha, ainda; ela vai,
portanto. renascer de si, deles, da floresta, em si mesma e de outra
forma, filha e mãe de si mesma. Não há ensino sem este auto-engen
dramento. Assim, do alto, a criança rica fala ao pobre escravo adulto
que lhe responde, do alto de sua estatura; talvez eles enlacem as mãos
de repente, no vento e na chuva, forçados a buscar abrigo sob a
fronde de um carvalho sobre o qual troveja a terceira pessoa: neva,
faz frio. Diferente e vivendo dolorosamente a alteridade, o escravo
conhece o exterior, viveu fora.
Então, o mundo entra no corpo e na alma do pequeno sabichão:
o tempo impessoal e também a singularidade do excluído, iste,
escravo desprezado, e logo o do professor, ille, longe ainda, ao fi
nal da viagem. Antes de chegar, ele não é mais o mesmo, re-nascido.
A primeira pessoa torna-se terceira antes de ultrapassar a porta da
escola.
O apren~izado consiste numa mestiçagem assim. Estranha e ori
ginal, já misturando os genes de pai e mãe, a criança só evolui por
novos cruzamentos; toda pedagogia recomeça o engendramento e o
nascimento de uma criança: canhoto nato, aprende a se servir da mão
direita, permanece canhoto, renasce destro, na confluência dos dois
sentidos; nascido gascão, ele assim permanece e se torna francês, de
fato, mestiço; francês, viaja e se faz espanhol, italiano, inglês ou ale
mão; esposa e aprende a cultura deles, sua língua, ei-Io mestiço de
quarta ou oitava geração, alma e corpo mesclados. Seu espírito se
assemelha.ao casaco furta-cor de Arlequim.
Isto vale tanto para adestrar o corpo como para instruí-lo. Neste
caso, o que foi misturado chama-se mestiço instruído. Cientista por
natureza, atraído pelo foco solar, ele entra na cultura. A razão co
mum remete os focos negros, diferentes, para seus particularismos
culturais. Ora, por uma estranha simetria, o problema do mal -
injustiças, sofrimentos, violência e morte -, culturalmente univer
sal, ocupa toda a zona do foco de sombra, de onde ele aprende a ver
61
as razões claras, assim como as soluções racionais, variáveis e separa
das. Então O espírito muda seu leque de cores. Isto vale finalmente para a conduta e a sabedoria, para a educa
ção. Já outro, o acompanhante conduz ao encontro de uma segunda pessoa _ experiência dura e exigente, sob o vento e os relâmpagos
_, onde o mesmo engendra em si, sem abandonar sua própria pes
soa nem sua unidade, uma terceira pessoa.
Ama o outro que engendra em ti o espírito.
A terceira pessoa: procedência
Presente em toda parte do universo, mas ausente a ponto de ninguém
poder encontrá-lo, tanto ele se esconde, tudo e portanto nada, nada
mas tudo, Deus compreende, além do mais, a lei da encarnação que
faz com que o tudo, no mundo e no tempo da história; se torne nada,
humilde filho de carpinteiro nascido no interior de um estábulo mi
serável, condenado à morte e crucificado como um escravo, encon
trando, desposando, assumindo o problema do mal, finalmente tor
nando-se tudo de novo, sentado, ressuscitado, à direita de seu Pai, ou
seja, a segunda pessoa; a terceira pessoa, o Espírito, procede das duas
primeiras. Representa-se o Pai, onisciente, sentado no trono do poder e da
glória, estável. No total, ele teria trabalhado oito dias. Desde então,
descansa em paz. O Filho desce à Terra e, mais baixo ainda, aoS In
fernos, para afinal ressuscitar e depois, na Ascensão, voltar aos céus,
onde irá julgar, nO dia derradeiro, os vivos e os mortos. Os dois mo
vimentos do Deus que se encarna resultam, ao todo, num equilíbrio:
não apenas estático, mas compensado pela redenção ou a reparação.
Segunda estabilidade: invariância por variações, compreendendo de
passagem uma solução trágica para o problema do mal. Eis a sombra
e a luz, o sofrimento e a onisciência. Terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo toma a forma
de um pássaro, de uma pomba, e às vezes a aparência de uma língua
de fogo ou de um sopro impetuoso: ele venta, ele troveja, ele produz
62 '1-·
relâmpagos. Brisa, ruído ou chama, o Espírito se propaga onde e
quando e se assim o quer; cai sobre nós, aqui, ontem ou amanhã, de
repente, como as intempéries, o raio que bifurca no céu ou a chuva ...
e os voláteis só se sustentam graças às turbulências que se formam
sob as suas asas. Nem no vôo nem nos ventos turbilhonantes se en
contram traços de equilíbrio, de estabilidade, de compensação. A
semeadura do espírito depende do calor e do ar, portanto do tempo
que faz, bastante aleatório, e não do tempo contado, regular; ele pe
netra no mundo em turbilhões. Nada, tudo; tudo, nada. Um minús
culo pedaço de língua no interior de uma sala fechada, todas as lin
guagens do mundo conhecido em praça pública, eis, novamente, a lei
vibrante, neste caso a do Pentecostes.
Nem o vento, nem o fogo, nem os pássaros em vôo conhecem
repouso. A terceira pessoa procede das duas outras e se torna uma na
procissão. Esta última palavra descreve um passo à frente, com um pé
erguido, que se expõe. O Espírito se expõe fora do Pai e do Filho sem
quebrar sua unidade. Nenhum texto diz que essa procissão pára, que
esse passo lançado encontra seu lugar: donde as figuras da asa e do
vôo, que nunca encontram apoios definitivos nos fluidos voláteis.
Como, em definitivo, a escora sempre cede, deve-se sempre recome
çar a buscar apoio naquilo que sempre cederá. O Espírito procede de modo absoluto: deixa em definitivo as estabilidades, inclusive aque
las do movimento equilibrado da história circular, para se aventurar
nas instabilidades movediças dos desvios de equilíbrio. Isso quer di
zer que ele não pára de se expor. Evolui e viaja. Donde sua excen
tração, independente das estabilidades das duas primeiras pessoas;
donde o sal).er, donde o tempo. Donde a aprendizagem.
Esse tempo real do vento e do fogo, dos elementos e do clima, o
tempo do espírito, equivale àquele da criação, da instrução, da inte
ligência inesperada e do conselho constante, das transformações sem
retorno, das línguas e da ciência, das viagens, das invenções e desco
bertas, da paz improvável além das vinganças, da prescrição, das mis
turas inesperadas, das ligas ... Entre as duas pessoas estáveis em sua
conversação infinita, entre a onisciência e a exposição ao mal -
63
uma, fogo brilhante, a outra, ardente - estende-se o tempo caótico
do espírito, terceira pessoa. Inversamente, o terceiro homem que nasce em mim, no decorrer
da aprendizagem, é espírito. Numa soluçãO de proporção ou razão irregulares, o tempo da
história mistura um tempo circular, físico e legal, aquele dos dias do
calendário, que se encarna nos trabalhos, e o tempo errático e impre
visível do espírito. A história procede, ela também, do espírito.
O mundo procede de fato das duas pessoas. Eis a criação objetiva
e a redenção, ou recriação pela redenção. Mas como o espírito proce
de também delas, o resultado é que o mundo real é a terceira pessoa,
como se viu, ou o próprio espírito, ou que o espírito é o próprio
mundo ou a soma do objetivo, aquilo através do qual este último
pode ser conhecido, de modo que juntos eles são o tempo, belas
coisas que eu queria não só demonstrar, mas que nascem junto com
a demonstração. Pessoa mestiça, o conhecido se constrói enquanto o cognoscente
se instrui.
A terceira mulher: concepção
Os sábios usaram a palavra "fenomenologia" primeiro em mecânica
celeste, para descrever o movimento dos planetas, suas aparências e
sua razão; depois em física geral, antes que a filosofia se servisse dela
para os avatares do espírito ou o reconhecimento de estabilidades
imersas em perfis volúveis. Traduzindo vernaculamente esse vocábu
lo grego e erudito, pode-se dizer: "a aparição fala", frase às vezes
balbuciada, sem saber, pelos excentrados do conhecimento. A pri
meira expressão é solar, a segunda é cega, para um mesmo sentido.
Eis um segundo foco. Numa gruta sombria em Lourdes, a uma pastora analfabeta,
apareceu a Santa Virgem para declarar sua concepção imaculada,
como se se tratasse da sua própria procissão. Toda a cena piedosa e
ingênua: Ana, a mãe, ausente, evocada, Maria, filha e mãe, que surge,
64 I
meio presente, e que fala, e Bernadete, filha, silenciosa, visível, carnal,
presente ali, camponesa ignorante, constituindo-se numa trindade
feminina nova, pelo menos inesperada numa cultura na qual os deu
ses ou Deus, brilhantes como sóis, se engendravam ou procediam
ainda do masculino. As mulheres, afinal, procedem de si mesmas.
Buracos escuros da terra e simples de espírito que marcam uma
distância em relação ao saber, na matéria do mundo ou na alma dos homens. Sim, o mito - como dizer? - vive hoje em um desvio
constante em relação à ciência e até mesmo às instituições da teologia
maior; e os racionalistas riem. Os sofistas gregos teriam desprezado
tanto o texto da República pela página em que ele evoca o mito de
Giges, outro pastor em êxtase numa caverna semelhante? Platão se
dava o direito de falar do sol além da geometria e da dialética, mas
seu texto também fala do camponês em sua gruta escura. Sua peda
gogia se produz em dois focos, ou consente com uma excentração
que nós recusamos, embora ele tenha pensado antes e nós escreva
mos depois da revolução kepleriana.
Nós toleramos a antropologia, mas com a condição de que se
dirija aos outros, aos pobres do Terceiro e do Quarto Mundo, àqueles
que se mantêm como objetos de nossos saberes.
Sim, em Lourdes e na Iugoslávia hoje, a pastores ou a crianças
ignorantes, em cavernas, as aparições falam: fenomenologia da qual
nós próprios não ousamos falar. Ora, a palavra culta e a frase popular
dizem uma única e mesma coisa - que, recolhidas, as aparências
parecem falar -, tendo uma origem no foco solar ofuscante e a outra
no buraco ~egro.
Das dúas locuções, diga depressa qual a mais atraente e mais
clara.
A procedência masculina do Espírito imita o engendramento, da
mesma forma que a concepção feminina, virginal ou imaculada; eis
dois bons modelos antropológicos da instrução, da produção pelo
outro, em mim, de um mestiço, verbo ou espírito.
Em mim, o espírito procede ou se concebe virginalmente.
65
o mestiço instruído: ancestrais
Mestiça no espírito ou na língua, a semeadura do saber científico na
narrativa ou na meditação vem de uma alta tradição. De Rabelais a
Valéry, passando por Moliere, Voltaire ou Balzae, dez escritores mais
ou menos dominaram a ciência de seu tempo. Ela clareia, fortalece as
obras deles que, em troca, a iluminam e a reforçam. As sombras e as
forças vêm juntas de duas fontes que engendram a obra. A divisão
que distingue os ignorantes cultivados e os instruídos incultos, nos
quais a noite sucede ou se justapõe ao dia, aparece numa data bem
recente. O caso mais simples de uma distribuiçãO tão comparável ao céu
concerne a um corpo idêntico: mesmo autor, mesma invenção em
domínios que apenas nossa estreiteza separa. Pascal deixou somente
uma obra e, como ambidestro, ou melhor, corpo completo, a escre
veu com as duas mãos: Triângulo aritmético e Memorial, Cônicas e
Provinciais, Roleta e Pensamentos procedem juntas de uma mesma
busca, justamente a do centro, inacessível neste mundo infinito, mas
que o espaço sobrenatural faz aparecer. Da mesma forma, Leibniz,
Diderot, Goethe ou Robert Musil, que apenas as nossas limitações
apresentam como exceções monstruosas, deixaram atrás de si mil
textos mestiços: mecanismo metafísico, escreve o primeiro, enquanto
o segundo conta o determinismo rigoroso; o seguinte fala do amor e
suas afinidades, tema igualmente em moda tanto na mecânica ou na
geometria das elipses quanto na química nascente, e o último prevê
as probabilidades de uma meteorologia da história. Obras de corpo
completo. Como se espantar com o fato de que a paixão da pedagogia tenha
de tal forma dominado corpos dotados de tanta completude? Amam
engendrar aqueles que amaram seu próprio engendramento. Mode
los de modelos. Platão, Aristóteles, Montaigne ou Rabelais fecundam
sua cultura com todo o saber do tempo, para modelar, por meio
dessa mistura, o homem que viria. Talvez a dupla educativa, Ménon
Sócrates, jovem Telêmaco, velho Nestor, ignorante e sábio, forme o
66
l
corpo duplo da instrução; será possível saber-se exatamente o que o segundo deve ao primeiro?
Exímio nos saberes tradicionais esmaecidos pelo tempo, o velho
sacerdote egípcio do Timeu trata os gregos como crianças, no que eu
leio a perpétua juventude das ciências, sua maneira metódica de im
pedir Seu trigo de crescer. A pedagogia conhece o nó apertado desses
dois tempos. No sentido usual de sua circulação, dos velhos para os
jovens, transmitem-se as humanidades, arcaicas; deve-se avançar em
idade para compreender sua sabedoria. No sentido exatamente con
trário, das crianças para as pessoas maduras, faz-se a passagem das
ciências exatas. Homero representava o avô desde a aurora de dedos
róseos do terceiro milênio, enquanto Teeteto, Pascal, Abel ou Evaris
te Gallois, crianças inventoras de teoremas, morreram sempre na flor
da idade. Os avós de olhos vendados passam cegamente os conteúdos
da cultura, quase sempre obscuros, enquanto lhes chega o aval das
mensagens claras vindas dos jovens de olhar brilhante. Ensino inter
rogativamente a minhas netas uma bonomia cuja elevação ainda me
domina, mas, em troca, elas me ensinam os recentes progressos e os
desempenhos das ciências e das técnicas. Um saber em amadureci
mento se comporta como um bom vinho enquanto, primaveril, o
segundo se torna cada vez mais verde. Prêmio Nobel das ciências
juvenis ao lado dos patriarcas condecorados pela literatura.
Portanto, deve-se aprender, ao mesmo tempo, aquilo que se
compreende e aquilo que não se compreende: no primeiro caso, a
duração vivida desaparece, enquanto o último a produz. O obscuro
projeta um,.tempo que o claro encurta, o claro-escuro faz o próprio
tempo. Crianças, aprendei Homero e La Fontaine de cor - inabor
dáveis nas vossas idades, eles amadurecerão lentamente no centro de
vossos corpos - e a matemática com discernimento.
Esses dois vetores inversos do tempo e da inteligência afastariam
para sempre de todo ensino os dois corpos da dupla, ignorantes um
do outro, senão para pensar Ou desenhar o turbilhão real do tempo
ou as turbulências do espírito. O que é da vida sobe, o que é da
entropia desce. No seio dessa turbulência, enfim na idade adulta,
67
onde o tempo se ata, sobe, cai e parece parar - dir-se-ia uma galáxia
_, o Mestiço Instruído projeta o tempo ingênuo da ciência adiante,
e atrás as experiências da cultura, mas anula incessantemente, atrás,
o tempo pelos curtos-circuitos da distinção científica e constitui,
adiante, o tempo longo da humanidade pela lenta digestão dos con
teúdos tradicionais. Adulto: jovem-velho com a vantagem combina-
da das duas idades. Estaremos engendrando finalmente a idade da razão?
Em um outro casa mediano, sem dúvida mais freqüente, o autor
produz com uma só mão, enquanto apenas se informa com a outra:
Zola descreve a família Rougon-Macquart e, ao fazê-lo, discorre so
bre a genética de sua época; mas, ao contrário da expectativa, ele
inventa autenticamente as condições físicas naS quais se colocam os
problemas da reproduçãO. A chama que anima o descobridor salta os
aceiros. Romancista, ele canta a gesta de uma tribo e as tribulações de seuS membros, mas, ao descrever minuciosamente os elementos do
genoma, adota o gesto preciso dos cientistas que os descreverão.
Se as especialidades se dividem, o inventiva continua uno. Na
fornalha da Souléiade, o doutor Pascal, geneticista, desvia-se para a
termodinâmica, sem que Zola abandone a narrativa por um só ins
tante. A literatura diz a ciência, que se encontra com a narrativa que,
de repente, se antecipa à ciência. Eis, ao vivo, o processo de engen-
dramento. Este casa mediano se liga então de maneira fulgurante ao primei-
ro, de modo que os saberes não se delineiam como continentes cris
talinos ou sólidos fortemente definidos, mas como oceanos, viscosos
e sempre batidos: dez correntes, quentes ou frias, os atravessam e
neles produzem gigantescos turbilhões. Nenhuma história das ciên
cias nem história em geral, nenhuma instrução possível, nenhuma
transformaçãO sem esses turbilhões fluidos. A .pena no começo em sua melhor mão, Zola, pouco a pouco,
aprende a escrever com a outra. Ele atravessou o rio; sem o saber,
engendra em si um sábio desconhecido.
68
'. ~, 1&
, .. 't
·'·~f
o caso mais difícil, no fim desse caminho, mas mais interessante,
dificilmente distinguível, raro, fulminante, leva o escritor à antecipa
ção. Não falo dos relatos recentes, catalogados sob essa denominação
e freqüentemente medíocres, mas das intuições súbitas, presentes e
ocultas, perdidas mesmo, em páginas cuja mensagem parece falar em
outro tom, de lagos de premonição, de bolsães de sabedoria infundi
da nos momentos mais preciosos da literatura.
Às vezes, um desses relatos - um conto ou um poema - soma,
sem o saber, diversos conhecimentos. Gostaria de dar a cada um
desses textos o título autêntico de obra-prima desconhecida, mais
ainda, inconsciente, pois o conjunto das ciências para ela converge
com uma transparência através da qual o olho circula sem nada ver;
assim como as cores do arco-íris se mesclam na limpidez branca da
luz diurna, também os conhecimentos se fundem em uma palavra
que se pretende banal. Diderot parece ter compreendido que se devia
chamar de sonhos a tais empreendimentos, quando eles se constroem
intencionalmente, e que se deve acalmar um sábio filósofo, adulto,
sob os olhos e a atenção de um médico filósofo e sábio, igualmente
homem feito.
Mas o poeta não acalenta nenhum projeto desse tipo quando por
sua vez adormece, irritado ou embalado pelo zumbido de uma vespa
em torno de sua cabeça. Tanto O sonho de D'Alembert, sonho falso
sem dúvida, afetado, desenhado premeditadamente, projeta a extra
polação a partir de curvas exatas e reconhecidas pela verdadeira ciên
cia da época, e faz brilhar as diferentes cores que o prisma do texto
desdobra, quanto Verlaine, em seu soneto Sagesse, "A esperança
brilha como' um pedaço de palha no estábulo", ignora tudo de um
saber por vir, quase adormecido, o cotovelo sobre a mesa, o calor
escaldante da hora, durante a siesta meridiana, os pés dentro das po
ças de água fresca que inundam o piso, mas assim mesmo vê um raio
de luz que sai de um buraco e se esfarinha. Quando soa o meio-dia e
a luz do sol platônico penetra só com parcimônia em seu quarto, ele
descreve, como se noite fosse, o ruído de fundo da cinestesia invadin
do o ouvido enquanto adormece, e o ruído de fundo do mundo
69
paralelo ao do corpo, vôos de vespas, poeiras que dançam, hastes de
palha no estábulo. O que ainda não é sonho e se prepara para tornarse um permite observar, em claro-escuro, um caoS indeterminado,
cuja presença constante nos acompanha, organismo quente e univer
so ruidoso de multiplicidades de zumbidos, onde a ciência, assim como a vida, a língua, assim como a poesia, vão buscar seuS começos.
Intuição vaga mas rigorosa de um saber e de uma epistemologia fu-
turos. Aí estão os ancestrais ou os pedagogos, já desde muito tempo
reconhecidos, do mestiço instruído. Eis a descriçãO de um segundo engendramento, que parte de
uma segunda excentricidade, de outros conteúdos de saber, nãO mais
proveniente das ciências exatas, mas da história e das línguas.
o mestiço instruído. de novo: origem
"Se não me amas, eu te amo ... " Quem não saberá cantar o refrão de
Georges
Bizet? Todo mundo viu Carmen, a ópera mais representada
na história. Por outro lado, quem terá lido a novela de Prosper Me
rimée? Além disso, sabe-se de fato como ela começa? Por um monumento de erudição. Nela, a lingüística se combina
com a geografia, a história e a arqueologia ... e questões precisas e
sutis são colocadas: quem escreveu, paralelamente à Guerra da Gália, a Guerra da Espanha? Mesmo tendo sido em ambas o principal ator,
Júlio César nãO foi, pelo que se diz, o autOr. Então? Algum romano, um espanholl E onde se travou, por exemplo, a batalha decisiva de
Monda, na qual o fim das guerras civis foi decidido entre os dois
filhos do grande pompeu? Em Munda ou Montilla? A filologia, pre
tensiosa, luta com a toponímia da Andaluzia montanhosa, entre Córdoba e Granada. É preciso, para compreendê-las, tê-las estudado,
saber ler os mapas antigoS e os Comentários latinos. Merimée chega a se referir na obra a um artigo erudito sobre" as
inscrições romanas de Baena", que de fato aparecerá na ediçãO de junho de 1844 da Revue Archéologique. Nada mais distante dos amo-
70
res ciganos e das saias rodadas. Sim, Carmen começa pela ciência. As
notas ao pé do texto, que tanto desfiguram os volumes, e os algaris
mos ou asteriscos cujas linhas os críticos surrupiam, remetem, com
arrogância, às páginas finais, para onde às vezes eles as relegam, até o
incipitda novela. Tola movimentação, que mal consegue captar a boa
intenção.
Eis portanto o bravo Merimée trabalhando entre os livros, com
parando os textos e os mapas, na biblioteca do duque de Osuna ou na
dos dominicanos de Córdoba. Vai ficar ali? Vai sair? Talvez encontre
mulheres fatais dançando em meio às estantes ou entre os incuná
bulos?
Uma moral para a história, tão cedo? Que é preciso freqüentar as
bibliotecas, é certo; convém, com certeza, tornar-se erudito. Estude,
trabalhe, sempre ficará alguma coisa. E depois? Para que exista um
depois, quero dizer, algum futuro que ultrapasse a cópia, saia das
bibliotecas e corra para o ar puro; se continuar lá dentro, nunca
escreverá nada além de livros feitos de livros. Tal saber, excelente,
contribui para a instrução, mas o objetivo desta é alguma coisa que
não está nela mesma. Do lado de fora você tem outra chance. Qual?
Volte ao início de Carmen.
Eis Merimée por dentro: arqueólogo, cartógrafo, lê, copia, toma
notas, publicará assim o artigo erudito. Agora o vemos do lado de
fora: fiz uma excursão - diz - para esclarecer minhas dúvidas sobre
a localização do combate travado por Júlio César, tendo como única
bagagem algumas camisas e os Comentários; seguem-se ainda assim
alguns restos de biblioteca.
Parece.:percorrer o país andaluz contornando as margens do
Guadajoz. Mas, quanto a mim, duvido muito que essa excursão não
se tenha limitado a um excursus, mais erudito ainda que as anotações;
tanto as descrições do planalto de Crachera e as dos pântanos próxi
mos repetem com seus erros e defeitos de impressão, dicionários,
catálogos, elzevires. Eu o pego com a mão na botija: mentiroso! Tam
bém conheço geografia, e por isso vejo que carregas o fora para o
dentro do dentro, num pedantismo disfarçado: finges contar um pas-
71
seio, mas posso mostrar que transcreves um manuscrito! Quando
chegaremos às ciganas e às danças? Quando passaremos do artigo à
novela que impede de dormir as jovens e os belos oficiais?
Dia. Entretanto, tudo começa de fato. Dir-se-ia mesmo que o
erudito caminha e sofre. Não, ele não copia mais. Queimado pelo sol,
extenuado de cansaço, morre de sede - isso não acontece quando
está com o nariz nos livros -, e logo irá beber, deitado sobre o
ventre, como os maus soldados de Gedeão. Para ter o mérito de es
crever um verdadeiro livro - neste caso, a Bíblia - é preciso deixar
o Egito e enfrentar a dureza do deserto. sem outra proteção fora o céu
e outra parede fora o horizonte. Mas antes de conseguir matar a sede, Merimée busca ... e enCon
tra um pequeno charco, cheio de sanguessugas e rãs. Esta anotação
não pode noS enganar. Sim, tudo está dito aí. Diante de um pântano
onde sanguessugas-vampiras se alimentam com os livros de outrem,
poder-se-ia deduzir que, dirigindo-se a montante, algum riacho que
alimente o pântano, em troca, conduzirá à nascente, mais pura e sem
parasitas. Em outras palavras, o arqueólogo, o historiador, o latinista eru-
dito, o cartógrado, o filólogo ... muito habitualmente procuram suas
fontes. A terrível massa de livros revela e oculta o riacho e suas
origens: gosto de dizer que as fontes atraem os sábios porque estão
livres de sábios! Se quisesse passar por douto, chamaria tudo isso de
Quellenforschung. * Eis então o viajante subindo corrente acima. Estupor maravilha-
do da descoberta: ao pé de uma escarpa, numa depressão tranqüila,
sombreada, de uma beleza soberba, está a fonte, que jorra borbu
lhante em uma bacia de areia branca. Perto dela, sobre a relva fina e
lustrosa, um homem dorme.
:;. Em alemão no original. Quellenforschung quer dizer "o princípio da nascente".
(N. da T.)
72
I \ J.
Merimée não nos estará pregando a mesma peça de Tito Lívio
que, subindo em direção às fundações de Roma, descobre de repente,
sobre igual relvado macio, o próprio Hércules adormecido, enquanto
pastam as ovelhas que roubou de Gerião, depois de ter-lhes matado
o dono? Ladrão, assassino como ele, e como ele adormecido perto da
fonte descoberta por Merimée, no papel de historiador ou por estar
sedento, neste lugar paradisíaco no qual se abre a estreita garganta
por onde corre esse riacho, don José mantém uma espingarda ao
alcance da mão, como o outro conservava a sua maça, enquanto os
cavalos ao longo do desfiladeiro a jusante se respondem relinchando,
chamados sem sentido que retomam como eco os mugidos surdos
dos bois de Tito Lívio. Fato curioso, um quadro semelhante se ofere
ce a montante, no início das duas histórias, similarmente romanas.
Trata-se de uma cena originária na vizinhança mais próxima das
origens?
Merimée se exporá, daí em diante, ao sol, à sede, ao deserto, à
violência, à privação, aos percevejos dos albergues mal-afamados, às
traições e à morte - em suma, ao mal e à realidade - ou, ao contrá
rio, ainda mentiroso, continuará copiando, mas agora sem nos dizer,
o próprio pai da história romana? Deve-se ainda hesitar? Por que
desenhar no começo uma paisagem análoga, riacho e fonte, povoada
por análogos atores, deus ou bandido, assass~nato e roubo, sono pro
fundo e animais irracionais, vozes animais privadas de sentido? Tra
ta-se de história, de um mito, de uma narrativa?
Onde buscar as fontes desta cena perto das nascentes? Nos limi
tes da Quellenforschungparece que se deva pensar em algo como uma
auto-referência: a fonte primeira devia brotar naturalmente; diz-se
mesmo que ela corre da nascente, que ela é evidente. Entretanto,
inúmeras visitas às nascentes do Garonne, do Vienne e de outros rios
e riachos comprovam bem depressa que o ponto de origem se reduz
a uma coletânea, na qual a bacia reúne ou coleta mil pequenas entra
das d'água separadas, que vêm de montante, de montanhas geladas
ou prados úmidos, do gelo ou das chuvas. Sempre e em toda parte, a
origem se reporta portanto a um ponto que corre de um fluxo qual-
73
quer, como na reta orientada em geometria; entre esses lugares co
muns, alguns simplesmente formam uma barragem.
Comparemos as duas histórias. Ladrão e assassino, perseguido
pela justiça, o bandido basco tomou o lugar de um assassino ladrão, substituição sem muita diferença. Hércules desperta e mata Cacus;
don José não mata ninguém ao acordar.
Embora seja apanhado, ou quase, em flagrante delito de assassinato, alguém desculpa Hércules: um certo Evandro, que naquele
tempo desempenhava o papel de governador; encarregado do processo judiciário, ele faz crer que julga o herói, mas logo o poupa,
reconhecendo-o como divino; Hércules matou à nossa vista e à nossa
vista beneficia-se da impunidade. O assassinado, Cacus, tinha má
reputação ... De repente, Evandro faz a história se bifurcar para o
mito, e o judiciário para o religioso. Em lugar de enforcar o assassino,
este será honrado nos altares. Deus em lugar de condenado, outra
substituição quase sem diferença. Merimée trata da mesma forma o
banido, com humanidade, enquanto o seu guia se apressará a entre
gá-lo à justiça; eles constituem, ambos, o personagem de Evandro, de
modo que as duas cenas tratam os homens de maneira equivalente.
Também o narrador, aqui, faz a história então se bifurcar, libe
rando-a do judiciário: don José continuará a viver livre por um tem
po, pois os carabineiros, alertados pelo guia, chegarão tarde demais
para prendê-lo. Toda a narrativa se faz enquanto ele está livre: entre
sua evasão, não longe das nascentes, e sua captura, seguida de sua
execução em Córdoba.
Eis Hércules e don José libertados - filhos da boemia, terão jamais reconhecido a lei? -: mas livres de quem ou de quê? Nos dois
casos, dos juízes, da justiça, da sentença. Deixemos o latim e a língua
espanhola e falemos grego por um momento: os dois homens se li
bertam do julgamento, quer dizer, da crítica. Em direção às fontes, a
crítica depõe as armas.
Em Tito Lívio, o religioso e o mítico se bifurcam do judiciário;
partindo da ciência crítica, a narrativa literária se bifurca, em Meri
mée: nas duas ocasiões, no mesmo instante, nas mesmas circunstân-
74
I
r
cias e na mesma proximidade da origem. Em outras palavras, o mito
é para o judiciário o que a narrativa é para a crítica; e a crítica é para o judiciário o que o mito é para a narrativa.
Don José fala antes que o carrasco o enforque, Merimée adota,
para começar, o traje e o gesto do crítico, o conduz, depois o perde,
no caminho da erudição; poder-se-ia quase dizer que o semeia. Ele o deixa perto das fontes e bifurca bruscamente.
As duas histórias - mítica, literária - têm em Comum essa libertação do judiciário. Mas como?
No lugar do acusado, do assassino, Evandro coloca um deus; e
Merimée substitui o bandido por um herói. No lugar preciso da bi
furcação, na ocasião do julgamento, sobre uma balança em equilí
brio, no instante em que se deve cortar o nó decisivo, a substituição
ocorre. Hércules e don José saem do tribunal para subir aos altares ou ao palco. No começo está a substituição.
Um deus e um herói se mostram assim no lugar de dois cele
rados, no alto das arquibancadas e dos degraus, entre os véus do
tabernáculo ou as cortinas do palco. No começo está a representação.
Em toda representação, alguém substitui um outro: um carneiro
substitui Isaac, um ator o papel-título, um texto uma ação. Aí estamos.
Quem opera a substituição? Evandro no primeiro caso, Merimée no segundo: o escritor ou o erudito.
Na verdade, não conhecemos ainda a vítima de don JOSé: Car
mencita, que ele amava, que o amava ... se não me amas, eu te amo, e
se eu te amo, cuidado contigo ... Carmencita, eis aquela a quem don
José matoti. Ora, no mito sem amor, Evandro, o do bom nome, que
diviniza o mais forte e prejulga mau o mais fraco, tem por mãe _ ou mulher - Carmen ta.
Carmen: Carmencita, Carmenta ... as duas histórias, no montan
te de sua origem, indo além da própria nascente _ mãe ou amante
do juiz, causa de exílio -, se atam no mesmo nome, no mesmo
corpo, na mesma pessoa. Teremos chegado a uma nascente comum? Sim, cherchez la femme.
75
Evandro, filho de Hermes, inventara a escrita, diz-se, ou pelo
menos a trouxera de Arcádia, às margens do Tibre. Quanto a Car
menta, sua mulher ou mãe, ancestral das Sibilas, ela canta magi
camente. Escrever, falar, cantar, representar, operações de invocação ou
de encantamento que substituem pelo software, suave, o hardware,
duro. Ou pelo deserto árido uma biblioteca climatizada ... a guarda
que chega pela guarda que sai. Merimée, erudito, sobe em direção à nascente; enfeitiçado, des
ce, recitando. Ele teve que passar por um ponto de intercessão. >I-
Noite. Da nascente brota o Guadajoz, sem dúvida, ou um peque
no tributário desse afluente do Guadalquivir. Desçamos agora o rio
principal, deixando-nos ir de montante a jusante, seguindo a corren
te, como dizem os marinheiros, das origens pelo fio do tempo e da
história, intervalo que mede a duração da liberdade de don José ...
então, no cais da margem direita, em Córdoba, ao crepúsculo, depois
de soar o ângelus, as mulheres se banham, nuas, e do alto da margem,
nesta hora em que todos os gatos são pardos, ninguém consegue
distinguir entre uma velha vendedora de laranjas e uma jovem e bela
rapariga. Você tomaria uma pela outra. Saída desta cena obscura e da
beira do rio - será que ela o atravessou a nado? -, pela escada que
serve o cais, perto do autor, de súbito, chega a jovem cigana de saia
negra. Como Afrodite, ela nasce das ondas. A quem substituía essa
Vênus anadiomena? Carmen, morta e invisível sob o sol ardente das nascentes, Car
men em pleno meio do riacho, num momento engendrada, ali senta
da, visível em plena noite, bem ao lado do autor, presente, viva, fatal,
bela, poderosa, embriagadora, atraente, malvada, feiticeira, terrível
Carmen. Fonte de vida e causa de morte. Eis-nos na origem enfeitiçada da história, romana, espanhola,
pouco importa ... de qualquer história - assinalemos que esta pala-
* Tiers-point. Ver N. da T. à página 16.
