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Ano VI, Número 23, Setembro - 2015
1
Ficha Técnica
Conselho Editorial:
Stela Mithá Duarte - Doutora em Educação/Currículo pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo - Brasil
Daniel Dinis da Costa - Doutor em Educação/Geometria Descritiva-3D pela Universidade de
Newcastle - Inglaterra
Carla Maciel - Doutora em Estudos Ingleses pela Universidade de Illinois - EUA
Félix Singo - Doutor em Didáctica de Informática pela Universidade de Dresden - Alemanha
Geraldo Ernesto Mate - Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Otto-von-
Guericke, Magdeburg, Alemanha
Crisalita Djeco Funes - Doutora em Ciências Pedagógicas pela Università degli Studi di
Bergamo - Itália
Equipa Técnica
Simião Alberto Muhate - Mestrado em Educação/ Ensino de Português pela UP
Germano Diogo - Licenciado em Planificação e Gestão da Educação pela UP
Titulo: UDZIWI
Publicação: Trimestral
Propriedade: Centro de Estudos de Políticas Educativas (CEPE) da Universidade
Pedagógica
DISP. REGº/GABINFO-DEC/2008
2
Índice
Nota Editorial 3
Literaturas em Contextos Multilingues: Literatura moçambicana:
que identidade?
Agostinho Goenha
4
A interdisciplinaridade como uma ferramenta na apropriação dos
saberes locais
Jó António Capece
13
Contribuições do estágio pedagógico no processo formativo: um
estudo com 28 estagiários da Universidade Pedagógica, Quelimane -
Moçambique
Lopes Luís, Geraldo Vernijo Deixa e Rude José Matinada
23
Uma educação nacional, regional e global equilibrada: um projecto
realizável?
Pedro Bila
35
3
Nota Editorial
Nesta época do ano lectivo em que as várias Faculdades, Escolas Delegações e Centros
de Pesquisa da Universidade Pedagógica se esforçam por realizar Conferências, dando
oportunidade para a partilha e o debate da investigação realizada na instituição, o CEPE
(Centro de Estudos de Políticas Educacitivas) lança mais um número - desta vez, o vigésimo
terceiro - da revista UDZIWI. Esta é, pois, mais uma forma de divulgação da pesquisa
realizada na nossa universidade, neste caso, com foco particular na pesquisa educacional.
Neste número publicamos quatro artigos de docentes de várias delegações e áreas de
saber da nossa instituição que se debruçaram sobre vários temas que, actualmente, preocupam
os pesquisadores e académicos no país.
No primeiro artigo, “Literaturas em contextos multilingues: Literatura Moçambicana:
Que identidade?”, Agostinho Goenha discute a avaliação do fenómeno literário referente ao
período da colonização portuguesa em África.
No segundo artigo, “A interdisciplinaridade como ferramenta na apropriação de saberes
locais”, Jó António Capece apresenta uma pesquisa de cunho etnográfico, que vem realizando
há alguns anos, envolvendo comunidades de Chékua, em Kalanga, Distrito da Manhiça. O
autor prova que tais comunidades possuem conhecimentos que podem e devem ser
partilhados por diversos domínios do saber escolar, quer dizer, devem ser abordados, na
escola, como saberes transdisciplinares.
No terceiro artigo, “Contribuições do estágio pedagógico no processo formativo: um
estudo com 28 estagiários da Universidade Pedagógica, Quelimane - Moçambique,” Lopes
Luís, Geraldo Deixa e Rude Matinada relatam uma pesquisa sobre as contribuições que o
Estágio Pedagógico tem para a formação de professores de Matemática.
No quarto artigo, “A Educação nacional, regional e global equilibrada: um projecto
realizável?” , Pedro Bila disserta sobre o encontro entre as aspirações e/ou idealizações de um
“novo mundo” onde os homens de todas as raças e nações possam estar mais próximos uns
dos outros.
Convidamos todos os académicos a fazerem uma leitura participativa dos artigos
publicados e a juntarem-se ao diálogo já iniciado, contribuindo com novos artigos que
constituam uma mais-valia quer para a pesquisa realizada, quer para a nossa revista UDZIWI.
4
Literaturas em Contextos Multilingues: Literatura moçambicana: que identidade?1
Agostinho Goenha2
Resumo
Na abordagem teórica do fenómeno literário africano parece haver uma omissão de um tempo
(referente ao período da colonização portuguesa em África). Consideramos que a avaliação e o estudo
desse tempo podem permitir uma melhor compreensão e conhecimento dos alvores da dinâmica
literária em Moçambique, de certas influências e heranças, tanto de carácter estético-literário, como de
carácter sócio-ideológico e até de carácter temático. O presente artigo debruça-se sobre esse
fenómeno.
Palavras-chave: Moçambique, Literatura, Identidade, Nacionalidade e Reflexões.
Âmbito
O presente estudo funda-se basicamente no propósito de dar continuidade às reflexões
teóricas anteriores feitas por estudiosos do fenómeno literário africano, em torno da
problemática das literaturas africanas de língua portuguesa, particularmente no que diz
respeito à sua génese e afirmação.
Objectivo
O objectivo deste estudo é contribuir para a formulação e a incorporação de algumas
linhas de análise, de propostas e de hipóteses tendentes ao maior enriquecimento destes
estudos.
Podemos constatar que nos estudos relacionados com a emergência do fenómeno
literário moçambicano, ou em Moçambique, ou de Moçambique, que se situa mais ou menos
na primeira metade do século passado, há a tendência para se dar preferencialmente privilégio
àquelas manifestações literárias que apresentam marcas mais ou menos evidentes de
pretensões nacionalistas, ou de um discurso reivindicativo, na linha próxima dos movimentos
progressistas, independentistas e do proto-nacionalismo africanos, que protagonizavam um
certo dinamismo naquela época.
Em resultado destas opções, deliberadas ou não, constatamos que, na abordagem teórica
do fenómeno literário africano, parece haver uma omissão de um tempo (referente ao período
da colonização portuguesa em África). Pensamos que a sua avaliação e estudo poderia 1 Apresentado na Conferência Internacional Línguas, Literaturas em Contextos Multilingues e Utopias Sociais
(UP-Sede, 28 e 29 de Outubro de 2013). 2 Doutor em Estudos Portugueses, Área de Especialização: Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, pela
Universidade Nova de Lisboa. Docente da Universidade Pedagógica, Faculdade de Ciências da Linguagem,
Comunicação e Artes (FCLCA).
5
permitir, eventualmente, uma melhor compreensão e conhecimento dos alvores da dinâmica
literária em Moçambique, para além do conhecimento de certas influências e heranças, tanto
de carácter estético-literário, como de carácter sócio-ideológico e até de carácter temático, nas
obras desse tempo. Veja-se, por exemplo, que o ponto de referência fundacional da nossa
literatura é o final do século XIX (Campos Oliveira) ou o início do XX (Rui de Noronha),
como se antes não tivesse existido nada.
Qualquer análise em torno do fenómeno que se relaciona com o desenvolvimento da
actividade literária em África deve ser feita, no nosso entender, tendo à priopri em
consideração, de forma particular, à sua natural e intrínseca relação, tanto com a educação
formal (referimo-nos a escolas como meios de aquisição do saber científico), como com a
educação informal (em que se destacam, neste caso particular, as formas tradicionais e
familiares de transmissão de ensinamentos, de valores e de conhecimentos sobre a vida
prática quotidiana); de modo geral, deve-se ter em atenção igualmente os aspectos sociais,
políticos e outros que se relacionem com a história e com a política.
Procuramos consolidar a nossa presente abordagem com base em bibliografia teórica e
noutras reflexões de autores consagrados, em torno desta questão, como é o caso de
estudiosos como Saraiva e Lopes (2000), que defendem a necessidade de se tomar em
consideração factores multifacetados, na abordagem de determinado fenómeno literário, nos
seguintes termos:
Deste ponto de vista, consideramos que na classificação das literaturas temos de atender não
apenas a divisões linguísticas, mas também aos marcos das diferenciações políticas nacionais;
se, por outro lado, a unidade política nacional fornece um esquema de referência para o estudo
da história literária que lhe é precursora - pode perguntar-se se são os grandes marcos da história
político-social que devem balizar o estudo da literatura nacional.3
Antes de mais, consideramos oportuno tornar claro que não se pretende, com esta
abordagem, fazer uma espécie de reabilitação do que se designa por ‘literatura colonial’, mas
sim tentar compreender e interpretar o discurso colonial, em parte, à luz da teoria ‘pós-
colonial’; pretende-se, sobretudo, tentar compreender um tempo histórico, através de textos
literários (e históricos) e através de um ‘pensamento’ literário africano, local e intrínseco.
3.“Reflexões Preliminares - Capítulo I "Crítica e História Literária". in SARAIVA e LOPES. História da
Literatura Portuguesa. Porto Editora, 17. ed corrigida e actualizada, 2000: 12.
6
Justifica esta nossa pretensão, entre outras válidas razões, a constatação da estudiosa
Martinho (1998), em “O conceito de cânone: norma non normata”, de que os estudos e,
sobretudo, a crítica sobre as literaturas africanas têm sido feitos com um fundo de uma visão
exterior ao seu continente, à sua realidade e até com uma certa impositividade da leitura, com
base no que se considera ser o cânone do centro, no caso, a Europa (abordamos esta questão
mais adiante); a este propósito, considera o seguinte:
A literatura africana (…) é sobretudo comentada de fora, o que nos faz, críticos
europeus, cair no contra-senso de uma leitura que quase não tem sustentação paritária local e
que também por isso se encontra mais obviamente sujeita a critérios de avaliação extrínsecos
e muitas vezes de duvidosa pertinência, se pensarmos na individualidade de tais literaturas
tantas vezes apreciadas como um bloco único4.
Entretanto, para uma melhor compreensão dos fundamentos desta teoria de pós-
colonialidade, importa fazer uma breve caracterização e contextualização da sua génese:
Enquanto conceito de origem anglo-saxónica, o pós-colonialismo toma como realidade
fundadora o colonialismo britânico; no campo dos estudos literários começa a desenvolver-se
a partir da década de 60 (do século passado), com a revisão das novas literaturas produzidas
pela ‘commonweath’, a sua integração nos curricula, bem como com o surgimento de casas
editoras que promovem a publicação de escritores oriundos de África, da Índia e de outras
zonas das ex-colónias britânicas.
Mas é sobretudo a partir da publicação de Edward Said, de Orientalism, em 1978, que
se desenvolvem teórica e criticamente os estudos sobre pós-colonialismo, surgindo
posteriormente obras de outros intelectuais diaspóricos que reclamam uma voz crítica pós-
colonial, oriundos, ou com raízes nos ex-países colonizados.5
O estudo e o pensamento de E. Said6 foi posteriormente desenvolvido por vários
intelectuais e um dos mais conceituados é Homi K. Bhabha7, apud LEITE, A. M. (2003). No
4.MARTINHO, Ana Maria Mão de Ferro, Cânones Literários e Educação, os casos angolano e moçambicano,
Lisboa, (Tese de Doutoramento UNL-FCSH), 1998: 53. 5.LEITE, Ana Mafalda, Literaturas africanas e formulações pós-coloniais, Edições Colibri, Lisboa, 2003: 12.
6 Idem LEITE, op. cit., (2003).
7. Esta abordagem de Homi Bhabha poderá enquadrar-se naquilo que, inicialmente, os historiadores designaram
por “post-colonial state”, para designar os países recém independentes, tendo sido, posteriormente adequado às
teorias pós-coloniais, ao nível da literatura. Ainda que não se tenham desenvolvido estudos bastantes nesta área,
consideramos que, neste sentido, o seguinte entendimento de Mafalda Leite, em «Pós-colonialismo, um caminho
crítico e teórico», é elucidativo, no caso particular da lusofonia, nos seguintes termos:
Falar de pós-colonialismo e lusofonia ou da adequação das teorias pós-coloniais às literaturas africanas
de língua portuguesa ainda é área não muito conceptualizada. (…) Tentarei situar algumas questões
respeitantes aos conceitos de origem anglo-saxónica e seu interesse, adequação e formulação
relativamente aos estudos literários africanos lusófonos.
