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So Tom e Prncipe: Cultura(s)/Patrimnio(s)/Museu(s)
Ins Filipa Abreu de Castao
Setembro 2012
Trabalho de Projecto
de Mestrado em Museologia
VOLUME 1
Trabalho de Projecto apresentado para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Museologia realizado sob a orientao cientfica de:
Professora Raquel Henriques da Silva e Professora Maria da Graa da Silveira Filipe.
minha av Celeste.
Agradecimentos
Professora Graa Filipe, parceira e amiga, (des)orientadora e assertiva em momentos decisivos.
Professora Raquel Henriques da Silva pelo voto de confiana.
A todos os amigos de c e l que, do pouco (que dei), me deram tanto.
Luisa, companheira de intuies!
gorducha, minha irm, pelo exemplo e apoio de sempre.
Ao Miguel, pelas discusses e pelo amor.
Aos meus pais, por tudo.
Resumo
Trabalho de projecto
So Tom e Prncipe: Cultura(s)/ Patrimnio(s)/Museu(s)
A independncia de So Tom e Prncipe, em 1975, precedida de um longo perodo de
colonizao, constitui um momento crucial de mudana naquele territrio, que se reflecte a vrios
nveis: econmico, social e cultural. Desde a independncia que o pas vem traando polticas de
desenvolvimento e de consolidao das suas estruturas contando, para tal, com o apoio da
cooperao internacional.
Numa altura de mudana, os museus permitem estabelecer a conexo entre o passado e o
presente e inspirar caminhos em direco ao futuro, contribuindo para o desenvolvimento do pas e
beneficiando, assim, os membros da comunidade, individual e colectivamente.
A trade cultura/ patrimnio /museu constitui uma delimitao conceptual que nos conduz a
um campo temtico mais vasto onde se arquitecta uma teia de relaes construda pelas ideias de
identidade(s) cultural, herana ou memria colectiva, permitindo-nos, quando vertidas para um
territrio, analis-lo. O enquadramento geogrfico, histrico, social e poltico, bem como uma
anlise aprofundada da cultura viva, onde se integra a lngua e outras manifestaes e prticas
evolutivas, aspectos e propostas de aco patrimonial, permitiro configurar um estudo diagnstico
da realidade santomense, com o intuito de definirmos os princpios programticos para uma aco
que contribua para um projecto de desenvolvimento comunitrio, centrado no inventrio
participativo como mtodo, em que a memria e a construo de referncias identitrias sejam
vectores centrais.
Palavras-chave: So Tom e Prncipe, cultura, patrimnio, museu, aco patrimonial, memria
colectiva, desenvolvimento comunitrio, inventrio participativo
Abstract
Project work
So Tom and Prncipe: Culture(s)/ Heritage(s)/Museum(s)
Preceded by long colonial period, the Independence of Sao Tome and Principe, in 1975,
marks a rupture moment of change in that territory, reflected in multiple levels of the economic,
social and cultural spheres. Since the independence, the country has been tracing development
policies and consolidating its structures with the support of international cooperation.
At a time of change, the museums can establish the connection between past and present,
inspiring the paths to the future, contributing to the growth of a country and, therefore, acting
beneficially for the community members, individually and collectively.
The culture / heritage / museum triad supports a conceptual definition that leads to a broader
thematic field, where a web of relationships built by cultural identity, inheritance or collective
memory notions, allowing us, when poured into a territory, to analyze it. The geographic,
historical, social and political framework, as well through a profound analysis of the living culture -
which integrates the language and other manifestations and evolutive practices - and the aspects and
proposals of patrimonial defense actions, will allow to set up a diagnostic study of the santomean
reality, in order to define the programmatic principles for a action that contributes to a community
development project, focused on the inventory - as a participatory method - in which memory and
the construction of identity references are central vectors.
Keywords: Sao Tome and Principe, culture, heritage, museum, patrimonial defense, collective
memory, community development, participatory inventory
Lista de abreviaturas e acrnimos
CPLP - Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa
CV- Cabo Verde
EPA - Escola Patrimnio Africano
FONG-STP - Federao de Organizaes No Governamentais em So Tom e Prncipe
IC - Instituto Cames
ICOM - International Council of Museums
IPAD - Instituto Portugus de Apoio ao Desenvolvimento
ISP - Instituto Superior Politcnico de So Tom e Prncipe
MINOM - International Movement for a New Museology
ONGD - Organizao No-Governamental para o Desenvolvimento
STP - So Tom e Prncipe
UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
NDICE geral
1. Introduo
1.1. Definio do tema e objectivos
1.2. Enquadramento conceptual e metodolgico
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2. A prtica da teoria
2.1. O social no binmio memria/patrimnio
2.2. Da memria social ao impulso museal
2.3. Museu em contexto
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3. So Tom e Prncipe: conhecer o territrio e a histria como contexto
de desenvolvimento
3.1. Enquadramento geogrfico
3.2. Razes histricas de uma sociedade crioula africana
3.3 Sociedade e contexto poltico
3.4. Cooperao e desenvolvimento
3.5. Quadro legislativo
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4. Cultura(s)/ Patrimnio(s)/ Museu(s) em So Tom e Prncipe:
abordagem para um diagnstico a partir do terreno
4.1. A Cultura Santomense: identidade cultural e Santomensidade
4.1.1 Lngua e crioulos
4.1.2 Manifestaes culturais
4.2. Patrimnio(s)
4.3 Aco Patrimonial
4.4. Museu Nacional de So Tom e Prncipe
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5. Via de aco patrimonial para So Tom e Prncipe
5.1. Um olhar exgeno: Cabo Verde, relao inevitvel
5.2. A experincia Soya Kutu
5.2.1. Metodologia utilizada
5.2.2. Locais
5.2.3. Equipa de trabalho
5.2.4. Repercusses imediatas e a longo prazo
5.3. Proposta de aco: o inventrio do patrimnio para o
desenvolvimento
5.3.1 Equipa de trabalho
5.3.2. Formao
5.3.3. Metodologia
5.3.4. Tentativa/erro
5.3.5. Educao patrimonial
5.3.6. Repercusses a curto, a mdio e a longo prazo
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6. Consideraes finais
Referncias bibliogrficas
Apndices
Anexos
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vol. 2
vol. 2
1. Introduo
O Trabalho de Projecto que agora se apresenta sob o tema So Tom e Prncipe: cultura(s)/
patrimnio(s)/museu(s) resulta das competncias adquiridas na componente lectiva do curso de
mestrado em Museologia, aplicadas agora ao estudo de uma realidade a partir do qual se far uma
proposta de aco com fins sociais e culturais.
As motivaes que estiveram na base da nossa escolha prenderam-se com a inexistncia de
estudos nesta rea centrados na realidades santomense, bem como as potencialidades que ali
encontramos para desenvolver uma proposta inovadora mas, sobretudo, oportuna.
Em seguida faremos uma breve apresentao do nosso objecto de estudo, apresentando os
objectivos que nortearam a nossa pesquisa, bem como o enquadramento conceptual e metodolgico
que lhe deram forma.
1.1. Definio do tema e objectivos
A independncia de So Tom e Prncipe, em 1975, precedida de um longo perodo de
colonizao, constitui um momento crucial de mudana naquele territrio, que se reflecte a vrios
nveis: econmico, social e cultural. Desde a independncia que o pas vem traando polticas de
desenvolvimento e de consolidao das suas estruturas. No entanto, no momento em que o pas se
abre ao multipartidarismo que se efectiva uma poltica de cooperao entre instituies
internacionais e locais, fundamental no trabalho de terreno, com vista ao desenvolvimento do pas.
A sociedade santomense, constituda pela coexistncia de diferentes culturas no mesmo
territrio, pautada por um fenmeno de conflitualidade fruto desse mesmo passado histrico, que
a caracteriza e define a sua identidade cultural. Os museus podem contribuir para transmitir/
construir esta identidade, na medida em que tm como uma das suas funes essenciais
proporcionar comunidade uma compreenso da sua identidade cultural, desenvolvendo nos
indivduos o sentimento de pertena a essa comunidade.
Numa altura de mudana, os museus permitem estabelecer a conexo entre o passado e o
presente e inspirar caminhos em direco ao futuro. Deste modo entendemos que o contributo do
museu para o desenvolvimento do pas pode beneficiar os membros da comunidade, individual e
colectivamente. Por outro lado, as aces desenvolvidas pelos museus tambm esto dependentes
das caractersticas da comunidade e da sua participao.
Deste modo parece-nos fundamental partir da trade cultura(s)/patrimnio(s)/museu(s) na
perspectiva de um projecto dirigido para o desenvolvimento de S. Tom e Prncipe. Para tal ser
1
necessrio integrar neste processo a lngua e outras manifestaes e prticas evolutivas, aspectos e
propostas de aco patrimonial, bem como definir princpios programticos para uma aco que
contribua para um projecto de desenvolvimento local, em que a memria e a construo de
referncias identitrias sejam vectores importantes.
Com este trabalho pretendemos reflectir sobre as mudanas sociais e culturais em So Tom
e Prncipe, bem como propor uma via de aco patrimonial adaptada realidade em que se insere,
sublinhando a sua importncia para o desenvolvimento do pas.
1.2. Enquadramento conceptual e metodolgico
O nosso trabalho enquadra-se no mbito geral da museologia e, como tal, conduz-nos a uma
linha de pensamento interdisciplinar, pela necessidade de compreendermos conceitos fundamentais
e de assim os podermos articular.
A trade cultura/patrimnio/museu que previamente traamos no mais que uma
delimitao conceptual que nos conduz a um campo temtico mais vasto onde se arquitecta uma
teia de relaes construda pelas ideias de identidade(s) cultural (culturais), herana ou memria
colectiva. Esta herana cultural, que oscila num jogo entre a memria e o esquecimento, constitui o
mbito do patrimnio cultural de determinada sociedade que enceta estratgias de significao do
seu prprio patrimnio atravs de diferentes tipologias de preservao. Importa, por isso,
compreender de que forma se d esta valorizao que implica a aplicao de medidas e polticas
acertadas visando a gesto integrada e harmoniosa num quadro do desenvolvimento.
Importa ento compreender de que forma a ideia de patrimnio evoluiu, transitando de
estanque a verstil, abrangente e mutvel, consoante o seu contexto social, consumo e
reconhecimento das suas tipologias de valor. O alargamento da noo de patrimnio vem reflectir-
se na proliferao de espaos de activao cultural onde figuram os museus e consequentemente na
redefinio de objecto museolgico, na participao da comunidade na definio e gesto das
prticas museolgicas, na museologia como factor de desenvolvimento.