76
~.
•
• _.
vra evoca a um só tempo uma ciência humana e uma bisbilhotice sem
importância -, da palavra, do canto, da ópera, da escrita, da ciência
e da narrativa em geral. Carmen diz tudo ao mesmo tempó', como um
curinga.
Relinchos, mugidos desprovidos de sentido, cavalos e bois ... can
tos mágicos, feitiçarias, bom e mau olhado, voz com dois sentidos
opostos ... julgamentos iníquos ou justos, amores deliciosos e fatais,
duplo sentido sucedendo ao barulho insensato dos animais ... um
único sentido enfim para a narrativa que começa e para o riacho que
corre ... Eis que nasce um corpo, nu, nadando, inacessível e contudo
ali, das nascentes até Córdoba, nas águas do Guadalquivir. Anterior
e fora de qualquer lei, maga, quimera, tirando as cartas vermelhas e
negras, lendo as linhas bifurcadas na escrita natural da mão, anterior
à língua, cantora e dançarina, Carmen conserva só para si esta ge
nealogia.
Toda obra-mestra conta o engendramento de sua própria arte. É
por isso que desfruta desse título: mestra.
A erudição e a arqueologia, a história e a filologia levam, perto de
uma nascente, a uma substituição cuja causa, a montante ainda, se
chama Carmen; deixando-se descer agora para jusante, ei-Ia nua,
banhando-se nas águas saídas desta nascente, como se o rio a tivesse
engendrado. Para os livros sobre as origens daquelas ciências, um
curso d'água serve de condutor, e seu movimento, acompanhado no
sentido inverso, não conduz nem à biblioteca, nem ao artigo erudito!
Dir-se-ia que um fluxo se bifurcou. Morto, o artigo erudito engendra
a novela viva.
O engendramento concerne também ao escritor. Ele renasce du
plo, erudito e narrador, mestiço, como esta mulher atraente e fatal,
como o herói, homicida mas divinizado, como o rio cujos galhos se
desenham sobre a terra.
N eja o duplo foco. A ciência deixa sua clarividência e a narrativa,
cega, se inicia, ao cair da noite. Tateante, a ciência leva a uma hiper
vidência, e a literatura brilhante começa. Quem prevalecerá? Existirá
uma claridade suplementar na ciência crítica e uma obscuridade no
77
relato, uma vez que ela discorre sobre ele e não ele sobre ela; ora, aqui
o relato fala e parte da crítica e a abandona, como se existisse nele
uma claridade capaz de relegar a ciência à sua cegueira: extralúcida
Carmen. O que aconteceu com aquele claro-obscuro alternado?
Eruditos, não incluais notas ao pé das páginas de Carmen, pois o
início da novela extraiu delas a própria essência do que elas podem
dar; deixai a estória em paz, pois ela diz, melhor do que qualquer
ciência, exatamente o que a ciência jamais saberá dizer de si própria
nem dos textos nem dos homens nem do mundo. Desenhando redes de bifurcações, Carmen ensina de modo ex
celente o mestiço instruído, ao mesmo tempo que uma filosofia da
criação. Subindo o curso de um rio ou do vale em direção à monta
nha, encontram-se tantos confluentes quantos se queira. E, para des
cer, deve-se escolher: ou se toma a direita, do lado das Inscrições e
das Belas Letras, ou a decisão é pela esquerda, em direção à estória
narrada. Mas em um momento, e mesmo a todo instante, pois as
bifurcações abundam, a aventura se torna mestiça, em equilíbrio,
numa origem corrente, entre os julgamentos, o amor e a morte, a
ciência e a literatura, a erudição e a bisbilhotice. A novela descreve a passagem de um patamar ou de um estreito:
aí a ciência sobe e a narrativa desce. Prova exata de que a nascente
brota exatamente na passagem do ponto de intercessão: na depressão
tranqüila, de relva macia e areia branca ... Nesse lugar, aonde remon
tamos hoje, dorme o mestiço instruído. A lição de Merimée mudará nossa vida: erudito, ele sai e não sai
da biblioteca, e nessa hesitação copia seu artigo científico; mas, ao
anoitecer, cansado dos trabalhos especializados, desce ao cais do rio,
entre tanoeiros e operários, e ali encontra aquela que, remontando às
nascentes, inspira desde sempre o que sempre ultrapassa infinita
mente o erudito: a narrativa fascinante. Como o curso d'água, o cor
po do autor se bifurca: com a mão esquerda, Merimée se põe verda
deiramente a escrever e esquece a ciência, recopiada com a direita.
Ele descobre sua origem corrente, enuncia o título e desenvolve
a realização.
78 -" ! •
Dir-se-ia que a literatura consegue passar por onde a perícia encontra um obstáculo. Como se, afogado na densidade do sentido, o não-saber soubesse aquilo que, transbordante de informações, o saber não saberá jamais. Da mesma forma, se a filosofia consistisse
em esclarecer proposições e transformá-las em objeto de debate, ela
seria uma réplica da ciência. A estória passa, cegamente compreendi
da, enquanto a filosofia repete e não sai do lugar. Mas só ela pode ir fundo o bastante para demonstrar que a litera
tura vai ainda mais fundo que ela.
Vejo que o saber claro contém uma cegueira pelo menos tão
grande quanto é profundo o saber obscuro contido na ignorância. Às
vezes só se compreende sob a condição de diluir sua ciência na nar
rativa leal das circunstâncias. As soluções não estão sempre onde as
procuramos. Para ver melhor, é preciso sempre que se pague, portan
to que se aceite saldar por qualquer cegueira essa mudança de lugar.
Engendramento na aurora
Empesteada pelo bodum dos ovinos machos, respingada de leite talhado em volta dos queijos que escorrem nas peneiras, a obscura
caverna onde dorme o Cíclope se protege contra os olhares: mas ele,
o gigante hirsuto e selvagem, vê mais e melhor, porque só tem um
olho no meio, do qual sai um raio laser. Não adianta aos gajeiros de
Ulisses se esconder nos cantos. As patas peludas do monstro os de
sencavam e os carregam, arfantes, para seu outro buraco, a boca san
guinolenta.
Quem cauterizará esta luz implacável? Quem fechará este segun
do poço saliente em sua cara? Um homem chamado Ninguém. Va
gando desde muito tempo por mares e ilhas, ele perdeu tudo, e seus
navios, suas sandálias, sua túnica, seus projetos, até seu próprio no
me o abandonam hoje também. Ele não é mais levado em conta.
o monstro caolho superlúcido, que consegue ver até mesmo
dentro daquele lugar negro, e forte como a montanha sob a qual
79
dorme, tem um nome que exprime vários ao mesmo tempo: Polife
mo. Isso quer dizer: o que fala muito, de quem se fala em toda parte,
aedo, ilustre e fértil em argumentos. Ele é levado em conta por mui
tos. Toda sua glória vem do olho. Mais ainda: seu nome comum de
Ciclope significa: circular, que ocupa todo o espaço, incontornável.
Distinguindo tudo sob a luz de seu olho circular e exercendo sua fala
através da boca devoradora, ele vive cercado por ovelhas e carneiros,
discípulos, admiradores, lugar-tenentes, súditos, escravos, mensagei
ros fiéis, aos quais é vedada a inteligência.
A luminosidade exclusiva emanada de um buraco alimenta o
segundo, ávido.
Ninguém, o caminhante, não tem nome: o enciclopedista Palife
mo dispõe de cem mil palavras explosivas ou rigorosas.
Mas quem fala sem parar, quem canta nos banquetes, negocia,
discute, maquina, ganha, perito incontestável nas línguas? Ulisses. E
de quem se fala desde a guerra de Tróia? Dele, cem vezes mais do que
dos vencidos e dos cíclopes. Quem circunavega, visita todos os mares
e terras conhecidos? O próprio. Quem não pode nunca dispensar os
companheiros, os rivais, a corte? Ulisses.
Quem, portanto, é senhor do nome do Ciclope Polifemo? O pró
prio Ulisses.
Quando o navegador cauteriza o olho gigantesco, bem no meio,
com sua estaca pontuda, ele cega a si próprio. Fura seu olho verdadei
ro, entre os dois olhos já extintos: a sombra sucede à luz no meio dos
dois focos. Ele apaga Polifemo, seu próprio nome literário, seu belo
nome de prestígio, não para adotar um outro apelido, mas para re
nunciar a todos: ei-Io, invisível, Ninguém. Abandona a glória e o
poder, o fogo e a montanha, os cordeiros balindo, e foge do antro sob
o ventre de um carneiro lanudo, sem que o agarrem ou o vejam. Não
é visto quando renasce do buraco negro da caverna, de um parto
invisível e animal.
Ele abandona a lucidez integral, a ciência circular e total, o do
mínio da linguagem, o império feroz sobre os homens, os títulos
80
I
\
I -" I •
pomposos, perde a força para ganhar a humildade: mais que bicho,
sob o bicho de quatro patas e com a cabeça baixa. Ninguém. Ei-Io
enfim escritor, criador, artista, pelo menos no caminho austero que conduz a esse ofício.
Hirsuto, insaciável, nutrido de carne ovina e humana, pérfido,
vaidoso, inextinguivelmente dominador, o primeiro duplo de Ulisses
arde sob a embriaguês da glória, semideus poderoso sustentando a
montanha, mais que olímpico. O novo depõe estes andrajos cegos
para renascer da caverna mortal sob um segundo nome apagado:
Polifemo tornado Ninguém, eis o autor autêntico, buraco ausente da
obra bela. Não é mais levado em conta.
Furou seu olho do meio.
Ulisses, então, acaba de assinar a Odisséia.
Diz-se que Homero não enxergava. Que espeto ardente, que pena afiada, furaram seus olhos?
Diga: quem pode reconhecer que a cor rósea da aurora acaricia
como dedos? Quem, a não ser um cego clarividente?
o problema do mal
Em direito universal, de um modo amplo, a ciência parece se opor a
tal cultura, abrangente e enraizada, de fato, num lugar. Um único
foco brilhante, vários escuros. Mas, de modo amplo, todo homem
sobre a Terra vive sua própria cultura, sem a qual não sobreviveria; aí
está ela, de direito, universal, oposta por um movimento inverso à
ciência, que, dividida em tais e tais especialidades, torna-se, de fato,
abrangente e local, algumas vezes incapaz de ter acesso a problemas
globais. Um único foco obscuro, vários claros. A Terra integra o
conjunto das localidades singulares; a ciência, o universo das regiões especializadas.
Universal, a ciência percorre o círculo do que se chamava de
enciclopédia. Por que desenhar este ciclo? Sem dúvida, em razão da
ordem e da homogeneidade que se atribuem à razão. Ora, em certos
momentos, uma espécie de engrenagem encurva a órbita perfeita na
81
qual aparece uma excentricidade, como se o ciclo perdesse sua super
fície lisa ou sua pureza. Acidentes, o da física, no momento de Hiro
shima, da biologia hoje, ou das ciências da Terra, interrompem o
otimismo. Trata-se de crises internas à ciência?
A razão cruza a violência, a guerra, as doenças, a morte, se depa
ra com o problema do mal, tradicional em filosofia. Erudito, Meri
mée, subindo em direção às origens, descobre, no lugar das nascen
tes,.o matador de Carmen; o espeto ardente entra no olho do cíclope,
espinha do círculo; os buracos negros se disseminam de súbito no
céu estrelado; diante do sol de meio-dia surge o segundo foco negro;
nenhum dos textos mestiços acima evocados, dos romances de Zola
aos Pensamentos de Pascal, carece deste cruzamento, deste encontro
súbito da ciência com o mal, o sofrimento, a injustiça e a dor.
Que relações a razão, prejulgada simplesmente luminosa, man
tém com esse problema engendrador das trevas? Uma ligação de origem. A razão ocidental não se depara com a
morte nem em Hiroshima nem por ocasião dos importantes riscos
técnicos dos nossos dias, mas a encontra desde o paraíso terrestre; a
árvore do conhecimento ou da ciência induziu nossos primeiros pais
a um pecado original tornado trans-histórico, desde o alvorecer se
mítico de nossa história, que, sob céus conjuntos, nasce das pirâmi
des do Egito, tumbas, da guerra de Tróia, carnificinas, ou das tragé
dias gregas, violência e expulsãO. Ao contrário dos indianos e, depois,
dos árabes, de todos os nossos vizinhos próximos ou distantes, que
também colocam esse problema mas lhe dão uma solução totalmente
diferente, o Ocidente começa junto com o problema do mal e trava
contra ele um diálogo e um combate consubstanciais. O trágico é a
base de sua história, de sua razão e da história de sua razão.
Esta não permite a aclimatação do mal, mas o exclui. A ciência
ocidental nasce dessa exclusão. Ela emerge do trágico. Daí provêm as
suas categorias fundamentais: pureza, abstração, rigor, mestiço ex
cluso ... Repetitiva, sua história conta os processos de exclusão e suas
polêmicas mal definidas com a religião e o direito, que se debatem,
ambos, com o problema do mal.
82 ~.
Ela se orienta por um sol claro que se purga de todas as sombras.
Mas, de súbito, se orienta também pelo segundo sol negro. Sim, a
razão ascende ao universal, mas, diante dela, existe um universo cul
tural induzido pelo problema do mal. Nós somos mestiços instruídos
de base.
Bem ou mal, nessa questão a ciência depressa ocupa o lugar de
Deus ou o substitui. Outrora acusávamos a este último, todo-pode
roso e onisciente, de produzir o sofrimento e a infelicidade. A Teo
dicéia de Leibniz chega a fazê-lo comparecer ao processo fundamen
tal do destino humano. Ora, só sabemos e somos eficientes graças à
nossa ciência, daqui para a frente. É então nela e por ela que o univer
sal não circular da ação e do pensamento reencontra hoje, como na
origem, o escândalo do mal.
E ali descobre a cultura, antes de qualquer julgamento. Nada na
ciência ajuda, de fato, a suportar a finitude, nem a pensar a morte das
crianças, a injustiça que atinge os inocentes, o triunfo permanente
dos violentos, a felicidade fugidia do amor nem a estranheza do sofri
mento ... enquanto para isso colaboravam culturas cujo enraizamento
local deixava, de maneira fácil ou incômoda, a sabedoria entrar na
carne singular.
Nem Leibniz nem seus sucessores assumiram esta revolução ke
pleriana que consiste em colocar dois focos para regulamentar o co
nhecimento, assim como o mundo, dois sóis universais, a razão e a
dor.
A ciência vagueia, a cultura se enraíza. A primeira não conhece
lugares singulares, e sim espaços inteligíveis; colhe, e por conseguin
te, viaja. Réda. Prosper Merimée busca a verdade local das informa
ções livrescas e as obras de arte abandonadas. A ciência universal vai
e vem em busca das fontes, das raízes, de sua fundação.
Oh maravilha, eis o lugar paradisíaco onde a relva verde atrai o
caminhante ao sono e o cavalo ao pasto, onde a fonte fresca extingui
rá sua sede, cuja beleza favorece o repouso. Finalmente, uma pausa.
Não: o guia, inquieto, fareja o perigo, pois já um homem ocupa o
sítio. Todos os sítios estão sempre ocupados: não foi por essa razão
83
que a ciência iniciou sua errância, porque os homens, os cães ou os
exércitos em pé de guerra ocupavam desde sempre os paraísos possí
veis? De fato, este homem, mesmo aqui, dorme não longe da sua
espingarda, velho e temível fuzil. No paraíso perdido das nascentes e
da relva verde, o saber universal descobre o mal singular, injustiça,
amores frustrados, violência, crime, fome.
Do lado da engrenagem, onde o singular toma o lugar do ciclo
universal e uniforme, a dor local grita sua estória. Desde que nasceu,
a literatura lamenta a miséria e o sofrimento. A ciência ainda não
aprendeu a linguagem desse soluço. Neste lugar trágico começa a
razão instruída com mestiçagem.
O sofrimento e a desgraça, a dor, a injustiça e a fome se encon
tram no ponto onde o global toca o local, o universal o singular, a
ciência a cultura, a potência a fraqueza, o conhecimento a cegueira,
ou o próprio Deus a sua encarnação.
O general observa a batalha de longe, com binóculo, e assim
raramente perece; os sábios descrevem ou cuidam da dor, longe de a
lastimarem; nem o global nem o universal sofrem e, se a ciência e o
pensamento se referem a temas coletivos ou formais, apenas o local
carrega o peso do mal. Lançado para baixo, o sujeito o suporta. Eis
porque ele tem esse nome.
Donde dois cogitos. Nós pensamos e sabemos. Eu sofro.
A ciência encontra a cultura quando ela se encarna e descobre ou
produz dor, mal e pobreza. Esse tempo não acaba, pois traz consigo
o mundo e a história.
Primeiro foco: a razão científica universal e clara, sol faiscante;
segundo foco, ardente: todo indivíduo encarnado singular sofredor e
que agoniza sob a dureza dos homens, ecce homoj a filosofia não evita
o centro ou a periferia, pessoa instruída com mestiçagem, procedente
ou engendrada pela universalidade racional e pela singularidade do
lorosa, pela universalidade dolorosa e pelas singularidades racionais,
espírito que, ao mesmo tempo, faz ou segue a excentricidade legal do
mundo e que se semeia, multiplicado, no universo. Eis o segredo do
conhecimento: ele funciona como o mundo.
84 l~
o conhecimento nos vem pelo patético e pela razão, insepará
veis, ambos universais, um no foco da ciência e a outra no das cultu
ras; nós pensamos porque eu sofro e porque. assim é.
Então o ápice do universal atinge o singular, aqui ou ali, tal herói
ou este exemplo; aquele da abstração é lido e é visto na paisagem, o
do saber se debruça sobre o concreto; o ápice da crítica ou da teoria,
na narrativa; o do monoteísmo, no regime do espírito e da vida do
encarnado; o ápice da ciência chega ao conhecimento da fraqueza e da fragilidade.
Donde a idéia - nova - de um ciclo de instrução próprio a
preencher o lugar das ciências que expiram porque não avançam
mais e que não avançam porque não formam ninguém e porque não
se forma ninguém sem as ciências exatas, sem a história das ciências,
a tecnologia de um lado, e, do outro, sem o direito nem a filosofia,
sem a história das religiões e as literaturas. Em suma, dentro do rela
tivo e sem a razão de dois focos universais.
O mestiço instruído deve sua criação, sua instrução e sua educa
ção, seu engendramento enfim, à razão, sol brilhante que preside os
saberes científicos, assim como à segunda razão, a mesma sem dúvida,
mas ardente no segundo foco, que não surge apenas do que pensa
mos, mas do que sofremos. Esta razão não pode ser apreendida sem
as culturas, os mitos, as artes, as religiões, os contos e os contratos.
As ciências humanas morrem por se terem esquecido dos dois
modos fundamentais da razão, o das ciências e o do direito, aquele
vindo do pensamento assim como este, sendo da mesma forma uni
versal, sob mspiração do problema do mal: injustiça, dor, fome, po
breza, sofrimento e morte, e que produziu os artistas, os juízes, os consoladores e os deuses.
Só existe uma razão autêntica. Ela clareia e mobiliza sob duas
formas: sem a primeira, clara, a segunda seria irracional, mas sem a segunda, quente, a primeira seria insensata.
A igual distância das duas, o mestiço instruído é engendrado pela ciência e pela compaixão.
85
Guerra por teses
Palavras. A dor, inefável, ultrapassa o exprimível. Evitemos dizer que
não podemos dizer: o indizível, clichê monótono. A volta ao dado bruto, paisagem singular, por abandono da lin
guagem caracteriza ou a ingenuidade fingida ou a tolice verdadeira.
Flexível, e de fato tortuosa, lábil, onipresente, a língua se vinga ante
cipando-se tranqüilamente ao idiota patético ou vaidoso que, en
quanto pretende ultrapassá-la, repete, quase sempre mal, as mesmas
palavras repisadas. Cuidemos para não confundir o inefável e a insu
ficiência de vocabulário: qualquer banco supera, em opulência, os
magros trocados que cada pessoa física deposita semana após sema
na; as uvas da França prometem melhores vinhos que minha despen
sa obscura; o sol aquece um espaço muito maior que nossos três
cacos de antracito. Muito cara, mais do que dispendiosa, exorbitante, a verdadeira
ingenuidade coroa, ao contrário, a longa paciência do escritor. De
pois de abandonar sua própria fala, faz muito tempo ele armou sua
escrivaninha em pleno dicionário. Quanto mais rica a sua língua,
mais leal o seu trabalho. Assim como, para falar de modo honesto do mar, deve-se tê-lo desbastado em todos os sentidos, também para
falar na sua língua convém ter visitado os seus meandros. O escritor
só tem acesso ao estilo depois dessas travessias probatórias, da mes
ma forma que um filósofo atinge o pensamento depois de longos
périplos pelo país da enciclopédia. Nenhuma economia, mesmo teó
rica, o dispensa dessas instruções. O pensador deve começar por
aprender tudo, mas uma vez que ele pensa em sua língua, deve tam
bém tornar-se escritor, e para isso atravessar em todos os sentidos a
sua capacidade. Como um marinheiro só está feito depois de ter
sentido seu colchão balançar sobre todos os oceanos, formados ou
não de mares locais, assim o pensador experimenta o pensamento
banhando as ciências regionais e assim, também, faz o teste de sua
língua, sem escrúpulos de escrever a do trabalhador manual, do ma
landro, do carpinteiro, do monge, dos sábios, em sua língua amoro-
86 t
sa, pintor ou músico, do técnico; dessa forma, passa pelas páginas das
enciclopédias e dos dicionários, vai além da ciência e das narrativas;
sim, a metafísica vem depois da física, a filosofia começa depois dos
saberes e das literaturas: não só dos conhecimentos, duros ou suaves,
exatos e inexatos, rigorosos e flexíveis, vivos e humanos, mas também
das palavras, porque não se medita sem elas, de todas as palavras
possíveis, porque só se pensa bem com numerosas palavras. Múltiplo
o périplo do pensador, que não deve se contentar com os saberes
canônicos nem com a prova justa, e sim lançar-se nos mitos, contos
e literaturas.
Denominemos jargão à linguagem que usa um pequeno número
de palavras: lagoa gelada, perdida no meio de uma floresta. Quem
escreve num registro tão limitado pode refletir sobre a língua? Encer
rado em um idioma especial, poderá falar, por exemplo, de átomos,
de barcos a vela, de música ou de amor, mas de língua! Ora, eu temo
que as ditas filosofias da linguagem só utilizem, de fato, muito poucas
palavras. Será que o que se perde em extensão se ganha em refina
mento ou rigor?
Não diga: faça, mesmo quando você disser. Conquista-se o sen
tido caminhando. Há discurso demais, atos demais, no próprio dis
curso. Crítica em excesso: quantas obras! O que é chamado teoria
oferece sempre o máximo de facilidade com o mínimo de vocabulá
rio. Trabalho paciente do escritor que navega em longo curso na sua
língua total e que, não tendo medo de nenhuma paragem, a escreve,
e então a descreve, em suas ribeiras mais distantes, e tenta esgotar as
suas capaddades. Quase sempre a língua cochila, salvo uma pequena
parte, assim como dormem os nossos neurônios. Infelizmente, as
ferramentas ou as testemunhas de inteligência permanecem adorme
cidas no que é virtual, à espera daquele que escolhe como tarefa
despertá-las, definir sua língua até nas falhas, convocá-la inteira e
pessoal, fazê-la pensar ou existir colocando-a num falso equilíbrio;
combine, experimente, longas cadeias de sinônimos, todas comple
xas e incômodas, convergindo de súbito para a perda extrema de uma
87
nuance. E ali encontre aquela que a língua não é capaz de abarcar. Ei
lo, finalmente, ingênuo. Acuado a olhar, a tocar, ouvir ou saborear,
forçado à paciência e à sagacidade.
Saber-se-á, pelo exemplo mais trivial, que o homo sapiens, pelo
menos em sua espécie de língua francesa, não usa adjetivos para de
signar os perfumes, e entretanto sapiens quer dizer em primeiro lugar
cheirar e sentir sabores e fragrâncias? Azul e não cor do céu, amarelo
e não tonalidade de mel, isso vale para a visão, muito bem aprovisio
nada, mas por que cheiro de rosa ou gosto de pêra? Cruel penúria de
epítetos! Mesmo a estátua de Condillac não percebe essa falta, ela que
parece começar, justamente, pelo odor, sem jamais abandonar as pa
lavras.
Eis, portanto, o estilo: vibração singular nos confins da língua.
Lá, uma variedade perdida de verde, que é vista, requer uma palavra
nova ao velho dicionário, que não lhe dá mais do que as trinta nuan
ces vizinhas, vibração do sentido e do mal dito, lugar extremo onde
a língua, como uma vela, se agita, no limiar. Nada se parece mais com
um pensamento novo do que esse tremular, à maneira da solda der
retida, da junta quebrada, da falha da linguagem.
Assim, um dia qualquer de sizígia, Bougainville emboca pela
concha fora do mapa, onde as orcas e as jubartes, amontoadas diante
do seu tombadilho, o impedem de aportar.
Mergulhar o mais rápido nos dados singulares do mundo, esque
cidos de uma língua apenas aprendida, não nos levará jamais à inge
nuidade. Apenas restitui sentimentos usados, falso banho de juven
tude de onde saímos senis; mais vale singrar a língua, um pedaço de
mundo novo poderá aparecer num canto do portulano. Com este
evento o novo ingênuo se torna velho.
Toca, ouve, saboreia, respira e sente, vê, não fala dos cinco sen
tidos senão ao fim dos périplos comprovantes nas ciências e nas estó
rias. Tarde, bem tarde. Depois de virada a última página das enciclo
pédias e corpus. Sim, a metafísica ou a filosofia vêm depois das físicas
e das poéticas. Lá chegada, sua cabeça embranqueceu nos conheci-
88
L lO
mentos, e ele usou sua língua em mil palavras. Velho estradeiro diante das ilhas virgens, ele pagou o alto preço da ingenuidade.
Ele pode instruir porque tem a alma branca das crianças. Idoso,
o verdadeiro ingênuo instrui o falso ingênuo, jovem. Eis, novamente,
a dupla educativa: duas ingenuidades não geminadas, a velha autên
tica, adquirida, sapiente, verdadeira - juvenil -, e a jovem falsa,
tola, fresca, alegre, nativa - decrépita. Procurai o mestiço. Ao trabalho.
o estilista e o gramático
Por que o filósofo não escreveria? Em nome do que ele deve reduzir
sua meditação aos elementos da gramática? Com que direito lhe recusar o direito ao estilo?
O estilo e a gramática, evidentemente distantes, exploram ambos
a língua, com meios diferentes. A dupla visita o mundo, o conheci
mento e os sujeitos, às vezes Deus, partindo da língua, por métodos
que se pode desejar complementares, cuja oposição causa espanto,
uma vez que um não existiria sem o outro, a gramática por falta de
material, o estilo por falta de regras. Ela descreve, analisa, procura
fundamentar, às vezes legisla; ele experimenta. A gramática se quer
teórica e o uso experimental. A filosofia, portanto, deveria reservar para si a gramática e rejeitar o estilo?
Conhecemos essa distância que separa ou separou a tradição
acadêmica - nascida nas universidades da Europa durante a Idade
Média, sobre os fundamentos gregos lançados por um certo Platão e
pela escola de Aristóteles, conservados pelos padres latinos, tradição
que perdurou sem interrupção notável até os nossos dias em todos os
países ocidentais, inclusive a França - e uma outra linhagem, menos
estável, mais rara, pouco profissionalizada porque ligada a alguns
talentos individuais inimitáveis, sem escola nem discípulos, prova
velmente surgida na França, de Montaigne ao século XVIII, mas tam
bém na Alemanha, de Goethe a Nietzsche. A grandeza de Platão e o
89
posto que ele ocupa, na origem da bifurcação, resultam do fato de ter
unido em sua obra o debate do gramático e a exploração do estilista,
por ter escrito o Teeteto e O banquete.
Essas duas metades da filosofia, progredindo sobre duas verten
tes, têm pouco desejo de se reunir e, em lugar de se amar, rivalizam
e se cobrem de anátemas e de sarcasmos. Em certas obras, entretanto,
elas se desejam e se encontram, hermafroditas, não compreendendo,
no momento da fusão, por que a análise matemática expulsaria a
linguagem refinada, por que o escritor, jamais ascendendo por direi
to ao título de filósofo, ridiculariza quando tem oportunidade Ho
norius, Marphurius e Janotus de Bragmardo, raciocinadores desvai
rados.
Poder-se-á conceber, com tranqüilidade, que tal divisão se torne
complementar? O matemático conhece melhor o mundo e mesmo a
sua própria linguagem se adere à física; o físico conhece melhor as
coisas e suas próprias ferramentas se se aproxima da técnica; o técni
co, se aprende o artesanato; e o artesão, se chega à obra de arte. O
filósofo gramático conhecerá melhor a língua e o conhecimento e o
mundo se tolera o estilo e se abre às suas proezas. Inversamente,
concebe-se o progresso do artista quando ele se volta para o artesana
to; o do artesão, quando ele se faz técnico; o do técnico ... e assim por
diante, em direção às matemáticas e à lógica. Estrada de mão dupla
para o filósofo. E assim, como complemento, o estilista sequer escre
ve sem prévia obediência à gramática, sem lógica e sem regras do
sentido, sintaxe e semântica. Se escreve, é porque as aceita de fato.
Mas ele não explicita nem as regras nem as leis. O gramático, por
sua vez, nunca desenvolve a língua, sobre a qual fala, entretanto, com
finura e pertinência. Um se opõe ao outro: a proeza, o desdobramen
to, implicam a regra que implica toda uma filosofia; mas a gramática
supõe uma língua que só conseguiu existir por suas odisséias. O fato
precede o direito, mas o direito precede o fato. A obra antecipa sua
lógica em um tempo da história, e a filosofia se ergue quando chega
a noite, mas as regras antecipam sua aplicação no tempo ideal e lógi
co do saber, e o filósofo desperta com a aurora.
90
Ora, se o estilista raramente tem necessidade da gramática e po
de transgredi-la em seu gesto refinado de invenção, se o gramático
nunca se abandona ao estilo entre suas delicadas minúcias de análise,
o filósofo, presente nas duas frentes, tem necessidade de conhecer o
gesto de ambos e deve tornar-se, se possível, um e outro. Meio-dia.
Em nome de que princípio ablativo Se reduziria ele à teoria dos ele
mentos, uma vez que o trabalho positivo da língua consiste também
em acompanhá-la a seus confins e em direção a seu futuro?
Em razão de seus conteúdos confusos ou obscuros - em todo
caso, encobertos - o mito, a poesia e a literatura foram expressa
mente banidos pelo gramático analista, que busca o claro e distinto,
o explícito, e suscita o debate entre posições diferenciadas. Na sua opinião, a narrativa não sabe o que diz.
O estilista zomba do gramático, Rabelais de )anotus, Moliere de
Marphurius, Marivaux de Honorius e Musset de Blazius, a literatura
ri da academia ou esta dos universitários por ressentimentos mesqui
nhos que espalham o terror em casos de guerra implacável, por meras
tolices, em virtude sobretudo do imobilismo. O analista esclarece,
mas não se mexe, explicando indefinidamente, argumentando sem
pausa. A gramática filosófica de nossa era chegará mais longe que no
século XVIII, este terá ultrapassado as teorias medievais, e estas terão
ido além da Antiguidade? Não. Nesses lugares fascinantes, a filosofia
descobre uma espécie de ponto de acumulação, do qual extrai debate
sem trégua como quem extrai água de um poço, sem poder caminhar
mais que Zenão, estável em passos largos. Isto ilumina, é certo, mas
não se moye. Certamente esclarece, mas ao preço de uma linguagem
técnica limitada, precisa, fechada, que depressa passa ao algoritmo,
logo inacessível a quem não a fala, como outrora a escolástica, como
se a escola afastasse, desdenhosa, todos aqueles que não têm condição
de participar da conversação. Será, então, que ela esclarece, sendo o preço a obscuridade mais espessa?