7
seu estudo acerca do ‘outro’, Bhabha elucida melhor a respeito das nossas pretensões, ainda
que a sua abordagem esteja relacionada com a realidade colonial asiática; consideramos
entretanto que, nos seus aspectos gerais, esta abordagem apresenta algumas similitudes com a
realidade colonial africana. Apresentamos, de seguida, um breve excerto de Descolonizar a
‘Europa’ (2005):
Não pretendo desconstruir o discurso colonial, a fim de revelar os seus equívocos ou repressões
ideológicas, nem condescender com a sua auto-reflexividade ou contemporizar com o seu
‘excesso’ libertador. Para se compreender a produtividade do poder colonial é preciso construir
o seu regime de verdade e não sujeitar as suas representações a um juízo normalizador.8
Neste sentido, Martinho (1998), no seu interessante estudo comparativo e analítico
relativo aos processos educativos e, sobretudo, literários referentes a Angola e a Moçambique,
particularmente no capítulo intitulado “O cânone Literário na África lusógrafa (Angola e
Moçambique)” sugere também, a este propósito, o seguinte:
Para compreendermos o modo como em Angola e em Moçambique se evoluiu no tocante à
centralidade de textos e autores nos respectivos sistemas literários, importará lembrarmos alguns
dos momentos fundamentais em termos das respectivas histórias literárias e igualmente os
condicionalismos que presidiram desde sempre a esse efeito selectivo. Tais pressupostos são de
toda a ordem: cronológicos, temáticos, ideológicos, linguísticos, literários. Conjugando-se total
ou parcialmente em muitos casos, fazem emergir uma dificuldade pronunciada quando
queremos situar-nos na destrinça estética e ética em simultâneo e no quadro de uma tradição que
se apresenta com as contradições e qualidades inerentes à convivência de mundos primitivos e
modernos.9
Depois da segunda guerra mundial, o termo “post-colonial state”, usado pelos historiadores, designa os países
recém independentes, com um claro sentido cronológico. No entanto, “post-colonial”, a partir dos anos setenta
(do século passado), é termo usado pela crítica, em diversas áreas de estudo, para discutir os efeitos culturais da
colonização. Terry Eagleton (cf. Jean-Marc Moura, Littératures Francophones et Théorie Postcoloniale, Paris,
Puf, p. 3, apud Leite) considera que somos pós-românticos, produto dessa época, mais do que sucessores dela;
considerado neste sentido, pós-colonial não designa um conceito histórico ou diacrónico, mas antes um conceito
analítico que reenvia às literaturas que nasceram num contexto marcado pela colonização europeia”. Idem
LEITE, op. cit., (2003: 11). 8. Homi K. Bhabha, «A questão outra», in Descolonizar a ‘Europa’, Antropologia, Arte, Literatura e História na
Pós-colonialidade (ENSAIO – Organização de Manuela Ribeiro Sanches), Livros Cotovia, Lda, Lisboa, 2005:
144.
Para melhor elucidação sobre esta problemática da pós-colonialidade, pode ler-se: AAVV, The Post-colonial
Condition of African Literature, African Literature Association, Africa World Press, inc., 2000; Ashcroft, Bill et
al., Key Concepts in Post-Colonial Studies, London and New York, Routledge, 1998; Ashcroft, Bill et al., The
Empire Writes Back – Theory and Practice in Post-Colonial Literatures, London and New York, Routledge,
1989; Ashcroft, Bill et al., The Post-Colonial Studies Reader, London and New York, Routledge, 1995; Bhabha,
Homi K. “Disseminação: Tempo, Narrativa e as Margens da Nação Moderna”, in Floresta Encantada, Lisboa,
Publ. Dom Quixote, 2001; Boehmer, Elleke, Colonial & Post-colonial Literature, Oxford, Oxford University
Press, 1995; Said, Edward, Orientalism, New York, Vintage Books, 1979; Santos, Boaventura Sousa, “Entre
Próspero e Caliban: Colonialismo, Pós-Colonialismo e Inter-Identidade”, in Entre Ser e Estar – Raízes,
Percursos e Discursos da Identidade, Porto, Afrontamento, 2002. 9. Idem, MARTINHO, op. cit., (1998: 282).
8
Não deixamos de reconhecer que este tipo de literatura produzida em África, ou sobre
África sofre, de certo modo, um certo estigma nas instituições literárias europeias, na medida
em que é considerada, na perspectiva conservadora e, de certo modo, tutelar da ex-Metrópole,
como uma literatura de periferia.
Consideramos, por conseguinte, oportuna, mais uma vez, a visão de Reis, a propósito da
sua perspectiva sobre os potenciais leitores de textos literários, isto é, sobre a receptividade10
deste tipo de textos literários produzidos maioritariamente nos, ou sobre os territórios
africanos, tanto nas antigas colónias de Portugal em África, como na ex-Metrópole. Secunda
esta perspectiva, igualmente, a abordagem feita por BULGER (1997), op. cit. a este propósito
(do destinatário) e numa relação com a noção de ‘regionalismo’ na literatura, nos seguintes
termos:
Não será de estranhar, portanto, a difusão essencialmente local dessa literatura e, ao mesmo
tempo, a recepção pouco calorosa dos consumidores/leitores congregados nos grandes centros
urbanos, onde a noção de regionalismo resulta, em parte, de uma cultura mediática, que tende a
explorar o seu lado etnográfico, político e ecológico (…).11
Tendo em atenção a citação acima, consideramos que a expressão ‘a difusão
essencialmente local dessa literatura’ pode, neste contexto de abordagem, referir-se
analogicamente aos territórios africanos, nalguns casos, aos textos que se debruçam sobre
África, particularmente aquela África naife, profunda e inacessível.
No que diz respeito, por sua vez, à expressão ‘recepção pouco calorosa dos
consumidores/leitores congregados nos grandes centros urbanos’, achamos que pretende
localizar o potencial público leitor, que se encontra tanto nas cidades africanas, como (em
número reduzido) nas cidades da antiga Metrópole, neste caso, de Portugal.
Outro facto importante que nos parece poder contribuir para uma melhor compreensão
do fenómeno literário moçambicano tem a ver com a diversidade linguística e cultural do país
e a sua influência neste tipo de escrita literária.
A questão linguística e, na perspectiva de Trigo (1994), especialmente da língua nas
10
. A este propósito parece-nos essencial o conhecimento do destinatário dos textos literários, nos termos em que
este termo ‘destinatário’ é caracterizado no conceito de ‘narratário’: “O narratário constitui o destinatário
imediato da narrativa (o leitor poderá ser um seu destinatário mediato), instituído também como ‘ser de papel’
com existência puramente textual, dependendo directamente do narrador que se lhe dirige de forma explícita ou
implícita. A dificuldade de localização textual do narratário decorre do facto de ele ser, quase sempre, uma
entidade não identificada e dificilmente ‘visível’ à superfície do texto narrativo”. Idem REIS, , op. cit., (1995:
355-356). 11
. Idem BULGER, op. cit., (1997: 89).
9
escritas literaturas africanas é antiga e tem vindo sistematicamente ao de cima, quando se
pretende, por exemplo, negar a autenticidade africana a essas literaturas que se exprimem na
língua do ex-colonizador12
.
Este problema não é pacífico, pois para ele confluem aspectos políticos, linguísticos
(relacionados particularmente com a problemática das interferências linguísticas) e estéticos.
Achamos igualmente pertinente, a este propósito, a convocação das interrogações (para
reflexão) de Lecherbonnier (1977), concernentes à problemática da estética, na definição
duma literatura africana, particularmente das sociedades ágrafas. Abordando questões
relacionadas com a tradição literária africana, com os géneros literários dos textos e com a
língua e a cultura que se lhes corporiza, este estudioso tece as seguintes considerações:
Que géneros literários fazer evoluir, segundo que tradição (europeia ou africana, quer dizer, a
maior parte do tempo oral), para que público escrever, em que língua, como inserir-se na
literatura internacional? Os valores da estética europeia podem dar conta duma obra literária
africana?13
De qualquer modo e, para concluir, podemos referir que, mesmo tendo em consideração
todos os problemas que ainda se colocam na literatura moçambicana, as situações de
multilinguismo que caracterizam o país não são, de modo algum, completamente
desfavoráveis à prática da escrita literária, em particular, e da escrita, em geral.
Parece-nos evidente que a possibilidade de uma escrita literária em Moçambique,
baseada numa das línguas nativas dos seus utentes seria, eventualmente, o procedimento
natural a preferir, na medida em que congregaria o pensamento e o sentimento mais íntimo e
profundo de africanidade, em conjugação com uma visão mais global dos seus autores, sobre
a sociedade em que vivem e sobre a sua integração no mundo (entretanto, nesta perspectiva,
como se procederia com aqueles moçambicanos, cujo substrato cultural e linguiístico não é
Bantu?)
Em consequência das contingências históricas de que já fizemos referência, verifica-se
um outro tipo de relação entre a língua da escrita literária, na maioria dos países de África
(excepção seja feita a alguns países de língua de cultura árabe) e a cultura material e espiritual
que se exprime nessa mesma língua.
Atente-se, mais uma vez, à seguinte sugestão, em torno desta questão, que nos é
apresentada, mais uma vez, por Trigo (1994), op. cit., ainda a propósito deste fenómeno
12
. Trigo, “Literatura Colonial”, 1994: 139, in Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (Compilação com a
coordenação de Manuel Ferreira). Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2. ed., 1994. 13
. Lecherbonnier. Initiation à la Littérature Negro-Africaine. Paris, Fernad Nathan, 1977. P. 8.
10
literário:
“Seria desejável que à africanidade estética dum texto se viesse juntar uma língua
também ela africana, o que contribuiria para um maior rigor do pensamento da escrita, mas
isso não significa que, não existindo essa língua, a africanidade não exista14
”.
No que diz respeito particularmente a Moçambique (com predominância do grupo-etno-
linguístico Bantu) e para uma melhor abordagem desta problemática da língua, na escrita
literária, importa fazer um breve relance em torno do mapa linguístico de Moçambique15
, que
indica existirem no país, maioritariamente representadas, as línguas de tronco Bantu mas
também as línguas (minoritárias) de origem asiática.
Estas línguas são um forte símbolo de identidade étnica, com funções sociais
específicas, tais como a educação, a moral, a socialização e a agregação, etc. Entretanto,
existe conjuntamente a língua portuguesa que, em virtude das contingências históricas e, não
obstante o facto de contar com um número reduzido de falantes, se assume como língua de
prestígio, como língua oficial, usada na governação, na educação formal e em assuntos
administrativos.
A cultura islâmica (com forte influência do super extracto Bantu, creio eu), na sua
relação com a religião muçulmana no país é de forte implantação na sociedade moçambicana,
no entanto, ela não parece ter expressão literária, pelo menos publicamente conhecida.
Para terminar e para reflexão, no meio deste mosaio cultural moçambicano (a literatura
é a expressão artística da cultura), que identidade?
É precisamente por isso (o nosso carácter multicultural, multilinguístico) que somos de
opinião de que todas as fases históricas, com as suas vertentes político-ideológica,
socioeconómica e cultural devem ser tomadas em consideração para, com rigor científico e
criterioso, se poder determinar as linhas de força que caracterizam e concretizam a nossa
literatura.
Pensamos que esta atitude, esta forma de abordagem poderia ajudar na eliminação de
omissões de períodos históricos, o que de certo modo, dificulta o cabal conhecimento da
actividade literária desenvolvida naquele espaço. Nesse sentido, tal consideração permitiria
identificar, nessa produção literária, com marcas histórico-políticas específicas, vectores de
14
. Idem Trigo, op. cit., (1994, p.153). 15
. Segundo NEWITT (1997, p. 13), “o país adquiriu a sua forma actual em resultado de um tratado anglo-
português de Maio de 1891. O Moçambique criado em 1891 não foi o resultado de um traçado cartográfico
aleatório, mas um esforço no sentido de conferir sentido à história da região, congregando dentro das fronteiras
de um único Estado colonial os portos de maior importância situados entre Cabo Delgado e a Baía de Delagoa,
sem esquecer uma parte substancial das trocas comerciais efectuadas no interior do território”. Nesta citação são
claras as razões económicas e políticas do traçado do mapa do que é hoje Moçambique, resultante das contendas
entre as ex-potências colonizadoras.
11
ambiguidade, de continuidade, de convergência, de divergência e até de ruptura que as
caracterizaram. Um estudo desse âmbito permitiria, como brevemente nos referimos acima, o
enriquecimento e o aperfeiçoamento da História da Literatura moçambicana, da teoria, da
crítica e até da sua ciência literárias.
Parece-nos ser redutora e omissa a intenção, a estratégia ou a metodologia que toma em
conta, como pertença da literatura moçambicana, exclusivamente aquela que apresenta, de
forma mais ou menos evidente, traços ou qualidades sobretudo temáticas (e literárias)
identificáveis com o que se considera - e aqui concordamos Hamilton (1984, p. 14), com o
seguinte entendimento - “uma consciência de africano (…) que procura(va) uma inversão da
sua própria aculturação”. Então, se somos aculturados, assumamos, por isso, a nossa herança
histórica, ou seja, a nossa multiculturalidade, o nosso hibridismo, conceitos, muitas vezes
«mal-amados».
