Transcript of Psicanalise,filosofia e ciencia no discurso freudiano valeria ghisi
- 1. PSICANLISE, FILOSOFIA E CINCIA NO DISCURSO FREUDIANO
(Psychoanalysis, Philosophy And Science in the Freudian Discourse)
Valria Ghisi1 Srgio Scotti2 Resumo: Dois aspectos principais
destacam-se no discurso freudiano sobre a filosofia. Em primeiro
lugar encontramos a todo tempo a tentativa de expor a psicanlise
como algo radicalmente diferente do discurso filosfico com o
intuito de estabelecer a primeira no campo da cincia. Em segundo
lugar, e em decorrncia do primeiro objetivo, podemos encontrar de
forma sistemtica a desvalorizao do pensamento filosfico em relao ao
pensamento cientifico. Este artigo se prope a estabelecer,
cronologicamente, a posio da filosofia no discurso freudiano de
forma a explicitar as questes implicadas em tais afirmaes.
Poderemos acompanhar o movimento que, simultaneamente, afasta a
psicanlise da filosofia para aproxim-la da cincia mas que deixa
aberto um espao para o trabalho especulativo caracterstico das
construes freudianas. Palavras-Chave: Freud, Psicanlise, Filosofia
Abstract: Two main features stand out in the Freudian discourse on
philosophy. First, we frequently find an attempt to expose
psychoanalysis as something radically different from the
philosophical discourse in order to establish the first in the
field of science. Secondly, and as a result of the first objective,
we can find in a systematic devaluation of the philosophical
thought in relation to scientific thinking. This article tries to
establish, chronologically, the philosophy position in Freudian
discourse in order to clarify the issues involved in such
statements. We can follow the movement that simultaneously removes
psychoanalysis from philosophy to bring it closer to science but
that leaves a space open for speculative work characteristic of
Freudian constructs. Key-words: Freud, Psychoanalysis, Philosophy
Mesmo tendo muitos temas em comum, a articulao entre filosofia e
psicanlise no se mostra evidente. Se tomarmos como ponto de partida
as referncias freudianas Filosofia veremos o quanto tal aproximao
pode ser problemtica. Dois aspectos principais destacam-se no
discurso freudiano sobre a filosofia. Em primeiro lugar encontramos
a todo tempo a tentativa de expor a psicanlise como algo
radicalmente diferente do discurso filosfico com o intuito de
estabelecer a primeira no campo da cincia. Em segundo lugar, e em
decorrncia do primeiro objetivo, podemos encontrar de forma
sistemtica a desvalorizao do pensamento filosfico em relao ao
pensamento cientifico. Este artigo se prope a estabelecer,
cronologicamente, a posio da filosofia no discurso freudiano de
forma a explicitar as questes implicadas em tais afirmaes.
Poderemos acompanhar o movimento que, simultaneamente, afasta
a
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Valria Ghisi & SrgioScotti 149 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. psicanlise da filosofia para
aproxim-la da cincia mas que deixa aberto um espao para o trabalho
especulativo caracterstico das construes freudianas. Primeira
dcada: a criao de uma psicologia cientfica distinta da filosofia Em
1890, ao escrever sobre o tratamento psquico, Freud apresenta a
cincia mdica como uma disciplina recm afastada da filosofia que se
interessa exclusivamente pelos aspectos fsicos das doenas. Ao
dedicarem-se apenas ao corpo, os mdicos cometeriam o erro de deixar
o psiquismo nas mos dos filsofos. necessrio que a medicina se
interesse sobre os efeitos do psiquismo sobre o corpo e o abordem
desde uma perspectiva cientifica. Assim procedendo seria possvel
constituir um verdadeiro conhecimento sobre o psiquismo e
estabelecer procedimentos mais eficientes para o tratamento das
neuroses uma vez que estas, segundo Freud, so influncias
modificadas da vida psquica sobre o corpo. necessrio ento que se
desenvolva uma disciplina mdica que tome como objetivo o estudo das
influncias do psiquismo sobre o corpo sem, com isso, abandonar o
terreno da cientificidade e retornar filosofia Em A interpretao dos
sonhos (1900) Freud anuncia o tom de suas criticas filosofia
afirmando ser a tarefa da psicanlise trazer para o discurso
cientifico o estudo dos processos inconscientes, recusado pelos
filsofos que estabelecem a equivalncia entre conscincia e