As prticas museolgicas contemporneas decorrem assim sob influncia da mudana de
paradigma da funo social do museu, doravante atento s constantes transformaes da sociedade.
Neste contexto, tentaremos ocupar-nos do conceito designado por Nova Museologia, considerado
renovador no meio museolgico, uma vez que se vincula comunidade num dado territrio, em
detrimento do enquadramento tradicional num edifcio, fazendo do territrio o objecto museolgico,
2
propondo-se a identific-lo, a conhec-lo, a estud-lo e a apresent-lo. Esta mudana de paradigma,
que centra a actividade museolgica no cidado consciente integrado numa comunidade enquadra-
se na concepo Freiriana de educao popular, a qual Hugues de Varine considera integrar-se no
trabalho comunitrio dos museus de territrio, encarando-a como um instrumento para o
desenvolvimento da comunidade. Ao permitir libertar a capacidade criadora dos indivduos, leva-os
a ocupar um lugar de actor cultural, social e econmico, na sua comunidade e no seu territrio. Este
processo de consciencializao d ento lugar a uma cultura da iniciativa, expressa na capacidade
de aco, condio fundamental do desenvolvimento comunitrio.
Depois de estabelecido o campo conceptual da nossa pesquisa prosseguimos com uma
anlise to aprofundada quanto possvel, tentando compreender as implicaes do enquadramento
geogrfico, histrico, social e poltico na realidade em estudo. Concomitantemente, procedeu-se ao
levantamento de entidades e instituies a actuar em S. Tom e Prncipe na rea da cooperao e do
desenvolvimento e, para tal, tentaremos compreender ainda, de forma sucinta, o mbito da
cooperao internacional e suas estratgias para o desenvolvimento. Uma breve anlise do quadro
legislativo seguir-se-, procurando encontrar os meios legais de actuao em torno da trade cultura/
patrimnio/museu.
Enquadrada e caracterizada, pudemos ento tomar contacto com a realidade santomense,
permitindo-nos compreender aquela realidade sob o ponto de vista cultural e patrimonial,
considerando a lngua e outras manifestaes e prticas evolutivas, aspectos e propostas de aco
cultural e patrimonial bem como enquadrar a nica estrutura museolgica existente em So Tom e
Prncipe, criada no mbito das medidas de patrimonializao encetadas aquando da formao do
novo pas.
A abordagem ao panorama cultural santomense resultou da pesquisa realizada no terreno
atravs de uma recolha plurimetodolgica, recorrendo-se a contactos informais e exploratrios e
entrevistas semi-dirigidas conduzidas com base num guio-indicativo, direccionado a diferentes
actores da vida cultural santomense, o estudo de caso intensivo, bem como a observao directa, da
qual um caso exemplar o I Frum da Cultura de So Tom e Prncipe, atravs do qual nos foi
possvel compreender o panorama cultural, bem como a teia de relaes que se estabelece entre os
diferentes actores da cena cultural santomense. Paralelamente procedeu-se ainda recolha
bibliogrfica, da qual destacamos o esplio do Arquivo Histrico de So Tom e Prncipe, onde
tivemos acesso imprensa local, fonte fundamental para a compreenso desta nossa matria.
3
No que diz respeito metodologia utilizada, gostaramos de focar que, embora tenhamos
cumprido em parte o que nos propusemos, no nos foi possvel recolher maior nmero de opinies
junto de informantes que nos pareceriam importantes. Este facto deve-se, em grande parte, apesar
dos vrios contactos e tentativas sucessivas, indisponibilidade destes para connosco colaborarem.
Importa ainda referir a dificuldade que tivemos em abarcar todas as questes a que nos
propusemos, motivo pelo qual alguns assuntos no puderam ser to aprofundados ou sequer
trabalhados. De facto, reflectindo sobre a necessidade que sentimos de abarcar todas as questes
com as quais nos fomos deparando, devido tipologia de trabalho pela qual decidimos enveredar,
assumimos que possa ter sido um aspecto pouco vantajoso pela disperso conceptual que dele
advm.
A especificidade do tema em estudo, em muito influenciado pela zona geogrfica, levou-nos
a valorizar a prtica interdisciplinar enquanto sistema relacional de disciplinas cientficas,
fundamental na necessidade de articular a complexa teia rizomtica de temas em anlise. A
correlao entre as diferentes formas de recolha de informao e do seu tratamento permitiram a sua
anlise de forma mais abrangente, afastando-nos de uma interpretao unvoca da realidade em
estudo.
Importa referir que a proposta que havamos traado inicialmente para uma via de aco
patrimonial adequada realidade santomense acabaria por ser alterada substancialmente, em
virtude da nossa experincia no terreno. Sob pena de incorrermos numa proposta incongruente e
desajustada quele territrio procuraremos ento apresentar um contributo capaz de repensar o
processo de inventrio participativo, integrando diferentes entidades num processo em que as
comunidades locais tm um papel preponderante no reconhecimento do patrimnio. A nossa
proposta decorre ainda de um olhar atento a outras realidades semelhantes, a fim de identificar
estratgias e campos de actuao.
Pretende-se assim que a nossa proposta, por meio de patrimnio, promova um processo de
mudana com vista ao desenvolvimento comunitrio.
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2. A prtica da teoria1
Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, aps a morte dos seres, aps a destruio das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frgeis mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembradas, espera sobre a runa de tudo o resto, a carregar sem vacilaes sobre a sua gotinha quase impalpvel o edifcio imenso da memria (Proust, 2003:54).
Comecemos por delimitar o permetro terico deste trabalho, embora nos parea quase
tarefa impossvel pelas constantes derivaes a que a nossa temtica nos leva. Importa,
primeiramente, compreender alguns conceitos bem como a forma como podem estar articulados
com a linha de pensamento que gostaramos de traar, integrada no mbito geral da museologia.
Ao abordarmos conceitos como cultura, patrimnio e museu, rapidamente estamos
enredados num universo interminvel de perspectivas de anlise e, por isso, indissociveis de outras
reas disciplinares das cincias sociais, sendo por isso imprescindvel adoptarmos uma abordagem
interdisciplinar ao longo da nossa pesquisa. No campo conceptual importa, sobretudo, compreender
como se constri e caracteriza a identidade(s) cultural que se pode perspectivar como uma herana
e, por isso, capaz de criar uma ideia, mais ou menos abrangente, de memria colectiva. Esta herana
cultural, que oscila num jogo entre a memria e o esquecimento, constitui o mbito do patrimnio
cultural de determinada sociedade que enceta estratgias de significao do seu prprio patrimnio
atravs de diferentes tipologias ou modos de preservao. Importa, por isso, compreender de que
forma se d esta valorizao que implica a aplicao de medidas e polticas acertadas visando a
gesto integrada e harmoniosa num quadro do desenvolvimento. Por outro lado, tanto do ponto de
vista micro (organizao familiar) como macro (comunidades) das estruturas sociais, interessa
compreender como se processa esta vontade de patrimonializao, ainda que nem sempre se d de
forma consciente.
A memria colectiva condiciona a definio de contedo do(s) patrimnio(s), mantendo ou
acrescentando uma herana cultural. O processo de patrimonializao decorre assim,
fundamentalmente, das atitudes e da conscincia expressas pelas comunidades e o principal critrio
em que assenta traduz-se na conscincia ntima do grupo social de que um dado objecto pertence
efectivamente ao seu patrimnio.
O alargamento da noo de patrimnio vem reflectir-se na redefinio de objecto
museolgico, na participao da comunidade na definio e gesto das prticas museolgicas, na
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1 A partir dos ttulos de Amlcar Cabral: A prtica revolucionria e A arma da teoria.
museologia como factor de desenvolvimento, nas questes de interdisciplinaridade, na museografia
como meio autnomo de comunicao (Moutinho, 1993:5). So estes alguns exemplos das questes
decorrentes das prticas museolgicas contemporneas, em tudo influenciadas pela mudana de
paradigma da funo social do museu, doravante atento s constantes transformaes da sociedade.
2.1. O social no binmio memria/patrimnio
Interessa perceber, deste modo, como so gerados os sistemas de significao com que se
constri uma ideia de identidade colectiva, assumindo que:
o reconhecimento de uma herana cultural e sua transmisso no se relacionam somente com preocupaes polticas, eles supem a continuidade de uma representao da histria, tanto das ideias quanto dos
acontecimentos. Assim, a prpria ideia de patrimnio, ainda que nem sempre de modo consciente, perdura desde a Revoluo Francesa como modo de reproduo das mentalidades colectivas. (Jeudy, 1990:5)
Neste contexto, e segundo uma perspectiva dialgica de interpretao, tentaremos analisar
ainda o papel do museu e outras estruturas patrimoniais enquanto construes culturais resultantes
de um processo que articula contextos polticos, econmicos, sociais e histricos especficos, como
uma necessidade de constante preservao de uma memria colectiva.
Partindo, por isso, de uma ideia de memria colectiva, hoje largamente explorada por vrios
autores, importa aqui compreender, e segundo Halbwachs (apud Anico, 2008:24; apud Jeudy,
1990:32), a funo primordial da memria, enquanto imagem partilhada do passado que promove
um lao de filiao entre os membros de um grupo com base no seu passado colectivo, conferindo-
lhe uma iluso de imutabilidade, ao mesmo tempo que cristaliza os valores e acepes
predominantes do grupo ao qual as memrias se referem (Peralta, 2007:5). Deste modo, a memria
colectiva o locus de ancoragem da identidade do grupo, precedendo-a, e assegurando a sua
continuidade no tempo e no espao. Apesar de o passado ser utilizado, pelos diferentes grupos
(sociais e polticos), por motivos instrumentais, a relao entre eventos do passado e do presente
uma relao mais complexa que deriva do facto da memria ser um sistema cultural de atribuio
de significado que se produz ao longo do tempo. De facto, como resultado desta relao entre
passado e presente, confere-se memria uma caracterstica que a inclui nos mecanismos de
atribuio de significado prprios da cultura.