Bibliografia
BHABHA, Homi K. «A questão outra», in Descolonizar a ‘Europa’. Antropologia, Arte,
Literatura e História na Pós-colonialidade (ENSAIO – Organização de Manuela Ribeiro
Sanches). Lisboa, Livros Cotovia, 2005.
BULGUER, Laura Fernanda. «Histórias da montanha: um modo de encarar a terra», in
Nacionalismo e regionalismo nas literaturas lusófonas (Coordenação de Fernando
Cristóvão, et all). Lisboa, Edições Cosmos, 1997.
HAMILTON, Russel. Literatura africana. Literatura necessária II. Lisboa, Edições 70, 1984.
LECHERBONNIER, Bernard. Initiation à la Littérature Negro-Africaine. Paris, Fernad
Nathan, 1977.
MARTINHO, Ana Maria Mão de Ferro. Cânones Literários e Educação, os casos angolano e
moçambicano. Lisboa, (Tese de Doutoramento UNL-FCSH), 1998.
NEWITT, Malyn. História de Moçambique. Publicações Europa-América, Lda, (Colecção
Biblioteca da História), Sintra, 1997. (Titulo original: History of Mozambique, Originally
published by C. Hurst & Co Publishers Ltd.). Tradução portuguesa de Lucília Rodrigues e
Maria G. Segurado.
SARAIVA, António José e LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa. Porto, Porto
Editora, 17. ed. corrigida e actualizada, 2000.
12
TRIGO, Salvato. “Literatura Colonial”, 1994: 139, in Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa (Compilação com a coordenação de Manuel Ferreira). 2. ed. Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
13
A interdisciplinaridade como uma ferramenta na apropriação dos saberes locais
Jó António Capece16
Resumo
A interdisciplinaridade como ferramenta de apropriação dos saberes locais é uma pesquisa que tenho
vindo a realizar com alguma acuidade, uma vez que esta interdisciplinaridade se presta como um tema
transversal, já que se pretende criar uma plataforma que leve à desconstrução do paradigma que olhe
as disciplinas como territórios estanques e não tenha em consideração aquilo que ocorre em outros
domínios do saber. A partir duma pesquisa de cunho etnográfico envolvendo as comunidades locais,
no caso concreto as de Chékua em Kalanga, Distrito da Manhiça, verifiquei que tais comunidades
possuem conhecimentos que, bem depurados e sistematizados, podem e devem ser “compartilhados”
por diversos domínios do saber escolar e criar uma mais-valia para o processo de ensino e
aprendizagem nas nossas escolas, bastando para isso que, na formação de professores, se criem
ambientes de “cooperação” entre os diversos intervenientes.
Palavras - chave: Interdisciplinaridade, Saberes Locais, Didáctica e Epistemologia, Comunidades
Locais, Currículo, Manhiça.
Introdução
Esta comunicação pretende fazer uma discussão epistemologia e a didáctica, na
vertente da apropriação dos saberes locais, usando como ferramenta de análise a
interdisciplinaridade. A discussão está arraigada na epistemologia e na didáctica, uma vez que
esta decorre daquela, já que o seu fundamento está alicerçado no interesse, enquanto a
epistemologia está fundada em conhecimentos metodologicamente validados. Tal discussão
desembocará em saberes curriculares, ou seja, naquele conceito de currículo que está patente
nos saberes das práticas quotidianas das comunidades. Assim sendo, o currículo não seria
visto como uma coisa acabada, mas sim como um processo e produto de coisas vividas.
Para tal, torna-se pertinente fazer um exercício que passa pela apropriação da riqueza a
científica que existe nas comunidades locais para os saberes escolares e isso passa
necessariamente pela criação de uma plataforma pedagógico-didáctica, que sirva de alicerce
teórico para o efeito.
16
Coordenador do Projecto “O Currículo Local na Universidade Pedagógica: estratégias epistemológicas e
didáctico – metodológicas da sua implementação, sob os auspícios do CEPE. Professor Associado e Doutorado
em Educação/Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Brasil. Docente do Departamento
de Física da Faculdade de Ciências Naturais e Matemática e na Escola Doutoral em Educação no Programa de
Doutoramento em Educação/Currículo na Faculdade de Ciências Pedagógicas e Psicologia da Universidade
Pedagógica – Maputo – Moçambique.
14
Pressupostos didáctico - epistemológicos
A pesquisa sobre as experiências dos saberes locais que os professores e os
pesquisadores podem realizar nas comunidades locais deve ser considerada como conteúdos -
experiências interdisciplinares, isto para que não sejam mais uma accão atávica como as
emanadas nos programas curriculares dos fazedores das políticas públicas da Educação.
Este exercício de procura incessante dos saberes locais para depois apropriá-los nos
saberes escolares, tais saberes não precisam estar necessariamente nas comunidades, como
também podem ser encontrados em programas de rádio, em jornais diários, em programas de
Televisão ou mesmo em actividades da igreja e associações da Sociedade Civil. Este modo de
estar demanda do educador uma sensibilidade de busca contínua de quais saberes locais
podem ser encontrados não somente nos antepassados, mas em outros meios. Para que isto
seja profícuo exigirá do professorado uma planificação conjunta, de modo a que o material
resultante chegue aos alunos mais como uma sugestão do que como uma coisa acabada e
pronta para ser consumida.
Na referida planificação poderão ser previstas, dentre várias actividades, as seguintes:
a. Realização de visitas, acompanhado de alunos, à estas situações. Em tais visitas,
além de observação, os alunos poderão ter o ensejo de fazer pequenas entrevistas;
b. Descrição destes fenómenos, ou seja, antes de o professor levar a actividade para a
sala de aulas poderá solicitar por parte dos alunos a sua descrição e documentação.
Para não fazermos uma análise atávica, tomemos o exemplo de uma planta que
encontramos na comunidade de Chékua, em Kalanga, Distrito da Manhiça. Tal planta aqui
ilustrada é localmente conhecida por da’nhoca:
Planta local: da’nhoca
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Já foi referenciado em espaço próprio que tal prática precisa de ser transformada numa
experiência interdisciplinar.
Antes de nos imbuirmo em detalhes sobre esta prática, torna-se pertinente, antes de
mais, deter-mo-nos sobre o conceito de interdisciplinaridade. O conceito em referência alude
a uma relação de reciprocidade, de mutualidade, de interacção, possibilitando um diálogo
entre os interessados, tendo como pano de fundo o estabelecimento de intersubejctividades.
O ensino interdisciplinar surge como uma nova resposta, uma nova pedagogia que
privilegia o diálogo e a estimulação de práticas cooperativas. Isto pressupõe a supressão de
barreiras entre as disciplinas e entre as pessoas que tenham o mesmo projecto educativo.
Neste sentido, educador e educandos, ou engajados intencionalmente com a mesma
realidade, deparam-se numa mesma tarefa e ambos sujeitos na acção de desvelar o saber duma
forma crítica.
Um primeiro elemento característico duma experiência interdisciplinar é a descrição do
fenómeno, uma vez que ela abre perspectivas neste sentido. Sendo assim, e supondo que o
professor na sua busca, no seu garimpo junto à sua comunidade tenha perscrutado os saberes
no “da’nhoca.” uma primeira actividade passaria pela efectivação de uma visita de estudo, no
caso, na “Chékua, em Kalanga, povoação da Manhiça” acompanhado de seus alunos.
Aqui chegados, ele pediria para que estes descrevessem a planta que estariam a
observar. A descrição é um elemento chave nesta empreitada, uma vez que proporciona
muitas qualidades de aprendizagem, tais como as habilidades de fazer comparações,
classificações e observações. Nesta diversidade de habilidades está subjacente o elemento
interdisciplinar, na qual se desenvolvem as capacidades de fala e escrita.
No caso vertente, tal é revelado no momento em que os alunos com as suas próprias
falas conseguem passar a mensagem descritiva segundo a qual “o da’nhoca” é um arbusto que
pode ser encontrado em pastagens, solos férteis, à beira de estradas, a sua flor é de um cacho
e atinge uma altura aproximada de 40 a 80cm e, com uma fita métrica, os alunos conseguem
medir a altura da planta.
Este acto de dar a voz aos alunos, através da fala, da mensuração e da escrita, em si é
uma das abordagens interdisciplinares, já que, neste exercício, se desenvolvem também
habilidades linguísticas e métricas.
Na observação, os alunos conseguem ver também que a planta é composta por raiz,
caule e flores.
Nesta visita que os alunos realizam à uma comunidade, estes podem também ouvir de
membros da comunidade aspectos a sobre importância da planta na medicina tradicional, já
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que as comunidades aludem que esta planta cura dores de barriga. Aliás, este termo, traduzido
literalmente para a língua portuguesa, significa, “matar cobra” e os membros da comunidade
fazem analogia entre cobra e lombrigas. Aqui também fica o elemento importante que as
comunidades locais têm que pode ser útil para os alunos, que é a valorização das línguas
locais.
O momento de descrição terminaria com o professor solicitando aos educandos para
levarem consigo algo que documentasse o evento visitado. Tal documentação poderia ser um
esboço em forma de desenho daquilo que teriam observado; em forma de fotografias; em
forma de mapeamento ou mesmo em forma de um pequeno texto escrito com punho e
palavras próprias, uma vez que, nesta fase, se pressupõe que os alunos teriam pequenos
apontamentos sobre a entrevista que teriam feito às comunidades locais ou sobre os
depoimentos nelas colhidos.
Isto porque, captar o ponto de vista dos membros da comunidade não consiste apenas
em escutar o que estes dizem como também “implica situar as descrições deles em seu
contexto, e considerar os relatos (...) como instruções de pesquisa.” (COULON, 1995, p. 90).
Outra motivação que dá sustento a este momento está fundada em SACRISTÁN (1998,
p. 308) que enfatiza que, “uma actividade é melhor que a outra se exige dos alunos que
escrevam de novo, revisem e aperfeiçoem seus esforços iniciais, em vez de aparecer como
meras tarefas de completar, sem lugar para a crítica nem o aperfeiçoamento progressivo...”
Esta actividade ajudaria a problematizar o conteúdo em estudo já que o tornaria
reflexivo, implicando daí um permanente desvelamento da realidade, o que daria ensejo à
busca da imersão das consciências, resultando deste modo na inserção crítica da realidade
que circunda o educando.
Isto porque, quanto maior for o grau de problematização em que se encontram imbuídos
os educandos, maior é a probabilidade de se sentirem desafiados e de responderem a este
desafio e isto “...porque captam o desafio como um problema em suas conexões com outros,
num plano de totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a
tornar-se crescentemente crítica, por isto cada vez mais desalienada.” (FREIRE, 1999, p.
70).
Um momento seguinte seria o de pedir aos educandos para, junto dos pais ou de pessoas
mais adultas da família, recuperarem histórias sobre as plantas medicinais. Poderiam também
recolher histórias ser sobre a pesca, o artesanato, viagens, ou comércio, dependendo dos
casos. Este momento serviria para que os alunos pudessem recuperar as habilidades técnicas,
através da recuperação de história dos momentos e actos marcantes das suas origens.
17
Isso seria importante, porque uma pedagogia atenta às histórias, às experiências e às
linguagens de diferentes grupos culturais
terá menos dificuldades de entender as diferentes leituras, respostas e
comportamentos que os alunos exibem, por exemplo, ao analisar determinado texto
apresentado em classe. (...) É somente começando por estas formas subjectivas que
os educadores (...) poderão desenvolver uma linguagem e um conjunto de práticas
que confirmem, acolham e desafiam formas contraditórias de capital cultural.
(GIROUX & MCLAREN, apud MOREIRA & SILVA, 1999, p. 146).
Aqui vale o recurso didáctico “memória de vida” comumente usado em comunidades
com o domínio limitado de alfabetização, como é o caso vertente.
Este recurso é fundamental porque possibilita esboçar um quadro já vivido, desta feita
com outras matizes. Isto porque, quando a memória esboça um quadro já vivido nunca o faz
de modo repetitivo, uma vez que aí não é garantida a precisão da objectividade do orador,
possibilitando outrossim a riqueza da subjectividade que, de igual modo, é fidedigna e
constitui uma premissa de validez das informações, pois substitui o propósito de precisão por
um outro que é o de resgatar do quadro, aquilo que foi mais relevante a ponto de se tornar
inesgotável e inesquecível: “inesgotável porque ao recuperar o vivido de forma diferente da
que foi vivida torna o ontem em hoje, ao mesmo tempo e no mesmo espaço, com perspectiva
de amanhã. Movimento próprio de toda e qualquer produção de conhecimento.”
(FAZENDA, 2000, p. 83).
