Post on 30-Nov-2018
“Ein Ding sei, wo das Wort gewährt“. O papel paradigmático da linguagem em
Heidegger
Bernhard J. Sylla (Universidade do Minho)
Em Was heißt Denken?, Heidegger refere-nos a palavra de Nietzsche em Also sprach
Zaratustra: “O deserto está a crescer. Ai daquele que abriga desertos.”1
Heidegger
caracteriza esta palavra como grito. Podemos entendê-lo como grito mudo e imperceptível,
cujo pavor surdo não apenas fascinou a pintura moderna2 como, para além disso, constitui
também a base de uma inquietude que mina e trespassa o discurso filosófico da Modernidade
e Pós-Modernidade, sendo inacessível e insuperável para uma reflexão finalizante e
expressão de um crescente esquecimento do ser. É lícito questionar que isto seja assim, o que
nos coloca bem no centro do discurso filosófico recente. Não pretendo de modo algum
debruçar-me exaustivamente sobre este discurso, irei apenas remeter para dois trechos do
discurso que me parecem relevantes para contextualizar as reflexões seguintes.
Em 1989, Stephen White3 tentou demonstrar que particularmente a filosofia tardia de
Heidegger poderia abrir o caminho para um novo paradigma que superaria as carências do
pensar moderno e pós-moderno. Neste sentido, o discurso moderno – e aqui é referido
Habermas como o seu representante - é acusado de se prender em demasia à racionalidade e
à acumulação de saber, assim como de subjugar o Outro segundo critérios racionais, antes de
este se poder exprimir. Muito mais, tratar-se-ia, em consenso com Heidegger, “em como nós
podemos chamar ou nomear coisas sem ter imediatamente que seguir o caminho de agir com
1 WhD, p. 19
2 Sobre o significado do grito no âmbito da pintura cfr. Wellbury (1994), pp. 23-37
3 White (1990), pp. 296-320
responsabilidade.”4 A obrigação de encontrar legitimações subjuga planos de discurso
não-racionais de forma a que este paradigma, na sua crença na racionalidade e na sua
invocação da força da explicabilidade, é vergado por completo pelas leis daquilo a que
Heidegger chama Ge-stell. O discurso pós-moderno, associado por White a Foucault e a
Derrida, correria o perigo de abandonar a sua verdadeira intenção, o respeito pelo Outro e
pela diferença, devido precisamente ao seu modo de filosofar. Em concordância com isto,
White escreve que a acentuação excessiva do incómodo e da desavergonha cria um momento
no pensamento pós-moderno que, enquanto ameaça enfraquecer o sentido de uma
responsabilidade face ao Outro, lentamente vai substituindo este sentido por um festejo do
sujeito desavergonhado que revela a sua virtuosidade na desconstrução daquilo que surge
sempre como unidade.”5
Precisamente estes trilhos da controversa frisada por White em 1989 são percorridos pela
discussão recente em torno da palestra de Peter Sloterdijk, proferida em Elmau e publicada
depois na edição Suhrkamp6, na qual Sloterdijk expõe três teses – cito aqui o resumo sucinto
de Ernst Tugendhat:
“Tese Nº 1: Heidegger tem toda a razão quando diz que o Humanismo está hoje no fim, mas
não tem razão quando julga que isto acaba por favorecer o pensamento recordante
[Andenken ans Sein] do ser.
Tese Nº 2: Antes pelo contrário dever-se-ia reconhecer que a função do Humanismo consiste
em „domar‟ o „selvagem‟ do homem.
Tese Nº 3: Este objectivo deveria ser realizado através de um programa eugénico.”7
4 Ibid., p. 317
5 Ibid., p. 320
6 Sloterdijk (1999a)
7 Tugendhat (1999)
Com o seu ataque simultâneo à Kritische Theorie8 e a proclamação do seu fim, Sloterdijk
chamou para o palco da discussão os actuais corifeus da filosofia alemã, Jürgen Habermas,
Ernst Tugendhat e Manfred Frank, e com eles todo o registo de estratégias de argumentação
ligado à controversa entre o moderno e o pós-moderno. Segundo Manfred Frank, Sloterdijk
ultrapassou com a sua desavergonha pós-modernista os limites, não sendo sequer uma
certeza se as suas afirmações apenas têm um carácter provocador e cínico e se ele assim,
embora de forma perversa, continua ligado à uma postura iluminista.9 Nesta linha de
argumentação, Tugendhat insiste no seguimento de um discurso crítico, racional e claro e
Manfred Frank chama a atençaõ para o perigo de divagações enxofrentes de Sloterdijk.