Uma concepo de cultura como dimenso simblica constitutiva de todos os processos
sociais (Peralta, 2007:15) , a atribuio de uma perspectiva temporal e a conjugao das abordagens
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sincrnica e diacrnica, conferem um carcter mais claro aos mecanismos de incorporao do
passado pelo presente (Peralta, 2007:16). Deste modo, e partindo da concepo de cultura que
Geertz2 apresenta, poderemos conceber uma ideia de memria enquanto parte integrante de um
sistema cultural articulado de atribuio de significados. Assim, e num sistema dialctico constante
entre passado, presente e futuro, as vrias percepes postas no plano da partilha podem
corresponder ao mapa conceptual comum de um grupo, constituindo um mecanismo de produo de
significado cultural. A evocao de um passado presentificado, constitui-se como uma interpretao
criativa que permite mediar os dois tempos, entre a experincia e a recordao, num processo que
converte o passado em memria. O passado consiste, assim, num sobrevivente que se concretiza no
presente e se perpetua no futuro, num sistema de criao de esquemas prticos de memrias e
identidades, organizando a forma como os indivduos entendem o mundo e nele actuam, ainda que
conceda espao para a maleabilidade e a improvisao, permitindo, nesta medida, a adaptao
mudana social. O passado no , portanto, uma entidade fixa e rgida (Peralta, 2007:17). Perante
tal acepo, a memria colectiva afigura-se-nos como um mutvel sistema cultural de atribuio de
significados, configurando-se como um processo dinmico de redefinio cultural, mediante o qual
a sociedade mantm a estabilidade e a identidade enquanto se adapta mudana.
No possvel esquecer que a identidade estruturalmente etnocntrica: o indivduo o que
ou o que pretende ser devido sua integrao num grupo, instalado num territrio prprio, que se
define no s pela sua estrutura especfica, mas tambm pela diferena que o separa do outro. O
territrio define-se por isso pela relao que sustenta com a histria, e que se exprime no s na
presena dos espritos dos antepassados, mas pela acumulao de sinais e de marcadores, uns
criados pela natureza e reinterpretados pelos homens, outros provindo do imaginrio do indivduo e
da sua sociedade. Um homem define a sua identidade por meio de alguns suportes: primeiro pelo
facto de pertencer a uma famlia, a qual est integrada num cl, numa comunidade, numa nao.
Esta aparente dependncia do indivduo e da famlia em relao s unidades superiores, no deve
contudo enganar-nos: a soma das pequenas identidades que autoriza a construo global da
identidade, a qual est historicamente ligada a um territrio (Henriques, 2003).
Apesar de se constituir como uma construo social, numa relao de partilha cultural no
seio de um grupo social, a memria depende tambm da sua dimenso individual, i.e., pode ser
entendida num quadro de referncia partilhado de recordaes individuais, onde memrias
individuais, comummente partilhadas, integram um passado comum aos membros do colectivo,
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2 Segundo Clifford Geertz (1973), a cultura definida como uma organizao de padres simblicos atravs dos quais a experincia individual adquire um significado colectivo.
fornecendo assim as bases para a construo de uma significao colectiva. Desta forma, a
construo da memria lidar sempre com o binmio individual/colectivo, uma vez que o
indivduo, embora integrado num universo cultural especfico, no deixa de estar moldado pelas
suas experincias e expectativas individuais. No subestimando o lado colectivo da vida consciente
do indivduo, mas sob pena de lhe retirar autonomia passivamente obediente vontade colectiva
interiorizada (Fentress e Wickham, 1992:7), adoptemos, ento, e abandonando uma ideia de
memria colectiva, a expresso memria social3.
O consenso existente em torno da conservao dos patrimnios abalado pela diversidade e
contradies das representaes do devir da memria das sociedades. Ser exactamente da
organizao e tratamento da memria social que poder surgir uma crtica da ideia de patrimnio,
preterindo uma ideia de conservao pela de apreenso das suas funes sociais dentro de uma
sociedade em mudana. Segundo Henri-Pierre Jeudy, uma nova concepo de patrimnio poderia
ser articulada com as ideias de antigo e novo, em que o mesmo conceito faria a passagem entre
os dois tempos, ao contrrio da ideia de monumento, vinculada a um tempo passado. Este
reencontro entre tradio e modernidade ter-se- dado com o papel crescente da etnologia regional,
a qual faz com que novas concepes do patrimnio se fundamentem numa dinmica de memria
colectiva (Jeudy, 1990:8).
Deste modo, e como vimos anteriormente, a ideia de patrimnio muda de dimenso consoante
o seu contexto social, consumo e reconhecimento das suas tipologias de valor. Segundo Franoise
Choay (2010), o patrimnio visto como algo que estava, na sua origem, ligado s estruturas
familiares, econmicas e jurdicas. Requalificada com o tempo, a ideia de patrimnio admite agora
uma pluralidade de adjectivos (histrico, artstico, material, imaterial, virtual, digital), admitindo-se
como um conceito verstil, abrangente e mutvel. Contudo, a noo de patrimnio continua a ser
indissocivel, ainda que com diferentes contornos na sua acepo, de outras categorias de
pensamento como as de tradio, herana e cultura. A noo antiga, embora a sistematizao dos
estudos sobre o tema remontem aos finais do sc.XVIII com a formao dos Estados-Nao. Sob
este ponto de vista, o conceito de patrimnio cultural aplicado para designar um bem destinado
ao usufruto de uma comunidade, com o objectivo de se conservar num mesmo espao elementos
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3 No decurso do texto apropriar-nos-emos ainda da expresso memria colectiva apenas no recurso a referncias externas, afirmando, contudo, a expresso memria social como uma alternativa mais pertinente.
que permeiam a identidade e a memria social. Nesse sentido, gera-se a preposio de que preservar
os diferentes patrimnios culturais consubstancia a preservao da memria social.
A aspirao social preservao dos bens patrimoniais acabaria por se tornar um subsdio
importante, quer o impulso quer o bem em si, para a consolidao da cidadania. Deste modo, a
preservao dos patrimnios cultural, histrico e natural no tardaria a ser promovida pelas
instncias pblicas. No ensejo da Revoluo Francesa, e com a formao dos Estados-Nao, o
poder pblico forja modelos institucionais que se destinam, de entre outros objectivos, a preservar a
memria colectiva. Com a criao da Comisso de Monumentos Histricos em 1837 em Frana,
institucionaliza-se um modelo operativo, embora existam evidentes discrepncias entre os conceitos
de monumento e patrimnio:
Toda a interrogao actual acerca do sentido de patrimnio no se inscreve na perspectiva exclusiva de monumentalidade. Ao contrrio ela busca uma nova via para traduzir uma valorizao das memrias
colectivas. Mesmo que a consagrao dos signos culturais que servem de referncia no seja abandonada, a ideia de monumentalidade sofre uma mutao do seu sentido usual. Havia castelos, igrejas, obras de arte..., e,
doravante, h tambm prdios industriais, fundies, curtumes, cafs e lavatrios e uma quantidade infinita de objectos artesanais, industriais e agrcolas. E os modos de vida, de pensamento, de comunicao vm
completar as novas representaes do patrimnio. Ao invs de ser considerado uma aquisio, o patrimnio apresenta-se como uma conquista e apropriao social, desafiando assim a regularidade burocrtica da
classificao em Monumentos histricos. (Jeudy, 1990)
Uma nova abordagem acerca da funo tradicional do monumento pressupe que o
patrimnio seja o objecto de um investimento no tempo presente e que no consista em recordar ou
consagrar o passado. Em virtude desse entendimento, percebemos que a mesma Comisso de
Monumentos Histricos se centrara numa ideia que visava a conservao e preservao de valores
ligados ao passado. Contudo, a premissa inicial da mesma comisso, bem como de outras que
emergiram neste contexto ou subsequentemente, visa a fundamentao de ideias de nacionalidade e,
ao mesmo tempo, procura assegurar o acesso informao social atravs da preservao dos bens
patrimoniais. Note-se porm que, embora se opte por uma aco que vise a preservao, muitas
vezes ela diz respeito a uma classe dominante, que valoriza a sua memria atravs dos seus
antepassados, pretendendo com isso que todos se identifiquem com os seus acontecimentos
histricos, com a sua forma de agir e pensar, presentes na materialidade de alguns patrimnios,
constituindo tudo isto manifestaes de afirmao de uma elite.
S mais tarde, aps a Segunda Guerra, na dcada de 50 do sculo XX, viriam a ser
acrescentados s categorias daquela comisso outros objectos considerados de menor valor, mas j
indicativos de uma ampliao na noo de patrimnio para a sociedade (Choay, 2010). Neste
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sentido, aos objectos criados no presente e decorrentes de manifestaes culturais, ou ainda, de
espaos naturais, -lhes enfim atribudo valor patrimonial. Em virtude da sua valorizao simblica,
assim se traduz uma nova concepo de patrimnio na sociedade. Na realidade, importante
considerar outros elementos que permeiam o entendimento, aceitao e compreenso desses
valores. Retomamos assim uma ideia de identidade e de memria social.
A ambivalncia entre a destruio e a conservao no se resolve por uma lgica de
patrimnio. Pelo contrrio, ela ocultada pelas regras dos monumentos histricos que definem
uma ordem simblica do passado. A ameaa de desaparecimento de um patrimnio no suscita at
estes ltimos anos resistncias sociais importantes, pois a regularidade com a qual o processo de
conservao se impe baseia-se num reconhecimento implcito da sua necessidade. A ideia de
patrimnio apresenta-se como uma evidncia. Assim como todo o indivduo viveria mal sem
memria, tambm uma colectividade precisa de uma representao constante do seu passado.
Apenas a gesto de um patrimnio e as escolhas da sua representatividade ainda escapam
colectividade que no entanto a sua origem (Jeudy, 1990).
Na base dos movimentos associativos de preservao dos lugares marcados por uma histria
recente, permanece, ento, a tentativa de gesto de uma memria colectiva. A reconverso de um
patrimnio em objecto de museu, arrisca a que, neste processo, se perca a memria colectiva que
lhe est associada, pela demonstrao de signos que dela se quer fazer. Este momento de mediao
pode promover uma ruptura entre memria e patrimnio, pela perda de carga aurtica4 de que se
reveste este processo, no se configurando, porm, enquanto sintomas de uma dessacralizao da
conservao, mas, pelo contrrio, uma oportunidade de renovao do seu papel com uma finalidade
museogrfica.
