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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS RAPHAEL DE SOUZA CRUZ SOCIOLOGIA E LITERATURA: UTOPIA EM JOSÉ SARAMAGO NATAL-RN 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

RAPHAEL DE SOUZA CRUZ

SOCIOLOGIA E LITERATURA: UTOPIA EM JOSÉ SARAMAGO

NATAL-RN

2017

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RAPHAEL DE SOUZA CRUZ

SOCIOLOGIA E LITERATURA: UTOPIA EM JOSÉ SARAMAGO

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Ciências

Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno

Araújo Dantas.

NATAL-RN

2017

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Cruz, Raphael de Souza. Sociologia e literatura: utopia em José Saramago / Raphael deSouza Cruz. - 2017. 137f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grandedo Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programade Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2017. Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

1. Literatura portuguêsa. 2. Sociologia. 3. Utopia. 4.Saramago, José, 1922-2010. I. Dantas, Alexsandro Galeno Araújo.II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316:821.134.3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -CCHLA

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RAPHAEL DE SOUZA CRUZ

SOCIOLOGIA E LITERATURA: UTOPIA EM JOSÉ SARAMAGO

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Ciências

Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno

Araújo Dantas.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas (UFRN) Orientador

___________________________________________________

Prof. Dr. Fagner Torres de França (UFRN) Examinador Interno

___________________________________________________

Prof. Dr. Antonio André Alves (IFRN) Examinador Externo

___________________________________________________

Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida (UFRN) Suplente

Natal, 20 de outubro de 2017

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Ao meu filho.

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RESUMO

A dissertação possui como tema a literatura de José Saramago e sua interface com conceitos clássicos e contemporâneos da sociologia. Tomando como corpus principal o livro A Caverna, tem por objetivo analisar a relação entre a literatura de José Saramago e a sociedade contemporânea e, de modo geral, a relação entre sociologia e literatura como narrativas complementares sobre o universo social. A questão central que se impõe é sobre a possibilidade de articular, através da obra de Saramago, sociologia e literatura como formas de expressão dos mesmos dilemas que marcam a experiência humana de estar-no-mundo. Inicialmente, desenvolvo comentários sobre a relação entre sociologia e literatura e apresento elementos que permitem apontar a proximidade da obra de Saramago com a sociologia. Elaboro em seguida a ideia da modernidade como expressão utópica, tanto na literatura quanto na sociologia, e do Centro tematizado em A Caverna como modalidade de utopia degenerada da sociedade de consumo. Retorno ao livro para encontrar no romance elementos que permitam escapar a uma ética da resignação e formular seu potencial utópico, tendo como ponto de partida a remodelagem da noção de utopia como interdição do presente, efetuada por Ernst Bloch. Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma pesquisa bibliográfica, através da qual procurei identificar, na obra de Saramago, passagens que subsidiem a hipótese de que sua literatura, em particular a obra A Caverna, pode ser tomada como uma forma de significação e leitura da realidade que se aproxima daquela realizada pela sociologia. Do ponto de vista da problematização teórica, o texto pode ser lido com um longo diálogo entre José Saramago e Zygmunt Bauman; este último como principal interlocutor, com eventual auxílio de outros autores, todos localizados no espaço de comunicação entre interpretação social e construção literária, como Wolf Lepenies, Franz Kafka, Beatriz Sarlo, Albert Camus, Ernst Bloch, Fiódor Dostoiévski, Peter Sloterdijk e Emil Cioran.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Sociologia. Utopia. José Saramago.

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ABSTRACT The dissertation has as its theme the literature of José Saramago and its interface with classical and contemporary concepts of sociology. Taking as main corpus the book A Caverna, the objective is to analyze the relationship between the literature of José Saramago and contemporary society and, in general, the relation between sociology and literature as complementary narratives about the social universe. The central question that is posed is the possibility of articulate, through Saramago's work, sociology and literature as forms of expression of the same dilemmas that mark the human experience of being-in-the-world. Initially, I develop comments about the relationship between sociology and literature and present elements that allow us to point out the proximity of Saramago's work to sociology. Henceforth, I elaborate the idea of modernity as a utopian expression, both in literature and in sociology, and of the Centro thematized in A Caverna as a modality of degenerate utopia of the consumer society. I return to the book to find in the novel elements that allow to escape from an ethics of resignation and to formulate its utopian potential, having as a starting point the remodeling of the notion of utopia as an interdiction of the present, elaborated by Ernst Bloch. From the methodological point of view, this is a bibliographical research, through which I tried to identify, in Saramago's work, passages that subsidize the hypothesis that its literature, in particular the work A Caverna, can be taken as a form of signification and reading of reality that is close to that realized by sociology. From the point of view of theoretical problematization, the text can be read as a long dialogue between José Saramago and Zygmunt Bauman; the latter as the main interlocutor, with eventual help from other authors, all located in the space of communication between social interpretation and literary construction, such as Wolf Lepenies, Franz Kafka, Beatriz Sarlo, Albert Camus, Ernst Bloch, Fyodor Dostoevsky, Peter Sloterdijk and Emil Cioran. KEYWORDS: Literature. Sociology. Utopia. José Saramago.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8

2 SOCIOLOGIA E LITERATURA ............................................................................. 13

2.1 O CAOS É UMA ORDEM POR DECIFRAR .................................................... 20

3 A CAVERNA – UTOPIAS DEGENERADAS ......................................................... 36

3.1 SHOPPING CENTER ...................................................................................... 39

3.2 O CENTRO, A CAVERNA ............................................................................... 44

4 CONTRA O PALÁCIO DE CRISTAL ..................................................................... 61

5 A CAVERNA – UTOPIAS REGENERADAS ......................................................... 71

5.1 SÍSIFO REANIMADO ....................................................................................... 81

5.2 A SALVAÇÃO ATRAVÉS DOS AFETOS ......................................................... 89

5.3 UTOPIA, CRIAÇÃO E RESISTÊNCIA ............................................................. 98

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS – POR UMA SOCIOLOGIA MENOR ...................... 122

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 133

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1 INTRODUÇÃO

A arte não avança, move-se.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

Livro dos Conselhos

Uivemos, disse o cão.

Livro das Vozes

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1 INTRODUÇÃO

Como nos lembra Antonio Candido (2006), dizer que a literatura exprime a

sociedade constitui hoje verdadeiro truísmo1 . Tal qual toda construção social, a

literatura está imbuída dos valores e visões de mundo existentes no momento de

sua produção. É possível, no entanto, superar esta obviedade e se utilizar da

literatura para compreender de modo mais completo a configuração social

contemporânea. Trilhar esse percurso, no entanto, não implica em buscar, à maneira

de Hippolyte Taine, uma leitura determinista que condiciona a produção artística aos

elementos históricos e sociais que o circundam. Nesta leitura, a obra de arte é

epifenômeno direto da estrutura social e a questão da agência humana – a autoria –

é completamente enublada, pois o próprio autor é também epifenômeno. Tampouco

é frutífera uma análise meramente formalista ou imanentista, que considera a obra

pura genialidade a-histórica e atemporal, seja porque tal método é antitético à

sociologia, seja porque não há obra fora de um campo que lhe estruture e permita o

seu florescimento – e analisar sociologicamente uma obra de arte não é diminuí-la,

mas situá-la no contexto social que lhe pauta. A compreensão ampla de um trabalho

artístico passa, necessariamente, pela análise de suas condições sociais de

produção.

Mais revelador, talvez, seja explorar as possibilidades de interação e

complementaridade entre a obra sociológica e a obra literária – mesmo porque a

literatura, como toda forma artística, não se limita à constatação da realidade, mas

se dedica à extrapolação figurada do que é objetivamente possível, desvelando não

apenas o contexto existente, como também as utopias e distopias projetadas.

Esta dissertação possui como tema a literatura de José Saramago e sua

relação com conceitos clássicos e contemporâneos da sociologia. Tomando como

corpus principal, porém não exclusivo, o livro A Caverna (SARAMAGO, 2016),

analiso a relação entre a literatura de José Saramago e a sociedade contemporânea

e, de modo geral, a relação entre sociologia e literatura como narrativas

1 Nessa linha, Goldmann (1976, p.14) afirma que “sempre foi possível mostrar que a crônica social

refletia, mais ou menos, a sociedade da época, e para fazer essa verificação, francamente, não é

preciso ser sociólogo”.

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complementares acerca do universo social. A questão central que se impõe é sobre

a possibilidade de articular, através da obra de Saramago, sociologia e literatura

como formas de expressão dos mesmos dilemas que marcam a experiência humana

de estar-no-mundo.

O Capítulo 1 inicia esta discussão justamente tematizando a relação entre

sociologia e literatura, a partir de textos de Wolf Lepenies (1996), Zygmunt Bauman

e Ricardo Mazzeo (2016) e Irene Martinez Sahuquillo (1998). Ainda neste capítulo

desenvolvo comentários acerca da obra de Saramago e da sua proximidade com a

sociologia, bem como elaboro os questionamentos norteadores da pesquisa.

O Capítulo 2 trata do romance A Caverna e de sua relação com a sociedade

de consumo líquido-moderna e a adiaforização que lhe é correspondente (BAUMAN;

DONSKIS; 2014). Neste capítulo, desenvolvo a ideia da modernidade como

expressão utópica, tanto na literatura quanto na sociologia, e do Centro ou do

shopping center como modalidade de utopia degenerada (SARLO, 2016) da

sociedade de consumo, tendo como aporte principal as leituras de Bauman (2005;

2014) e Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015).

O Capítulo 3 pode ser considerado uma espécie de interlúdio em que se

discute a noção de utopia na modernidade, como cidade ideal não-localizada e

ucrônica. Desenvolvo, neste capítulo, a crítica à utopia como Palácio de Cristal tal

qual elaborada, de diferentes formas, por Fiódor Dostoiévski (2000), Emil Cioran

(2011) e Peter Sloterdijk (2008).

O Capítulo 4 retorna a A Caverna para encontrar no romance elementos que

permitam escapar a uma ética da resignação e formular seu potencial utópico, tendo

como ponto de partida a remodelagem da noção de utopia como interdição do

presente (um “ainda-não”) e exploração das possibilidades latentes existentes no

real, efetuada por Ernst Bloch (1996; 2000; 2005). Nesse sentido procuro realizar,

em um primeiro eixo, um exercício que contemple a função mitopoética (STEINER,

2003) das narrativas elaboradas pelas ciências humanas, me utilizando da figura de

Sísifo de Albert Camus (2004) como símbolo da resistência de Cipriano Algor, herói

de A Caverna. Um segundo eixo procura demonstrar como sobrevivem, nos

romances de Saramago, e em especial em A Caverna, mesmo tendo-se em vista o

aparente pessimismo e inconclusividade da obra, as potências afetivas que

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dialogam, contrapõem-se e, em último caso, se insurgem contra forças que oprimem

os personagens. O terceiro eixo articula a noção de utopia com o esforço de

resistência política, com o compromisso ético-solidário e o trabalho de criação e

autocriação que deve prevalecer, mesmo em face da contingência do mundo

contemporâneo, para que não se perca de vista a possibilidade de elaboração de

novas relações sociais. Ao longo do capítulo aprofundo o diálogo com as ideias de

Bauman (1999; 2005; 2007; 2009; 2011), em sua teorização da modernidade

ambivalente e na mais recente reflexão sobre a sociedade líquido-moderna. Servem

de aportes também, particularmente no momento de discussão sobre resistência e

alternativas políticas atuais, textos de Isabelle Stengers (2015), Slavoj Zizek (2012;

2014) e Naomi Klein (2008; 2017).

As considerações finais apresentam um reforço à defesa de que a obra de

José Saramago apresenta contribuições importantes para a análise sociológica, na

medida em que tematiza questões contemporâneas relevantes. Advogo ainda por

uma maior proximidade entre a literatura e a sociologia, no sentido de superar a

dicotomia hermenêutica-positivista que marca grande parte da produção sociológica

desde a criação da disciplina. Sob este aspecto, em um plano propositivo, sugiro a

possibilidade da obra literária ser considerada fundadora de discursividade, nos

termos propostos por Michel Foucault (2001) para obras teóricas e defendo a prática

de uma sociologia menor, consoante a análise realizada por Gilles Deleuze e Félix

Guattari (2015) da obra de Franz Kafka como uma literatura menor.

Do ponto de vista metodológico, os capítulos que se seguem tomam a forma

de ensaios, conforme a definição de Theodor Adorno (2003), isto é, exercícios de

interpretação necessariamente próximos da teoria, mas que se desenvolvem com

mais liberdade do que a tradição científica instrumental e hermética permite. Trata-

se, por óbvio, de uma pesquisa bibliográfica. Procurei identificar nas obras

escolhidas passagens que subsidiem a hipótese de que a literatura de José

Saramago, em particular a obra A Caverna, pode ser tomada como uma forma de

significação e leitura da realidade que se aproxima daquela realizada pela

sociologia. Com isso não se pretende resumir o mérito da obra saramaguiana aos

seus aspectos “sociológicos”, mas demonstrar como se encontra na arte, em

especial na literatura, elementos hermenêuticos que permitem a interpretação da

realidade social, indicando assim como as fronteiras entre ciência e literatura são

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menos rígidas e nítidas do se supõe. A afirmação de Fredrik Barth (1998), de que

não são as diferenças que criam fronteiras, são as fronteiras erguidas que forjam e

muitas vezes cristalizam as distinções, é particularmente aplicável às fronteiras entre

campos de conhecimento. Procurei deste modo não desenvolver uma Sociologia da

Literatura, mas executar uma articulação entre sociologia e literatura, mobilizando

para isso conceitos clássicos e contemporâneos das Ciências Sociais em sua

conexão com a obra literária. O que se segue pode ser lido, portanto, como um

longo diálogo entre José Saramago e Zygmunt Bauman; este último como principal

interlocutor, com eventual auxílio de outros autores, todos localizados no espaço de

comunicação entre interpretação social e construção literária, como Wolf Lepenies,

Franz Kafka, Beatriz Sarlo, Albert Camus, Ernst Bloch, Fiódor Dostoiévski, Peter

Sloterdijk e Emil Cioran.

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2 SOCIOLOGIA E LITERATURA

O real é o mar. Nele, há escritores que nadam e há escritores que mergulham. Mas a água é a mesma.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote

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2 SOCIOLOGIA E LITERATURA

O tema da Sociologia e da Literatura como campos complementares, e muitas

vezes concorrentes, de explicação e interpretação de um mesmo corpus – o mundo

social – vem sendo retomado recentemente, ora lançando luz sobre os literatos com

pretensões científicas, ora elaborando a hermenêutica dos cientistas sociais que se

aproximam da literatura. O papel inerentemente crítico da sociologia – ao

demonstrar como as relações aparentemente naturais e como as ações

espontâneas na verdade se inserem num quadro mais amplo de agenciamentos e

influências geradas socialmente – se alimenta do caráter inerentemente perspicaz

da literatura. Agora, talvez mais do que antes, quando esperanças de transformação

social estão subscritas à máxima não há alternativas, elas são chamadas a propor,

através do discurso, das palavras – suas únicas armas –, modelos outros que não a

síndrome consumista líquido-moderna:

E chamados, como o são sociólogos ou romancistas, a ajudar nossos semelhantes a ver através de sua condição até suas fontes mais interiores e misteriosas que derivam seu incrível poder de sua invisibilidade – a afastar suas armadilhas recônditas e emboscadas enquanto procuram maneiras de encontrar ou inserir significado, propósito e valor na maneira como vivem suas vidas – não temos outras ferramentas à nossa disposição, a não ser palavras.

[...]

São as palavras que permitem, alertam e obrigam a separar o que é do que parece ser; são as palavras que criaram a lacuna entre a verdade e suas aparências, justapondo-se contra as sugestões / implicações / insinuações dos sentidos enquanto tentam articular suas mensagens e reivindicar a presidência no tribunal da Verdade (BAUMAN; MAZZEO; 2016, p. 139-140, tradução nossa).

Wolf Lepenies (1996), não por acaso, lembra a afirmação de Engels, que teria

aprendido mais sobre a sociedade burguesa da França do século XIX com Balzac

do que com os economistas políticos ou historiadores. Quando o autor de A

Comédia Humana afirma que pretendia nomear o trabalho como Études Sociales,

vê-se um tensionamento entre a literatura e a sociologia que parece sugerir que a

capacidade de penetração do escritor na densidade das motivações humanas

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esboça insights sobre as dinâmicas sociais que a sociologia só apreende

superficialmente.2 Para Lepenies (idem, p. 11), desde a metade do século XIX a

“literatura e a sociologia disputam a primazia de fornecer a orientação-chave da

civilização moderna, o direito de ser a doutrina de vida apropriada à sociedade

industrial”, debate no interior do qual a sociologia se constituiria como uma espécie

de “terceira cultura”, entre a ciência e a literatura; posição, porém, sempre

problemática, uma vez que

O problema da sociologia está no fato de que ela pode sem dúvida imitar as ciências naturais, mas não pode efetivamente tornar-se uma ciência natural da sociedade. Se renunciar, porém, à sua orientação científica, ela retorna a uma perigosa proximidade com a literatura (LEPENIES, 1996, p. 17).

Na descrição do embate representado pela “fria razão e a cultura dos

sentimentos” – os sociólogos e os literatos, respectivamente –, Lepenies (idem, p.

24) alerta para os efeitos da radicalização da ratio arrogante na sociologia quando

sob ataque – muitas vezes de caráter anti-iluminista – da literatura e dos literatos.

Sempre que a sociologia pretende-se substituta da metafísica e da religião e procura

se impor como meta-interpretação do mundo, suas possibilidades hermenêuticas se

enfraquecem, em vez de serem fortalecidas, abrindo espaço inclusive para o “culto

ao irracional” típico das experiências totalitárias. Provavelmente o autor que mais

encarnou este tipo de atitude sociológica foi Auguste Comte, que chegou a fixar

regras quase matemáticas, e deliberadamente antiestilísticas, para a escrita

sociológica3, e em quem mesmo as cartas de amor eram tratados conceituais. Esse

esforço de livrar a sociologia do estilo, do tropo e da retórica significavam, claro, um

esforço de legitimação da sociologia frente a outros campos do conhecimento, tanto

que seriam levados adiante pelo maior seguidor de Comte, Émile Durkheim. O que

2 A este respeito, e precisamente sob a mesma ótica de pensamento de Balzac, Lepenies (1996, p.

26) afirma que “Flaubert considerava seu trabalho, sem dúvida, como a melhor ciência da sociedade – com relação aos sociólogos, sentia-se também moralmente superior, pois acreditava poder, como escritor, escapar às pressões sociais: [...] ‘Quem sois então, ó sociedade, para me forçar a o que quer que seja?’”. Igualmente, Zola denominava seu trabalho de “sociologia prática”, querendo dizer que “ele praticava a verdadeira sociologia” (idem, p.27).

3 As sentenças de seu manuscrito deveriam ter no máximo duas linhas, “nenhum parágrafo poderia

conter mais de sete sentenças” (LEPENIES, 1996, p. 28), assim por diante.

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se perde de vista neste percurso, porém, é aquilo que Bauman e Mazzeo (2016, p.

viii, tradução nossa) chamam de natureza complementar, suplementar e

mutuamente enriquecedora da sociologia e da literatura, na medida em ambas

compartilham “o campo que exploram, os seus temas e tópicos - bem como (ao

menos em um nível substantivo) a sua vocação e impacto social”.

Nessa linha, Irene Martínez Sahuquillo (1998, p. 226, tradução nossa) afirma

que o romance, em especial o de variante realista, procura oferecer, tal qual a

sociologia, “um quadro fiel do mundo social no qual estão localizados os diferentes

cenários onde transcorrerão as vidas dos personagens”. A proximidade entre

sociologia e literatura como interpretações da sociedade moderna-industrial é

evidente quando analisamos os temas que são comuns aos dois campos. O

sociólogo e o literato – sobretudo aquele de cunho realista – estão unidos por

propósitos coincidentes, na medida em que compartilham a mesma curiosidade pelo

social, esquematizada e avaliada metodologicamente por uns, retratada

artisticamente por outros. Fundamentalmente, e falando especificamente da

sociologia nascente, enquanto ciência dedicada a compreender os dilemas

modernos, os dois campos partilham da necessidade de interpretar as

transformações que desencadearam na transição de formas de vida, valores e

modos de ser tradicionais para a sociedade moderna, monetarizada, industrializada,

racionalizada. O que a autora chama de patologias ocidentais oriundas do processo

modernizador – a anomia, a alienação, o estranhamento, o desenraizamento, a

sensação de “falta de lugar” – estão presentes tanto nas análises sociológicas dos

chamados clássicos da disciplina quanto em autores como Franz Kafka, Robert

Musil, Hermann Hesse e J. D. Salinger (idem, p. 225). Afirma a autora, fazendo

referência à obra de Lepenies, que:

O criador literário torna-se assim um intérprete, como o sociólogo, da realidade social e dos eventos históricos que a atravessam; porém, em oposição a este, não lhe interessa tanto descobrir as tendências gerais mas sim aprofundar os casos particulares nos quais uma tendência geral se manifesta; sua motivação caminha, assim, no sentido contrário à regra durkheimiana que convida a deixar de lado as manifestações individuais de um fenômeno social. No entanto, embora o escritor esteja mais interessado nas implicações individuais de um fenômeno social ou psicológico do que por suas abstrações, também tenta, como o cientista social, descobrir as chaves que podem ajudar a interpretá-lo. Isto porque, deve-se insistir sobre este ponto, o seu objetivo é não só criar uma obra bela: é também contribuir com ela para iluminar as áreas da vida social e da alma humana que

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precisam ser esclarecidas para, desta maneira, oferecer uma valiosa contribuição para a tarefa, na qual também foram envolvidos os sociólogos, de aumentar a autoconsciência de uma sociedade cada vez mais complexa e mais ávida por ideias e conhecimentos que possam servir para compreender a si mesma. Nesse esforço de criar uma autotransparência para um mundo problemático os literatos têm participado na mesma empreitada em que os sociólogos têm-se esforçado.

Em suma, literatura e sociologia têm convergido desde meados do século XIX, em alguns dos seus motivos e aspirações: ambas têm procurado ajudar, com suas interpretações, para guiar os homens na civilização moderna [...] (SAHUQUILLO, p. 226, tradução nossa).

Como intérprete da realidade social, o autor literário não apenas esboça um

quadro da sociedade, mas contribuiu com valiosas percepções acerca do social que

a sociologia habitualmente relega a segundo plano. Enquanto a sociologia traduz as

angústias literárias em termos acadêmicos ou empíricos, a literatura revela ao

sociólogo discursos sociais geralmente recônditos. Em síntese, embora as

abordagens variem, não podem escapar nem ao sociólogo nem ao literato as

chamadas questões sociais, inclusas nos dilemas modernos da condição humana.

Bauman e Mazzeo (2016) desenvolvem um debate muito similar, embora

seus apontamentos não se limitem à sociologia nascente ou ao romance de tipo

realista. Em In praise of literature (“Em louvor à literatura”), os autores exploram a

relação entre literatura e sociologia guiados pela pressuposição de que as

disciplinas estão mais conectadas entre si e se alimentam mutuamente mais do que

outros tipos de produtos culturais. Tratam-se, antes de mais nada, de “dois tipos de

investigação sobre a condição humana” (idem, p. viii, tradução nossa), duas formas

de análise da experiência humana de estar-no-mundo. Tendo como objeto um

mundo social sempre – e Bauman diria, cada vez mais – em estado de estranheza e

mudança perante o sujeito individual, ambas procuram “conjurar uma totalidade

coesa de uma vida fragmentada” (idem, p. x, tradução nossa). Em síntese, e

fazendo referência a José Saramago, os autores afirmam que

Romancistas e escritores de textos sociológicos em última medida exploram o mesmo território: a vasta experiência humana de estar-no-mundo que (para citar José Saramago) ‘(dá) testemunho da passagem por este mundo de homens e mulheres que, pelas boas ou más razões do que tinham vivido, deixaram um sinal, uma presença, uma influência que, tendo perdurado até hoje, continuarão a deixar marcadas as gerações vindouras’ (BAUMAN; MAZZEO; 2016, p. xi-xii, tradução nossa).

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A sociologia e a literatura buscam de certa forma plasmar a experiência

humana de uma determinada época em um conjunto reconhecível de signos, que

orientem, deem sentido, tragam à vida ou simplesmente problematizem questões e

temas cujo alcance permaneceria oculto sob um olhar superficial. No labor de rasgar

os véus das pré-interpretações elas revelam, através de permanente diálogo, a

interdependência entre contexto e agência, entre biografia e história, entre

determinação e liberdade como marcas fundamentais da condição humana. Como

interpretações realizadas sobre interpretações e vivências precedentes, as duas

modalidades de investigação oferecem uma espécie de “hermenêutica secundária”

(idem) que auxilia na formulação de quadros minimamente compreensíveis da

realidade aparentemente caótica, clareando assim percursos ativos para se orientar

no trânsito relacional:

A experiência humana chega às bancadas de escritores e sociólogos de uma forma já pré-interpretada. Tanto a literatura quanto a sociologia são exercícios na ‘hermenêutica secundária’ – reinterpretação do já interpretado. Ambas, portanto, precisam se engajar em rastrear as costuras ocultas ao longo do qual as cortinas de interpretação podem ser rasgadas, e nenhuma pode evitar revelar mais cortinas escondidas atrás daquelas que atualmente desmontam (BAUMAN; MAZZEO; 2016, p. 9, tradução nossa).