O papel de Heidegger nesta controversa é ambivalente. Por um lado rege a divisa: até aqui e
não mais. Frank, Tugendhat e Habermas, particularmente os dois primeiros, embora
debruçando-se nos seus escritos seriamente sobre Heidegger, não vêem na filosofia
heideggeriana, devido a carências fundamentais – interpretadas por cada um de uma maneira
diversa – um candidato sério que no mundo hodierno nos indique um caminho
paradigmático. Eles antes denunciam, partindo de pontos de vista diversos, a perigosa
tendência anti-racional do pensamento heideggeriano.
Por outro lado, para Sloterdijk, Heidegger tem apenas a função de um ponto de partida para a
provocação pós-moderna. Finalmente, para pensadores como White, Heidegger constitui
uma fonte promissora para um novo pensar considerado fundamental que vai para além do
Modernismo e do pós-Modernismo.
Sem dúvida, o pensamento heideggeriano mantém-se actual, e sem dúvida tem peso no
contexto da procura considerada urgente de um novo paradigma.
8 Sloterdijk (1999b)
9 Frank (1999)
Em inúmeros trechos da sua obra, Heidegger confronta o homem hodierno com a imagem
ameaçadora do esquecimento absoluto do ser, face à qual se torna questionável se haverá
mesmo uma salvação deste. Em várias ocasiões10
Heidegger atribui expressamente esta
função de salvação à linguagem.
No âmbito desta questão pretendo considerar alguns aspectos do pensamento heideggeriano
em torno da linguagem. Todos nós sabemos que na obra de Heidegger esta veio a ganhar um
papel cada vez mais relevante. Tendo Heidegger em Sein und Zeit apenas dado indicações
acerca do modo de ser e do sítio ontológico da linguagem11
dando a entender que a
linguagem não tem nem o modo das coisas nem o do aí-ser12
, mais tarde a linguagem, ou seja
a linguagem enquanto saga, é compreendida como “essenciação da verdade do ser”13
, como
“acontecimento apropriado do ser”14
. Acontecimento apropriado do ser e saga enquanto
linguagem essencial aproximam-se intimamente.15
Mas o que significa o falar da linguagem como acontecimento apropriado do ser? É minha
intenção reflectir aqui brevemente sobre a questão remetendo para a tese heideggeriana da
constituição das coisas através da linguagem. Já na palestra de Heidegger sobre o poema Das
Wort de George16
é perceptível que a palavra Ding para Heidegger é utilizada num sentido
muito vasto. Na interpretação do último verso Kein Ding sei, wo das Wort gebricht [Não seja
coisa onde falta a palavra] a própria coisa revela-se como a palavra carecida para a essência
da linguagem.17
Em plena concordância com Heidegger podemos formular a dupla negação
contida neste verso também de forma positiva – como o faz aliás o próprio Heidegger não só
10
Veja p.ex. EdP, p. 41; WdS, p. 82 11
SuZ, p. 166 12
Ibid. 13
WdS, p. 5 14
Ibid., p. 76 15
Wegmarken, p. 146, nota a) 16
UzS, pp. 219 - 238 17
Ibid., p. 236
no seu ensaio sobre George como também em vários outros escritos, nomeadamente em Der
Satz vom Grund18
- : Ein Ding sei, wo das Wort gewährt [uma coisa seja quando (nos) é
dada a palavra]. A linguagem, e precisamente aquela que está para além do domínio
humano, decide se há algo como a coisa. Ao homem compete ouvir o Zu-spruch, o dizer da
linguagem, pois só assim a palavra poderá ser dada [gewährt], só assim – segundo Heidegger
em Vorträge und Aufsätze19
- perdura [währt] o que é dado [das Gewährte], só assim se
essencia e está presente a coisa através da palavra.
O conceito heideggeriano de „coisa‟ distancia-se nitidamente do de „objecto‟. A coisa
somente é coisa, como Heidegger expõe em Das Ding20
, quando reúne os Quatro, os mortais,
os divinos, a terra e o mundo, para a sua unicidade, ou seja o Ge-viert. Apenas nele, na
reunião dos Quatro, há algo como a coisa, e apenas no Ge-viert acontece aquilo a que
Heidegger chama acontecimento apropriado [Ereignis] o que significa também o tornar-se
próprio de cada um dos Quatro.