A localização espacial também é importante: no momento da documentação é
fundamental que os alunos façam um mapeamento do local onde estão visitando. No caso da
comunidade de Chékua em Kalanga, torna-se ainda pertinente que os alunos saibam onde está
localizada, que distância a separa do local de origem, entre outros objectos relevantes que
podem ser trazidos à superfície, objectos estes que contornam o local da entrevista: o
significado do nome de Kalanga, de Chékua entre outros elementos. Este momento é também
interdicisplinar, já que, em vez de os alunos centrarem a sua atenção apenas na planta, os
educandos lançam mãos a outros saberes que complementam o objecto em estudo.
O último momento seria o de sistematização: depois do trabalho de campo, que
consistiu em visitas de estudo e de entrevistas; depois de, em casa, os educandos recuperarem
junto dos pais e ou de outras pessoas mais idosas sobre as histórias da família ligadas ao tema;
depois de mapearem o local através dum pequeno esboço, depois dos educandos construírem
um pequeno texto à volta da planta, é chegado o momento de, em sala de aula, fazer-se uma
sistematização desse mosaico de conhecimentos, dos saberes apreendidos junto das
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comunidades, conhecimentos e saberes estes que até então não se apresentavam
sistematizados.
Como atrás já notámos, a interdisciplinaridade também é patente no momento em que,
na sua descrição, os alunos trabalham com conceitos de outras disciplinas, tais como os
elementos constituintes da planta- raiz, caule e flores (biologia), o conceito de medida que a
planta pode atingir (aritmética), a localização espacial da planta (geografia), a zonagem
geográfica da planta, quer dizer, pastagens, solos férteis e beira das estradas (geografia) e
também da língua portuguesa, ao fazerem a descrição detalhada da planta.
Os pressupostos acima aferidos além de consubstanciarem uma prática interdisciplinar,
estimulam outrossim à actividade independente do educando que se manifesta a partir do
momento em que o educador respeita o modo de ser de cada um deles; respeita o caminho que
cada um deles empreende na busca da sua autonomia: “O respeito à autonomia e à dignidade
de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos
outros.” (FREIRE, 1996, p. 66).
Outro elemento nesta prática pedagógica consiste no estímulo da fala do educando,
dando-lhe espaço para expressar as suas ideias, ouvindo a sua voz, já que está carregada de
símbolos, de linguagem e de gestos. A este propósito, certos autores defendem:
A voz do estudante é um desejo, nascido da biografia pessoal e da história
sedimentada; é a necessidade de construir-se e afirmar-se em uma linguagem capaz de
reconstruir a vida privada e conferir-lhe um significado, assim como de legitimar e
confirmar a própria existência no mundo. (GIROUX & MCLAREN, apud MOREIRA
& SILVA, 1999, p. 137).
Importa salientar que só com uma prática interdisciplinar é que foi possível estabelecer-
se a descrição da planta já que esta prática estimula a eliminação das barreiras entre as
disciplinas e entre as pessoas que pretendem desenvolvê-las. Esta premissa parte do
pressuposto básico segundo a qual, “o desenvolvimento da interdisciplinaridade é a
comunicação, e a comunicação envolve sobretudo participação.” (FAZENDA, 2000, p. 94).
Uma comunicação que se manifesta a partir da altura em que o professor, munido de
seus ideais os socializa com o grupo da mesma classe, mediante uma planificação. Para isso, a
escola, como instituição, precisa de abrir as suas portas para a efectivação dessa comunicação,
isto porque, numa mesma instituição, nos deparamos com educadores com diferentes práticas.
Neste sentido, se a instituição “concede” espaço, tempo e estimula o diálogo, abrem-se
grandes probabilidades de o professor aprender com os seus colegas, uma vez que “a
interdisciplinaridade decorre mais do encontro entre indivíduos do que entre disciplinas.”
(FAZENDA, 2000, p. 86).
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Isto quer dizer que a construção de uma Didáctica que se preze interdisciplinar, precisa
alicerçar-se em trocas intersubjectivas, isto porque o seu exercício implica também
disposições pessoais, posto que os saberes não estão “flutuando” anonimamente mas são
portados por pessoas, além de que são pessoas que fazem a articulação dos saberes. Isso quer
dizer que a interdisciplinaridade é um processo epistemológico que se processa
sociologicamente; é uma articulação de saberes que se faz por meio da relação entre pessoas
portadoras desses saberes.
É assim que se mostra pertinente que o exemplo da planta aqui exposto, precisa ser
tomado em conta pelo educador apenas como possibilidades e, como tal, este se presta a
insinuar algumas generalizações.
Assim sendo, este não deve ser tomado como modelo a ser explicado taxativamente à
outras situações. Por isso o educador precisa embrenhar-se nas comunidades e aí ter a
habilidade de buscar as significações que estão adjacentes e subjacentes neste e noutros
exemplos. Por outras palavras, precisa de buscar significações e interesses culturais que
podem ser encontrados no quotidiano das comunidades onde ele se encontra inserido: “O
momento deste buscar é que inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. É o
momento em que se realiza a investigação do que chamamos do universo temático (....) ou o
conjunto dos seus temas geradores.” (FREIRE, 1999, p. 87).
Neste sentido, a questão deve ser vista sob o ponto de vista epistemológico. Para tanto,
o planejamento entre professores da mesma classe é importante, já que ele estimula “o
autoconhecimento sobre a prática de cada um e contribui para a ampliação da leitura de
aspectos não desvendados nas práticas quotidianas.” (FAZENDA, 2000, p. 79).
É nesta planificação que a prática pedagógica (curricular) de cada educador se articula
ao projecto educativo colectivo da escola, lugar para onde confluem referenciais éticos
universais e onde efectivamente se aglutinam determinações de vária ordem, o que possibilita
a que esta empreitada constitua um projecto aberto a uma construção institucional de práticas
corriqueiras. Só assim é que este planejamento transforma-se num projecto de apropriação do
mundo concreto que se vive e se constrói em intersubjectividades. “Um projecto aberto à
realização de imprevisíveis demandas e direitos singulares, parciais e universais.” (CASALI,
2000, p. 15).
E isso só será profícuo se proporcionarmos à este educador uma formação que o
possibilite a captação destes contornos ecológicos que o circundam. Não é novidade para
ninguém que a nossa realidade em termos de formação de educadores é aquela que aponta
para a prática positivista, onde um método é emanado superiormente, regra geral sintético,
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silábico ou global, servindo deste modo como um instrumento único e de aplicação
obrigatória para todas as classes, qual uma cartilha, com o seguimento rigoroso e obrigatório
de todos os passos nele inseridos.
Sendo assim, uma formação eficiente que possibilite ao educador uma busca
consciente, a um garimpo metódico de outras situações culturais e suas respectivas
significações, afigura-se urgente.
Considerações finais
Torna-se pertinente ressalvar que tais pressupostos só se conseguirão alcançar se se
ultrapassarem alguns constrangimentos, tais como:
a. Os de ordem epistemológico/institucionais, respeitando a verdade e a relatividade
de cada disciplina o que passaria pela supressão da rigidez das estruturas
institucionais, estas que grosso modo reforçam o monopólio epistemológico das
diferentes ciências;
b. Os de ordem psicossociológico/culturais: muitas das vezes os educandos se
acomodam em práticas que desencorajam a interacção, o diálogo entre vários
participantes no processo de ensino e aprendizagem, uma vez que são tomados
pelo medo de perderem o prestígio pessoal. Isto ocorre devido ao desconhecimento
do real significado daquilo que é um projecto interdisciplinar e devido à falta de
uma formação específica;
c. Os de ordem metodológica, já que a implementação de uma metodologia
interdisciplinar pressupõe o questionamento do conteúdo de cada disciplina,
tomando como parâmetro o tipo de indivíduo que se pretende formar;
d. Os de ordem de formação, uma vez que a interdisciplinaridade convida-nos ao
estabelecimento duma relação pedagógica arraigada na transmissão do saber de
uma dada disciplina ou dum dado conteúdo fundado numa relação dialógica onde a
palavra-chave é a construção do saber com base na cooperação de todos os
intervenientes. Sendo assim, torna-se pertinente que, ao lado de uma formação
teórica se estabeleça outrossim um treino permanente visando uma troca contínua
de experiências já que a interdisciplinaridade está fundada naquele pressuposto que
defende a reconstrução da unidade dos objectos que a fragmentação dos métodos
separou. Esta reconstrução da unidade permitiria então analisar com maior
acuidade as situações globais, os limites do seu próprio sistema conceitual e quiçá,
dar mais ensejo ao diálogo entre as disciplinas;
21
e. por último, os de ordem material, uma vez que para a implementação duma acção
interdisciplinar toma-se como pressuposto que o planejamento do espaço e do
tempo sejam primordiais.
Para socializar esta experiência, o professor poderia discuti-la com outros professores
da mesma classe e com os de outras disciplinas, porque foi provado que para a concretização
dos pressupostos didáctico-metodológicos aqui tratados, se fez uso de várias disciplinas.
Nesta socialização, que emerge a partir de uma planificação, serviria de momento
chave para sugerir a outros educadores para outros saberes junto às comunidades.
É nesta busca, fundada numa abordagem interdisciplinar que “desprende” o professor
da inércia em usar o exemplo aqui exposto como receita, como directriz a seguir sem nenhum
questionamento, já que o que o exemplo aqui descrito não constitui “...um esquema-
receituário de programação, mas de um estabelecimento de coordenadas para pensar e
actuar na prática.” (SACRISTÁN, 1998, p. 297).
Conclusão
Para isso, insista-se, é necessário que se dê primazia à formação de educadores. Uma
formação que lhe possibilite a captação das significações culturais que se encontram nas
comunidades locais onde ele se encontra inserido. Só com esta visão de conjunto, só com esta
possibilidade de apropriação dos contornos ecológicos que permeiam a comunidade é que o
educador poderá trazer à superfície outros exemplos. Sem este exercício, corre-se o risco em
se cair em mais numa “directrização”, em mais “pacotes”, em mais uma “cartilha” que vem de
cima para baixo, pronta a ser aplicada sem nenhum questionamento.
Boa parte da rigidez do ensino, da falta de acomodação às condições do aluno ou do
meio cultural, do fracasso escolar provêm dessa dependência dos professores quanto ao plano
de conteúdos realizados fora das condições de sua prática e dos interesses e possibilidades dos
alunos. (SACRISTÁN, 1998, p. 298).
Referências bibliográficas
CASALI, Alípio. Saberes e procederes escolares: o singular, o parcial, o universal. In:
vários. Conhecimento Pesquisa e Educação. Campinas, Papirus, 2001.
COULON, Alain. Etnometodologia. Petrópolis, RJ, Vozes, 1995.
FAZENDA, Ivani (org.). Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 5. ed. São Paulo,
Papirus, 2000.
22
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 11. ed.,
São Paulo, Paz e Terra, 1996.
_____. Pedagogia do Oprimido. 26. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1999.
MOREIRA, António Flávio & SILVA, Tomas Tadeu (Org.). Currículo, cultura e sociedade.
3ª ed., São Paulo, Cortez, 1999.
SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. São Paulo,
Artmed, 1998.
23
Contribuições do estágio pedagógico no processo formativo: um estudo com 28
estagiários da Universidade Pedagógica, Quelimane - Moçambique
Lopes Luís17
, Geraldo Vernijo Deixa18
e Rude José Matinada19
Resumo
O presente artigo é resultado de uma investigação realizada com 28 estudantes do 4º ano do curso de
Licenciatura em Ensino de Matemática da Universidade Pedagógica, Quelimane, Moçambique, após o
estágio pedagógico em ensino de Matemática no ano de 2014. A nossa intenção foi compreender as
contribuições que o estágio pedagógico teve para sua formação como professor e explorar acções para
o sucesso nesta fase. Aplicamos um questionário contendo perguntas abertas. Mediante a análise
textual discursiva das respostas, concluímos que o estágio pedagógico constituiu um momento
privilegiado para a aquisição de experiências, de autocorreção e certificação para o exercício da
docência. O conhecimento pedagógico-didático do conteúdo, a comunicação entre estudante,
supervisor e tutor foram apontados como exigências para encarar esta fase da formação.
Palavras-chave: Estágio Pedagógico, Formação inicial de professores, Aprendizagem, Ensino.