Sociologia e literatura, sugerem os autores, são duas irmãs: se elas

compartilham as mesmas tarefas, não podem deixar de compartilhar as mesmas

preocupações, e são forçadas a enfrentar os mesmos problemas. Nessa

perspectiva, deve-se reconhecer o caráter não-conclusivo de toda interpretação,

dada a complexidade dos problemas compartilhados, que raramente permitem

resoluções incontestáveis. Na linha do que Sahuquillo (1998) assevera acerca da

arte e sua capacidade de apreensão das patologias sociais, Bauman e Mazzeo

(2016, p. xii, tradução nossa) defendem que, em várias outras ocasiões da história,

[...] romancistas (como outros artistas visionários) foram os primeiros a observar e examinar as incipientes mudanças de trilha ou novas tendências nos desafios que seus contemporâneos enfrentaram e lutaram para vencer; romancistas conseguiram detectar e capturar novos embarques em um estágio em que, para a maioria dos sociólogos, eles permaneceriam

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despercebidos, ou descartados e desacompanhados por causa de sua marginalidade e atribuição aparentemente irrevogável ao status de minoria.

Em definitivo, nem o desinteresse nem a neutralidade de valores podem ser

reivindicadas seja pela literatura, seja pela sociologia (idem, p. 11): nem imaginação

nem análise podem ser descartadas por alguma delas (idem, p.138). A irmandade,

porém, não é isenta de rivalidades; tampouco se pode afirmar, a despeito da partilha

de preocupações e interesses, que literatura e sociologia operam segundo o mesmo

método.

O jogo de forças entre a sociologia e a literatura se faz presente até hoje,

quando se tenta definir as fronteiras movediças entre a sociologia, a literatura e a

sociologia da literatura. Sapiro (2016) indica que falar sobre a sociologia da literatura

implica em pensar tanto a literatura como fenômeno social quanto em analisar a

inscrição de textos literários como representações específicas de certas questões

sociais dadas. A obra nunca será, a despeito dos hermeneutas, um fiat monádico,

como também não pode ser resumida às suas condições sociais de produção.

Reverberando até certo ponto Lepenies, Sapiro (2016, p. 15, tradução nossa) se

refere ao embate sobre a constituição de uma esfera de estudos – a sociologia da

literatura –, como marcada pela alcunha de “demasiado ‘sociológica’ para os

literatos e demasiado ‘literária’ para os sociólogos”. Novamente, a sociologia,

enquanto “terceira cultura”, se vê entre a crença objetivista das ciências naturais e o

subjetivismo das obras literárias.

Gostaria de argumentar a seguir que a articulação entre literatura e sociologia

discutida até o momento se faz presente em alguns trabalhos literários de José

Saramago. Suas narrativas – assim pretendo demonstrar – deslocam os

personagens para situações fantásticas, mas remetem à realidade, tematizando

questões contemporâneas sociologicamente relevantes – o estranhamento do

sujeito frente a estruturas totalizantes, a normalização do estado de exceção, o

surgimento do precariado face à globalização, a sociedade de consumo – que

partilham, por assim dizer, da mesma morada: o mundo vivido e o estar-no-mundo

humano.

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2.1 O CAOS É UMA ORDEM POR DECIFRAR

Tendo discutido de forma esquemática a relação entre literatura e sociologia,

creio ser possível agora tecer comentários acerca da obra de José Saramago,

prêmio Nobel de literatura em 1998, em sua relação com interpretações sociológicas

clássicas e contemporâneas.

Saramago prefacia o seu O homem duplicado (2002) ao estilo Borges, com

uma citação de um livro fictício: “O caos é uma ordem por decifrar - O Livro dos

Contrários”. De modo semelhante, Todos os nomes (1997) é introduzido com a frase

“Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens”, de um também

fictício Livro das Evidências. Mais do que um jogo de palavras característico da

literatura saramaguiana, creio ser possível apontar aqui uma tendência ao

desvelamento do social aparentemente caótico, uma busca por dinâmicas

estruturais subjacentes à realidade aparente. Além do conhecido engajamento

político do escritor e da sua aproximação com a reflexão sistemática, que chega ao

explícito de nomear alguns de seus romances de ensaios, o próprio autor já foi

enfático a este respeito:

A este escrevinhador sempre o preocupou o que se esconde por trás das meras aparências, e agora não estou a falar de átomos ou de subpartículas, que, como tal, são sempre aparência de algo que se esconde. Falo, sim, de questões correntes, habituais, quotidianas, como, por exemplo, o sistema político que denominamos democracia, aquele mesmo que Churchill dizia ser o menos mau dos sistemas conhecidos (SARAMAGO, 2009, p. 36).

Pretendo defender aqui que, neste sentido, o autor se aproxima da sociologia,

resolvendo, interpretando e aprofundando questões sociais em sua obra através da

forma romanesca do realismo fantástico4. O que Bauman e Mazzeo (2016) chamam

de disposição para conjurar uma totalidade coesa diante de uma realidade

fragmentada e ultrapassar o véu das pré-noções, aparências e falsas naturalidades

da vida social está presente de forma incisiva em Saramago, a quem o próprio

4 Sobre o Realismo Fantástico, também chamado Realismo Mágico e Realismo Maravilhoso, ver

CHIAMPI, 1980; e IANNI, 1993.

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Bauman se referiu como “um dos maiores filósofos e sociólogos dentre os

romancistas” (BAUMAN; MAZZEO; 2016, p. 140, tradução nossa).

Tanto Todos os nomes quanto O homem duplicado marcam uma nova fase do

autor, em que ele se distancia do Romance Histórico português para criar narrativas

atemporais, territorialmente inespecíficas e permeadas de elementos mágicos. O

tom é quase alegórico e muitas vezes um acontecimento fantástico – uma ruptura da

ordem normal – irrompe para desencadear uma sequência de eventos inesperados.

Toda a obra de Saramago, após o abandono da ficção histórica com elementos

mágicos (mais especificamente a partir de Ensaio sobre a cegueira, de 1995), pode

ser lida através desta chave, da busca por rupturas que quebram uma ordem dada e

deslocam e desestabilizam as percepções naturais acerca do mundo. Seja o

advento de uma doença que deixa todos cegos (Ensaio sobre a cegueira), a

descoberta de que existe um duplo de si mesmo vivendo normalmente (O homem

duplicado), a súbita adesão em massa ao voto em branco (Ensaio sobre a lucidez)

ou o dia depois do qual ninguém morreu (As intermitências da morte), em várias

obras de Saramago o desenrolar da história se dá a partir deste elemento central de

ruptura. Saramago constrói assim enredos com eventos irreais que são transpostos

para um mundo que não é totalmente ficcional.

Em O Homem duplicado (2002), um professor de história, Tertuliano Máximo

Afonso, descobre, depois de assistir a um filme em seu aparelho de vídeo, um exato

duplo seu vivendo como ator. A trama se desenrola a partir da obsessão do

personagem principal com seu sósia e culmina com insólitas trocas de identidades.

Todos os nomes (1997) trata do escriturário José, único personagem nomeado do

livro, trabalhador da Conservatória Geral do Registro Civil de uma cidade não

especificada. O livro possui fortes tons kafkianos, ressaltados na caracterização da

burocracia totalizante e opressiva da Conservatória, mundo e centro do mundo. A

tragédia do herói, cuja dependência do trabalho é visceral ao ponto de ele morar em

um anexo da Conservatória5, é achar que pode retraçar a vida de indivíduos através

5 Obras paradigmáticas do século XIX encontram ressonância nos textos de Saramago. Bartleby, o

escrevente, escrito em 1853 por Herman Melville, sobre um copista que depois de contratado para um escritório de advocacia “preferiria não” sair das dependências da repartição, chegando mesmo a morar nela, certamente é uma referência importante para Todos os nomes, assim como a novela O

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de seus registros oficiais; mesmo o amor que desperta o personagem da sua

letargia inicial é uma paixão alimentada por registros (certidões de nascimento, de

conclusão de estudos, etc.), nunca ancorados na presença física do seu objeto de

desejo. Em ambos os livros, observamos aquilo que Sahuquillo (1998, p. 228,

tradução nossa) aponta como uma problemática presente em muitas das grandes

obras de literatura do século XX: “a solidão do homem comum em um mundo que se

tornou estranho”. Tais obras intentariam plasmar a experiência do homem moderno

frente ao estranhamento que se produz em relação ao seu entorno social, refletindo

em narrativas literárias conceitos importantes da sociologia como estranhamento,

alienação, anomia e desenraizamento, ou a sensação de falta de lugar no mundo.

Nesse caso, o impacto dos deslocamentos das relações sociais operados pela

modernidade produz novos estranhamentos e exige novas formas de adaptação

frente a estruturas em constante mudança. A sociedade, percebida como

“incompreensível, distante, impessoal, desumana” (SAHUQUILLO, 1998, p. 228,

tradução nossa), produz indivíduos atormentados, cindidos entre a indiferença e o

desassossego – e essa crise espiritual do homem moderno se reflete no próprio

romance do século XX, “um romance de crise”. Sobre a repartição pública do

Registro Civil – espécie de metáfora da burocracia totalizante e incompreensível da

modernidade, para a qual “não existem assuntos íntimos” – o herói José, de Todos

os nomes, pondera que “esse foi o prodígio obrado pela tua Conservatória Geral,

transformar em meros papéis a vida e a morte” (SARAMAGO, 2015, p. 177).

Bauman (BAUMAN; DONSKIS; 2014) elabora o conceito de adiaforização

para falar sobre um fenômeno de variação da sensibilidade que atravessa tanto a

forma “sólida” da modernidade quanto sua variante “líquida”. Para o autor,

adiaforização (do grego adiaphoron, significando algo desimportante) designa o

processo mediante o qual determinadas ações ou omissões são postas fora do

espectro do julgamento ético, tornando categorias inteiras de pessoas irrelevantes e

minando a sensibilidade em relação aos seus problemas. Mediante a ação das

dinâmicas adiaforizantes, a exclusão social deixa de ser uma “questão”, como

historicamente foi, suscitando diferentes soluções por instituições variadas como a

duplo, de Fiódor Dostoiévski, publicada pela primeira vez em 1846, remete inevitavelmente ao Homem duplicado.

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Igreja, o Estado e as ONGs, para ser abraçada como estado normal das coisas. Os

excluídos então não são mais interpretados a partir da ótica do desemprego ou da

desigualdade (termos que indicam opostos manejáveis ou vislumbres de

alternativas), e passam a contar como refugo e redundância: termo que sugere uma

nova forma de normalidade sistêmica – "a redundância nomeia uma condição sem

oferecer um antônimo prontamente disponível" (BAUMAN, 2005, p. 20). O exemplo

da disseminação deste tipo de lógica é a denominação de reality shows a programas

do tipo Big Brother e seus congêneres. Todos operam segundo regras de jogo que

implicam na eliminação sistemática e regular de algum de seus membros, em algum

momento do show. Os motivos que levam à eliminação passam eventualmente pelo

mérito individual, mas também pelo acaso, sorte e variação da opinião pública, a

qual vota informada por uma realidade que é transmitida pela televisão após uma

cuidadosa edição. Se tais programas são tidos por emulações da realidade, isso

significa que o mundo fora da televisão é igualmente implacável, e que não se trata

mais de abolir as exclusões (nesse contexto, revoluções não são mais utópicas, são

simplesmente impossíveis), pois elas já se tornaram parte da “natureza das coisas”,

“um aspecto inseparável do nosso estar-no-mundo”; trata-se antes de “afastar de si

mesmo a ameaça da exclusão, lançando-a na direção dos outros” (BAUMAN, 2009,

p. 119). A consequência secundária, mas fundamental do ponto vista ético, deste

tipo de lógica, é tornar a solidariedade, a preocupação com o outro, uma escolha

irracional e potencialmente suicida. No contexto atual, em que que o “mercado de

consumo tomou da burocracia sólido-moderna a tarefa da adiaforização” (BAUMAN,

2008a, p. 68), o que a insensibilidade moral efetivamente produz em muitos casos é

uma cultura da humilhação, claramente observada em programas do tipo

“competição de talentos” (culinários, musicais, etc.), nos quais a invariável presença

de (pelo menos) um juiz draconiano, midiaticamente sádico, garante o elogio da

depreciação e a apologia da desinibição. A exclusão de pessoas do nosso espectro

de julgamento ético parece garantir aos excluídos ao menos uma posição de judas

devidamente castigado para fins de entretenimento, no caso da exposição na mídia,

ou de incompetentes crônicos que não merecem atenção, no caso de quem se

encontra no espectro da “realidade objetiva” como consumidor falho. Adiaforização,

assim, significa

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Os estratagemas voltados para colocar, com intenção ou não, certos atos e/ou a omissão deles em relação a certas categorias de seres humanos fora do eixo moral-imoral – ou seja, fora do ‘universo das obrigações morais’ e do reino dos fenômenos sujeitos à avaliação moral; estratagemas para declarar tais ações ou inações, de maneira implícita ou explícita, ‘moralmente neutras’ e impedir que as escolhas entre elas sejam submetidas a um julgamento ético – o que significa assumir o opróbrio moral [...] (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 52).

Nesse caso, a transformação da vida e da morte em meros papéis, como

observa o personagem José, em Todos os nomes, se inscreve no principal espaço,

durante a modernidade sólida, em que os atos moralmente carregados são

remodelados como adiafóricos: a burocracia. Ao dispersar a responsabilidade,

distanciar os autores das vítimas e de certa forma invisibilizar as consequências dos

processos postos em curso pela modernidade, a burocracia desarma e torna

irrelevante a consciência moral “como fator de constrangimento e limitação na

escolha das ações” (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 53). Essa questão,

eminentemente ética, é reforçada na modernidade líquida pelo mercado, em que os

ditames consumistas suplantam as obrigações morais e onde seres humanos são

descartados – e portanto tornados irrelevantes – ao sabor dos interesses

permanentemente instáveis das forças econômicas.

O mestre do tipo de literatura que retrata um universo opressivo, labiríntico e

ainda assim tão facilmente identificável foi, evidentemente, Franz Kafka. Bauman

situa a obra de Kafka a partir da figura do estranho – como elemento

desestabilizador, não assimilado e não assimilável no interior de um contexto

cultural; como o próprio Kafka, um judeu (em si uma incongruência da modernidade,

judeus faziam parte de uma nação sem pátria) tcheco que escrevia em alemão. De

acordo como Bauman:

Ele próprio um estranho universal e talvez o mais perspicaz dos estranhos universais, Kafka desafiava e delineava os traços universais da estranheza, esse único e verdadeiro herói, embora com muitas faces, de toda a sua obra literária. Ser um estranho é ser recusado e abdicar do direito à autoconstituição, à autodefinição, à identidade própria. É derivar o próprio sentido da relação com o nativo e do olhar discriminador do nativo. É esquecer a capacidade de criar um significado a partir do ‘material’ herdado. É abdicar da própria autonomia e, com ela, à autoridade para dar sentido à própria vida. Ser um estranho significa ser capaz de viver uma ambivalência perpétua, uma vida substituta, de dissimulação (BAUMAN, 1999, p. 101).

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A estranheza permeia a obra de Kafka. Sua potência parece derivar em

grande medida de um propósito deliberado de criar incômodo – Modesto Carone

(2012) lembra que houve desmaios durante a primeira leitura pública do visceral

conto “Na colônia penal” – e de uma permanente inconclusividade narrativa. Camus

(2004, p. 89) sugeriu que “toda a arte de Kafka consiste em obrigar o leitor a reler”,

dado que o desenlace das suas obras, ou a falta deste desenlace, “sugerem

explicações, mas que não são reveladas com clareza e exigem, para nos parecerem

fundadas, que a história seja relida sob um novo ângulo”. A atualidade de Kafka está

no fato de que “ser um estranho” é algo que é experimentado, “em graus variados,

por todos os membros da sociedade contemporânea, com sua extrema divisão do

trabalho e separação de esferas funcionais” (BAUMAN, 1999, p. 106). Sahuquillo

(1998) ressalta como uma realidade fantasmagórica, formada por estruturas

burocráticas e relações coisificadas, produz por vezes um contexto no qual nem o

indivíduo consegue encontrar a si mesmo – daí a supressão dos nomes dos

personagens em algumas obras do autor tcheco, como que para indicar a

submissão do sujeito frente a engrenagens que lhe são incompreensíveis. Bauman

(1999, p. 195) também percebe esse artificio, ao indicar que os principais

personagens de Kafka não têm nome; quando os têm, são nomes confusos,

incongruentes, cuja função parece consistir sobretudo em “desmascarar a

arrogância da nomeação, em demonstrar a impossibilidade da designação”. A

ausência de nomes em Kafka é assim uma estratégia que “precede e introduz o

mundo moderno”, no qual os nomes “não são recebidos mas feitos”6, construídos, e

que, “enquanto são feitos, não oferecem uma data fixa nem um lugar estabelecido e

anulam a própria esperança dessa oferta” (ibidem): trata-se de uma percepção sobre

6 “Na vida tudo são fardas, o corpo só é civil verdadeiramente quando está despido”, afirma Cipriano

Algor em A Caverna (SARAMAGO, 2016, p. 113). Curiosamente, e como nota puramente anedótica, o nome Saramago foi recebido, e não feito. O empregado do registro civil que trabalhava quando do nascimento do autor estava bêbado – “chamava-se ele Silvino” (SARAMAGO, 1997, p. 20) – e decidiu, por conta própria e à revelia da vontade dos pais, acrescentar Saramago, alcunha da família, ao nome que deveria ser simplesmente José de Sousa. O pai, que detestava a alcunha, descobriu a fraude apenas quando o jovem Saramago matriculou-se na instrução primária. Posteriormente, Saramago, como um autêntico moderno, decidiu-se por deixar que os nomes dos seus descendentes fossem feitos, e não recebidos: “Tendo sobrevivido a tantos acasos, baldões e desdéns, havia de parecer a qualquer um que a velha alcunha, convertida em apelido duas vezes registado e homologado, iria gozar de uma vida longa nas vidas das gerações. Não será assim. Violante se chama minha filha, Ana a minha neta, e ambas se assinam Matos, o apelido do marido e pai. Adeus, pois, Saramago” (ibidem).

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um tempo em que inexistem fundamentos últimos da condição humana. Deleuze e

Guattari (2015, p. 38) afirmam que, na obra de Kafka, não há sujeitos, apenas

“agenciamentos coletivos de enunciação”:

A solidão de Kafka o abre a tudo o que atravessa a história hoje. A letra K não designa mais um narrador nem um personagem, mas um agenciamento tanto mais maquínico, um agenciamento tanto mais coletivo quanto mais um indivíduo se encontre a ela ligado em sua solidão (é apenas com relação a um sujeito que o individual seria separável do coletivo e conduziria sua própria tarefa).

Saramago se utiliza de expediente similar em várias das suas obras, e talvez

o radicalize: em seus livros, a individualidade dos personagens é expressa através,

principalmente, de suas posições sociais (o violoncelista, a mulher do médico, o

oficial); frequentemente, as cidades e territórios onde se desenvolvem as ações não

são nomeados. O primeiro livro em que Saramago adotou o anonimato como forma

de nomeação foi Ensaio sobre a cegueira, de 1995, justamente a partir do qual se dá

a transição, já mencionada aqui, do romance histórico português com elementos

mágicos para a narrativa fantástico-alegórica que transcorre em cidades

desterritorializadas. O processo de criação é relatado no diário Cadernos de

Lanzarote:

Decidi que não haverá nomes próprios no Ensaio, ninguém se chamará António ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou Joaquina. Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração sem a habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o que não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens, inventar-lhes vidas e preparar-lhes destinos. Prefiro, desta vez, que o livro seja povoado por sombras de sombras, que o leitor não saiba nunca de quem se trata, que quando alguém lhe apareça na narrativa se pergunte se é a primeira vez que tal sucede, se o cego da página cem será ou não o mesmo da página cinquenta, enfim, que entre, de facto, no mundo dos outros, esses a quem não conhecemos, nós todos (SARAMAGO, 1997, p. 101).

Nesse sentido, se os personagens de Sartre e Camus representavam o blasé

axiomático (SAHUQUILLO, 1998), o indivíduo encouraçado a tal ponto em relação

aos demais que se torna absolutamente impessoal e indiferente, na literatura de

Saramago tal condição é elevada a outro patamar, na medida em que os

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personagens sequer são nomeados, e suas histórias servem mais como veículos de

uma ideia do que como expressões de uma subjetividade acovardada.

Neste deserto de afetos, apenas eventos desestabilizadores – uma cegueira

coletiva, um dia depois do qual ninguém morreu, assim por diante – despertam os

personagens para seu entorno. Mais ainda, através destes eventos

desestabilizadores, que mudam completamente a natureza de toda a realidade dos

seus personagens, Saramago desrealiza (SAHUQUILLO, 1998) o real – talvez em

sinal de revolta contra uma realidade que se tornou fantasmal, talvez como forma de

afirmar que um mundo absurdo mereça uma literatura absurda.

A este respeito, Slavoj Zizek retoma a leitura de Michael Wood acerca da obra

saramaguiana, cujos livros, segundo o crítico

São romances, não ensaios. Mas evocam a forma ensaística. Em suas obras, há pessoas que não têm nome, mas simplesmente funções sociais: o ministro da Justiça, a mulher do médico, o policial, o funcionário dos correios, etc. as conversas que travam são assinaladas apenas por vírgulas e letras maiúsculas; não há aspas nem espaços entre as linhas. Os diálogos e os personagens agrupam-se em formas sociais, como se uma cultura inteira agisse a falasse através de seus representantes mais significativos (WOOD apud ZIZEK, 2014, p. 68).

É verdadeiro que também no que diz respeito aos elementos formais a

literatura de Saramago não se enquadra nos moldes canônicos e busca rupturas e

desestabilizações: longos parágrafos cadenciados por vírgulas, excluídos de

travessões para identificar o interlocutor no diálogo e de pontos de exclamação e

interrogação para demarcar entonações significativas. Deleuze e Guattari,

discorrendo sobre Kafka, falam em uma “literatura menor”: não no sentido de uma

literatura de menor porte ou qualidade, mas de um esforço literário sempre em

transição, sempre revolucionário, que busca subverter as possibilidades da língua e

da expressão no interior mesmo de uma dada linguagem. Segundo os autores:

As três características da literatura menor são a desterritorialização da língua, a ligação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo da enunciação. É o mesmo que dizer que ‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que se chama grande (ou estabelecida). Mesmo aquele que tem a

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infelicidade de nascer no país de uma grande literatura deve escrever em sua língua como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um uzbeque escreve em russo. Escrever como um cachorro que faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E, para isso, achar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio dialeto, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto (DELEUZE; GUATTARI; 2015, p. 39).

Nesta perspectiva, é tentador sugerir que na obra do autor português tudo

também assume um valor político, tudo toma um valor coletivo e tudo é

desterritorializado – exatamente como na análise de Deleuze e Guattari. Não são

apenas as rupturas formais que o situam neste patamar, mas o próprio escrever

como um estrangeiro, o fazer narrativo que arranca constantemente os personagens

da mundanidade da vida e os dispõe em cenários incômodos, trêmulos.

Ocorre também que os eventos narrados por Saramago exploram

estranhamentos e perplexidades outras, que não apenas aquelas específicas da

sociedade moderno-industrial do final do séc. XIX e princípios do séc. XX. Em O

homem duplicado, um livro fundamentalmente sobre identidade e alheiamento, o

autor escreve, a propósito da incompreensão do personagem principal acerca da

comunicação e do estar-no-mundo do sujeito contemporâneo:

Tertuliano Máximo Afonso não pertence ao número dessas pessoas extraordinárias que são capazes de sorrir até quando estão sozinhas, o próprio dele inclina-se mais para o lado da melancolia, do ensimesmamento, de uma exagerada consciência da transitoriedade da vida, de uma incurável perplexidade perante os autênticos labirintos cretenses que são as relações humanas. [...] O que de todo em todo não compreende, por muito que tenha posto a cabeça a trabalhar, é que, desenvolvendo-se em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, as tecnologias de comunicação, a outra comunicação, a propriamente dita, a real, a de mim a ti, a de nós a vós, continue a ser esta confusão cruzada de becos sem saída, tão enganosa de ilusórias esplanadas, tão dissimulada quando expressa como quando trata de ocultar (SARAMAGO, 2007, p. 203-204).