Heidegger descreve o acontecimento apropriado do Ge-viert como jogo-espelho do mundo21
,
se bem que a noção de mundo tenha aqui uma outra dimensão da do mundo como um dos
elementos dos Quatro. Este jogo-espelho do mundo vigora através e na linguagem, porém,
basta faltar um único destes quatro elementos para que este vigorar esteja em perigo. No
entanto, segundo Heidegger encontramo-nos numa época da História do ser na qual já agora
faltam os deuses.22
Quer dizer que já apenas a falta de deuses demonstra que hoje já não há
coisas. Mas Heidegger delineia implicitamente um cenário horrendo de maiores dimensões.
A ameaça que paira sobre nós é o crescente esvaziamento do Ge-viert: se não for reconhecida
18
SvG, p. 6 19
VA, p. 35 20
Ibid., pp. 157 - 179 21
Ibid., pp 172 ss. 22
Holzwege, p. 248
a essência da técnica e a essência do carácter de Ge-stell na constituição do nosso mundo, a
esta falta dos deuses ameaça juntar-se também a falta da terra e a falta dos mortais. A falta da
terra e dos mortais significa mais do que a simples ideia da destruição da terra e da
aniquilação dos mortais, significa antes que a terra e os mortais já não poderão essenciar-se
como tal nem na sua essência, o que se poderia revelar quando o terrestre se encontrar apenas
instalado como reserva vivencial e quando os mortais já não morrerem devido à maquinaria
técnica da clonagem do homem.
Visto desta forma e considerando as teses de Sloterdijk acima referidas, Heidegger está no
centro da controversa dos discursos filosóficos moderno e pós-moderno. Perante isto,
coloca-se-nos a questão da viabilidade de uma salvação desta situação. Para Heidegger, a
salvação está claramente ligada à linguagem, nomeadamente através do saber que a essência
da técnica como Ge-stell, que determina o tempo hodierno no sentido da maquinaria e do
realizável, seja reconhecida como essência poiética e que a poiesis, na sua forma
fundamental e proeminente, nomeadamente como poeisis da linguagem, seja percepcionada
como tal. Para isso, porém, é necessário libertar a linguagem da sua inserção no Ge-stell,
deixar falar a linguagem como linguagem, aprender novamente a percepcioná-la, ouvi-la.
Simultaneamente, Heidegger exige em vários momentos da sua obra uma libertação da
linguagem da gramática vigente, uma linguagem „nova‟.23
Heidegger reivindica pelo menos
ter aberto o caminho para uma nova linguagem. Em seguida, debruçar-me-ei sobre dois
aspectos que mostram como Heidegger seguiu este caminho, nomeadamente (i) as
etimologias de Heidegger e (ii) a deslocação semântica de significados de palavras.
Ad (i): O método etimológico, utilizado frequentemente por Heidegger, para criar ou
reganhar significados de palavras foi já notado pelos primeiros investigadores da obra de
23
Veja p.ex. SuZ, pp. 39, 165s.; UzS, pp. 267; Bes, p. 425, nota 10
Heidegger (entre outros Ortega y Gasset e Allemann)24
. A crítica incidiu sobre a
arbitrariedade do método de Heidegger, focalizando dois aspectos: Em primeiro lugar,
Heidegger apenas em parte reconhece as conclusões apresentadas pela etimologia. Enquanto
que, por exemplo, a remissão heideggeriana para o significado etimológico da raíz
indogermânica wes- que significa wohnen [morar], verweilen [demorar], übernachten
[pernoitar] estaria em concordância com a etimologia, Heidegger apresentaria por outro lado
derivações etimológicas que proviriam de associações demasiado livres. Allemann refere
como exemplo, aliás sem razão alguma25
, a associação de Wagnis e Wage apresentadas em
Wozu Dichter?26
.