Como se o obscuro tornasse tudo igual, como se o que está em
questão dissesse respeito a todo o mundo. Como se a linguagem se
91
vingasse nos dois casos. Deve-se sempre pagar na proporção daquilo
que se deseja ganhar. Quereis analisar? Não deixareis de fazê-lo sem
sair do mesmo ponto, como se tivésseis tomado posse de um poço
inesgotável, de onde a dicotomia renasce dela mesma. Procurais es
clarecer? Não cessareis de trazer a luz, até a extinção dos fogos. Que
reis explicar? Não vos detenhais: a implicação retorna inelutavelmen
te. Quereis debater? O debate se engendra de si próprio, porque a
guerra não gera senão a guerra, passando sobre o ventre dos proble
mas e das mortes, o pé calcando sempre o mesmo lugar. Assim, por
força da tecnicidade, as filosofias rigorosas da comunicação tornam
se incomunicáveis. Os esforços ou trabalhos do gramático e do estilista se asse
melham, na mesma medida em que se opõem. Entregues ao enco
brimento como a uma vertigem, desenvolvem o obscuro, um na
compreensão, na exatidão e na profundidade, o outro na extensão,
amplitude e movimento. Essas explicações expostas custam caro: nos
dois casos deve-se pagar, embora todos acreditem que não pagam
nada. Ora, tudo se paga - mesmo o progresso, mesmo as liberdades
democráticas, mesmo o ateísmo -, e às vezes muito caro. Além dis
so, a despesa a aceitar deve ser contada na moeda em curso no mer
cado em que se fazem os negócios: em dinheiro vivo no âmbito do
comércio, em ternura na troca amorosa, pelo lacre nos contratos
legais, em outros casos às vezes com o sangue ou a vida. Se é sempre
preciso gastar ou pagar para conhecer, deve-se por conseguinte acer
tar a dívida, no caso, pela moeda do conhecimento. A claridade é
paga com a estreiteza; a elevaçãO das opiniões, com a imprecisão. O
esclarecimento é pago com a paralisação e a esterilidade; a invenção
e a rapidez, com a confusão e a obscuridade. Até em filosofia nin
guém jamais conseguiu obter a manteiga e o dinheiro da manteiga ao
mesmo tempo. A cada qual, seus riscos. Um aceita tropeçar nos ca
darços, o outro se dispõe a tocar o chão apenas de leve. A marcha e a
corrida despendem e perdem um pouco de luz, a análise abandona a
fecundidade. Questão de escala: o que dissipam e o que ganham o
microscópio e o telescópio, o detalhe e o plano total? Da mesma
92
•
_.
forma, a liberdade faz seu câmbio em obrigações, e com certas regres
sões o progresso é pago. É preciso ver o saldo, eis tudo.
Cada um conta com a falência do outro ao lhe declarar amavel
mente: não compreendo nada do que você diz. O gramático ao esti
lista: fora daqui, mente confusa e irracional. O estilista: tens sempre
razão naquilo em que progrides e propões, concordo. Mas, e depois?
Ardiloso, prudente, rigoroso, circunspecto, progrides meio milíme
tro em um século. Enquanto isso, desatento, corajoso, intuitivo, criei
o sentido, sim, o sentido da vida, o mundo, o trágico, o próprio
conhecimento, o amor, as relações com o vizinho e as andorinhas
trazendo a primavera nas asas. Com o sacrifício da clareza, faço a
língua viver. Tu esclareces sacrificando a vida. Se, na hora de correr,
eu analisasse o movimento dos meus ossos, músculos e neurônios,
minhas intenções e objetivos, razões e proporções, jamais sairia do
lugar. O gramático diz: tu não sabes nada. Tu não fazes nada, respon
de o estilista.
Tanto um como outro estão certos. O filósofo sabe, mas também
faz, trabalhando nos dois canteiros em escala média.
A análise recorta, distingue para reconhecer os elementos, da
língua por exemplo. Mas a dicotomia ou a separação não detêm a
exclusividade na busca do elementar. Outras operações são possíveis,
em todas as ciências ou pesquisas, como na química: a pesagem, a
mistura de um corpo no outro ou o contato dos dois, as reações, o
exame ou o controle das variações de um funcionamento ou processo
etc, respeitam laços e conexões destruídas pela divisão e permitem
reconhecer a presença de um metal, a autenticidade de uma liga, o
bom quilate, em outras palavras, dita a verdade sobre a análise: mé
todos necessários se ela fracassa, desejáveis mesmo quando ela se
mostra agressiva, pois seccionar as ligações não deixa as coisas como
eram antes. Assim se passa na filosofia e com a língua: O filósofo
escritor ensaia.
Ele prova, experimenta. Ele testa, ensaia: dois verbos antigos da
velha química, da própria alquimia, que voltam ao uso corriqueiro.
O francês emprega ainda nos laboratórios a palavra têt, antigo ca-
93
dinho ou pote de argila refratária que servia para o ensaio ou teste do
ouro; mas não conhece mais o ensaio, no sentido da pesagem.
O filósofo escritor experimenta enquanto constrói a língua, as
sim como o gesto do artesão continua, prolonga a linhagem de sua
arte, pauta musical ou direção de sentido e, na medida em que pode,
progride. O analista se detém, rompe, teoriza; o escritor persegue,
guarda as ligações, fabrica, porque acredita que não se conhece nada
sem o ter praticado profissionalmente. O jargão dá um conhecimen
to estéril de coisas mortas. Saber a língua exige também que se a faça.
Que ela seja testada e ensaiada. Um ensaio honesto produz às vezes, até com freqüência, um
resultado negativo, oposto, destituído de sentido. Os objetos se vin
gam assim como a língua, como a terra quando não é trabalhada. Eles
nos reservam o inesperado, não reagem como previsto. A tentativa
comporta um risco, do imprevisível, do desconhecido. A gente se expõe quando faz, ou se impõe quando desfaz.
Quando se desfaz, com efeito, nunca há engano. Não conheço me
lhor meio para ter sempre razão. Não creio conhecer, em troca, me
lhor definição do homem do que o velho ditado errare humanum est,
ao qual acrescento: humano é aquele que se engana. Ele pelo menOS
tentou. Frágil, nu, sem prumo, o escritor só confia num talento que nun
ca tem a solidez de um método: sem escola para o proteger pelo diá
logo e a posição referenciada no grupo, sem imitador nem mestre, ele
explora sozinho. Pode, portanto, falhar, se enganar ou se extraviar.
Ele carrega esse erro possível e eSsa queda eventual como se fossem
ferimentos no flanco de sua obra. Dor, coragem da errância para
pagar a novidade. Pois todas as manhãs se apresentam formas estra
nhas, imprevisíveis, tão atraentes e belas que ele se levanta apressado,
ao amanhecer, entusiasmado diante das paisagens a cruzar, ansioso
para retomar a viagem num mundo raramente familiar, quase sem
pre extraordinário. Não sabe nunca quem vai entrar na página se
guinte. Tanto pior para a queda, ele testa! Se perde, não terá feito mal
a ninguém, e se ganha, se regozijará. Ao diabo com os erros, ensaia.
94
I
I' II
Tereis a audácia de falar do mundo, mesmo se jamais o tiverdes
percorrido? Assim como as coisas diferem imensamente do que delas
dizem os discursos, livros, jornais, revistas, representações, a língua
não tem nada a ver com o que dela diz quem não a pratica em toda
a sua extensão.
Quem não o experimentou, acredita de bom grado que não exis
te diferença entre um discurso sobre o Margaux e o Margaux; pegue
e beba; deguste-o; saboreie-o; teste. Se acredita que um bom atlas
sobre o deserto substitui a vida entre os tuaregues do Saara, parta, vá
até lá. Que tudo se reduz à descrição do jornal. Tire a roupa, desça,
brinque sobre o gramado. Crítica fácil, arte difícil. Não, o amor não
se comprova por palavras nem por cartas de amor. Chega de pala
vras: atos. A história dita nunca substitui a história feita, embora ela
traga mais glória e dinheiro com fadiga infinitamente menor, e assim
as estratégias são avaliadas na prática. Em todo caso, experimente.
Caso contrário, você estará mentindo. Mesmo se o que disser for
verdade, mentirá, desde que se contente em dizer. Viva, prove, parta,
jogue, faça, não copie. Diante do ensaio, a própria mentira acaba
recuando.
Acredita-se habitualmente que a língua analisada pela gramática
e pela filosofia vale a língua viva inventada pela escrita. Não. O gra
mático, o professor, o filósofo não escrevem o bastante para saber.
Você já observou, nas salas de aula, nas escolas, nos anfiteatros, a
ausência do verdadeiro exercício? O examinador ou juiz nunca soli
cita um poema, uma novela, romance ou comédia, jamais quer me
ditação, mas sempre crítica ou história, cópia das cópias. Por quê?
Porque ele.l1ão saberia redigir um modelo de dissertação. Ao invés,
exige história, crítica, análise. Por quê? Porque pode e sabe copiar.
Por quê? Pela facilidade. O fazer explora, o desfazer explode. Não
minta, escreva. Toda a verdade, mas só ela.
Atenção: ela é mortal.
Sócrates, analista, exige um discurso conciso. Interrompe retóri
cos e rapsodos, grita, caçoa deles e os despedaça. Suas perguntas cor-
95
tam ° discurso em frases curtas de diálogo, e sua dicotomia leva a
proposição à extensão minimal de uma palavra. Por que escreves "exigir", com que sentido, de que exigência
falas? Que discurso, por que um discurso, comprido, curto, que diá
logo, por que um diálogo, que perdes ao cortar tudo? Seja quem for
pode aplicar a Sócrates os golpes que ele dirige a Protágoras ou a seja
quem for. Com que direito impões, aqui e agora, esse tipo de argu
mentação? Sob que condições? Que queres? Contra quem te bates? A
extensão dos prêambulos e das condições requeridas, antes que apa
reça a fera em qu'estão, dá a medida da perversidade. Sócrates, como
amas a contenda e a vitória; terás uma alma tão baixa? Quem então
te nomeou advogado geral, procurador implacável da humanidade?
Por que tomas o lugar daqueles que nos condenam e que, algum dia,
te julgarão? Que ressentimento te leva à acusação perpétua de todos
com quem te encontras? Com que direito te dás o direito de perseguir
e denunciar? Um terceiro Sócrates, se quisermos, pode nascer, por
sua vez, de tais questões colocadas por Sócrates para Sócrates, e assim
por diante. Eis aberto o poço sem fundo do debate. Armado com uma espada curta, o infante avança em direção ao
cavaleiro para combatê-lo de perto, corpo a corpo, como anseia. Em
baraçado com sua montaria, sua carapaça e seu manto, o sofista es
critor cai por terra, desmontado, ele que tem o hábito de galopar a
cavalo e não de lutar com os pés no chão, armado de um arco cuja flecha voa longe, ou de uma lança que ele arremessa. Ei-lo aplastado
na terra, frágil, grudado à terra. Sócrates o esmaga. Movido por que
ódio e com que direito? Um atomiza o texto por meio de um pequeno clique de esgrima
que corta com precisão a ampla rede de sentidos entrecruzados pelo
outro, e sobre os quais as atrações a longa distância brincam desde o
exórdio até o final e reciprocamente, sutis. O mirmidão de sabre curto, protegido por uma couraça pesada,
quitinoso inseto, enfrenta, no círculo fechado, o retiário leve, nu,
com sua rede móvel, pássaro volúvel. Combate singular o do infante
estático e sólido contra o volteador ágil e envolvente: os romanos
96
1 I
apreciavam em outros tempos esses gladiadores, miniaturas da cava
laria com suas manobras fulgurantes e da infantaria com sua resis
tência teimosa, enraizada no solo, que se enfrentam na batalha coletiva, em linha e no campo aberto.
A espada rasga, fura, corta a rede, corta malha por malha nas
falhas do falso sentido. O retiário faz ondular a rede, manta que se
transforma em gaiola, plano e esfera, muro e prisão, superfície oblí
qua e volume móvel: na dimensão zero, ponto ou bola enrolada no
punho do gladiador; na dimensão um, comprida cadeia de razões,
desdobrada sobre seu ombro; dois, trabalho de capa desdobrada
diante do mirmidão, como um engodo que um touro encara; três,
onipresença, em torno do corpo, de laços cruzados que o amarram,
o apertam, o abafam e o levam à morte.
Analisada, desfeita pelo sabre, frase por frase, letra por letra,
palavra por palavra, a língua conservará o mesmo alcance, uma se
melhante função ondulante, móvel, conexa, ligada, mudando sem
cessar de aparência, flutuante com sua composição local, sempre glo
bal e mesmo densa como a pedra na mão? Não terá ela, nos dois
casos, um estatuto polêmico ou guerreiro?
Sócrates infante desmonta o cavaleiro, Sócrates mirmidão estra
çalha a rede do retiário, Sócrates avante de primeira linha, arremes
sador, imóvel, pescoço de touro para a frente, imerso no túnel negro
do amontoado, artelhos enraizados na lama até o calcanhar, resiste a
todas as ofensivas, imobiliza até lhes cortar o fôlego os que correm na
terceira linha ou três-quartos que enganam todo o dispositivo pesado
com uma mudança de andamento imperceptível. O avante luta cor
po a corpei, o médio de abertura, mudando de pé, reorienta toda a
trama do jogo do lado fechado para o aberto com um leve ou invisí
vel desvio do equilíbrio, os zagueiros enganam-se nos contrapés.
Quando o analista distingue direita e esquerda, segundo o prin
cípio do mestiço excluso, o estilista já pousou sobre a poeira, como
que acariciando a terra, uma terceira pata de pomba, despercebida,
que faz a rede estourar na direção das tribunas populares, quando o
lado presidencial a esperava. Combate curto ou longo: mudança de
97
escala. Um avante de primeira linha avança passo a passo, metro após
metro de terra custosamente conquistada, uma torsão nos rins, fin
gida, ou um repuxão nas costas, um pontapé na bola e a jogada pula
para sessenta metros dali. Sobre que vazio te debruças aqui, analista,
a questão repercutiu tão distante sobre as longas geodésicas da lin
guagem ... Ergue a cabeça acima do amontoado, enxerga alto e longe.
O touro míope, pescoço baixo sobre a areia acre, arremessa suas
toneladas e seus chifres, em órbita retilínea, em direção ao toureiro
em traje mortuário de luz, em viravoltas por trás de adereços verme
lhos, ancas altas, finas, frágeis, trêmulas, virilha e arcada crural ex
postas, punho inteligente para a mínima solicitação. Quando e para
onde a inclinação, em milímetros, em meio segundo quase? Qual dos
dois, infante quadrúpede ou corredor de pé ágil, vai morrer, na cele
bração de um momento decisivo na história da besta humana. qual
dos dois, pata ou contrapé, vai matar, nesta comemoração do instan
te em que o coletivo passou, sem o saber ou decidir, do sacrifício
humano ao sacrifício animal? Sócrates touro, olhos salientes, fronte calva, focinho de fauno,
feio de meter medo, desmonta com uma cabeçada o fantoche sofista
desarticulado. Que instante ele comemora neste parricídio odiento?
Que momentos desaparecidos comemoramos quando o avante der
ruba o três-quartos, quando o retiário estrangulava, apertando junto
à terra, o mirmidão vencido, quando o infante desmontava o cavalei
ro, quando o analista convence o filósofo escritor de seu não-senso?
Embora passemos do assassinato ao espetáculo, da guerra à ginástica,
do rito à linguagem, do sangue derramado à filosofia, as condutas
continuam estáveis, bem como as paixões.
Não há engano possível sobre o que distingue corpos ginastas e
naturezas atléticas, dizem os bons treinadores. Estas correm, saltam,
jogam, enquanto aqueles lutam ou se equilibram em aparelhos, como
outrora os mestres gajeiros. Nenhum atleta se sente à vontade num
trapézio ou nas barras, poucos ginastas descem à pista ou ao campo.
Musculatura curta, encolhida, força nos braços e na cintura escapu-
98 r'
lar, ou então forma longilínea e força no alto das coxas, mola. O re
crutamento militar apreciava, acredito, estas duas populações. Cons
crito, Sócrates sobressai entre os ginastas.
O professor, bom treinador de inteligências, não se engana, ele
também, quanto à mesma diferença do lado do conhecimento. Ob
serva as duas populações paralelas: trabalhadores persistentes, de
vontade empedernida, horizonte curto e idéias raras, eficazes e está
veis, ganhadores, voltando incansáveis ao mesmo assunto, fixos e
obsessivos, javalis; intuitivos rápidos de olfato sutil, numerosas idéias
passageiras, inventores prolíficos destituídos de domínio sobre sua
própria fecundidade, ineficientes, instáveis, enamorados da beleza,
raposas. Exploradores realistas e aristocratas arruinados. O inseto
cavador e o pássaro migrante, o gramático e o estilista. Dom Quixote
e Sancho Pança. Hoje em dia, Pança faz fortuna na ciência, e na
literatura ordinária Dom Quixote arrasta a sua miséria.
Sócrates e Platão. Não há filosofia sem esta dupla em paz, sem
este par unido que nunca existiu. Sempre em duelo, em resumo.
Platão - mas por onde então andava ele, medroso, na hora da morte
de seu mestre, o grande ausente do Fédon? -, Platão escreve, passado
° processo, sobre ° cadáver de Sócrates, hirto e frio, depois das aná
lises sutis da alma; Platão droga Sócrates com cicuta para escrever
muito e bonito, mergulha no torpor o próprio torpedo, administra
lhe um narcótico para que ele próprio não seja torpedeado, imobili
zado, incessantemente forçado à dicotomia exaustiva e tão infinita
em seu gênero quanto o discurso mais diluído. Que grande oportu
nidade é manter a gramática à distância sem os latidos do gramático,
seguir a lei":depois da morte do jurista, mas que tristeza trágica é
comemorar sempre o mesmo combate para a mesma execução.
Quando escreve, o touro está morto. Mas ele nunca escreveu
porque Sócrates nunca pôde escrever: esgotado pela análise.
Velha filosofia selvagem, em que a paz não pode intervir senão
entre um Sócrates derrisório, sentado sobre seu asno, e um belo Pla
tão abatido, encara pitado num rocim, dando rédeas às idéias puras,
Dom Quixote e Sancho Pança. BIBLIOTECA CENTR.",c.
PU-C - RS.
99
Se o escritor der à gramática o seu demônio e a ironia leve, a
altura da visão, a amplitude de campo, se o analista emprestar ao
estilo uma solide~ sem falha, renascerá a filosofia. Garantir seu pé na
vizinhança imediata, mas prever de longe: ninguém orienta seus
passos na montanha, seu cavalo numa estrada, seu corpo, e em geral
sua vida, sua alma, sua família, seu orçamento, nem seu carro, seu
pensamento, dispensando este preceito simples e necessário, que reú
ne em uma única olhada o local e o global, o universal e o singular,
mas cuja disjunção produz uma tolice única e risível, queda ou imo
bilidade, Quixote nos moinhos e o abatimento, Sancho cultivando a
banalidade.
Não há filosofia sem essa dupla apaziguada, rindo dos combates
inúteis e que se tornaram apenas rituais, pela comemoração. Mas
agora que nos lembramos dos cadáveres que jazem entre nós, o do
galo sacrificado sobre o de Sócrates condenado, do touro ou do ma
tador, do retiário e do mirmidão, do infante e do cavaleiro, agora que
lembramos do pecado original das disputas linguageiras, da execução
arcaica, para que serve o ritual da comemoração? Para que fazer com
que combatam na arena da linguagem o estilista e o gramático?
Se a filosofia, amiga da sabedoria ou, mais gramaticalmente,
portanto com mais elegância de estilo, sábia em amor, tem por obje
tivo o que pretende com seu título, ela dirá amanhã, de uma só vez,
a língua, e pedirá apoio, mais ainda que à análise e à retórica juntas,
aos mitos e às religiões, às técnicas e às ciências, ao mestiço incluso.
Nesse dia, a aventura recomeçará.
Uma recordação da juventude: Leibniz conclui seu Discurso so
bre a conformidade da fé e da razão com os funerais de Bayle. Meu
adversário, diz, agora vê Deus face a face - e vê que eu tenho razão.
Um pouco antes, ele citara grandes predecessores, entre os quais
Abelardo, que sofreram na carne o preço de suas discussões. Leibniz
vence, porque Bayle está morto. O tribunal anuncia a condenação e
enfim compreende-se o peso da pena: dantesca. A Divina Comédia se
vinga post mortem, nos três espaços sobrenaturais distinguidos pela
100
sentença. A vingança da escrita e da filosofia, Como a bomba atômica, supermata.
Não apenas mata. Ainda após a morte, condena ou salva. Nas ciéncias, as teorias mudam, não pelo maravilhoso poder de suas ver
dades, mas porque os detentores das teorias contrárias recuam, mor
rem para os colóquios e para a administração; e sempre se encontra
algum historiador para desenterrar os cadáveres e de imediato con
denar este ou aquele inventor esquecido a errar sem descanso no
inferno do erro e das sombras decepcionantes. História: poço de ressentimentos.
Aqui, o que está em jogo no discurso - a conformidade da razão
e da fé - se acerta após a morte. Porque se a razão raciocinadora e
belicosa acua o adversário até a morte, a fé, por sua vez, nos revela o
que acontece depois dela. Portanto a conformidade, quero dizer a
coisa e a causa que têm em comum a fé e a razão, ainda é a morte. Do
ponto de vista especulativo, bem-entendido, mas também na práti
ca, na discussão escrita entre Leibniz e Bayle, até os esplêndidos fune
rais do segundo, imolado na entrada do tribunal da Teodicéia. Por
trás do tribunal, ao qual o próprio Deus comparece como acusado, está aquele onde o filósofo, escritor, triunfa.
Leibniz, então, constrói o pretório e nele defende a causa di
vina. Tem os pés - e se apóia - sobre o túmulo de Bayle, ele o filósofo santo e sensato que vai resolver a questão e obter a sentença
favorável. Assim como Platão se ergue sobre os funerais e o túmulo
de Sócrates. Essa posição estará próxima à de todos os filósofos? A
razão filosófica terá sempre necessidade de um assassinato para tomar pé?
Recentemente ocorreu uma alteração importante: meus pés não
se apóiam sobre o túmulo - cheio - de nenhum corpo particular,
mas sobre o cenotáfio - vazio - do gênero humano em sua totali
dade, desde "a Tanatocracia", Estátuas e o Contrato natural. No tri
bunal da razão e da ciência, hoje em dia, o filósofo defende a so
brevida dos homens e da Terra pela longa vacuidade da abominável caixa negra.
101
Nenhuma execução singular, mas a exigência da vida específica:
não nos batemos mais senão contra nós mesmos. Não estamos, nem
uns nem outros, em oposiçãO uns aos outros. Vivemos todos como
mestiços.
Uma certa história termina. Será que uma nova está começando?
Paz sobre as espécies
Uma estrada contorna a Universidade de Stanford; no interior do
cinturão, quinze mil mulheres e homens escrevem, lêem, pesquisam,
imprimem, calculam, se reúnem para falar, com freqüência, e pen
sam às vezes, voltados para as línguas e os códigos. Fora do limite,
crestadas quase sempre, eventualmente verdes, três suaves colinas
servem de refúgio a passeantes que, se ficarem em silêncio e pisarem
levemente, podem ali encontrar gaios azuis e falcões, raros crótalos e
algumas serpentes inocentes, um milhafre e uma enorme tarântula,
além de um rebanho de novilhas, réplica tácita dos alunos e pesqui
sadores dali de baixo.
Não se vê nada mais do que o solou a lua, a baía ao longe, a falha
de Santo André bem próxima. Só se ouve o vento, o piado canônico
de um pássaro tão fácil de imitar que o cantor responde imediata
mente, complacente; a gente se comunica de uma forma que dispensa
as línguas: será esse um dos lugares de um outro saber?
Recusando transportar a língua de um para o silêncio do outro,
° passeante solitário tentaria, ao invés, levar o último, antigo, àquela,
nova; discípulo de São Francisco, ele fala aos pássaros, mas sobretudo
os escuta.
Eis então que os animais se calam.
Núpcias da Terra com seus sucessivos senhores
Retardatários, deslumbrando ainda a Terra com sua juventude, desa
jeitados, afetados, engomados, sua idade não ultrapassando alguns
milhões de anos, portanto mal adaptados, vaidosos de sua ciência
102
miúda, os hominianos se acreditam os primeiros, porque chegaram
por último. Matéria inerte, flora e fauna quase sempre mais velhas do
que eles. Parecem ignorar que sua história, nova e recente, repete mil ciclos antes encerrados.
Assim é. Logo que cada uma das espécies vivas veio à luz, as
outras a viram tentar ativamente a conquista de toda a Terra, a flora
e a fauna, em geral, presentes e passadas, o espaço, o tempo, a ener
gia, todo o alimento, o sol nas entranhas do globo.
Plantas, peixes, répteis, pássaros, insetos, mamíferos, cada um a
seu turno e a seu tempo, por vagas sucessivas, arrancaram à vida o
domínio e o império, segundo seus respectivos meios e por sua estra
tégia, tamanho, potência, força, número, astúcia e maldade, até o esgotamento da potência e da glória.
E todos, sem exceção, do verme ao touro, da samambaia à se
quóia, do mosquito à vaca, da serpente à baleia, era após era, torna
ram-se reis: o lobo, o rato, o ocelote, o cervo ... Se nos aproximarmos
deles, ainda reconheceremos hoje, sob sua vestimenta ou seu tronco,
por seu porte ou por sua estatura, a majestade do reino e sua antiga dignidade. Ei-los no auge.
Então, de repente, foi preciso decidir. Cada espécie, especializa
da, tendo chegado aos limites extremos da apropriação, fez oscilar o
inerte, ° geral, em sua estreiteza oblíqua. O novo senhor invadiu a
Terra inteira: a superfície do globo se viu de súbito fervilhante de
bilhões de lagartos ... nada de novo sob o sol; a reprodução racional
recobre o real múltiplo e profuso; ou ainda, segundo quem assume a
supremacia, no cupinzeiro único e generalizado, a térmita só encontra para comer uma térmita idêntica.
Atingido seu cume, essa espécie elimina todas as outras e destrói
a Terra, colocada em desequiíbrio e em risco de morte por essa sim
plificação; esta última, então, por sua vez põe a espécie reinante sob
risco de extinção, em virtude mesmo de seu triunfo, excessivo. Quan
do não existir mais do que ratos, com efeito, como os ratos poderão continuar a existir apenas entre ratos?
Neste patamar vertiginoso, no decurso dos tempos e de milhões
103
de milênios, uma a uma, de cada vez, se apresentaram as espécies: e
a Terra as julgou. Aqui e ali, no universo, outras terras talvez desapareceram neste
desafio, nesta sua luta final contra o senhor temporário, mas a pre
sença constante e hiperarcaica de nossa Terra, cá embaixo, mostra
que neste patamar temporal, incessantemente repetido em nossa
evolução, ela tem sempre a última palavra.
Cada reino recuou diante da Mãe. Espécies desapareceram e outras se humilharam, ao pé da letra.
Aquelas que subsistem ficaram porque renunciaram ao domínio ex
clusivo, à potência e à glória, à concorrência temível, diante do anún
cio da morte coletiva que sucederia de imediato à vitória definitiva.
Então, para sobreviver, em si mesmas e por si mesmas, elas tomaram
esta decisão muda, tacitamente impressa em seu código genético.
Nisso está a marca de sua humildade. Sim, elas se humilharam diante da Terra, deixaram o cume e
entraram nela: obedientes a suas exigências, mergulharam para se
fundir nas profundezas dos mares, -ou deslizaram sob sua superfície
sem a perturbar, conformando-se às vagas, furaram galerias escuras
no húmus ou nos rochedos, desapareceram nas turbulências das altas
regiões do ar ou se ligaram, imóveis, em uma rede inextrincável de
lianas e de galhos, para formar a massa das florestas pluviais ou equa
toriais ... todas enfim dissolvidas, mescladas, fundidas na natureza,
assim denominada porque dava nascimento, silenciosamente, comu
nitariamente, àquelas que recém-abandonavam para sempre a arro
gância de seu antigo destino, o projeto paranóico de tomar a Terra
inteira só para si; renunciando à sua alta estratégia para aderir à
sabedoria subordinada do instinto, dobra harmoniosa sem falha da
Terra-Mãe, que, então, as salvaguardou. Diante do homem, hoje, o animal parece inclinar-se, humilhado.
Nosso esquecimento induz a esta ilusão estúpida. A obediência refle
te, em todos os lugares e tempos, a imagem do comando.
Jovens demais, retardatários, mal chegados a alguns milhões de
anos, nunca adquirimos a memória dos reinos anteriores: a era da
104
L I'
liana, a da aranha, do escaravelho, O reino do mamute, da mosca ou
da vaca. Mas a língua se recorda: pois o nome que o homem recebeu
vem da humildade.
Orgulhoso, arrogante, enamorado da potência e da glória ou
tendendo ativamente para elas, homo humilis parece ignorar q~e seu
destino, escrito em sua denominação, da mesma forma que a decisão
inicial, final e definitiva das plantas e dos animais se inscreveu, muda,
no genoma das espécies, o levará um dia a se humilhar. A se fundir,
a se mesclar, a se esconder no húmus, nosso primeiro pai, diante do
risco da morte e do sepultamento. Inclinados demais a comandar,
inclinar-nas-emas todos, quando chegar a nossa vez, diante desta
Terra que tem o mesmo nome que nós.
Contrariando nossas ilusões, se os animais se humilham, a cabe
ça na terra e os olhos baixos, eles nos indicam deste modo que, tempo
após tempo, também desempenharam, cada qual a seu turno, o papel
de homens. Humilhados, todos os viventes se chamaram homens um dia.
Foram homens. Desfrutaram do apogeu, reis, lançaram o desafio viril
da supremacia, antes da retirada definitiva. Nossa língua o repete, o
olhar da foca o exprime, é contado nas raias da pelagem do tigre, lido
na mancha vermelha da viúva-negra ou decifrado na sinuosidade
calma da anaconda.
Todos os humanos, antes de sua dissolução no húmus e no ins
tinto, conservam atrás de si seu verdadeiro pecado original, estabili
zado para sempre em seu genoma: terem sido homens, portanto reis,
novos, gloriosos, poderosos e tão loucamente competidores que se
esqueceraI11 da Terra. Obedientes agora por terem comandado tanto,
eles abandonaram essa inteligência em prol da animalidade. Selva
gens e sábios.
Todos conservam este pecado, fixamente, por trás, e toda a sua
existência instintiva continua a se catalogar em sua memória - mas
nós o temos à frente, como nosso projeto coletivo. De fato, nada
original: terminal. Próximo, final: mas não primitivo.
105
I· !
Eis-nos aqui, por nossa vez, os últimos, no apogeu da potência,
no minuto exato em que cometemos o erro. Deixaremos o paraíso?
Devo dizer a meus netos que me lembro ainda de uma infância
num campo tranqüilo que dava frutos deliciosos e fartos.
Escolher: o império ou a Terra? Esta vem ganhando até hoje.
Busco um caminho médio entre a inteligência real arrogante im
becil e o instinto harmônico polido humilhado, obedecendo com
simplicidade animal por ter comandado com desvario.
Então, não abandono mais a estrada - mestiça - que segue a
crista entre as instituições de ciência e as colinas do silêncio.
Paz e vida pela invenção. Encontrar
Aprendizado, esquecimento. Colocados à parte os casos raríssimos,
menos de dez, certamente, nos quatro milênios de história conheci
da, cujos nomes assinam quase sempre obras de matemática e de
música, duas linguagens de mil valores porque privadas de sentido
discursivo, não se encontra um gênio natural, imediato e selvagem.
Quem espera pela inspiração nada produz além de vento, e ambos
são aerofágicos. Tudo vem sempre do trabalho, inclusive o dom gra
tuito da idéia que surge. Entregar-se, aqui e agora, de repente, a seja
o que for, sem preparação, leva à arte bruta, cujo interesse se restrin
ge à psicopatologia ou à moda: bolha efêmera, para teatros de feira e
saltimbancos. Obra de arte, examinemos a palavra. A obra tem como autor um
operário de formação artesanal, que se tornou especialista em sua
própria matéria, formas, cores, imagens, para alguns, em língua, no
meu caso, mármore ou paisagens em outros. Antes de pretender pro
duzir pensamentos novos, é preciso, por exemplo, ouvir as vogais:
um operário, um artesão da escrita as distribui na frase e na página
como um pintor faz com os vermelhos e os verdes, ou um composi
tor com os metais sobre a percussão, nunca de qualquer maneira.
Igualmente as consoantes ou as subordinadas: tarefa árdua sobre o
106
_.
papel furado como o tonel das Danaides, tão infinita que nela se
passa a vida. Criar: não se dedicar senão a isso, da aurora à agonia.
O que pressupõe a melhor saúde: devorando o corpo com seu
abrasamento, a criação esgota até a morte e mata na flor da idade
quem não lhe resiste com força tenaz: Rafael, Mozart, Schubert, por
volta dos trinta anos, Balzac e São Tomás de Aquino, pelos quaren
ta. Antes de lançar-se à rima, o velho Corneille se despia e se enro
lava, completamente nu, sob cobertas de burel que o faziam suar
abundam ente, como numa sauna: a obra genial transpira do corpo
como uma secreção. Sai das glândulas. Dezenas de quilômetros, to
dos os dias, caminhavam Rousseau e Diderot. As idéias novas ema
nam dos atletas. O apelido Platão significa, em grego: ombros lar
gos. Deve-se imaginar os grandes filósofos como jogadores de rugby.
Através do cordame do veleiro na rota de Saint-Malo a Baltimore,
Chateaubriand suplantava os gajeiros na ginástica acrobática e no
volteio.
Perguntava-se a Malebranche como e por que Ele criara o mun
do, com seu cortejo de penas e tormentos, de crimes e iniqüidades,
esse Deus infinito que tão facilmente teria podido descansar, desfru
tando eternamente de sua inteligência e de felicidades renovadas; a
isso tinha o filósofo o costume de responder que ninguém cria senão
através de um suplemento de potência: assim, o universo nasce do
excedente de potência do seu Criador. Na prática, nada mais verda
deiro. Sendo a força maior, a obra vem; mas da fraqueza, nada.