Introdução
Actualmente, o sector da Educação em Moçambique enfrenta falta de qualidade de
ensino inferida a partir da qualidade do aprendizado. Isto leva os planificadores a sugerirem
novos currícula para a formação de professores e para os subsistemas de ensino em vigor no
país. Diante deste cenário, diversas modalidades têm sido implementadas no âmbito da
formação de professores; por um lado, para responder à crescente massificação do ensino e
por outro, para garantir a melhoria da qualidade deste (AGENDA 2025, 2003:137). Assim,
surgem nomeadamente: a formação ao nível de bacharelado (12ª + 3 anos de formação), de
licenciatura (12ª +4 anos de formação), décima segunda mais um (12ª + 1 ano), o Magistério
Primário (10ª + 2 anos, 10ª + 1 ano de formação e presentemente, em fase experimental, 10ª +
3 anos de formação).
Apesar dos esforços empreendidos pelo sector no sentido de melhorar a qualidade de
ensino no País, parece haver ainda uma grande dúvida em relação à qualidade da educação:
formação de professores, as condições físicas das salas de aula, turmas numerosas – elevado
rácio aluno/professor. Neste sentido, a Agenda 2025 (2003:137) enfatiza, como alternativa, a
17
Licenciado em Ensino de Matemática pela Universidade Pedagógica, Moçambique. 18
Doutor em Ensino de Ciências e Educação Matemática pela Universidade Estadual de Londrina, PR, Brasil. 19
Doutorando da Universidade Católica do Porto, Portugal.
24
necessidade de “estudar e aplicar mecanismos mais adequados para melhorar a qualidade dos
professores formados, dando-se mais ênfase às práticas pedagógicas”.
Estamos cientes de que são poucas as investigações que procuram compreender se o
estágio pedagógico (EP) contribui para o processo formativo da aprendizagem dos estudantes
(formandos) e temos em conta que, até esta etapa de formação, o estudante, futuro professor,
já deve ter visões a respeito do ensino e da sua identidade profissional como professor. Assim
sendo, neste estudo pretendemos compreender as contribuições que o EP produz para a
formação destes após o Estágio Pedagógico em ensino de Matemática. A nossa pesquisa foi
orientada pelas seguintes questões: 1) Que contribuições o Estágio Pedagógico trouxe para a
aprendizagem de ensino destes estudantes? E 2) Que acções devem ser intensificadas para
garantir uma boa construção de conhecimento dos estudantes na fase de Estágio Pedagógico?
Esperamos que os resultados desta investigação possam contribuir para promoção de
reflexões em volta da formação de professores e reformulação das ações quer dos orientadores
e da sociedade em geral, quer dos formandos, com vista à participação activa de todos na
resolução dos problemas da educação em Moçambique.
Desde o primeiro ao terceiro ano de formação, os estudantes dos cursos de ensino na
Universidade Pedagógica (UP) estudam disciplinas das áreas específicas e um conjunto de
disciplinas das ciências da Educação e Psicologia; ciências de comunicação e linguagem, em
particular as Técnicas de Expressão em Língua Portuguesa, Inglês, Métodos de Estudo e
Investigação Científica, a Filosofia ou Ética, Fundamentos de Pedagogia, Temas Transversais
e Práticas Pedagógicas (PP’s) das áreas específicas seguido do EP com vista a munir o
formando de saberes multidisciplinares para o exercício pleno da sua actividade futura. O
curso de Licenciatura em Ensino da Matemática obedece a essa composição (UP, 2009). A
diversidade de disciplinas para a formação docente, harmoniza-se com aquilo que Tardif
(2012) considera de saberes múltiplos. Esses saberes geralmente provêm de fontes
diversificadas. O EP faz parte de uma das fases da formação em que os saberes adquiridos ao
longo da formação são postos em prática e representa um marco fundamental da formação
uma vez que nele se desenvolvem os saberes experienciais.
Contextualização do objecto de pesquisa
As Práticas Pedagógicas (PP’s) são actividades curriculares que se desenvolvem nos
primeiros três anos de formação nos cursos voltados ao ensino com vista a articulação entre a
teoria e a prática. Tais actividades consistem na familiarização do estudante com o ambiente
escolar por meio de observação da composição e funcionamento dos organismos escolares,
25
assistência e planificação das aulas. E o EP é o último momento dessa gama de actividades (a
realizar-se no 4º ano) que garante o contacto experiencial com situações psicopedagógicas,
didácticas e laborais concretas, reais ou simuladas e que pode contribuir para preparação do
estudante para a vida profissional. Esse contacto nem sempre é bem-sucedido havendo
algumas imprecisões, uma vez que o EP não só depende das PP’s como também do domínio
dos conteúdos e das experiências anteriores do estagiário (UP, 2009). Nesta ordem de ideia, o
estudante precisa de adquirir o aprendizado do ensino.
Assim sendo, acreditamos que,
Ensinar é mobilizar uma ampla variedade de saberes, reutilizando-os no trabalho para
adaptá-los pelo e para o trabalho. A experiência de trabalho, portanto, é apenas um
espaço onde o professor aplica saberes, sendo ela mesma saber do trabalho sobre
saberes, em suma: reflexividade, retomada, reprodução, reiteração daquilo que se sabe
naquilo que se sabe fazer, a fim de produzir sua própria prática profissional.
(TARDIF, 2012: 21).
Neste sentido, o EP constitui um momento mais importante da formação inicial, em que
por meio de conhecimentos adquiridos e das experiências vividas o futuro professor
experimenta o trabalho com muitas possibilidades de reajustamento condicionadas pelos
supervisores e integrantes da escola para a sua inclusão no sistema laboral e compreensão do
processo de ensino em seu todo. O estágio pedagógico pode ser entendido como um período
de aprendizagem ou correcção, reflexão, legitimação e fortalecimento no acto da construção
da identidade profissional do professor (SHULMAN, 1987; PONTE, 2002; TARDIF, 2012).
Visões de Estágio Pedagógico e suas Implicações Pedagógicas
FREIRE (2001), apresenta três visões de EP, nomeadamente: 1) EP como aplicação da
teoria, 2) EP como Prática profissional e, 3) EP como emancipação profissional. Essas visões
não diferem nos métodos usados para promover a aprendizagem do ensino, mas sim nas
proposições que lhe estão subjacentes quanto ao conhecimento profissional, ao papel da
reflexão nas práticas de formação e à imagem do professor. A reflexão é considerada em
todas as concepções, embora com finalidades distintas, dependente dos interesses que estão
em jogo.
Na primeira visão apontada por FREIRE (2001), o estágio é visto como aplicação da
teoria quando este pressupõe que o ensino constitui uma ciência aplicada e o EP visa
possibilitar a aquisição de competências pedagógicas e a aplicação eficiente do conhecimento
científico e educacional. Portanto, para esta concepção, conhecer mais acerca das matérias de
ensino, das teorias educacionais e das estratégias de ensino/aprendizagem conduz a uma
26
prática com maior qualidade. Para esta visão, professor competente pressupõe conhecimento
teórico profundo.
Segundo SHULMAN (1987), o conhecimento profissional básico para o ensino compõe-
se de sete categorias: conhecimento das matérias de ensino, conhecimento pedagógico geral,
conhecimento curricular, conhecimento dos alunos e de suas particularidades, conhecimento
das finalidades educativas, conhecimento de outros conteúdos e conhecimento pedagógico do
conteúdo. Este último, reveste-se de interesse particular na formação de professores por tratar-
se de um tipo de conhecimento adequado e característico para o ensino. Esse tipo de
conhecimento, no entendimento deste autor,
[...] representa uma mistura entre o conteúdo e a pedagogia e traduz uma compreensão
sobre o modo de organizar tópicos particulares, problemas e questões que sejam,
simultaneamente, adaptados à diversidade de interesses e capacidades dos alunos (p.
8).
Neste sentido, entendemos que o conhecimento pedagógico pode servir de alicerce para
a organização do conteúdo específico de modo que seja possível o seu ensino. Sendo assim, o
conhecimento pedagógico do conteúdo representa um tipo de conhecimento a ser
aperfeiçoado pelos estagiários durante o EP. Nesta fase, a questão central tem a ver com a
forma como os conteúdos de ensino podem ser apresentados aos alunos. Ao discutir a maneira
como estes irão apresentar o conteúdo das suas disciplinas, pode gerar representações ou
transformações que podem facilitar a compreensão das matérias por parte dos alunos. Este é o
tipo de conhecimento que os estagiários começam a aprender no processo de aprendizagem do
ensino através da acção. Assim,
[...] os saberes oriundos da experiência de trabalho cotidiana parecem constituir o
alicerce da prática e da competência profissionais, pois essa experiência é, para o
professor, a condição para a aquisição e produção de seus próprios saberes
profissionais (TARDIF, 2012:21).
Deste modo, o estagiário é tido como um técnico que utiliza, na actividade docente, os
saberes produzidos por outros que desconhecem os contextos escolares. Na realidade, não se
valorizam os conhecimentos resultantes de sua prática. A ser assim, a consideração da teoria e
da prática como duas esferas excludentes pode conduzir ao empobrecimento destas.
A segunda visão considera o estagiário como aprendiz que aprende por meio da imersão
na prática, no desempenho do ofício, observando o mestre a realizar as aulas e aceitando as
sugestões dele quando é observado na situação de ensinar. Nesta concepção de estágio, os
formandos adquirem um conhecimento profissional de natureza prático, à medida que vão
realizando as diferentes actividades docentes, isto é, o aprendiz imita as acções do mestre.
Sendo que, aos professores não basta encontrar a solução para um problema; têm de começar
27
por equacionar o problema através da compreensão da situação problemática, caracterizada
pela inquietação, desordem e conflito de valores e depois encaminhar tal problema, por um
processo de especificação das decisões a serem tomadas, das finalidades a serem atingidas e
dos meios a serem escolhidos (FREIRE, 2001).
Na terceira visão, o professor cria o ambiente necessário ao desenvolvimento das
potencialidades dos seus alunos. Torna-se um facilitador da aprendizagem, um colega, um
amigo dos seus alunos. Há, em geral, a criação de condições que propiciam a reflexão sobre a
acção, tendo em conta os contextos e as consequências das acções ao nível do
desenvolvimento pessoal do estagiário e social dos alunos e da construção da sociedade.
Neste sentido, olhando para as três concepções, podemos perceber que não basta o domínio
das teorias e capacidade para diagnosticar problemas decorrentes do ensino para a busca de
soluções, mas que é necessário desenvolver acções concretas para a formação da identidade
profissional em ambiente de investigação em que o aluno é membro activo capaz de construir
o seu próprio conhecimento.
Procedimentos metodológicos
Tomamos para esta pesquisa a análise textual discursiva como método de investigação,
para a exploração qualitativa das mensagens e das informações. A análise textual discursiva
trata de significados de um conjunto de textos, os quais serão atribuídos sentidos e
significados. Nesta perspectiva, propõe descrever e interpretar sentidos provenientes da leitura
de um conjunto de respostas dos sujeitos (28 estudantes) dessa pesquisa. A análise de
conteúdo possui como foco de estudo as mensagens, a linguagem, o discurso, mesmo que o
seu corpus não seja necessariamente verbal; além disso, pode referir-se também à outra
representação simbólica. Por corpus entendemos um conjunto dos documentos tidos em conta
para serem submetidos aos procedimentos analíticos (BARDIN, 2011:126).
Para a obtenção das mensagens/dados, idealizamos e aplicamos um questionário
contendo duas perguntas, ambas de carácter abertas. Idealizamos um número reduzido de
questões para permitir que os inquiridos tivessem tempo suficiente para reflectir sobre as
possíveis respostas. A pesquisa foi orientada pelas seguintes questões:
- P1. Em linhas gerais, quais foram as principais contribuições do estágio pedagógico
para a sua formação como futuro professor?
- P2. Que conhecimentos considera prioritárias para ter sucessos no estágio?
O nosso objectivo com a pergunta 1 era não só identificar contribuições do EP como
também procurar perceber se o EP ajudou a construir seu conhecimento a respeito do ensino.
28
Com a pergunta 2, pretendíamos buscar informações que o estagiário considerava relevantes
para a realização do EP.
A opção por questões abertas justifica-se pelo facto de que este pode permitir maior
liberdade dos inquiridos em expressar suas ideias nas respostas; podem dar mais informação,
muitas vezes mais rica e pormenorizada e por vezes dão informação inesperada. Outra razão
prende-se pelo facto de exercer menor influência do inquiridor. Não obstante, as respostas são
muitas vezes de difícil interpretação; é preciso muito tempo para codificar as respostas
(VILELAS, 2009: 294). Nesta linha de pensamento, procuramos a compreensão do conteúdo
das mensagens escritas, obtidas por meio de um questionário aplicado aos estagiários.