As representaes existentes nas formas simblicas de valorizao patrimonial delineiam o
entendimento das prticas sociais de proteco e preservao do patrimnio, enquanto testemunho
da vida humana que perpetua os saberes, valores, hbitos, costumes, etc. A preservao da
10
4 Utilizamos aqui uma expresso de Walter Benjamin. Segundo o autor, as tcnicas de reproduo em massa acabam por comprometer a obra de arte, uma vez que a transformam em objecto de consumo e transformam o seu valor caracterstico em valor de exposio. O conceito de aura permite resumir essas caractersticas: o que se atrofia na era da reprodutibilidade tcnica da obra de arte a sua aura (Benjamin, 1992:79). Porm, o valor de exposio comea a afastar, em todos os aspectos, o valor de culto (Benjamin, 1992:79). Como consequncia favorvel a este desencantamento, a obra passvel de reproduo, assume, contudo, um carcter mais democrtico e prximo das massas (apesar da ambiguidade que circunda tal relao). Neste ponto, Benjamin acredita que a tcnica pode transformar-se em ferramenta para viabilizar caminhos mais prsperos para a humanidade.
identidade e memria patrimonial testemunho da prtica da cidadania. Cada vez mais, polticas
preservacionistas esto integradas numa parceria entre o pblico e o privado. Este processo resulta,
assim, da relao entre sujeito, estado e patrimnio. A preservao, neste sentido, resulta de um
processo colectivo dado num contexto especfico. No obstante, a ampla compreenso da noo de
patrimnio um factor indispensvel no processo de fortalecimento da identidade e da cidadania
individual e colectiva.
2.2. Da memria social ao impulso museal
A ideia de novo patrimnio5, anteriormente mencionada, equvoca pois baseia-se na
salvaguarda de smbolos que a conservao cultural tradicional no levava em conta. A ideia
apresenta-se como um desafio, embora reproduza a lgica do processo de conservao patrimonial.
Se o museu clssico permanece na ordem da monumentalidade, os polimuseus, os ecomuseus, as cidades de museus...traduzem a vontade de estimular a criatividade e a inovao para alm de um simples cuidado de
restituio. Assim a promoo dos novos patrimnios coincidiria com a universalizao de um conhecimento activo e pluridimensionado que transforma a operao museal no eixo social da
comunicao. (Jeudy, 1990:10 e 11)
Relativamente a esta questo, acompanhamos ainda as palavras de Henri-Pierre Jeudy:
Um patrimnio uma vez constitudo no mais que um museu do social. Ele necessita de uma teatralizao
permanente que no redutvel ao espectculo que uma estrutura museogrfica oferece. Dois tipos de teatralidade se confrontam ento, uma est presente na descoberta dos mltiplos elementos que constituem
virtualmente um patrimnio, a outra refere-se a um retorno cena que se efectiva nos limites de um museu. As duas teatralidades esto em contradio pois a segunda, apesar de ser objecto das animaes culturais
mais subtis, consagra totalmente o princpio da conservao. A primeira corresponde ao ritmo e ao entusiasmo colectivo do desvelamento das memrias colectivas, e participa, mesmo voltando-se para o
passado, de um histria em actos. No entanto, a museofilia que parece cada vez mais estimular
colectivamente os laos constitutivos dos patrimnios e das memrias colectivas. (Jeudy, 1990:13 e 14)
Em consonncia, o mesmo autor adianta que a tendncia colectiva para a museografia - isto o
desejo de reavivar os espaos da memria, recolhendo e preparando objectos, reunindo relatos e
imagens que evocam aspectos da vida passada - une os poderes polticos que procuram a
consagrao da sua imagem junto de grupos sociais especficos construindo museus, pelo papel que
adquire no reconhecimento de uma identidade.
11
5 Embora o autor (Jeudy, 1990) se refira especificamente ao patrimnio industrial, aqui ser com um sentido mais amplo, englobando todo e qualquer tipo de patrimnio, smbolo da memria social.
Interessa pois perceber o sentido de tal pulso musefila colectiva (Jeudy, 1990). De facto,
de uma relao estranha entre lembrana/esquecimento e uma teatralidade que valoriza os
objectos que nasce uma concepo quase religiosa da imutabilidade do mundo. A museofilia
encontra-se, assim, num jogo da cientificidade ficcionada tentando gerir, porm, este seu impulso
conservacionista. Esta acumulao de signos do passado depara-se, ento, com as mltiplas
questes relativas compreenso do mpeto de conservar. Importa, por isso, compreender o que
conservar, porque conservar e como conservar. Tudo poderia ser conservado, porm tal acumulao
de objectos e signos culturais acaba por ultrapassar o prprio sentido da conservao, perturbando,
at, o papel das aces mais dinmicas da multiplicidade das construes da memria, concedido,
por exemplo, aos museus. precisamente contra um impulso preservacionista, pela vontade, quase
libertria, de manuteno de todas as memrias, que o empreendimento patrimonial luta, na
premente necessidade de gerir os patrimnios. Ora, o papel do esquecimento, toma aqui um papel
fundamental, enquanto elemento de higienizao da sociedade semelhana do que acontece com o
corpo humano, combatendo o perigo de petrificao das culturas. A lgica da salvaguarda dos
patrimnios no ser mais ameaada pela decomposio ou desaparecimento eventual dos traos,
objectos e signos, mas pelo poder destruidor das memrias (Jeudy, 1990). Mais do que conservar,
preservar, salvaguardar e classificar finamente, preciso tambm deixar esquecer para que o lugar
da memria possa ser ocupado por outras memrias, estas contemporneas.
Por via da patrimonializao atribuem-se novos valores, sentidos, usos e significados a
objectos, formas, modos de vida, saberes e conhecimentos sociais. Neste processo, os especialistas
(arquelogos, antroplogos, arquitectos, historiadores da arte, etc.) so vitais, sobretudo enquanto
criadores de uma legitimidade patrimonial selectiva. Os especialistas certificam o valor dos
elementos culturais patrimonializveis e reconhecem como bem de tutela pblica o que antes no
estava reconhecido como tal. Porm, a patrimonializao , acima de tudo, o processo pelo qual
certos bens ou elementos so apreendidos pelos membros de uma comunidade ao ponto de
decidirem salvaguard-los ou preserv-los, assegurando-lhes continuidade, passando ou no a
integr-los num museu e a atribuir-lhes um estatuto particular como patrimnio - o de objecto
museolgico (Filipe, 2000).
Acompanhando as mudanas da sociedade contempornea - resultantes dos processos de
urbanizao, industrializao e massificao da cultura, das migraes e transnacionalizao dos
bens (materiais e simblicos), da globalizao e das formas de integrao econmica a evoluo e
12
o alargamento do conceito de patrimnio, a que se associou o de objecto museolgico, repercute-se
nas polticas de investigao e de aquisies dos museus, no seu mbito funcional e, evidentemente,
na sua programao (Filipe, 2000).
De facto, a ampliao do campo de referentes culturais a recordar e a preservar evidenciaria
a proliferao de espaos de activao cultural, como os museus, monumentos, arquivos,
bibliotecas ou outros rituais pblicos de recordao e comemorao, que permitem sustentar
identidades colectivas.
A existncia de diferentes sensibilidades culturais e sociais est intrinsecamente dependente
de um contexto, influenciando assim o desenvolvimento da museologia e imputando-lhe, em certa
medida, a necessidade de tomar conscincia da realidade social e cultural em que se insere,
dependente, por isso, das idiossincrasias de cada momento. O director geral da Unesco, Federico
Mayor, na sesso de abertura da XV Conferncia Geral do ICOM, 1972, resumiu este esforo de
adequao das estruturas museolgicas s condies da sociedade contempornea da seguinte
forma:
A instituio distante, aristocrtica, olmpica, obcecada em apropriar-se dos objectos com fins taxonmicos vai dando lugar cada vez mais a uma entidade aberta ao meio, consciente da sua relao orgnica com o seu
prprio contexto social. A revoluo museolgica do nosso tempo - que se manifesta pelo aparecimento de museus comunitrios, de museus sem muros, de ecomuseus, de museus itinerantes ou museus que exploram
as possibilidades aparentemente infinitas da comunicao moderna - tem as suas razes nesta nova tomada de conscincia orgnica e filosfica.
Os museus foram registando, assim, diferentes transformaes no contexto das sociedades
em mudana como as ps-industriais, ps-coloniais e ps-modernas. Depois do seu entendimento
como mausolus ou santurios ou depsitos onde se guardam coisas antigas6, os museus
converteram-se em lugares de interpretao, estudo e investigao e, mais tarde, em centros de
educao. De smbolo de modernidade e progresso de uma civilizao ocidental, o museu foi
adquirindo uma posio menos estanque, numa diversificao das formas e contedos, das suas
teorizaes e prticas, bem como revendo as suas fronteiras relativamente a outras instituies
culturais. O objectivo da aco do museu foi-se ento alterando ao longo dos tempos, assim como a
sua caracterizao e funes. De coleces de objectos passou a tratar dos testemunhos materiais
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6 Referimo-nos a uma ideia de Museu tradicional que, a partir de uma aproximao historicista e positivista, se focava nas coleces, potenciando, atravs destas, as funes museolgicas de adquirir, conservar, investigar e difundir. Aqui, e segundo Stephen Weil, pode definir-se um tipo de museologia formalista, centrada no papel fundamental do muselogo/conservador (capacitado para interpretar o objecto), em detrimento do visitante, o qual ocupa um papel passivo dentro da esfera museolgica, sem qualquer tipo de protagonismo (Hernandz, 1994:155).
da natureza e do Homem e, em 1972, falava-se j em testemunhos representativos da evoluo da
natureza e do Homem7.
Constatou-se ento a desvalorizao cultural do objecto e uma consequente valorizao do
discurso, levando Tomislav Sola (apud Hernandz, 1994) a afirmar que os museus no mais existem
para os objectos que contm mas para os conceitos e ideias que os mesmos podem transmitir.
Num momento identificado por alguns autores como uma crise de identidade (Anico,
2008), os anos 60 e 70 do sculo XX foram particularmente marcantes no campo da museologia,
pelo debate que se assistia acerca do papel dos museus que deixavam de ser um factor determinante
na vida das sociedades. Por outro lado, a inexistncia de uma perspectiva sustentvel da instituio
museolgica, tornando-a, por isso, pouco rentvel, v a sua credibilidade perder-se, de forma
acelerada, junto dos poderes polticos. Por conseguinte, Tony Bennet (1990) identificou dois
princpios nos discursos polticos acerca da reforma do museu: primeiro, o princpio do direito
pblico, que se sustenta na exigncia de que os museus devem ser igualmente abertos e acessveis a
todos; e, em segundo lugar, o princpio da adequao da representao, sustentado pela exigncia de
que os museus devem representar adequadamente as culturas e os valores dos diferentes grupos da
populao.