Por isso encontramos poucos gênios doentes, drogados, fracos
ou melancólicos. Desconfiados, sim; patológicos, não. Muitos êmu
los estérei,.:foram produzidos pela publicidade romântica e mentiro
sa em favor do inventor louco, fora dos eixos ou desequilibrado, cuja
obra é movida pela neurose ou pela química: nada sai de uma injeção
nem de uma garrafa de álcool. Ou melhor: supondo que o operário
comece, fraco e abatido, a obra, pequena e crescente, esta logo fun
ciona para ele como um apoio, e sem cessar lhe dá forças. A obra
mora na força, depois a potência se aloja na obra; uma se nutre da
outra, que nela tem seu repasto, de modo que as duas, em simbiose
107
,. ! ,
espiralada, crescem uma por meio da outra, enquanto aumenta a
resistência de ambas à atração da morte. O que se chama de imortalidade das obras-primas resulta sim
plesmente desta voluta positiva que se alimenta e se amplia renun
ciando a si, como um turbilhão ou uma galáxia. A saúde vital produz
por si própria, em seguida o produto repercute sobre a vida, até
vencer tanto a morbidade quanto a mortalidade. Assim vive ainda
intensamente o que nasceu faz dois mil anos. Se a obra tem necessi
dade do operário, num dado momento este tem necessidade só dela:
por lhe dar seu corpo e sua vida, ela retribui com benefícios. Donde,
em última instância, tem-se a vitória sobre a morte.
Existe portanto uma higiene, sim, uma dietética da obra. Os des
portistas de alto nível vivem como monges; como eSses atletas, os
criadores. Quer inventar ou produzir? Comece pela cultura física, as
sete horas regulares de sono e o regime alimentar. A vida mais severa
e a disciplina mais exigente: ascese e austeridade. Resista ferozmente
aos discursos em volta que afirmam o contrário. O que debilita, este
riliza: álcool, fumaça, noitadas e farmácia. Resista não só às drogas
narcóticas mas sobretudo à química social, de longe a mais forte e,
portanto, a pior: às mídias, aos modismos. Todo mundo diz sempre
a mesma coisa e, assim como O fluxo da influência, desce junto o
maior despenhadeiro. A obra de arte constitui uma barragem diante desse desmorona
mento. Vitória sobre a morte, ela se identifica à vida, e a única vida
conhecida é a individual. Singular. Original. Solitária. Teimosa. A
obra faz uma espécie animal só para si, pois sua árvore filogenética
produz frutos ou botões individuados, livros, músicas, filmes ou poe
mas. Ela vem, então, da disposição única dos neurônios e dos vasOS
sanguíneos. Jamais da banalidade coletiva. Inverso da moda, inverso
do que se diz, ela resiste por definição às mídias, ou melhor, à média.
A meta da instrução é o fim da instrução, quer dizer, a invenção. A
invenção é o único ato intelectual verdadeiro, a única ação inteligen
te. O resto? Cópia, impostura, reprodução, preguiça, convenção, ba-
108
,
_.
......
talha, sono. Só a descoberta desperta. Só a invenção prova que se
pensa de verdade a coisa que se pensa, seja qual for esta coisa. Penso,
portanto invento; invento, portanto penso: única prova de que um
sábio trabalha ou de que um escritor escreve. Para que trabalhar, para
que escrever, se não assim? Nos outros casos, eles dormem ou se
batem e se preparam mal para morrer. Repetem. Só O sopro criativo
dá vida, pois a vida inventa. A ausência de invenção prova, pela con
traprova, ausência de obra e de pensamento. Aquele que não inventa
trabalha em outro lugar que não a inteligência. Burro. Em outro
lugar que não a vida. Morto.
As instituições de cultura, de ensino ou de pesquisa, aquelas que
vivem de mensagens, de imagens repetidas ou de impressos copiados,
os grandes mamutes da Universidade, das mídias ou da edição, os
ideocratas também, cercam-se de um amontoado de artifícios sólidos
que impedem a invenção ou a quebram, a temem como o pior peri
go. Os inventore~ lhes fazem medo, como os santos punham em
perigo suas igrejas, cujos cardeais, por se sentirem constrangidos, os
expulsavam. Quanto mais as instituições evoluem para o gigantismo,
melhor se formam as condições contrárias ao exercício do pensa
mento. Quereis criar? Estareis em perigo.
A invenção, leve, ri do mamute, pesado; solitária, ela ignora o
gordo animal coletivo; suave, evita o ódio que mantém unido esse
coletivo; eu admirei durante toda minha vida o ódio à inteligência,
que produz o contrato social tácito das instituições ditas intelectuais.
A invenção, ágil, rápida, sacode o ventre flácido do lento animal; sem
dúvida, a thvenção dirigida para a descoberta carrega consigo uma
sutileza insuportável para as organizações inchadas, que só podem
perseverar em seu ser sob a condição de consumir a redundância e
proibir a liberdade de pensamento.
Chama-se informação a uma quantidade proporcional à rarida
de. Exatamente científica, esta definição surpreende a quem vê a ou
tra informação se expandir e difundir até a redundância. Ora, aí está
109
o contra-senso: o que se propaga e se torna provável, fazendo curvar
se a nuca dos obedientes, se chama entropia; inversamente, a neguen
tropia cresce como o improvável. A informação, neguentrópica e
portanto pouco provável, sobe o curso irreversível da entropia, que
então desmorona para a desordem e a não-diferenciação. Este último fluxo desgasta o relevo, nivela-o, dissolve as rochas
de todos os tipos e as mistura, o rio carrega para o mar, misturada a
águas cada vez mais lentas e amareladas, a areia indistinta, enquanto
a barragem, rara, cria a diferença; ela resiste à descida que a língua
antiga designava pelo verbo avaler, despencar para jusante. Nessas
barragens se juntam todas as nascentes conhecidas. Porque a inven
ção, como se diz, corre naturalmente; é preciso que essa resistência
intervenha, em qualquer tempo e em qualquer lugar; sem dúvida,
isso é o bastante. A entropia desce, a informação sobe, a primeira em
direção ao mais provável, a segunda para o raro. Resistir. À correnteza, à queda, à dissolução, à desordem, ao
tempo. O punhado de açúcar não pode se defender da água que o dissolve, mas que não danifica o diamante. O trabalho poderia ser
perfeitamente definido como o conjunto de operações que permitiriam tirar o açúcar, extraí-lo e cristalizá-lo a partir da água na qual ele
tivesse entrado em solução: dissolvê-lo na água, ao contrário, faz ver
o inverso do trabalho. No primeiro caso, a energia é necessária, mas
não no segundo. Como se diz, isto se faz por si mesmo.
Uma vez que obra e operário pertencem à mesma família que a
palavra energia, que obra o operário faz? Um banco de energia, um
depósito de potência como um lago a montante de uma barragem,
uma mina de carvão, um lençol de petróleo, um capital qualquer. Em
todos esses casOS: o tempo acumulado. Saturada de informação, inu
sável, a obra de arte não só resiste ao tempo que passa, mas também
o remonta. Mede-se sem dificuldade a diferença temporal entre a obra de
arte e o objeto de luxo, por exemplo: este custa muito carO no mo
mento em que a moda o introduz, mas alguns anos depois é revendi
do a duras penas e a preço vil; seus quadros, em troca, não salvaram
110
, I
J.. I
I
nem Van Gogh da indigência, nem Gauguin da miséria mais terrível, mas cem parasitas os disputam desde então, ao peso do ouro ou do
yen. Na equação em que o tempo vale dinheiro, uma sobe e o outro desce.
Aí se define um mundo diferente daquele em que vivemos: a
Terra e os astros nele giram em sentido inverso. A cada dia Moliere
rejuvenesce e faz minhas netas rirem, e a nova ópera da Bastilha,
antes de nascer, apresenta um feio ar envelhecido. Resistir não basta,
pois nunca houve uma ponte que num dia de calamidade não fosse
carregada por um rio, nem virgem assustadiça que não cedesse à
insistência de um fauno bem peludo. O tempo não pára o seu traba
lho de erosão, de modo que, para enganá-lo, é preciso correr rio
acima. Vinda da nascente, a água faz subir o nível do lago da barra
gem, sem descer a jusante.
Você reconhecerá a obra e o operário autêntico por este sinal
infalível: ambos parecem rejuvenescer. Morrerão crianças, como re
sultado de sua corrida para a origem do mundo. Criar significa ir
para as mãos do operário divino no alvorecer das coisas. Inverter o
tempo.
No sentido da raridade, a informação corre portanto na direção
oposta à da informação no sentido da difusão. Ou então: a ordem
que compõe o cristal, o pentágono das rosáceas, a célula geminada de
onde nasce um projeto de homem inverte a ordem que faz se curva
rem paralelamente todas as nucas obedientes. Como se certas coisas
remontassem um curso por onde descem as ordens que os homens se
dão. Uma exige energia, trabalho e potência e a outra cai por si mes
ma. Dois mundos, dois fluxos ou rotações de astros, dois tempos: o
da obra de arte acompanha a vida, o outro tomba com a morte e a
história. Nós reencontramos os dois focos.
Em virtude da invariância, resistir não basta; é preciso inverter o
sentido, ato de movimento.
Ame, se procura criar: as nascentes, as cascatas, as pedras precio
sas, os altos cumes das montanhas, as cascas da cebola, as folhas de
alcachofra, o olhar da foca, as células germinais, as crianças, empan-
111
turradas a ponto de estourar de informações como as supergigantes
azuis. E fuja dos pródigos das cestas furadas: os jornais, o que é cha
mado de notícia, o boato que se espalha.
Entretanto, certas obras fizeram sucesso: para conquistar de re
pente este favor, devem ter acompanhado o gosto mais provável. Sim
e não, e, afinal, provavelmente não.
Para resistir às pesquisas de opinião, distingamos dois tipos de
sucesso. Sim, o primeiro segue a moda e de fato logo o comprova,
transformando-se no dia seguinte em fiasco. Em geral, não resiste um
mês, às vezes nem uma semana, em geral não resiste ao tempo. Quan
tos livros, ontem em voga temporária, amontoam-se hoje nos cestos
de saldos? O sucesso não acarreta a sua sucessão.
Ao contrário, como por milagre, o outro mergulha até o fundo
das obras vivas no momento, adivinha-as, domina-as, desperta-as,
liberta-as, suscita-as. Este segundo triunfo perdura. Eu o desejo a
todos. Mas não se engane: nada é mais difícil do que descobrir em
que consiste o presente de nosso tempo. O que todo mundo diz,
longe de o esclarecer, o recobre e esconde. Não se esqueça de que as
mídias repetem o que aqueles que as controlam hoje diziam quando
tinham vinte anos: estão, portanto, com um atraso de uma geração,
senão de duas. É preciso então buscar apaixonadamente o que você é,
e não o que dizem que você é. Não escute ninguém. Resista à torren
te, às influências, às condecorações.
Eis o único modo de libertar o presente, que se define justamente
pelo encontro, raro, miraculoso, saturado de informação, da obra e
das forças vivas latentes que a condicionam, mas que somente ela
pode desencadear. O momento contemporâneo é criado pela obra de
arte mais ainda do que esta é fabricada por ele. O tempo, que sempre
dorme, desperta pela criação, como Deus suscitou Eva cujo sonho
palpitava sob a costela de Adão. Então o sucesso garante e engendra
a sucessão: a do tempo acompanha a da obra, e não o inverso.
Achar o contemporâneo, coisa difícil. Descobrir o que se é, in
venção mais rara ainda.
112 t
Parece-me que só se pode criar no fio reto da cultura que se
encarna na carne de sua carne. Eu me atrapalho ao falar numa língua
que não seja a minha, enquanto minha exatidão busca e encontra
para dizer em francês qualquer coisa que meu corpo carrega desde
milênios em minha língua materna, meio entre o espanhol e o ita
liano, as duas outras folhas de um trevo com pedúnculo latino, mas
desabrochado em terra celta, mais a oeste que a leste, portanto mais
inglês que mediterrâneo. Eis a imagem que ilustra meu brasão, a
tatuagem de minha pele, a marca de meu código genético, mestiço.
Não se inventará nada de novo que não saia das mais profundas
raízes? Como um relâmpago, a idéia presente conecta a terra negra e
esquecida à irrespirável estratosfera do porvir. Será preciso então falar da nossa especificidade.
Na ordem da raridade, a tradição francesa, exigente, irônica e
sutil, erudita porém frívola, reservada sob lítotes, a altitude e o segre
do, mantém sempre a dianteira sobre Suas rivais ou êmulas, mas é um
primado quase sempre ignorado, em virtude de sua natureza dura,
mais exatamente de Sua quantidade de informação oculta sob a reser
va. Roma, Florença ou Veneza se abrem mais facilmente que Paris,
cidade mais sublime do que amável e difícil de compreender. Da
mesma forma, Couperin e Corneille, infinitamente árduos, são ouvi
dos muito menos facilmente que Beethoven e Shakespeare, que não
hesitam diante de qualquer meio espalhafatoso de captar a compla
cência. Recusamos acordos e comodidades, de forma que passamos
por inabordáveis e, às vezes, por arrogantes. O pudor se mostra orgu
lhoso, eis o nosso paradoxo! Assim, sempre em risco de deixar o
sucesso para os sedutores mais rápidos e mais seguros, a França se
arrisca, mortalmente, a se esquivar aos próprios franceses, cuja cultu
ra vive sob incessante ameaça de ruína por causa deste excesso ou
deste desvio. Quando a debilidade torna-se moda, nossa língua, por
exemplo, rara, exigente, artista, perde. A Coca-Cola sempre derrota o Sauternes. De modo arrasador.
Além disso, nos criticamos a nós mesmos até a exasperação e a
exclusão, de forma que num século em que a publicidade nunca es-
113
pera que alguém mais o elogie, nós lutamos contra nós mesmos em
todas as competições, agora mundiais. Não concerne apenas às belas-artes esta altivez inverossímil que
nos torna a vida tão dificultosa: não amamos as meias medidas em
nada. Nossas equipes jogam o futebol e o rugby divinamente, ou em
geral se afundam quando os raríssimos talentos faltam. Tanto nos
estádios como em outras praças, uma cultura deixa ver a sua nature
za. A nossa, a mais difícil, exige uma austeridade que mil outras
dispensam, em troca de sua satisfação. Nada portanto mais difícil do que criar na França, mas estamos
condenados a produzir com essa diferença. Resista então às importa
ções, em geral podres. Você terá sempre mau desempenho nas con
trafações. Mestiço, sim; falsificado, não.
Para criar, deve-se saber tudo e, portanto, ter trabalhado imen
samente; esta condição necessária agora não é mais suficiente. Por
que o peso da ciência ou do passado esmaga e esteriliza: ninguém
produz menos que um historiador, ou professor, ou, pior ainda, que
um crítico. Analisar ou julgar, eis a maneira própria dos impotentes,
que, em conjunto, desfrutam de todos os poderes. Então, com todo seu corpo, sua paixão, sua cólera e sua liberda
de atada, quem quer criar resiste ao poderio do saber, tanto das obras
já realizadas como das instituições que as parasitam. Isto significa,
em suma: abandona tudo o que dá segurança, arrisca-te ao máximo.
É preciso instruir-se o mais possível, no começo, para se chegar à
formação: tudo vem do trabalho; aprende e fabrica sem descanso.
Tomo agora uma tangente para afirmar o contrário. Ter tudo compreendido, decerto; mas, em seguida, para não sa
ber nada. Duvidar para criar. Resisto então, para terminar meu dis
curso precedente.
Tenho vontade de falar sobre a boa aventura, a única aventura
ainda possível em nossos tempos contemporâneos, o grande jogo de
quem perde ganha e de quem ganha perde com freqüência. Não, o
114
filósofo que busca não dispõe de nenhum método; o êxodo sem ca
minho continua sendo sua única morada e seu livro branco. Ele não
caminha nem viaja seguindo um mapa que repetiria um espaço já
explorado. Escolheu errar. A errância comporta os riscos do erro e do
extravio. Aonde vais? Não sei. De onde vens? Procuro não lembrar.
Por onde passas? Por todos os lugares e o mais possível, enciclope
dicamente, mas tento esquecer. Declino tuas referências. Há poucos
pontos de referência num deserto. A filosofia vive e se desloca nesta
paisagem austera e desértica onde todo um povo vagou durante uma
geração que esperou e não avistou a terra prometida. Ela não procura
uma nascente, um poço, montanha ou estátua, invenções ou desco
bertas locais, mas um mundo global, habitável por seus sobrinhos.
As ciências positivas dispõem de métodos e de resultados: sem
pre sabe o que está fazendo aquele que matematiza, que programa e
realiza qualquer manipulação num laboratório, ou que se lança nu
ma pesquisa de opinião; e quando não sabe, às vezes inventa.
Então, quando as línguas maldizentes afirmarem que eu quase
nunca sei o que faço ou vou pensar quando me devoto à filosofia,
creiam nelas sob palavra, eu suplico. Basta que siga um método ou
uma escola, o filósofo morre no enrijecimento do dogma ou porque
as palavras de um mestre vitrificaram seu pensamento; se ele obtém
resultados locais, sua disciplina, por felicidade, torna-se uma ciência,
perdida para sempre para a filosofia.
Que agora devo definir: a filosofia se dedica a uma antecipação
do saber e das práticas a vir, globalmente. Um cientista descobre ou
inventa, nas lacunas de um método, os insucessos de uma experiên
cia, a incompletude dos resultados ou a oscilação de uma teoria, mas
o filósofo não dispõe nem de uns nem de outros, e portanto ainda
menos de suas falhas e avessos. O primeiro, sempre reconhecível,
marca seu tempo; reconhece-se o segundo pelo que tenha ou não
trazido o futuro: que lhe falte isso e ele não existirá. A filosofia, rarís
sima, existe se e somente se libera e prepara um espaço onde a histó
ria habitará, como a Idade Média habitou uma espécie de Aristóteles
agostinianizado, o Renascimento habitou Platão, e os tempos moder-
115
nos Descartes, Leibniz ou Bacon. A obra de um filósofo, se e quando
acontece, instaura um solo que fundará as invenções locais por vir.
Ela traz consigo a generalidade, a terra ou a atmosfera da própria
história das ciências e a liberdade das artes, a abertura do saber e a
casa da compaixão. Longe de ser produtiva, como infelizmente é
hoje, pelas divisões do saber antigo e comO uma entre elas, a fIlosofia
tem como função engendrar o próximo saber, em sua cultura global,
aquilo que a faz sonhar, esta manhã, com a instruçãO mestiça.
Assim, esta invenção e sua esperança atraem para uma aventura
sem volta, que pode ser descrita em termoS de êxodo e não de méto
do, de nascimento e de mestiçagem, de errância mais do que de itine
rário ou de currículo, e de deserto destituído de referências mais do
que de disciplina como espaço orientado. São termos perigosos e
arriscados, que podem ser entendidos como mitos ou poemas para
serem excluídos do pensamento, quando se faz a viagem por cami
nhos mais seguros, mas que valem como elementos de uma antropo
logia da descoberta ou de uma ética, melhor ainda, de uma simples
higiene para aqueles que se lançam nesta loucura sem esperança de
recompensa. Cristóvão Colombo inventa as Novas índias; não volta
sobre seus passos; erra, privado de guia, em uma vastidão ao largo,
sem referência: resiste à pressão de seus pares; seu êxodo ignora que
ele vê finalmente uma g1obalidade, à qual se dará o nome de um
outro. Que importa. Ele engendrou um tempo. Há vários séculos, os filósofos clássicos se aplicaram a Regras,
imitadas das dos mosteiros, mas para dirigir o espírito. Ousaria eu
reescrevê-las, para depois perdê-lo, ou para perturbar os jogos do
sujeito ou da linguagem publicitários, da ambição na cidade ou dos
sistemas dominantes? Aprende tudo, primeiro; depois, no momento
certo, lança ao fogo tudo que possuis, inclusive teus sapatos, e segue
simplesmente como estás. Só inventa a inocência mestiça. Se queres
perder tua alma, trabalha para salvá-la, porque a salva, finalmente,
aquele que pareceu perdê-la. Só descobre quem jogou a partida mais
arriscada, mais absurda, mais mortal, partida na qual quem perde
sempre acaba ganhando um outro mundo - o das próprias coisas.
116
,. ,
T
Em qualquer área, os homens de todas as culturas só inventaram
porque sabiam que iam morrer e porque souberam viver e pensar na
sua vizinhança, nossa limitação última e nascente extrema. Lugar
terrível de onde vem toda vida.
A criação resiste à morte reinventando a vida: isto se chama res
surreição.
Um outro nome para o mestiço instruído
Eu não procuro, acho - e só escrevo se acho. Nada nos meus livros,
em lugar nenhum, é algo de fora, reformado. O que há de mais vivo,
nas pequenas horas da madrugada, do que o inesperado improvável,
tão alerta para o tempo, o achado?
Que aborrecimento é mais maçante que o raciocinador repetiti
vo que copia ou parece reconstruir, substituindo constantemente o
mesmo cubo? Que economia ruminar o passado! Que preguiça faz
repetir um método! O método procura mas não encontra.
Contudo, leitor, como é bom quando te reencontras num texto,
porque sempre estás recomeçando o mesmo o texto: ao retomá-lo,
pensas compreender, enquanto, caduco, estás sempre coçando o
mesmo lugar. Ao invés disso, quem ouve aquele que encontra?
Porque ele exige muito de si mesmo e de quem o pratica: novo a
cada linha, seu texto não se apóia em nenhuma retomada. Arte mais
difícil do que aquela da melodia infinita que se lança e se arrisca,
errando sobre o caminho que ela mesma inventa e que jamais volta
atrás, cujo salto não se sustenta senão em sua in quietude, exposto,
explorando sem cessar um outro fragmento de terra, tremulando
como o contorno de um estandarte ao vento, seguindo adiante sem
benefício nem ajuda, sempre em estado nascente, alegre, despren
dida, tortuosa, torturante, estranha ao ouvido, emanada das raízes do
corpo como um vôo de pássaros em torno da ramagem de uma ár
vore, prolífica, divergente, êxodo aberto que padecem e cantam
aqueles que vão rapidamente de novidades para achados, trovadores,
achadores.
117
Nascido sob um nome secreto, enfim reencontrei meus ances
trais: escrevo desde sempre COmo um trovador.
o casal genérico da história. Morte e imortalidade
A despeito de seu nome glorioso, a potência que lhe é atribuída e sua
atitude teatral, a criação não pode sobreviver por si mesma. Ela mor
re sem mecenas e s6 vive graças a ele: Estado, Igreja, empresa ou
particular bem-sucedido. Se ele se desinteressar, ela desaparece.
Donde se tira imediatamente a sua definição: ela caminha mori
bunda. A filosofia distingue habitualmente a natureza e a cultura,
compreendamos enfim por quê: sempre prestes a nascer, a primeira
se opõe àquilo que não cessa de perder suas forças, enquanto a cultu
ra luta por sua existência e mOrre de criar. Definição tão justa e tão
profunda que, se por acaso a encontrardes, aqui ou ali, poderosa,
rica, honrada, plena, dominante e gorda, certamente não se tratará
dela, mas de seu simulacro ou contrafação. Em boa saúde ela não
cria, e, pelo contrário, para o fazer, dá a sua vida. Encontrá-Ia-eis por
este sinal que não permite engano: uma perda sem remédio. A cultu
ra criadora é essa criança frágil que expira entre nós, recém-nascido
em agonia desde o começo do mundo.
Contudo, sobrevive. Melhor, não conhecemos Mecenas senão
por aquele que abrigou, sob seu teto, esta imortalidade em estado
nascente. A criança delicada liberta da morte histórica o mortal afor
tunado que a salva. E não apenas sobrevive, como não há duração
longa nem mesmo história sem ela, que sozinha detém o segredo de
subsistir.
Eis o doador e o beneficiário: um certamente faz viver o outro,
que faz improvavelmente sobreviver o primeiro. Inútil definir o ge
neroso sem o recipiendário, nem este sem aquele, porque os dois
formam uma dupla indissociável. Ligados de fato e de direito pelo
dom, mas de maneira assimétrica, um representa o longo termo e o
segundo o curto, este com toda certeza e aquele nos azares mais
raros.
118 r
Virgílio certamente viveu graças a Mecenas e La Fontaine graças
a Fouquet, mas a probabilidade de que os dois sobrevivessem à histó
ria, graças à fábula ou à epopéia, era muito baixa. Numa dupla assim
reunida e estável no tempo, para o comum e para o raro, um assegura
a passagem presente e como em tempo real, enquanto o outro conta
com a continuidade em seu longo período. Qual deles e como?
De fato a dupla, unida, joga o tempo curto, COm toda certeza,
pelo longo, inesperado. Diante de sua ligação e seu jogo conjunto,
aparece então a morte, ou individual e corporal, ou coletiva, no es
quecimento das gerações futuras. De mútuo acordo eles lutam contra dois apagamentos.
De fato, aquela dupla não esclareceria a história, uma vez que
compõe a prosopopéia de duas caras com as suas condições: aqui a
fortuna e lá o gênio, nos casos positivos, uma inencontrável e mais
rara ainda a outra, ali a generosidade, aqui a criação, uma insólita, a segunda ainda mais excepcional?
Eis então a cultura e a economia, eis seu laço realizado, em dom
e contra-dom: que experiência crucial, que nos permite observar as
condições elementares da história a partir de um exemplo singular, e
oh maravilha, decidir sobre eles!
Outrora, e não há muito tempo, alguns colocaram a economia
na infra-estrutura da história, enquanto aí nós vemos que ela consti
tui sua condição apenas imediata. Indestrutível pelo tempo, enquan
to a economia o decompõe em termos curtos, a cultura fornece a
única e prottmgada infra-estrutura, porque ela e somente ela, por sua fraqueza, a obriga a durar.
Donde a nova pergunta: como pode ser que aquilo que entre nós
se revela como o mais fraco, e mesmo infantil, mesmo moribundo,
em uma perda irremediável, fique e permaneça, teimoso, invariante,
quando nossos corpos se corrompem, nossos bens e nossos poderes
desaparecem da superfície da terra? Como pode ser que a cultura
criadora funde o longo termo da história e sua continuidade, que,
119
paradoxalmente, o software fundamente e condicione o hardware, que o suave sustente o duro? O hardware, duro, fundamenta o software, suave, para o presente imediato, mas uma vez que o termo curto deixe seu lugar para a longa duração, a relação se inverte: o duro não dura, s6 perdura o mais suave.
Mas antes: por que essa madrinhagem, pela instituição ou por homens ricos, desta suave criança fraca e moribunda? Como explicar
a improvável generosidade - exceto pelo imposto de renda? É que,
deixada a si mesma, a fortuna tende a se reproduzir em fortuna au
mentada e constrange a não pensar senão em si, porque o comando
só sabe engendrar a hierarquia, a guerra só gera o conflito e a concor
rência a rivalidade; enfim, essas leis que encadeiam o tempo monóto
no da história por reproduções idênticas embotam mesmo as peles
mais espessas. Nada de novo sob este sol de ouro. O que se paga
rapidamente aborrece. Compre então dez casas, domine cinqüenta
engraxates, ostente vinte anéis preciosos, instale-se em tal lugar céle
bre, que interesse terá em conquistar mais um? Não encontrará senão
o mesmo, ou quase. A facilidade rumina por enfado da repetição e,
embora infinit~ a vontade de poder, que nada produziu além da
desgraça dos homens, só encontra diante de si a repugnante obediên
cia, relação que nos leva de volta ao lado dos animais. Eles comem no
zôo, os grandes deste mundo. Donde a busca de algo bem diferente
do ouro ou da dominaçãO, produtores exclusivos de monotonia.
Novamente, o que é a cultura criadora? Com freqüência, de ma
nhã, Mecenas recebia Virgílio, que lia para ele, em voz alta, o que
escrevera na véspera, um e outro de súbito vivendo essa novidade. A
criação inventa as notícias contando hoje o que ignorava ontem -
meu 'ofício consiste em escrever e dizer não o que sei, cansativo,
morto e passado, mais que perfeito, mas, ao contrário, o que não sei
e que me espantará - e o mecenas no alvorecer corria para as notí
cias, não para aquelas gritadas todos os dias, irritando nossos ouvi
dos, outros crimes mas sempre os mesmos, outros escândalos, guer
ras, catástrofes, tomadas de poder, ainda e sempre os mesmos, velhas
120
repetições monótonas de um mundo dedicado à dominação itera
tiva, mas exatamente para o imprevisível do artista, o inesperado e, rigorosamente, o improvável.
Nem Mecenas nem, sobretudo, Virgílio sabiam na véspera o que seria dito no dia seguinte.
Durante todo o tempo, essa dupla produziu um tempo inédito.
A cultura criadora vive no novo e pode se definir: a possibilidade a
mais baixa, logo a perda irremediável, a maior raridade. Nada menos
monótono nem mais inestimavelmente precioso: sempre em estado nascente.
A velha língua francesa, sob esse aspecto mais vivaz e robusta que
aquela que usamos desde então, chamava trouveur rachador] a esse
produtor de improvável novidade: trouvere no Norte, no Sul trou
badour. Que lástima! Não conhecemos nada mais que chercheurs
['buscadores']. O criador não procura, que diabo!, ele encontra; e se
não encontra, que faz então aqui, poluindo a cultura com seus ressentimentos?
Essa imprevisível invenção se chama paz, que segue a invenção e a condiciona. A paz, mas também a vida.
O mecenas faz o artista viver no mundo oposto àquele em que o
artista faz sobreviver o mecenas. Quero que sobreviver não signifique
apenas prolongar a existência, mas também transfigurá-la. No reino
do pão e da água que o generoso dá ao criador, o tempo vai da
esquerda para a direita, do nascimento para a morte normal, em
direção à probabilidade maior, à certeza única do fim; no outro mun
do criado pela obra que o 'achador' entrega ao doador, o tempo vai
da direita para a esquerda, da morte para o nascimento, em direção
ao improvável, à maior das raridades, à espantosa novidade. O artista
e o mecenas se encontram na intersecção desses dois tempos.
Eis porque eu disse: a criança. O criador, morrendo, vai em dire
ção ao nascimento e à infância, num outro sentido do tempo. Eis
porque a obra não se gasta e resiste à monotonia da história, cujo
fluxo Corre em direção às grandes probabilidades da potência, da
121
glória e da morte. Indo para a infância e o nascimento, ela está sem
pre prestes a nascer, como a natureza geórgica e bucólica, cujo parto
Virgílio anunciava a Mecenas todas as manhãs. Eis como a cultura se
torna uma segunda natureza.
O criador nasce velho e morre jovem, ao contrário daqueles,
realistas, que, tendo, como se diz, os pés sobre a terra, sabem nascer
crianças e morrer caducos, como todo mundo. Um dá ao outro o dia
que passa, e o outro lhe devolve a juventude indestrutível.
Esses dois mundos que giram em sentidos diferentes e esses dois
tempos se ignoram e se apreciam raramente. Eles s6 têm como lugar
comum e improvável essa dupla contingente, unida pelo dom.
É tão difícil receber quanto dar, pois todas as culturas exigem,
expressamente ou de forma tácita, um contra-dom. Prefiro chamá-lo
de perdão. Como retribui aquele que devemos chamar de parasita a
quem o mantém, que lhe oferece abrigo, um teto e de comer? Pala
vras vãs, vento, essas coisas que nada valem, e que, por isso, não se
compram.
A troca se solda então pelo desequilíbrio: tudo contra nada; eis
um contraste leonino. Ou melhor: pelo desvio do material e da infor
mação. O balanço é feito então, à medida que se avança em moder
nidade, e nele aprendemos a estimar esta última, que a teoria define
justamente pela improbabilidade, a maior raridade.
Mas existe a informação corrente e a informação rara. Tudo é
jogado, então, naquilo que eu chamaria risco de raridade. Para dom
raro, contra-dom inencontrável; encontram-se poucos mecenas, é
verdade; mas criadores, menos ainda.
A pesquisa de maior repercussão faz então fracassar, com toda
certeza, qualquer tentativa de mecenato: o que faz mais barulho se
gue sempre a moda e não saberia precedê-la; ora, o que anuncia um
novo tempo chega sempre como um sopro sutil de vento, suavemen
te, sem grande estardalhaço.
DO?de este resultado perigoso: o interesse propriamente cultu
ral, poderosamente criativo, é com freqüência - nem sempre -
122 .I..
I
1
inversamente proporcional às paixões do momento e às vezes - nem
sempre - corresponde àquilo que não apresenta nenhum interesse.
A análise se equivale, tanto em relação à obra de arte como à pesquisa
científica: pode acontecer que se recuse inteiramente o crédito a de
terminado físico, aparentemente envolvido com assuntos sem inte
resse, que, dez anos antes, recebeu o prêmio Nobel por uma invenção
ímpar, justamente no mesmo domínio. Não existe garantia nem cer
teza para a criatividade; mas, inversamente, quando ela é bem-suce
dida, reembolsa mil vezes a garantia e o seguro, por um longo prazo, ao doador, eventualmente já morto.
Assim, o contra-dom se reporta a um desafio quase sempre per
dido, mas que compensa infinitamente, mais que nenhum outro,
quando se chega a ganhá-lo. Esse ganho pode se definir muito rigo
rosamente como o de um seguro de sobrevida, pois se trata de uma
outra vida, da vida transfigurada, que tenho tendência a considerar
como a única vivível, pois se trata da imortalidade; volto, por meio
dela, à continuidade da história. Virgílio tornou Mecenas imortal e o
carrregará na sua garupa enquanto a humanidade sobreviver; dez mil
mecenas salvaram cem mil maus rimadores da fome que eles mereceriam abundantemente.
Mas que importa a celebridade! Só conta o tecido da história que
ela mostra e constitui. Eis porque, quando a dupla entrou em cena, chamei-a de genérica.