De acordo com MORAES e GALIAZZI (2011), os procedimentos para o agrupamento,
análise e composição com o referencial teórico, envolvem: desmontagem de textos
(unitarização) – examinar os materiais e textos em seus detalhes, fragmentando-os com vista a
encontrar enunciados sobre o fenómeno observado; estabelecimento de relações
(categorização) – relacionamento, combinação e classificação; reunião dos elementos
unitários na formação de conjuntos mais complexos, as categorias; captando o novo
emergente – compreensão renovada do todo. Aqui, o investimento da nova compreensão,
crítica e validação são últimos elementos do ciclo. O metatexto resultante desse processo
representa um esforço em explicitar a compreensão que se apresenta como produto de uma
nova combinação dos elementos construídos ao longo dos passos anteriores.
Caracterização dos sujeitos da pesquisa
O estudo foi realizado com 28 estudantes do quarto (4º) ano do curso de Licenciatura
em Ensino de Matemática da UP, Delegação de Quelimane, Moçambique. O Estágio
Pedagógico em Ensino de Matemática ocorreu no primeiro semestre de 2014. A pesquisa
decorreu na primeira semana do segundo semestre do mesmo ano para garantir que todos
estudantes estivessem presentes. A escolha deste nível deveu-se ao facto destes estudantes
estarem a terminar a sua formação no nível de licenciatura e aí esperamos compreender as
suas perceções a respeito do ensino e do ser professor construídas ao longo de sua formação.
Participaram no estudo vinte e oito (28) estudantes. Destes, dezassete (17) frequentavam
o curso como formação inicial pois nunca tiveram uma formação psicopedagógica e outros
onze (11) estavam em formação continuada uma vez que tiveram formação de professores
noutras modalidades: um (1) de 6ª +3 e bacharelado, três (3) de 10ª +1 e sete de 12ª +1.
Quanto às suas experiências como professor, dezasseis (16) nunca tinham lecionado aulas,
doze (12) já foram professores dos quais dez (10) tendo leccionado a disciplina de
29
Matemática e dois (2) outras disciplinas. Dois (2) dos que lecionaram Matemática faziam
parte do grupo dos que nunca tiveram formação psicopedagógica.
A participação dos estudantes nesta pesquisa foi de carácter voluntário. Assim,
explicitamo-los os objetivos da pesquisa e sua possível contribuição para o processo
formativo. Para a manutenção do anonimato, codificamos os inquiridos em E1, E2, E3, …,
E28 como sendo estudante 1, 2, 3, … e 28, respetivamente. Os dados desta pesquisa foram
apresentados em quadro. Para facilitar a sua interpretação, criamos dois grupos de unidades de
registo sendo um grupo para cada questão: o primeiro grupo refere às unidades de registo que
dizem respeito às contribuições do EP para o aprendizado do ensino e é composto por três
unidades designadas por C1, C2 e C3. Essas unidades surgiram a partir da análise dos dados,
são emergentes (MORAES e GALIAZZI, 2011), conforme aclaramos no quadro a seguir:
Quadro 1: Unidades de registos criadas a partir das respostas dos inquiridos na P1.
Unidades de registos
criadas
Caracterização de cada unidade
C1: Aquisição de
experiência
Esta unidade enquadra respostas que indicam o estágio como
oportunidade de aquisição e troca de experiências. Momento em
que o estagiário passa a interagir com a realidade, socializando e
compartilhando os seus saberes com os alunos.
C2: Adaptação dos
conteúdos
Esta unidade enquadra respostas cujo foco é aquisição de novas
formas de adaptação dos conteúdos de ensino.
C3: Habilitação
Esta unidade inclui respostas que revelam momentos em que o
estagiário concebe a autocorreção como aspecto fundamental para o
exercício futuro da docência.
Fonte: Organizado pelos autores
O segundo grupo é composto por cinco unidades de registos que dizem respeito às
condições prioritárias para a condução do EP na visão dos inquiridos. Tais unidades foram
indicadas por U1, U2, U3, U4 e U5, conforme explicitamos no quadro a seguir:
30
Quadro 2: Unidades de registos criadas a partir das respostas dos inquiridos na P2.
Unidades de registos criadas Caracterização de cada unidade
U1. Domínio do conteúdo Esta unidade enquadra respostas cujo teor
enfatiza que para ensinar com sucesso basta
dominar o conteúdo.
U2. Simulações Esta unidade diz respeito às acções
relacionadas ao micro aulas que
normalmente os estudantes realizam na sala
de aula com colegas de turma.
U3. Domínio pedagógico-didácticos dos
conteúdos e domínio dos conteúdos
específicos
Esta unidade diz respeito ao planeamento
das aulas, aos procedimentos metodológicos
com vista à materialização da actividade
lectiva em sala de aula.
U4. Pesquisa Esta unidade ajusta respostas que apontam
para a necessidade de uma busca constante
de informações para o sucesso do ensino.
U5. Interacção Estudante/Supervisor/Tutor Esta unidade ajusta respostas que defendem
a comunicação como eixo fundamental para
o processo formativo do estagiário.
Fonte: Organizado pelos autores
BARDIN (2011:48) considera a análise de conteúdo como um conjunto de técnicas de
análise das comunicações que visam obter por procedimentos metódicos e objectivos de
explicação do conteúdo das mensagens reveladores que podem ser quantitativos ou não que
permitem a dedução de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção dessas
mensagens. Assim sendo, a análise do conteúdo pode trabalhar com frequências relativas ou
não dependendo da natureza do material a analisar. A seguir apresentamos os dados e sua
discussão.
Apresentação e discussão dos dados
A seguir apresentamos um quadro contendo as frequências absolutas resultantes das
respostas dos inquiridos e seguidas de comentários.
31
Quadro 3: Unidades de registos referentes às respostas dos inquiridos na P1.
Unidades de registos
criadas
Inquiridos Frequência absoluta
C1: Aquisição de
experiência
E1, E3, E4, E5, E9, E11, E12, E14, E15,
E16, E17, E18, E19, E20, E21, E22, E23,
E24, E25, E26 e E28
21
C2: Adaptação dos
conteúdos
E2 e E13 2
C3: Habilitação E6, E7, E8, E10 e E27 5
Fonte: Organizados pelos autores.
O quadro anterior esclarece que 21 dos 28 inquiridos sugerem que o EP constituiu um
momento privilegiado para a aquisição de experiências para o exercício da docência.
Igualmente, explica que 2 dos 28 inquiridos apontam que o EP se tratou de uma ocasião em
que aprenderam a ver os conteúdos de ensino por outras formas de olhar, novas formas de
abordagens adaptadas às vivências dos alunos e das realidades locais da escola, com destaque
para as condições físicas da escola e a quantidade excessiva de alunos por turma (80 a 140
alunos por turma). Com relação a este último aspecto, alguns inquiridos apontaram
dificuldades em lidar com turmas numerosas. Ainda, o mesmo esclarece que 5 dos 28
inquiridos consideram o EP como momento de autocorrecção e certificação para o exercício
da docência. Podemos compreender esta opção (C1: Aquisição de experiência) quando
TARDIF (2012) argumenta que para o exercício da docência, os saberes experienciais
ocupam um lugar de destaque. Assim, o EP serviu de um momento para a troca de
experiência, aquisição de uma nova maneira de conceber os programas e os manuais
escolares, visando uma possível adaptação dos conteúdos para o ensino adequado às
realidades vividas na escola.
32
Quadro 4: Unidades de registos referentes às respostas dos inquiridos na P2.
Unidades de registos Inquiridos Frequência
absoluta
U1. Domínio do conteúdo E3, E19, E24, E25 4
U2. Simulações E4, E9, E27 3
U3. Domínio pedagógico-
didáticos dos conteúdos e
domínio dos conteúdos
específicos
E1, E2, E5, E8, E11,E12, E14, E15,
E16, E17, E18, E20, E21, E22, E23
15
U4. Pesquisa E7, E13 2
U5. Interação
Estudante/Supervisor/Tutor
E6, E10, E26, E28 4
Fonte: Organizados pelos autores.
A análise do quadro anterior evidencia que 15 dos 28 inquiridos apontam como
condições prioritárias para encarar o EP, o domínio dos conteúdos específicos e o
conhecimento pedagógico-didático do conteúdo; 3 dos 28 inquiridos indicam que para ser
bem sucedido no EP é necessário que este seja antecedido de muitas simulações. Estes
enfatizam a execução de muitos ensaios. Todavia, estes ensaios podem trazer suas
consequências visto que estes são feitos com colegas da turma e nas escolas encontra-se outro
grupo distinto do anterior (alunos), o que pode entrar em choque com as concepções de
partida.
Observamos que 4 dos 28 inquiridos mesmo que estejam a finalizar o curso de
licenciatura em ensino de Matemática, ainda possuem uma concepção de que para ensinar
basta ter o domínio dos conteúdos específicos. Esta posição mostra que a formação para
aqueles estudantes não conseguiu alterar a concepção que trazia da Escola Secundária.
Igualmente, verificamos que, apesar dos formandos terem aprendido a relevância de pesquisa
para o ensino, poucos (2 dos 28 inquiridos) olham a sala de aula como um lugar no qual se
pode desenvolver a investigação das aprendizagens e da própria ação do professor a começar
com o EP.
No quadro 4, verificamos igualmente que 4 dos 28 inquiridos apontam que, para o
sucesso no EP, é necessário que o trinómio estudante, supervisor e tutor funcione
devidamente; ou seja, haja abertura em relação à comunicação mútua envolvendo quaisquer
pares dos pólos do trinómio. Neste sentido, o estudante recebe influências do supervisor e do
33
tutor e deve ser aberto a apresentar os seus problemas aos mesmos. O supervisor e o tutor
devem coordenar as suas acções na perspectiva de reorientarem o estudante e de o avaliarem,
gradualmente, ao longo do Estágio Pedagógico.
Aos estudantes que apontam o trabalho em grupo, chamam atenção para um tipo de
habilidade a ser desenvolvida pelo professor – promover discussões na sala de aulas, dado
que, para garantir a existência de interacções entre os estudantes, é necessária uma preparação
ou talento do professor, uma vez que algumas investigações em educação matemática estão
orientadas para a dinâmica ou discussões em sala de aulas (PONTE, BROCARDO E
OLIVEIRA, 2013). Este talento pode ser cultivado na fase de EP.
Considerações finais
Do estudo feito concluímos que o EP pode ser visto não só como uma fase no currículo
de formação profissional dos estudantes, mas também como um momento para a integração
do sujeito na vida social e profissional. Concluímos, igualmente, que, dada a ênfase
manifestada pelos inquiridos no domínio do conteúdo, eles concebem o EP como uma
aquisição de experiências para o ensino. Todavia, o EP poderia, similarmente, ser concebido
como actividade na qual acções de investigação tomam um lugar de destaque, o que pode
contribuir para o aprimoramento da docência de qualidade.
Paralelamente, os inquiridos apontaram que para o exercício do EP, são condições
prioritárias o domínio dos conteúdos do ensino e saber planeá-los. Todavia, é necessário uma
articulação de vários conhecimentos (SHULMAN, 1987, TARDIF, 2012, PONTE, 2002).
Para pesquisas posteriores, recomendamos que sejam investigadas as concepções a
respeito do ensino que os graduados do ensino médio trazem ao ingressar no ensino superior.
Referências bibliográficas
AGENDA 2025. Visão e Estratégias da Nação. Maputo, Comité de Conselheiros, 2003.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. 3. ed. São Paulo, Edições 70, 2011.
FREIRE, A. M. "Concepções orientadoras do processo de aprendizagem do ensino nos
estágios pedagógicos". In: Colóquio: modelos e práticas de formação inicial de
professores. Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade
de Lisboa. 2001.
MORAES, R. & GALIAZZI, M. do C. Análise Textual Discursiva: 2. ed. rev. Ijuí, Ed. Unijuí,
2011.
34
PONTE, J. P. "A vertente profissional da formação inicial de professores de Matemática". In:
Revista Sociedade Brasileira de Educação Matemática, nº 11A, 2002.
PONTE, J. P da; BROCARDO, J.; OLIVEIRA, H. Investigações Matemáticas na Sala de
Aula. 3. ed. rev. ampl. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2013.
UP. Regulamento académico para os cursos de graduação e de pós-graduação. Maputo, UP,
2012.
SHULMAN, L. S. Knowledge and teaching: Foundations of the new reform. Harvard
Educational Review, 1987. Disponível em http://people.ucsc.edu/~ktellez/shulman.pdf,
acessado aos 03/01/2015.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 14. ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 2012.
VILELAS, J. Investigação – o processo de construção do conhecimento. Lisboa, Edições
Sílabo, 2009.
35
Uma educação nacional, regional e global equilibrada: um projecto realizável?