Essa perplexidade diante dos labirintos das relações humanas parece ser um

sentimento não de todo infrequente na contemporaneidade, e apresenta sinais de

agravamento. As tecnologias de comunicação não simplificaram a coabitação

humana, elas a comprimiram e facilitaram seu manejo (BAUMAN, 2011).

Consequentemente, o que Saramago chama de “comunicação verdadeira” se perde,

em muitos sentidos, exatamente devido à tecnologia e às infindáveis variantes que

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ela interpõe, com seus dispositivos e técnicas específicas, “de mim a ti”, “de nós a

vós”.

Já em Ensaio sobre a cegueira (1995) e Ensaio sobre a lucidez (2004), obras

compostas para leitura em sequência, explora-se o tema das possibilidades

autoritárias inscritas na própria dinâmica democrática. Na primeira, uma epidemia de

cegueira aflige a população de uma cidade, deixando apenas uma mulher ilesa

como testemunha da barbárie que se segue; na segunda, a mesma cidade é

atingida por uma epidemia de votos em branco, desencadeando o cerceamento das

liberdades e a promulgação de um estado de sítio – em nome, é claro, da

preservação da democracia. Entra em efeito aqui algo similar ao que Naomi Klein

(2008) denominou como doutrina do choque7: uma tática comum entre governos

conservadores, que consiste em tomar proveito de eventos traumáticos para

implantação de medidas neoliberais, impopulares ou, simplesmente,

antidemocráticas, como a criminalização de problemas sociais. Debruçando-se

sobre as duas obras de Saramago, Bauman (2013) assevera que a discriminação

contra a anormalidade toma a forma, nos sistemas políticos contemporâneos, de

uma espécie de ditadura dos tidos como normais, ou de uma tirania dos ditos

qualificados. No final das contas, o processo de exclusão de parcelas da população

é próprio da preservação da ordem:

A ordem é feita sob medida para a maioria, de modo que aqueles que são relativamente poucos e não se dispõe a obedecê-la constituem uma minoria fácil de desvalorizar como um ‘desvio marginal’ – e portanto fácil de identificar, localizar, desarmar e subjugar. Selecionar, identificar e excluir a ‘margem da anormalidade’ é um resultado necessário do processo de construção da ordem e um custo inevitável de sua perpetuação (BAUMAN, 2013, p. 72-73).

7 Klein (2017) lista uma série de choques que são manipulados (ou gerados) para a implementação

da doutrina: o choque do terror, o choque da guerra, o choque climático e o choque econômico. A autora se utiliza inclusive do exemplo recente da deposição da presidenta Dilma Rousseff no Brasil, com o consequente congelamento das contas públicas por 20 anos, aliado a uma série de medidas privatistas e pró-mercado. Em certo sentido, os choques de Naomi Klein se aproximam dos eventos desestabilizadores fantásticos que Saramago faz irromper na realidade, geralmente com consequências e respostas igualmente catastróficas por parte dos nossos “responsáveis”.

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De modo semelhante, o processo de violência juridicamente organizada que

Agamben (2004, p.13) descreve como “totalitarismo moderno”, isto é, a “criação

voluntária” e dentro de tradições jurídico-democráticas, “de um estado de

emergência permanente”, através do qual se permite a eliminação “de categorias

inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema

político”, é passível de ser discutido através de trabalhos como O Ensaio sobre a

cegueira e Ensaio sobre a lucidez – nos quais os “não integráveis” são,

respectivamente, os cegos e os votantes em branco. Os Ensaios podem ser

interpretados como exercícios de interpretação e imaginação acerca do Estado, e

reverberam a categoria ideal-típica de Giorgio Agamben do homo sacer, vida

desprovida de valor, tanto no âmbito humano quanto no âmbito divino. No Ensaio

sobre a cegueira, a epidemia de cegueira branca é sucedida pelo abandono das

forças do Estado e por uma espécie de regressão hobbesiana dos habitantes da

cidade não nomeada – a passagem mais marcante do texto é o estupro coletivo

realizado no interior de um dos campos de concentração (um antigo hospital)

organizados para receber os infectados. Apenas a mulher do médico é imune à

doença, e atua como guia de um pequeno grupo que vaga pela paisagem devastada

da cidade. Já em Ensaio sobre a lucidez, uma nova epidemia, agora de votos em

branco, mobiliza no Estado forças repressivas que consolidam a ideia expressa por

Agamben, retomando Carl Schmitt, de que a soberania de um Estado está em sua

faculdade de romper as leis que se impõe, não em segui-las – o “soberano é aquele

que tem o poder de eximir” (BAUMAN, 2005, p. 65).

Pode-se desenvolver aqui um paralelo entre a cegueira branca e os votos em

branco com a ideia de Agamben (2009) sobre o que é o contemporâneo. Para o

autor, do ponto de vista neurofisiológico, o escuro não é ausência de luz, mas o

resultado da atividade de células da retina chamadas de off-cells. Transpondo essa

reflexão para a contemporaneidade, perceber o escuro de uma época não é uma

forma de inércia, mas implica em uma habilidade específica que equivale a

“neutralizar as luzes que provém da época para descobrir as suas trevas, o seu

escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes” (idem, p. 63).

Nesse caso, perceber as trevas que provém de uma época deveria nos interessar –

e é talvez isso que os cegos de Ensaio sobre a cegueira não conseguem fazer, daí

sua doença “branca”. É igualmente produtivo explorar as possibilidades de cegueira

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moral que se seguem à cegueira fisiológica. Quando Bauman fala em

“insensibilidade moral” para conceituar o processo de adiaforização, ele aponta para

a utilização do termo “insensibilidade” como uma metáfora, sendo ele localizado

normalmente na esfera dos fenômenos anatômicos e fisiológicos – quando se diz

que nossa pele está muito “sensível”, por exemplo. Assim como a ausência de

sensibilidade orgânica denota alguma disfunção fisiológica, a indiferença pelo outro

e a extensão do padrão da relação consumidor-mercadoria para todas as relações

inter-humanas sinaliza uma questão social. Saramago realiza o mesmo movimento:

a cegueira branca, um problema fisiológico, desencadeia uma série de problemas

sociais e, no limite, expõe a insensibilidade e a crueldade das relações humanas

quando postas à claro – algo similar ao que ocorre no filme O Anjo Exterminador

(1962), de Luis Buñuel, quando o esgotamento físico dos habitantes de uma sala de

jantar da qual inexplicavelmente não conseguem sair solapa, lenta, mas

irremediavelmente, os bons costumes burgueses que eles apresentavam no início

do longa.

Em Ensaio sobre a lucidez, sob o disfarce da “proteção à democracia” o

Estado se torna violento e assassino. O enfraquecimento do Estado de bem-estar

social e a transmissão das suas linhas de poder para o mercado estão atrelados

tanto ao apelo repressivo do aparelho estatal na contemporaneidade – Estado que

precisa, afinal, cumprir alguma função, “procurar outras variedades, não

econômicas, de vulnerabilidade e incerteza em que possa basear sua legitimidade”

(idem, p. 68) – quanto ao embotamento de perspectivas políticas por parte da

população:

O crescimento observado da apatia política, da perda do interesse e do compromisso políticos (‘não há mais salvação pela sociedade’, na famosa frase de Peter Drucker), o aumento do descaso em relação à lei, a multiplicação de sinais de desobediência cívica (e não tão cívica) e, por último, mas não menos importante, a redução maciça da participação do povo na política institucional – todos esses são testemunhos da destruição dos alicerces do poder do Estado (BAUMAN, 2005, p.68).

Em todo caso, é no interior de um Estado que o conceito de povo faz sentido,

e é através do Estado-Nação que se estabelecem as distinções e segregações entre

cidadão e homo sacer, pertencimento e exclusão, assimilação e redundância

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(BAUMAN, 2005). Contemporaneamente, o Estado procura esferas em que possa

continuar afirmando sua soberania, e nesse processo geralmente torna-se um

dispositivo penal, voltado para o controle da criminalidade. São processos sociais

importantes, como a separação entre política e poder – e sua consequente crise de

representatividade –, a desqualificação de segmentos da sociedade nas

formatações neoliberais de Estado, a desconfiança frente a estruturas políticas

tradicionais e a normalização do estado de exceção, que encontram eco tanto na

teoria social contemporânea quanto na literatura saramaguiana. O final de Ensaio

sobre a lucidez, em que a mulher do médico, apontada como uma das líderes do

movimento dos votantes em branco, é assassinada cruelmente por um agente do

governo, é a ratificação da desimportância atribuída à vida humana:

A destruição da vida de um estranho, sem haver a menor dúvida de que se cumpre o dever e de que se é uma pessoa moral, essa é a nova forma do mal, o formato invisível da maldade na modernidade líquida. Ele caminha ao lado de um Estado que se presta ou se rende totalmente a esses males, um Estado que só tem medo da incompetência e de ser superado por seus competidores, mas que nem por um minuto duvida que as pessoas não passem de unidades estatísticas. As estatísticas são mais importantes que a vida humana real; o tamanho de um país e seu poder econômico e político são muito mais importantes que o valor de um de seus habitantes, ainda que este fale em nome da humanidade (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 17).

As intermitências da morte, de 2005, descreve o que acontece a um país após

um dia depois do qual ninguém morreu. O livro coloca questões fortes para um

dilema muito antigo. Bauman (2000) aponta que, ainda que nem todos precisem

“viver para a morte” como defende Heidegger, é de fato a consciência da própria

mortalidade que torna o ser humano único – não por acaso, no conto sobre a Cidade

dos Imortais de Borges, quando o humano perde a condição de mortal e, portanto, a

consciência da efemeridade da vida, regride a um estágio animalesco em que

inclusive a linguagem é esquecida. Neste sentido, Bauman (idem), remetendo a

Cornelius Castoriadis, indica como diversas iniciativas culturais foram desenvolvidas

ao longo do tempo para mitigar a consciência da morte iminente ou ao menos

oferecer a sensação de pertencimento a algo maior – e mais duradouro – do que a

nós mesmos. Em períodos pré-modernos, o paliativo foi oferecido pela tradição –

cuja circularidade e fortes laços comunitários prestavam-se ao alívio da continuidade

– e pela religião – cuja crença em um mundo outro que não o de agora possui a

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óbvia consolação para uma vida curta e sem sentido. Em tempos modernos, o

mesmo tipo de consolo, por razões semelhantes, foi oferecido pela Nação: entidade

supraindividual e intemporal, organismo persistente à aniquilação diária de milhões

de suas células8 . Já em tempos contemporâneos, com a dissolução dos laços

tradicionais, a diminuição do poder de influência da religião e a fragmentação do

poder nacional, nenhuma destes lenitivos é eficaz, e os medos canalizados para a

formação de alguma espécie de comunidade agora se encontram dispersos. Nas

palavras do autor:

O estrangeiro de Albert Camus teve uma premonição deste dilema e de tudo que acarreta. Ele sabia que em última análise estamos sós neste mundo e que a vida – a vida como um todo, sem escapar coisa alguma – termina com a morte; nada restou, hoje, entre o indivíduo mortal e a ‘benigna indiferença do universo’. As pontes coletivamente erigidas entre a transitoriedade e a eternidade se degradaram e o indivíduo foi deixado cara a cara com a própria insegurança existencial, pura e intacta. Agora espera-se que ele ou ela enfrente sozinho (a) as consequências (BAUMAN, 2000, p. 46).

Ideia quase idêntica é expressa em In Praise of Literature, em que Bauman

comenta, a respeito da máxima de Camus “revolto-me, logo existo”:

Na literatura, assim como na sociologia, são os caminhos para a verdade que as pessoas procuram, tomam ou erram que são explorados, com a verdade em si sempre pendente e esperando que um Messias a exponha. Mas, como Kafka já tinha, para o melhor ou pior, concluído – o Messias vem um dia depois de sua chegada (BAUMAN; MAZZEO; 2016, p. 57, tradução nossa).

Em As intermitências a morte, personificada em uma mulher, suspende

temporariamente a mortalidade para depois retomá-la, através de aviso público e

8 No campo da Sociologia, Durkheim, seguindo o rastro de Comte, foi quem elaborou um dos mais

convincentes argumentos em favor da “transcendência” através da sociedade – sinônimo, na sociologia nascente, de Estado-nação. Nas palavras de Bauman (2009, p. 46), Durkheim, “se esforçou para inserir e estabelecer a ‘sociedade’ no lugar antes ocupado por Deus e pela Natureza, vista como Sua criação ou personificação – e assim reivindicar para o nascente Estado-nação o direito de articular, pronunciar e aplicar os mandamentos morais e exigir de seus súditos a lealdade suprema: o direito antes reservado ao Senhor do Universo e Seus consagrados lugares-tenentes terrenos”.

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com data para início. Desta suspensão e, sobretudo, do anúncio da retomada, brota

tanto uma desestabilização dos laços comunitários do país fictício – aqui Saramago

flerta novamente com o tema do Estado de Exceção – como um renascimento de

afetos adormecidos – o romance entre a morte e o violoncelista surge como saída

para a solidão hiperbolizada da contemporaneidade.

Em síntese, me parece óbvio neste ponto a relação íntima entre sociologia e

literatura: seja no que se refere à literatura realista em sua tematização de conceitos

sociológicos relevantes para explicação do mundo moderno-industrial

(SAHUQUILLO, 1998); nas tensões e confluências entre sociologia e literatura

quando da ascensão da primeira (LEPENIES, 1996); ou na interdependência

enriquecedora que existe nas possibilidades de interpretação da sociedade líquido-

moderna (BAUMAN; MAZZEO; 2016).

Tomando essas premissas como verdadeiras, segue-se uma hipótese: a de

que obras fantásticas (ou fantástico-realistas) acabam por iluminar a realidade

contemporânea de modo mais profundo do que a literatura realista o fez do fim do

séc. XIX até meados do século XX, na medida em que o realismo mágico insere

elementos fantásticos em contextos realistas, incorporando o insólito à realidade,

como efeito discursivo que não busca meramente encantar ou assombrar – como na

literatura puramente fantástica – mas sim extrapolar os limites do objetivamente

possível sem deixar de tê-lo como pano de fundo. A preocupação com a “questão

social” (a pobreza, as misérias e injustiças provocadas pelo capitalismo industrial)

inspirou trabalhos tanto de sociólogos quanto de literatos; deve-se considerar,

entretanto, a possibilidade de a própria natureza das questões sociais

contemporâneas haver-se modificado, refletindo-se em – e estruturando-se através

de – uma outra literatura. Certamente, permanece, provavelmente mais do que

nunca, o fato de que os horizontes que se abrem são muito mais amplos do que o

círculo de atuação de ambas as disciplinas (BAUMAN; MAZZEO; 2016, p. 135).

Nesse caso, como o realismo fantástico de José Saramago procura dar conta da

realidade fluida, transitória, consumista e inconstante da contemporaneidade? Se,

como pretende Sahuquillo (1998), a literatura moderna – notadamente a de caráter

realista – expressa questões sociológicas relevantes como o estranhamento, a

anomia e a falta de lugar no mundo, tais questões permanecem na literatura e na

sociologia contemporâneas? Até que ponto existem ainda pontes entre a produção

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sociológica e a literatura, e em que medida os problemas enfrentados por estas duas

formas de interpretação e leitura do mundo social se transformaram desde o

nascimento da sociologia? Se a sociologia é irmã da literatura (BAUMAN; MAZZEO;

2016) ou surge da intersecção entre ciência e literatura (LEPENIES, 1996), estariam

nossas interpretações sociológicas a par do que apreende a literatura

contemporânea? É possível, a partir da obra de José Saramago, articular sociologia

e literatura como formas de expressão dos mesmos dilemas que marcam a

experiência humana de estar-no-mundo?

Pretendo explorar estas questões e hipóteses mais detalhadamente nos

capítulos que se seguem, oferecendo leituras distintas, porém complementares, de

um mesmo romance: A Caverna. De antemão, é necessário dizer que, obviamente,

alguns estranhamentos persistem, e o “não sentir-se nativo” presente nas obras

modernas e nas interpretações clássicas da sociologia também existem nas

narrativas de Saramago. Igualmente, a sensação de anomia, agora talvez (mal)

disfarçada de uma ordem jurídico-burocrática pouco clara para muitos, também não

pode ser descartada. Existem, porém, sutilezas e nuances que se inscreveram nas

transformações do próprio mundo social, que provavelmente devam ser

acompanhadas tanto pela sociologia quanto pela literatura, formados, como o são,

por intérpretes da sociedade.

As questões levantadas aqui não traduzem uma fala pacificadora – muito pelo

contrário. Por um lado, se é verdade, como me parece ser, que o problema da nossa

civilização é que ela parou de questionar-se – como afirma Bauman (2016) citando

Castoriadis –, tanto a literatura quanto a sociologia devem ser levadas em conta

tendo em vista suas contribuições no sentido da revitalização da crítica. Por outro

lado, não se trata aqui de igualar os campos, ou de afirmar que sociologia e

literatura são discursos entre outros discursos (embora o sejam, mas não são

apenas isso). As ciências sociais possuem, além de um lastro metodológico

razoavelmente consistente, um compromisso com a empiria que a literatura (embora

toda grande obra seja fruto de seu tempo) jamais pode firmar para si, sob o risco de

se tornar panfleto. Trata-se, antes, de explorar as articulações, pontes e mesmo

dissonâncias que existem entre duas formas de interpretação do mundo

mutuamente enriquecedoras.

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3 A CAVERNA – UTOPIAS DEGENERADAS

Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós.

Platão, República, Livro VII

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3 A CAVERNA – UTOPIAS DEGENERADAS

A modernidade é profundamente utópica em suas aspirações. A Utopia de

Thomas More, publicado em 1516, influenciará os socialistas utópicos do século

XIX, dentre eles Fourier, o qual, como indica Benjamin (1991), elabora uma utopia

em que os falanstérios, redefinidos de galerias comerciais para moradias – o

falanstério seria uma “cidade feita de galerias” –, funcionariam como engrenagens

perfeitamente encaixadas, no interior das quais a moral se tornaria desnecessária.

Francis Bacon, um dos fundadores da ciência moderna, publica em 1624 Nova

Atlântida, onde se realiza a articulação entre cidade ideal e ciência, enfatizando a

fantasia da natureza domada e abrindo espaço para o gênero literário da ficção

científica, cujo precursor foi Júlio Verne (CHAUÍ, 2008). O horizonte utópico com

elementos científicos, a despeito do viés ora conservador, ora revolucionário, é claro

na teleologia de Comte 9 e Marx10 . O século XIX representa, através de peças

literárias e teóricas, sua fé na infalibilidade do progresso impulsionado pelo

desenvolvimento tecnológico.

Um movimento oposto ocorre a partir da metade do século XX. Sob a sombra

das experiências totalitárias e da ameaça atômica, são tecidas críticas à

instrumentalização da razão e à separação entre ciência e técnica. Torna-se

evidente que o progresso científico não conduz, por si só, à emancipação humana;

pelo contrário, proliferam exemplos da razão a serviço da barbárie, tema cuja

representação axiomática é o campo de concentração. A par do que afirmou Adorno

9 Muito embora Lepenies (1996, p. 31) afirme que Comte “não era nenhum utopista”, pois ele

distinguia “o visionário do teórico, convencido de que primeiro as doutrinas devem ser reformadas no trabalho paciente e laborioso, antes de se poder mudar as instituições”, isso se deve muito mais à visão que Comte possuía de si mesmo – e da sociedade da sua época, a qual não possuiria sequer o vocabulário necessário a uma verdadeira Ciência Social – do que da leitura de seus trabalhos, sobretudo do volumoso Curso de filosofia positiva. Aqui, Comte demonstra a exuberância da diminuição da sociologia à tentação metafísica justamente quando dela tentava purgar-se; e é neste sentido, enquanto proposta grandiloquente e intimamente confiante no desenrolar da ciência em direção à supressão das outras formas de expressão humana, que o autor pode ser considerado um dos expoentes da tradição utópica da modernidade.

10 No comunismo, lembra Donskis (BAUMAN, Z.; DONSKIS, L., 2014, p. 160), “Seremos capazes de

labutar e nos regozijar com o trabalho físico, ao mesmo tempo que cultivamos nossa mente, nossa alma e todas as outras faculdades de nossa criatividade e imaginação. Vamos mostrar nossas magníficas habilidades como trabalhador, intelectual ou artista, como o desejarmos ou a pedido de outros. Aqui vemos o momento manifestamente utópico do marxismo, não obstante suas diatribes contra as utopias anteriores e contra o socialismo utópico francês”.

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sobre a impossibilidade da poesia depois de Auschwitz (ZIZEK, 2014, p.19),

Bauman (1998b, p. 27) lembra que o Holocausto não dá testemunho do fracasso da

civilização, mas do seu avanço. No plano da literatura, 1984, de George Orwell,

Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury,

escritos entre as décadas de 30 e 50 do século passado, sinalizam, como respostas

ao totalitarismo, a desconfiança com a evolução histórica humana através de

narrativas cujo leitmotiv envolve o cerceamento das liberdades, a anulação da

privacidade, a padronização dos comportamentos, o anestesiamento das

sensibilidades. Já ao final do século, o fracasso do socialismo soviético prenuncia,

para alguns, o fim das utopias (CHAUÍ, 2008). Os grandes males da modernidade

são oriundos da sua própria dinâmica interna: toda utopia carrega em si sua

potência negativa. Nesse sentido, o século XX é o século da descrença, o século

das distopias.

Entre o final do século XX e o início do XXI vem ocorrendo um novo

movimento. Como apontam Bauman e Donskis (2014), as narrativas literárias

distópicas da metade do século passado operavam mediados pelo signo da coerção,

especialmente em Orwell e Bradbury: o indivíduo é forçado, geralmente por um

estado totalitário, a adotar determinados comportamentos; a tensão narrativa advém

da pulsão de liberdade diante de estruturas excessivamente repressivas, da

autonomia do indivíduo frente a pressões homogeneizantes. Ocorre que muito do

que foi imaginado pelas distopias de fato se concretiza no plano do real, mas não

por imposição externa. O debate sobre “onde está o mal” é travado agora sob o

signo da sedução, coerente com uma sociedade de consumo e mais próximo da

criação de Huxley e, mais recentemente, Michel Houellebecq: os dispositivos de

controle “empregando a tentação e a sedução como principal forma de

procedimento, e não a violência, a ordem explícita e a coerção brutal” (BAUMAN;

DONSKIS; 2014, p. 29). O indivíduo contemporâneo é escravizado voluntariamente,

parece disposto a abrir mão da privacidade e dos seus contornos mais íntimos em

prol da exposição e do acesso a templos de consumo. Em um mundo em que a

existência é atrelada à visibilidade e esta é despida de crivos éticos, tornando-se

atributo mercantil, midiático e espetacular, o Grande Irmão orwelliano não é

pesadelo, mas aspiração e horizonte. Aquilo que se apresentava como distópico

agora é objeto de desejo. Para utilizar de forma livre um termo lembrado por Beatriz

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Sarlo (2014), remetendo a Louis Marin, podemos agora falar em utopias

degeneradas.

3.1 SHOPPING CENTER

De acordo com Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015), a cultura

contemporânea é uma hipercultura midiática-mercantil, levada adiante pela força da

sedução e do divertimento. Sob o signo do mercado, tudo é estetizado, oferecendo

prazeres insuspeitos diante de uma sempre crescente indústria das sensações. Um

dos símbolos máximos desta contemporânea sociedade de consumo é o shopping

center. Como tal, sintetiza as aspirações de uma época, bem como suas tensões

inerentes. É possível nesse sentido desenvolver a ideia do shopping como a utopia

sedutora da sociedade contemporânea? O que diz o shopping sobre a configuração

urbana em que estamos imersos? Como as representações e o imaginário criado

em torno dos palácios do consumo significam este espaço e quais possibilidades de

revolta estão dispostas em seu arranjo?

O shopping é uma das mais novas e mais definidoras práticas de fruição do

urbano; como espaço de circulação de mercadorias, define as formas de uso da

cidade, oferece inovações no uso do espaço público e conseguiu impor sua tipologia

às mais variadas formas de consumo, ainda que apenas imaginariamente (SARLO,

2014). Tomar a unidade cultural do shopping center como objeto impõe, portanto,

refletir sobre as variadas articulações, inclusive históricas, que contribuem para a

compreensão da sua mensagem.