Em segundo lugar, Heidegger procederia de modo arbitrário, e cito aqui somente um de
vários críticos, Hermann Schweppenhäuser, na medida em que “na produção das palavras no
discurso heideggeriano um qualquer dos significados, seja este contemporâneo (quer dizer
hoje usual) ou seja este tirado ao acaso, através de uma fixação da palavra, é relacionado
definitoriamente com a palavra.”27
Seguidamente, Schweppenhäuser critica a utilização de
heißen [chamar-se, significar] com o sentido de befehlen [ordenar] e de denken [pensar]
com o sentido de danken [agradecer]. Este procedimento, carecendo em todo de legitimação,
levaria apenas à abdicação completa da razão.28
Também a criação de palavras que desrespeitam as regras gramaticais, como em gewesend
(que significaria algo como sindo – uma mistura de sendo e sido - em português), se tornou
alvo da crítica. Schöfer designou a construção gewesende Zukunft [futuro sindo] como um
24
Ortega y Gasset (1952), pp. 897 – 903; Allemann (1954), pp. 110ss. 25
Em defesa de Heidegger, tenho que dizer que não encontrei caso nenhum de derivação etimológica que
carecesse de uma fundamentação justa. No que se refere ao exemplo de Wagnis e Wage, cfr. Grimm (1984), vol.
27, pp. 346, 361. Por outro lado, são conhecidas as críticas que se referem às traduções heideggerianas do grego
para o alemão que se inserem na linha das críticas sobre a alegada falta da justificação do método de derivações
etimológicas de Heidegger. Neste caso, compete averiguar este juízo aos respectivos peritos da língua grega. 26
Allemann (1954), p. 119; a referência é feita ao traço em Holzwege, p. 258 27
Schweppenhäuser (1988), p. 90
escândalo29
, e ainda recentemente, em 1996, Saffer mantém este juízo ao considerar “sem
sentido” construções heideggerianas paradoxais como gewesende Zukunft [futuro sindo],
Geläut der Stille [O ressoar do silêncio] ou Wir fallen in die Höhe [Caimos para cima].30
O próprio Heidegger tem consciência do carácter escandalizante do seu método etimológico,
pois refere frequentemente a crítica acerca da “arbitrariedade“31
das suas derivações
etimológicas. A resposta desarmante a esta crítica é sempre a mesma. A arbitrariedade
aparente das derivações etimológicas é fundamentada na Sache, no próprio ‟assunto‟. Porém,
com a palavra Sache Heidegger designa o „substrato‟ do seu filosofar. Assim utiliza32
o título
Sache para as palavras fundamentais do seu filosofar, Sein e Zeit , e daí será legítimo
concluir que o acontecimento apropriado, das Ereignis, a palavra fundamental da sua
filosofia após a viragem [Kehre], seja também Sache, i.e. Sache des Denkens. Para todos
aqueles que não acompanham Heidegger no assunto [in der Sache folgen] resida nesta linha
de argumentação uma circularidade que é recusada e considerada ausente de legitimação.
Deste modo, segundo Stephan Saffer, a legitimação é ligada a uma “inspiração interior”33
apenas acessível a poucos iluminados. Esta inspiração é a habilidade de ouvir a fala
[Zu-spruch] da linguagem. Relativamente à posição destes críticos poder-se-ia argumentar
que a própria pressuposição de que existe algo como uma instância de legitimação absoluta e
para além de uma qualquer circularidade, nunca poderá ela mesma escapar, em última
instância, da circularidade. É como se fosse uma questão da decisão entre seguir ou não
Heidegger no assunto [in der Sache].
28
Ibid., p. 91 29
Schöfer (1962), p. 190 30
Saffer (1996), p. 105 31
Veja p.ex. VA, pp. 166s. 32
SdD, p. 4 33
Saffer (1996), p. 225
Continuemos a seguir a argumentação de Heidegger acerca do seu método etimológico. Para
ele, o processo histórico das mudanças da linguagem e dos significados das palavras é antes o
espelho do andamento da História do ser. Sendo que este processo é um processo em
declínio, Heidegger considera também o desenvolvimento da lingugem primordialmente
como história do encobrimento, onde os significados vigentes encobrem o verdadeiro
significado.34
Os verdadeiros significados vão se perdendo, a linguagem cala35
. Em Was heißt Denken?