psiquismo. Sem determinar quais seriam esses filsofos, Freud
insiste na originalidade de seu objeto. Enquanto a psicologia lidou
com esse problema atravs de uma explicao verbal no sentido de que
psquico significava consciente, e de que falar em processos
inconscientes era um contra-senso palpvel, qualquer avaliao
psicolgica das observaes feitas pelos mdicos sobre os estados
psquicos anormais estava fora de cogitao. Mdico e filsofo s podem
unir-se quando ambos reconhecerem que a expresso processos psquicos
inconscientes a expresso apropriada e justificada de um fato
solidamente estabelecido. S resta ao mdico encolher os ombros
quando lhe asseguram que a conscincia uma caracterstica
indispensvel do psquico, e talvez, se ele ainda sentir respeito
suficiente pelos enunciados dos filsofos, ele possa presumir que
eles no estavam tratando da mesma coisa ou trabalhando na mesma
cincia. (p.636) O mesmo argumento retomado diversas vezes nessa
primeira dcada do sculo XX. Podemos encontra-lo em 1901, nas
paginas 108 e 109 dos Fragmentos da anlise de um caso de histeria,
e tambm nos textos: Sobre a psicoterapia (1904), O chiste em suas
relaes com o inconsciente (1905), Delrio e sonho na Gradiva de
Jensen (1907) O homem dos ratos (1909) No texto de 1904 evidente a
proposta freudiana de afastar radicalmente a psicanlise da
filosofia pois tal aproximao seria algo temvel para a nova cincia.
Freud inicia sua conferncia afirmando que se as teorias
psicanalticas encontraram algum reconhecimento o mesmo no pode ser
dito da tcnica que as acompanha. Atribui essa dificuldade ao fato
de que a psicoterapia seria muitas vezes vista pelos mdicos como
uma espcie de misticismo no cientfico indigno do interesse de um
investigador da natureza. (p.224) dessa viso de psicologia que
Freud tenta afastar a psicanlise ao prop-la sob a forma de uma
psicologia cientifica(p.245). Ao final da mesma conferencia Freud
afirma: Mas no temam os senhores que isso nos precipite nas
profundezas da mais obscura filosofia. Nosso inconsciente no de
modo algum idntico ao dos filsofos, e alm disso, a maioria destes
nada quer saber sobre o psiquismo inconsciente(p.252)
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Valria Ghisi & SrgioScotti 150 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. De toda forma Freud tenta
estabelecer a diferena entre dois campos que, em sua escrita, so
radicalmente distintos. Se o filosofo aborda o inconsciente, este
no o mesmo inconsciente da psicanlise pois considerado apenas
enquanto o oposto ao consciente. Se rejeita a ideia de inconsciente
porque est submisso perspectiva consciencialista, que nada tem a
ver com a psicanlise. Portanto, a psicanlise se estabelece alheia
toda e qualquer proposio filosfica. Segunda dcada: a cincia
psicanaltica A segunda dcada de escritos freudianos ir deixar um
pouco de lado o distanciamento da filosofia para empreender um
maior posicionamento da psicanlise enquanto prtica clnica
cientifica. Nesta poca Freud ir escrever diversos textos que tem
por objetivo apresentar a clinica da psicanlise e, simultaneamente,
estabelece-la como uma prtica cientifica, ou seja, baseada na
experimentao e na observao de fenmenos determinados. Em 1912, no
texto intitulado Recomendaes aos mdicos que exercem a psicanlise
encontramos a afirmao recorrente de que, em psicanlise, a tcnica se
estabelece como consequncia da experincia clnica. Segundo Freud:
Uma das reinvindicaes da psicanlise em seu favor indubitavelmente o
fato de que, em sua execuo, pesquisa e tratamento coincidem; no
obstante, aps certo ponto, a tcnica exigida por um ope-se requerida
por outro. () Casos que so dedicados, desde o principio, a
propsitos cientficos sofrem em seu resultado; enquanto os casos
mais bem sucedidos so aqueles em que se avana, por assim dizer sem
qualquer intuito a vista, em que se permite ser tomado de surpresa
por qualquer nova reviravolta neles, e sempre se o enfrenta com
liberalidade, sem quaisquer suposies. (p.128) Desta passagem
podemos concluir que a psicanlise clnica obtm seus melhores
resultados quando no segue um roteiro pr-determinado de
procedimentos e quando no orientada por suposies. O mesmo argumento
ser repetido em 1913 em Sobre o inicio do tratamento, quando a