As origens do shopping podem ser retraçadas ao surgimento do imaginário

urbano mercantil. O grand magasin da Paris do século XIX foi o primeiro espaço em

que as sensações oferecidas, especialmente aos olhos, eram mercadorias tão

importantes quanto os produtos vendidos (SARLO, 2014). Benjamin (1991) vê na

disposição do magasin a separação entre engenharia e arquitetura, a submissão de

propósitos artísticos à funcionalidade, ao “princípio construtivo” na arquitetura,

possibilitada pela construção com ferro; nessa linha, Lipovetsky e Serroy (2015), a

despeito das suas considerações acerca do capitalismo estético, afirmam que o

shopping center surge incialmente como uma expressão emblemática do

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racionalismo moderno. Os primeiros estabelecimentos europeus a oferecerem

grandes estoques de mercadoria eram chamados magasins de nouveautés e

funcionavam como galerias, centros comerciais de artigos de luxo, no interior das

quais a arte se punha a serviço do vendedor (BENJAMIN, 1991). Benjamin aponta

como condições para a arquitetura das galerias os desenvolvimentos tecnológicos

da iluminação a gás e da construção com ferro:

As galerias são uma nova invenção do luxo industrial, são vias cobertas de vidro e com piso de mármore, passando por blocos de prédios, cujos proprietários se reuniram para tais especulações. Dos dois lados dessas ruas, cuja iluminação vem do alto, exibem-se as lojas mais elegantes, de modo tal que uma dessas passagens é uma cidade em miniatura, e até mesmo um mundo em miniatura (BENJAMIN, 1991, p. 31).

A descrição, extraída de um observador da Paris do século XIX, encontra eco

no relato da passagem Güemes, paralela à primeira grande loja de Buenos Aires, a

Gath y Chaves, em 1928:

Com o terror de luz elétrica que desde a manhã até a noite inunda para in eternum suas criptas, caixas-fortes e quiosques de vidro. Com o zumbido de seus elevadores, subindo, ou melhor, deslizando perpendicularmente. E com aquele turbilhão de gente bem-vestida e misteriosa que da manhã à noite passeia por ali, e que não se sabe se são gentis larápios, investigadores de polícia, empresários de teatro ou sei lá o quê. [...] Roupas regulamentares, cabelos de corte regulamentar, saltos de altura regulamentar. Feias e lindas. Todas carinhas pálidas. Amabilidade de ‘o que se vai fazer’. Compartilham quase todas o quiosque com um balconista. Perfumes, flores, bombons, vendem de tudo (SARLO, 2014, p. 7).

O desenvolvimento tecnológico que se reflete na arquitetura (o vidro, a luz

elétrica, o piso de mármore, os elevadores), em sua articulação com a multiplicidade

do urbano e com a circulação de mercadorias, são temas presentes nas duas

descrições. Os trechos evocam os centros comerciais contemporâneos porque o

shopping center hermético e climatizado vai se inspirar nas passagens europeias, na

intenção de criar um espaço de consumo recreativo, hedonista, que desempenhe

função semelhante ao do centro da cidade, mas que está, ao mesmo tempo,

completamente à parte dele.

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O filósofo alemão Peter Sloterdijk retoma a imagem do Palácio de Cristal –

inspirada, por sua vez, no edifício londrino da Exposição Mundial de 1851 –, contida

em Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski, para tematizar não apenas os

constructos que acabariam por redundar nos contemporâneos shoppings, mas

também como uma metáfora de um movimento globalizante que suga para o seu

interior tudo que antes era externo, criando uma estufa imunizada que condiciona

todos os aspectos da vida circundante. A globalização, como “encontro entre o ser e

a forma num corpo soberano” (SLOTERDIJK, 2008, p. 19), encontraria no Palácio de

Cristal sua mais evocativa e forte imagem. Sobre o edifício original, construído a

partir de elementos pré-fabricados segundo os planos de um horticulturista,

Sloterdijk (idem, p. 185) afirma que

Uma nova estética da imersão começou com ele a sua marcha triunfal através da modernidade. Aquilo que se chama hoje de capitalismo psicadélico era já um facto consumado nesse edifício, por assim dizer, desmaterializado e artificialmente climatizado. Durante a primeira exposição universal agruparam-se nele uns dezassete mil expositores, sete mil dos quais provenientes da Grã-Bretanha e das suas trinta colónias. Com a sua edificação, o princípio de interior franqueou um limiar crítico: daí em diante, já não significava nem a habitação burguesa ou aristocrática, nem a sua projecção na esfera das arcadas comerciais urbanas – visava antes transpor o mundo exterior enquanto todo para uma imanência mágica, transfigurada pelo luxo e o cosmopolitismo.

Em 1956, o primeiro centro comercial inteiramente fechado é inaugurado em

Minneapolis, com o objetivo de construir um entorno comercial totalmente fechado:

Graças à climatização, os consumidores esquecem o mundo exterior, com suas intempéries, seus barulhos, sua agressividade, e podem passar mais tempo em seu interior, evoluindo num ambiente de consumitividade total, quase perfeita, sem exterioridade (LIPOVETSKY & SERROY, 2015, p. 190).

O shopping, esta “grande instituição americana”, é – ou propõe-se a ser - uma

espécie de castelo impermeabilizado ao ruído e ao acaso, um “escape à confusão

do ‘mundo real’” (BAUMAN, 1999, p. 237), inerentemente ambivalente e “poluído”:

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Eles oferecem um ambiente controlado, física e espiritualmente seguro, para um mundo de vida alternativo no qual a alegria de escolher não é poluída pelo erro, uma vez que só há ‘escolhas racionais’ à disposição – qualquer opção tem sua adequação de antemão garantida. Ao contrário do mundo ‘real’, o mundo dos shopping malls é livre de categorias sobrepostas, mensagens misturadas e falta de clareza semiótica que redundam em ambiguidade comportamental. No shopping, o ambiente é cuidadosamente controlado (literal e metaforicamente), claramente dividido em seções temáticas, cada uma reduzida a símbolos nítidos, estereotipados e fáceis de identificar, com a remoção de praticamente todo perigo de interpretação ambígua [...] Mesmo as surpresas são cuidadosamente programadas. Mesmo a catástrofe é um conceito num jogo engenhosamente projetado pelos especialistas e conduzido de acordo com regras que impedem que ele escape do controle (BAUMAN, 1999, p. 237-238).

Pode-se delinear assim pelo menos duas tendências. Em primeiro lugar, a

condensação da cidade operada pelo shopping (“um mundo em miniatura”), que se

apresenta como espaço quase autossuficiente, no interior do qual tudo o que

importa ser consumido – portanto, tudo que, numa sociedade de consumo, é

importante – existe. Em segundo lugar, a projeção do shopping como espaço

autônomo, insular, “sem exterioridade”: “o shopping dá a ilusão de ser independente

da cidade e do clima: a luz é inalterável e os cheiros são sempre os mesmos”

(SARLO, 2014, p. 110). Não por acaso, assim é teorizada a cidade ideal, desde

More:

A cidade ideal é insular, isto é, uma ilha isolada de todo o restante do mundo e cuja localização permanece secreta de modo a mantê-la protegida de ataques, invasões e más influências. Além de isolada e ilocalizada (donde u-topia), a cidade ideal é geométrica e arquitetonicamente planejada, ou seja, é produto de um urbanismo racional deliberado, que organiza o espaço segundo exigências sociais, políticas e econômicas. O urbanismo geométrico significa que a razão humana domina a desordem da matéria e os caprichos da natureza e da história (CHAUÍ, 2008, p. 10).

A confluência entre a noção de utopia e o projeto do shopping center (uma

“cidade feita de galerias”, à moda dos falanstérios de Fourier) abre caminho para

algumas reflexões. A cidade ideal condensada no shopping center não opera como

modelo planejado de organização social e política, mas torna-se modelo de espaço

público-mercantil por ser o abrigo da cultura mais persuasiva da nossa época: a dos

consumidores (SARLO, 2014). O shopping é outopos, porque, estando em todos os

lugares (ao menos todos os lugares que importam conhecer ao consumidor

globalizado), na verdade não se encontra em lugar algum. É conhecida a

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semelhança arquitetônica e substancial dos shoppings ao redor do planeta, o que

não significa uma deterioração do seu potencial turístico aonde quer que se vá. O

shopping, ao servir como praça pública das marcas de consumo multinacionais, cria

uma comunidade sem território e sem história, reunida pela compulsão ao consumo;

é a realização da fantasia de conhecer o mundo e estar sempre próximo ao familiar,

bem como da ilusão de que seus usuários são iguais (SARLO, 2014).

A tendência utópica do shopping é mais uma vez reforçada pelo

deslocamento que ele pretende operar em relação à cidade real, no mesmo

processo em que cria uma cidade perfeitamente iluminada, higienizada, segura. O

shopping não é uma passagem entre ruas, como aponta Sarlo (2014), mas uma

unidade que pretende tornar-se autônoma da cidade e sobre ela reinar, ou a ela

absorver. Ao contrário do dinheiro, que, como lembra Simmel, é uma ponte, o

shopping é cada vez mais um habitat, e nele pode-se viver, como de fato se vive.11

O shopping busca, e em grande medida consegue 12 , rejeitar o potencial de

desordem crônica (SARLO, 2014; HILLMAN, 2015) que existe em qualquer espaço

urbano. Como as utopias – e, para todos os efeitos, como as distopias – o shopping

é uma instituição que se aproxima do “tipo ideal de racionalidade triunfante” da

modernidade (BAUMAN, 1999, p. 237).

Nessa mesma medida, a utopia consumista dos shopping centers encontra

seus pontos de inflexão. A absorção de outros espaços de sociabilidade

(restaurantes, parques de diversão, teatros, galerias de exposição, salas de

conferências, hotéis) corresponde ao movimento contemporâneo em direção ao

urbano e cria fenômenos de repercussão social significativa. A incorporação dos

cinemas pelos shopping centers, por exemplo, é um fenômeno cuja repercussão

ainda não foi suficientemente debatida, mas que paulatinamente nota-se como

irreversível13. A segurança que o shopping oferece acontece às custas de uma

11 Lipovetsky e Serroy (2015) indicam gigantescos centros comerciais, como o Global Center, na

China, que contará com hotéis cinco estrelas, e o West Edmonton Mall, no Canadá, que possui mais de 400 quartos em seu conjunto hoteleiro.

12 Há de se considerar o potencial desestabilizador que fenômenos como os rolezinhos trazem para o

projeto higiênico do shopping, tema que não é objeto deste texto, mas que foi trabalhado por Galeno e Silva (2015).

13 A transferência deste equipamento cultural para o espaço dos shoppings não significou apenas

telas maiores, assentos confortáveis e livres da fumaça de cigarro, exibição em 3D e o acesso

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vigilância absoluta, à qual nenhum movimento escapa, nenhuma identidade é

anônima. As utopias privatizadas da era consumista não induzem seus habitantes à

dedicação, mas oferecem, em vez disso, um

[...] ‘espaço livre’ (para mim, é claro) amplamente expandido; um espaço vasto, mas também ‘cercado’, vedado a visitantes indesejados e sem convite. Um tipo de espaço de que o consumidor líquido-moderno, inclinado a performances solo e apenas a elas, sempre precisa mais, nunca tem o bastante. O espaço de que os consumidores líquido-modernos necessitam e pelo qual foram aconselhados, estimulados e encorajados a lutar só pode ser obtido e desfrutado expulsando-se ou rebaixando-se outros seres humanos, mas particularmente aqueles que se preocupam e/ou podem precisar de cuidados (BAUMAN, 2009, p. 142).

Se “o projeto e o funcionamento do shopping opõem-se ao caráter aleatório e,

por conseguinte, indeterminado da cidade” (SARLO, 2014, p.13), a cidade

condensada pelo e no shopping é também cidade cuja regra é a limpeza do vazio,

cidade pastiche, cidade da iluminação total e uniforme; desprovida dos becos,

cantos escuros e imprevisibilidades que constituem o âmago do urbano; a utopia do

shopping carrega consigo a distopia de uma cidade sem alma (HILLMAN, 1993).

3.2 O CENTRO, A CAVERNA

Se o shopping é um dos símbolos máximos da contemporânea sociedade de

consumo, de certa forma a materialização de uma de suas utopias, então é

necessário pensar o shopping como uma unidade cultural historicamente relevante

cuja representação é tão importante quanto sua manifestação “objetiva”. O

cruzamento, como lembra Sarlo (2014), entre as cidades reais e as imaginárias é

fundamental para a compreensão do urbano, em especial quando a configuração

contemporânea da metrópole é, cada vez mais, midiatizada, construída, elaborada

imaginariamente.

imediato às últimas nouveautés do universo hollywoodiano; significou também a pipoca cara, a centralização da exibição apenas em espaços públicos restritos, a impossibilidade da definição de conteúdo por exibidores independentes, a consequente homogeneização de conteúdos – a criação de um cinema numa cidade do interior é, hoje, um contra-senso.

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O romance A Caverna, de José Saramago, publicado em 2000, narra em tom

distópico os efeitos de um gigantesco shopping center, nomeado simplesmente

como o Centro – “um edifício gigantesco, sem janelas na fachada, igual em toda a

sua extensão” (SARAMAGO, 2016, p. 17) –, na vida de Cipriano Algor, viúvo,

morador da aldeia, oleiro de profissão que vende louça para o Centro, e sua família.

Seu genro, Marçal Gacho, trabalha como segurança no Centro e aguarda a

oportunidade de tornar-se guarda-residente, quando poderá levar a esposa, Marta, e

o sogro para um dos apartamentos do shopping. A vida dos personagens está,

desde o começo, atrelada ao Centro. O acontecimento modificador se dá quando a

administração do Centro, com quem Algor mantinha um contrato de exclusividade,

decide parar de comprar os produtos da olaria; Cipriano ingressa então naquilo que

Bauman e Donskis (2014), remetendo a Guy Standing, chamam de precariado:

[...] são os tempos que mudam, são os velhos que em cada hora envelhecem um dia, é o trabalho que deixou de ser o que havia sido, e nós que só podemos ser o que fomos, de repente percebemos que já não somos necessários no mundo, se é que alguma vez o tínhamos sido antes, mas acreditar que o éramos parecia o bastante, parecia suficiente (SARAMAGO, 2016, p. 106-107).

Cipriano Algor é um remanescente de uma sociedade de produtores – a

indicação de sua profissão no livro é um dos primeiros signos de reconhecimento do

personagem e assinala o quanto uma identidade pessoal socialmente aceitável está

ligada, para ele, ao fato de ser oleiro. Na contemporânea sociedade de

consumidores, Algor se torna redundante num duplo sentido: ele é tanto um produtor

quanto um consumidor falho; tanto o shopping não necessita mais dele como

fornecedor, como o que acontece no interior do Centro não parece corresponder à

realização dos seus projetos pessoais. Nesse caso, o personagem torna-se uma

espécie de “sem-teto social”, “com a correspondente perda da autoestima e do

propósito de vida” (BAUMAN, 2005, p. 22) que anteriormente possuía – “dizem eles

que as louças deixaram de interessar, que já ninguém as quer, portanto nós

deixamos de ser precisos”, aponta Cipriano Algor (SARAMAGO, 2016, p. 45). Como

indica Bauman, em referência a Danièle Linhart

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Esses homens e mulheres não apenas perdem seus empregos, seus projetos, seus pontos de orientação, a confiança de terem o controle de suas vidas; também se veem despidos da sua dignidade como trabalhadores, da autoestima, do sentimento de serem úteis e terem um lugar social próprio (BAUMAN, 2005, p. 22).

Despido de importância social, impróprio para a vida segundo a lógica

consumista – ainda que possa, o oleiro rejeita a possibilidade de viver no Centro –,

velho demais para se adaptar a outra ocupação, Cipriano Algor passa a fazer parte

da massa móvel, pulverizada, incerta, movida por abstrações incontroláveis,

indiferentes a que “haja um oleiro a mais ou a menos no mundo”, como o “mercado

de trabalho”, “as forças globais” ou os “ciclos econômicos” (BAUMAN; DONSKIS;

2014). Torna-se, assim, exemplo vivo de ser humano refugado, excessivo,

redundante, cuja proliferação anda em paralelo à modernidade e aos projetos de

construção da ordem (mediante a qual inevitavelmente algumas categorias serão

tidas como "indesejáveis") e do progresso econômico – que ocorre, na sociedade

compulsivamente consumista em que vivemos, degradando e desvalorizando modos

anteriores de trabalho e que portanto, invariavelmente, priva parcela dos seus

membros dos meios de subsistência (BAUMAN, 2005). Ao questionar à

administração a arbitrariedade do rompimento do contrato, Cipriano recebe a

resposta de que “seu caso não é o único, mercadorias que interessavam e deixaram

de interessar é uma rotina quase diária no Centro” (SARAMAGO, 2016, p. 65). Para

o oleiro, no entanto, a perda do trabalho significa “separar-se da casa, da olaria, do

forno, da vida” (idem, p. 35). Enquanto isso sua filha imaginava ouvir, no silêncio da

oficina, “como se subisse debaixo do chão, o ruído surdo do maço rompendo o

barro, porém o som das pancadas parecia-lhe hoje diferente”, porque o que as

impelia não era “a necessidade simples do trabalho, mas a ira impotente de o

perder” (idem, p. 36). Tanto quanto as mercadorias descartadas, pondera Algor, “é

isso que somos para eles, zero” (idem, p. 99). Bauman e Donskis assim teorizam

sobre a velocidade do descarte na modernidade líquida:

A longevidade do uso tende a encolher, e os incidentes de rejeição e descarte tendem a se tornar mais frequentes à medida que se exaure com mais rapidez a capacidade de satisfazer (e de continuar desejáveis) dos objetos. Uma atitude consumista pode lubrificar as rodas da economia, e ela joga areia nos rolamentos da moral (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 23).

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Ocorre que à descartabilidade permanente da cultura de consumo

corresponde a ausência de avaliação moral em relação a outros seres humanos,

agora também julgados segundo o prisma da mercantilização. A adiaforia é uma

atitude que se localiza como “o Outro” de qualquer compromisso: seja o olhar

interessado de crueldade ou de gentileza. Revela-se, portanto, no estertor silencioso

da insensibilidade e da indiferença. Em A Caverna, encontramos o seguinte diálogo,

entre Cipriano Algor e um dos diretores de distribuição do Centro:

Para o Centro, senhor Algor, o melhor agradecimento está na satisfação dos nossos clientes, se eles estão satisfeitos, isto é, se compram e continuam a comprar, nós também o estaremos, veja o que sucedeu com sua louça, deixaram de se interessar por ela, e, como o produto, ao contrário do que tem sucedido em algumas ocasiões, não valia o trabalho e a despesa de os convencer de que estavam em erro, demos por terminada a nossa relação comercial, é muito simples, como se vê. [...] como tudo na vida, o que deixou de ter serventia deita-se fora, Incluindo as pessoas, Exactamente, incluindo as pessoas, eu próprio serei atirado fora quando já não servir, O senhor é um chefe, Sou um chefe, de facto, mas só para aqueles que estão abaixo de mim, acima há outros juízes, O Centro não é um tribunal, Engana-se, é um tribunal, e não conheço outro mais implacável (SARAMAGO, 2016, p. 130).

14

Quando o Diretor assume com naturalidade que deita-se fora o que deixou de

ter serventia, incluindo as pessoas, é uma confirmação da ideia de que não há

realocamento possível para parcelas expressivas da população na moderna

sociedade de consumidores: “a destinação ao ‘lixo’ torna-se o futuro potencial” de

todos, não importa a posição social (BAUMAN, 2005, p. 91). Se na modernidade

“sólida” a “responsabilidade por” (seja o bem-estar, a autonomia ou a dignidade do

ser humano que é receptor da ação) era substituída pela “responsabilidade perante”

(uma causa maior, uma autoridade, um sistema burocrático), os efeitos

adiaforizantes contemporâneos, que tornam as ações eticamente neutras e

moralmente inimputáveis, tendem a ser atingidos pela substituição da

“responsabilidade pelos outros” pela “responsabilidade perante si mesmo” e a

“responsabilidade por si mesmo” (idem, p. 180-181). Nessas circunstâncias, “a

vítima colateral do salto para a versão consumista de liberdade prevalecente na fase

14 Nas obras de Saramago, os parágrafos em uma conversação são indicados por maiúsculas.

Também não há pontos de interrogação ou exclamação.

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‘líquida’ da modernidade é o Outro como objeto maior da responsabilidade ética e da

preocupação moral” (ibidem). Formulada de outra forma, a questão da adiaforização

implica em dizer que, assim como em outros tempos, algumas coisas vão mal,

algumas pessoas perdem o emprego, outras não sabem como sobreviver ao dia

seguinte; a novidade, assevera Bauman, é que

[...] as coisas que vão mal para algumas pessoas raramente preocupam aqueles para quem as coisas vão bem. Estes aceitaram e declararam que pouco podem fazer para melhorar a sina dos outros. E até conseguiram se convencer de que, uma vez que a engenharia social se revelou essencialmente podre, o que quer que decidam fazer só pode piorar as coisas ainda mais. A promessa não foi apenas quebrada. Foi retirada (BAUMAN, 1999, p. 273).

A dinâmica excludente e adiaforizante do mercado contemporâneo parece

ignorar que certas parcelas da população estão mais bem equipados do que outras

para a mobilidade que é exigida como atributo de sobrevivência na sociedade de

consumo líquido moderna (BAUMAN; DONSKIS; 2014). “Teremos de estar

preparados para esse desastre, sim, preparados, mas bem gostaria eu de saber

como é que uma pessoa se prepara para levar uma martelada na cabeça”

(SARAMAGO, 2016, p. 42), questiona a filha do oleiro diante da iminência do

cancelamento do contrato.

Ao contrário do proletariado, unido por um laço de dependência recíproca

com os detentores de capital na era do capitalismo industrial, o precariado não

encontra redenção, possibilidade de remodelagem ou mesmo “reciclagem”. O

Centro não apenas rompe o contrato, mas também força o oleiro a retirar por conta

própria os despojos invendáveis já adquiridos, a louça decretada indesejável. Numa

espécie de insurreição muda contra a cultura do lixo (BAUMAN, 2005) na qual foi

jogado, Algor coleta as louças e deposita-as cuidadosamente numa clareira às

margens da cidade, onde sonha que os arqueólogos do futuro um dia as

encontrarão e indagarão sobre seu significado. Cipriano até tenta reinventar-se,

fabricando bonecos de barro e oferecendo-os ao Centro – a quem mais o faria? –,

apenas para falhar miseravelmente, após uma rigorosa pesquisa de mercado levada

adiante pelo shopping confirmar “cientificamente” a inutilidade total do seu trabalho.

Novamente, ronda sobre Cipriano Algor o espectro do refugo e da redundância,

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mediante o qual ele não é exatamente um “excluído” no sentido “tradicional” do

termo, mas uma espécie de “baixa colateral” do progresso econômico; é também um

processo que enfraquece as possibilidades de resistência, na medida em que “a

produção de refugo humano tem todas as marcas de um tema impessoal,

puramente técnico” (idem, p. 54) – como o demonstra a frieza profissional e

cartesiana com que o oleiro é dispensado pelo Diretor do Centro.

Enquanto assiste à derrocada do seu trabalho, Cipriano observa o Centro

crescer a cada semana em que visita a cidade, absorvendo-a, incorporando parcelas

do seu território e impondo sua lógica – “são os gostos do Centro que determinam

os gostos de toda a gente” (SARAMAGO, 2016, p. 42). A hegemonia do shopping se

infunde nos personagens; em uma das viagens de retorno do trabalho no Centro,

Marçal observa como algumas regiões periféricas da cidade ainda estão

desabitadas, mas

[...] agora, daqui a mil ou dois mil anos não é nada impossível que a cidade tenha chegado até onde neste momento nos encontramos, observou Marçal. Fez uma pausa, como se as palavras que acabara de pronunciar tivessem exigido que voltasse a pensar nelas, e, no tom perplexo de quem, sem compreender como o havia conseguido, chegou a uma conclusão logicamente impecável, acrescentou, Ou o Centro (SARAMAGO, 2016, p. 109).

A força de atração do Centro é representada nos slogans que ornamentam

sua fachada: “VIVA EM SEGURANÇA, VIVA NO CENTRO”; ou ainda no diálogo

travado entre Marta e Marçal Gacho acerca dos serviços de saúde disponíveis aos

residentes do Centro: “Quem te ouvir acreditará que no Centro ninguém morre,

Morre-se, evidentemente, mas a morte nota-se menos” (SARAMAGO, 2016, p. 122).

Há até mesmo uma analogia de teor religioso elaborada pelo diretor de distribuição:

[...] não exagerarei nada afirmando que o Centro, como perfeito distribuidor de bens materiais e espirituais que é, acabou por gerar de si mesmo e em si mesmo, por necessidade pura, algo que, ainda que isto possa chocar certas ortodoxias mais sensíveis, participa da natureza do divino (SARAMAGO, 2016, p. 292).