Pedro Bila20
Resumo
No presente artigo analisa-se o desencontro entre as aspirações e/ou idealizações de um "novo
mundo", onde os homens de todas as raças e nações se possam encontrar mais próximos uns dos
outros, geográfica, cultural, científica, tecnológica e economicamente, com acesso de todos os
cidadãos nacionais a um conjunto de determinantes virtuiais que lhes tornem também cidadãos
globais, com base nas generalizações dos actos ou aspectos mais comuns entre os homens,
horizontalmente, sem a dicotomia centro/ periferia, pobres/ ricos, norte/ sul, no espaço e no
tempo; e a herança histórica das grandes rivalidades e ambições económico-políticas e culturais
entre o ocidente e os países do Terceiro Mundo que continua a ser a principal determinante das
relações estruturais entre os países de todo o mundo. Coloca-se ênfase no facto de as posições
históricas de herança colonial continuarem a favorecer um grupo em detrimento do outro e
parecerem perpetuar, no presente, a dominação através de novas formas camufladas, o que
parece ofuscar e/ou afastar cada vez mais para um plano utópico, absolutamente inacessível, o
desiderato de um equilíbrio entre os interesses de uma educação nacional, e os interesses
regionais e globais. Aponta-se como principal razão, as desigualdades históricas, políticas,
culturais, científico-tecnológicas e económicas.
Palavras-chave: Educação Nacional, Regional e Global - Utopia.
1. Introdução
No nosso dia-a-dia assiste-se a uma corrida vertiginosa para a mundialização das
relações humanas, como um imperativo de uma nova etapa da evolução das sociedades
humanas e ao consequente crescimento da interdependência entre os povos a todos os níveis
(político, histórico, cultural, económico, científico e tecnológico).
Países, povos e cidadãos singulares não resistem a esta sedução para o desfrute das
maiores conquistas do chamado homem "pós-moderno", sob pena de ficarem "fora do jogo"
da história.
Com as veneráveis conquistas da ciência e tecnologia - o computador; a internet; os
sistemas e as redes de comunicação; o celular; as últimas gerações de navegadores de espaço,
da terra e das águas - as relações humanas acontecem numa velocidade jamais vista, como se
o planeta fosse uma simples aldeia comunal. Pode-se partir de uma extremidade do para a
outra, em muito menos horas do que em tantos dias, meses ou anos como acontecia antes;
pode-se comer comida de qualquer parte do mundo; pode-se ver, no mesmo segundo de
tempo, no mesmo dia, os mesmos programas recreativos e noticiários do que acontece pelo
mundo inteiro e pode-se, em directo, falar com qualquer pessoa de qualquer parte do mundo.
20
Mestre em Educação/Ensino de Português. Docente da UP-Gaza.
36
As palavras de ordem são: rapidez, velocidade, economia, eficiência, tecnologia, saber,
prazer e conforto e, neste concurso, à Educação reserva-se o papel de: (i) formar a
consciência social favorável ao processo de integração; (ii) capacitar os recursos humanos
para saberem extrair os maiores benefícios possíveis do fenómeno e; (iii) harmonizar os
sistemas educativos ao nível internacional ou global, com vista à formação de um homem que
seja, simultaneamente, Nacional, Regional e Global de forma equilibrada.
Ora, por herança da história, o mundo está dividido em dois grupos " ricos e pobres;
fortes e fracos; cultos e incultos; civilizados e não civilizados, centro e periferia", e isso faz
com que haja dependência e dominação incondicional a todos os níveis (económico, político,
histórico, cultural, linguístico, científico e tecnológico) de um grupo em relação ao outro, pois
os primeiros estão posicionados em melhores trincheiras históricas, posição que faz deles os
potenciais ganhadores da corrida.
É, portanto, motivados pelo desencontro entre as aspirações, paixões e/ou idealizações
de um "novo mundo", onde os homens de todas as raças e nações se encontrem mais próximos
uns dos outros, geográfica, cultural, científica, tecnológica e economicamente; e a herança
histórica das grandes rivalidades e ambições económico-políticas e culturais que se
perpetuam, no presente, através de novas formas de dominação, camufladas em novas
roupagens; que nos propomos reflectir sobre o tema: Uma Educação Nacional, Regional e
Global equilibrada: um projecto realizável?
No processo da nossa reflexão, colocam-se-nos imediatamente as seguintes questões:
- Um equilíbrio entre o Nacional, o Regional e o Global na Educação será um projecto
realizável e, portanto, uma Utopia necessária e relativamente alcansável, ou uma Utopia
puramente ideal e fantasiosa, inacessível por absoluto?
- Será que a Educação conseguirá quebrar as muralhas construídas pela história, sob
alicerces político-civilizacionais e económicos?
Pretendemos, efectivamente, com esta reflexão: (i) analisar as antinomias atinentes aos
interesses e características do Nacional, do Regional e do Global e os requisitos necessários
para a desejada reconciliação e integração e, por último, (ii) fundamentar a
insustentabilidade de uma educação Nacional, Regional e Global equilíbrada, com base nas
premissas da integração.
37
2. Uma Educação Nacional, Regional e Global equilibrada: um projecto
realizável?
Antes de entrarmos na discussão do assunto proposto, achamos ser de capital
importância precisarmos a acepção que usaremos das palavras-chave deste ensaio:
Globalização, Regionalização, Nacionalismo e Utopia.
Usaremos a palavra Globalização, com sentido de um fenómeno de crescimento da
interdependência de todos os povos e países da superfície terrestre, a todos os níveis (político,
histórico, cultural, económico, científico e tecnológico).
Usaremos o termo Regionalização como sistema ou doutrina política e social que faz
prevalecer os interesses da região ampla em detrimento dos nacionais. Atribui competências
administrativas e políticas aos órgãos de soberania de âmbito regional como medida certa para
a defesa dos interesses da região.
Concebemos Nacionalismo como um movimento e/ou doutrina político(a) que reclama
o direito de um povo construir uma nação (com autonomia histórico-jurídica, cultural e
económica). Exalta a preferência pelo que é próprio da nação a que se pertence, significando
também neste caso, o patriotismo.
Usaremos o mesmo sentido de Utopia de MORE (1516), com a idéia de
civilização/mundo ideal, imaginária(o), fantástica(o). Pode referir-se a uma cidade ou a um
mundo, sendo possível tanto no futuro, quanto no presente, porém em um paralelo. A palavra
foi cunhada a partir dos radicais gregos οὐ, "não" e τόπος, "lugar", portanto, o "não-lugar"
ou "lugar que não existe". O "utopismo" consiste na idéia de idealizar não apenas um
lugar, mas uma vida, um futuro, ou qualquer outro tipo de coisa, numa visão fantasiosa e
normalmente contrária ao mundo real. O utopismo é um modo não só absurdamente otimista,
mas também irreal de ver as coisas do jeito que gostaríamos que elas fossem.
Na Educação, a globalização pressupõe o acesso de todos os cidadãos nacionais a um
conjunto de determinantes virtuias que lhes tornem também cidadãos globais, com base nas
generalizações dos actos ou aspectos mais comuns entre os homens, no espaço e no tempo.
Aqui, todos os valores e instrumentos que são objecto deste fenómeno devem ser concebidos
e efectivados horizontalmente, sem desenvolver uma dinâmica dicotómica, de centro e
periferia, pobres e ricos; fracos e fortes; cultos e incultos; civilizados e não civilizados
(ROSÁRIO, 2007).
Quando em torno dos pressupostos determinantes virtuais, reclamados para o homem
universal, se reconhece naturalmente especificidades e/ou afinidades bem fortes, que
condicionem mais eficiência de ganhos geralmente sócio-económicos e, neste caso concreto,
38
educacionais e culturais, entre um grupo de cidadãos de nações vizinhas, mercê de sua
localização geográfica numa mesma região, o foco e o interesse das trocas em causa são
reclamados em torno de uma região e, todas as políticas, alianças e estratégias de cooperação
devem concorrer para potenciar a Regionalização dessas relações entre povos, num ideal de
uma integração regional. Ora, esta integração carrega também consigo um pressuposto de
horizontalidade, “de igual para igual”, como condição para a sua sustentabilidade. Isto
implica, para além da livre circulação de pessoas e bens, em prol de imperativos económicos,
uma aceitação mútua da diferença principalmente racial, histótico-cultural e linguística, em
defesa da componente mais social e humanitária, que traz sempre na sua bandeira cores
daliberdade, democracia, igualdade e fraternidade entre os povos.
Para que a globalização e a integração regional sejam sustentáveis, é preciso que esteja
contemplado o interesse nacional como propósito último, o que implica, necessariamente, a
existència de um Estado forte com uma diplomacia poderosa, a todos os níveis, de modo que
se consiga criar uma estrutura social e educativa que assegure aos cidadãos nacionais e às suas
gerações futuras um ambiente de desenvolvimento socioeconómico, científico-tecnológico e,
sobretudo, cultural.
Todos os movimentos globalizantes da história redundaram numa insustentabilidade por
falta de satisfação dos interesses nacionais de alguns de seus integrantes (geralmente os mais
fracos), pois tiveram como principal motivação os problemas sócioeconómicos dos mais
fortes, mesmo que astuciosamente camuflados, às vezes e que desaguaram na exploração
política, económica e cultural dos mais fracos.
Veja-se, por exemplo, que (i) a globalização aparece na constituição do Império Chinês;
(ii) na civilização egípcia, cujo objectivo último não era a troca, mas sim a dominação de todo
o continente africano; (iii) na Grécia, nas cidades-estado que, mesmo independentes, viam
uma globalização da economia; (iv) os Romanos fizeram também a globalização da economia
e do direito que os Gregos já tinham descoberto; (v) os portugueses lançaram-se às grandes
descobertas, para procurar novas rotas comerciais de globalização para suprir o descompasso
havido entre a capacidade de produção e consumo, isto é, a baixa produtividade e falta de
alimento para abastecer os núcleos urbanos, enquanto a produção artesanal não tinha um
mercado consumidor e; (vi) o exemplo mais próximo de globalização é do século XIX,
chamado de Imperialismo ou neocolonialismo. Ocorreu quando a economia européia entrou
em crise, pois as fábricas estavam produzindo cada vez mais mercadorias em menos tempo,
assim, com uma superprodução, os preços e os juros declinaram. Na tentativa de superar a
crise, países europeus, EUA e Japão buscaram mercados para escoar o excesso de produção e
39
capitais. Cada economia industrializada queria mercados cativos, transformando o continente
Africano e Asiático em centro fornecedor de matéria prima e consumidores de produtos
industrializados, gerando, com isso, um alto grau de exploração e dependência económica.
Isto também se pode comparar com a dependência económica e a exploração dos dias de hoje,
pois é desconfiável a pré-disposição para intercâmbio e ajuda mútua dos países desenvolvidos
em relação aos demais emergentes e subdesenvolvidos, porque são esses países desenvolvidos
que definem as regras do jogo.
Até aqui, tudo o que se disse constitui uma porta de entrada à questão principal da nossa
reflexão. Vamos agora concentrar todas atenções à declaração pós-moderna, feita em
linguagens fortemente apelativas e desafiadoras, sobre a idealização de uma Educação
Nacional, Regional e Global equilibrada como um imperativo ou requisito irreversível para a
integração na conjuntura mundial. Os fundamentos desta declaração são encontrados:
(i) Na estoteante corrida para a mundialização das relações humanas que se mostra
irreversível;
(ii) Na necessidade de criar um mundo cada vez mais humano, em que os
seus habitantes estejam cada vez mais próximos um dos outros, não na distância naturalmente
geográfica, mas sim nas distâncias esculpidas pela história das sociedades; económica,
histórico-política, cultural-civilizacional;
(iii) No desafio que este tipo de relacionamento universal entre os homens
implica, de terem que preparar o próprio homem para esta nova forma de estar no universo, o
que requer, a custo do aniquilamento das condições de vida dos mais fracos, a uniformização
ou criação de determinantes virtuais: da economia; da educação; da cultura e da ciência,
baseadas na vivência dos grupos dominantes, através do uso de novas políticas, tecnologias de
comunicação e da adopção de certas línguas que facilitem a comunicação e as trocas – de um
processo irreversível que nos vai absorvendo no dia-a-dia.