Ao longo da continuidade assim tecida, tratemos do nosso tem
po. Daqui para diante, cadeias deterministas fornecem à sociedade
dita de cq,nsumo os produtos cujo valor freqüentemente colapsam
num intervalo de tempo fulminante: nOve décimos, em volume e em
peso, do que acabamos de comprar no supermercado vão diretamen
te para o lixo, e neste encontram o jornal e a quase-totalidade do que
recebemos pelo correio a cada dia. Consumo ou consumição deno
tam essa deriva viva do valor. Assim, quanto mais um país hoje pros
pera e se desenvolve, mais depressa ele nos envia quinquilharias des
tinadas aos detritos. A um objeto que circule, pergunte por quanto
123
você o liquidará amanhã ou em cinco anos. Estamos perdendo a
raridade. E, portanto, o longo termo, pelos mesmos atos e ao mesmo
tempo. O Império Romano durou dois mil anos, a Idade Média desde a
Cristandade um milênio, o dominium britânico sobre o mundo me
nos de cem anos, o reinado americano começa na última guerra e
iniciou seu declínio já há uma década. Quanto tempo governarão os
cinco dragões da Ásia? Devemos pensar o mecenato em meio às con
dições reais que a história e a economia impõem ao valor. Estas so
frem uma erosão proporcional à rapidez das circulações: uma e outra
crescem verticalmente. Donde esses rendimentos decrescentes.
Proponho que se conserve a denominação de mecenato para os
auxílios culturais puros, os dons concedidos àqueles que a sociedade
atual, nem menos nem mais que as precedentes, sempre priva de
todos os bens até que morram; e que se denomine apadrinhamento
ou, pior, sponsoring, aos dons que recaem, por uma troca rápida, em
publicidade, em nomes próprios sobre bandeirolas, para o esporte
ou a ciência, atividades nobres mas quase tão ricas quanto os doa
dores, uma vez que, pela inovação, a pesquisa precede e pilota a
própria economia. O contra-dom ultrapassa mesmo e em tempo
real o dom quando o veleiro ganha a corrida ou quando a descober
ta acelera a produção esgotada. Nesse momento de deriva viva para
a quinquilharia, a publicidade, contra-dom informacional, com fre
qüência vale mais dinheiro que o mau produto por ela elogiado in
solentemente. Um dom para um contra-dom mínimo, eis o que é o mecenato.
Só esse mínimo sobe a corrente poderosa que perde a raridade. As
palavras francesas gré [agrado], grâce [favor] ou gratuité [gratuida
de 1 exprimem esta seta simples da troca sem espera ou exigência de
retorno. A lógica do gré difere daquela da troca. Determinista, esta
segue a circulação rápida e a baixa fulminante que acabo de evocar.
Aquela espera e joga com a raridade. A troca calcula e procura ga
nhar, o dom gratuito brinca de quem ganha perde e de quem perde
ganha.
124
,
A regra do mecenato se assemelha bastante àquela que sigo em
meu trabalho cotidiano, aquela que todas as pesquisas respeitam, que
leva a todos os achados. Ei-la: quem quer salvar sua alma aceita per
dê-la, e se tudo o que queres é salvá-la, por certo a perderás. Dupla
aposta contrária à prudência, visando ao poder e à glória. Uma se
debate na troca e a outra se lança para o dom e seus puros acasos.
Destes dois espaços de jogo diferentes, subitamente os dois tempos
vão nascer e bifurcar-se.
O mecenas encontra um abade Delille, pobre rimado r, ou Vir
gílio, imortal, um pintor de domingo ou um Braque ou um Rafael. O
númerO dos gênios morrendo desesperados, comparado ao dos im
potentes glorificados, mostra que a escolha, difícil, é como loteria, da
qual se tira esta raridade que perdemos. A busca aleatória de uma tal
improbabilidade, com o máximo de informação, me parece o papel
atual e o trabalho positivo do mecenas, que restitui então a nosso
mundo, às voltas com o banal, o improvável esquecido.
Então, estocasticamente, o dom pode se inverter: o pagador sal
da em trocados, em moeda de rápido desgaste, uma obra de duração
trans-histórica. E o mecenas conserva seu nome unicamente pelo
artista. Por acaso ou loteria, o contra-dom vence o dom, infinita
mente.
Esta inversão da troca e do gré inverte o próprio tempo que, ao
invés de se gastar, de ter o valor corroído, o faz crescer verticalmente.
Pergunta: que valor nos parece hoje, nestes tempos sem cultura e de
criação quase nula, o único que resiste a qualquer inflação e que, ao
contrário, aumenta? Em que objeto investir? Resposta unânime dos
especialistas: a autêntica obra de arte. É o que eu queria demonstrar.
Mas para a autenticidade em tempo real, aqui e agora, você não
encontrará nenhum avaliador. Trabalhe, então; arrisque-se: loteria
para o audacioso, para quem, diz-se, a verdadeira fortuna às vezes
sorri.
Imagino que Virgílio, um belo dia, recitou diante de Mecenas a
página de seu poema em que Enéas desce aos infernos. Quando o
125
silêncio substituiu a música do dístico, o ministro perguntou se era
preciso que o herói morresse para entrar no outro mundo. _ E depois - acrescentou - como conseguiu escapar? Achas
que ele ressuscitou? _ Não sei - respondeu Virgílio - se ele morreu ou não mor
reu com este golpe, mas certamente o risco terrível desta visita infer
nal condiciona a existência e a beleza das obras. Não pode haver
criação verdadeira sem uma viagem assim, dentro do subterrâneo
negro. _ Explique-me. então! - exclamou Mecenas, angustiado.
_ Aquele que consegue se safar da sombra, como eu não sei -
retomou o autor da Eneida -, chame-o de Enéas, como eu fiz, ou talvez Homero, que aqui recordo, e cuja Odisséia fez Ulisses descer
aos mesmos lugares. Evocamos suas sombras pela magia do ritmo:
Enéas enfim escapa do abismo, Homero dele sai, Ulisses também e
ainda Orfeu, e antes deles seu ancestral milenar, o arcaico Gilgamesh,
o primeiro, no Crescente Fértil, pelo menos para nossa memória,
partiu com passo leve em busca da imortalidade. Da caixa negra em
que decidiram um dia afundar, eles se libertam, um após o outro,
enfim imunizados contra o esquecimento, renascentes, ressuscitados,
os únicos verdadeiramente imortais, em virtude de seu suplício. Eis
como, pela recriação heróica, a cultura se torna segunda natureza, a
verdadeira, aquela que compreende o que é nascer, isto é, sair ver
dadeiramente do nada. Só a obra bela nos conduz à juventude e s6
a beleza chama a humanidade para seu presente, vivendo sempre
recriada. _ Mas - continua o ministro -, que quer dizer esta cena ou
esta série múltipla, que significa esta sucessão, paralela à história de
nOSSOS saberes, longa teoria de nomes ilustres desenrolada antes de
Enéas nos séculos dos séculos, Gilgamesh, Orfeu, Ulisses, sem esque- '
cer Hércules e reseu, semideuses que, não na história mas para a
lenda, se aventuraram também nesses subterrâneos inomináveis?
_ Que se o gênero humano não teme a morte em seu conjunto
e sua história - diz Virgílio com paixão -, deve isso aos raros heróis
126
1. r
que a enfrentaram de perto, para dela voltar e soldar aS gerações
umas às outras; podemos chamá-los de nossos passeiros: um pouco
como cada um de nós faz a travessia do sexo para que os filhos des
pertem após o seu desaparecimento. Assim como o amor tece nosso
vínculo local e individual, corpo a corpo e na genética, a arte realiza
essa transmissão sobre a mais longa duração, pela aceitação de uma
morte pessoal que funda a história, da mesma forma que a nossa
própria condiciona o nascimento de nossos descendentes. Sentimo
nos vivos e unidos, no tempo, pela e na obra bela, aquela que, por um
lado, integra todo o saber e, por outro, não teme o confronto com o
mal, a dor, a injustiça e a morte.
Mecenas, de pé, entusiasmado com esta visão longínqua, per
gunta então:
- Mas, depois de nós, depois de ti, que tiras do nada esta página
memorável?
- Imagino - continua Virgílio - e espero ou profetizo que a
passagem não se interrompa; quem sabe se o futuro não assistirá o
advento de uma religião (esse entusiasmo diligente que resiste à ne
gligência) fundada em parte sobre essa idéia que ninguém jamais
criou sem se submeter ao mais grave perigo; ela se encarnaria num
homem que se poderia chamar de divino e que renasceria depois de
ter aceito morrer pelas mãos dos mais poderosos entre seus contem
porâneos. Depois dele, as obras de música, pintura, os poemas, as
estátuas celebrarão durante milênios sua ressurrreição, que começará
a história de sua era, a era da boa nova, que consiste em colocar nos
sa morte não mais à nossa frente, como suportada, mas finalmente
atrás, verdadeiramente esquecida. Porque também ele sairá dos In
fernos.
- Eu queria - é ainda Virgílio quem fala - que um gênio que
vai nascer na Itália, não longe daqui, faça, mais tarde, com que eu
mesmo desça com ele a esses lugares abomináveis, em companhia de
uma mulher tão feliz com essa viagem que será chamada de Beatriz.
Eu o ajudarei a entrar, mais uma vez, loucamente, depois a sair,
promotor de uma obra bela. Não, acrescentou, sonhador, não posso
127
conceber que essa sucessão heróica se interrompa. Nossa história
fundamental segue a dos nossos predecessores, que mostram a via
mais difícil e a exigência radical. A arte sai da tumba. Se a semente
não morre, não trará belos frutos. Não te estou falando de nada mais
que de uma lei da vida: mas as leis da mais longa não são enunciadas
como as da mais breve, a dos nossos corpos limitados. Sem dúvida
existe na carne vivente um programa para esta lei, e eu escrevo na
minha linguagem, com aqueles outros, as atas da história.
E Virgílio finalmente se calou.
Quem o sucedeu? Em nossos museus, multidões comemOram a
ressurreição de Van Gogh ou de Gauguin, mortos de miséria e fome,
sem nenhuma ajuda, e celebram esses viventes, espantosamente pre
sentes, com mais intensidade e fervor que aos grandes que persegui
ram a glória, ricos, poderosos, conquistadores, ou decapitados entre
o troar que anuncia os tambores do poder, parcos de obras e de
posteridade. Sem o formular, ela sabe, ela sente que descende, de
fato, de convencionalistas ou de marechais, mas mais ainda de um
indigente perdido nos arquipélagos do Pacífico, como lean Valjean se
perdeu nos esgotos de Paris, em busca da meSma beleza que aquela
suscitada por esses nomes e esses corpos que sustentaram o tempo.
Nós ignoramos o nome do miserável que, nesse mesmo momen
to, dá sua vida à obra que nossos netos consumirão para sobreviver:
porque se o apetite de pão às vezes se acalma, esta fome, espero,
nunca se apaziguará. O que é a cultura, finalmente? A ressurreição
irregular e regular daqueles que desafiaram a morte para criar, que
retornam para costurar a tradição de ontem à vivacidade de hoje.
Sem eles, não há continuidade, não há imortalidade da espécie hu
mana. Sem seu renascimento não há história.
A quem, então, chamar mecenas? Na junção onde a longa dura
ção encontra a vida breve, nos lugares raros onde a história se projeta
sobre o instante, alguém empurra a pedra tumular para que um fan
tasma renasça ou retorne, aquele que nos visita hoje, como Ulisses e
Gilgamesh visitaram Mecenas pela voz de Virgílio, como este visitou
128
Dante e lhe deu o ramo de ouro, como a sombra de Beatriz flutuou
sobre nós por um momento, fantasma evanescente, indefinível, pres
tes a desaparecer entre as lufadas de ar leve, mas que sozinho tem a
qualidade, vigor generativo e capacidade de nos reunir, na transmis
são humana global e para a semeadura inesperada de criações fortes, nesses dias sombrios.
Ei-Io, incandescente; reengendrado pela sabedoria e pela morte
dos homens, ei-lo, espírito, língua de fogo, semente de sóis.
129
I , .
'.
o fi: " ;.. o <:> ~
;;' ;:5
~ " ~ ;;: m
~
<:> <:> ~.
iil ;? '" ;:5 "'" " a.
" ~ <:> "
.", <:> ~ ~ c
~ o ~ "'" <:> ,....
;;. <:> ~ ~ <:> -. ~ " "
;;' <:> ;; " ~
'e> .- <:>
<:>
"" II " ;:5 ""'I:
<:> " ~ ~ -. <:>
l "'" <:>
" ~
~ ~
lei do rei: nada de novo sob o sol
A temperatura é apenas uma variável do clima de um lugar. Mil
outros elementos ali mudam juntos, ligados entre si: o relevo e a
altitude, a umidade, a espessura do manto de terra arável sobre a
rocha, a riqueza e a densidade da flora e da fauna ... Equilíbrios locais,
estáveis ou lábeis, somam-se a esses fatores. Suponhamos que uma
das variáveis, a temperatura, decresça ou se eleve fortemente, exaspe
rada por qualquer motivo.
O frio advém e ganha: caso se torne terrível, dir-se-á que ele
reina. Ganha e reina. Ele não transforma moderadamente o equilí
brio frágil alcançado pela fusão composta dos numerosos fatores,
mas mata ou recobre sua diversidade. O inverno ganha a batalha: rei
a partir de então, sozinho comanda os ventos, detém as águas, nivela
o relevo, cobre a terra e os mares, expulsa ou rarifica a flora e a fauna,
impõe certas espécies, embranquece totalmente o espaço e o volume:
uma única lei vitrifica a imensidão; nada será jamais novo sob essa
luz distante e gelada, ao longo dessas planícies pálidas. A monotonia
não se repete diante de um olho indiferente, fonte de luz sem chama
diante da qual o inédito desapareceu. Quando a uniformidade apare
ce, um sol todo-poderoso, ausente ou presente, a produziu, de fato.
Frio. Nada de novo sem o sol.
Que se inverta a tendência: ganha, reina o calor, que desertifica
o espaço, expulsa ou deixa famintos os animais e as plantas, cobre a
terra de areia e evapora as águas do mar, arrasa as colinas e preenche
os vales, dita sua lei única aos ventos. A chama destrói, com sua
ardência, o volume: na imensidão, sua ordem comanda.
133
Reina a lei do frio nos países do Norte, a da chama governa o Sul,
nada de novo com solou sem ele. A sabedoria de Salomão coloca-o
tão distante que ele observa, indiferente, a dissolução que a insolação,
entretanto, produziu. Será que ela ocorreu sob seu olhar? Decerto,
mas ela se faz sobretudo por sua ação. Basta que ele se retire para que
os bancos de gelo avancem; basta que exploda. e o deserto acre se estenderá no espaço. Inversamente, quando faz falta o novo, procure,
se você não está morto, o sol não faz mais do que se ausentar.
Nada de novo pelo sol.
Nos países temperados, onde a temperatura se suaviza, a aurora
se põe e o crepúsculo se prolonga, sob o pudor da manhã. Ressur
gem em massa os outros fatores: faz tempo bom e fresco, seco e
úmido, calmo e ventoso, luminoso, claro-escuro, surgem pinheiros,
palmeiras, fauna em quantidade: tudo se mostra ao mesmo tempo.
A temperatura não atinge o máximo, o espaço nunca se liga a uma
única e excessiva coação. Essa mistura variável poderia ser chamada
de tempo, palavra que significa a mistura ou temperamento e com a
qual se qualificam os países ditos temperados, que, por esse motivo,
eu o adivinho, em troca inventaram a história, ou melhor, uma
seqüência temporal - temperada, como uma gama - de aconte
cimentos.
A novidade irrompe se o sol se retém. Se as águas se retêm. Com a cheia, o dilúvio começa e comanda,
até que tudo se abisme sob o tecido de luto das águas. Mais uma vez
uma única lei: a transgressão marinha, reinante, engole qualquer de
talhe sob o nível uniforme da água sedosa.
Se uma espécie ou uma variedade viva se retém. Imagine a Terra
coberta de milhões de lagartos mais ou menos idênticos ou uma praia
interminável sob caranguejos cinzentos movendo-se sem deixar e$
paços vazios, todos no auge do crescimento vertical da reprodução.
Ou, ainda, o espaço invadido por uma rede inextrincável de lianas
entrelaçadas, de uma única família, ou de ratos com certo odor ou de
formigas com certos hábitos políticos. O que comerão esses ratos,
esses lagartos, quando tiverem ganho a famosa guerra pela vida, de
134
modo que passarão a viver num ambiente exclusivo de ratos ou de
lagartos? Comerão lagartos?
Se os homens se retêm. Nós arrumamos o mundo só para nós,
animais daqui para diante exclusivamente políticos, inexoráveis ven
cedores da luta pela sobrevivência, encerrados para sempre na cidade
construída sem limite, coextensiva ao planeta: quem ainda poderá
sair da cidade chamada Japão ou da estufa chamada Holanda? Catás
trofe: quando as estufas cobrirem a terra. Entre as pedras e o vidro, os
homens não terão mais que o vidro e as pedras debaixo deles para
construir e, diante deles, para viver, um mundo finalmente vitrifi
cado, submetido às suas próprias leis. Vivendo de relações, não co
mendo nem bebendo nada além de seus próprios laços, voltados fi
nalmente para a política e só para ela, enfim sós, longas lianas em
redes atadas de comunicação, grandes colônias de formigas agitadas,
lagartos aos bilhões. A espécie homem ganha, vai reinar, não descon
fia de si própria, não se retém nem reserva seu poder, sua ciência ou
sua política. A hominidade deve aprender essa retenção, pudor e ver
gonha; e sua língua deve aprender a lítotes; e sua ciência deve apren
der a reserva. Perseverar incessantemente em seu ser ou em seu pode
rio caracteriza a física da inércia e o instinto das feras.
Sem dúvida a humanidade principia com a retenção.
Se Deus se retém. Deus é o único ser ao qual uma aventura assim
já sucedeu. O monoteísmo tinha destruído os deuses locais; não escu
tamos mais as deusas rirem entre as fontes, nem vemos os gênios
aparecerem sob o arvoredo. Deus esvaziou o mundo, o grande Pan,
parece, morreu. Quando o sol apareceu do lado do Oriente Médio, as
estrelas empalideceram, a profusão de colorido se fundiu no braseiro
da unidade. A partir daí, nada mais pode aspirar à novidade sob a
tocha (Ia omnitude: poço total dos pensamentos verdadeiros, condi
ção toda-poderosa e criadora, pré-formação de todo o possível, en
cerramento sob a lei, Deus não se retém.
Engano. Deus se retém de qualquer eternidade. Limitado - lhe
é possível? - pelo poder do mal, dual, portanto, e trino, cercado de
135
múltiplos mensageiros, serafins e arcanjos, potências e dominações,
sobrecarregado dia após dia pela pequena glória dos homens que
atingem a beatitude ou a santidade, estorvado pelos mártires, pelas
virgens e pela Virgem, Deus se reserva ou, por si mesmo, retém seu
poder. A história santa de Deus não fala da sua solidão e mostra, ao
contrário, sua retenção, sua suspensão, nossas liberdades. Daí sua
benevolência, sua tolerância, sua doçura ... e se Deus não aderisse ao
monoteísmo estrito? Que diabo, Ele criou o mundo e, por isso, muita
gente aspira ao comando! Talvez Satã manifeste a clemência de Deus. Talvez o mal existen
te demonstre a sua bondade. Talvez a existência de demônios malva
dos, como a dos anjos e querubins, como a dos santos, da sagrada
família, bons e maus espíritos na mesma linha enfim, e pelo menos
uma vez com a mesma função, talvez a existência de todos estes im
pedimentos que Deus tolera ou que nós impomos à sua ubiqüidade,
inclusive a sua própria encarnação, cantem-nos sua benevolência e
sua misericórdia, todas as latitudes que ele oferece. Temos a agrade
cer a Deus pelo muito que se reteve aquém do monoteísmo. Nossa
sobrevivência se deve talvez a esta reserva. Quem sabe Deus só criou
o mundo graças à sua abstenção? Que importância teríamos se ele
não se retivesse? Comovido pela tradição, acreditei durante muito tempo que o
monoteísmo houvesse morto os deuses locais. Chorava a perda das
hamadríades, pagão como todos os camponeses meus pais. A solidão
em que se encontravam as árvores, os rios, os mares e os oceanos me
dilacerava, eu sonhava em repovoar o espaço vazio, ansiava dirigir
me aos deuses destruídos. Abominava o monoteísmo por esse holo
causto das divindades, que me parecia uma violência integral, sem
perdão nem exceção. Incapaz de pensar no mais recente, por est~r
ligado à batalha milenar dos deuses, a essa gigantomaquia que nos
servia de modelo. Vejo, ao contrário, que Deus acolhe os deuses, que não desce seu
braço sobre o diabo, uma vez que Satã, evidentemente, sempre se
apropria de todos os poderes do mundo e Ele nunca protesta; obser-
136
1 l
vo que se deixa importunar pelos anjos e aceita a concorrência da
suave multidão de santos, que até mesmo desaparece no tumulto de
asas, auréolas e mantos, que mal podemos distingui-lo entre as pal
meiras. Descubro que Deus é bom e talvez, quem sabe, infinitamente
fraco. Ele se retém, com pudor e vergonha. Um dia até se deixou
matar sem resistência apreciável. Na mesma hora, passei a rir da
velha gigantomaquia dos pequenos deuses locais, sempre, como nós,
em pé de guerra. Sinto-me agora um pouco menos pagão.
Uma lei única, pretensamente geral, resulta da expansão forçada
de um elemento local que perde a contenção, se algum dia a teve, que
esquece a medida, se é que a aprendeu, com a intenção de fazer que
o resto desapareça.
A madrugada apaga as estrelas, nada no céu será novo depois
dela. Ora, o sol é apenas uma anã amarela cuja aurora esconde as
gigantes azuis. Contudo, as supergigantes continuam girando, as ga
láxias também. Tão mais gigantescas, ardentes e coloridas. A anã
perdeu a medida e esqueceu a contenção. E, contudo, as outras gi
ram.. A expansão da lei única de uma estrela muito pequena se chama
aurora.
Os gases ocupam por si mesmos o volume que se oferece diante
de sua pressão expansiva. Ninguém jamais viu um gás manifestar
contenção, deixando uma parte do espaço vazio. A barbárie segue a
lei única. A lei da expansão. A dos gases. Eles se propagam. O bárbaro
se espalha. A violência espalha o sangue, que se espalha. A pestilência,
a epidemia, os micróbios se propagam. O ruído, o estrondo, os ru
mores se espalham. Assim a força, o poder, assim os reis. Assim a am
bição. Assim a publicidade. É preciso dizer o nome de todas as coisas
que se espalham tão amplamente como um gás, de todas as coisas que
se expandem, que ocupam o espaço, que ocupam o volume. O mal
corre, eis sua definição: ele excede os seus limites.
E se o sábio solar se reduzisse a um anão amarelo? Desses peque
nos, que se exibem com ruído para ocultar os supergigantes, azuis e
silenciosos?
137
Quem, ao contrário, cantará o pudor da cultura, a vergonha da
verdade, a lítotes da bela língua, da sabedoria a contenção? Passa e
falta a excelente qualidade: não há belo decote sem defeitos no om
bro. Faltas e defeitos exigidos pela verdade, pela beleza, pela bonda
de, decerto, mas também pela vida:
Nós a devemos à contenção de Deus, criados que fomos nas
margens de Sua reserva. Nós a devemos também ao conjunto de
faltas deixadas pelos outros viventes, a terra, a atmosfera, as águas e
as chamas, que por sua vez devem a existência às reservas marginais
que nós lhes deixamos. A morte impõe sempre a lei. O nascimento esconde seu estábulo
nas margens do não-direito. O próprio da natureza é a contenção.
Nada de novo nasce se algum sol exasperado o impede.
A obra nasce numa cavidade retida.
A moral exige primeiro essa abstenção. Primeira obrigação: a
reserva. Primeira máxima: antes de fazer o bem, evitar o mal. Abster
se de todo mal, simplesmente se reter. Porque também, como o sol,
ao expandir-se, o bem se transforma depressa em mal. Essa primeira
obrigação condiciona a vida, cria uma área de emergência de onde
virá a novidade.
O novo pode nascer sob esse claro-escuro.
O homem gentil se retém. Ele reserva alguma força para reter a
sua força, recusa em si e em torno de si o poderio brutal que se
propaga. O sábio desobedece então a lei única de expansão, não per
severa sempre em seu ser e pensa que erigir sua própria conduta
como lei universal define tanto o mal como a loucura.
Assim, a razão busca não mais se submeter a um império, em
particular àquele de sua própria expansão. Ela reserva alguma razão
para reter a sua razão mesma. O homem gentil e racional pode por
tanto desobedecer à razão, para que nasçam margens em torno dele,
com vistas à novidade. Ele inventa a boa nova. Achador.
Se o sol, se as águas se retêm, se as espécies vivas reservam sua
potência, se freamos a expansão de nossas razões. Deus se absteve.
138
,
L I
1
Senão, ele teria ficado só. Como ele mal se distingue na densa multi
dão de santos e anjos, quem O encontrou O busca ainda, fragmenta
do ainda na Trindade. Ele se esconde e se deixa invadir. Sua ausência
no espaço e na história significa sua contenção.
A boa nova nasce à meia-noite: sem sol.
Deveríamos nos dissimular um pouco sob as árvores e os juncos,
abrir nossas políticas aos direitos do mundo. Deveríamos nos reter,
cada um, sobretudo nos abster juntos, investir uma parte da potência
na suavização de nossa potência.
Humano é quem não desce sempre o seu braço sobre os fracos,
com dureza, ou sobre os fortes, com ressentimento, mesmo sobre
os que são ostensivamente maus. A humanidade torna-se humana
quando inventa a fraqueza - a qual é fortemente positiva.
Perseverar sem trégua em seu ser, ir mesmo além de sua perseve
rança completamente desenvolvida, ultrapassar conservando-a, eis a
conduta da loucura. A paranóia poderia mesmo se definir pela ex
pansão de um traço local exasperado, vitrificando o espaço mental
para não deixar nenhum espaço ao crescimento de uma outra variá
vel. Presente, um psicótico erradica qualquer outra presença, da mes
ma forma que a psicose tudo nele desbastou. Real, imperial, solar, ele
persevera em seu ser, se expande, converte tudo o que o cerca. A pro
pagação da patologia ultrapassa tudo aquilo que encontra diante dela
e o absorve enquanto se conserva. Nada de novo sob essa loucura.
Temos dificuldade em suportar essa psicose quando imposta por
um indivíduo, mas às vezes lhe damos as nossas vidas quando ela se
torna coletiva. Nossas condutas sociais traduzem com freqüência
doenças em modelos gigantes ou adicionam muitos átomos ou ele
mentos que, tomados separadamente, se reduzem ao mórbido. A
loucura, a grande, sempre parece, mais ou menos, com a conduta de
quem quer ser rei e passa a se identificar com o sol. O louco que se
toma por Napoleão não engana o povo. Ora, nunca foi dito que se
engana aquele que acredita em si. Foi mesmo preciso que um dia um
geômetra corso acreditasse nisso até o fim. O coletivo se reúne e se
139
reconhece em torno do potentado que procura ser visto como verda
deiro. Se consegue, ei-Io coroado imperador; se fracassa, é chamado
de louco. f: bem fina a parede que separa esses dois momentos deci
sivos. Eis, em todo caso, uma variável singular, que tenta se expandir
para fora de seu pequeno nicho, que persevera com todas as suas
forças ou se ultrapassa, enquanto se conserva. Para definir a loucura,
não tema empregar as palavras metódicas da filosofia.
A loucura se desenvolve segundo a mesma lei de expansão que
aquilo a que aspiramos sob o nome de razão. Esta quer invadir o
lugar da mesma forma que qualquer outra variável, ou qualquer ou
tra desrazão. Razoável significa a contenção, aquém da capacidade,
da própria razão, de modo que se chama assim ao indivíduo que nem
sempre nem em todo lugar tem razão e que não se aproveita disso em
relação àqueles que nunca têm razão nem àqueles que, a rigor, po
dem ter razão algumas vezes. ínfima e vizinha de zero é a probabili
dade de ter sempre razão sobre tudo e sobre todos.
O pensamento começa sempre quando o desejo de saber se de
pura de toda compulsão a dominar. Criemos nossos filhos na vergo
nha da razão, para que eles sintam pudor dessa compulsão. Entenda
mos como razão a proporção: ela mede a quantidade ou o volume de
um elemento misturado em uma solução. Quanto há de água neste
vinho puro? Nome que se dá também ao coeficiente de propagação
em uma seqüência ou série, a razão se veste de proporção. Uma não
anda sem a outra; ora, não há razão nem proporção sem mistura; a
razão razoável rirá então da razão pura, como de um oximoro, tanto
ao mergulhar nos corpos misturados, como ao nos ensinar que tudo
não é, e está longe de ser, sempre e em toda parte como o que ela
conta. Como podemos fazer dela uma idéia expansiva e homogênea,
que a torna uma loucura, exatamente o oposto de uma proporção?,
Se a razão se retém. Ela nasce sob a denominação grega de logos,
relação ou proporção, quando Tales descobre, ao pé das pirâmides,
que as grandes se equivalem à pequena seguindo uma mesma relação.
Queops e Quéfren, faraós imponentes, pela primeira vez se retêm
diante de Miquerinos, que por sua vez se reserva diante do corpo do
140
,
,
_.
geômetra, de pé, livre e orgulhoso, cuja estatura insignificante proje
ta, sob o sol, uma sombra semelhante sobre as três sombras enormes,
seg'undo a mesma razão. Tales inventa a ciência na penumbra, fora
das loucuras solares dos reis.
Eis o novo à sombra do sol.
Então a novidade se ergue a cada minuto do dia ou da noite: esta
fecundidade ininterrupta do tempo, inesperada no deserto seco e
ardente, nós a chamamos história das ciências, que equivale à das retensões da razão.
Se a ciência racional se retém. Organizamos meticulosamente
um mundo onde apenas o saber canonizado reinará, espaço que cor
re o risco de se assemelhar de muito perto a uma terra coberta de
ratos. Unificada, louca, trágica, a ciência ganha, logo reinará, como
reina e ganha o inverno. Excelente o saber, decerto, mas como o frio:
quando se mantém fresco. Justa e útil a ciência, certamente, mas
como o calor: se permanece suave. Quem nega a utilidade da chama
e do gelo? A ciência é boa e até mesmo, estou seguro, mil vezes me
lhor do que outras coisas também boas; mas se pretende ser única e
completamente boa, e se age como se fosse assim, então ela entra
numa dinâmica de loucura. A ciência torna-se sábia quando se retém
a si própria de fazer tudo o que pode fazer.
Por mais judiciosa que uma idéia se apresente, ela se torna atroz
se reina sem partilha. Seria perigoso que as ciências duras se fizessem
passar pela única forma de pensar. Ou de viver. Poder-se-ia conceber
que as ciências se tornassem sábias. Bastava-lhes aprender a lítotes, a
reserva, a retenção; o conteúdo de uma idéia importa um pouco
menos do que sua conduta, o valor da ciência é avaliado por seu
desempenho tanto quanto por sua verdade; que um julgamento tem
pere o outro. Sim, o que importa o rigor de um teorema ou sua
profundidade, se ele acaba por matar os homens, ou faz pesar sobre
eles um poder excessivo?
A sabedoria dá a alna de medida. O temor da solução unitária
significa o começo da sabedoria. Nenhuma solução constitui a úni-
141
ca solução: nem tal religião, nem tal política, nem tal ciência. Resta
a única esperança, de que esta última possa aprender uma sabedo
ria tolerante que as outras instâncias jamais souberam aprender e
nos evite um mundo homogêneo, loucamente lógico, racionalmente
trágico. A verdade, de direito, não deve adquirir o direito de se expandir
no espaço. A sabedoria acrescenta a retenção ao verdadeiro, aos cri
térios do verdadeiro a reserva. A partir daí, não julgarei mais verdade
o que não pode nem sabe reter sua conquista.
Loucura da verdade solar. Se a ciência e a razão se retêm, se a filosofia se retém. Amo a
filosofia porque traz em si essa palavra de amor que eu amo, essa
sabedoria que tardei a descobrir; não conheço nada melhor do que
ela, nada maior, mais quente, mais profundo nem mais extensivo,
luminoso, nada que torne mais inteligente, nada que compreenda
melhor as coisas do mundo, os meios da história, da linguagem e do
trabalho, que permita viver melhor e ascender à rara beleza; dei-lhe
minha vida, meu corpo, meu tempo, meus prazeres, minhas noites e
minhas aventuras, até meus amores, ela os colheu e mos devolveu
magnificados, mas, tão certo como a amo, sei que não se deve pro
movê-la nem dar-lhe poder, mas, bem ao contrário, impedi-la de
adquiri-los. Muito perigoso. Amante da filosofia, jamais me tornarei
seu zelador. Nada faço para expandir sua potência.
A filosofia deve engendrar homens de obra; desejo-a estéril de
homens de instituição e de poder. Estéril, a instituição persevera em
seu ser, avança, cega e teimosa. A obra, tímida, fraca, frágil, desgarra
da, espera ser tomada, brilha suavemente como um pedregulho em
seu buraco, não se expande por si, felizmente. Por si, a obra se retém.
Há algo novo em seu claro-escuro. Se a filosofia, esquecendo-se da obra, se apropriar em algu~
lugar da potência, ela reinará imediatamente sobre os cemitérios. A
história não dá nenhum exemplo inverso. Muito perigosos, os filóso
fos. Mais terríveis que os políticos, os padres e os eruditos, eles mul
tiplicam um pelo outro os riscos dos outros. Não confiramos o poder
142
!
\ ,L.
1
às idéias porque elas multiplicam o alcance da potência. Muito peri
gosas, as teorias. Como se expandem no vazio, logo milhões de ho
mens desfilarão com passo cadenciado por milhares de quilômetros
desde seu lugar de emissão, diante de retratos gigantes daqueles que
as promoveram. Propagação única e solução final. Acredita-se sem
pre que uma idéia só é perigosa porque é falsa. Que ela exprima a
verdade, na hora certa; evitemos dar-lhe publicidade.