Aqui talvez sejam úteis as reflexões de Bauman e Mazzeo (2016, p. 44),

segundo as quais a sociedade líquido-moderna nos privou das âncoras paternas –

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como testemunham a desmistificação da figura simbólica do pai em Lacan, a

demoção do “Pai de todos os Pais” em Nietzsche e o enfraquecimento da nação

(Fatherland) tendo em vista as forças globalizantes. Estas forças, que

representavam, para diferentes autores, entidades totalizantes maiores e mais fortes

que seus componentes individuais, seja o Leviatã (Hobbes), a Sociedade

(Durkheim), ou a Soberania (Schmitt) – e que, a despeito da tirania da sua suposta

divindade, ofertavam em retorno algum senso de comunidade e conforto –, foram

destituídas; porém o problema central é que nada equivalente, estável ou seguro foi

posto em seu lugar. 15 Como resposta posta, mas sempre insatisfatoriamente

recebida, estão os templos de consumo, expressões de uma cosmologia sem

redenção:

Visitar o templo é um dever, não um direito ao qual se é livre para usufruir ou não. Você pode ser recusado à entrada pelos anfitriões e os guardas contratados, se você falhar no teste, ficando aquém de absolver-se nos deveres do consumidor, mas ninguém tem o direito de optar por não participar dos rituais por sua própria vontade, ou ao menos de tentar seriamente participar. (BAUMAN; MAZZEO; 2016, p. 27, tradução nossa).

O espaço externo ao Centro é inseguro, insalubre, impuro – o Centro é uma

cidade despida de todas as suas imperfeições. Aquilo que Sarlo (2014) chama de

hegemonia e absorção do shopping se faz exercer finalmente sobre a família Algor

quando, após fracassadas tentativas de reinserção no mercado, Marçal, o genro, é

finalmente promovido a guarda-residente e Cipriano, sem outras opções, capitula

frente à possibilidade de morar no Centro. Como residente, Cipriano perambula

vagamente, sempre rigorosamente vigiado, pelas atrações do Centro, que contém

uma lista tão “extensa de prodígios que nem oitenta anos de vida ociosa bastariam

para os desfrutar com proveito, mesmo tendo nascido a pessoa no Centro e não

tendo saído dele nunca para o mundo exterior” (SARAMAGO, 2016, p. 308). O

personagem não poderia importar-se menos com tudo que vê: lhe aflige o vazio das

horas sem trabalho, longe da olaria, do cão Achado e do romance ensaiado, mas

15 Esta é, aliás, uma preocupação de Bauman (1998a) desde seus primeiros trabalhos sobre a pós-

modernidade, quando o autor argumentava que as instituições modernas, que reprimiam mas ofereciam alguma solidez, foram substituídas por dinâmicas sociais que se prestam à liberdade, mas que não dão em contrapartida qualquer segurança.

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nunca concretizado, com a também viúva Isaura Madruga. Uma das atrações a que

o oleiro atende chama-se “sensações naturais”, onde, após pago o ingresso, os

visitantes são submetidos a chuvas, ventanias, neve e sol artificialmente gerados –

nada, enfim, que “não se veja todos os dias lá fora” (SARAMAGO, 2016, p. 314).16

Alheio, errante, em vez de deleitar-se com as mercadorias do Centro, Cipriano Algor

prefere explora-lo, penetrar em seu subsolo em busca de compreender as

misteriosas obras que ali acontecem. Aqui Cipriano Algor se aproxima aqui da figura

do estranho 17 descrita por Zygmunt Bauman (1999), como um arquetípico

indefinível, que não se enquadra em oposições binárias do tipo amigo/inimigo,

nós/outros, ou tampouco constitui um “terceiro termo”: ele simplesmente não se

ajusta às possibilidades dadas pelo cenário. Como alguém que não se situa ou se

afina à mesma condição dos “nativos”, o estranho é alguém que, forçosamente –

seja por não fazer parte do cenário “natural” ou por ser obrigado pelos “nativos” a

encará-lo – “só pode questionar a maioria das coisas que os nativos consideram ou

irrefletidamente tomam como inquestionáveis” (BAUMAN, 1999, p. 87). O estranho

foi caracterizado a priori como

Uma ameaça à clareza do mundo e, assim, à autoridade da razão. Agora a definição a priori é confirmada por sua ação. Seu olhar solidifica, torna palpável o modo de vida que só é eficaz se permanece transparente, invisível, não codificado (BAUMAN, 1999, p. 87).

Se a mera existência do estranho se configura como uma fissura na

normalidade da ordem utópica proposta pelo Centro, seu poder de mácula na

sociedade de consumo é bastante limitado. Bauman elaborou a figura do estranho

pensando no poder de ambivalência que ele carregava – e que as instituições

modernas, notadamente o Estado, procuram eliminar – na chamada modernidade

16 Há uma notável confluência do trecho com uma passagem da utopia baconiana Nova Atlântida,

publicada originalmente em 1627: “Temos, ainda, casas grandes e espaçosas, onde imitamos e reproduzimos os fenômenos meteorológicos como a neve, o granizo, a chuva e algumas chuvas artificiais de substâncias diferentes da água, trovões, relâmpagos [...]” (BACON, 1997, p. 247).

17 Já citada anteriormente a respeito de Kafka, “um estranho universal”, de acordo com Bauman

(1999).

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sólida, quando o estranho buscava uma assimilação e sua entrada em um território

rigidamente delimitado implicava uma “violação da cultura em que penetra”

(BAUMAN, 1999, p. 89), resultando na problematização, contestação e criação de

insegurança deste mesmo território. Há, no entanto, uma “substancial diferença

entre ser um estranho num mundo nativo bem estabelecido e ser um estranho num

mundo em movimento” (idem, p. 108). Algor, pelo contrário, não busca assimilação

(se tornar-se nativo é adequar-se à lógica do Centro, é precisamente isso que o

personagem evita ao longo de todo o romance) e está livre para sair do shopping,

seu “território” imposto e não escolhido, quando quiser, como de fato o faz – morar

no centro, explica seu genro, “não é um desterro”, “as pessoas não estão lá

encarceradas” (SARAMAGO, 2016, 284). Mais ainda, a desestabilização que causa

sua figura é mínima; na realidade, ele é frequentemente ignorado e tratado como um

idoso exótico, com tendências perigosas à curiosidade. As forças que lhe são

aplicadas são muito menos coercitivas – coagir é sempre um reconhecimento da

importância do coagido – do que adiaforizantes; isto é, operam para torna-lo

irrelevante, fora de qualquer espectro valorativo de importância. Sua existência,

como restou provado desde o rompimento do contrato, não faz diferença para o

Centro. O oleiro já está em um mundo no qual a estranheza foi alçada à condição

humana universal. Nos termos de Bauman:

Hoje em dia, instrumentos panópticos em sua forma tradicional herdada do passado ‘sólido-moderno’ são empregados principalmente na periferia social — para impedir o reingresso dos excluídos à companhia dos membros legítimos da sociedade de consumidores, e para manter os párias longe de causar prejuízos. O que hoje se toma equivocadamente como sendo uma versão atualizada do big brother de Orwell ou do panóptico de Jeremy Bentham é, na verdade, o contrário exato dos supostos originais: um dispositivo empregado a serviço de excluir e ‘manter à distância’, não de ‘integrar’, ‘conter’ e ‘controlar’. Ele monitora o movimento dos estranhos para evitar que se tornem ou pretendam ser pessoas de dentro – de modo a que estas possam sentir-se confortáveis lá dentro, o que significa poder seguir as normas internas com menos vigilância e sem aplicação de força (BAUMAN, 2009, p. 113-114).

Neste sentido, as agruras de Algor guardam mais semelhanças

contemporaneamente com a figura do refugiado, teorizado mais recentemente pelo

próprio Bauman, e do estrangeiro, cristalizado memoravelmente por Albert Camus.

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Os refugiados, apropriados símbolos de uma sociedade em movimento e

verdadeiramente global, como também alvos perfeitos para o marketing de um

Estado que deriva sua força da atuação policialesca, são, de acordo com Michel

Agier, privados dos

[...] meios sobre os quais se assenta a existência social, ou seja, um conjunto de coisas e pessoas comuns portadoras de significados – terra, casa, aldeia, cidade, posses, empregos e outros marcos divisórios cotidianos. Essas criaturas à deriva e à espera não têm nada senão sua ‘vida crua’ (AGIER apud BAUMAN, 2005, p. 97).

Os refugiados são assim o refugo humano da sociedade líquido-moderna,

sem papéis sociais significativos a desempenhar na terra em que chegaram e na

qual permanecerão temporariamente – no entanto, com a volubilidade e a fragilidade

de toda e qualquer relação social, não estaremos todos temporariamente em algum

lugar? Como todos os aqueles que não se qualificam para vida no Palácio de Cristal

globalizado e consumista, “da sua localização atual, o depósito de lixo, não há

retorno nem estrada que leve em frente” (BAUMAN, 2005, p. 98).

Já na parte final da trama, as escavações de ampliação do Centro – “o Centro

cresce todos os dias”, afirma Marçal (SARAMAGO, 2016, p. 281) – encontram uma

gruta, na qual estão seis humanos mortos, atados com os rostos de frente para uma

parede; às suas costas, as cinzas de uma antiga fogueira: é a caverna da alegoria

platônica, enterrada sob o Centro. Cientes do significado da descoberta, Marçal se

demite e a família Algor decide partir do Centro para um destino incerto, convencida

de que “O Centro acabou, a olaria já tinha acabado, de uma hora para a outra

passámos a ser como estranhos nesse mundo” (SARAMAGO, 2016, p. 347); pouco

depois, a fachada do shopping exibe a faixa: “BREVEMENTE, ABERTURA AO

PÚBLICO DA CAVERNA DE PLATÃO, ATRACÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO

MUNDO, COMPRE JÁ A SUA ENTRADA” (idem, p. 350).

A interpretação dada por Benjamin às passagens parisienses, como

corretamente apontou Sloterdijk, inspirou-se na ideia marxista de que, por trás do

fulgor e atração que elas exerciam, existia um mundo do trabalho desagradável e

sinistro, marcado por exploração e engodo: “sob a forma de sombrias alusões,

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sugeria-se que o bonito mundo do vidro era uma metamorfose do Inferno de Dante”

(SLOTERDIJK, 2008, p. 189) – entendimento que é reforçado no texto de Saramago

pelo aparecimento da caverna platônica, um dos maiores e mais antigos símbolos

da ilusão, no subsolo do Centro. Sloterdijk não exatamente contradiz a interpretação

de Benjamin, mas estabelece a relação entre as passagens e a noção de um

Palácio de Cristal ampliado, ideia que também se aplica para a discussão da obra de

Saramago. Enquanto as passagens elitistas nunca alcançaram maiores dimensões e

serviam para “dar aconchego ao mundo das mercadorias” (ibidem), o gigantesco

Palácio de Cristal configurava uma menção ao capitalismo integral, orientado para a

vivência e a habitação, não apenas para o consumo. Se as passagens constituíam

uma ponte entre ruas e praças, o Palácio de Cristal “invocava já a ideia de um

habitáculo suficientemente vasto para que eventualmente não tenhamos de o deixar”

(idem, p. 190). Na forma como é apresentado no livro, o shopping é um fato social

total; não exatamente no sentido de que em seu interior condensam-se, ou realizam-

se, práticas sociais de implicância generalizada, mas porque as práticas que lhe são

externas se inspiram em sua lógica interna. Sua organização, em diversos sentidos,

produz implicações em vários níveis da realidade social, exatamente do modo como

Mauss (2003) conceituou o fato social total em seu ensaio sobre a circulação de

bens e mensagens. Nesse sentido é que não importa a Cipriano Algor estar no

Centro, compactuar com o que se faz no Centro ou mesmo avistar o Centro – sua

vida será mesmo assim pelo Centro modelada. Quando o genro de Cipriano afirma

que a melhor explicação para o Centro seria “considera-lo como uma cidade dentro

de outra cidade”, este responde:

[...] cada vez que olho cá de fora para o Centro tenho a impressão de que ele é maior do que a própria cidade, isto é, o Centro está dentro da cidade, mas é maior do que a cidade, sendo uma parte é maior que o todo, provavelmente será porque é mais alto que os prédios que o cercam, mais alto que qualquer prédio da cidade, provavelmente porque desde o princípio tem estado a engolir ruas, praças, quarteirões inteiros (SARAMAGO, 2016, p. 259).

A ideia de uma construção que está na cidade e ao mesmo tempo a simboliza

e a absorve, um mini-mundo que contém em si mais do que o próprio mundo, e em

que, fundamentalmente, tudo está à disposição para fruição e consumo, remete à

mudança de paradigma anunciada por Lipovetsky (2017), de uma sociedade

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moderna que valora positivamente o pesado para uma sociedade líquido-moderna

(ou hipermoderna) que atribui maior valor simbólico ao leve. Junto a este processo,

se observa a tendência à miniaturização e à desmaterialização, sendo a leveza

associada cada vez mais à mobilidade e sua presença fazendo-se sentir nos mais

variados âmbitos do mundo social, desde a esfera tecnocientífica até a moda, o

design e a arquitetura. Nessa era do triunfo da leveza, o universo consumista

hipermoderno exibe-se esvaziado de toda gravidade ideológica, sedimentando uma

cultura em que a apologia ao hedonismo não se envergonha de si mesma e na qual

as utopias da leveza – horizontes virtuais em que seja possível sentir o presente

como menos opressivo e pesado – sucedem os sonhos de libertação e revolução

(idem). A presença do Centro como força centrípeta que arrasta para si o seu

entorno encontra também paralelo com o processo de interiorização de espaços

teorizado por Sloterdijk através da imagem do Palácio de Cristal. Nas palavras do

autor:

Se retomámos a expressão ‘Palácio de Cristal’, foi sobretudo para exprimir a impressão de que a fórmula corrente ‘mercado mundial’ é pouco adequada para caracterizar a modelação da vida sob o fascínio de relações monetárias que tudo penetram. O espaço-interno-do-mundo do capital não é uma ágora nem uma feira ao ar livre, mas uma estufa que arrastou tudo o que antes era exterior para o seu interior. Com a representação do palácio do consumo a nível planetário, o clima estimulante de um mundo interior de mercadorias acede à linguagem. Nesta Babilónia horizontal, ser-se humano passa a ser uma questão de poder de compra e o sentido da liberdade manifesta-se na capacidade de escolher entre produtos destinados ao mercado – ou produzir autonomamente esses produtos (SLOTERDIJK, 2008, p.23).

Deliberadamente ou não, Saramago não insere na sua narrativa os media

contemporâneos. Na realidade, seus cenários são quase atemporais, não fosse a

invasão – quase sempre bárbara – de elementos urbanos. Isso faz com que as

interações entre os personagens, que lutam contra a inserção no Centro, assumam

ares românticos, semi-idílicos, enquanto que as interações dos personagens com o

Centro e com o urbano que o representa e é por ele paulatinamente absorvido sejam

sempre marcadas por impessoalidade, manipulação e perjúrio. Em verdade,

Saramago, ao representar o shopping como a caverna platônica, se insurge contra

parte da tradição teórica contemporânea que nega a oposição entre o virtual e o

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real, “entre os territórios físicos e os sistemas de comunicação, sua arquitetura, sua

engenharia e seus dispositivos” (GALENO & SILVA, 2015). Não há um novo animal

político a brotar da nova polis cujo modelo é o shopping, pois seu potencial

centrípeto é poder puro (BAUMAN, 2015), é a morte da própria política. O Centro é

falso, é artificial, é ilusório – tudo que se apresenta para fruição em seu interior é

vazio de substância, e os conhecidos e intencionalmente cansativos arrolamentos

descritivos do autor18 operam aqui como uma espécie de denúncia deste enorme

simulacro. Se a lógica do Centro é inescapável, isso se deve mais à retórica da

inexorabilidade que se logrou dominante numa sociedade de consumo

hiperindividualizada (LIPOVETSKY & SERROY, 2015) do que à uma efetiva

separação entre as esferas do real e do imaginário. Cuidadosamente ordenados e

projetados, os shoppings são paradoxalmente uma mensagem que sinaliza “o

colapso total do glorioso sonho da ordem perfeita e global, controlada pela razão”

(BAUMAN, 1999, p. 238), na medida em que ele oferecem

[...] um mundo perfeito, controlado pela razão, com toda ambivalência existente (ou deliberadamente planejada) sob cuidadoso controle; mas o mundo governado pela razão que eles oferecem só é uma ordem global graças às espessas e impenetráveis paredes fortemente guardadas dentro das quais se encerra. A utopia dos sábios afastou-se do mundo real para um retiro seguro onde não precisa mais temer o caos gerado pelo seu zelo ordenador. Vigias eletrônicos, alarmes contra roubo e entradas e saídas estreitas que se fecham sozinhas separam essa utopia miniaturizada do resto do mundo, abandonado a sua confusão aparentemente inextirpável. Prodígios de harmonia e perfeição são agora oferecidos como entretenimento – para os passeios de domingo e o desfrute da família. Ninguém supõe que sejam reais. A maioria concorda, porém, que são melhores que a realidade. E todo mundo sabe que a realidade jamais será como eles (BAUMAN, 1999, p. 239).

18 Passagens como a que se segue, traço estilístico do autor que se repete em várias das suas obras:

“o ascensor ia atravessando vagarosamente os pavimentos, mostrando sucessivamente os andares, as galerias, as lojas, as escadarias de aparato, as escadas rolantes, os pontos de encontro, os cafés, os restaurantes, os terraços com mesas e cadeiras, os cinemas e os teatros, as discotecas, uns ecrãs enormes de televisão, infinitas decorações, os jogos electrônicos, os balões, os repuxos e outros efeitos de água, as plataformas, os jardins suspensos, os cartazes, as bandeirolas, os painéis publicitários, os manequins, os gabinetes de provas, uma fachada de igreja, a entrada para a praia, um bingo, um cassino, um campo de ténis, um ginásio, uma montanha-russa, um zoológico, uma posta de automóveis eléctricos, um ciclorama, uma cascata, tudo à espera, tudo em silencio, e mais lojas, e mais galerias, e mais manequins, e mais jardins suspensos, e coisas de que provavelmente ninguém conhece os nomes, como uma ascensão ao paraíso” (SARAMAGO, 2016, p. 277).

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Se o esgotamento das utopias tradicionais na literatura corresponde, no plano

social, sob um primeiro aspecto, ao dilaceramento do humanismo clássico frente à

barbárie plena de cultura que as primeiras décadas do século XX testemunharam:

as guerras, os genocídios, as bombas atômicas, o holocausto; sob um segundo

aspecto, a impossibilidade de uma utopia literária deriva do fato de que as próprias

distopias elaboradas como repostas críticas à barbárie e ao totalitarismo tornaram-

se utopias degeneradas: dispositivos de aprisionamento, controle, padronização e

desinibição desejadas, não mais coercitivamente impostas – “A força, salvo em

casos muito extremos, deixou de ser precisa”, sentencia um dos guardas do Centro

(SARAMAGO, 2016, p. 311). É importante insistir neste ponto, para aclarar a

ambivalência contida no que chamamos aqui de utopias degeneradas. A

despolitização da dissensão política passa, em um primeiro plano, pela

transformação do cidadão em consumidor, em um processo que Bauman (1999)

teorizou inicialmente como a privatização da ambivalência – isto é, a subscrição de

problemas sociais à lógica privada, gerando nos consumidores frustrados culpa,

vergonha e ressentimento, mas não protesto. Num segundo plano, ocorre mais

recentemente a separação entre política – isto é, a capacidade de decidir quais

coisas devem ser feitas – e poder – a capacidade de fazer com que as coisas sejam

feitas –, o que resulta em uma “crise das agências e dos instrumentos de ação

efetiva” (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 74). Neste caso, a contestação social perde

sua força porque um dos seus alvos, o Estado, se evanesce. De qualquer forma, a

consequência sistêmica destes processos é

[...] uma dependência que não precisa nem de uma ditadura baseada na coerção nem de doutrinação ideológica; uma dependência que é sustentada, reproduzida e reforçada essencialmente por métodos de mercado, que é abraçada de boa vontade e não se sente absolutamente como dependência — pode-se mesmo dizer: que se sente como liberdade e um triunfo da autonomia individual. A cobiçada liberdade do consumidor é, afinal, o direito de escolher ‘por vontade própria’ um propósito e um estilo de vida que a mecânica supraindividual do mercado já definiu e determinou para o consumidor. A liberdade do consumidor significa uma orientação da vida para as mercadorias aprovadas pelo mercado, assim impedindo uma liberdade crucial: a de se libertar do mercado, liberdade que significa tudo menos a escolha entre produtos comerciais padronizados. Acima de tudo, a liberdade do consumidor desvia dos assuntos comunitários e da administração da vida coletiva as aspirações da liberdade humana (BAUMAN, 1999, p. 276-277).

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É esta a “estranha utopia” da sociedade de consumidores: privatizada,

desregulamentada, individualizada; que, ao manter os sujeitos em permanente

expectativa de plenitude através do consumo, para invariavelmente frustrar estas

expectativas depois, é uma utopia que não dá sentido à vida, “só ajuda a banir da

nossa cabeça a questão do significado da existência”19 (BAUMAN, 2013b, p. 32). Se

no “totalitarismo sólido” o “indivíduo é invadido, conquistado e humilhado pelo

Estado onipotente”, “expropriado de sua privacidade” em seus aspectos mais

íntimos, o ponto de partida do “totalitarismo líquido” é percebido no ocidente quando

vemos pessoas “obcecadas com a ideia de perderem de livre e espontânea vontade

sua privacidade”, expondo-a, na realidade, com orgulho e prazer (BAUMAN;

DONSKIS; 2014, p. 94-95). Atualmente, não são os as limitações tecnocientíficas

que impedem a instauração de distopias – nesse aspecto, 1984 de Orwell e

Admirável Mundo Novo de Huxley foram suplantados por A possibilidade de uma

ilha, de Houellebecq (BAUMAN, 2009). O big brother orwelliano, do tipo

Bentham/Foucault, ainda existe, sendo inclusive incomensuravelmente ampliado

pelos exércitos dos drones, pelo oceano de informação dos metadados e pela

consolidação de uma “sociedade confessional” (BAUMAN, 2015), no interior da qual

a autoexposição pública é condição de existência social. A este respeito, Donskis

(BAUMAN; DONSKIS; 2014) argumenta brevemente em defesa do fenômeno

Facebook como um substituto da esfera pública, e mesmo uma nova esfera pública,

em que se transaciona fragmentos de privacidade em troca de uma luta contra a

indiferença, a não existência e a não presença da pessoa no mundo. Como afirma o

autor, “é um protesto inconsciente e esporádico da multidão virtual e seus

excedentes contra o fato de constituírem não seres” (idem, p. 133); esse protesto,

que me parece de fato inconsciente, traduz-se ainda muito vagamente em novas

formas de resistência ao status quo. Quanto ao debate político neste cenário, temos

19 O filme 28 Days later (2002), de Danny Boyle, sobre um grupo de sobreviventes em meio a uma

Inglaterra pós-apocalíptica, arrasada por uma epidemia de raiva modificada em laboratório que transforma as pessoas em algo próximo a zumbis, oferece uma imagem potente desta estranha utopia da sociedade de consumo. Numa das cenas do longa, o grupo encontra um supermercado desabitado, com todas as suas prateleiras surpreendentemente intactas e recheadas de produtos ainda novos. É a cena mais solar e colorida do filme, em contraste com o tom sombrio do restante das cenas. Em um misto de catarse e êxtase, os sobreviventes finalmente concretizam o sonho de consumir irresponsavelmente, inconsequentemente, quase infinitamente. Enquanto isso, no mundo lá fora, as pessoas comem umas às outras.

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que concordar que ele nada mais é do que “uma simulação da esfera pública,

construída e demolida instantaneamente”, no interior da qual temos

[...] uma realização parcial das sombrias profecias distópicas de Zamyatin, Aldous Huxley e George Orwell – um rápido desaparecimento da esfera privada, embora não num sistema totalitário, mas numa sociedade e numa cultura de massa em que todas as coisas (incluindo as pessoas, suas funções e seus artefatos) são mutuamente substituíveis (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 135).

É, simultaneamente, o desaparecimento da esfera privada, colonizada pela

publicidade, fenômeno antevisto por Jürgen Habermas, e o fim do homem público e

da esfera pública como espaços de execução política distintos do âmbito privado,

tendência observada por Richard Sennett (BAUMAN; DONSKIS; 2014).

Acontece entretanto uma fundamental mudança de perspectiva sobre as

distopias, mediante a qual elas são ressignificadas sob os signos da sedução e da

individualidade exacerbada. Em resumo, na sociedade de consumidores, a

replicação dos padrões de consumo não se dá por mecanismos de coerção externa,

mas "tende a ser percebido, ao contrário, como manifestações de liberdade pessoal"

(BAUMAN, 2009, p. 103). A “servidão voluntária” contemporânea é vendida e

comprada como liberdade transacionada via consumo. Apenas quando alguém opta

por não seguir o caminho oferecido, como no caso de Cipriano Algor, é que se nota

o quanto essa liberdade é limitada, e como são poderosas as agências que

administram os percursos. Neste aspecto, A Caverna se aproxima das reflexões de

Sarlo (2014) e Bauman e Donskis (2014), na medida em que apresenta as utopias

de visibilidade e reconhecimento oferecidas pelo paraíso consumista como utopias

degeneradas, modalidades de vivência e de experimentação do consumo e do

habitar erigidas sob o signo da liberdade, mas na realidade impostas segundo uma

dinâmica excludente: consuma, ou morra.