Em reverência a este ideal, cumpre-nos reconhecer que, se se colocasse num campo de
sonhos ou aspirações de uma utopia menos fantasiosa e sonâmbula e, portanto, alcansável
num tempo relativo, como as utopias de Esperança/independência/liberdade, que conduziram
os países africanos às independèncias nacionais contra a dominação colonial, e que levasse o
maior número de votos de todo o tipo de actores das sociedades humanas, em todos os
lugares, independentemente da sua classe social, raça, etnia e cultura, a sua materialização
traria, talvez, pela primeira vez na história da humanidade, uma postura estranhamente
verdadeira deste homem universal, de aceitação do Outro como é; da renúncia do egoísmo e
do capricho dominador; do desejo de ajúda mútua, de modo a elevar o nível dos mais
40
pobres/fracos/dominados mais ou menos ao mesmo nível que os actuais patriarcas da história
política, cultural e económica. Mas, na nossa fraca sensibilidade da própria história universal,
na qual a Educação foi fiel e se pretende eterno servidor do Estado e da política colonial e
imperialista, restam muito poucas forças para acreditarmos no possível milagre deste sonho, a
medir pelas condições essencialmente humanas em que assentar para a sua materialização. A
nossa tese encontra a sua fundamentação nas desigualdades absolutas da Educação; na
Economia; na História e Cultura; no valor atribuído às línguas maternas na Educação e nas
relações sócioeconómicos, e no fabrico/acesso/validação da ciência e tecnologia, que se
pretendem manifestamente perpetuar como competição eterna entre os povos, contra todos os
valores éticos e morais do próprio homem.
a) Educação como instrumento ideológico
A Educação, através das escolas como instituições ativamente envolvidas em formas de
regulação moral e social, pressupõe noções fixas de identidade cultural e nacional e, os
educadores, ao agirem como agentes na produção, circulação e uso de formas particulares de
capital cultural e simbólico, ocupam um inevitável papel político. Assim, a escola proporciona
um espaço narrativo privilegiado para alguns, enquanto produz/reforça a desigualdade e a
subordinação de outros (GIROUX, 1995 apud COSTA, 2003 ).
A Educação reproduz não só as desigualdades, mas também as injustiças sociais pois, o
currículo está profundamente associado às estruturas sociais e económicas mais amplas,
sempre reflectindo, defendendo e perpetuando os interesses dos mais fortes.
COSTA (2003), em abono à nossa tese, confirma que a teoização educacional crítica
possibilitou o desenvolvimento de análises que revelaram o envolvimento histórico da escola
e do currículo com a reprodução das desigualdades sociais, seja de forma explícita, pela
negação do acesso ou pela separação em diferentes tipos de escolas, seja de forma mais
velada, pelos critérios de avaliação de tempos e espaços, pela selecção de conteúdos
significativos e pela articulação destes com a vida quotidiana.
b) Desigualdades Económicas
Contrariamente ao ideal da globalização da economia, que teoricamente resolveria os
mais graves problemas da sobrevivência dos seres humanos que vivem abaixo da média
humana, têm-se assistido assustadoramente a um acentuado crescimento do fosso entre os
mais pobres, que se tornam cada vez mais pobres, e os ricos e mais fortes, que também vão
enriquecendo, muitas vezes, à custa do sangue e suor dos primeiros. Cresce, igualmente, o
41
processo de dependência tecnológica, financeira e cultural dos chamados países do Terceiro
Mundo e esta impõe-se como a única via de salvação para os morribundos da pobreza
absoluta, assim como se tem evidenciado a indiferença crescente dos países desenvolvidos em
relação aos problemas enfrentados pelos primeiros” (MOREIRA, 1997).
ROSÁRIO (2007) corrobora a asserção supra, convidando-nos à questão “quem é quem
na educação global”. Considera, este autor, que se se fizer fé aos benefícios que a sociedade
global poderá fornecer à humanidade, as migalhas caídas da mesa repleta de conquistas do
Homem, relativas às novas tecnologias, ao domínio da ciência, à cada vez maior abastança
económica, podem, indirectamente, contribuir para atenuar a desesperança das periferias
empobrecidas, plenas de epidemias. Mas, se olharmos para o mesmo fenómeno com certo
pessimismo, desconfiaremos imediatamente da suposta caridade e mão protectora da
comunidade internacional, pronta a agir humanitariamente em socorro dos coitados. Assim,
estará mais em vista um novo desafio que a história coloca à humanidade, para enfrentar
reiterados fenómenos de dominação.
c) Desigualdades Histórico-culturais
A linha divisória entre as nações e povos, a todos os níveis, precisa de ser discutida a
partir de uma perspectiva materialista, como forma de significação ideológica. As diferenças
não são conexões essenciais, mas o produto de posições históricas desiguais e mediadas.
O ideal de uma humanidade comum e universal não resiste a uma crítica de
comprometimento com as posições históricas das nações que, antes de entrarem no jogo das
trocas internacionais, já coloca os concorrentes em posições desiguais e de privilégio
patriarcal branco (ocidental). Em todos os discursos sobre o Multiculturalismo e da chamada
Democracia Pluralista, bem analisado, descobre-se que os grupos privilegiados ou mais fortes
ocultam as suas vantagens, em defesa camuflada do ideal de uma humanidade comum, neutra,
universal, na qual todos possam participar com alegria, sem levar em consideração as
diferenças de classe, raça, idade, género e orientação sexual.
A cultura de diversos grupos sociais fica marginalizada do processo de escolarização e,
mais do que isso, é vista como algo a ser eliminado pela escola, devendo ser substituída pela
cultura hegemónica, que está presente em todas as esferas do ensino. De facto, a escola
assumiu historicamente o papel de homogeneização e assimilação cultural (MOREIRA,
1997). É por isso mesmo que para SACRISTAN (2002) , uma Educação multicultural revela-
se ambígua e enganosa, pois as propostas nessa diracção muitas vezes têm como eixo a ideia
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de que uma cultura dominante pode assimilar uma outra minoritária que se encontra em
desigualdade de condições e com escassas oportunidades nos sistemas social e educativo.
d) Desigualdades Linguísticas
À semelhança do que acontece dentro de cada nação específica, onde há sempre uma
tribo, um grupo étnico ou até grupo linguístico que se reivindica superior ou mais importante
que os outros, o ideal de uma nação mais justa e humanizada, através da mundialização dos
actos humanos confronta-se também com os seguintes problemas:
- Que línguas usar para facilitar as relações entre as diferentes nações?
- Que critérios usar para a escolha dessas línguas?
- Por que uma língua, e não a outra?
Para responder a esta questões, o critério dominante é histórico. É na história das
civilizações dos povos que se encontram os argumentos irresistíveis para os imperativos do
fenómeno globalização. Recorre-se sempre à dicotomia línguas civilizadasVs não civilizadas;
línguas de comunicação de massas Vs línguas regionais; línguas da globalização e línguas
autóctones. Nisto, são sempre ganhadores os países melhores posicionados nas trincheiras
históricas que, à custa da dominação ou colonização dos outros, muito mais cedo,
conseguiram desenvolver cientificamente as suas línguas e, astuciosamente, as impuseram
como instrumento de civilização em todos os povos por eles subjugados para satisfazerem os
seus interesses económicos e políticos.
e) Desigualdades Científica e Tecnológica
Dentro das questões da pós-modernidade, cabe a indagação sobre os critérios de
selecção e validação do conhecimento científico e tecnológico, motivados pelo estatuto
marginal conferido ao conhecimento africano e de todos os povos da periferia. Seria
interessante encontrar a resposta sobre:
- Que conhecimento é considerado verdadeiro?
- Como certos conhecimentos são considerados legítimos e outros ilegítimos?
- Por que a escolha de um tipo de conhecimento e não outro?
- De quem é o conhecimento privilegiado no currículo?
- Que interesses orientaram a selecção desse conhecimento particular?
- Quais são as relações de poder implicadas no processo de selecção desse
conhecimento?
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- Como as estruturas sociais de classes estão reflecticas no conhecimento seleccionado
(currículo)? (APPLE, 2000)
A resposta imediata a estas questões sanciona a fragilidade científica, tecnológica e
intelectual dos países empobrecidos pela história (empresa colonial), daí a sua pretensa eterna
marginalidade.
3. Conclusão
Uma educação Nacional, Regional e Global equilibrada é um projecto utópico,
insustentável, inalcansável e/ou imaterializável, pois, tal equilíbrio impõe como requisitos:
(i) o reconhecimento da diferença entre os povos, a todos os níveis (cultural, político,
histórico, económico, linguístico, científico e tecnológico), e não uma hierarquização vertical
e dicotómica (pobres e ricos; fracos e fortes; cultos e incultos; civilizados e não civilizados,
centro e periferia);
(ii) Um ponto de partida mais ou menos equiparável entre os protagonistas das trocas
nacionais, regionais e internacionais ou intercontinentais para que não haja uma bancada de
ricos (poderosos, doadores, dominadores e impositores das regras de jogo) e outra de pobres
(incondicionalmente mendigos, receptores passivos e fiéis aos caprichos dos primeiros);
(iii) Uma pré-disposição ou vontade no seio dos mais fortes/ricos de combater o fosso
cada vez mais crescente que dista entre eles e os fracos/pobres, construído pela história, que
não encerre, de forma oculta e astuciosa, por parte dos primeiros, os seus interesses egoístas e
caprichosos e, por parte dos últimos, as rivalidades e ou emoções da história, o que, a nosso
ver, todo o trabalho intelectual ou político neste sentido, não é mais do que idealizar um
mundo sem hierarquias, sem classes sociais, sem pobres e ricos, na esteira de Platão em "A
República" e de Thomas Moore em " UTOPIA".
A Educação, sendo, naturalmente, um instrumento ideológico central do Estado, jamais
conseguirá quebrar estas muralhas construídas pela história, sob alicerces político-
civilizacionais e económicos, pois, dança ao mesmo som da música de todos os movimentos
globalizantes e imperialistas de todos os tempos e, é, portanto, mais uma vez, o mesmo “doce
anestésico” que há 500 anos nos foi posto à boca para facilitar a “terapéutica colonial”. A
nossa maior infelicidade é o facto de idos cinco séculos, os nossos líderes políticos e
intelectuais continuarem sonolentos acariciando o mesmo “doce anestésico”, num ideal de
garantias globais e inclusivas definidas pelos mais fortes que, a nosso ver, não pretendem
mais do que, astuciosamente, fazer a manutenção e consolidação das suas posições históricas,
económicas e império-culturais, pois estão centrados em torno de imperativos do mercado, do
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paternalismo racial (camuflado), cultural e civilizacional, não motivados por uma vontade de
renúncia desse privilégio patriarcal e por uma solidariedade que se desenvolva a partir dos
imperativos da Liberdade, Democracia, Igualdade e Fraternidade.
Lembremo-nos, há 500 anos atrás, os nomes eram também lindos, mas a intenção e a
prática, essas, muito astuciosas! Diziam-se homens da observação, queriam autorização, para
fazerem penetração, tinham boa educação, eram homens da melhor civilização, tinham
divina vocação e missão de mundial visitação, para fazerem comercialização e permutação
dos produtos da produção. Mas a prática foi: dominação, exploração, colonização,
discriminação e escravização.
Hoje, porque usam nomes com a mesma beleza, nós receamos chupar o mesmo “doce
anestésico” para dormirmos outro “sono” de 500 anos porque são os mesmos “leões da
história” que falam de integração, globalização, mundialização com a sua “carne predilecta”.
As leis que alimentam os discursos políticos, as utopias humanitárias, camuflando o seu
compromisso com as posições históricas e paternalistas, não bastam, nem são capazes de
garantir e/ou materializar uma vida e educação mais humanas, com a dignidade que
almejamos. A fome, a guerra, a ganância e o lucro, o politicamente correcto, tudo nos separa.
A miséria, por um lado, e a fartura, de outro, jogam-nos contra os nossos semelhantes.
Vivemos um tempo de homens partidos, egoístas e desumanos. (Meksenas, 1994).
Bibliografia
APPLE, M. Política Cultural e Educação. São Paulo, Cortez, 2000.
COSTA, M. V. (Org). O Currículo nos Limiares do Contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro,
DP&A, 2003.
MEKSENAS, P. Sociedade, Filosofia e Educação. São Paulo, Edições Loyola, 1994.
MORE, T. UTOPIA. [online]. Disponível na Internet via WWW.URL:
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MOREIRA, A. F. B. Currículo: Questões Actuais. São Paulo, Papirus, 1997.
ROSÁRIO, L. “Educação Global e Interculturalidade”. In Singularidades II: o Regresso aos
Mitos; os Desafios e Prioridades do Desenvolvimento em Moçambique; Mulher Negra;
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_____. “Educação e Desenvolvimento”. In Singularidades II: o Regresso aos Mitos; os
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que Queremos em Moçambique. Maputo, Texto Editores, 2007.
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_____. “A Globalização”. In Singularidades II: o Regresso aos Mitos; os Desafios e
Prioridades do Desenvolvimento em Moçambique; Mulher Negra; A Justiça que
Queremos em Moçambique. Maputo, Texto Editores, 2007.
SACRISTAN, G. O Currículo, uma Reflexão sobre a Prática. Porto Alegre, Artmed, 2000.