A sabedoria adequada à filosofia vem da retenção. Se ela constrói
um mundo universalizante, a arte o borda com uma margem de be
leza reservada. Filósofos, fazei vossa obra com exatidão e suportai em
silêncio que vos chamem de poetas: aqueles que em geral são ex
cluídos da cidade. É melhor assim. Construí uma grande obra onde
se encontrem, precisamente localizadas, as coisas do mundo, rios,
mares, constelações, os rigores da ciência formal, modelos, estrutu
ras, vizinhanças, as exatitudes aproximativas da experimentação, tur
bulências ou percolação, as flutuações da história, multidões, tem
pos, pequenos desvios, as fábulas da língua e as narrativas do bom
povo, mas a construí tão bela que sua própria beleza a retenha; a
retenha como singularidade; a defina; a preserve de qualquer excesso.
Por felicidade e por definição, o inimitável não encontra imitadores
e portanto não se expande nem se propaga.
Inteiramente belo, inteiramente novo.
O belo contém o verdadeiro, quero dizer, o retém, limita sua
expansão, fecha o rastro, quando ele passa, sob a forma de traços. O
verdadeiro exige um limite e a demanda de beleza.
Quando a ciência e a razão tiverem atingido a beleza, não corre
remos maiS risco. Bela, a filosofia afasta todo perigo.
Belo, o verdadeiro se esquece de avançar no espaço. O belo é o
verdadeiro em paz consigo: a verdade contida.
Se a língua se retém. Nada, o sei com certeza, é tão belo quanto
minha língua, secretamente musical; nada se esconde com tamanha
discrição, precisa e clara sem o ostentar, nenhum modo de expressão
se aproxima tanto da lítotes, nada também tão puro quanto o gosto
143
I •
!
francês, excelente, refinado, despojado, tão ausente como Deus sob a
onda de querubins ou o lilás por trás da pêra e da maçã secas num
velho Yquem, nada também conseguiu se aproximar tanto da beleza,
mas eu não poderia suportar que por toda a parte e sempre só se
falasse a minha língua.
Eu sofreria muito, acho, se tivesse que falar inglês hoje em dia,
quero dizer) como lingua materna. Pena) ela não se retém mais. No
entanto, como foi bela!
Quando todas as pessoas do mundo falarem finalmente uma
mesma língua e transmitirem a mesma mensagem ou a mesma nor
ma de razão, nós desceremos, débeis imbecis, mais baixo que os ra
tos, mais idiotamente que os lagartos. Mesmas língua e ciência ma
níacas, mesmas repetições dos mesmos nomes sob todas as latitudes,
terra coberta de papagaios barulhentos.
Quando os poderosos e os ricos só falarem inglês, eles descobri
rão que à língua dominante no mundo falta a palavra pudor. Eles
terão deixado, com desprezo, os outros dialetos aos pobres.
Se os mais fortes se retêm, se os melhores se retêm. Os cidadãos
livres de Atenas, de Tebas, os revolucionários parisienses do ano 11,
os potentados do Ocidente, hoje pesados de tantos dólares, inventa
ram ou praticam, segundo dizem, a democracia, enquanto ela lhes
servia ou serve ainda de publicidade ou biombo para esconder que
esmagavam os escravos e os metecos, que iam tomar o lugar dos
nobres decapitados ou que exploram até a morte o Terceiro Mundo.
Qual a melhor forma de governo?, perguntam constantemente
os teóricos. Assim enunciada, a questão antecipa: a aristocracia. O
governo dos melhores é a melhor forma de governo, a única que o
Ocidente conheceu desde a aurOra de seu tempo.
Sempre e por toda parte em nossa cultura, os aristocratas se
consideraram iguais, irmãos em armas submetidos à dura lei dos
duelos, equivalência das fortunas para uma concorrência selvagem,
concursos impiedosos entre os especialistas de mérito ... deve-se sem
pre formar ou imitar o ideal do homem, isto é, o melhor possível:
144
• 1-r
bem-nascido, rico ou inteligente. Quando só se conhecem exemplos
e só se age segundo modelos, como evitar a competição, isto é, a aristocracia e a desigualdade?
Optimiza-se, então, uma tendência escolhida: crescem as armas,
as riquezas ou os méritos, começa a corrida, para que a força domine,
ou a fortuna, ou o talento. Por que as melhores coisas deveriam se reter?
Ora, descobrimos agora esta nova, porém antiga, evidência de
que a Terra não pode dar a todos os seus filhos o que dela hoje arrancam os ricos. Existe a raridade.
Enquanto nossos modelos aristocráticos permanentes majoram
ou optimizam esta ou aquela tendência para que ela invada o espaço,
a verdadeira democracia, aquela pela qual espero, minora ou mini
miza a mesma e referida força. Desfrutar de uma potência e não fazê
la prevalecer, eis o começo da sabedoria. Da civilização.
Filosofia política da retenção: a única igualdade pensável daqui
em diante supõe, não como falta de riqueza, mas como valor positivo, a pobreza.
O Terceiro Mundo nos precede.
Partamos.
o novo sob o sol, em outro lugar
Durante a batalha do Pacífico, uma das mais duras da última guerra
mundial, um navio, cujo nome e bandeira calarei, recebeu na mesma
hora tal chuva de torpedos e projéteis que se encheu de água numa
quantidade:equivalente à sua tonelagem. Não afundou, entretanto:
navios podem flutuar mesmo em condições extremas.
Sem máquina nem timão, privado de qualquer contato pelo rá
dio, envolvido st:1bitamente pela bruma, carregado pelas correntes e
pelos ventos quando a neblina se levantou, desamparado, entregue
aos meteoros sem poder agir, ele vagou sozinho durante duas ou três
semanas por sobre a extensão deserta do mar, depois de ter se perdi
do de Sua esquadra que, acreditando-o afundado já há bastante tem-
145
po, cessara todas as buscas. Como as obras vivas e mortas desapare
cem debaixo d'água, a tripulação quase inteira ocupou as partes mais
altas, mastros e vergames, para todos os olhos procurarem algum
sinal no horizonte. Os sobreviventes contaram que naqueles momen
tos acreditavam ter deixado o mundo dos homens.
E de repente, numa bela manhã, milagre. Terra! Terra! Ilumina
do pelo sol nascente aparece, bem à frente, um banco de coral, encer
rando uma laguna tranqüila, de águas verdes, de onde se estende uma
longa faixa lisa de areia e, por trás desta, altas falésias se empenacham
de palmeiras e cascatas. Dir-se-ia a ilha Coco, uma das mais belas das
terras pacíficas e das mais típicas, porém situada a milhares de milhas
para leste. A onda tranqüila empurrou navio, corpos e bens para a primeira
ponta de terra, onde ele colidiu e naufragou em dois minutos, como
se houvesse esperado vinte dias, em equilíbrio, por esse momento
fulgurante. Mas os botes salva-vidas e balsas, lançados ao mar bem
antes, levavam para a margem os marujos e oficiais em uma desor
dem esfaimada que se pode imaginar e na esperança louca de sobre
viver. Nenhum morreu afogado.
De todos os pontos da costa surgiram então longas pirogas,
guarnecidas de remadores, e arautos que os chamam, ajudados por
gritos e gestos, cantos e tambores. Cada barco de salvamento é abor
dado. Como os marinheiros nada compreendem dessas demonstra
ções, não sabem que decisão tomar: defender-se de um ataque ou
abraçar aqueles que os acolhem. De repente faz-se silêncio: o chefe ou rei aparece, quase nu, em
majestade, manda chamar o capitão. Este se levanta, comparam-se as
aparências. O encantamento desce sobre a cena. Os nativos mudam a
direção de suas embarcações, uma a uma, e conduzem à terra aque1es
que, de sopetão, se tornam seus hóspedes.
Nada faltou durante longos meses para a felicidade completa dos
náufragos. Os sobreviventes contaram que acreditavam naqueles mo-
146
mentos ter tocado o paraíso terrestre. Trocas que satisfaziam as duas
partes, jogos e risos, festins deliciosos em torno desses fornos poli
nésios cavados na terra e de onde os cozinheiros retiravam bolos
suntuosos feitos de batatas docesj alguns, como nos séculos passados,
arranjaram uma mulher, outrOS limpavam um canto de jardim para
plantar algumas sementes salvas do desastre.
Uma vez resolvidas as coisas da vida, começaram a discutir inter
minavelmente: os deuses de cada um, comparando-se seus desempe
nhos, as regras seguidas de muitas maneiras por cada uma das duas
comunidades, suas vantagens e inconvenientes; primeiro por meio
de gestos complacentes, depois numa língua progressivamente clara
e dominada.
Os nativos nutriam uma paixão estranha pelas palavras: pediam
a tradução exata de seus vocábulos e davam explicações interminá
veis. As assembléias se multiplicavam e não terminavam mais entre
brincadeiras e bom humor. Foi preciso falar do amor, da religião, dos
ritos, da polícia e do trabalho, com os mínimos detalhes. Eles se
esgotaram nos paralelos: as restrições diferiam, mas cada qual era
oprimido em seu país por normas igualmente complicadas, incom
preensíveis até fazer rir o interlocutor, mas sem jamais negligenciá
las, nem de um lado nem do outro. Em suma, sob diferenças muito
espetaculares, todos juntos acabaram reconhecendo grandes seme
lhanças, e isso os aproximou.
O tempo passava, o horizonte continuava virgem. Para os nati
vos, nunca deixara de estar assim. Os antigos contavam, entretanto,
que seus antigos contavam, e assim por diante, que em tempos muito
distantes povos pálidos já haviam chegado ali, mas nunca mais desde
então. Os tripulantes do navio de guerra, quanto a eles, não se lem
bravam de que seus mapas mostrassem a existência de uma ilha na
quele lugar.
Alguns a chamavam de ilha Nula, mas como não se dividiam
mais, como a bordo, para o serviço, em bombordeses e estibordeses,
outros se puseram, de brincadeira, a chamar de ilha Mestiça essa
147
terra bendita, como uma embarcação imóvel com equipagem sem
divisão. O tempo passava.
Como havia o risco do tédio mesmo nessas comparações, ape
sar da felicidade e da saciedade, organizaram-se campeonatos de
futebol. Primeiro espectadores desses jogos ou lutas cuja pompa se
desenrolava sobre terrenos tabus, os insulares, talentosos, depressa
aprenderam, com os pés descalços, a conduzir a bola correndo, a
defender e a atacar, a multiplicar os passes e a chutar para gol.
Seus goleiros, sobretudo, eram peritos em acrobacias muito extra
vagantes. Seguiram-se disputas cruzadas, em que se opunham equi
pes distintas de cada comunidade ou os ilhéus e seus hóspedes. Nas cabanas, à noite, discutiam-se, bebendo cerveja de raiz, as estraté
gias e os treinos. O tempo se refugiou nesses encontros. Os sobre
viventes contaram que ali perdiam toda a lembrança de sua antjga
vida.
Que, entretanto, voltou, uma bela noite, sob a forma de um por
ta-aviões surgido de repente sem que ninguém o tivesse visto sair de
qualquer ponto do horizonte. Dizia-se mesmo que sua balsa tocara a
terra antes de o terem percebido parado, ancorado, gigantesco, dian
te do banco de coral. O almirante que comandava o navio convocou
o capitãO a bordo e decidiu repatriar imediatamente o grupo gentil
que não tinha projetos além de futebol sob os trópicos, paraíso e vida
de sonho. Separações, lágrimas, desespero de parte a parte, adeuses
patéticos, promessas, presentes, cantos e melopéias, os marinheiros
do porta-aviões, em guarda ao longo da entrada, preparados para
zarpar, não acreditavam nem em seus ouvidos nem em seus olhos.
Levantou-se a âncora ao som melancólico do clarim. Falésias e casca
tas desapareciam na círculo do mar. Cada um de seu lado, em alguma unidade nova, retomou as
hostilidades, o Almirantado tendo tido grande cuidado em separar o
grupo. Vários morreram, outros não, segundo a sorte. Depois a guer
ra acabou, como se sabe, em Hiroshima. Fim do primeiro ato.
148 T
o segundo e último principia numa cidade ocidental cujo nome
e língua omitirei. Dois dos sobreviventes ali se encontram, por acaso,
em um bar, uma igreja ou um mercado, quem sabe, talvez na saída de
um estádio. Calorosas palmadas nas costas, evocam os antigos com
bates e logo começam a falar no paraíso perdido. Um deles, mais
entusiasta, projeta voltar lá. Por que não?, diz o outro. Cada um
procura os antigos companheiros, encontra alguns, agora espalhados
por aqui e por ali na sociedade, no espaço e na fortuna. Finalmente,
os ricos pagam menos que os pobres, e organiza-se a viagem. Quando
não há uma linha regular de um ponto do mundo a outro, torna-se
preciso fretar uma embarcação ...
... cuja modéstia surpreende os nativos, que só tinham visto o
enorme porta-aviões, além do casco cheio d'água cujos destroços rapidamente soçobraram.
Eis O triunfo da volta: novos festins deliciosos em torno dos mes
mos fornos, trocas que sempre enchem de felicidade as duas partes,
cantos e melopéias, entrecortadas de exclamações: o rei está ficando
velho, como as meninas e os meninos cresceram; mas as mulheres
continuam belas e é preciso se inclinar diante do túmulo dos mortos
antes conhecidos, que não se teve oportunidade de rever ao voltar.
Tudo isto feito e sobretudo dito, as diversões recomeçam e volta-se
em massa ao estádio, sob a direção do rei ancião. Todo mundo se
acomoda e a gritaria começa.
No encontro defrontam-se a equipe do Leste e a do Oeste, duas
cidades da itha. Soberba, dramática, elegante, ela termina com o re
sultado de três a um, ao final de noventa minutos. Os marinheiros
então se preparam para abandonar o espetáculo e ir dormir. Já era
noite. Mas não, não, brada a multidão, fazendo com que se sentem
novamente, ainda não terminou.
A partida recomeça com maior ímpeto e, sob as tochas ardentes,
prolonga-se pela noite. O tempo passa e os antigos marinheiros não
compreendem mais nada: extenuados, sem fôlego, os jogadores caem
149
uns após os outros, as pernas tomadas de câimbra. Mas, insistente, a
partida continua. Cada equipe vai fazendo gols e, já quase amanhe
cendo, chega-se a oito a sete. Começa a ficar monótono.
De repente, o povo se ergue, agita os braços e as mãos, berra de
alegria, e tudo acaba: o gol de empate acaba de ser alcançado por um
artilheiro que é carregado em triunfo em volta do terreno. Todos
gritam: oito a oito, oito a oito, oito a oito! Cheios de sono, estupefa
tos, incapazes de perceber claramente o que se passa, os marinheiros
voltam depressa a suas palhoças para repousar.
Algumas horas depois, as palavras recomeçam. Estratégia, tor
neios, resultados, retomam-se as mesmas conversações de outros
tempos. E pouco a pouco a verdade se esclarece.
Os nativos jogavam o mesmo jogo que antes, com equipes com
preendendo o mesmo número de homens e em terrenos com o mes
mo formato, mas tinham mudado uma regra, uma única e pequena
regra. - A partida acaba - dizem nossos marinheiros - quando uma
equipe ganha e a outra perde, e só nesse caso! É preciso haver um
vencedor e um vencido.
- Não, não - retrucam os ilhéus.
- Como desempatar então as suas equipes? - perguntam os
marinheiros. - Que quer dizer essa palavra no seu dialeto?
- Uma diferença de gols.
- Não compreendemos essa sua idéia. Quando você corta um
bolo de acordo com o número dos que estão sentados em volta do
forno, você não o divide? ..
- Claro.
- ... e cada um come uma parte, não é?
- Com certeza.
- Você algum dia teve a idéia de desempatar esse bolo?
- Ora, isso não faz nenhum sentido - protestam os marinhei-
ros por sua vez, os resolutamente bombordeses ou estibordeses de
sempre.
150
- Mas sim, como no futebol. Alguém come ele inteiro e os
outros não comem nada, se você desempatar.
Os caras-pálidas, desconcertados, se calam.
- Por que as equipes têm que desempatar?
- Nós não compreendemos isso, porque não é justo nem huma
no, já que um vence o outro. Então nós jogamos o tempo de jogo que
vocês nos ensinaram. Se no fim o resultado é um empate, a partida
termina numa verdadeira partilha.
- Se não, as duas equipes, como vocês dizem, estarão desempa
tadas, coisa injusta e bárbara. Para que humilhar os vencidos, se que
remos parecer, como vocês, civilizados? Então, é preciso recomeçar,
por muito tempo, até que a partilha retorne. Acontece às vezes a
partida durar semanas. Já houve jogadores que chegaram a morrer
em campo!
- Morrer? É verdade?
- Por que não?
- Agora a cidade de Oeste se alegra e festeja tanto quanto a
cidade de Leste, assim como as do Norte e do Sul. Os festins, que a
partida do empate interrompe durante um tempo às vezes longo,
podem recomeçar em torno dos fornos de onde se tiram os bolos.
Entre os ventos que os conduziam de volta às suas cidades e suas
famílias, no meio do balanço regular das macas, em doce equilíbrio
no berço das ondas, os marinheiros pensavam naquela terra singular,
ilha nula oU mestiça, ausente dos mapas marítimos. Eles discutiam,
deitados, as mãos sob a nuca:
- Diga, na última guerra, nós ganhamos, não foi?
- Claro.
- Em Hiroshima?
- Ganhamos mesmo?
- Você está querendo conhecer os verdadeiros vencedores? -
151
ripostou o segundo, que passava pelo corredor. - Eu os conheço
muito bem, porque às vezes os transporto em meu barco ... Etnó
logos, sociólogos, não sei que título têm, mas estudam os nativos das
ilhas ... e em geral os homens são o sujeito de seus estudos, quer dizer,
o objeto. Eles cantam vitória: o que podemos conceber acima desses
que explicam e compreendem aqueles outros que, sob esse ponto de
vista, jamais serão seus semelhantes e menos ainda seu próximo?
o novo sob o sol, aqui
Mas ele - escriba, douto, legislador -, querendo mostrar sua justi
ça, disse: "E quem é meu próximo?"
Jesus respondeu: "Um homem ia de Jerusalém a Jeric6 e foi ata
cado por bandidos que, depois de despojá-lo e espancá-lo, foram-se
embora, deixando-o quase morto. Aconteceu que um padre vinha
pelo mesmo caminho; ele viu o homem e passou longe. U fi levita
também chegou ao lugar, mas viu o homem e passou longe. Mas um
viajante samaritano chegou perto do homem: ele o viu e foi tomado
de compaixão. Aproximou-se, cuidou de suas feridas vertendo sobre
elas óleo e vinho, carregou-o em sua própria montaria, conduziu-o a
uma estalagem e cuidou dele. No outro dia, separou duas moedas de
prata e deu-as ao estalajadeiro dizendo: 'Cuide dele, e se gastar mais
alguma, eu mesmo te reembolsarei quando regressar.' Qual dos três,
na tua opinião, se mostrou como o próximo do homem que foi ata
cado pelos bandidos? O legislador respondeu: 'Aquele que demons
trou bondade para com ele.'"
Evangelho Segundo São Lucas, 10: 29-38.
Toca a sineta. A porta da sala de aulas abre para os colegiais ,um
pátio vazio e feio que eles invadem berrando nas horas ditas de re
creio: primeira divisão criteriosa do espaço e do emprego do tempo
oferecida ou imposta, em nossas latitudes, às miniaturas de homens
colocadas em grupos, para que ali construam seus reflexos. Dentro,
do alto de sua estatura, o professor dita a ortografia e o cálculo garan-
152
te a ordem das fileiras e das cadeiras, a hierarquia; da soleira para
fora, a disputa expande os gritos e a fúria, as batalhas, o caos sem esperança, logo que a sineta toca.
Filho do povo, garoto das ruas e do campo, minha infância ou
inferno transcorreu, no pátio debaixo do terror dos tapas e vinganças
sem fim de bandos comandados por jovens assassinos, galos de briga
ou chefetes, arrogantes e briguentos. Bastava-lhes ter mais três pole
gadas de altura para jogar ao chão sem discusSão, com um golpe de
quadril, de ombros ou de calcanhar, quem quer que os desafiasse. No
pátio coberto, entre os troncos de árvore, ao longo dos banheiros
repugnantes, nas nuvens de poeira, selva ou floresta primitiva, os
mais fortes supliciavam sem cessar os mais fracos, por puro prazer, e
os sopapos eram sempre desferidos contra os mesmos. Mas o mais
musculoso ou vociferador só tinha sua vitória assegurada se recrutas
se uma guarda, mais poderosa em conjunto que qualquer outro che
fete, e até mais batalhadora e rude que o primeiro galo. Donde a
formação, simultânea, de uma milícia desobediente às ordens do no
vo inimigo, e assim como ele, munida de guarda-costas ou ministros.
Os combates começam entre as gangues logo que toca o recreio.
Lembro-me muito claramente de meu desprezo, menor por es
ses jovens chefes orgulhosos de seus bíceps do que por aqueles lugar
tenentes, babando de obediência servil, buscando o poder sem dispor
dos meios, executores de segunda mão, pivetes, e por isso ainda mais
implacáveis com a tropa humilde e anônima, pacífica mas dobrada
pelo vento da força. Aqueles comissários sem dúvida macaqueavam
seus pais: vivíamos então a ignóbil época em que a França perdia sua
alma colaborando com os nazistas. Nenhum recreio terminava sem que o sino anunciasse alguma ignomínia.
Os adultos chamam de acidentes escolares, cobertos pelos segu
ros, verdadeiros crimes perpetrados conscientemente, sob a aparên
cia turbulenta dos jogos, por menores irresponsáveis. A próxima si
neta tocava portanto na hora da vingança ou da revanche, como se
dizia nos jornais a propósito da guerra dos grandes, batalha prepara-
153
da pelo lado inimigo por meio de sinais e mensagens que circulavam
entre a classe de mão em mão, nas carteiras, sob o olhar paterno e
cego do professor. Quando a porta se abre após a sineta, o berreiro
generalizado, que os adultos acreditam exprimir um legítimo alívio
por se afastar dos cadernos brancos e do quadro negro, significa sim
plesmente a reabertura das hostilidades.
Quando ouço a sineta trepidante que escande as horas nas insti
tuições ditas de ensino, sei que ela treme de terror.
De volta à casa, o tempo civil e familiar se ritmava da mesma
forma: sirenes de bombardeios, alertas diversos, noticiário anuncian
do a cada hora, depois do prefixo musical, a abertura de novas carni
ficinas. Entre a RevoluçãO Espanhola de 1936, a Segunda Guerra
Mundial e seu fim somatório em Hiroshima, que criança teria perce
bido a diferença entre aquelas execuções gigantes e as vendetas sem
perdão, opondo os lobinhos, filhos e futuros pais de lobos, através do
eterno retorno do mesmo sinal ritmando as horas, lei morna de nossa
história pequena ou grande, sineta do reflexo para os cães.
Toca finalmente a sineta. Quem não teria apreciado o sossego
silencioso e um certo ar de paraíso, dentro da sala de aula, quando a
porta bloqueava as tempestades do pátio e o bom mestre ditava duas
quadras sobre vindimas idílicas, das quais o autor certamente não
participara, pois a querela não cessava nem entre as vinhas, essas
vacas cujas tetas são uvas, nem durante a pisoagem, quando os sexos,
cruelmente, se entrechocavam: o que, nos poemas, é chamado de
tranqüila felicidade bucólica? Acreditei por muito tempo, pelo me
nos até os nove anos, na paz ideal do intelecto, nas pastorais, na
utopia das figuras e dos números, até o momento, sete vezes bendito,
em que compreendi de repente que eu os amava porque o professor
me distinguia como primeiro da classe e me protegia com sua som
bra: deste lado do muro eu me encontrava, portanto, sob o mésmo
vento de uma outra força, dura e arrogante, galo, portanto briguento,
chefe de gangue ... Horror, enorme desgosto, adivinhando já então o
luzir servil em certos olhares e a curva das costas. Tomou-me uma
vergonha que nunca mais cessou, paixão secreta que me leva agora a
154 r
falar de nós mesmos, de nossas intrigas especulativas e de seu infor
túnio essencial, escondidos em um outro espaço, utopia intelectual, e separados no tempo por algum sinal sonoro.
Passei grande parte da minha vida em navios de guerra e anfi
teatros para dar meu testemunho à juventude, que já o sabe, de que
não há diferença entre as maneiras puramente animais, isto é, hierár
quicas, do pátio de recreio, as táticas militares e as condutas acadêmi
cas: reina o mesmo terror sob o telhado do pátio, diante dos lança
torpedos e no campus, esse medo que pode passar por uma paixão
fundamental dos trabalhadores intelectuais, sob a veste majestosa do
saber absoluto, esse fantasma sempre de pé por trás daqueles que
escrevem em sua mesa. Eu o pressinto e o adivinho, nauseabun
do, colante, bestial, lembrando regularmente como a sineta tocava,
abrindo e fechando os colóquios onde a eloqüência vocifera para aterrorizar os que em volta conversam.
Ao invés de nos aproximar da paz, a ciência e a inteligência nos
afastam dela mais do que o músculo, a cara feia ou a alta estatura. A
cultura continua a guerra por outros meios - pelos mesmos, talvez.
Encontram-se nas gangues teóricas os mesmos chefetes, de fato, os
mesmos lugar-tenentes, babando de obediência servil, e semelhantes
legiões pacíficas, curvadas humildemente sob o vento da força, que às
vezes elas consideram ser a moda, ou, pior, que mais comumente
pensam ser a verdade. Chamar de campus a área das universidades,
que achado literário, uma vez que essa palavra significava antigamen
te o campo fortificado durante a noite pelos soldados de Roma, antes
do ataque ou para defesa. Os especialistas sabem, de fato, a que fac
ção, a que gangue pertence este ou aquele campus e qual é o grupo de pressão que nele promove colóquios.
Ora, os recursos da linguagem, intelectuais, teóricos, eruditos,
para 'travar uma guerra não se comparam aos golpes do galo e do
chefete do pátio: mais refinados, tortuosos, globais e transparentes
até a irresponsabilidade inocente da especulação pura. O mais forte
boxeador do mundo não apresenta senão um corpo lastimável, com
seu swing ou seu uppercut, parece um santo no paraíso, se o compa-
155
rarmos com o físico teórico cuja equação pode fazer a Terra explodir
ou com o filósofo que submete povos inteiros durante gerações - ou
com a seita que o imita durante sua carreira. Até hoje produzimos
filosofias tão globais que erradicam toda a história e fecham as portas
do futuro, estratégias tão poderosas que atingem a mesma capacida
de de dissuasão que uma arma atômica e que decidem um genocídio
cultural perfeitamente eficaz.
Eis definido o infortúnio próprio a nossos trabalhos: como um
coeficiente, a inteligência multiplica por tanto quanto se queira a
vingança, e dá a impressão de anulá-la ao se dissimular. Por mais
vingativa que seja a sua ação, a violência cresce pouco e lentamente,
pelos punhos e pelos pés, mas ela sobe até o céu e invade o tempo e
a história, uma vez que a razão assuma o comando. Assim, as teorias políticas da tradição, como as ciências atuais
dos jogos de estratégia, supervalorizam seriamente o papel pacifica
dor do conhecimento racional: esse contra-senso faz a autopubli
cidade daquelas disciplinas. A razão gira sempre em torno da propor
ção e da dominância. Lança, portanto, uma ponte entre a sala de aula
e o pátio dito de recreio. Por que, ao contrário, a filosofia faz questão de ser chamada
assim? Porque ela não pede o amor à inteligência, nem ao saber ou à
razão, mas a Sofia, a sabedoria. Que sabedoria?
O conhecimento pacificado.
Sem se dar conta, o saber se aplica a um ofício arriscado, para
nós eruditos e para os outros, um perigo que só descobrimos nos
momentos de tensão ou de crise. Filósofo universitário francês de
p,6s-guerra, sobrevivi com dificuldade a dez terrores diferentes, infli
gidos por teóricos servos de ideologias políticas ou acadêmicas, galos
e chefetes novamente, príncipes diretores de grupos que mantinham
sob sua pressão o espaço do campus, as nomeações e as notas de pé
de página, proibindo a todo custo qualquer liberdade de pensamen
to, terrores cuja responsabilidade não atribuo a este ou àquele indi
víduo nem seita, pois isso equivaleria a me vingar, mas ao próprio
156
)
•
;
funcionamento da inteligência na instituição, e desta na primeira, a
implicação recíproca da ciência na sociedade.
Assim, por higiene de vida e de espírito, tive que imaginar, para
meu uso pessoal, algumas regras de moral ou de deontologia:
Depois de um exame atento, não adotar nenhuma idéia que con
tenha, comprovadamente, qualquer traço de vingança. O ódio às ve
zes passa por pensamento, mas sempre o amesquinha;
Jamais lançar-me na polêmica;
Evitar qualquer pertinência: fugir não só de todos os grupos de
pressão, mas também de qualquer disciplina científica definida, de
um campus local e erudito na batalha global e societária ou de um
entrincheiramento setorial dentro do debate científico. Nem mestre,
portanto, nem, sobretudo, discípulo.
Essas regras não definem um método, mas bem exatamente um
êxodo, uma corrida caprichosa que parece irregular, mas coagida
apenas pela obrigação de evitar os lugares especulativos, garantidos
pela força e, em geral, vigiados por cães de guarda. Um passeio no
campo adota uma trajetória semelhante, inesperada e recortada, uma
vez que você se veja atacado, e logo perseguido sem descanso, de
fazenda em fazenda, por dez molossos que se sucedem e dos quais
você procura fugir.
Dispomos de ferramentas, noções e eficácia em bom número;
falta-nos, em troca, uma esfera intelectual virgem de toda relação de
dominância. Muitas verdades, muito pouca bondade. Mil certezas,
raros momentos de invenção. Guerra contínua, nunca a paz. Só os
animais apreciam a .hirarquia e as batalhas incessantes que a orga
nizam. Faltam-nos homens de intelecto simplesmente democrático.
Definamos esta esfera com a noção de prescrição .
Nenhum conceito tem valor se não for pacífico.
A vingança produz uma justiça aparente, a equivalência distri
butiva do talião. A língua corrente toma uma pela outra, quando
aconselha, por exemplo, a vítima de uma agressão a fazer justiça pelas
157
próprias mãos: rende-te então. O castigo absolve ou redime a ofensa
que uma balança equilibra: este por aquele. Não se diz lei do quan
tum, que suporia uma igualdade na ordem da grandeza, mas lei de
talião, cuja origem latina (tal... qual) indica uma distribuição mais
sutil, qualitativa, essencial: um dente não vale um olho.
Esta invariância vindicativa desencadeia um processo que ne
nhuma razão saberia interromper, visto que a própria razão equivale
à reparação plena e integral, satisfazendo o ofendido que exige razão
da injúria e a obtém. A causa plena se encontra, em quantidade, em
qualidade, no efeito inteiro: lei racional, tanto da justiça como da
mecânica. Isso é suficiente: a injustiça consistiria em um excesso ou
uma falha na reparação. Aquilo que chamamos razão: de modo al
gum igualdade quantitativa, mas proporção exatamente adaptada
aos queixosos e à queixa; consideram-se os pesos colocados nos dois
pratos da balança, mas também as relações de comprimento sobre o
travessão da balança, que fornece assim a justiça estrita.
O princípio da razão ou, antes, de dar razão (principium red
dendae rationis) não funciona de outra forma: nada, diz ele, existe
sem ela. Este nada vem de res, termo do direito romano que designa
o caso judicial que um processo debate e decide: a causa. Antes de
significar causalidade, esse último termo refere-se à acusação. É pre
ciso dar razão, como em uma reciprocidade, como se ela viesse em
segundo lugar. Nada sem razão ou nenhuma coisa sem causa expri
mem menos absurdo ou contradição que um desvio de equilíbrio na
balança da justiça: a esse nada, a essa coisa, como que suspensos no
ar, sem apoio, é preciso, como compensação, acrescentar ou subtrair
uma tara que recoloca o travessão no horizonte, a tara na razão. Nós
não sabemos pensar uma coisa isolada, pendurada sem ligação ou
flutuando sem gravidade: o verbo pensar, ele próprio, deriva de pen
der e da pesagem, desta compensação. Como pensar sem a compen
sação, sem a tara racional? Assim a razão dá justiça à coisa, assim a
causa lhe dá razão. Eis um princípio que deve se chamar de equivalência, ou de
eqüidade.
158 1
Que exista, igualmente, alguma coisa em lugar de nada ou isto,
qualificado tal qual, em vez de aquilo. Eis dois enunciados que des
crevem dois desvios de equilíbrio para os quais se requer, contra a
injustiça, uma tara que os devolva à posição justa, horizontal e plana.
O que colocar no outro prato para redimir os danos feitos a esse nada
que não chegou à existência e àquilo, qualificado diferentemente, que
ficou na virtualidade ou em mundos possíveis? Compensando o pos
sível ou o nada, a razão justifica a existência do que é. Medida ou
pesada com esta alna, a existência, cujo nome, inquieto, indica ainda
um desvio do equilíbrio, equivale à razão acrescentando-se ao nada,
rigorosa equação. Inversamente, a igualdade matemática se reduzirá
também à lei de justiça?