anlise comparada ao jogo de xadrez no qual apenas o inicio e o fim
das partidas podem ser objeto de recomendaes, entre estes dois
pontos o que existe uma infinidade de jogadas possveis. Freud
afirma que as recomendaes que se estabelecem em relao conduo de uma
psicanlise no exigem aceitao incondicional e ope-se claramente a
qualquer mecanizao da tcnica. Torna-se ento legitimo questionar a
cientificidade da prtica psicanaltica. Sem um planejamento de aes,
sem determinao de objetos especficos e, consequentemente, sem um
procedimento que possa ser repetido e verificado, como pode a
psicanlise estabelecer-se enquanto uma cincia? Na conferencia
XXVIII de 1916 novamente encontramos o argumento de que o que bom
para a terapia prejudicial para as pesquisas mas desta vez o foco o
fenmeno da transferncia. Uma das objees frequentemente feitas
contra a psicanlise, ressaltada por Freud no referido texto, a
suposio de que o mdico influencia o paciente de tal forma que os
resultados objetivos das descobertas psicanalticas se tornam
duvidosos. Freud responde a tal considerao afirmando que em
psicanlise, ao contrario das terapias sugestivas, a transferncia
tambm submetida ao tratamento. Esta analisada como mais uma das
manifestaes da neurose e constantemente resolvida por ser
considerada expresso da doena. O tratamento sugestivo, este sim
poderia ser alvo das criticas feitas contra a psicanlise uma vez
que estimula e preserva cuidadosamente a transferncia, mantendo-a
intocada. Em 1918 Freud retoma os dois temas acima apresentados e
concebe a psicanlise como um conhecimento ainda em construo e,
portanto, incerto e inacabado. Sua proposta de admitir as
imperfeioes, aprender novas coisas e alterar o
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Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. mtodo quando necessrio. Continua,
entretanto, a recusar que o analista , aproveitando-se da situao da
transferncia, imponha-se ao paciente e determine suas aes ou
pensamentos. Recusamo-nos, da maneira mais enftica, a transformar
um paciente que se coloca em nossas mos em busca de auxlio em nossa
propriedade privada, a decidir por ele seu destino, a impor-lhe
nossos prprios ideais e, com o orgulho de um Criador, a form-lo
nossa prpria imagem e verificar que isso bom. (p.178) Logo em
seguida, neste mesmo texto, Freud ira retomar o tema da filosofia
para afirmar que a psicanlise no deve se colocar a servio de
qualquer perspectiva filosfica. Seria uma grave desvio tico assumir
uma determinada viso de mundo e imp-la aos pacientes. Novamente
vemos que na escrita freudiana a filosofia surge como um desvio, um
equivoco, e mesmo, um problema. Desta vez no se trata de
estabelecer a psicanlise enquanto cincia, e por isso afasta-la da
especulao filosfica, o que encontramos a recusa explicita em adotar
uma filosofia e divulga-la por meio do trabalho analtico. Assim, a
psicanlise no uma filosofia e to pouco compartilha de alguma viso
de mundo. Ao contrario, tal procedimento radicalmente oposto
liberdade que a psicanlise pretende garantir a seus pacientes.
Terceira dcada: a especulao psicanaltica Em 1920, no polmico texto
Alm do principio de prazer, Freud apresentar uma escrita sobre a
filosofia um tanto diferente do que apontamos at ento. No capitulo
VI encontramos explicitamente a referencia especulao psicanaltica.
Freud no evita tomar este rumo, at ento severamente criticado. Ao
contrrio, alerta seus leitores sobre sua proposta e segue adiante.
O que se segue especulao, amide especulao forada, que o leitor
tomar em considerao ou por de lado, de acordo com sua predileo
individual. mais uma tentativa de acompanhar uma ideia
sistematicamente, s por curiosidade de ver at onde ela levar.
(p.35) Encontraremos nessa especulao referncias um tanto vagas a
Plato, Empdocles e Kant. Do primeiro Freud recorta parte da fala de
Aristfanes, em O banquete, para apresentar a inicial indiferenciao
sexual humana. Freud se refere aos conceitos de Neikos e Philia,
formulados por Empdocles, para apresentar as pulses de vida e
morte. Kant mencionado na medida em que, para Freud, as descobertas
psicanalticas poderiam colocar em dvida sua proposio de que tempo e
espao seriam formas necessrias do pensamento. As referncias
filosficas no discurso freudiano so escassas e sempre pontuais.