Heidegger diz: “A linguagem conduz-nos à superficialidade, ela brinca connosco.”36
Porém,
não estamos à mercê da linguagem como “jogo do mundo”37
. Muito mais, há que decidir
sobre a escolha da palavra através de uma meditação histórica, ou seja através de uma
meditação sobre a História do ser e não através de um recorrer ao significado corrente. O
pensamento histórico do ser pode neste contexto, segundo Heidegger, receber impulsos úteis
da Ciência da Linguagem.38
Contudo, a própria Ciência da Linguagem nunca poderá
alcançar o estatuto de ser a instância que fornece justificações para a escolha das palavras. A
Ciência, diz Heidegger, não pensa.39
Ad (ii) A crítica considerou já muito cedo que a criação linguística de Heidegger se
concentrava em primeira linha na palavra mais que na sintaxe.40
Tal conclusão é certamente
legítima, contudo coloca-se aqui uma reticência. As transformações de sentido das palavras
não surgem isoladamente. Em primeiro lugar, elas são numerosas; já Schöfer, com base num
conjunto bastante limitado de textos, fez uma estimativa de cerca de 200 criações de palavras
34
Wegmarken, p. 38; VA, pp. 246s.; WhD, p. 58 35
VA, p. 142 36
WhD, p. 83 37
SvG, p. 169 38
WhD, p. 91 39
WhD, p. 4; VA, p. 127 40
Cf. p.ex. Allemann (1954), p. 111
por Heidegger.41
Em segundo lugar, o mais importante destas criações de palavras reside no
facto de estas constituirem um sistema semântico-referencial complexo e coerente em si
mesmo. Já segundo Heidegger são as respectivas palavras fundamentais da filosofia que
determinam essencialmente os saltos no andamento da História do ser42
, ou seja que
determinam a respectiva cunhagem do destino e da História do ser. Mas não são apenas as
palavras fundamentais, são antes todas as criações de palavras que desempenham uma
função importante. Não adornam apenas as palavras-chave Sein, Zeit e Ereignis, mas sim
realizam aquilo a que Heidegger chama a saga enquanto jogo que cria os próprios
entrelaçamentos e relações.43
Que quer Heidegger dizer com isto? Vejamos um exemplo: no
complexo de associações, constituido pelos verbos wesen, weilen, währen, gewähren
[essenciar-se, demorar, permanecer, oferecer], Heidegger insere, remetendo para o verbo
weilen, a subjunção causal weil [porque].44
Se continuarmos a ler weil com este sentido, a
nossa noção usual e linguísticamente cunhada da causalidade ou da justificação de um ente
através de outro ente acaba por ser usurpada. A nossa práctica linguística será direccionada
para canais completamente novos que se tornam viáveis quando nos envolvemos na
enigmática rede semântica da filosofia de Heidegger. Mas isto significa também
simultaneamente que não apenas substituimos significados comuns por novos e estranhos
significados, envolvemo-nos também com novas regras de interligação e com a usurpação de
factos lógicos habituais. Desta forma, as noções de tempo e de causalidade no exemplo
mencionado transformam-se inteiramente. Em vez de andar à procura de improvisações
sintácticas nos textos de Heidegger, dever-se-ia antes concluir que a nova gramática exigida
por Heidegger se encontra aqui. Por isso, parece-me, de todo, uma tentativa promissora
41
Schöfer (1962), p. 33 42
ID, pp. 58, 66; Bes, p. 100 43
Wegmarken, p. 251
investigar as deslocações na rede semântica da linguagem heideggeriana, e penso que a
Ciência da Linguagem também para isso pode contribuir.
Helmut Gipper, um representante importante da entretanto esquecida vertente
especificamente alemã da Ciência da Linguagem, a assim chamada Sprachinhaltsforschung
[Investigação de conteúdo da linguagem], designou a deslocação semântica de significados
de palavras com o conceito Stellenwert [estatuto de palavra]. Por exemplo, o Stellenwert da
palavra Dezembro (o décimo-segundo mês do ano) não corresponde ao seu Eigenwert [valor
próprio], pois este seria o décimo mês.45
Gipper exige da Ciência da Linguagem não apenas
uma análise de conteúdo de cada uma das línguas, exige também que uma Crítica da razão
histórica46
tenha a função de julgar os sistemas filosóficos sob o aspecto de como os estatutos
das palavras se deslocam nestes. O ponto de referência desta crítica é o sistema de cada uma
das línguas-mãe. Mas em concordância com Heidegger, este projecto teria que ser
modificado. Para Heidegger, o pano de fundo que serve como sistema referencial, não pode
de modo algum ser a linguagem corrente, como o é para Gipper. Heidegger cria uma nove
rede de estatutos de palavras na procura do verdadeiro ‟valor‟ próprio da linguagem. Em
certa medida, esta procura é um jogo, um jogo de linguagem, ou seja o jogo da linguagem.