As novas acepes tericas colocavam em causa a museologia tradicional, a favor de uma
museologia voltada para a comunidade e preocupada com o seu papel social. no fulgor deste
debate que, nos anos 1980, aparece o conceito designado por Nova Museologia8, considerado
renovador no meio museolgico. A nova museologia corresponde a uma museologia activa que
segue princpios operativos, tais como: participao da populao, territrio, memria colectiva,
14
7 Mesa Redonda organizada pela Unesco em Santiago do Chile, 1972.
8 Um movimento de nova museologia tem a sua primeira expresso pblica e internacional em 1972 na Mesa-Redonda de Santiago do Chile organizada pelo ICOM, influenciada pelas discusses promovidas pela UNESCO sobre o papel e funo do patrimnio na sociedade e pelos questionamentos do Maio de 68 acerca do papel dos museus numa sociedade em transformao. Produz-se ento um documento inovador e de extrema importncia para a museologia, que apela a um museu de aco comprometido com questes sociais, econmicas, educacionais e polticas, constituindo-se assim, os princpios de base para um museu integral. ainda focado o papel poltico do muselogo e o reconhecimento da importncia do cidado em todo o processo de preservao, entendimento e divulgao do patrimnio cultural.Seguindo esses pressupostos elaborada em 1984 a Declarao de Quebec, na qual feito o reconhecimento da Nova Museologia. Ainda em 1984, a Declarao de Oaxtepec que assume um trinmio de base para uma nova aco museolgica: patrimnio/territrio/populao e pela primeira vez refere o Ecodesenvolvimento. O termo viria a propagar-se atravs da criao de dois grupos: o MNES (Association Muselogie Nouvelle et Exprimentacion Sociale, fundado em 1982) e o MINOM (Movimento Internacional da Nova Museologia, fundado em 1985).Em 1992, vinte anos aps a Mesa Redonda de Santiago, elaborada a Declarao de Caracas, um documento que procura actualizar os conceitos do documento de Santiago.
objecto social, interdisciplinaridade, o desenvolvimento comunitrio, criatividade, qualidade de
vida (Nabais, 1993:47).
Deste modo, o interesse museolgico centrado no objecto transfere-se para a comunidade,
dando lugar a um novo conceito de museu entendido como um instrumento necessrio e ao servio
da sociedade (Hernandz, 1994).
Assim, a Nova Museologia vincula-se comunidade num dado territrio, em detrimento do
enquadramento tradicional num edifcio, fazendo do territrio o objecto museolgico, propondo-se
a identific-lo, a conhec-lo, a estud-lo e a apresent-lo. A noo de coleco, , por sua vez,
substituda pela de patrimnio (material, imaterial, natural e cultural). A nova amplitude do conceito
de patrimnio inclui o que se encontra dentro e fora do museu. Com isto queremos referir que a
salvaguarda, estudo e divulgao j no se restringem s coleces, racionalmente organizadas,
fruto do pensamento moderno, mas alargam-se a todo uma patrimnio constitudo pela cultura
material, que tanto pode passar pela arquitectura civil, religiosa, militar ou outra, como por toda a
tradio no material, como por exemplo a cultura oral (Magalhes, 2003).
A ideia principal desta nova corrente , segundo Hernndez (1999), o facto de o museu ser
visto como uma entidade social capaz de se adaptar s necessidades de uma sociedade que est em
constante mutao. a partir deste ponto de vista que se tenta desenvolver um museu vivo e
participativo, que se define pelo contacto directo entre o pblico e os objectos que se mantm no
seu contexto original, nomeadamente atravs da conservao in situ, resultado do alargamento da
noo de patrimnio e, consequentemente, de museu. A Nova Museologia consistir, ento, numa
filosofia, num sistema de valores e numa atitude ou predisposio para uma interveno de cariz
social (Filipe, 2000:5).
O movimento que se gerou, em torno da renovao das teorias e prticas museolgicas,
segundo Marc Maure (apud Fernndez, 1999:82), criou um novo e triplo paradigma que resultou na
triangulao de trs categorias: da unidisciplinaridade multidisciplinaridade, do pblico
comunidade e do edifcio ao territrio. A nova viso processual da museologia encontra assim
sentido na participao das pessoas e dos diferentes grupos na comunidade.
assim que, a partir dos anos 70, os ecomuseus surgem integrados na nova museologia como
uma forma de museologia activa; devendo antes de mais preocupar-se com o desenvolvimento das
populaes, eles devem ter uma aco social interventiva (Nabais, 1993:46,47). Considerando o
15
ecomuseu como uma das tipologias enquadradas pela Nova Museologia, este designa a nova forma
de museu de tipo activo (interventivo) que tem por objectivo a salvaguarda e a divulgao do
patrimnio natural e cultural (material e imaterial), num territrio mais ou menos vasto, envolvendo
concomitantemente a comunidade nessas actividades.
A ecomuseologia traz consigo um novo entendimento de museu, em oposio ao museu
tradicional, considerando o territrio e a comunidade local o seu objecto museolgico, atravs da
interpretao do patrimnio cultural e natural em toda a extenso territorial e investigando as
relaes ocorridas ao longo do tempo atravs de uma abordagem interdisciplinar, realizando
actividades com e para as pessoas da populao, tendo como objectivo o desenvolvimento global da
comunidade.
O novo paradigma da museologia, ao deslocar o conceito de museu, do edifcio para o
territrio e do pblico para a comunidade, derrubou radicalmente os muros do museu, dando
lugar a processos museolgicos que emergem da comunidade. Nesta perspectiva, coleccionar/
recolher, preservar e difundir so operaes que um museu de novo tipo assume em parceria com a
comunidade em processos socializantes que contribuem para a qualificao da cultura (Victor,
2005). O museu e os muselogos passam a ser sujeitos sociais comprometidos com o
desenvolvimento e os membros da comunidade seus parceiros. A especificidade dos saberes
profissionais contribuem para a gesto de conhecimento e a criao de novos dilogos com a
comunidade. Segundo Alonso Fernndez (1999:108), o funcionamento do museu baseia-se na
participao activa dos membros da comunidade, segundo um processo museal baseado numa
relao dialgica estabelecida entre o museu/muselogo e os membros da comunidade. Nesta
relao a comunidade toma ento um papel preponderante e activo e os sujeitos, especialistas sobre
questes relativas sua prpria histria e meio ambiente. Ora, neste contexto, o muselogo ganha
um novo papel, o qual implica dotar os membros da comunidade dos instrumentos conceptuais e
materiais que lhes permitam fazer parte do processo de recolha, preservao, investigao e difuso
do seu prprio patrimnio. Para Hugues de Varine (1991), os profissionais dos ecomuseus devem
encontrar estratgias que levem toda a comunidade a participar no desenvolvimento do territrio,
com e pelo seu patrimnio, ou seja, a participar no seu prprio desenvolvimento. Nesta mudana, o
muselogo deve abster-se de assumir uma postura paternalista ou de imposio de um poder
institucional.
, sem dvida, desta mudana de paradigma, que centra a actividade museolgica no cidado
consciente integrado numa comunidade, que a nova museologia originria. Trata-se, porm, de
16
uma mudana consciente, fruto de um longo processo reflexivo apoiado nas doutrinas e convices
de intelectuais e pedagogos como o brasileiro Paulo Freire que, atravs da sua teoria de educao
como prtica de liberdade (Freire, 1987), aplicou como pedagogo o conceito consciencializao,
isto a mudana de papel do cidado enquanto homem-objecto (concebida pela sociedade de
consumo) para homem-sujeito. Ora, desta mudana de paradigma no processo educativo que,
agora centrado no indivduo, um novo modelo de ensino se cria, a partir dos saberes e das memrias
individuais, facilitando, assim, o processo de ensino-aprendizagem. Num processo de libertao, a
educao popular pretende que o indivduo (educando) crie as suas prprias ferramentas que lhe
permitam, autonomamente, reflectir acerca da sua condio. Esta tomada de conscincia acerca do
seu papel na sociedade - papel este, muitas vezes, socialmente imposto - pressupe as condies
necessrias para lidar com esta sua condio, procurando sadas, ou melhor, alternativas de
melhoria de suas condies sociais, alcanando, assim a liberdade. Porm, este processo no pode
acontecer por uma via impositiva, mas antes por um processo de auto-descoberta, de
consciencializao, ainda que nele esteja implicado o educador-facilitador. Dessa forma, e
segundo Paulo Freire o processo de libertao no pode ser feito de forma impositiva sobre os
oprimidos(Freire, 1984:9).
Hugues de Varine (2004), na sequncia da concepo Freiriana de educao popular,
considera que esta metodologia educativa9 se enquadra no trabalho comunitrio dos museus de
territrio, encarando-a como um instrumento para o desenvolvimento da comunidade e que, desta
forma, se formula dentro do pressuposto da animao consciente10, permitindo libertar a
capacidade criadora dos indivduos e de os levar a ocupar um lugar de actor cultural, social e
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9 Por oposio Educao Popular - cujo objectivo o desenvolvimento da comunidade atravs do envolvimento participado dos indivduos da populao local, num processo que considera os sujeitos como recursos na seleco, valorizao, recuperao e partilha dos patrimnios, e que julgam ser identitrios dessa comunidade - temos a Educao Patrimonial que, atravs de uma seleco prvia do patrimnio, o toma como instrumento estratgico de promoo e vivncia da cidadania, seguindo as demandas das polticas culturais e trabalhando numa literacia cultural, essencialmente com as escolas, de forma a responsabilizar os elementos mais novos da populao pela herana colectiva e pela sua perpetuao no tempo. Note-se, porm, que o que decorre da Educao Popular assim como da Educao Patrimonial nada mais que um processo. Da mesma forma que um educador no pode pressionar o educando a libertar-se, no cabe ao mesmo, ou ao Estado, ditar o que patrimnio. Antes de qualquer coisa preciso possibilitar ao educando que perceba a sua condio na sociedade, assim como a hiptese de escolher o que deve ser ou no patrimnio.