Muitas vezes do a impresso de possurem somente um valor retrico por
serem apenas recortes deslocados de todo contexto que os origina e
sem qualquer discusso complementar. Tais analogias aparecem apenas
como forma de ilustrar o pensamento freudiano j que este no se
considera filiado a nenhuma filosofia. Tudo se passa como se as
descobertas psicanalticas, originadas da experincia e da observao,
encontrassem sua antecipao nas intuies dos mais renomados filsofos.
Em Resistncias psicanlise (1925) Freud retoma seu argumento de que
o psquico dos filsofos no similar ao da psicanlise e o privilegio
dado conscincia impede o dialogo entre as duas disciplinas. Em A
questo da anlise leiga (1927) ir retomar o problema da
cientificidade da psicanlise e sua relao com a filosofia. Freud
prope-se, no inicio do segundo capitulo, a apresentar a psicanlise
de uma forma compreensvel a um publico que no participa do meio
analtico.
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Valria Ghisi & SrgioScotti 152 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. Exporei isso dogmaticamente, como
se fosse uma estrutura terica completa. Mas no suponha ele que ela
surgiu como essa estrutura, como um sistema filosfico. Nos a
desenvolvemos lentamente, lutando com todos os pequenos detalhes da
mesma, temo-la modificado sem cessar, mantendo um continuo contato
com a observao, at que ela finalmente adquiriu uma forma na qual
perece ser suficiente para nossas finalidades. (...) A cincia, como
se sabe, no uma revelao; muito depois de seus primrdios ainda lhe
faltam os atributos de determinao, imutabilidade e infalibilidade
pelos quais o pensamento humano to profundamente anseia. (p.187)
Opondo o surgimento revelado do sistema filosfico lenta e
trabalhosa evoluo cientfica Freud insere a psicanlise nesta ultima
categoria. Mesmo se o produto final possa ser semelhante a uma
filosofia o processo que o constitui o implicaria no campo
cientifico. A cincia psicanaltica se interessa por um difcil e novo
objeto de pesquisa, o psiquismo inconsciente, e o fundamenta atravs
do estudo dos sonhos e dos sintomas neurticos. A psicanlise
encontra nestes um sentido e lhes explica, por isso poderia ser
considerada uma cincia. Para Freud uma psicologia que no capaz de
explicar os sonhos no pode ser capaz de compreender o psiquismo e,
consequentemente, no constitui uma cincia psicolgica. Tal afirmao
estabelecida para diferenciar a psicanlise da psicologia em duas
abordagens diferentes: a psicologia que se desenvolve nas
universidades e nos laboratrios, que se dedicam ao estudo da
fisiologia dos rgos dos sentidos, e a psicologia no cientifica que
todo e qualquer filosofo, escritor ou historiador ou biografo se
autoriza a propor. Um pouco mais adiante, entretanto, Freud ira
afirmar seu interesse em permanecer em contato com o modo popular
de pensar (p.190) tentando tornar suas construes cientificamente
teis ao invs de rejeit-las. Essa a maneira que Freud encontra para,
simultaneamente, reconhecer que muito de suas teorias j se encontra
nas especulaes de poetas, escritores e filsofos sem, contudo, abrir
mo de seu pioneirismo cientifico. Mais a frente encontraremos a
distino entre a psiquiatria, que procura os determinantes somticos
das perturbaes mentais, e a psicanlise. No discurso de Freud ambas
tem igual status de cincia mas diferem em seus objetos. justamente
por ser diferente da medicina que a psicanlise pode contribuir para
a cincia. Freud afirma que o tratamento das neuroses apenas uma das
utilidades da psicanlise uma vez que esta pode se constituir como
um conhecimento indispensvel para as cincias humanas em geral. No
ps-escrito de 1927, anexo ao j referido texto, encontramos o
resgate da afirmao de que cura e pesquisa so inseparveis quando se
trata da psicanlise. Essa cincia que se constri no contato com cada
paciente e o efeito desse novo conhecimento no processo teraputico
constitui, para Freud, o aspecto mais feliz do trabalho analtico.