A confrontação destas duas perspectivas levar-nos-á a entender quão abismal é a diferença
entre Heidegger e a ‟Ciência‟, neste caso a Ciência da Linguagem. A última, decerto, nunca
seguiria Heidegger no seu caminho, tomando como ponto de partida o sistema das
‟deslocações‟ heideggerianas para procurar um novo ‟valor próprio‟ da linguagem. Por outro
lado, uma análise pormenorizada das deslocações semânticas da linguagem heideggeriana, se
bem que feita do ponto de vista tradicional, i.é. científico, partindo da linguagem comum,
44
SvG, pp. 186s. 45
Gipper (1967), p. 419 46
Ibid., p. 413
promete, em primeiro lugar, ajudar a entender melhor a linguagem heideggeriana e o seu
intuito, e em segundo lugar, chama à atenção para o facto importante de Heidegger ter escrito
e falado em alemão. Se considerarmos apenas um único entre vários outros aspectos: o peso
que Heidegger confere ao sentido morfémico dos prefixos er-, ver-, Un- etc., então abre-se já
aqui um horizonte que vale a pena investigar.
Em que relação se encontram estas reflexões com a controversa acima discutida?
Uma grande parte das críticas feitas a Heidegger tem como alvo o solipsismo, i.e. o carácter
monológico do seu discurso filosófico47
, juntamente com a sua alegada recusa de estratégias
de legitimação que, ao desprender-se da razão, demonstrariam uma tendência perigosa para o
misticismo ou, ainda pior, para um fatalismo de matiz totalitário.48
Averiguando estas
críticas, parece-nos, passadas umas poucas décadas desde os escritos tardios de Heidegger,
que a divergência dilemática entre cinismo estético e racionalismo ético (uma vez que o
último parece cada vez menos capaz de contrariar a crescente perversão de procedimentos de
justificação de proveniência metafísica) está cada vez mais longe de uma possível superação.
Por isso seria útil, do nosso ponto de vista, tomar em consideração a filosofia heideggeriana
em torno da linguagem, uma vez que ela própria cria a visão de um caminho, cunhado
primordialmente pela linguagem, que se situa para além de uma mera arbitrariedade, por um
lado, e de uma rigorosa racionalidade, por outro49
.
Em relação ao aspecto do carácter monológico do discurso filosófico de Heidegger, basta
apenas lembrar o papel importante da Zwiesprache, do diálogo, em Heidegger. Mesmo
quando a língua-mãe é, segundo Heidegger, algo ôntico50
, ele próprio atribui não só ao
47
Entre outros Saffer (1996), pp. 219 s.; Habermas (1989), p. 17 48
Tugendhat (1967), pp. 333, 359, 361, 385, 404; Habermas (1989), pp. 26s. 49
Cfr. VA, p. 177 50
WdS, p. 37
diálogo entre as línguas asiáticas e indogermânicas um papel decisivo51
, mas também ao
diálogo entre poetas e pensadores e, naturalmente, ao diálogo com o ser. Para além disso, não
deveriamos esquecer a notável interpretação do dialecto como diálogo52
. Basta considerar
estes aspectos para concluir que a filosofia de Heidegger não poderá de modo algum ser
compreendida como monológica e tão pouco deverá ser interpretada de forma monológica.
Mais uma vez, caberia também à Ciência da Linguagem participar nesta interpretação, se
pensarmos, por exemplo, no projecto de alargar a visão da filosofia primariamente
intralingual de Heidegger sob uma perspectiva interlingual.
Pelo menos o próprio Heidegger não levantaria dúvidas quanto ao facto de que essa questão
não é de modo algum superficial, antes pelo contrário, ela é fundamental para o nosso estar-aí
no mundo e para que as coisas retornem.
Obras citadas
1. Obras de Martin Heidegger (com referência das respectivas siglas utilizadas nas notas de rodapé)
* A paginação indicada nas notas de rodapé refere-se a respectiva paginação entre parênteses na obra
de Heidegger
SuZ: * Heidegger, Martin [1927], Sein und Zeit, in Gesamtausgabe, Bd. 2, hrsg. v.
Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., 1977
Holzwege: * Heidegger, Martin, Holzwege, in Gesamtausgabe, Bd. 5, hrsg. v. Friedrich-Wilhelm
von Herrmann, Frankfurt/M., 1977
VA: * Heidegger, Martin, Vorträge und Aufsätze, in Gesamtausgabe, Bd. 7, hrsg. v.
Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., 2000
Wegmarken: * Heidegger, Martin, Wegmarken, in Gesamtausgabe, Bd. 9, hrsg. v.
Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., 1976
SvG: Heidegger, Martin, Der Satz vom Grund, in Gesamtausgabe, Bd. 10, hrsg. v. Petra Jaeger,
Frankfurt/M., 1997
UzS: * Heidegger, Martin, Unterwegs zur Sprache, in Gesamtausgabe, Bd. 12, hrsg. v.
Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., 1985
51
UzS, pp. 79-146, particularmente pp. 112s.; Wegmarken, p. 252 52
ED, pp. 156, 169
ED: Heidegger, Martin, Aus der Erfahrung des Denkens, in Gesamtausgabe, Bd. 13, hrsg. v.
Hermann Heidegger, Frankfurt/M., 1983
Bes: Heidegger, Martin, Besinnung, in Gesamtausgabe, Bd. 66, hrsg. v. Friedrich-Wilhelm von
Herrmann, Frankfurt/M., 1997
WdS: Heidegger, Martin, Vom Wesen der Sprache. Zu Herders Abhandlung “Über den Ursprung der
Sprache“, in Gesamtausgabe, Bd. 85, hrsg. v. Ingrid Schü ler, Frankfurt/M., 1999
-------------
EdP: Heidegger, Martin [1936], “Europa und die deutsche Philosophie“, in Europa und die
Philosophie, hrsg. v. Hans-Helmuth Gander, Frankfurt/M., 1993, pp. 31-41
WhD: Heidegger, Martin (1954), Was hei t Denken?, Tübingen
ID: Heidegger, Martin [1957], Identität und Differenz, 11. Aufl., Stuttgart, 1999
SdD: Heidegger, Martin (1969), Zur Sache des Denkens, Tübingen
2. Outras obras
Allemann, Beda (1954), Hölderlin und Heidegger, Zürich / Freiburg
Frank, Manfred (1999), “Geschweife und Geschwefel“, in Die Zeit, 39
Gipper, Helmut (1967), “Der Beitrag der inhaltlich orientierten Sprachwissenschaft zur Kritik der
historischen Vernunft“, in Das Problem der Sprache, hrsg. v. Hans-Georg Gadamer, Heidelberg, pp.
407-425
Grimm, Jacob e Wilhelm (1984), Deutsches Wörterbuch, bearb. v. Karl von Bahder unter
Mitwirkung v. Hermann Sickel. Nachdruck München. Bd. 27
Habermas, Jürgen (1989), “Heidegger – Werk und Weltanschauung“, in Farias, Victor (1989),
Heidegger und der Nationalsozialismus, Frankfurt/M., pp. 11-37
Ortega y Gasset, José (1952), “Martin Heidegger und die Sprache der Philosophen“, in Universitas, 7.
Jahrgang, Heft 9, pp. 897-903
Saffer, Stephan (1996), Sprachindividualität. Untersuchungen zum Weltansichtstheorem bei Wilhelm
von Humboldt und Martin Heidegger. Aachen
Schöfer, Erasmus (1962), Die Sprache Heideggers. Pfullingen
Schweppenhäuser, Hermann (1988), Studien überHeideggersche Sprachtheorie. 2. Aufl. , München
Sloterdijk, Peter (1999a), Regeln für den Menschenpark. Ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief
über den Humanismus, Frankfurt
Sloterdijk, Peter (1999b), “Die Kritische Theorie ist tot“, in Die Zeit, 39
Tugendhat, Ernst (1967), Der Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger, Berlin
Tugendhat, Ernst (1999), “Es gibt keine Gene für die Moral“, in Die Zeit, 39
Wellbury, David (1994), “Die Geburt der Kunst. Zur ästhetischen Affirmation“, in Ethik der Ästhetik,
hrsg. v. Christoph Wulf, Dietmar Kamper und Hans Ulrich Gumbrecht, Berlin, pp. 23-37
White, Stephen K. (1990), “Heidegger und die Spuren einer postmodernen, praktischen Philosophie“,
in Dietrich Papenfuss u. Otto Pöggeler (Hrsg.), Zur philosophischen Aktualität Heideggers. Bd. 2: Im
Gespräch der Zeit, Frankfurt, pp. 296-325