O interessante neste caso é que a crítica destrutiva de Saramago não elabora

uma contraposição utópica, criativa, verdadeira: não há a oposição idílica

rousseauniana entre cidade e campo; a cidade em verdade não é descrita (talvez

porque sua existência é o próprio Centro), sua periferia é miserável, os Cinturões

Industriais e Agrícolas que separam a cidade do campo são feios e claustrofóbicos,

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a aldeia é tão pobre e destituída de vida quanto o Centro. Apenas o trabalho, e, em

certa medida, as memórias afetivas relacionadas ao seu lócus – como o cão perdido

que surge na olaria já quando o negócio estava esgotando-se, e cuja presença é

previsivelmente proibida aos habitantes do Centro – ainda aparentam alguma aura.

As antinomias evidentes entre o artificial (o plástico, o Centro, a tecnologia) e o

verdadeiro (o barro, a olaria, o trabalho manual) tampouco encontram, na trama,

resolução possível – as pessoas da caverna, afirma Algor ao final do livro, “somos

nós”, “o Centro todo, provavelmente o mundo” (SARAMAGO, 2016, p. 334-335); por

outro lado, “qualquer caminho que se tome vai dar ao Centro”20.

A saída encontrada pela família é o exílio: como refugiados de um processo

que lhes escapa e do qual não participaram na elaboração, apenas nos efeitos, os

Algor juntam seus poucos pertences numa furgoneta e deixam tudo para trás,

inclusive a olaria, rumo a um destino incerto – materializando a observação de

Alberto Melucci (apud BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 54): “não temos mais um lar;

somos sempre compelidos a construir um lar e depois a reconstruí-lo (...) ou temos

que levá-lo conosco sobre as nossas costas”. Como uma espécie de antifuturista,

Saramago permeia de melancolia a narrativa de uma nostalgia sem objeto, pois sem

saída possível, e, no final das contas, a distopia consumista – ou a utopia

degenerada – saramaguiana é tão pessimista quanto as lágrimas de amor torturado

de Winston para o Grande Irmão, ao final de 1984.

20 No que pode ser lido como uma intuição do autor a respeito da abrangência totalizante do Palácio

de Cristal como metáfora da globalização (SLOTERDIJK, 2008), ou, nas palavras de Bauman (2005, p. 88), da “difusão global do modo de vida moderno, que agora atingiu os limites mais longínquos do planeta. Ela eliminou a divisão entre ‘centro’ e ‘periferia’, ou, de maneira mais correta, entre modos de vida ‘modernos’ (ou ‘desenvolvidos’) e ‘pré-modernos’ (ou ‘subdesenvolvidos’ ou ‘atrasados’)”.

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4 CONTRA O PALÁCIO DE CRISTAL

No interior da grande cidade de todos está a cidade pequena em que realmente vivemos. Habitamos fisicamente um espaço,

mas, sentimentalmente, habitamos uma memória.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote

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4 CONTRA O PALÁCIO DE CRISTAL

A “mesmitude” perpétua de um momento de alegria, indica Bauman (2009, p.

43) em referência ao Fausto de Christopher Marlowe, “é uma forma segura de obter

um compromisso por prazo indeterminado com o inferno em vez da felicidade”. A

sentença pode ser lida aqui como uma lembrança de que muitas vezes o outopos é

também achronos – sendo que, embora a perspectiva de um lugar alhures, um

além-lugar onde as mazelas do lugar onde estamos não existem pode ser ainda

uma ideia promissora, a noção que a acompanha, de um lugar sem tempo, sem

transformação e sem devir dificilmente atende aos padrões de existência, segundo

qualquer critério razoável, que levem a uma felicidade genuína. Os projetos utópicos

que se multiplicaram na idade moderna retrataram via de regra sociedades

higienizadas, purificadas das incertezas e das ambiguidades; em seu lugar, a

permanência, a estabilidade, o mais do mesmo para sempre: essa é a cidade ideal,

em More, Bacon ou Fourier:

Dentro das cidades utópicas (virtualmente todas as utopias eram urbanas), as posições eram muitas e diversas – mas cada morador estava seguro e protegido na posição em que fora alocado. Mais que qualquer outra coisa, os projetos utópicos visualizavam o fim da incerteza: a saber, um ambiente social totalmente previsível, livre de surpresas e que não exigia novas reformas e remodelagens (BAUMAN, 2009, p. 64).

A natureza administrada, controlada, não aleatória, à prova de acidentes. A

visão certamente era atraente para uma nascente – e, ainda que não o soubesse no

início, ontologicamente ebulitiva – sociedade que urgia por pacificação e estabilidade

depois das guerras religiosas dos séculos XVI e XVII. Lembrando a análise de

Walter Benjamin acerca da representação Angelus Novus, de Paul Klee, os

modernos do séc. XIX não eram propriamente inclinados ao futuro, mas empurrados

até ele, onde esperavam encontrar, em êxtase, o fim dos tormentos. Sendo

moderna, a utopia carregava ainda o paradoxo lastro de uma restauração edênica,

de uma aspiração por uma cosmogonia racionalizada que pusesse ordem ao caos, e

em definitivo, à força de carvão, aço e sangue. Evidentemente, a Grande Guerra e

os excessos que se seguiram demonstraram que os “resultados da administração

humana são exatamente tão caprichosos, imprevisíveis, cegos, impensados e

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indiferentes às virtudes e vícios humanos” (BAUMAN, 2009, p. 74) quanto a própria

natureza. Mais central talvez é perceber que esse horizonte sombrio que se

configurou depois de séculos de esperança embevecidos pelo autoconfiante cogito

iluminista revela na utopia, tal como formulada pelos modernos, uma espécie de

vício de origem.

Pois se Mannheim apontava que as ideologias são conservadoras, em

contraste com as utopias (idem), um passar de olhos pelos modelos de cidade ideal

modernas revela que as utopias eram, até certo ponto, realidades parciais que

tendiam, na mesma medida, senão para a restauração, certamente para o

conservadorismo. As cidades ideais vislumbradas pelos primeiros utopistas surgiam

em oposição à sociedade que estava dada, mas todas realizavam simultaneamente

um elogio do status quo petrificado quando da sua própria instauração imaginária.

As utopias falharam em captar a impermanência essencial das sociedades

modernas.

O filósofo romeno Emil Cioran escreveu uma das mais pungentes críticas às

utopias modernas em História e Utopia – é baseando-se principalmente nas

observações do autor que esta seção é elaborada. Cioran é um verdadeiro

antitutopista, para quem a história humana nada mais é do que uma sucessão de

desastres que conduzirão a uma catástrofe final; é em virtude da radicalidade da sua

crítica que seu pensamento é útil, em um primeiro momento, para o

redimensionamento da utopia que se pretende realizar aqui. A utopia, para o autor, é

O grotesco cor-de-rosa, a necessidade de associar a felicidade, logo o inverossímil, ao devir, e de levar uma visão otimista, aérea, até o limite em que se una ao seu ponto de partida: o cinismo que pretendia combater. Em suma, um conto de fadas monstruoso (CIORAN, 2011, p. 40).

Para além de um discurso que às vezes soa como ressentimento raso e que

em outros momentos beira ao derrotismo, a força da crítica de Cioran reside na sua

percepção de que, em todas as utopias, o mal inexiste, reina a glorificação rasteira

ao trabalho e a morte é anulada como preocupação humana. Esta felicidade, feita de

“idílios geométricos, êxtases regulamentados” (CIORAN, 2011, p. 92), nada mais é

do que um circo de maravilhas fabricado, cuja perfeição se associa, em grande

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medida, ao expurgo de faculdades humanas fundamentais. O tipo de sociedade que

a utopia imagina, desde More até os socialistas utópicos, confunde tara por

perfeição, e quimeras por desgraças.21 Falta aos escritos utópicos a perspicácia

psicológica que garante a diversidade dos personagens, os quais, aprisionados em

cidades ideais, se tornam autômatos ou símbolos de uma ideia: a ideia cuja

expressão máxima pretende ser a própria utopia. Em Fourier, ao se atingir “o estado

associado” dos Falanstérios, as crianças seriam tão puras que perderiam inclusive a

tentação de roubar. No entanto, se pergunta Cioran, qual o sentido de construir uma

sociedade de marionetes, onde a própria tentação, anterior mesma ao ato, inexiste?

O utopista se revela assim como um moralista, que, como que fulminado pelo Bem,

só vê no humano uma máquina possível de ser articulada como algo desprovido de

pecados e vícios, “sem espessura nem contornos” (idem, p. 94). A utopia é, enfim, o

triunfo da razão total:

Para melhor apreender a própria derrota, ou a do próximo, é preciso passar pelo mal e, se necessário, mergulhar nele: como consegui-lo nessas cidades e nessas ilhas de onde o mal está excluído por princípio e por razão do Estado? Aí as trevas estão proibidas, só a luz é admitida. Nenhum vestígio de dualismo: a utopia é, por essência, antimaniqueísta. Hostil à anomalia, ao disforme, ao irregular, tende para o fortalecimento do homogêneo, do modelo, da repetição e da ortodoxia. Mas a vida é ruptura, heresia, abolição das normas da matéria. E o homem, em relação à vida, é heresia em segundo grau, vitória do individual, do capricho, aparição aberrante, animal cismático que a sociedade – soma de monstros adormecidos – pretende reconduzir ao caminho reto. Herético por excelência, o monstro desperto, solidão encarnada, infração da ordem universal, se compraz em sua excepcionalidade, isola-se em seus privilégios onerosos, e é sendo duração que paga o que ganha sobre seus ‘semelhantes’: quanto mais se distingue deles, mais frágil e perigoso será, pois é à custa de sua longevidade que perturba a paz dos outros e que cria para si, no seio da cidade, um estatuto de indesejável (CIORAN, 2011, p. 95).

Note-se que aqui Cioran não faz uma apologia do Mal; declara apenas – e

isto aliás sendo-se fiel à tradição de imoralistas como Nietzsche, uma das fontes do

21 Para ficar em um exemplo, a passagem de Étienne Cabet, socialista utópico, basta para ilustrar

essa ideia: “duas mil e quinhentas jovens (modistas) trabalham em um ateliê, umas sentadas, outras em pé, quase todas encantadoras... o hábito que cada artífice de fazer a mesma coisa duplica a rapidez do trabalho, acrescentando-lhe também perfeição. Os mais elegantes enfeites de cabeça nascem aos milhares, cada manhã, das mãos de suas belas criadoras” (CIORAN, 2011, p. 93-94).

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filósofo romeno – que não há como eliminar o Mal por decreto22. E é neste trecho

também que Cioran toca num dos pontos principais da crítica que deve ser

elaborada ao triunfo da razão sinalizado pelo Palácio de Cristal, rejeitado por

Dostoiévski em Memórias do subsolo. A utopia, ao abolir o irracional e o irreparável,

se opõe à contingência, à tragédia, paroxismos da história. Pretende-se com a

utopia o realizar o projeto de “desfatalizar” o mundo e instituir uma cosmogonia

historicamente estruturada. Como os retratos edênicos, do próprio Gênese ou das

descrições de Hesíodo da Idade de Ouro, as utopias definem um mundo estático,

“onde a identidade não cessa de contemplar a si mesma” e no interior do qual um

presente eterno, “tempo forjado por oposição à própria ideia de tempo”, evoca um

verdadeiro pânico pela desordem (CIORAN, 2011, p. 108). Uma cidade sem

conflitos é também uma cidade sem vontades, portanto sem devir e transformação,

sem acaso e contradição. A utopia, assevera Cioran, torna-se assim uma mistura de

“racionalismo pueril e de angelismo secularizado” (idem, p. 96). Na cidade ideal,

nossos atos são catalogados, planejados e regulamentados; “por uma caridade

levada até a indecência” (idem, p. 99), nossos pensamentos mais íntimos devem

fundir-se num todo uniforme.

Também como todo produto moderno, as utopias são elegias ao trabalho e

demarcam a obsessão pela produtividade que foi característica da modernidade

sólida. É importante a lembrança de que, logo no princípio da descrição da ilha de

Utopia, Thomas More afirma com naturalidade que cada família agrícola era formada

por pelo menos quarenta indivíduos, entre homens e mulheres, e de dois escravos –

há na realidade uma seção inteira do texto denominado “Dos escravos” (MORE,

1997). Sob qualquer prisma que se observe contemporaneamente, as utopias, que

em seu primórdio eram libelos contra a Idade Média e exercícios de fabulação proto-

moderna, como em More e Campanella, andam hoje par a par com nossos temores:

“assistimos uma contaminação da utopia pelo apocalipse: a ‘nova terra’ que nos

anunciam adquire cada vez mais a figura de um novo inferno” (CIORAN, 2011, p.

107).

22 “Queres construir uma sociedade em que os homens não se prejudiquem mais uns aos outros?”,

interroga Cioran; “Faz participar dela só os abúlicos” (CIORAN, 2011, p. 117).

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Cioran, assim como Heidegger, passou por um período de simpatia pelo

nazismo. Engajou-se na juventude fascista romena, para depois rejeitar as ideias

que defendia. Talvez ele visse ali um sentimento de propósito e direção que não se

encontrava no mundo moderno permanentemente em estado de crise. Precisamente

por isso, suas reflexões posteriores demonstram o terror das utopias. Cioran viu a

utopia às claras, foi mesmo seduzido por ela, para então denunciar-lhe sua

deformidade. As conclusões do autor romeno a esse respeito, são, e não poderiam

deixar de ser, bastante pessimistas. Conciliar o eterno presente das utopias e a

história, “as delícias da idade de ouro e as ambições prometeicas” é tarefa para a

massa, que não compreende que estamos apegados a este tempo e que afastarmo-

nos verdadeiramente dele implica numa “rachadura no eu”, “graça concedida apenas

a alguns condenados como recompensa ao fato de haver consentido em sua própria

ruína” (CIORAN, 2011, p. 113):

Os modernos, incapazes de descobri-lo no fundo de sua natureza, demasiado apressados para conseguir extraí-lo dela, projetaram o paraíso no futuro, e constitui um resumo de todas as suas ilusões a epígrafe do jornal saint-simoniano, O produtor: ‘A idade de ouro, que uma cega tradição situou no passado, está diante de nós’ por isso é importante apressar seu advento, instaurá-lo para a eternidade, segundo uma escatologia que surge, não da ansiedade, mas da exaltação e da euforia, de uma avidez de felicidade suspeita e quase mórbida (CIORAN, 2011, p. 115).

Nas utopias, a “questão social” é resolvida em definitivo: o resto é imobilidade.

E esse paraíso não tardaria: o próprio Fourier acreditava, em meados do século XIX,

que a organização de um Estado societário não exigiria mais que dois anos. No

entanto, “o homem”, e pode-se acrescentar, o homem moderno, “ama a tensão, o

perpétuo avanço: para onde iria no interior da perfeição?” (CIORAN, 2011, p. 118).

É também contra essa tirania da razão que se insurge o personagem de

Memórias do subsolo, de Fiódor Dostoiévski. Personagem que, se não defende

abertamente o caos, não hesita em abraçá-lo; ele que se rebela contra o “dois mais

dois são quatro”, contra a ideia de que, uma vez descobertas as leis que governam

as ações humanas, restará demonstrado que o homem, na realidade, “não tem

vontade nem caprichos, nunca os teve, e que ele próprio não passa de uma tecla de

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piano” (DOSTOIÉVSKI, 2000, P. 37); e que, diante do Palácio de Cristal, réplica ou

extensão do falanstério, proclama: “tenho meu subsolo”:

Então – sois vós que dizeis ainda – surgirão novas relações econômicas, plenamente acabadas e também calculadas com precisão matemática, de modo que desaparecerá num ímpeto toda espécie de perguntas, precisamente porque haverá para elas toda espécie de respostas. Erguer-se-á então um Palácio de Cristal. [...] Então... bem, em suma, há de chegar o Reino da Abundância [...]. Naturalmente, não se pode, de modo algum, garantir (desta vez, sou eu que o digo) que então tudo não seja terrivelmente enfadonho (com efeito, que se há de fazer quando tudo estiver calculado numa tabela?) (DOSTOIÉVSKI, 200, p. 38).

“Apesar de tudo”, proclama o habitante do subsolo, não se deve admitir

saciedade quando ainda se tem fome; “apesar de tudo, sei que não me satisfarei

com uma solução de compromisso com um zero periódico, incessante, apenas

porque ele existe segundo as leis da natureza, e porque existe realmente” (idem, p.

49). Dostoiévski identifica no Palácio de Cristal, o edifício da Exposição Mundial de

1851, em Londres, uma imagem que simbolizava a elegia da modernidade em aço e

vidro e parte da essência mesma da civilização ocidental, reconhecendo na

“monstruosa” construção, de acordo com Sloterdijk (2008, p. 22),

[...] uma estrutura devoradora de homens, e inclusive um moderno Baal – um contendor de culto, em que os seres humanos veneram os demónios do Ocidente: o poder do dinheiro, do puro movimento e dos prazeres excitantes-anestesiantes.

O culto frenético e jubiloso de Baal, nomeado no século XX como

consumismo, é a veneração da turbulência hedonista e do “puro movimento”. No

entanto, é no interior deste edifício que se presta ao movimento que ocorre a

“cristalização”, isto é, o “projecto de generalizar normativamente o tédio e proibir que

a ‘história’ faça de novo irrupção no mundo pós-histórico. Encorajar e proteger a

imobilidade benigna é agora o objetivo de todo o poder do Estado” (SLOTERDIJK,

2008, p. 186). São palavras que encontram eco em Cioran, para quem, aquele que

“roçou o inferno, a desgraça planificada, reencontrará sua terrível simetria na cidade

ideal, lugar de felicidade para todos, e que se torna repugnante para quem muito

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sofreu” (CIORAN, 2011, p. 120). É contra essa cidade ideal que expurga do humano

a vontade, a singularidade e o devir que Dostoiévski mostrou-se hostil até a

intolerância. Que prazer se pode extrair em desejar segundo uma tabela? Onde e

como se concluiu, indaga Dostoiévski, que o homem precisa de uma “vontade

sensata, normal, virtuosa? O homem precisa unicamente de uma vontade

independente, custe o que custar essa independência e leve onde levar”

(DOSTOIÉVSKI, 2000, P. 39). A dúvida, o sofrimento e a negação não têm lugar no

Palácio de Cristal, indestrutível ao longo dos séculos e imune à galhofa. Sob esse

aspecto, tomando o Palácio de Cristal como símbolo da utopia moderna e protótipo

do Centro em A Caverna, a utopia, como tantos outros projetos da modernidade,

prostra-se vítima dos seus próprios excessos. Procurando mitigar a contingência –

eliminá-la, se possível –, produz o terror da iluminação total, do que pode-se indagar

se não haveria, portanto, um componente distópico na realização de toda utopia. A

utopia persiste hoje como horizonte difícil de ser preenchido, pois contaminado com

os signos que lhe compuseram. Nas palavras de Bauman (1999, p. 247):

Hoje somos infelizes porque nos deixaram o velho vocábulo mas perdemos a esperança que o enchia de vida. O farfalhar de palavras secas, sem seiva, nos recorda incessantemente e de forma intrusiva o vazio que está hoje onde antes estava a esperança.

Talvez o maior desafio de nossa época seja a criação de utopias: a

encarnação do conceito para evitar que ele se torne um zumbi, uma palavra seca. A

crítica à utopia não se realiza como crítica à razão, mas ao seu fetiche, que bloqueia

as demais potências inerentes ao estar-no-mundo humano. Em A Caverna,

Saramago realiza um movimento que vai da sensibilidade para a elaboração

racional, do sonho para a efetivação, em um processo de continuidade, e não

ruptura, pois “o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente

revelar o oculto”. É uma mediação que procura unir o homem cindido da

modernidade. O cérebro, este outro órgão que transportamos e que nos transporta,

“nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas, e sobretudo

pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer” (SARAMAGO,

2016, p. 82):

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Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. [...] Graças à inconsciente segurança com que a duração da vida acabou por dotá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chama elementares e complementárias, mas imediatamente se perde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando e que provavelmente nunca chegará a receber o seu justo nome. Ou talvez já o tenha, mas esse só as mãos o conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a praia é branca, ou amarela, ou dourada, ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha, como se estivessem a ceifar uma seara, levantam do chão todas as cores que há no mundo. O que parecia único era plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais (SARAMAGO, 2016, p. 83-84).

Utopias e distopias são produtos da imaginação moderna, teleológica,

progressista e – por vezes pervertidamente – iluminista. Ambas imaginam um tempo

imune ao devir, um lugar isento de contradições e fissuras. As utopias modernas se

fecham à mudança, e esboçam cidades 23 tão inanimadas quanto o Centro do

romance de Saramago. Tanto as distopias quanto as utopias apresentam um destino

pré-traçado do que imaginam ser os desenvolvimentos históricos em curso; elas

dispõem uma cidade ao “final da estrada”, seja como espaço harmonioso e extático,

ou infernal e evitável. Nessa figuração, utopias e distopias não apenas pretendem

que exista uma linha de chegada na pista da história, mas também alimentam a

noção de que esta linha pode ser projetada ou prevista de antemão (BAUMAN,

2009). É este simulacro de “fim da história”, defende Bauman (idem, p. 131), que faz

com que estes “dois produtos mentais gerados pela mente moderna sejam

23 Bauman (2009) faz a feliz observação de que todas as utopias são urbanas.

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elencados na desfavorável companhia de castelos de vento”, ilusões, sonhos ou

pesadelos que não encontrarão jamais conformação na realidade.

O que esse projeto falha em capturar é a imprevisibilidade, a indeterminação,

a contingência que estão atreladas inevitavelmente à escolha e ao livre-arbítrio

humano. Ainda que procurem cristalizar uma sociedade perfeita, é nesse esforço

mesmo estacionário que as utopias modernas encontram sua maior limitação, uma

vez que sociedade alguma é impermeável às mudanças. Não há uma “linha de

chegada” na história. Se a utopia é estase, padronização e morte do devir, ela é tão

pavorosa quanto as distopias e os exageros da razão instrumental que as

produziram. Neste sentido específico, toda utopia é degenerada: a conclusão lógica

das utopias positivistas, progressistas e acrônicas do século XIX são as distopias, e

devemos assumir que chegou o momento de não mais sonhar com as utopias

modernas, mas de “salvar a humanidade da sua realização” (BAUMAN; DONSKIS;

2014, p. 233). A constatação pode levar à conclusão de que devemos abandonar as

utopias, ou, pelo contrário, resgatar as outras potências que lhe são imanentes, a

construção de possíveis que o conceito de utopia ainda pode despertar

contemporaneamente.

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5 A CAVERNA – UTOPIAS REGENERADAS

Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá um sentido a esse silêncio.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote

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5 A CAVERNA – UTOPIAS REGENERADAS

A utopia é um projeto fundamentalmente moderno 24 . Toda utopia é

confirmação e autoafirmação da modernidade, construindo um itinerário de natureza

domada25, isto é, ordenada, projetada, harmonizada através do progresso. Também

por isso toda utopia é urbana. É na cidade que o mundo moderno nasce e se projeta

para o futuro. Algumas das principais obras de José Saramago, dentre as quais

incluímos aqui A Caverna, tomam o urbano como espaço privilegiado de ação. É

também a cidade como “um modo de viver e de pensar, algo em que se expressam

história, arquitetura, música, artes plásticas, poder, memória, encontros de pessoas

e ideais” (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 80) que permeia muitas das últimas obras

de Zygmunt Bauman.

Central na apreensão da categoria da utopia é a questão da ordem. Thomas

More, declara que, na ilha de Utopia, “quem conhece uma cidade, conhece todas,

porque todas são exatamente semelhantes, tanto quanto a natureza do lugar o

permita” (MORE, 1997, p. 61). A Cidade do Sol de Tommaso Campanella é

rigorosamente dividida em sete círculos concêntricos, em referências aos planetas,

cada círculo comunicando-se aos adjacentes por caminhos que indicam os quatro

pontos cardeais (BRUNO; CAMPANELLA; GALILEI; 1983). Na Nova Atlântida de

Francis Bacon a ordenação do espaço é mediada pela ciência, com casas de

matemática, casas do som, casas de perspectiva para investigação das luzes e

radiação (BACON, 1997). A utopia oferece, ou pelo menos promete, a liberdade

através do controle, a realização mediante o projeto. Segundo Bauman (1999, p.

15):

24 A história das utopias “está intimamente relacionada com o surgimento do que se chamou de era

moderna”, “muito embora o sonho humano de um mundo sem sofrimento e perfeitamente organizado possa ser considerado como um dado antropológico, presente em todas as épocas e culturas, e é o que se apresenta, veementemente, por exemplo, na República de Platão, na Antiguidade grega, ou na Cidade de Deus, de Santo Agostinho, na antiga Roma recém convertida ao cristianismo” (ALBORNOZ, 2003, p. 1).