Quarta dcada: a Weltanschauung da psicanlise Em 1932 Freud dedica
toda uma conferncia para tratar das relaes entre psicanlise,
filosofia e cincia. Seu discurso parte de uma questo central que se
desdobra em outra: A psicanlise conduz a uma determinada
Weltanschauung e, em caso afirmativo, a qual? (p;155) Logo de
inicio Freud apresenta sua concepo do que uma Weltanschauung: Em
minha opinio, a Weltanschauung uma construo intelectual que
soluciona todos os problemas de nossa existncia, uniformemente, com
base em uma hiptese superior dominante, a qual, por conseguinte, no
deixaria nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos
interessa encontra seu lugar fixo. (p.155)
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Valria Ghisi & SrgioScotti 153 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. O desejo por construes desse tipo
constitui, na viso freudiana, algo extremamente humano e responde
ao anseio pela segurana trazida pelo conhecimento absoluto que
ensina, de forma inequvoca, a lidar com as dificuldades do dia a
dia. A psicanlise permite cincia compreender tais exigncias da
mente humana e examinar suas origens. Tal fato, entretanto, no
significa justificar ou desprezar tais criaes, trata-se apenas de
desvendar suas motivaes. A psicanlise no constitui por si prpria
uma Weltanschauung mas participa da Weltanschauung cientifica. Esta
ltima tambm supe uma forma de explicar o mundo mas tal objetivo um
projeto futuro a ser atingido de forma lenta e seguindo um mtodo
bastante especifico do qual no participam outras fontes de
conhecimento alm da elaborao intelectual de observaes
cuidadosamente escolhidas. (p.156) Nenhum conhecimento cientifico
deriva da revelao ou da adivinhao, estas so apenas iluses criadas
para dar aparncia de realidade a impulsos plenos de desejos.
(p.156) Como exemplos dessas iluses Freud cita a arte, a religio e
a filosofia, as quais se diferem estruturalmente da cincia pois
apenas esta ltima trabalha com a realidade. Ao colocar a filosofia
ao lado da iluso e cincia ao lado da realidade Freud deixa clara a
hierarquia entre as duas disciplinas. No se trata apenas de
estabelecer diferenas mas sim de estabelecer um julgamento
valorativo entre as duas. No licito declarar que a cincia um campo
da atividade mental humana, e que a religio e a filosofia so outros
campos, de valor pelo menos igual, e que a cincia tem por que
interferir nelas: que todas elas tem iguais pretenses de serem
verdadeiras e que toda pessoa tem a liberdade de escolher de qual
delas ira derivar suas convices e em qual delas depositara sua
crena. Uma opinio como esta vista como especialmente superior,
tolerante, emancipada e livre de preconceitos incultos.
Infelizmente, no sustentvel e compartilha de todos os aspectos
perniciosos de uma Weltanschauung no cientifica, e a esta equivale,
na pratica. (p.157) Torna-se assim bastante claro e evidente os
motivos que levam Freud a distanciar a psicanlise da filosofia e
aproxim-la da cincia. Suas teorias, na medida em que se pretendem
verdadeiras, no podem ser tomadas como iluses filosficas. Trata-se
de trazer, para a psicanlise, a qualidade de cincia capaz de
descrever e operar sobre a realidade e de afast-la de qualquer
proximidade a um discurso de valor inferior. Para Freud a filosofia
diferencia-se da cincia por apegar-se iluso de ser capaz de
apresentar uma viso de mundo coerente e sem falhas a partir de
operaes puramente lgicas e aceitar a intuio como fonte de
conhecimento. Freud compara a lenta, hesitante e laboriosa (p.169)
marcha da cincia ao processo analtico em si. A observao constante,
os novos fatos que se impem, a construo de hipteses prvias que sero
comprovadas ou refutadas e a renncia a concluses precipitadas so
prticas compartilhadas por cientistas e psicanalistas em seus
respectivos trabalhos. Assim sendo, a Psicanlise no constitui uma
Weltanschauung prpria, ela compartilha da Weltanschauung cientifica
por seu mtodo e, principalmente, por sua nfase no mundo real e
rejeio das iluses. Ainda sobre a filosofia, Freud ira estabelecer a
crtica do que denomina como niilismo intelectual, a saber, a crena
de que a verdade no existe e de que a cincia uma iluso como as
outras, tambm um produto das necessidades humanas. O niilista
intelectual adota a posio de que no existe conhecimento seguro da
realidade pois encontramos e vemos apenas o que desejamos.