Então, a que chamamos pensar? Compensar o que não é por um
recurso da razão, usar a tara racional entre a existência e o nada ou o
possível, como se a razão estabelecesse a relação do ser com o não
ser, ou justificasse o que é, a partir do que não é. Ela aflora, então, a
uma criação quase divina e supõe uma familiaridade mortal com o
nada ou o possível. Esse pensamento racional, essa pesagem ou pro
porção compensatória preenchem exatamente a ausência ontológica.
A razão vinga o nada.
Dando eqüidade à existência, o princípio de razão põe a ontolo
gia sob a lei universal do direito. Preenchendo a ausência ontológica,
a razão faz com que a ciência inteira, que dela decorre, decorra do
equilíbrio justiceiro.
InventGt do princípio da razão suficiente, Leibniz chama leis de
justiça as regras de invariância e de estabilidade, pelas quais se com
pensam as coisas e os enunciados. Esta razão reparadora conservará
na ciência ou no racionalismo algum traço do talião vingador?
Por que chamar de justos, no sentido judiciário, na astronomia
medieval ou renascentista, os equilíbrios longos do universo ou a
economia, entendida como legislação positiva do mundo físico, jus
teza ou justiça, aparecendo através das invariâncias ou estabilidades,
159
voltas e compensações circulares do tempo cósmico? As leis da natu
reza, reduzidas a tais harmonias, se reportam ao princípio da razão
suficiente. Dar ao fenômeno a sua razão consiste em compensá-lo,
tornando-o, desta forma, pensável. Núcleo de vindita pública no
mundo e no pensamento, ou sua ordem respectiva?
A invariância distributiva da vingança desencadeia um processo
que nada, sem razão, poderia deter: assim os equilíbrios longos do
mundo se contam ao longo do retorno eterno. Ao obter razão da
injúria, o ofendido inflige ao ofensor um dano exatamente igual e de
natureza equivalente, para fazer deste último um homem mestiço e
ofendido, exigindo, por sua vez, o equilíbrio ou razão suficiente: a
vendeta não cessa e a história conspira e consente na volta ritmada
das constelações assim como das regras do pensamento submetido à
pesagem. Tudo está em ordem: o cosmo e o tempo soam, trazendo a
hora das compensações. Eis o motor imóvel de nossoS movimentos, a razão no mundo e
na história, gêmea da vingança e imitadora de suas compensações ou
reparações, como os doutos que cultivam o pensamento nas paredes
da sala de aula imitam os moleques que brigam no pátio quando toca
a sineta. Do nosSO lado, nós, racionalistas avançados, iluminados pelas
leis mais profundas que reinam sobre o mundo dos átomos, chama
mos tudo isso, às vezes, de equilíbrio do terror. Sempre é a mesma
ordem que governa o mundo. A vingança e sua aparente justiça, fundando o retorno eterno,
guardam intacta a memória integral da razão exata, pelo tempo re
versível e cíclico. Elas ignoram a duração, esse tempo irreversível, que
segue numa direção sem jamais poder voltar atrás. No espaço da
duração sobrevém o esquecimento, onde a anamnese jamais restitui
nem compensa a memória exata ou intacta, jamais o efeito integral
vale pela razão plena e inteira; esse tempo novo traz uma falta à
suficiência, uma falha ou um excesso da razão.
E novamente as teorias políticas da tradição ou as ciências atuais
160 l'
dos jogos e estratégias mergulham em um tempo passivo e não em
uma duração em que todas as coisas mudam. Elas permanecem no
tempo do retorno eterno, o confortam e talvez mesmo o produzam.
Esta falta, excesso ou falha recebe em direito francês o nome de
prescription (prescrição).
Ela se define, no direito civil, como meio legal de adquirir pro
priedade através de uma posse não interrompida e se denomina aqui
sit6ria, neste caso, ou de libertar-se de um encargo, por exemplo uma
dívida, quando o credor não exige a execução; chama-se então ex
tintiva ou liberatória. Em direito penal, conta-se um prazo para a
expiração, depois do qual a ação pública nada mais pode empreender
contra o criminoso ou o delinqüente.
Em suma, a prescrição admite a ação essencial do tempo. O usu
capião vale como direito de propriedade, como se a duração, por si,
apagasse os direitos de qualquer outro, em particular os do eventual
predecessor. Da mesma forma, quando o credor não pede nada e a
promotoria pública não ataca ninguém, o tempo, por si, suspende a
ação ou a modifica.
O tempo passa e não corre de modo passivo; aO contrário, ele
esquece ou apaga os atos. Ele não volta para pedir razão. Ligada ao
retorno eterno e às invariantes estáveis, a vingança volta, astronômi
ca, como as constelações e os cometas.
Diz-se que o rio Esquecimento corre nos Infernos: a prescrição o
traz para a Terra, cujos filhos, sentados à beira dos riachos, perdem
com freqüência a memória ao mesmo tempo que a razão. Não há
mundo mais atroz do que este onde a natureza se entrega ao retorno
eterno e que empurra para os Infernos o esquecimento e o perdão. A
prescrição o inverte ou o repõe sobre seus pés: real e doce, o mundo
onde os rios correm para os estuários do esquecimento e que empur
ra para os Infernos a verdade recorrente: a aletéia, congelada, não
corre jamais.
No fato físico, quando os planetas voltam sobre si mesmos, a
erosão já os gastou um pouco, e as gigantes vermelhas do céu explo-
161
dem com o advento de sua supernova. As grandes invariantes deri
vam, o mundo perdeu o retorno eterno. . Em posição mestiça c:;ntre o direito e o não-direito, a prescrição
cai, por definição, no domínio irreversível da história e opõe seus
lapsos de tempo, de um ou trinta anos, às regras invariáveis e invio
láveis. Mais do que limitá-las, anulará então as leis em vigor envol
vendo os encargos, as dívidas, a propriedade, oS delitos e os crimes.
De repente, tudo se passa como se tu não devesses mais nada, como
se jamais tivesses roubado ou matado, o tempo te inocenta, como um
rio batismal. A prescrição traça na direito o limite do não-direito, sua
fronteira do lado da história. Esta, como sabemos, apaga os traços,
subtrai os restos, rói os atos e os feitos, esquece e acaba por se calar,
assim como o tempo zomba do princípio da contradição.
Por seus códigos e seus textos, o direito é parte integrante da
memória do computador social. Ele se empenhou em construí-lo.
Luta contra a erosão da história. Eis por que seu emblema desenha
uma balança, ao mesmo tempo pela simetria do espaço, a equivalên
cia dos encargos e o retorno regular do tempo. Eis por que, do lado
da vingança, ele continua racional. Eis por que sempre se manteve
mais ou menos ligado, do outro lado, em seu limite ou fronteira do
lado do intemporal, com o direito natural, que, justamente, se diz
imprescritível. Neste marco, o tempo não tem, por si próprio, qual
quer ação, e a razão, estável diante desse tempo passivo, continua
invariante à sua passagem. Com dificuldade, heroicamente, o direito se mantém entre duas
zonas, duas tentações: uma ocupada pelo direito natural, universal e
invariante, não escrito e portanto imprescritível, intemporal, e a ou
tra invadida pela história e pelos esquecimentos multicoloridos de
seus trapos. Segundo as épocas, em suma, de uma borda ou da outra,
em relação ao direito máximo ou ao não-direito, alguns falariam da
razão rigorosa ao caos, outros de um fantasma idealizado à apreensão
complexa do concreto. Assim como repusemos o tempo sobre a Terra e sobre seus pró-
162
prios pés ao inverter o antigo mapa-múndi dos Infernos e do globo,
pois de tudo receber o rio Letes acaba escoando como o Amor e seus
esquecimentos, assim também é preciso inverter esse espectro de
ponta a ponta, para que a prescrição se torne a única lei universal e
imprescritível. Só existe invariante sob a condição de jogar-se no
variável; é nos movimentos que mais pensamos os equilíbrios.
A razão vinga o nada e a ciência racional conserva em si traços
desse direito primitivo, dito natural, sem se interrogar sobre essa
natureza que permanece alheia à obra do tempo. Para os direitos os
mais positivos, nossos atos mergulham no tempo, mas para a prescri
ção, eles se fazem e se formam de tempo, sua verdadeira matéria
prima. A duração os amarra, os exalta, os desata, os apaga. Ela os faz
nascer e desaparecer. Eis chegada a natureza: o que vai nascer, sim ou
não. A natureza corre ou escoa de bifurcações a bifurcações, de con
fluentes turbulentos e vivos a braços de rio mortos e esquecidos, do
esquecimento a recordações e de memórias a perdas totais. Ela não
pode passar nem por definitivamente estável nem por loucamente ou
irracionalmente instável.
Assim como faz nossos atos, o tempo real faz o direito e, se o faz,
também o desfaz, e isso é o natural, que vai nascendo ou que se
arrisca a não nascer. Ele faz o direito, o conforma, o transforma e
portanto o fundamenta. A jurisprudência, flutuante como se sabe,
cria o direito do lado da história, mas o direito o reconhece ao reco
nhecer a ação do tempo, pela prescrição. Eis a abertura do direito pa
ra seu próprio fundamento, isto é, para o direito que, como os Anti
gos, chamo de natural, ou seja, para a natureza física. Fazendo-o
variar, anulando-o, a prescrição, entretanto estável, o fundamenta. O
direito natural, no sentido mais profundo do termo, não se encontra
então do lado onde se esperava, mas do outro, separado do primeiro
por toda a formidável imensidão do céu. A prescrição faz parte do
direito natural; com isso, fundamenta o direito; com isso, permanece
imprescritível. O único ato que não podemos apagar nem anular é o
ato de anular ou de apagar. Não se esquece o esquecimento, ato de
qualquer forma inesquecível.
163
Isso se refere ao direito, mas também à moral, à política e à
teologia: o perdão fundamenta a ética, a clemência fundamenta a
potência, a retenção ou misericórdia cobre a justiça e desce sobre o
destino.
Como o termo indica, e como significava no direito romano, a
prescrição é escrita no começo, como preâmbulo ou preparação, co
mo epígrafe de todo texto. Quando você escrever pela manhã, muito
cedo, sobre teoria ou literatura, direito, ciência, matemática ou
amor, saiba que antes da página em branco, na sua margem superior,
a prescrição o precede sempre. Por definição, ela só existe antes. Es
crita no alto da página mas dela apagada e deixando-a intacta, livre,
virgem, branca, inocente. Em posiçãO mestiça: inscrita, retirada.
Depois de dois milênios, pelo menos, cada um se lembra mas
todo mundo esqueceu que os samaritanos tinham o pior dos papéis,
como inimigos execráveis, implacáveis, irreconciliáveis. A parábola
do Bom Samaritano enuncia uma contradição: um homem assim
não pode passar por bom. Todo mundo se lembra, cada um o esque
ceu: a prescrição existe mesmo e conseguiu vencer. Ela pede o esquecimento, mas já escreveu a memória, pois dei
xou seu traço. Ela se lembra como escrita, mas prescreve esquecer.
Ela nem equivale à conservação nem se identifica à perda total; in
venta novamente, de forma mestiça, a memória-esquecimento, a
recordação conservada ao abrigo mas ao mesmo tempo apagada, in
telectualmente invariante dentro da caixa negra da história, mas pas
sionalmente, existencialmente, historicamente, sabiamente perdida:
nova invariante por variações, estabilidade por instabilidades, fun
dação do direito muito mais forte que o morno retorno eterno, imó
vel como um saco de chumbo ou tilintante como uma sineta.
Para não escrever senão na beleza ou no amor da sabedoria, só
escreveremos filosofia por prescrição.
Quando. se puder ler sem escândalo uma narrativa em que o
homem mais abominável se conduzirá depois como o melhor, então
164
o Messias voltará. Mas ele já chegou, pois escreveu esse texto do qual
eu não sou o autor.
Eu. Noite
o autor? Quem é ele, quem sou eu?
Admiravelmente indicado, o sujeito, pudico ou aterrorizado, se
encerra, se esconde, se lança por trás ou por baixo da sucessão de trajes, jogado sob capas e casacos, inencontrável como Arlequim,
cujo desfolhamento sempre e em todo lugar mostrou a mesma coisa,
com algumas pequenas variações, do colorido, caso se trate da roupa,
da pele, do sexo ou do sangue, finalmente da alma - minh'alma de
mil vozes que o deus que adoro pôs no centro de tudo como um eco
sonoro -, cujas facetas justapostas, como as de um cristal ou de um
olho de mosca, refletem, embora íntimas, a multiplicidade ruidosa
dos acontecimentos externos, como se o número destes correspon
desse ao das paredes interiores que os emitem. Pode-se procurar mais
longe? Um comparativo: o interior no superlativo: o íntimo? Existirá
o mais íntimo ainda? Aquilo que jaz por baixo se parece sempre com
o que se pode ver na superfície?
Na falta do sujeito, posso dizer o adjetivo. Se o primeiro se joga
por baixo, a menos que outros não o joguem, o segundo é jogado de
lado. À pergunta "quem sou eu?", ou substituo pela pergunta "quem
é ele?", ou o pudor exige que eu procure s~mpre responder de lado.
Portanto, com alguns adjetivos.
Quem sou eu? Dizem que sou gentil, adjetivo muito apreciado
em meu pa~, onde se amam as velhas palavras de nobreza, gentil,
portanto atencioso, flexível e adaptado, cortês. No outro, logo adivi
nho as qualidades, positivo, e abro um sorriso, mas não sei suspeitar
dos vícios, ingênuo. Rapidamente os adjetivos superabundam. Apre
cio de bom grado o encontro, deixando galhardamente a oportuni
dade à contingência, confiante. Tímido ou temeroso, parece, não
desconfio, pode-se então dizer corajoso? Minha estima inicial pelo
outro, que o encoraja e freqüentemente o fortalece, me faz sempre
165 I· ,
colocar o comando acima de mim, aliás de saída acho-o melhor que
eu: generoso? Talvez, mas eis que de repente des·cubro que me jogo
por baixo, e por isso eis-me um pouco sujeito; no mínimo subjugado.
Defino o eu através dos contatos, das vizinhanças, encontros e rela
ções: sim, na comunicação eu me construo, jogando-me imediata
mente sob quem está à minha frente. Afinal sujeito? Mas me dou conta: a palavra sujeito também já não foi um adje
tivo, que tardiamente se tornou um substantivo? Primeiro depen
dente, submisso, coagido, exposto, exatamente obrigado como eu
poderia dizer à pessoa com que falo: agradecido, obrigado ... antes de
se tomar como ponto de partida de um enunciado lógico e gramatical
no qual esse ser individual torna-se uma pessoa e o suporte de atos e
conhecimentos. Adjetivo tão menosprezado que exprimia o dócil e o
obediente e que, de súbito, tomou o lugar principal e, ao substanti
var-se, expulsou os outrOS adjetivos para fora do centro no qual, em filosofia, sua majestade passou a reinar? Deve-se reconhecer, no su
jeito, um sujeito que teria tomado indevidamente o lugar central, um
rei de comédia, como Arlequim, Imperador da Lua, ou de tragédia e
então supliciado, crivado de flechas no centro? Quem sou, então, quando assim me jogo por baixo? Admirativo,
até entusiasta daquele que se revela inventiva e bom, respeitoso de
quem trabalha, surpreso com o generoso, violentamente desobedien
te com quem ordena e troveja ou dita a lei, docemente irônico diante
do pavão, comovido pela beleza do corpo ou do talento, gelado para
com a grandeza do estabelecido, depressa rompendo com o vaidoso,
apresento minhas homenagens às criadas; por nascimento pertenço à
família dos humildes e raramente me curvo diante da alta roda, se
gundo o personagem e o ambiente, eloqüente, taciturno, falante, ca
loroso, reservado, ausente ou totalmente entregue ao outro. Quem
encontraste então, tu que me amas ou me odeias, para quem me
torno hostil ou indiferente? Um homem jovial ou modesto, selva
gem, distraído, ao contrário, concentrado ... Afinal, tudo é verdade: diga-me, eu lhe peço, o que se deve en
tender por mentira? A relação produz a pessoa, não acredito absolu-
166
tamente nas máscaras. Enterrado, lançado vivo sob o "nós" movedi
ço da intersubjetividade, o eu, como se diz, faz o que pode: se adapta,
assujeitado aos laços da comunicaçãO. Mestiço, cruzado, hermafro
dita, ambidestro, tatuado, vivo sob mil camadas de casacos remenda
dos, posso me desembaraçar delas sem problema, isto não muda
grande coisa. Não acuse de máscaras os perfis que os outros dese
nham em mim.
Servidor de mil amos, Arlequim se veste de seus súditos-especta
dores, porque ele vive entre o público e faz parte dele; eis porque é
apenas um imperador de comédia, enquanto Salomão, exterior e dis
tante, sobrecarregado com sua loucura solar, torna-se um verdadeiro
rei de tragédia. Em chamas, o trágico, sozinho, forja a unidade da
pessoa ao mesmo tempo que as de ação, de lugar e de tempo - o
sujeito do próprio saber, pelo menos no Ocidente, se fundamenta
nesse trágico -, ao passo que o cômico as deixa em sua multipli
cidade. Assujeitado a seus sujeitos, o Imperador da Lua usa as cores
e os fraques deles. Implacavelmente, reconheço o teatro essencial do
doente mental no trágico ator solar: o comediante, normal, se encon
tra em toda parte.
Quem sou eu então?, pergunto novamente. Solitário e social,
tímido e corajoso, humilde e livre, ardente, penumbroso, animal da
fuga e do amor, nunca uso pó-de-arroz nem maquiagem, nem más
cara sobre o rosto, nem título sob minha assinatura ou no meu cartão
de visitas; sinto a roupa sobre a pele como um homem nu recoberto.
Sou por demais numeroso para jamais ter precisado mentir.
Sou então, na realidade, todos aqueles que sou dentro e através
dos relacion-amentos sucessivos ou justapostos nos quais me vejo em
barcado, produtores do eu, sujeito adjetivado, sujeitado ao nós e livre
de mim: que o leitor por favor me perdoe: s6 falo de tudo isso (de
mim, de verdade?) para procurar com a maior lealdade do mundo o
que é dele. Então o eu é um corpo mesclado: constelado, manchado,
zebrado, tigrado, ocelado, mourisco, ao qual a vida vai se ajustar. Eis
que volta o casaco de Arlequim, costurado por adjetivos, quero dizer,
por palavras colocadas uma ao lado da outra.
167
Assim o infeliz desperta em mim o velho cristão de sono leve,
e dele faz nascer um novo, sobre um monte de palha, o poderoso pa
ra ali conduz ° antigo cátaro, sempre presente, embora um autên
tico holocausto os tenha erradicado a todos - não tenho mais bisa
vós _, o dogmático empedernido ergue o zombeteiro que dorme e o
tolo desperta o inextinguível riso dos deuses, o violento suscita o
pacífico, e a beleza faz todos eles se ajoelharem. Serei então, por causa do relacionamento, um palco, um perfil
fugaz apagado diante de um horizonte decepcionante e mentiroso?
Não, eu sou a soma desses adjetivos, recém-substantivados (assim
comO se diz dos noVOS ricos), a iconografia dessas silhuetas, integral,
inquieta e flutuante, mergulhada no ruído e na disputa, no meio das
gritarias, no caos dos parasitas que gravitam em torno desse eu, exí
lio banhado no dom dos choros, tórax afogado sob um lago de lágrimas, uma total solidão líquida, em estado instável, solução sem
exclusão onde o fluxo do abandono de repente atravessa o espaço
variável da coragem, onde a camada aI1).arelada do despertar se es
garça e se lança nO volume negro dos esquecimentos, onde alguns
jatos súbitos de orgulho se fundem sem amanhã numa enseada de humildade oleosa ... Sim, os adjetivos mergulham por si mesmos uns
dentro dos outros e brincam sem parar de sujeito: aglomerado onde cada qual a seu turno e às vezes todos juntos vão para o centro, mas
onde eles ocupam todos os lugares e todas as direções do espaço,
todos os sentidos. Quem eu sou, a partir daí, se exprime sem dificuldade: uma
mistura, um aglomerado bem ou mal temperado, exatamente um
temperamento. A palavra dizendo a própria coisa, eu sou, conse
qüentemente, feito de tempo, deste tempo derivado da temperatura
ou da temperança. Como ele, a mistura é contraditória: de ontem até
amanhã, tudo pode virar ao contrário; ou, nO mesmo lugar e no
mesmo tempo, tudo se mistura. Contraditórios, a mistura e o tempo o são, como minha alma,
nebulosa, variável, ondulante, nuançada, aquitânia. Minha alma, a mistura e o tempo não podem ser ditos nem por substantivos, dema-
168
siado estáveis, nem por adjetivos, demasiado justapostos, mas se des
crevem de modo mais preciso pelo conjunto de preposições: antes e
depois constroem sua fluidez viscosa, com e sem as partilhas hesitan
tes, sobre e sob o sujeito falso e verdadeiro, para e contra as paixões
violentas, atrás e diante das hipocrisias covardes e as corajosas leal
dades, dentro e fora das claustro fobias corporais e teóricas, sociais e
profissionais, entre e além da vocação metafísica de arcanjo-mensa
geiro, de e através e até minha paixão por viajar ... topologia delicada
que exprime da melhor forma os lugares e as vizinhanças, os dilace
ramentos e as continuidades, as acumulações e as raridades, as posi
ções e as situações, os fluxos e as evoluções, a liquidez dos solventes
e dos solutos.
Não, eu não sou um problema; ao pé da letra, sou uma Solução.
E não tolerarei escrever títulos em meu cartão de visitas, a menos que
por isso se entendam as diversas relações das substâncias que se dis
solvem nela, suas densidades na liga. Quem sou? Uma fusão de ele
mentos que formam a liga, mais capazes de provocar coalizão do que de estar coalizados.
De temperamento aquitânio, portanto temperado como o clima
de minha paisagem natal, melancolicamente alegre, entusiasta e de
sesperado, com nuances suaves, em doses instáveis e teores móveis,
segundo o minuto e os bons e maus encontros, qualquer parte ou
suspensão podendo de repente ver-se erguida, levantada, acordada
ou destacada sob o facho cruzado das circunstâncias ou das inter
secções, pela exigência súbita de uma relação poderosa e pontual.
Uma espécie de pseudópode se projeta. Ele se estica. Ele se retrai.
Quem sabe, --nunca mais reaparecerá. Ou vai se tornar um axônio.
Que inventarei esta manhã, sob a ação de que talismã? Que proprie
dade inédita surgirá desta nova mistura? Que fresca Afrodite nascerá,
gotejante, desta centrifugação inesperada?
Legião, eu tenho um oitavo de sangue negro. Carrego portanto
em mim, no mais íntimo de mim, ia dizer por baixo de mim, o
andrajo compósito dos tecidos que vestem minha vizinhança real e
169
virtual, o trapo onde mal se justapõem mil mímicas que o meu tempo
costurou e depois fundiu todas juntas, farrapo destroçado, é verdade,
mas farrapo transformado em minha própria carne, meu sangue lí
quido misturado: quebequense da ilha dos Coudres no meio do rio
Saint Laurent, africano das margens do Níger, chinês do Yang-Tsé,
brasileiro, de Belém aos confins da Amazônia, os adjetivos locati
vos por sua vez superabundam, meu sangue corre sob as margens
do Garonne, do Mackensie e do Yukon, minha carne sai do alu
vião do Garonne, do rio Amour, do Ganges e do Nilo, eu descendo
do Garonne, do Huang, do Elba e do Mississippi, vim à luz nas nas
centes do Garonne, do Tibre, do Pactolo e do Jordão, marinheiro de
mar na confluência dos rios da Terra, meu cartão de visitas é pareci
do com os meus encontros, com um mapa geográfico. Mestiço, eu
sou legião, eu não sou o diabo, eu sou mapa-múndi e todo mundo ao
mesmo tempo.
E todo mundo, creio, é uma mistura como eu, sangue cortado
em mil teores e partes, correndo de todos os riachos em conjunto,
exceto, talvez, daqueles que leram e acreditaram nos livros que expli
cam o princípio de identidade, cuja abreviação permite reinar. Mun-.
do, eu sou legião; não, isso não é uma doença.
Nunca os africanos acreditaram que eu era um toubab; os chi
neses me imaginavam saído de uma minoria nacional qualquer, por
toda parte imigrado mais que emigrado; um índio da América che
gou a me perguntar, durante um pow-wow, a que tribo eu pertencia.
Creio, no fundo de mim, que a pertinência faz mal ao mundo, na
razão da exclusão. Eu a trato pela intersecção de cem mil pertinên
das, mestiço.
Camponês, sim, aprendi a trabalhar a terra; merceeiro, vendi
azeite e sal; marinheiro, decerto; quebrado r de pedras e pedreiro,
terei feito outra coisa do curso de minha vida; vagabundo, talvez;
monge, certamente; eis que há pouco tempo me tornei montanhês
noviço; em busca da santidade, apaixonadamente; escritor, sim, es
pero; filósofo, choro de emoção e de esperança diante da idéia de que
poderia tornar-me um ... Sim, todos, eu os compreendo a todos.
170
_.
~
Que eu não sou? Touro, serpente, lince, cão, lobo, gaivota? Sou
e compreendo toda a arca. Do dilúvio fluido e da aliança derretida.
Que animal não me serviria de totem? Raposa? Não, eu vivo como
um animal sem espécie. Sem gênero, sangue misturado, sem per
tinência: livre, livre, no espaço irisado de misturas, animal de tempe
rança e de temperamento, ser de tempo.
Quem sou eu, líquido, entre as lágrimas ocultadas? Quem sou
eu, topológico e temporal? Quando o silêncio, enfim, e a noite insu
larizam a solidão, quando se cala a língua que mantém a guarda
contra os outros em mim - como amordaçar o bico desse tagarela
irremediável? - erguem-se as vozes, a tonalidade musical funda
mental que me acompanha desde a mais alta infância, contínua sem
ruptura, ruptura contínua, armação ou armadura que me contém e
cuja tessitura indica minha modalidade própria, sons puros privados
de sentido, eu sou, eu ouço a flauta e q violoncelo, a balada e o canhão, a mandara e a tuba, viela e rabeca, as serenatas e os balés,
cavatina e rigodão, soprano, baixo cantante, em mim carrego os
grandes órgãos, minhas delícias e amores: bordão, nasardo e flauta
rústica. Mas, novamente, essas peças ou instrumentos se misturam,
às vezes em harmonia, com freqüência ruidosas, lamentando-se sem
pre, desordem, charivari, acúfenos atonais de onde emergem rara
mente as Afrodites gotejantes dos achados musicais. Ou um puro grito de dor.
No fundo do fundo jaz e se move a música, fluxo e rio homogê
neo e turbulento, que leva e é levado pelo tempo; no fundo do fundo flutua o ruído de fundo.
Ali eu me lanço no mundo das coisas, que se lança sobre mim.
Eu: barulho violento. Eu: nota longa. Eu: pronome, quando a
língua, enfim, se mistura às misturas, para esquecer, única mentira
verdadeira, e apagar a multiplicidade das peças. Eu: terceira pessoa,
cada um, os outros, todos, aquilo, o mundo, e a terceira pessoa im
pessoal das intempéries temporais: chove, chora, venta ... e se lamen
ta; troveja, grita ... música, ruído; de repente, é preciso, e eis-me aqui,
ético, reunido, de pé, no trabalho, desde a madrugada.
171
A filosofia clássica aconselha passar os modos e atributos, cir
cunstâncias, para a substância; os adjetivos, volúveis e inconstantes,
para o substantivo estável e fixo: mas a palavra sujeito, eu já disse, foi
um adjetivo antes de se transformar em substantivo. Trapaceiro! Dir
se-ia que o volúvel, depois de ter vivido, se fixou.
Ao ouvir ou compor variações sobre um dado tema, você às
vezes não se pergunta se o próprio tema não se desenvolve como uma
variação entre outras? Mais simples, sem dúvida, mais puro, mais
curto, decerto, mas por que separá-lo delas? Há tanta distância entre
essas últimas quanto entre elas e o tema, que nada impede, então, o
que chamo de variação sobre uma das variações. Por que o prejulgar
mais estável e mais bem centrado do que a elas? Sim, o tema é apenas
uma das variações.
Da mesma forma, o rei também é um sujeito, um homem entre
tantos outros, dois pés, dez dedos, no melhor dos casos, e seus pontos
de apoio sobre a mesma terra que eu. A prova é que, desde que a
guilhotina o acolheu, todos os seus sujeitos de outrora, com raras e
sábias exceções, sonham em tomar o seu lugar ou o preparam para
receber o rei temporário, que não deixa de ser sujeito, e mais ainda
que os primeiros, no sentido político, uma vez que o número de
atentados dirigidos contra ele ultrapassa de muito o número daque
les tramados contra seja quem for. Ei-Io derrubado: deve saber que
deve seu lugar de rei ao fato de ser o mais sujeito dos sujeitos.
Adjetivo substantivado, tema-variação, rei-cidadão; assim, tam
bém o sol central é apenas uma estrela marginal, anã amarelada e
medíocre, sem verdadeira grandeza, no imenso concerto das super
gigantes, vermelhas como Betelgeuse ou azuis como Rigel. O rei Sa
lomão, de volta entre nós, diria: nada de novo sob a galáxia do Cisne?
Já faz muito tempo que a revolução astrofísica nos ensinou a não
mais centrar ° céu nem o universo. Ouve-se até dizer que o ponto
original do big bang não teve lugar nem tempo.
Assim, o centro não é senão uma colcha de retalhos, conjunto
numeroso de peças compósitas. Ao Imperador da Lua, você pede que
172
'I
T I
se dispa para mostrar o que esconde: ora, ele não dissimula nada.
Tudo é de fato sempre e em toda parte como aqui, com graus de
grandeza e de perfeição próximos; quero dizer que tudo é casaco de
Arlequim, mesmo a substância, mesmo o tema, mesmo o sujeito,
mesmo o eu, mesmo o sol, meSmo os substantivos. A singularidade se
dispersa, a unidade se multiplica.
Mesmo Deus? Mas não é ele um dos segredos que eu desvelo:
único e triplo, múltiplo, adjetivo e substantivo, divino e divindade,
rei e sujeito, supergigante em sua glória central e anã perdida em um
estábulo da periferia, universal e singular, lei criativa, encarnação
trágica prestes a morrer, terceira pessoa por toda parte propagada?
Absurdo, impossível, inadmissível: não ousei dizê-lo; não, nunca
tive a coragem de expor aquilo em que creio.
Antes de tudo: não sei se creio, ignoro o que é crer, não sei que
pensamento, que ato ou que sentimento acompanham a crença ou a
fé. Sei, um pouco, o que é saber, eu sei o que sei, quando sei, como fiz
para sabê-lo, conheço a ignorância e a dúvida, a procura e a pergunta,
conheço o conhecimento, sua felicidade e seus objetos, seus cami
nhos múltiplos, sua busca entusiasta e seus dese!tos, sua profunda
humildade, seu esquecimento raro e necessário da razão dominado
ra. E reconheço o que sinto, arrumado para sempre dentro da caixa
preta do pudor. Será à mistura de um conhecimento incerto e de um
certo patético largado o que chamamos de crença? Não sei. Ou sei
que isso me é indiferente. Que me importa conhecer de onde vem
aquilo que JlOU ousar dizer: já estou bastante velho, quer dizer, bas
tante forte para ter a coragem.
Não sei se creio em Deus. Sei que com freqüência não pude crer
em Deus: sou ateu em três quartos da minha duração. Contudo, por
fulgurações intermitentes, sei que o divino está aí, presente, na mi
nha vizinhança, e que ele reina sobre o universo. Reinar, aqui, não se
refere absolutamente a um rei, mas a este modo de construção de que
fala um ladrilheiro quando diz, a propósito de um ladrilho hexagonal
173
e vermelho, que ele reina em todas as peças de uma mesma casa. Por
toda parte no universo, o divino constitui o tecido, outros diriam a
lei, eu prefiro descrever sua matéria ou sua carne. Disto tenho certe
za, não agora, mas às vezes, raramente, de maneira extática. E quan
do a longa ocultação se sucede ao breve raio intuitivo, eis-me certo de
que Deus não é: hipótese envelhecida e desnecessária. Talvez então
ele me abandone, sem dúvida me danando, relegando minha inteli
gência a esta miséria. Deus nos terá abandonado a todos depois do
dia não muito distante em que nós o abandonamos?
Eu não creio, eu creio: isso não se decide, isso prossegue. Des
crente místico, minhas raras certezas mergulham na morna incredu
lidade. Ou durante os instantes em que creio, eu creio no Deus único,
muralha contínua do universo, fundamento, fundação e cumieira,
presença inevitável, vizinhança constante e sentido ... mas não posso
deixar por muito tempo os bosques sem hamadríades, o mar sem
sereias e as guerras das nações sem seu sagrado horror, as cidades sem
os templos da diferença e suas habitações sem os manes dos an
cestrais: o ar se povoa de arcanjos que passam, de mensageiros in
contáveis; sim, eis-me verdadeiramente pagão, o confesso, politeísta,
camponês filho de camponês, marinheiro filho de marinheiro; às ve
zes vi os deuses fugirem quando desembarcava em uma ilha, ou apa
recerem em toda a sua glória, já os escutei zombar, cruéis, abominá
veis, nas encarnações de todas as potências, ouvi muitas vezes as
legiões de demônios soltos no trovejar dos canhões, sim, fui aterrori
zado pelo próprio diabo - quem não percebeu seu corpo monstruo
so desenhar-se, real, por trás das nuvens do clarão atômico? -, mas
vi também passar uma deusa clara entre os sorrisos, palavra de filó
sofo, eu Os percebi, e testemunho.
Creio, às vezes, no Deus de meu pai, ateu convertido de chofre
no meio dos obuses no campo de Verdun, creio, freqüentemente, nos
deuses de meus mais velhos ancestrais, sei muito bem, dentro de
mim, que eles enchem o espaço, que eles constituem o mundo, so
bretudo: que eles soldam a sociedade.