25 Durante a modernidade, a natureza torna-se sinônimo de “existência pura, livre de intervenção”,

“não ordenada”: “algo singularmente inadequado para a vida humana, algo em que não se deve confiar e que não deve ser deixado por sua própria conta — algo a ser dominado, subordinado, remodelado de forma a se reajustar às necessidades humanas. Algo a ser reprimido, refreado e contido, a resgatar do estado informe e a dar forma através do esforço e à força” (BAUMAN, 1999, p. 15).

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Podemos dizer que a existência é moderna na medida em que é produzida e sustentada pelo projeto, manipulação, administração, planejamento A existência é moderna na medida em que é administrada por agentes capazes (isto é, que possuem conhecimento, habilidade e tecnologia) e soberanos. Os agentes são soberanos na medida em que reivindicam e defendem com sucesso o direito de gerenciar e administrar a existência: o direito de definir a ordem e, por conseguinte, pôr de lado o caos como refugo que escapa à definição.

Os autores das maiores distopias do século XX, como Huxley, Zamyatin e

Orwell, “registraram suas visões dos horrores que assombravam os habitantes do

mundo sólido moderno: um mundo de produtores e soldados estritamente regulados

e maníacos pela ordem” (BAUMAN; DONSKIS; 2014 p. 61-62), hipotecando, assim,

o futuro a uma ordem que ainda haveria por ser estabelecida.

Ao mesmo tempo, porém, se há uma ontologia da modernidade ela está em

projetar-se sempre adiante: “O permanente revolucionamento da produção, o

ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos”

ainda distinguem essa época de todas as outras (MARX, 1987, p. 37). A

modernidade é uma obsessiva marcha adiante, um estado de perpétua emergência,

como a caracterizou Bauman (2005). Neste sentido, é obcecada pelo progresso –

isso que é, segundo Walter Benjamin, na já clássica análise do quadro Angelus

Novus, de Paul Klee, uma tormenta que nos empurra para frente antes que dê

tempo para dimensionar os estragos que causou, e cujos destroços se amontoam

aos nossos pés e capturam nosso olhar. A modernidade ordena desqualificando o

anteriormente realizado – a consciência é moderna na medida em que revela

“sempre novas camadas de caos soba a tampa da ordem assistida pelo poder”; “a

consciência moderna critica, adverte e alerta” (BAUMAN, 1999, p. 16). Há um

componente de caos na ordem moderna: o caos é o outro da ordem moderna, e o

Estado e seu intelecto precisam dele, “quando nada para continuar criando ordem”

(idem, p. 16). Assim como ordem e caos são faces de uma mesma moeda

ambivalente da modernidade, utopias e distopias partilham coordenadas

semelhantes de obsessão pelo progresso e ordenamento milimétrico da natureza.

Cabe iniciar enfatizando que é possível argumentar que a distopia não é o

inverso da utopia. Se há um oposto “puro” à utopia, é a empiria, é a realidade

simplesmente (caso em que a realidade da globalização é anti-utópica, pois ela

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esgotou, através da ampliação do Palácio de Cristal, as possibilidades de que exista

alguma terra radicalmente diferente da nossa, para a qual se possa fugir e encontrar

felicidade). A distopia funciona mais como que a potência negativa do que há no

utópico: ela mobiliza um conjunto de signos associados a uma “vida aterrorizante”

(ou uma “cidade aterrorizante”, uma organização verdadeiramente catastrófica para

os propósitos de realização pessoal daqueles que nela vivem), onde a utopia

concerta elementos para a construção de uma “vida ideal” (ou uma “cidade ideal”). 26

Existe talvez uma relação aqui entre a incerteza generalizada instituída pela

sociedade líquido-moderna, bem como pela sua desconfiança face à perenidade de

qualquer projeto, e parte da produção cinematográfica atual. A utopia de certa forma

saiu de moda, e é muito mais comum imaginar sociedades distópicas – contrariando

a prefiguração de Emil Cioran (2013), que imaginava estarem as utopias mais de

acordo com nossos impulsos profundos, tendo por isso dado origem a uma arte mais

abundante. Mais frequente ainda, contudo, é a representação pura e simples do fim

do mundo. Uma das primeiras manifestações de um apocalipse humanamente

gestado foi o cortante The Day After, produção norte-americana de 1983 dirigida por

Nicholas Meyer, onde se retratava as consequências locais, em uma cidade do

interior estadunidense, de um aftermath nuclear em escala global. Desde então, e

agora talvez como reflexo da desconfiança generalizada na política (decorrente da

sua separação das esferas de poder real, agora concentradas no mercado) como

mecanismo de transformação social, o cinema está cada vez mais obcecado com o

tema e suas variações “sem-rosto” – zumbis, catástrofes ambientais, invasões

alienígenas –, e os consumidores igualmente ávidos por projeções do tipo. Os

sujeitos que se movem nesse mise-en-scène – vide, digamos, o fenômeno The

Walking Dead, série inspirada em uma graphic novel do mesmo nome, sobre um

grupo de sujeitos tentando sobreviver em um mundo tomado por zumbis que

insistem em não morrer e comer a carne daqueles que ainda estão vivos – desejam

26 Brasília, pináculo do utopismo malfadado de uma metacidade (a cidade que pretende irradiar, a

partir do seu centro e da sua centralidade, as coordenadas de orientação política para todas as demais; cidade-estado, distrito federal) sem espaços públicos, é ilustrativa desta ideia, como aliás chegou a observar Marshall Berman, para quem a capital seria “antidemocrática” e necessitava de humanização (GALBINSKI, 2013). Por sua vez, Jan Gehl, que cunhou a expressão “Síndrome de Brasília”, observou que “Vista do ar, Brasília é uma bela composição [...] No entanto, quando vista ao nível dos olhos a cidade é uma catástrofe” (apud GALBINSKI, 2013). Curiosamente, o shopping inverte essa perspectiva: é uma composição uniforme, fabril e homogênea vista de cima; ao nível horizontal, dos olhos e das atrações, dos produtos dispostos para consumo, é uma bela composição.

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um expurgo, não uma transformação. A série é apropriadamente nomeada, aliás,

pois o nome zumbi nunca é evocado, seja na TV ou nos quadrinhos, pois não se

trata de uma nova categoria de sujeitos (os walkers não são um Outro), mas de uma

espécie de nós-mesmos que não deveria existir, como um morto que anda ou um

faminto voraz, tal qual o Artista da Fome de Kafka, que jejua porque nunca

encontrou o alimento que o agrade: ele não é um asceta, mas um voraz insaciável.

A série também não é propriamente sobre os zumbis, mas sobre o efeito da sua

sombra sobre as relações humanas que persistem: os mortos vivos são como os

refugiados contemporâneos, porém com letalidade comprovada. A redenção aqui é

um tanto antiquada, e a salvação, dado o contexto, é no mínimo uma farsa. Se a

irrupção mortos-vivos no mundo normal é sempre uma chance para o

desenvolvimento da crítica social, como George Romero o fez em relação à

paranoia comunista nos anos 1970, os personagens de The Walking Dead

reafirmam o fracasso do nosso pacto social e nosso fetiche fascista por uma

restauração ex-politikon, no interior da qual, despidos de quaisquer

constrangimentos, resolveremos finalmente as questões sociais através da força

bruta. Isso, claro, diz muito sobre o que pensamos da política atualmente. Se utopias

e distopias são projetos de conformação da ordem, é de se supor que abandonamos

qualquer tentativa, aterrorizante ou romântica, de instaurá-la.

Provavelmente ninguém melhor do que o filósofo alemão Ernst Bloch atingiu

maior êxito em revigorar a noção de utopia, retirando-a do espectro estático e

conservador das ilhas idílicas imaginadas na modernidade. Bloch desenvolveu um

amplo sistema filosófico que articula ontologia, antropologia, cosmologia e ética. Não

é a intenção deste trabalho dar conta desta produção, ou das críticas que lhe podem

ser feitas em face das mudanças da contemporaneidade, como a associação de

utopia concreta com a revolução proletária e a problemática existente entre a

necessidade de fazer dialogar o materialismo dialético marxista com categorias

“superestruturais”, como a esperança e os afetos. Em linhas bastante gerais,

procurarei encontrar na noção de utopia desenvolvida por Bloch os elementos que

nos permitam escapar de uma ética da resignação diante da realidade líquido-

moderna retratada parcialmente na obra de José Saramago.

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Nesse sentido, Bloch27 parte da ideia de que o homem é um animal que

sonha e que tem fome, isto é, anseia por algo que não o “agora” incompleto. Se a

busca por felicidade é o que define o ser humano e o impulsiona adiante, essa

busca é assumida, em Bloch, como intermitente: a felicidade, tal como a infelicidade,

são contingentes. A felicidade é o encontro do ser possível com aquilo que ele ainda

não é hoje – e uma vez realizada, logo dá lugar a nova incompletude, a uma nova

busca por felicidade (ALBORNOZ, 1985). O real é sempre incompleto; a felicidade

não é estado, mas processo.

Sendo um animal que sonha, o homem é o único que consegue, através do

sonho lúcido, daquilo que o autor denomina sonhos diurnos (em oposição aos

sonhos noturnos, que expressam objetivos inalcançáveis ou manifestações do

inconsciente), transpor a realidade imediata (BLOCH, 2005). Os sonhos diurnos não

são meras fabulações, mas uma estratégica cognitiva que permite destacar-se do

presente, interditando-o, para esboçar imaginariamente uma outra realidade. De

forma semelhante, o homem não apenas tem fome, mas tem consciência desta

fome e dos meios que lhe são possíveis arquitetar para saná-la: o ser humano não

se esgota na carência, mas é atravessado por ela e por ela levado mais uma vez

adiante. Nesse caso, o ser humano é, por definição, um ser expectante, um ser

inacabado, sempre voltado para um “ainda-não”.

Mediado pela expectativa, o homem é constantemente obrigado a sair de si

mesmo à procura do que não encontra na realidade imediata: entra em ação o

dispositivo do imaginário, o qual, tal como os sonhos diurnos, não se presta apenas

à negação da realidade, mas à prospecção e exploração das possibilidades que o

real possui encarnadas como virtualidades (ALBORNOZ, 1985). A estas tendências

ocultas no real, acessíveis a qualquer ser humano – mobilizado como é por afetos

expectantes que são arranjados pelo imaginário e orientados para o futuro – Bloch

dá o nome de utopia. A tudo aquilo que é atividade do afeto exptectante, consciência

antecipadora e intuição da esperança, Bloch nomeia como função utópica (BLOCH,

1996). É nesse sentido que a arte possui uma função utópica inerente: a “pré-

27 São utilizadas aqui reflexões extraídas dos livros de Ernst Bloch O princípio esperança – Vol. I

(2005), The spirit of utopia (2000) e The utopian function of art and literature: selected essays (1996), além do trabalho de Suzana Guerra Albornoz, Ética e utopia: ensaios sobre Ernst Bloch (1985).

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aparência” que a arte mostra é como que um laboratório em que “processos, figuras

e caracteres são levados até sua finalização típica e característica”, (BLOCH, 2005,

p. 25) colocando-se assim acima da realidade já existente. A arte, ao caminhar na

direção do não-acontecido, é sempre uma exploração dos possíveis.

A consciência utópica é como um telescópio potente que atravessa a

proximidade mais imediata e penetra no devir que “está à deriva e oculto de si

mesmo” (idem, p. 23). É por não estarmos ainda a par de si mesmos e no domínio

de si mesmos que somos compelidos a mudar. A função utópica primordial é

demonstrar que o real não se exaure no imediato, que o real é mais e maior do que

o presente, que existem possibilidades concretas incutidas no real que permitem sua

transcendência. A utopia nessa perspectiva não é um instrumento analítico ou uma

fabulação política, mas um instrumento prospectivo, que permite visualizar no real

suas possibilidades de transformação (ALBORNOZ, 1985).

A esperança, como princípio que rege toda consciência antecipadora,

portanto todo pensamento utópico, não é apenas afeto mas conhecimento daquilo

que ainda não-veio-a-ser, formando imagens desenhadas a partir das tendências e

latências inscritas no presente: “um conhecimento aberto para o devir futuro; uma

presciência com base no ainda não realizado mas possível, que aparece justamente

assim, sob forma de expectativa madura e consciente: como esperança”

(ALBORNOZ, 1985, p.61). Sob este aspecto, esperança não é mero “pensamento

positivo”, mas gnose que percebe o real como inacabado e o ser humano como

animal que não se basta. Similarmente, a utopia não é cidade imaginária ou

pensamento delirante, mas a mobilização de uma consciência antecipatória que

parte do real para superá-lo: a própria inconclusividade do mundo requer a utopia,

pois realidade histórica jamais é estase. Não obstante, a categoria do utópico possui

sempre o sentido de “ultrapassar o curso natural dos acontecimentos”, por isso

estimula o engajamento, a subversão e a resistência (BLOCH, 2005, p. 22). O

sujeito, em síntese, “não é o molusco colado à pedra que precisa esperar por aquilo

que o acaso irá lhe levar: ele ultrapassa a realidade dada, tanto nas ações como ao

sonhar” (idem p. 43).

Alguns pontos da esquemática apresentação realizada em torno do conceito

de utopia em Bloch são úteis para a reflexão desenvolvida neste trabalho. Em

primeiro lugar, o conceito de utopia em Bloch não corresponde mais ao “lugar

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78

nenhum” isolado, insular, de montanhas quase inacessíveis como em More e

Campanella. No dizer de Suzana Guerra Albornoz (1985, p. 11), na acepção que

Ernst Bloch dá à palavra, a utopia é algo com que se convive diariamente, não

apenas nas lutas políticas, mas em qualquer esforço criativo de que faça parte a

consciência antecipadora, porque na utopia

[...] aparecem a imaginação antecipadora dos homens e sua esperança correspondente, como forças concretas imbricadas no real, que aliam um sentido de prospecção histórica, de previsão do futuro, com o de direção e determinação dos rumos da história, pela descoberta e exploração das possibilidades do presente.

Em segundo lugar, Bloch incorpora à noção de utopia a questão do devir e,

portanto, da contingência. Se posiciona, desta forma, contra as esperanças

inautênticas e fraudulentas do utopismo primário, que se consola com sonhos

ingênuos de que

[...] o futuro seria o letreiro luminoso do bar noturno anunciando a ausência de futuro e que o destino do ser humano seria o nada. Agora, pois, que os mortos enterrem seus mortos: o dia que está começando, mesmo na protelação que lhe inflige a noite que se prolonga além da conta, dá ouvidos a outras coisas além do replicar fúnebre mormacento e putrefato, niilista e vão. Enquanto o ser humano se encontrar em maus lençóis, a sua existência tanto privada quanto pública será perpassada por sonhos diurnos, por sonhos de uma vida melhor que a que lhe coube até aquele momento (BLOCH, 2005 p. 15).

O utopismo que proclama o fim da história é substituído por uma permanente

e interminável busca por felicidade, movido por um ainda-não sempre em movimento

– a utopia de Bloch remete à fala de Agnes Heller, para quem talvez devêssemos

tornar nossa contingência em destino (BAUMAN, 1999). Trata-se também de uma

interpretação da utopia como uma interdição do presente. Nesta acepção, a utopia é

o ainda-não presente em toda realidade, pois toda realidade é incompleta.

Em terceiro lugar, a reflexão blochiana é propriamente filosófica, não

empírica. Como consequência, suas premissas decorrem da lógica interna do seu

amplo sistema filosófico, não necessariamente do que acontece no “mundo

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objetivo”. A utopia, afirma Bloch, está justamente onde o meramente factual

desaparece. Neste âmbito, a utopia se abre para o plano subjetivo e para a

construção dos afetos – a própria valoração da esperança enquanto um afeto

expectante, que objetiva a constituição do mundo, é testemunha desta virada

epistemológica. A função externa, cósmica da utopia, é mantida contra miséria, a

morte e o reino vazio da natureza dada. No entanto, é necessário primeiro uma

jornada interna, vertical, para a interpretação de nossos sonhos diurnos,

nomeadamente na direção do encontro-de-si, que serve de preparação do mundo

interior, sem a qual qualquer olhar para fora permanece vazio (BLOCH, 2000, p.03).

Pode-se então aludir a Michel Foucault (2013), para quem as utopias surgem do

próprio corpo, das suas zonas inacessíveis e sonhadoras, para, talvez, retornarem

depois contra ele. O corpo é como o ponto zero do mundo, a partir do qual se

irradiam os possíveis, reais ou utópicos, pois o corpo está “sempre em outro lugar,

ligado aos demais lugares do mundo e estando, simultaneamente, em um lugar

outro que não é o mundo” (idem, p. 14) – é em torno dele que se dispõe as coisas e

se orientam coordenadas:

Não, verdadeiramente não há necessidade da mágica nem do feérico, não há necessidade de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa: para que eu seja utopia, basta que eu seja um corpo. Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, encontravam seu lugar de origem no meu próprio corpo (FOUCAULT, 2013, p.11).

Por último, a utopia se articula em Ernst Bloch a uma incessante capacidade

de criação de possíveis. A arte desempenha aqui papel fundamental, como

expressão mitopoética que jamais transige, porque está sempre além do real. Os

frutos da arte, da ciência e da filosofia, mesmo de uma sociedade burguesa,

demonstram mais do que a falsa consciência de uma sociedade: eles podem ser

destacados desta sociedade, revelando a função utópica do olhar para o futuro

(BLOCH, 1996). Neste âmbito, a utopia se abre também para o plano das lutas

políticas e para a construção de ordens sociais alternativas.

Com Bloch, é possível pensar a noção de utopia como uma interdição do

presente e construção de possíveis. É possível também superar o utopismo das

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cidades e situar a utopia como possibilidade de reanimação de sentidos singulares

que a insatisfação com o estado das coisas cria em sujeitos também singulares. A

utopia como espaço insular, geométrico e ordenado até a neurose cede lugar para

um ímpeto de mudança, para uma fome de futuro. Todo ser humano que sonha,

quando esse sonho é lúcido, está impelido à utopia. “A vida de todos os seres

humanos é perpassada por sonhos diurnos” assegura Bloch; parte desses sonhos é

apenas “uma fuga insossa e até enervante, e até presa para enganadores. Outra

parte, porém, instiga, não permite se conformar com o precário que aí está, não

permite resignação” (BLOCH, 2005, p. 14).

Regenerar a utopia implica em resgatar “o único modo crítico e

autotransgressor de ser e estar no mundo, um modo que consiste num perpétuo

devir e, como Ernst Bloch mostrou, em viver para o futuro” (BAUMAN; DONSKIS;

2014, p. 218). Tomando essas ideias como norte, me proponho a seguir a pensar o

status da utopia hoje a partir de três eixos, cujo núcleo articulador é a obra de José

Saramago, em especial A Caverna. Em um primeiro eixo, procuro explorar a

possibilidade mitopoética (STEINER, 2003) das narrativas elaboradas pelas ciências

humanas, me utilizando da figura de Sísifo de Albert Camus (2004) como um

símbolo para a resistência de Cipriano Algor. Um segundo eixo procura demonstrar

como sobrevivem, nos romances de Saramago, e em especial em A Caverna,

mesmo tendo-se em vista o aparente pessimismo e inconclusividade da obra, as

potências afetivas que dialogam, contrapõem-se e, em último caso, se rebelam

contra as forças que oprimem os personagens. O terceiro eixo articula a noção de

utopia com o esforço de resistência política, o compromisso ético solidário e o

trabalho de criação e autocriação que deve prevalecer, mesmo em face da

contingência do mundo contemporâneo, para que não se perca de vista a

possibilidade de elaboração de novas relações sociais.

Desde a aurora da modernidade, os humanos estão abandonados aos seus

próprios juízos e responsabilidades, e “é precisamente essa solidão que contém a

esperança de um convívio moralmente impregnado” (BAUMAN, 2009, p. 139).

Mesmo para um catastrofista como Cioran (2011, p. 21), tão encarnado em seu

próprio desengano que não vê na piedade nada mais do que o vício da bondade,

utopias são um “princípio de renovação das instituições e dos povos”: “a longo

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prazo, a vida sem utopia se torna irrespirável, para a multidão pelo menos: sob pena

de petrificar-se, o mundo necessita de um delírio novo”.

5.1 SÍSIFO REANIMADO

“É preciso imaginar Sísifo feliz”, diz Camus (2004, p. 88). Em sua

reinterpretação do mito grego, o autor francês parte do ponto em que os mitos

silenciam para elaborar uma reflexão sobre a tarefa a que o personagem fora

submetido, sobre as aflições do absurdo, mas também sobre as possibilidades que

sua condição lhe oferece.

Sísifo foi condenado pelos deuses a rolar uma pedra até um cume de uma

montanha, quando a rocha fatalmente rolaria ladeira abaixo, exigindo um recomeço.

Os motivos que levaram à condenação de Sísifo variam conforme a versão do mito,

mas possuem em comum uma certa disposição à “leviandade para com os deuses”

(idem, p. 85); desde o começo, Sísifo é um desobediente, um bufão, ou um ardiloso;

alguém que, mesmo diante de potências que não pode controlar, resiste, revolta.

Sísifo foi sentenciado, imaginaram os deuses, ao mais abjeto dos cotidianos, pois

“não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança” (ibidem).

Assim o vemos, “todo o esforço de um corpo estirado para levantar a pedra enorme,

rolá-la e fazê-la subir uma encosta, tarefa cem vezes recomeçada”; vê-se,

prossegue Camus, “o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de uma

espádua que recebe a massa recoberta de barro”, a “segurança toda humana de

duas mãos cheias de terra” (idem, p. 86). Ao final do esforço imenso, a tarefa

recomeça – uma tortura em modo moto-perpétuo.

Mas é preciso imaginar Sísifo feliz. Que pensa Sísifo diante da recidiva do

tormento, na necessidade de recomeçar, quando vê a rocha cair inutilmente ou se

prepara para levantá-la novamente? Camus oferece uma resposta:

É durante esse retorno, essa pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que pena, assim tão perto das pedras, é já ele próprio pedra! Vejo esse homem redescer, com o passo pesado mas igual, para o tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que ressurge tão certamente quanto sua infelicidade, essa hora é aquela da consciência. A cada um desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a

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pouco no covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo (CAMUS, 2004, p. 86).

Em seu trabalho imposto, em seu trabalho simplesmente, na negatividade do

universo que lhe foi imputado, Sísifo, como o Homem Revoltado (CAMUS, 2011),

encontra espaço para dizer “Não”, para encarar seu percurso com lucidez, para

pensar e, simultaneamente, criar. Ele, é possível afirmar, derrota os deuses ao criar

significado em cada recomeço de sua tarefa. É preciso imaginar Sísifo feliz, mas

talvez seja mais urgente imaginar Sísifo como imagem de resistência – Sísifo resiste,

uma resistência que “faz calar todos os ídolos”. “Seu destino lhe pertence”, nos diz

Camus (idem, p. 87), “Seu rochedo é sua questão”. Diante deste esforço, maior do

que o peso da pedra que carrega, “No universo subitamente restituído ao silêncio,

elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da terra” (ibidem).

Cada um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz. (CAMUS, 2004, p. 88)

Cipriano Algor, o herói de A Caverna, tal como Sísifo, “convencido da origem

toda humana de tudo que é humano, cego que quer ver e que sabe que a noite não

tem fim”, está sempre caminhando, pois “o rochedo continua a rolar” (idem, p. 88). A

mesma lógica do inevitável, do fardo e da ignomínia lhe é aplicada, segundo a

máxima do “é preciso, não temos escolha”, sabiamente relacionada por Isabelle

Stengers (2015) a um certo manto de transcendência de que se reveste o mercado,

especialmente quando anuncia suas inescapáveis “leis”. Quando demitido do

Centro, Algor vê a solidez institucionalizada em que se imaginava arvorado exposta

aos caprichos do mercado; sua segurança, como a de tantos outros no mundo

líquido-moderno, transforma-se num “playground de forças globais que se

encontram além do alcance do controle político e da capacidade dos afetados

reagirem adequadamente a elas”, que dirá então de “resistir adequadamente aos

seus golpes” (BAUMAN, 2007, p.19). Cipriano Algor é muito cônscio de que não é

ele quem decide as regras da partida, e de que o que se desenrola “é um jogo

desigual, em que as cartas foram todas para o mesmo lado e em que, se preciso for,

os valores dos naipes variarão consoante a vontade de quem tiver a mão”

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(SARAMAGO, 2016, p. 96). O shopping é retratado, sarcasticamente, como uma

instituição que permitiu, benevolamente, a existência de uma olaria onde o barro é

amassado da “mais artesanal das maneiras”, “em um forno que conserva traços de

inadmissível antiguidade numa época moderna, não obstante os escandalosos

defeitos e intolerâncias que a caracterizam”, “quando existe um Centro como aquele”

(idem, p. 147). O Centro opera “no terreno dos factos comerciais”, assevera seu

Diretor, e “teorias que não estejam ao serviço dos factos e os consolidam não

interessam para o centro”; muito embora, reconhece o Diretor, o próprio Centro já

elaborou suas teorias e “algumas vezes tivemos que lançar por aí, no mercado, quer

dizer, mas só as que serviram para homologar e, se necessário, absolver os factos

quando eles alguma vez se portaram mal” (idem, p. 97). O sistema mundial que se

tornou conhecido por globalização tornou-se um processo autojustificante, um ato

divino para o qual a análise do campo como está dado tomou lugar de qualquer

crítica, como explica Sloterdijk (2008, p. 151):

Após uma fase inicial de vários séculos, o sistema mundial estabiliza-se cada vez mais em si próprio como um complexo de movimentos de rotação e de oscilação que se mantém pela sua própria dinâmica. No reino dos capitais em circulação, o momentum ultrapassou os motivos. A consumação substituiu a legitimação, os factos tornaram-se forças fundamentais. Quem diz ‘globalização’, poderia também dizer ‘destino’.