Portanto, pouco importa a opinio que se adota, ela no deixa de ser
apenas uma opinio entre outras uma vez que no existe o critrio de
verdade que as distinguiria. Igualmente verdadeiras e falsas no se
verifica uma hierarquia entre as diferentes crenas. Afirmando sua
falta de interesse e capacidade para se aprofundar no tema Freud
limita-se a afirmar que:
- 7. 154 | P s i c a n l i s e , F i l o s o f i a e C i n c i a
Valria Ghisi & SrgioScotti 154 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. A teoria anarquista soa como sendo
maravilhosamente superior enquanto se refere a opinies sobre coisas
abstratas mas desmorona ao primeiro passo que da na vida pratica.
(...) o mesmo espirito cientifico que especula acerca da estrutura
dos tomos, ou acerca da origem do homem, e que planeja a construo
de uma ponte capaz de suportar uma carga. Se isso em que
acreditamos fosse realmente coisa sem importncia, se no houvesse
aquilo que se chama conhecimento, e que se diferencia das opinies
por corresponder realidade, poderamos construir pontes tanto com
papelo como com pedras (...) Mas os prprios anarquistas
intelectuais rejeitariam tais aplicaes praticas de sua teoria.
(p.172) Em ultima anlise, o argumento freudiano remete pratica o
valor da cincia. Ela verdadeira porque funciona. Da mesma forma a
psicanlise estabeleceu-se enquanto cincia inicialmente por seu
valor teraputico, j havia afirmado Freud no mesmo ano de 1932 ao
final de sua conferencia anterior. da condio original de mtodo de
tratamento que a psicanlise extraiu as verdades que agora pode
apresentar a respeito da natureza humana. No Esboo de psicanlise
(1938) encontramos ainda uma ltima vez a mesma referencia filosofia
enquanto ligada ao consciencialismo e em oposio ao psiquismo
inconsciente da psicanlise. Neste texto, deixado inacabado em
virtude de sua morte, Freud repete aquilo que pudemos encontrar
durante toda sua obra de modo constante e repetitivo. A filosofia,
na perspectiva freudiana, fundamentalmente contrria psicanlise e
isso em dois nveis distintos. A estrutura interna da filosofia, na
medida em que esta se constri por meio do uso da logica e da
intuio, se ope s pretenses cientificas da psicanlise que se deseja
fundamentada na observao da realidade. Os pressupostos tericos
configuram o outro ponto de distanciamento na medida em que Freud
identifica a filosofia aceitao exclusiva de um psiquismo
consciente, oposto ao fundamental conceito psicanaltico de um
psiquismo inconsciente. Freud antifilsofo? Existe, entretanto, ao
lado do homogneo discurso antifilosfico trs aspectos que devem ser
considerados para estabelecer uma leitura mais ou menos adequada
das relaes entre Freud a filosofia e a cincia. A biografia de
Freud, que nos da indcios de algum que se interessa bastante pela
filosofia; o contexto histrico, que estabelece a prevalncia da
cincia sobre a filosofia quando se trata do valor das proposies
sobre o psiquismo e a metapsicologia, soluo freudiana para a parte
especulativa de sua teoria. Em sua biografia encontramos diversos
elementos significativos do interesse pela disciplina especulativa.