10 Segundo Hugues de Varine a animao consciente, acompanha o desenvolvimento comunitrio atravs do apelo participao activa e criativa dos indivduos, em vez da animao promocional, vulgarmente divulgada nos museus e que relaciona um produto a um pblico-alvo proclamando a ilusria satisfao dos pblicos, pois o seu nico fim a promoo do produto. Para Varine, h duas outras motivaes principais na opo pela realizao deste tipo de animao: por um lado, justificar a existncia da instituio museolgica e, por outro, a valorizao do patrimnio (Varine, 1978).
econmico, na sua comunidade e no seu territrio. Chega-se assim, e de forma algo surpreendente,
a passar muito rapidamente da tomada de conscincia tomada de confiana em si mesmo, em
seguida iniciativa, e da organizao colectiva (Varine, 2004).
Impe-se agora como necessria uma breve interrupo, para assim compreendermos alguns
conceitos que at aqui referimos e que doravante se tornaro fundamentais no exerccio de anlise
que faremos. Adoptando ento o sistema de significao de Hugues de Varine (1991), entendemos
por comunidade uma populao que vive num territrio, consciente das afinidades e diferenas
existentes entre os seus elementos, assim como das relaes destes com o seu ambiente, e cujo
futuro , pelo menos parcialmente, comum. As comunidades podem depender de estruturas
institucionais (de natureza poltica, tcnica, econmica - colectividades locais, empresas, etc.) ou
formar estruturas espontneas (agrupamentos de indivduos, podendo estar ou no constitudos
legalmente, cujo objectivo social seja definido livremente), podendo tomar diferentes dimenses, de
carcter mais ou menos local (de vila, regio, pas, nacional; de empresa, religio, escolar, familiar,
etc.). No esqueamos que cada indivduo pode fazer parte de mais de uma comunidade, embora
umas possam depender das suas escolhas individuais e outras no, estando por isso condicionada
toda a sua existncia s comunidades a que pertence.
Embarcados que estamos, aproveitamos o ensejo para abordar a definio que o mesmo autor
faz de desenvolvimento comunitrio, construindo-a enquanto ideia agregadora de conceitos, actos,
esforos que visam promover o crescimento social, cultural, econmico e humano em geral de
determinada comunidade, por iniciativa dos seus membros, que actuam individual ou
colectivamente. Baseando-se assim no dilogo entre conceitos como o de desenvolvimento no seu
sentido mais lato (no restringindo apenas ao sentido economicista do termo, mas ao
desenvolvimento harmonioso do homem e da sociedade mediante o equilbrio constante entre a
tradio e a inovao espiritual e tecnolgica), quadro comunitrio natural (espao crescente que
engloba sucessivamente a famlia, o ambiente profissional, a rua, a cidade, o pas, etc.) ou ainda de
um desenvolvimento procurado pelas comunidades (sucessivas e simultneas) que seja desejado e
planeado, atravs de uma postura crtica, por estas comunidades e seus membros, quer
individualmente quer colectivamente (Varine, 1991). certo que as diferentes comunidades devem
dialogar, concorrer, completar-se, a fim de executarem modelos de desenvolvimento compatveis.
O desenvolvimento comunitrio configura, ento, a dimenso poltica da via cultural,
entendendo-se por cultura o conjunto de solues encontradas pelo homem e pelo grupo para os
problemas que o meio natural e social apresenta. Assim sendo, a cultura tem um carcter
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essencialmente comunitrio, afastando-se de uma definio tanto generalista quanto individualista e
limitativa do campo cultural que considera apenas os feitos de genialidade do homem e da
humanidade.
cultura da criao-deciso, reservada a uma elite e a profissionais graduados, e suportada
pela tecnocracia e legitimada por uma democracia descomprometida, dever suceder-se, nas
palavras de Hugues de Varine, uma cultura da iniciativa. Tornando-se num acto criador por
excelncia, apesar de no se constituir num devaneio intelectual sem qualquer aplicabilidade, mas
na capacidade dos membros de uma sociedade de encontrar solues originais para os problemas
com que se deparam. A iniciativa , assim, a gnese da mudana por se constituir enquanto uma
resposta baseada na identificao e anlise de um problema com as suas complexidades, seguido-se
de uma definio de estratgias e, por conseguinte, a delimitao de um objectivo, isto , a
concepo de um projecto. As motivaes que lhe deram origem so pouco importantes, se
espontneo ou planeado, essencial ser a ser a gnese comunitria da iniciativa, alimentada por
elementos provenientes do capital da experincia colectiva, caractersticos da comunidade ou
exterior a ela. A iniciativa constitui, assim, a condio fundamental do desenvolvimento
comunitrio. Contudo, se a iniciativa pode ser o impulso, na aco que se concretiza esta vontade
primeira.
A aco (enquanto pedagogia e libertao) a linguagem privilegiada da cultura uma vez que
um meio de exprimir, provavelmente melhor que as palavras, a relao que mantemos com o meio
e com os outros. Isto porque a aco (da forma como a entendemos) tem por objectivo mudar uma
dada situao, resolver um problema preciso. A aco no , portanto, importante per si, mas pelo
facto de ser a concretizao de uma iniciativa. Ela deve obter resultados mnimos, como o de
alcanar os objectivos definidos pela iniciativa; aumentar a experincia e por isso o nvel de
conhecimento do indivduo ou do grupo que tomou a iniciativa, contribuindo para o enriquecimento
do capital comunitrio; ou ainda constituir uma etapa no seio da evoluo colectiva que pode
encetar novas iniciativas. Assim resulta uma pedagogia de libertao envolvendo todos os actores
de desenvolvimento, tornando, atravs da consciencializao, o indivduo ou o grupo social em
sujeito consciente, e no mais uma vtima da sua vida e do seu futuro.
E assim retomamos uma ideia que havia sido interrompida, na tentativa que foi, atravs deste
breve enquadramento, uma aproximao aos conceitos relacionados com a utilizao social e com o
bem estar dos cidados, que apresentam os museus como instituies sociais ao servio da
comunidade. Segundo este modelo, o museu ter um papel fundamental na compreenso do
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territrio e da identidade, servindo para promover a valorizao social, econmica e cultural
localizada numa perspectiva de desenvolvimento global e equilibrado do territrio. Num processo
democrtico, por excelncia, na sua abordagem multi, inter e transdisciplinar do territrio,
concebendo o museu como uma componente importante do seu desenvolvimento. Corroborando
Alice Semedo (2006:79), para alm do museu como recurso identitrio, o que tambm
fortemente proposto j no tanto o museu-animador mas sim o museu-curativo, ou museu-
til: propem-se projectos que deveriam tentar responder s ansiedades da sua comunidade,
apoiando-a na sua questionao e encorajando a descoberta de solues para estas questes. Para
que tal ambio se cumpra, ser ento necessrio adoptar uma museologia dinmica e de aco,
centrada na comunicao de ideias e problemas. A interveno cultural significava agora que a
populao era envolvida no processo de criao e fruio, nomeadamente atravs da apropriao
do seu prprio patrimnio. Territrio e populao, identidade e desenvolvimento comearam a ser
apresentados como fazendo parte integrante de alguns projectos museolgicos (Semedo, 2006:79).
2.3. Museu em contexto
Apresentando-se o museu com o propsito de fornecer smbolos culturais destinados a
conferir um sentimento de pertena, permanncia e continuidade em relao ao passado, encerrando
em si mesmos a capacidade de se metamorfosearem no sentido da redefinio dos seus significados
no presente, com o propsito instrumental de construo de identidades colectivas, particularmente
importantes no quadro dos movimentos de globalizao em que culturas e identidades se
complexificaram e desterritorializaram (Anico, 2008). A construo deste sentimento de pertena e
da redefinio de uma identidade colectiva tanto mais evidente em sociedades ps-coloniais,
vidas de encontrarem o seu cunho identitrio cultural, num perodo conturbado e de profundas
mudanas sociais e polticas, em que uma grande utopia libertria passou a ser o mote para a
construo das identidades dos povos de frica (Augustoni e Viana, 2010:189). Porm, aps a
descolonizao, h uma nova crise identitria que se configura. Aps dcadas sob o jugo colonial, o
prprio sujeito precisa de se reconhecer e legitimar a si prprio.
Segundo Alda do Esprito Santo (1978), o continente Africano e as reas do chamado
Terceiro Mundo constituem as reas do planeta que, conhecendo a dominao poltica e econmica
e a usurpao dos seus recursos naturais e humanos, foram efectivamente afectadas na sua evoluo
cultural. Contudo a violncia do capitalismo e do imperialismo conduziram paradoxalmente os
povos africanos a contraporem a sua resistncia, como poderosa fora de resistncia, como analisou
20
Amlcar Cabral na obra A arma da teoria. Constituindo a luta de libertao um processo
cultural (Cabral, 1976:221), a luta dos povos africanos, pela sua verdadeira emancipao conferiu
a esses povos um sentido novo de anlise das suas culturas, dissecando com objectividade os
aspectos positivos e negativos do seu patrimnio, conscientes de que a permuta recproca, sem
ambivalncias e sem tentar implantar o imperialismo cultural, uma forma de intercmbio vlido e
de cooperao universal.
Neste contexto, e voltando a ateno para a questo da construo das identidades culturais
na contemporaneidade, dificilmente se escapa da problemtica da configurao identitria do
sujeito que se situa num tempo e num espao marcado pela descolonizao tardia. No sculo XX,
vrios pases de frica ainda se encontravam sob a gide de naes ocidentais, mormente
europeias. Vitimizado por grandes equvocos no trato, nos conceitos e no referencial quanto ao que
seria frica e quem ou como seriam as gentes africanas, o continente, durante sculos, foi visto
como um bloco nico composto de gente brbara, designada de forma simplista como africano
ou negro, signos identitrios que na contemporaneidade so reconhecidamente insuficientes para
dar conta da diversidade tnica, cultural e racial dos povos e naes africanas. Esta questo torna-se
tanto mais complexa quando, no quadro africano, nos deparamos com So Tom e Prncipe, uma
sociedade inventada (Henriques, 2000), construda atravs de um longo processo de aculturao
dos povos transferidos, das culturas transportadas, das lnguas postas em convvio, originando
importantes snteses, que deram lugar a um outro povo (Neves, 1989:189).