Desde Nagasaki, sinto-me cada vez mais seduzido por minha
174
ascendência cátara: multidão de deuses reduzida a dois, dos quais
um, o do mal, mantém-se como mestre inconteste de tudo a que os
homens denominam poder e glória, a história, enquanto aquele da
bondade se esconde e desaparece na palha de um estábulo, tão afas
tado, comum, apagado, que se torna inacessível. Tudo para o primei
ro, nada para o segundo, desfigurado, derrotado, improvável.
Eu creio, creio acima de tudo, creio essencialmente, que o mun
do é Deus, que a natureza é Deus, cascata branca e riso dos mares; o
céu variável é o próprio Deus: naveguei em Deus, voei no meio de
Deus, recebi sua luz verdadeira sobre as costas nos corredores de gelo
da montanha alta, quando alvorecia, até mesmo já escrevi, algumas
vezes, sob sua inspiração, traçando ingenuamente meu caminho de
humildade sobre a página divina, e, em virtude desse ofício, nunca
cessei de sobreviver por ele, com ele e nele ... mas, acima de tudo, você
é Deus, tu a quem amo e tu que me odeias, tu que passas e que não
conhecerei jamais, vocês que me excluíram, tu de cujos lábios recebi
flores primaveris, vocês, finalmente, que fazem o barulho, o caos de minha vida carnal e categorial...
... mas de quebra eu estou certo, absolutamente certo acima de
toda esperança, de que existe um buraco, uma falha bizarra nesse
panteísmo maciço e denso, uma exceção estranha, fonte de toda dor,
de que eu e apenas eu, nesse concerto divino atravessado de rumor,
não sou Deus; somente esta falha feita do nada não é Deus; novo
sentido, muito agudo, da velha palavra ateu. Aqui, sem Deus. Aqui,
somente, Deus fica ausente. Minha parte do destino é esse lugar de ateísmo.
Tudo é peus, exceto aquele que o escreve, que larga a pena no meio do choro.
o um. O centro. O sol. O tema. A substância. Deus. O nome próprio: Salomão, Arlequim, o autor deste livro.
O múltiplo. A periferia compósita. As estrelas de todas as magni
tudes. As variações. Os atributos, o casaco em frangalhos. Os adjeti
vos múltiplos: gentil, cortês, tagarela, taciturno ... Mais adiante: a
175
mistura fundida, a música, o tempo, o ruído de chocalho que os
moinhos fazem, as almas e o mar.
O múltiplo e a unidade se apresentam, na realidade, como singu
laridades limites em uma variação. Eis aqui uma imagem simples
disso. Suponhamos um mosaico: ele justapõe milhares de elementos
de formas diversas e cores variadas, cujos limites desenham uma es
pécie de rede. Eis o múltiplo: mapa-múndi, casaco de Arlequim, cen
tão de textos diversos.
Seja um quadro pintado a óleo sobre uma tela, representando a
mesma cena que o mosaico: a rede desaparece, as vizinhanças se fun
dem, os elementos, apagados, dão lugar a uma camada contínua de
formas e cores mescladas. La belle noiseuse, obra-prima desconhecida
de um pintor sem nome, faz emergir um pé soberbo de um caos de
tonalidades.
No grafo de geometria correspondente, mergulhado num espaço
homogêneo e isótropo, as curvas se desdobram segundo leis e são
determinadas graças a retas, verticais e horizontais; os pontos não
têm partes, as linhas e os planos não têm espessura: o reino de um
sucede neste caso ao do múltiplo em mosaico e à mistura das cores
líquidas sobre a tela.
Podemos, por um lado, tirar o mosaico do quadro, fazendo re
cortes, depois um jogo de quebra-cabeças ou de paciência a partir de
seus traços, ou região por região. A mistura tende então para o múl
tiplo, partes extra partes. O descontínuo emerge da continuidade, co
mo os números inteiros sobre a reta real. Os elementos fundidos na
mistura se separam bem ou mal. O mosaico mostra os grãos. A rigor,
seria verossímil dizer que se fosse possível ver La belle noiseuse infi
nitamente de perto, encontraríamos nela essa disposição granular.
Pode-se imaginar, ao invés, uma mistura tão infinitamente diluí
da que as cores se esmaeceriam para deixar aparecer a homogenei
dade. Uma gota de mel, um pingo de leite, um pinta de sangue no
mar Mediterrâneo não poderiam perturbar sua cor uniformemente
avinhada. Então as volutas complicadas se simplificam ao extremo,
todo detalhe se anula e os objetos se vitrificam: a aproximação cede
176 ,-I
lugar à precisão, a mescla tende infinitamente ao puro e a pintura à
geometria. Fazendo um balanço, o múltiplo e o um tornam-se singularida
des limites da mistura. Esta não cessa nunca, perma~e}:e ali, nos cerca
e nos banha; talvez devamos chamá-la realidade, que conseguimos
pensar com a ajuda de duas singularidades opostas: seu limite do lado
do um, e seu outro limite sobre as faces do múltiplo, Arlequim ves
tido em seu casaco, Salomão e seu sol. O monismo e o pluralismo são filosofias limites construídas
abstratamente sobre um fundo real de mistura. A primeira o geo
metriza, enquanto a segunda propõe fazer dele um mosaico, recor
tá-lo num jogo de paciência, uma imagem na tela de um receptor de
televisão. Como falar da mistura? Por meio, novamente, das preposições.
Se devêssemos descrever La belle noiseuse ou o casaco de Arlequim,
deveríamos nos abastecer incessantemente em sua lista ou rubrica:
tal cor ou tal forma se encontra dentro ou fora, antes ou entre, além
e contra, sobre ou sob, segundo ou até esta ou aquela outra: eis a
topologia que volta. Ora, existe uma topologia do primeiro grafo de geometria-, uma
do mosaico, finalmente uma outra do quadro. A descrição rigorosa
que ela propõe, ou a que utiliza as preposições, vale portanto para os
três esquemas em conjunto. O que eu queria demonstrar. Mas, para passar da mistura ao múltiplo e deste à unidade, nós
atravessamos um espaço ou um tempo que vibra e treme como a
cortina de chamas iluminando a rampa do teatro onde Arlequim se
despiu. Às vezes percebemos o um, segundo distingamos o múltiplo
ou nos banhemos no aglomerado. Porém, posso descrever ainda, da mesma forma, a dança do fogo
que nos ilumina, por fagulhas contínuas, rasgadas, curtas, longas,
longínquas, vizinhas, sobre e sob, fora e dentro, diante, atrás, após,
antes, além e entre ... O que eu queria demonstrar.
177
Fogo. Imagino uma pirâmide, um prisma, absolutamente trans
parente. Quando a luz branca do dia, ela mesma invisível, mas capaz
de fazer tudo ser visto, se lança a uma face desse prisma cândido, vai
ressurgir adiante num arco-íris de cores fundidas e distintas: não
falta uma sequer. Espectro das estrelas, casaco de Arlequim. Quem
sou? Ninguém, absolutamente falando. Nulo. Tão pálido e diáfano
que perco a existência. Espectro lívido e desfeito, prestes a se dissol
ver no ar. Nada, a rigor. Saído do branco, do invisível, do cândido e
do transparente. Zero. Sólido puro entregue inteiramente à luz, de
onde ela venha, alta e baixa, brilhante, discreta, firme e irregular.
Nenhuma s6 parte de ser, nada além do nada.
Então, tudo. A luz branca sobre a pirâmide translúcida explode
segundo o leque, mais que multicor, da pancromia. Nada, portanto
tudo. Nulo, portanto possível. Ninguém, portanto . todos. Branco,
portanto todos os valores. Transparente, portanto acolhedor. Invisí
vel, portanto produtivo. Inexistente, portanto indefinidamente apto
ao universo. Eis de novo a lei.
Universalmente, portanto, porque o homem não é nada, ele po
de: infinita capacidade.
Eu sou ninguém e não valho nada: capaz portanto de aprender e
de tudo inventar, corpo, alma, entendimento e sabedoria. Desde que
Deus e o homem morreram, reduzidos ao puro nada, sua potência
criadora ressuscita.
Eis porque pude e tive que escrever este livro: porque a apren
dizagem, da qual aí está o fundamento, é a essência branca da ho
minidade.
Tu. Dia
Homenagem. Meu amigo Hergé não queria nome, suponho, porque
assinava com as iniciais de seus primeiros nomes, Rémi e Georges. '*
* R.G., em francês ér-gê = Hergé, autor da série de livros infanto-juvenis em
quadrinhos, cujos heróis são Tintin e seu cão Milou. (N. da T.)
178
Uma sigla assim mostra e esconde que ele começava apenas a ser ou
existir, como uma criança. O pudor libera o essencial e o reserva.
Tintin também não tem nome, nem mesmo um apelido, apenas uma
onomatopéia. Nós evocamos essas duas sombras, nós não as chama
mos pelos nomes.
Quem era então, traço por traço, aquele que alegrou a nossa infância?
Georges era branco: luminoso, diáfano, deslumbrante porém
calmo. Adepto ou inventor da linha clara, * no trabalho, habitava
uma casa de cores suaves e um corpo límpido e puro. Lembro-me
dele como de uma transparência; sua inteligência levitava, e quando
estávamos juntos eu sabia que estava lidando com um anjo. Tintin
parece-se com Hergé, mas sobretudo Raio Sagrado.** Nas altas re
giões do Tibete descobrem-se todas as chaves do segredo: a neve
branca, o monge em êxtase, o amigo perdido e o bom abominável. '*** Não mais malvados sacrificados nem punidos, O mundo atroz de
derrotas e vitórias finalmente aplainado, a grande conversão, exata
mente oposta à que lhe aconselhavam. A linha clara desvela o con
junto de suas incandescências.
Georges, então, ou Hergé, que assinava com um nome em bran
co, amou uma colorista.
Trinta raios convergem para o ponto radial, diz a sabedoria chi
nesa, pois o pequeno vazio bem no meio confere força, coerência e
função à roda. Mais de vinte álbuns das aventuras de Tintin brilham
como uma madrugada a partir desta vida, mas como chamar a luz
cristalina, transparente e branca que deu nascimento - através de
que prisma't:- a essas imagens em que milhões de crianças e adultos se reconhecem já há tanto tempo?
Como encontrar-lhe um nome? Gênio? Sim, entre os notáveis e
as glórias conseqüentes que pude encontrar em minha vida, creio
* Desenho de traço contínuo e colorido uniforme. (N. da T.)
,.,. Raio Sagrado é outro personagem da história. (N. da T.)
*,.,. Referência ao "abominável homem das neves" em Tintin no Tibete. (N.da T.)
179
poder dizer que Georges se destacava como o único gênio verdadeiro.
Cite então uma obra lida continuamente desde mais de meio século
por várias gerações, cada uma delas a relendo, ao mesmo tempo que
a seguinte a descobre. O gênio não é definido apenas por esse reco
nhecimento crescente, mas sobretudo pela relação secreta que man
tém com as duas manifestações positivas da vida: o cômico e a crian
ça. As sobrinhas frescas e o tio de cabelos brancos riem juntos com
Moliére e Aristófanes, que ninguém sobrepuja em força e vigor. Os
altos momentos das culturas começam por essas grandes explosões
de alegria juvenil: a criatividade ri.
Hergé perde nas neves do Himalaia os últimos valores negativos,
de modo que sua obra diz um imenso sim, único e raro num século
que amou, em suas artes e por suas ações, a destruição e as ruínas e
que se compraz na esterilidade. O que anuncia, para nós, crianças até
os 77 anos diante das nossas obras a realizar, este sim ingênuo, nati
vo, confiante, vivo, vital, risonho e novo? Transparente, cândido.
o dominó branco vale por todas as cores, virtualmente: segundo
seja colocado aqui ou ali, ei-Io um, dois ou três. Ele deve esse desem
penho à sua brancura: zero e reunião de todas as cores, esta as con
tém e as apaga, tudo e nada. A luz branca se decompõe no espectro
do arco-íris e o absorve, como a cauda de um pavão se fecha após
formar uma roda. Se você quer se tornar tudo, aceite não ser nada.
Sim. O vazio transparente. Essa abstração suprema e esse distancia
mento equivalem à polivalência. Embranquecido, compreenderás tu
do e estarás aqui, à vontade, peixe, planta, flor, arcanjo ou luminar.
Hergé, assinando com as iniciais de seus primeiros nomes, sem
sobrenome, apenas existente, desenha, primeiro em preto e branco,
um personagem quase anônimo, designado por uma onomatopéia,
redondo como uma lua, a cabeça apenas marcada, sabendo tudo e
podendo tudo, capaz de todo o possível e reunindo em torno dele o
peixe Haddock, a flora Girassol e Castafiore, Serafim Lampião ... O
dominó branco produz e compreende a série de todos os dominós. O
centro criador, a cabeça de Tintin ou o gênio de Georges brilham,
180
J. I' !
incandescentes, como a neve ou as geleiras do Tibete. Trinta raios, o
mundo inteiro, Ásia, América, as ilhas da Oceania, incas, índios e
congoleses, convergem para o cubo, onde a roda inteira recebe coe
são e plenitude, existência e perfeição unicamente do redondo vazio
e transparente do meio, do centro cândido, cabeça de Tintin, alma
angélica de Georges, ar sob os pés de Raio Sagrado, banco de gelo, infância, tudo o que diz sim.
As circunstâncias vitais, encontros, esperas, viagens, mudanças e
ausências, trabalho, labor sobretudo, trabalho massacrante, maciço e
denso, invadindo os dias e as horas, ocupando as noites, deixando o
corpo e a alma ao mal dos tempos, todos os detalhes de uma vida
entregue à obra, convergem juntos, no centro, para um homem, meu
amigo, ao qual faço publicamente testemunho de que, transfigurado
por ela, seu rosto se iluminava como o sol, branco. Como desenhar
seu retrato no meio da rosácea, uma vez que a luz originada dele
produzia todos os desenhos, todos os retratos explodindo sobre o
contorno do vitral, vinhetas múltiplas que nos fascinam desde nossa amarga infância?
E que nos fascinam porque a mancha branca, a cabeça inofensiva
e quase inexpressiva, infantil, indeterminada, de Tintin fura a página
ou abre sobre o quadrinho uma dessas janelas pelas quais, nos par
ques de diversões e nas festas populares, quem quiser sua foto como
herói, vedete ou rei, pode escorregar seu rosto ou seu peito e reapa
recer, do outro lado, num cenário de floresta virgem, de palácio ou
de ópera. Mas pode acontecer também que uma máscara de touro lhe
caia por cima da cabeça e sobre os ombros e que ele se vá, titubeante, com seus acessórios ...
Cada leitor enfia então seu corpo na abertura deixada por essa
ausência branca e diz para si mesmo, evocando-o: Tintin sou eu. O
aventureiro, por sua vez, qualquer que seja seu nome, se identifica
pela mesma razão e participa de mil indivíduos diversos, de todas as
classes, etnias, culturas, latitudes, dos personagens desta enciclopédia
em elipses ou parábolas que faz de Hergé o Júlio Verne das primeiras ciências humanas.
181
Remontando dessa multidão, agitada e suave para seu animador
ou seu criador, ascendemos à luz clara e calma, quase ausente, da
qual uma série de transparências produz, em troca, as espessuras.
Quem já andou por Shangai, o Tibete, a Escócia ou o Oriente
Próximo não pode deixar de dizer: reconheço esta paisagem que se
parece estranhamente com a que vi na minha infância através dos
olhos de Tchang ou do filho do emir. Como pode ser que, bloqueado
pela guerra em uma volta do Garonne, eu tenha viajado tanto, apren
dido tantas coisas sobre os homens? As coisas viram pelo avesso,
como por encanto: o mundo imita os quadrinhos memoráveis, os
modelos refletem a imagem, a vida passa a seguir os sortilégios da
arte. Existem até mesmo aqueles que não lançariam um olhar sequer
para as flores do campo, se antes não tivessem visto papoulas num
quadro qualquer de Renoir; não conheciam a Ile-de-France antes de
Corot. Essa experiência banal, que diz muito a respeito da experiên
cia, tem sua origem no próprio autor, que obedece a esta lei bizarra
que inverte a ordem e a disposição das coisas: ele se submete e a
comanda. O homem de arte introduz corpo e bens, sangue, alegria e lágri
mas em sua obra que passa a produzir por si mesma a vida como ela
vai e o mundo como ele se mostra, e portanto em particular este
homem que um dia pôs mãos à obra. Círculo encantado que alimen
ta um com a outra e uma com o um, o homem e a obra, espiral que
não termina senão na hora da morte: não saberemos jamais se O
quadrinho torna-se branco porque o desenhista morre ou se ele mor
re porque Tintin, dessa vez, não será bem-sucedido; círculo de fervi
lhamento que faz nascerem, a partir do castelo de Moulinsart, como
de uma cornucópia da abundância, todas essas histórias sem frontei
ras: prova de que muita gente e muitas coisas ali se escondem, nas
armaduras ou nas dependências. Vigie quem sai ou deixa traços: ali
está o tesouro. Diamantes, rubis, colares cujo valor explode longa
mente durante o percurso aberto desta hélice invasora até os astros,
mas que volta sobre si para se alimentar dos antípodas no castelo, no
182
, ....
fetiche, no porão, na estátua, no próprio corpo do autor, desta forma
produto e produtor.
Georges cintilava com a luz branca de um diamante desse tesou
ro. Ele tinha sempre o ar de sair desse castelo, que O assombrava ou
onde habitava. O círculo se ergue de não sei onde e sobe como uma
espiral opulenta que vai às duas extremidades do mundo e o encanta,
mas que sempre volta à vertical por si: Rameau conta medidas que
nascem naturalmente da própria música, cujas medidas produzem a
música de Rameau, e finalmente do próprio Rameau, que compõe as
medidas. Georges não parava de entrar ou de sair nesse moinho.
Assim, o retrato do homem se reduz ao olho da obra como se diz
a propósito do olho do ciclone, espaço calmo e ensolarado, lugar do
tesouro onde Georges brilhava, tranqüilo e diáfano.
Nas horas felizes em que nos esperava na soleira de sua casa,
braços abertos, olhos e rosto iluminados pelo sorriso e a bondade, eu
nunca passei pelo caminho de Dieweg sem que minha emoção sobre
pujasse o reconhecimento para com aquele que alegrou minha infân
cia. Eu adivinhava, por entre as minhas lágrimas, o enfeitiçador.
Bombardeios, deportações, guerras e crimes em massa esmaga
ram a nossa infância, dentro do desespero e da dor, da vergonha
pelos homens, salvo o único encantamento que nos deram a China e
a Amazônia, luzindo por trás da linha clara e o perdão perturbador
do monstro abominável, desprezado por todos, e que se tornou, visto
de perto, misericordioso e bom, conversão no meio do deserto ima
culado. Únicas luzes no seio das trevas. Para que serve viver, se nada
mais dá encanto ao mundo? Como e onde habitar, se não existe ne
nhum lugar encantado no meio das destruições? E se tivéssemos so
brevivido, naqueles tempos e naqueles lugares invivíveis, apenas pela
graça de tais utopias? Ainda o olho do ciclone, único espaço onde um
barquinho nada arrisca, silêncio branco no meio dos gemidos.
Entre o paraíso e a paisagem morna, entre o vale amargo e o
reino, o Messias e o homem da rua, a diferença, infinitesimal, brilha
como uma pequena lágrima.
183
As coisas e os corpos encantados parecem mergulhar numa água
límpida sob a qual cintilam como os diamantes ou as pérolas: trans
figurados pela laca, um oriente ou uma aurora cuja natureza ignora
mos, seu nimbo nos maravilha e nos protege.
Para fazê-los fulgurar assim, nos contentamos quase sempre em
imergi-Ios na transparência da língua ou no brilho do estilo, e às
vezes temos sucesso: nós os vemos luzir por trás das palavras claras,
ou se contrair, e se alinhar por trás do seu rigor quando não se con
torcem sob a feiúra ou a secura dos termos. "As árvores e as plantas",
dizia La Fontaine, "tornaram-se em minha casa criaturas que falam;
quem não acreditaria ser isso um encantamento?" Aqui conversam
igualmente o girassol e a flor casta, plantas, mas também o hadoque,
peixe, com o cachorro, animal que normalmente late. Para realizar o
milagre, podem-se mergulhar uma a uma as palavras e as línguas no
sortilégio do canto, de onde vem a palavra encantamento.
As coisas imergem na palavra e esta mergulha na música: dupla
transfiguração pela obra poética, entrada de Wagner que sobe e desce
as gamas no espaço ou na escada de Moulinsart.
O desenhista não o entende assim. O encantamento, para ele,
dispensa o canto: a cantora ridícula executa de modo atroz a ária das
jóias e perde as suas, que se acredita terem sido roubadas, enquanto
elas brilham calmamente no ninho do quadrinho.
A história em quadrinhos abre um caminho original, diferente
do da linguagem, do ritmo e do som, e deixa que os seres e as coisas
fulgurem por suas próprias formas e em sua água singular: muda
poesia da linha clara. As vinhetas substituem as rimas e os pés caden
ciados do fabulista clássico por cem ações diferentes, cujo cenário é o
universo. E eis que encontro o nome daquele que não queria um: eis
que a fonte dá a imagem da água brilhante e tranqüila.
Os retratistas, outrora, contornavam as cabeças santas, mártires,
virgens ou arcanjos, com uma auréola cuja luz indicava sua transfi
guração. Riam de quem ri disso: a maioria das culturas, modernas ou
antigas, tem um nome especial para designar a glória que às vezes faz
184
os corpos explodirem, em uma explosão de energia ou de amor, bon
dade, êxtase e de sua atenção fervorosa. Por esse sinal, reconhece-se
que a pessoa pensa: a idéia flui ou emana de seu corpo através de um
luzir dourado.
A glória social apenas imita pobremente esta auréola real que sai
do rosto. Os grandes pintores, dotados de um olho acurado, a viam.
Ou então eles projetam, em sua obra pintada, sua experiência e sua
atenção divinas ao reproduzirem as coisas do mundo tais como são
no minuto mesmo em que nascem das mãos de seu criador: infantes,
iniciais, pré-nomeadas, apenas começando.
Eu não sei mais o que escolher: a auréola descreve a luz que
emana do modelo ou do desenhista, ou será que ela fixa a fonte da luz
que os ilumina a ambos, ou ainda devemos vê-la como o olho que
verdadeiramente vê?
Para concluir este livro que diz e descreve as circunstâncias da
vida do mestiço instruído, como uma roda de raios em torno de seu
eixo, projetei traçar o retrato de meu amigo, um dos perfis desta vida.
Apenas pré-nomeado, eis o que é: vazio no meio desse círculo fulgu
rante, brilhância branca, luzir da aurora, auréola clara, olho do pin
tor e do ciclone, faiscante e calmo, tal como o conheci, como o amei,
pudico, reservado.
A terceira pessoa: fogo
Quando umJlOmem passa a nado um rio largo ou um braço de mar,
assim como um autor ou um leitor, lendo ou escrevendo, atravessa
um livro e o termina, um momento se apresenta em que ele ultrapas
sa um eixo, um meio, igualmente distante das duas margens. Ali
chegado, continuar sempre em frente ou voltar atrás serão atitudes
equivalentes? Antes desse ponto, um pouco aquém desse instante, o
campeão não deixou ainda o seu país de origem, enquanto depois,
além, o exílio ao qual ele se destina já o submerge.
185
Fio emocionante, fino e delgado como uma aresta, esse limiar
decide a viagem e toda a aprendizagem, da qual apenas se percebe
esse lugar raro, tão abstrato que se poderia considerar inexistente, e
entretanto tão premente e tão concreto que estende sua natureza e
sua cor sobre a totalidade do trajeto, que consiste em ultrapassá-lo.
Toda a largura do rio ou do adestramento - do livro e, no meio
deste, do mundo - recebe tal influência, como se reproduzisse, am
pliado, este fio. O limite de uma fronteira desenha, do lado de cá, as terras fami
liares, e se faz mestiço na divisão, mas a viagem puxa e carrega esse
lugar mestiço através de todo o espaço assim partilhado. Antes dele,
já menos em casa que de costume, o noviço nada ou se desloca para
o que lhe é estranho; depois dele, quase chegado a outro lugar, ele
continua vindo de casa; meio inquieto, a princípio, e cheio de espe
rança; já nostálgico, em seguida, e logo meio arrependido. Como
então um lugar singular pode parecer raro e, no entanto, se difundir
por toda parte, sobre o solo e dentro da alma, permanecer abstrato,
utópico, e contudo tornar-se panóptico ou pânico? Entenda-se por
isso a expansão em todos os lugares desta singularidade.
Embora nascido canhoto, escrevo com a mão direita, e a felicida
de de viver num corpo assim completado nunca me abandonou, de
modo que suplico ainda aos professores, não para contrariar, como
se diz hoje, meus colegas de bombordo, mas para dar-lhes uma imen
sa vantagem e harmonizar seus corpos, obrigando-os a segurar o
lápis com a mão direita, complementar. E, em prol da simetria, com
pletar da mesma forma os destros. Como a maioria dos contemporâ
neos abandona a caneta pelo console do computador, seu teclado
requer sobretudo dedos conjugados. Não sei por onde passa a linha que separa a esquerda e a direita
- e a fêmea e o macho -, se no meio do organismo, tão geométrica
e formal, sem dúvida, quanto a fronteira ou o eixo sobre o rio ou o
estreito, mas o corpo inteiro muda e se transforma segundo gire para
a direita ou para a esquerda, hemiplégico em ambos os casos, ou
segundo aceite se aventurar para o outro bordo, hermafrodita, navio
186
,
1 lO
de dois bordos, para a realização e o acordo. Ainda um golpe, e a
posição mestiça, rara, invade o sistema por completo: a pessoa inteira
se diz destra ou canhota - ou completa. Então anula-se em memória negra ou dilata-se em alma o lugar
mestiço: aberto, dilatado, ele se enche de pessoas mestiças. Aprender:
tornar-se gordo dos outros e de si. Engendramento e mestiçagem.
Como a terceira pessoa é espírito, o casaco e a carne de Arlequim se
semeiam de espíritos coloridos: fogos.
Um batimento, uma pulsação, um tremor como se vê numa cor
tina de chamas que explode e aumenta de repente para clarear até o
horizonte e logo involui para não iluminar mais do que uma vizi
nhança estreita e limitada ou anular-se na obscuridade, uma cinti
lação palpitante animam, neste livro, a descoberta, em muitas re
giões, de lugares mestiços e raros, finos como limites, agudos como
arestas, singularidades que podem ser consideradas fora do comum,
ambidestras, hermafroditas na que concerne às pessoas, mensageiros
que pertencem a dois mundos porque se põem em comunicação, tal
como Hermes, o deus dos tradutores, voando de uma margem para
outra, mas que se pode pensar em encontrar também sobre a terra ou
no mar, em ilhas ou caminhos; esses lugares mestiços dão a carne
viva e visível, quente e tangível na vida ou no espaço assinalável sobre
o mapa, do projeto mais intelectual, sábio ou cultural, e eticamente
tolerante, da instrução mestiça, meio harmônico, filha, entre duas
margens, da cultura científica e do saber tirado das humanidades, da
erudição e~pecialista e da narrativa artística, do coletado e do inven
tado, conjúnto conjugado porque na realidade não se pode separar a
única razão da ciência universal e do sofrimento singular. Porque a
urgência o impõe hoje em dia, a história alcança este projeto, antes
raro. E, de súbito, engendramento multiplicado: essas singularidades
espaciais, carnais ou pedagógicas, sem que nada haja previsto, se dis
seminam por toda parte, sobre todo o corpo, através do leito do rio,
no espaço intelectual, até desenhar uma síntese ou indexar um uni-
187
versal. A pequena chama explode. De nada a tudo; da soma, para trás,
a zero. Da comunicação fechada entre as duas primeiras pessoas, no
singular ou no plural, ao conjunto dessas terceiras que se anulam ou
tornam-se o todo da sociedade, do universo, do ser e da moral. Ja
mais eu teria esperado tanto da luz viva, embora, a despeito de seus
fulgores, ela tolerasse a sombra negra, pelas incessantes divisões de
sua vibração.
Baixa, a chama clareava as vizinhanças; o fogo, alto, ilumina o
mundo. As páginas flamejam como um pedaço de lenha, onde a dan
ça, curta ou ampla, das labaredas logo lambe o local, clareia o global
e súbito retorna à treva: dia, noite, manhã, claro-escuro. Ver: o fogo
clareia; mal: a chama queima. Dois focos, de uma vez: ciência fais
cante, dor ardente.
Entre as circunstâncias improváveis e difíceis, guerra, tempes
tade, acasos e insucessos do mar, nós abordamos uma ilha nula per
dida na imensidão do Pacífico, onde os nativos se aplicavam a con
dutas estranhas, mas onde aprendemos que a regra constantemente
seguida por todos os nossos semelhantes, dos quatro cantos da água,
se reduzia a uma exceção, sem dúvida monstruosa, de um univer
sal somente refletido e descoberto por acaso naquela singularidade
abandonada. Como se uma opinião preconcebida tivesse conquista
do todo o volume, enquanto a prudência humana e ponderada se
refugiava em localidades isoladas. O oblíquo conquistou o geral. O universal tem seu nicho no
singular.
Cintilação das chamas: anã amarela, o sol clareia menos o mun
do que um canto do universo e este não se deixa ver em majestade
senão por ocasião de intuições breves e fulgurantes, evidentes e pro
blemáticas, mas noturnas. A teoria do conhecimento nunca deixou
de tomar como modelo a emissão ou a expansão da luz. Esta repou
sava nas trevas e devia triunfar no espaço e na história. Os contempo
râneos, logo tornados relativistas e modestos, e a partir daí pruden-
188
, •
T
tes, se interessam vivamente em fixar sobre o detalhe um feixe lu
minoso quase pontual, fino e aguçado como um raio laser. Nós tí
nhamos abandonado a síntese unitária para nos reencontrar ou nos
perder deliciosamente nas delicadezas do ínfimo, esquecidos do uni
versal em prol das singularidades prenhes de sentido. Confesso de
bom grado ter preferido por muito tempo o local que pode se abrir
agradavelmente a um global pretensioso, sempre suspeito de excesso:
e nadava para o meio de tal rio ou me interrogava gravemente sobre
minhas mãos ou as ilhas, atento a esses pequenos detalhes frívolos.
Definido por delimitação e especificidade, o ideal do conheci
mento passa então das leis gerais para o debate detalhado, até uma
fragmentação infinitamente dispersa. Surpresa: em alguns lugares ou
vizinhanças, o universal se abrigava. Ou, extraordinariamente reno
vado, ele não pede nem para se estender nem para reger; ele exige, ao
contrário, sua volta à localidade próxima e fina, adamantina, onde
foi detectado. A chama, minúscula, torna-se imensa, e volta ao nível
do solo.
Irregularmente, do local ao global, bate, dança, treme, vibra, cin
tila esse conhecimento, como uma cortina de chamas. No centro da
síntese, o sol clareia o conjunto; ora, esta anã marginal se encontra
jogada aí, em alguma parte do universo. Essas duas proposições, a
universal e a singular, para um único sol, se mantêm verdadeiras ao
mesmo tempo. Diante dele, tão universal quanto a ciência, a questão
do mal e do sofrimento, da injustiça e da fome, tenebrosa, ocupa o
segundo foco ou o negro do universo, assim como a existência singu
lar do homem indigente e dolorido.
Esse batimento não diz respeito apenas ao saber claro ou ao mal,
portanto aos princípios de toda aprendizagem e à amplitude do co
nhecimento: haste de palha acariciada por um raio de luz emanado
de uma fissura, ou firmamento em seu conjunto sob o reino do meio
dia, costumes e leis, mas diz respeito também à qualidade deles, ou
seja, à sua expressão.
Devotados à busca da verdade, nem sempre chegamos a ela, se e
189
quando chegamos, por análises e equações, experiências ou evidên
cias formais, mas pelo ensaio, às vezes, e, quando o ensaio não pode
ir adiante, que o conto vá, se ele pode; se a meditação fracassa, por
que não tentar a narrativa? Por que a linguagem se manteria sempre
destra ou masculina, hemiplégica e limitada a uma metade? Aris
tóteles dizia muito bem: o filósofo, enquanto tal, também narra; mas
acrescentava: aquele que narra, de alguma forma se mostra filósofo.
Criado nessas chamas irregulares, instruído, educado, ele engen
dra em si pessoas mestiças ou espíritos que salpicam as suas formas e
os seus fulgores sobre seu corpo e sua alma, assim como as peças e
pedaços que compõem os fogos coloridos do casaco de Arlequim ou
o fogo branco que os soma.
Espírito: luz clara, pudica e retida, multicolorindo o corpo e a
alma como os milhões de sóis da noite consteIam o universo.
Re-nascido, ele conhece, tem compaixão.
Finalmente, pode ensinar.
190
1980-1990
, 'I
r
Este livro foi impresso na cidade de Aparecida, em março de 1993, pela Editora Santuário
para a Editora Nova Fronteira do Rio de Janeiro. O tipo usado nos títulos foi Gill Sans
e, no texto, Minion 10/14.
Os fotolitos do miolo foram feitos pela Scritta. O papel do miolo é off-set 75g,
e o da capa, cartão supremo 250g.
Não encontrando este livro nas livrarias, pedir pelo Reembolso Postal à
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22251-050 - Rio de Janeiro
~!8UOTEC.t\ C9.l'f'R!.IÀ~i_
f"UC - ~~ '--____ ~_I