Durante a faculdade de medicina Freud acompanhou os seminrios de
Brentano destinados iniciao reflexo filosfica e histria da
filosofia. Ernest Jones, na biografia que escreve sobre Freud,
ressalta que o estudo da filosofia, anteriormente obrigatrio
durante trs anos do curso de medicina, foi suspenso quando Freud
ingressou na faculdade. A no obrigatoriedade, entretanto, no o
afastou dos estudos filosficos. A retirada da Filosofia como
disciplina obrigatria indicativa do descrdito da mesma no meio
mdico-cientfico no qual Freud esteve inserido e do qual tirou sua
formao fundamental. Podemos notar ento, desde esse inicio acadmico,
a posio ambivalente da filosofia em relao a construo do pensamento
freudiano. Na mesma obra, Jones relata que cerca de 10 anos aps o
curso com Brentano Freud teria escrito para Martha, ento sua noiva,
um ABC filosfico no qual desenvolvia uma espcie de introduo
filosofia com o intuito de interess-la pelo seu trabalho. Em uma
carta de 16 de agosto de 1882, tambm a Martha, Freud declara que
a
- 8. 155 | P s i c a n l i s e , F i l o s o f i a e C i n c i a
Valria Ghisi & SrgioScotti 155 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. filosofia cada vez mais o fascina
mesmo a tendo imaginado como um refugio para sua velhice. J a
Fliess escreve, em janeiro de 1897, que a filosofia era seu
objetivo originrio e, em abril de 1896, assinala que passando da
medicina para a psicologia estaria realizando seus desejo de
juventude em relao aspirao ao conhecimento filosfico. Jones ainda
menciona que Freud, ao ser por ele questionado sobre a quantidade
de suas leituras em filosofia, lhe teria dito que enquanto jovem
sentia-se fascinado pela especulao mas dela se afastou
corajosamente e por isso lera poucas obras filosficas. Tem-se a
impresso de que a Filosofia era um grande interesse do jovem Freud
que teve de ser abandonado em virtude do desejo de que a psicanlise
fosse levada a srio nos meios cientficos. Sua inclinao para a
filosofia ficou limitada a seu crculo mais ntimo e negada quando se
tratam de declaraes pblicas. Entretanto, a mesma aparece em seu
textos, principalmente nos de sua maturidade e velhice, camuflada
sob um pseudnimo: a metapsicologia. A metapsicologia Sob o nome de
metapsicologia encontraremos a poro especulativa da psicanlise
implicada na construo de seus conceitos de base. A partir da
observao dos fenmenos psquicos encontrados no trabalho clnico com
as neuroses faz-se necessria a construo de abstraes que permitam
explic-los. Os fatos, se considerados isoladamente, no permitem que
se compreenda o mecanismo envolvido nos processos psquicos. De tal
condio decorre a necessidade da elaborao dos conceitos
metapsicolgicos. Essa forma de especulao, entretanto, difere da
especulao filosfica por dois aspectos. Ela consequente observao,
mantendo-se a ela ligada, e consiste em uma construo provisria,
passvel de ser alterada a qualquer tempo, assim que novos fatos que
a contradigam sejam observados. Essa duas caractersticas se opem ao
apriorismo das causas primeiras, conceitos que, tomados como
verdades, determinam a especulao. Em resumo podemos dizer que a
especulao metapsicolgica parte da observao para chegar formulao de
conceitos de base provisrios enquanto a especulao filosfica se
inicia a partir de conceitos a priori. Em A interpretao dos sonhos
(1900) ao ressaltar a insuficincia do conhecimento existente sobre
o psiquismo Freud anuncia seu procedimento de construo conceitual.
No h no momento, nenhum conhecimento psicolgico estabelecido a que
possamos subordinar aquilo que o exame psicolgico dos sonhos nos
habilita a inferir como base de sua explicao. Pelo contrrio,
seremos obrigados a formular diversas novas hipteses que toquem
provisoriamente na estrutura do aparelho psquico e no jogo de foras
que nele atuam.... nem mesmo partindo da mais minuciosa investigao
dos sonhos ou de qualquer outra funo psquica tomada isoladamente,
possvel chegar a concluses sobre a construo e os mtodos de
funcionamento do instrumento anmico, ou pelo menos, prov-las
integralmente (p.543). a partir de diversas hipteses provisrias que
se inicia a construo da psicanlise. O jogo de foras, o
inconsciente, o conflito psquico so algumas das construes que
aparecem desde o incio das produes psicanalticas. Estas, contudo,
passam por diversas reformulaes no decorrer do desenvolvimento da
psicanlise, de modo que em 1937 Freud, j prximo sua morte, escreve
no a compreenso definitiva de sua cincia mas um Esboo de Psicanlise
no qual afirma que: Em nossa cincia, tal como nas outras, o
problema o mesmo: por trs dos atributos (qualidades) do objeto de
exame que se apresenta diretamente nossa
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Valria Ghisi & SrgioScotti 156 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. percepo, temos de descobrir algo
que mais independente da capacidade receptiva particular de nossos
rgos sensoriais e que se aproxima mais do que se poderia supor ser
o estado real das coisas. No temos esperana de poder atingir esse
estado em si mesmo, visto ser evidente que tudo que de novo
inferimos deve, no obstante, ser traduzido de volta para a
linguagem de nossas percepes, da qual nos simplesmente impossvel
libertar-nos. Mas aqui reside a verdadeira natureza e limitao de
nossa cincia (p.210). Em sua vertente terica a cincia psicanaltica
se apresenta sempre em construo e de modo algum se prope a oferecer
verdades acabadas e definitivas. Ao contrrio, a psicanlise se
mostra lacunar e, portanto, aberta para novas contribuies em um
contnuo e constante processo de construo. Ao mesmo tempo em que,
repetidamente, Freud identifica a psicanlise s cincias naturais,
existe a necessidade de estabelecer construes especulativas que
possam integrar os elementos observados na clinica. Ao escrever a
Histria do movimento psicanaltico (1914) Freud retoma os principais
pontos de sua teoria. Seu interesse encerrar uma discusso acerca
daquilo que poderia ser, adequadamente, chamado de psicanlise
estabelecendo claramente seus postulados e hipteses fundamentais.