Se certo que a cultura um valor universal, que o intercmbio forado ou consequente
influi na estratificao de determinadas reas culturais, contudo cada povo conserva a sua
identidade especfica, delimitada pelos sistemas econmicos e sociais, que entravaram a sua
projeco, ou concorreram para a sua evoluo (Santo, 1978).
Se, de facto, o problema da identidade do indivduo, duma comunidade ou de um povo for um problema de particularidades individuais ou de um conjunto de elementos intrnsecos ao indivduo ou comunidade,
elementos esses que, os permitiu distinguir dos demais, ento, os museus devem ser um veculo de transmisso de conhecimentos e um meio atravs do qual preservamos o que nosso, portanto que nos difere dos outros.
(Cardoso, 1991:29)
Os museus so ento chamados a cumprir essa funo sobretudo quando tomamos em
considerao a prpria dinmica da cultura, que um elemento de expanso, em desenvolvimento,
cuja caracterstica fundamental a sua ntima ligao, da dependncia e de reciprocidade, com a
realidade econmica e social do meio, com o nvel das foras produtivas e o modo de produo da
sociedade que a cria (Cardoso, 1991:29). O museu torna-se num centro onde se exprime uma
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dinmica social de grupos que trabalham sobre a sua identidade, filiao e legitimidade, utilizando a
memria e o passado como motores de tal reflexo. O social torna-se, assim, o objecto
privilegiado da gesto cultural e a museologia e a educao popular legitimam-se, demonstrando o
drama do deslocamento e do tecido social e da desintegrao dos corpos sociais no decorrer das
grandes transformaes da sociedade (Jeudy, 1990:32).
Deparamo-nos ento com a questo que, j em 1991, no III Encontro de Museus de Pases e
Comunidades de Lngua Portuguesa, se tentava compreender, subordinado que estava ao tema Que
museus para os pases africanos de lngua portuguesa?.
Natlia Correia Guedes, admitindo que a soluo do museu tradicional nas zonas urbanas,
atravs da reformulao de coleces j existentes e completando as que so embrionrias, bem
como da constituio de uma Rede de Museus Nacionais e regionais, seja uma urgncia, questiona-
se(nos) porm:
Interessar provocar o aparecimento de museus locais ou ser mais sensato aproveitar a experincia e infra-estruturas de um museu regional mais prximo para fazer aces de sensibilizao, de inventrio, de registo
grfico e sonoro, mantendo os objectos no local de origem em plena utilizao, sem a preocupao de constituir oficialmente antenas? (...) a prpria comunidade local africana encontrar o caminho certo na
conservao do seu patrimnio se o Museu Regional a elucidar devidamente sem a pretenso de impor nenhum modelo pr-estabelecido. (Guedes, 1991:195)
Apesar da independncia dos pases, outrora sob jugo colonial, parece-nos fundamental
contemplar o papel da cooperao, pela importncia que ser estabelecer um dilogo com os pases
que exerceram soberania nesses territrios ou os que possam ter interferido na construo das
identidades culturais de modo a que a respectiva representao esteja assegurada na devida
proporo temporal e sobretudo na identificao e conservao das memrias. A lngua, e por
conseguinte o espao da Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa (CPLP), ser um veculo
fundamental para uma cooperao de ampla abrangncia atravs quer de recursos tcnicos quer
financeiros.
neste quadro que nos importa arquitectar um esquema conceptual e operativo centrado na
instituio museu enquanto um instrumento suplementar e complementar para acompanhar e
alimentar as dinmicas do desenvolvimento do territrio, como o define Hugues de Varine,
complementando:
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O museu testemunho da implicao da comunidade, que se empenha pelo seu patrimnio num movimento colectivo. Enquanto museu de territrio, o nico dispositivo que permite mobilizar globalmente o patrimnio
do territrio como recurso, de federar sua volta os respectivos proprietrios, de sensibilizar a populao, de trabalhar eficazmente com a escola e as estruturas de educao popular. (Varine, 2005:11)
Do conceito de ecomuseu interessa-nos, assim, uma ideia de mutabilidade e consequente
capacidade de adaptao s mudanas inesperadas decorrentes da cada sociedade e,
fundamentalmente, da capacidade de adequao sociedade em que est inserido. Na sua definio,
Georges Henri Rivire estabelece que esta tipologia de museu um instrumento que o poder
poltico e a populao concebem, fabricam e exploram conjuntamente. Ele deve ser tambm um
espelho, onde a populao se contempla para se reconhecer, onde procura a explicao do territrio
no qual est enraizada e no qual viveram todos os povos que a precederam, na continuidade e
descontinuidade das geraes (Soares, 2006).
Ancorados nesta perspectiva, ser mediante uma colaborao entre a comunidade e a
instituio que esta, estando ao seu servio, com ela concebe as estratgias de gesto patrimonial.
Parece-nos fundamental aqui referir a gnese do processo do Ecomuseu do Seixal, pela adequao
que dela gostaramos de fazer. Acerca deste ponto, Graa Filipe, aponta:
O que particularizou, em primeiro lugar, a poltica patrimonial e o processo museolgico do Seixal, foi o patrimnio identificado, num dado meio social e natural, e as circunstncias que levaram sua seleco,
interpretao e apropriao colectiva, sob a aco de elementos que se tornaram protagonistas daquele processo e de cuja interveno, ancorada numa estreita relao com a comunidade, mas em crescente
aproximao museologia profissional, emergiu a necessidade de recorrer programao museolgica. (...) Importa-nos compreender como se processa a apropriao e o reconhecimento de certos bens, em particular
os casos que contam com a interveno directa ou indirecta do museu com a comunidade a assumir a responsabilidade ou a atribuir aos seus representantes a incumbncia de gesto do patrimnio ou dos bens
que, por essa via, se configuram como tal. Pensamos que ao museu cabe um papel da maior importncia no processo de patrimonializao que implica mtodos cada vez mais exigentes e onerosos, com suporte tcnico
e cientfico adequado, quer do ponto de vista dos objectos preservados, quer na perspectiva dos projectos de salvaguarda a que se associam certos saberes indispensveis gesto do patrimnio, com vista a manter
vivos traos culturais a que a comunidade reconhece valor especfico. (Filipe, 2000)
O percurso que at aqui tramos, nada mais que uma tentativa de definirmos as
ferramentas operativas com que trabalharemos em seguida e, por isso, indispensveis para
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compreendermos o nosso campo de anlise, bem como para a definio de um projecto cultural11
que nele se baseia. Deste modo, o que faremos ser uma anlise preliminar de uma dada realidade
que se configura num diagnstico, consubstanciado pela caracterizao geogrfica, histrica e
social do territrio, bem como pela anlise das estruturas culturais nele existentes e da estreita
relao do pas com o exterior, nomeadamente atravs dos agentes de cooperao internacional.
Esta fase preliminar ser fundamental pela necessidade de planeamento que configure um
subsequente projecto de aco e de desenvolvimento sustentado. Embora a sua operacionalidade
dependa deste estudo prvio, ser da sua constante rectificao processual que o mesmo poder
alcanar resultados satisfatrios.
A inexistncia de uma poltica cultural para o patrimnio, engajada e comprometida com
todas as comunidades e traada com objectivos a longo prazo, leva-nos a compreender aqui o
museu como um instrumento institucional cujas ferramentas organizativas possibilitaro envolver
toda a comunidade e estruturas existentes no pas, na necessidade premente que promover a
participao, a nvel nacional, na aco patrimonial que, longe de se confinar ideia de conservao
do passado, necessita da memria e de elementos geradores e activadores dessa memria, que
reforcem os sentimentos de pertena das comunidades (Filipe, 2000:23).
Entendemos ento que este processo trata, principalmente, da identificao do patrimnio
nacional santomense atravs de uma iniciativa encetada por uma fora motriz, de estrutura
museolgica, traduzida pela constituio de um inventrio (participativo), onde todas as
comunidades sero chamadas a intervir, numa iniciativa que ser tambm sua. Concomitantemente,
o museu desenvolver a funo de investigao e estudo da recolha que ser levada a cabo, sem
esquecer o papel da educao que dever acompanhar todo o processo em parceria com as
estruturas de educao j existentes.
A funo investigao a base estruturante de todas as actividades museolgicas, desde a conservao difuso e aco cultural. Dela decorrem orientaes fundamentais, no s para a poltica de incorporao
do museu e para a definio do estatuto de objecto museal (objecto-documento), como tambm para o sistema de documentao. Este abarcar quer os bens tornados museais, quer a diversidade de dados resultantes do
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11 Um projecto cultural uma ferramenta de desenvolvimento que procura definir os conceitos matriz acerca da vocao do museu, a sua misso, os seus objectivos, o seu papel, cultural, social e econmico. Constitui a estrutura de referncia para a consequente programao museolgica, considerada em todas as suas vertentes: programa institucional, programa de coleces, programa arquitectnico, programa de exposies, programa de difuso e comunicao, programa de segurana, programa de recursos humanos, e programa econmico. O programa geral do museu , concretamente, o conjunto de parmetros, inerentes disciplina ou s disciplinas de base do museu, sua dimenso e mbito de interveno e posio que ocupa territorialmente, numa regio, num pas ou no mundo, dotando-o de uma poltica estrutural (Rasse e Necker, 1997; Filipe, 2000).
seu registo utilizando os instrumentos documentais mais adequados e uma ampla documentao relacionada com o estudo e interpretao de tais bens e contextos, assim como com a sua
comunicao. (Filipe, 2005).
Numa fase posterior, naturalmente, no seu tempo prprio, o museu nascer (Guedes, 1991).
3. So Tom e Prncipe: conhecer o territrio e a histria como contexto de desenvolvimento
Deixaram nas ilhas um legado/ de hbridas palavras e ttricas plantaes
engenhos enferrujados proas sem alento/ nomes sonoros aristocrticos/ e a lenda de um naufrgio nas Sete Pedras
Aqui aportaram vindos do Norte/ por mandato ou acaso ao servio do seu rei:/ navegadores e piratas/ negreiros ladres contrabandistas/ simples homens/ rebeldes proscritos tambm/ e infantes judeus/ to tenros que feneceram/ como espigas queimadas
Nas naus trouxeram/ bssolas quinquilharias sementes/ plantas experimentais amarguras atrozes/ um padro de pedra plido como o trigo/ e outras cargas sem sonhos nem razes/ porque toda a ilha era um porto e uma estrada/ sem regresso/ todas as mos eram negras forquilhas e enxadas
E nas roas ficaram pegadas vivas/ como cicatrizes - cada cafeeiro respiga agora um/ escravo morto.
E nas ilhas ficaram/ incisivas arrogantes esttuas nas esquinas/ cento e tal igrejas e capelas/ para mil quilmetros quadrados/ e o insurrecto sincretismo dos paos natalcios./ E ficou a cadncia palaciana da ssua/ o aroma do alho e do zt dochi/ no tempi e na ubaga tla/ e no calulu o louro misturado ao leo de palma/ e o perfume do alecrim/ e do mlajincon nos quintais dos luchans
E aos relgios insulares se fundiram/ os espectros - ferramentas do imprio/ numa estrutura de ambguas claridades/ e seculares condimentos/ santos padroeiros e fortalezas derrubadas/ vinhos baratos e auroras partilhadas
s vezes penso em suas lvidas ossadas/ seus cabelos podres na orla do mar/ Aqui, neste fragmento de frica/ onde, virado para o Sul,/ um verbo amanhece alto/ como uma dolorosa bandeira. (Lima, 2004)
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3.1. Enquadramento geogrfico
Situadas no Golfo da Guin12, as ilhas de So Tom e Prncipe fazem parte do outrora
conhecido arquiplago composto tambm pelas ilhas de Fernando P13 e Ano Bom14 e vrios ilhus,
num conjunto disposto na bissectriz do golfo (cf. fig.1 em anexo), num alinhamento com mais de
2000Km de extenso. Dada a orientao do alinhamento vulcnico, as ilhas vo-se afastando
progressivamente da costa africana a partir da mais setentrional: contabilizam-se apenas 20 milhas
(37 km) de mar at primeira ilha, Fernando P, seguindo-se, a 160 milhas (296Km), a ilha do
Prncipe, a 180 milhas (330 km) a ilha de So Tom e, por fim, a mais afastada, Ano Bom, a pouco
mais de 200 milhas (370 Km).
As ilhas So Tom e Prncipe so as mais prximas entre si, distando apenas 82 milhas
(150km) e com uma superfcie de 859 km2 e 142 km2, respectivamente, perfazendo um total de
cerca de 1000km2. As ilhas com maior e menor superfcie so Fernando P, com 2034Km2 e Ano
Bom, com apenas 17km2.
O clima das ilhas fortemente influenciado pela sua situao geogrfica no vale
depressionrio do equador e na zona de convergncia intertropical (ZCIT)15, assim como pela
corrente quente do golfo. Todavia, embora prximas, distam o suficiente para nelas se verificarem
retoques climticos que lhes davam cor e paisagem particulares (Tenreiro, 1961:15). Ano Bom
define-se por ser menos hmida e mais baixa em altitude; o Prncipe apresenta-se com um relevo
mais caprichoso; So Tom, com um nordeste baixo um pouco rido durante uma parte do ano e um
sul de relevo dissecado, assemelhando-se ilha do Prncipe; Fernando P, pela proximidade que
estabelece com o continente, em muito se assemelha com a vegetao e fauna da frica Ocidental.
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12 O Golfo da Guin uma grande reentrncia na costa ocidental de frica, portanto, parte do Oceano Atlntico. O seu nome provm da denominao que os europeus deram quela parte do continente africano: Baixa Guin, mas dois dos pases africanos que actualmente detm aquele nome - a Repblica da Guin e a Guin-Bissau - no partilham a costa deste golfo; apenas a Guin Equatorial se encontra nesta regio. Os pases que partilham a costa do Golfo da Guin (de noroeste para sueste) so: Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim, Nigria, Camares, Guin Equatorial e Gabo (parte norte). Neste golfo, encontram-se ainda vrias ilhas: Bioko e Ano Bom, que fazem parte da Guin Equatorial, e as ilhas de So Tom e Prncipe. E nele drenam trs grandes rios: Nger, Volta e Congo. No Golfo da Guin cruzam-se a Linha do Equador (0 de latitude) e o meridiano de Greenwich (0 de longitude).
13 Actual Bioko, Guin Equatorial.
14 Actual Annobn, Guin Equatorial.
15 A Zona de Convergncia Intertropical (ZCIT) a rea que circunda a Terra, prxima ao equador, onde os ventos originrios dos hemisfrios norte e sul se encontram. Entre os anos 1920 e 1940 a ZCIT era denominada por Frente Intertropical (FIT), porm, com o reconhecimento, nos anos 1940 e 1950, da relevncia da convergncia de ventos para a determinao do clima tropical, o termo foi substitudo por ZCIT.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_do_Equadorhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_do_Equadorhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Clima_tropicalhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Clima_tropical
Ainda no que respeita s caractersticas especficas das ilhas, So Tom e Prncipe definem-
se pela existncia de duas estaes, a das chuvas (de Outubro a Maio, coincidindo com a poca de
mais calor) e a seca ou gravana (de Junho a Setembro), com temperaturas mdias anuais que variam
entre os 22 e os 30 C. A temperatura varia em funo da altitude e da pluviosidade, sendo
caracterstica uma forte densidade de humidade, quase sempre superior a 75%. Fernando P, por
exemplo, apesar de partilhar a influncia da frente intertropical, nem as pocas de chuva nem os
perodos secos (de Novembro a Maro, onde se inclui o perodo de temperaturas mais elevadas),
so coincidentes.
Ambas as ilhas, tendo em vista o seu aspecto primitivo, esto descaracterizadas, pelo tanto
que foram remexidas pelo homem. As ilhas de So Tom e Prncipe so quase que constitudas por
vegetao introduzida desde os primrdios da colonizao, principalmente no que se refere a
plantas alimentares (Tenreiro, 1961:15). Percorrendo as ilhas, no meio de uma vegetao
exuberante, entrecortada por numerosos cursos de gua e riachos, distinguem-se relevos
acidentados de altitudes diferentes, originando a existncia de variados microclimas. A ilha de S.
Tom extremamente montanhosa, culminando com uma aguda escarpa que comea na cratera de
um extinto vulco a 1480m (Lagoa Amlia) at ao Pico de S. Tom (2024 m) e alguns fonolitos16
escarpados, como o Co Grande (663 m) e o Co Pequeno (390 m), de muito difcil acesso; num
sistema bastante dissimtrico, que cai bruscamente para o mar no quadrante oeste, contrapondo com
um terreno que desliza suavemente na restante costa. O relevo da ilha do Prncipe , em termos
gerais, menos pronunciado do que o da ilha de So Tom, dividindo-se em duas zonas orogrficas
bastante distintas, a regio Norte, que apresenta uma plataforma de altitude situada entre os 120-180
metros e um relevo pouco pronunciado, com pequenas elevaes e declives que do para o mar; a
regio Sul mais acidentada, com numerosos picos mais ou menos agudos, sendo o Pico do
Prncipe (948 m) o mais alto, inserindo-se numa Cadeia de Serranias de Leste para Oeste que se
dilata ainda um pouco para norte com os Picos Papagaio, Joo Dias Pai e Joo Dias Filho. As ilhas
apresentam vegetao tropical luxuriante, inclusive nos picos mais altos, uma vez que o pas
atravessado pelo Equador, no ilhu das Rolas. nestes picos e montanhas que a floresta equatorial
hmida17 primitiva ainda preservada est actualmente confinada pela sua inacessibilidade.
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16 Rocha vulcnica.
17 Plurisilva a designao da floresta tropical que se caracteriza pela alta pluviosidade (2000 a 5000 milmetros por ano) e temperatura mdia elevada. As florestas tropicais esto localizadas prximo do Equador da Terra, Amrica do Sul, frica e sia. Trata-se de um ecossistema dotado de extrema riqueza, devido variedade de espcies ali existentes e, de grande interesse, uma vez que, devido sua biodiversidade, se apresenta como fonte de inmeros recursos.
3.2. Razes histricas de uma sociedade crioula africana
Embora no seja consensual a data do descobrimento das ilhas do golfo da Guin - no
consideremos que este seja o espao indicado para descortinar tal matria, quer pela falta de
competncia acadmica quer pelo desviado que est da nossa questo fulcral - importa, porm,
adiantar algumas datas para assim balizar o perodo cronolgico e histrico de relevo para o nosso
estudo. Tal como adiantam os autores santomenses Carlos Agostinho das Neves e Maria Nazar de
Ceita (2004:11) tudo comeou com Lopes Lima, um estudioso da expanso portuguesa que, nos
meados do sculo XIX, ao escrever sobre o assunto, ter aventado a hiptese daquelas ilhas terem
sido descobertas por Joo de Santarm e Pero Escobar, nos finais de 1470 e princpios de 1471;
ainda segundo os mesmos autores ter sido a partir desta tese que se comeou a assumir estas datas
como uma possibilidade para a descoberta das ilhas.
Um ponto que parece consensual o que diz respeito aos protagonistas do descobrimento
das ilhas e condies da explorao. Corroborando a tese dos mesmos autores, Carlos Esprito
Santo (1998:15) adianta Joo de Santarm e Pero Escobar, encarregados por Ferno Gomes
[arrendatrio das terras africanas herdadas pelo rei portugus D. Afonso V, cujo contrato por cinco
anos o obrigava a desbravar a costa a partir da Serra Leoa] de prosseguirem a explorao da referida
costa [Africana] alm do Cabo das Palmas18, atravessarem o reino do Benim no recncavo do Golfo
da Guin, e no dia 21 de Dezembro de 1470 viram o prolongamento da cordilheira dos Camares
uma ilha de 857 Km2 aproximadamente, que decidiram chamar So Tom, em memria do apstolo
celebrado nessa data. A ilha do Prncipe seguir-se-ia em 1471, no dia 17 de Janeiro, dia de Santo
Anto, nome primitivo da ilha do Prncipe.
No que ao processo de colonizao diz respeito, importa referir as diferentes pocas em que
este se deu. Se, por um lado, a ilha de So Tom foi elevada a capitania por carta rgia de Setembro
de 1485, outorgando o primeiro foral de privilgios a Joo de Paiva - o qual, aps um ano (1486)
havia de ser responsvel pelo desembarque dos primeiros colonos, na enseada de Ana Amb, perto
de Ponta Figo, no noroeste da ilha, onde fundam uma pequena povoao - a ilha do Prncipe s se
v povoada quase vinte anos mais tarde, em 1502, depois de outorgada a sua capitania, em 1500,
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18 O Cabo Palmas um cabo no extremo sudeste da Libria, e o ponto ma