Ao reconhecer a aproximao entre o resultado de suas pesquisas e o
pensamento de alguns filsofos, entre eles Nietzsche, Freud afirma
ter negado a si mesmo o enorme prazer da leitura das obras de
Nietzsche, com o propsito deliberado de no prejudicar, com qualquer
espcie de idias antecipatrias, a elaborao das impresses recebidas
na psicanlise. (1914, p.26) Em seguida afirma: Tive portando de me
preparar e com muita satisfao para renunciar a qualquer pretenso de
prioridade nos muitos casos em que a investigao psicanaltica
laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filsofo
reconheceu por intuio. (FREUD, 1914, p.26) Concluso O que podemos
notar, a partir do recorte acima estabelecido, que Freud se afasta
da filosofia na medida em que esta pressupe a especulao como mtodo,
na medida em que a intuio ocupa o lugar da pesquisa exeustiva sobre
os fenmenos observveis. Trata-se de uma questo metodolgica
completamente inserida no tempo histrico em que Freud elabora a
psicanlise. Sua formao mdica, o crculo social no qual divulga seus
trabalhos e do qual espera obter reconhecimento e o cientificismo
caracteristico do pensamento do inicio do sculo XX o levam recusar
a filosofia. Esta, entretanto, se apresenta sob a forma de
metapsicologia, espao construdo para dar vazo s formulaes
especulativas da psicanlise sem que estas entrem radicalmente em
contradio com as pretenses cientificas freudianas. Torna-se,
portanto, intil a tentativa de enquadrar a psicanlise em qualquer
um dos dois sistemas de pensamento. Sempre haver algo que escapa s
delimitaes da cincia ou da filosofia. nesse sentido que podemos
compreeender as palavras de Freud em seu texto As resistencias
psicanlise (1925) Sucede, ento, que a psicanlise nada deriva, seno
desvantagens, de sua posio intermediria entre a medicina e a
filosofia. Os mdicos a vem como um sistema especulativo e
recusam-se a acreditar que, como toda outra existncia natural, ela
se fundamenta numa paciente e incansvel elaborao de fatos oriundos
do mundo da percepo; os filsofos, medindo-a pelo padro de seus
prprios sistemas artificialmente construdos julgam que ela provm de
premissas impossveis e censuram-na porque seus conceitos mais
gerais (que s agora esto em processo de evoluo) carecem de clareza
e preciso. ( p.243).
- 10. 157 | P s i c a n l i s e , F i l o s o f i a e C i n c i a
Valria Ghisi & SrgioScotti 157 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. Notas 1. Psicanalista, doutoranda
em Psicologia (UFSC), estgio de doutorado (Paris 7) financiado pela
CAPES. 2. Psicanalista, doutor em Psicologia Clnica pela USP,
professor colaborador do Programa de Ps- Graduao em Psicologia da
UFSC. Referncias Bibliogrficas FREUD, Sigmund. (1890) Tratamento
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1996. ____. (1900) A interpretao dos sonhos In: Edio Standard
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de histeria In: Edio Standard brasileira das obras psicolgicas
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(1904), Sobre a psicoterapia In: Edio Standard brasileira das obras
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de prazer In: Edio Standard brasileira das obras psicolgicas
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Explicaes, Aplicaes e Orientaes In: Edio Standard brasileira das
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Valria Ghisi & SrgioScotti 158 Revista Digital AdVerbum 6 (2):
Ago a Dez de 2011: pp. 148-158. JONES, Ernest. (1989) Sigmund
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