Se podemos chamar de tragédia a saga de Cipriano Algor é porque seu

destino está atrelado a forças imperiosas, desconhecidas e onipresentes, como que

comandadas por deuses absurdos: assim como aqueles que empurram Sísifo a um

destino fatídico. Algor está sujeito à flutuação de abstrações incognoscíveis e

imprevisíveis (o mercado, o capital global, as alterações da demanda, a

globalização) diante das quais pouco pode fazer, além de continuar. Não é esta a

mesma escolha que Camus destaca como fio condutor de sua releitura da tragédia

grega: persistir ou perecer? Para Camus, que defendia que a única questão

filosófica relevante diz respeito a se a vida vale a pena ser vivida, deve-se concluir

do absurdo da existência duas saídas: o suicídio ou a morte. Ocorre que

[...] os cenários se desmoronam. Levantar-se, bonde, quatro horas de escritório ou fábrica, refeição, bonde, quatro horas de trabalho, refeição,

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sono, e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, essa estrada se sucede facilmente a maior parte do tempo. Um dia apenas o ‘porque’ desponta e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto. ‘Começa’, isso é importante. O cansaço está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o movimento da consciência. Ele a desperta e desafia a continuação. A continuação é o retorno inconsciente à mesma trama ou o despertar definitivo. No extremo do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou restabelecimento (CAMUS, 2004, p. 14).

O reestabelecimento nada mais é do que o grito que ecoa quando tudo impele

ao silêncio. Velho, cansado, destinado a não abandonar o ofício que preenche e dá

significado à sua vida, Cipriano Algor dizia consigo mesmo: “Já não posso o que

podia”; “mas, lá no fundo da sua consciência, uma voz que também era sua

contrariava, Nunca pudeste tanto Cipriano, nunca pudeste tanto” (SARAMAGO,

2016, p. 208). É necessário recomeçar, é necessário continuar, como aqueles que

fogem procurando uma arma, onde “procurar” significa antes de tudo “criar, criar

uma vida ‘depois do crescimento econômico”, uma vida que explora conexões com

novas potências de agir, sentir, imaginar e pensar” (STENGERS, 2015, p. 14-15).

Nessa linha, George Steiner (2001, p. 106) defende que

É por sermos capazes de contar histórias, sejam elas fictícias ou matemático-cosmológicas, sobre um universo criado há biliões de anos; é por sermos capazes de […] discutir e conceber a manhã de segunda-feira depois da nossa cremação; é por os nossos ‘se’ […] serem capazes de, a seu bel-prazer, negarem, reconstruírem e alterarem o passado, o presente e o futuro, delineando de outro modo os determinantes da realidade pragmática; é por isso que a existência continua a valer a pena. A esperança é a gramática.

Paramos, conforme defende Donskis (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 198),

“de contar uns aos outros as histórias comoventes”; em contrapartida, alimentamos

incessantemente “a nós mesmos e ao mundo com teorias conspiratórias (que

sempre tratam dos grandes e poderosos, e não dos humildes e humanos), matérias

sensacionalistas e relatos de crimes e horror”. Essa incapacidade, assumida ou

imputada, põe em risco a completude do humano enquanto espécie que abstrai,

projeta e anseia por um outro agora, e inerentemente se alimenta de um “ainda-

não”. Nessa condição, o ser humano é, e não pode deixar de ser, um animal

“transcendente” e transgressor, que vive sempre à frente do presente; nossas ideias,

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85

expressas via linguagem, nos colocam adiante da experiência vivida e nos

conduzem a territórios não explorados. Porque pensamos, transpomos, repete

incessantemente Ernst Bloch (2005). Emil Cioran (2011, p. 67-68) expressa, em sua

linguagem particular, ideia semelhante:

Se, pelo capricho de um poder maléfico, perdêssemos o uso da palavra, ninguém mais estaria a salvo. Conseguimos transferir para o domínio de nossos pensamentos a necessidade de assassinato inscrita em nosso sangue: só esta acrobacia explica a possibilidade, e a permanência, da sociedade.

Imaginemos então essa figura, a de Sísifo, como forma de nomear o

percurso e a tragédia de Cipriano Algor, operário do absurdo que, encarando com

consciência o destino da utopia degenerada que o atrai – conspicuamente, como

toda utopia –, prefere o desprezo. Toda a alegria silenciosa de Algor repousa aí.

O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e esse destino não é menos absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce. A lucidez que devia produzir o seu tormento consome, com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se supere pelo desprezo (CAMUS, 2004, p. 86).

É preciso, nesse caso, imaginar que Cipriano resiste. Seguindo os passos de

Camus (2011, p. 21-22), para quem “o homem é a única criatura que se recusa a ser

o que é”, a liberdade humana nada mais é do que uma oportunidade de melhorar, e

“o único modo de lidar com um mundo sem liberdade é tornar-se tão absolutamente

livre que sua própria existência seja um ato de revolta” (CAMUS apud BAUMAN,

2011, p. 221).

De partida, impõe-se problematizar a escolha da figura de Sísifo como

emblema para um personagem imerso em uma sociedade líquido moderna – isto é,

uma sociedade radicalmente modernizada, em permanente revolução, na qual as

instituições e posições sociais antes sólidas e previsíveis estão agora em constante

dissolução. Um dos temas que atravessam a produção de Bauman é a relação entre

segurança e liberdade: na modernidade “sólida”, como aponta Freud em seu

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86

diagnóstico sobre a civilização, o excesso de repressão e controle às pulsões

individuais cobravam seu preço através das neuroses. O indivíduo sofre com

excesso de segurança e ausência de liberdade. Na modernidade líquida, teorizada

incialmente por Bauman (1998a) como Pós-modernidade, a relação se inverte. O

“superego” estatal é uma sombra que evoca permanentemente novos terrores de

modo a parecer no controle de algo, mas de fato perdeu grande parte do seu poder;

outras estruturas associadas à estabilidade, à segurança e ao controle, como o

trabalho e a família, se tornam voláteis, instáveis, orientadas pelas variações do

mercado. Na sociedade de consumidores líquido-moderna, o mal-estar parece estar

no excesso de liberdade (ainda que isso signifique a liberdade para morrer de fome,

por exemplo), acompanhado pela ausência de segurança.

Ora, Sísifo é tudo, menos livre. Como todo prisioneiro, sua rotina é repleta de

certezas; seguramente, a montanha estará lá amanhã; certamente o rochedo rolará

depois de ser erguido. No entanto, mesmo nesta condição, há um lugar,

“terrivelmente pequeno”, é verdade, mas inarredavelmente existente e “grande o

bastante para entrada de Prometeu”, herói de O Homem Revoltado; é na

justaposição entre Sísifo e Prometeu que Cipriano Algor encontra o proletário dos

deuses; e é desse encontro que “Sísifo ainda pode se converter, de uma figura

trágica de escravo das coisas, em seu feliz produtor” (BAUMAN, 2011, p. 221) Se

ele encontra liberdade é no desafio contra o absurdo que lhe foi imputado, através

da criação de significados em cada nova jornada rumo ao cume. Ainda que o

cenário estático de Sísifo aparentemente não guarde relação com a compulsão por

novidade que caracteriza o mundo de Cipriano Algor, faz-se necessário atentar às

sutilezas e ambivalências que permeiam a situação dos dois personagens. Sísifo

vive em um mundo de segurança, é certo, mas foi condenado a ele. Na sociedade

líquido-moderna, escreve Bauman, as possibilidades de libertação via consumo

produzem dilemas semelhantes:

O que pode ter começado como um empreendimento consciente pode se transformar, no curso do tempo, numa rotina cumprida de maneira irrefletida, pela qual a afirmação, interminável e ubiquamente repetida, de que ‘você pode se transformar numa pessoa diferente’ é reformulada como ‘você deve se transformar numa pessoa diferente’. ‘Você deve’ não combina com a prometida e esperada liberdade, e é por causa de seu sincero desejo de liberdade que muitas pessoas se rebelam contra isso. Quer você possua ou não os recursos substantivos exigidos para ‘fazer o que deve’, esse

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‘deve’ soa mais como escravidão e opressão do que como qualquer avatar da liberdade que se possa imaginar. [...] Se ‘ser livre’ significa ser capaz de agir de acordo com os próprios desejos e perseguir os objetivos que se escolheu, a versão líquido-moderna, consumista, da arte da vida pode prometer liberdade para todos, mas a distribui de modo esparso e seletivo (BAUMAN, 2009, p. 105).

No final das contas, a obsessão pelo novo, a compulsão pelo consumo

imposta como modo de vida é tão fatalista quanto um destino estático. Algor, ao

contrário de Sísifo, é imensamente livre, mas lhe é negada o que Bauman chamaria

de metaliberdade crucial: a liberdade de livrar-se do mercado. “Um pássaro numa

gaiola pendurada à janela poderá imaginar que está em liberdade”, reflete Marta

Algor na sua primeira visita às moradas do Centro, ao que seu marido responde:

“Estas janelas não se podem abrir, Porquê, Por causa do ar condicionado,

Evidentemente” (SARAMAGO, 2016, p. 276). Se “não existe destino que não se

supere pelo desprezo”, os dois personagens, Sísifo e Cipriano Algor, se encontram

no desprezo ao destino que não escolheram, no qual não foram partícipes na

construção, mas cujas consequências lhes são cominadas como fado. Enquanto

Sísifo procura diariamente transformar sua sina em destino (BAUMAN, 1999) – isto

é, modelar o que lhe foi dado em algo singular, escolhido, significativo –, é possível

ver as possibilidades de emancipação na situação de Cipriano Algor, na medida em

que, nas palavras de Agnes Heller, é “a satisfação das necessidades de

autodeterminação, e não de simples carências, que melhor permite a transformação

de nossa contingência em destino” (HELLER & FEHER, 2002, p. 46). Nesse caso, a

transformação da aleatoriedade em autodeterminação se dá quando um indivíduo

alcança a consciência de ter feito o melhor com suas possibilidades praticamente

infinitas (BAUMAN, 1999) 28. Retomando as palavras do atormentado habitante do

subsolo, de Dostoiévski (2000, p. 46):

28 Destaque-se aqui minha discordância com a sequência do pensamento de Heller, no qual a autora

afirma que “uma sociedade transforma sua contingência em destino se seus membros chegam à consciência de que não prefeririam viver em nenhum outro lugar e em nenhuma outra época que não aqui e agora” (BAUMAN, 1999, p. 247). No plano do indivíduo, e do modo como Heller o expressa, o pensamento carrega possibilidades de emancipação mediante a consciência e a autonomia, mesmo em face à contingência crônica. No plano da sociedade, e novamente do modo como ela o expressa, traduz apenas uma ética da resignação e o consequente enfraquecimento de qualquer perspectiva utópica verdadeira – essencialmente um “não-aqui”, “não-agora” ou “ainda-não”.

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[...] o homem é um animal criador por excelência, condenado a tender conscientemente para um objetivo e a ocupar-se da arte da engenharia, isto é, abrir para si um caminho, eterna e incessantemente, para onde quer que seja. Mas talvez precisamente por isto lhe venha às vezes uma vontade de se desviar, justamente por estar condenado a abrir esse caminho, e talvez ainda porque, por mais estúpido que seja um homem direto e de ação, ocorre-lhe às vezes que o caminho vai quase sempre para alguma parte, e que o principal não está em saber para onde se dirige, mas simplesmente em que se dirija, e em que a criança comportada, desprezando a arte da engenharia, não se entregue à ociosidade destruidora, que, como se sabe, é mãe de todos os vícios.

Em um caso como em outro, trata-se de persistir, tateando as possibilidades

de sublevação que se apresentam, muitas vezes silenciosamente, ou perecer.

Cipriano Algor parece ser uma dessas pessoas a que Bauman alude, que percebem

a carga de falsa liberdade contida nas promessas da sociedade de consumo e se

rebelam contra isso – pagando, por isso, seu preço. Esse deslocamento do olhar,

segundo Bauman, da

[...] transformação da sina em destino, da tolerância em solidariedade, não é apenas uma questão de perfeição moral, mas uma condição de sobrevivência. A tolerância como ‘mera tolerância’ é moribunda; só pode sobreviver sob forma de solidariedade. Simplesmente não basta ficar satisfeito com o fato de a diferença do outro não limitar ou ameaçar a nossa — uma vez que algumas diferenças, de alguns outros, voltam-se evidentemente para constranger e prejudicar. A sobrevivência no mundo da contingência e diversidade só é possível se cada diferença reconhece outra diferença como condição necessária da sua própria preservação. A solidariedade, ao contrário da tolerância, que é sua versão mais fraca, significa disposição para lutar; e entrar na luta em prol da diferença alheia, não da própria. A tolerância é egocêntrica e contemplativa; a solidariedade é socialmente orientada e militante (BAUMAN, 1999, p. 270-271).

Na sociedade contemporânea, a contingência como destino exige a

tolerância. Por sua vez, a tolerância tanto pode conduzir ao respeito pela diferença

enquanto tal – o que na verdade é uma forma de indiferença e isolamento – quanto

pode orientar a construção da solidariedade. O desafio de Cipriano Algor está em

manter vivas a tolerância e a solidariedade, ou o que Isabelle Stengers (2015)

chama de nossa capacidade congênita de pensar e cooperar, em tempos de

adiaforização e de proclamação da futilidade das “causas comuns” – algo um tanto

contraproducente numa sociedade de consumidores que dispõe alternativas de

sucesso individuais em suas prateleiras. Como argumenta Bauman (2009), em

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oposição a Rousseau, os seres humanos dificilmente podem ser coagidos a ser

livres; e tal coação, como o demonstra todo esforço de “democratização” de outros

países empreendido nas últimas décadas pelas potências imperialistas, raramente

redunda em liberdade de fato.

Quanto à felicidade, relembrando o diagnóstico de Kant (BAUMAN, 2009),

trata-se de um ideal da imaginação, não da razão – daí a formulação extremamente

precisa de Camus, de que é preciso imaginar Sísifo feliz. A felicidade é uma

realidade criativa. Nesse sentido, o princípio antigo dum spiro, spero (enquanto

respiro, tenho esperança), que sugeria que, “sem trabalho duro, a vida não

ofereceria nada que a tornasse valiosa” (idem, p. 173), em consonância com o que

defende Bloch (2005, p. 13), para quem “o ato de esperar não resigna: ele é

apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso”, não perdeu sua atualidade para os

milhões de Sísifos e Algores que navegam na sociedade líquido-moderna.

5.2 A SALVAÇÃO ATRAVÉS DOS AFETOS

Fiel a seu compromisso teórico com a ambivalência, Bauman (1999, p. 166)

escolhe novamente Kafka como personagem-símbolo de uma vida de incertezas e

escuridão, “de luta por objetivos que sempre se afastavam antes de serem

alcançados”29. Refletindo sobre a aguçadíssima autoconsciência do autor tcheco em

relação à sua condição de inassimilável na sociedade alemã, Bauman indica que é

neste mesmo tormento que outras potências são reveladas. Kafka, diz Bauman

29 O texto de Kafka a que Bauman faz menção, naquilo que poderia ser uma descrição sobre sua

própria ambivalência interna, é memorável: “Ele tem dois antagonistas. Um o empurra por trás, desde sua origem. Outro bloqueia o caminho à sua frente. Ele luta com os dois. O primeiro efetivamente o apoia na luta com o segundo, pois quer leva-lo adiante; e da mesma forma o segundo o apoia na luta com o primeiro, pois naturalmente o força para trás. Mas é apenas teoricamente assim. Pois não são apenas os dois protagonistas que estão lá, mas ele mesmo também, e quem realmente conhece suas intenções? Seja como for, ele tem o sonho de que em algum momento de descuido – que exigiria no entanto uma noite tão escura como nenhuma noite pode ser – saltará da linha de combate e será promovido, em função de sua experiência nessa guerra, a juiz dos antagonistas em luta.” Para Hannah Arendt, a parábola é uma figuração da entrada do eu pensante no fluxo do tempo, entre o passado e o presente (BAUMAN, 1999, p. 167).

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Não tendo recebido nada, não se deve nada. Nenhum preconceito tolda os olhos, nenhum compromisso sujeita os lábios. Isso não significa o fim do sofrimento. Mas também não significa nenhum limite à liberdade. O que resta é viver essa liberdade: uma tarefa penosa, uma chance empolgante (BAUMAN, 1999, p. 166).

São palavras precisas, e poderiam ser ditas a respeito de Sísifo – ou de

Cipriano Algor. O oleiro, aliás, desfruta de uma liberdade interior que os

personagens de Kafka não possuíam – basta lembrar que Gregor Samsa, mesmo

depois de metamorfoseado, ainda sentia-se preso às obrigações em relação ao

trabalho e à família. Algor, por outro lado, nos remete ao utópico – no sentido

blochiano – poema de Affonso Romano de Sant'Anna (2006, p. 5):

Era um homem com sombra de cachorro que sonhava ter sombra de cavalo mas era um homem com sombra de cachorro e isto de algum modo o incomodava. Por isto aprisionou-a num canil e altas horas da noite enquanto a sombra lhe ladrava sua alma em pelo galopava.

São muitos os sonhos, diurnos e noturnos, de Cipriano Algor em A Caverna.

Quando Algor sonha com a olaria é porque este é seu espaço de criação – seu

trabalho, semi-artesanal, não é alienado, no sentido propriamente marxista do termo,

em que o conceito revela o estranhamento resultante da separação entre produtor e

produto, capital e trabalho. “A ominosa visão das chaminés a vomitar rolos de fumo”

localizada nos arredores da cidade faz o oleiro perguntar-se “em que estupor de

fábrica daquelas estariam a ser produzidos os estupores das mentiras de plástico,

maliciosamente fingidas à imitação de barro” (SARAMAGO, 2016, p. 27).

Sua profissão vem de três gerações, está ancorada na memória e permeada

de afetos: apesar do Centro preferir o plástico, que “resiste a tudo e não se queixa”,

“a diferença está em que o barro é como as pessoas, precisa de que o tratem bem”

(idem, p. 33). O oleiro se assemelha a um autêntico remanescente da sociedade de

produtores, e se compraz em exercer seu “instinto de artífice” (BAUMAN, 2009), que

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em alguns momentos toma ares demiúrgicos. São sonhos e afetos que o mercado

incessantemente promete, mas falha miseravelmente em entregar.

Qualquer que seja sua condição em matéria de dinheiro e crédito, você não vai encontrar num shopping o amor e a amizade, os prazeres da vida doméstica, a satisfação que vem de cuidar dos entes queridos ou de ajudar um vizinho em dificuldade, a auto-estima proveniente do trabalho bem-feito, a satisfação do ‘instinto de artífice’ comum a todos nós, o reconhecimento, a simpatia e o respeito dos colegas de trabalho e outras pessoas a quem nos associamos; você não encontrará lá proteção contra as ameaças de desrespeito, desprezo, afronta e humilhação (BAUMAN, 2009, p. 12).

Além disso, o próprio ato de consumir, somado ao quase sempre necessário

ato de trabalhar e ganhar dinheiro para poder consumir, são extremamente custosos

do ponto de vista do tempo, de modo que um sujeito pode facilmente ficar preso ao

ciclo de labor-e-consumo sem nunca chegar perto de alguns dos valores e

experiências que parecem ser definidores da condição humana. A vida no Palácio

de Cristal acaba por atrofiar o que Bauman chama de “instinto de artífice”, aspecto

demiúrgico da criação humana que incita e alimenta o respeito por si mesmo, tão

presente em Cipriano Algor enquanto ele trabalha em suas peças.

Cipriano Algor pôs de parte a pá e afundou as duas mãos nas cinzas. Tocou a fina e inconfundível aspereza dos barros cozidos. Então, como se estivesse a ajudar a um nascimento, segurou entre o polegar e os dedos indicador e médio a cabeça ainda oculta de um boneco e puxou para cima. [...] Sacudiu-lhe as cinzas do corpo, soprou-lhe na cara, parecia que estava a dar-lhe uma espécie de vida, a passar para ela o hausto dos seus próprios pulmões, o pulsar do seu próprio coração (SARAMAGO, 2016, p. 202).

Na sociedade de consumo, todos os vínculos são estruturados segundo o

padrão da relação entre o consumidor e as mercadorias adquiridas: as relações

devem sempre ser relações do tipo “até segunda ordem”. Assim como não se exige

das mercadorias mais do que o prazer necessariamente fugaz da sua fruição,

espera-se que as pessoas deixem o cenário no momento em que a perturbação

toma o lugar do ornamento, do mesmo modo que se espera – e as engrenagens do

mercado necessitam – que o comprador não se exceda em sua fidelidade pelos

objetos consumidos (BAUMAN, 2009). O mercado expandiu-se para incluir não

apenas as relações de produção, mas também os relacionamentos, em uma espiral

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individualista que levou Lipovetsky a dizer, já em 1993, que a cultura do sacrifício

estava morta, uma vez que não há vinculação romântica maior do que a que se

estabelece com si próprio (idem).30 Nesse contexto de escassez de investimento em

relacionamentos recíprocos, é coerente que as emoções sejam reinvestidas em

coisas consumíveis, e automóveis31 apareçam nas propagandas – os especialistas

em marketing há muito entenderam a inutilidade corrente do valor de uso – como

símbolos de paixão e desejo, e gadgets sejam associados à liberdade e à

criatividade. No entanto, como bem alerta Bauman, “não importa o quanto os

comerciantes possam tentar, a fome que prometem saciar não vai embora”; pois as

“pessoas talvez tenham sido recicladas em mercadorias de consumo, mas estas não

podem ser transformadas em pessoas”, pelo menos não “no tipo de pessoas que

inspiram nossa busca desesperada por raízes, parentesco, amizade e amor”

(BAUMAN, 2005, p. 163). É sintomático dessa insaciabilidade por relações

significativas, além de uma sinalização irônica do narrador, que Cipriano e a também

viúva Isaura Madruga se utilizem de uma mercadoria quebrada como mote para

travar relações e alimentar o patente – mas em boa parte da obra silencioso –

carinho mútuo que existe entre os dois. Encontrando-se por acaso na saída do

cemitério, Isaura parece queixar-se:

Amanhã lá vou comprar um cântaro, mas oxalá seja melhor que este, que se me ficou a asa dele na mão quando o levantei, desfez-se em cacos e alagou-me a cozinha toda, pode imaginar o que foi aquilo, também é certo, manda a verdade que se diga, que o coitado já tinha uma idade, e Cipriano Algor respondeu, Escusa de ir à olaria, eu levo-lhe um cântaro novo para substituir esse que se partiu, não tem de pagar, é oferta da fábrica, Diz isso por eu estar viúva, perguntou a mulher, Não, que ideia, é apenas um oferecimento, nada mais, temos uma quantidade de cântaros que se calhar nunca chegaremos a vender, Sendo assim fico-lhe muito agradecida, senhor Cipriano, Não tem de quê, Um cântaro novo é alguma coisa, Sim, mas é unicamente isso, só alguma coisa (SARAMAGO, 2016, p. 46-47).

30 Procurando emblemas para o dilema ético da sociedade líquido-moderna, Bauman (2009)

contrapõe o modelo autopromocional, autoreferencial e egotista do übermensch de Nietzsche como meio para felicidade – modelo de certa forma confirmado pela hiperindividualismo consumista – e o modelo de Levinas de felicidade de “ser para” o outro, numa perspectiva de realização através do cuidado e da preocupação.

31 Enquanto escrevo, uma propaganda de uma multinacional automobilista tem como slogan: “sua

relação com o carro é quase humana: você não dirige, você sente”.

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A fragilidade das interações na sociedade líquido-moderna ainda não

conseguiu extirpar das necessidades humanas a ânsia pela construção de

relacionamentos que não sejam programados segundo linhas estabelecidas pelo

modelo consumidor-produto. Em muitos casos, ocorre justamente o contrário: são

estes relacionamentos que nos protegem ou nos ancoram quando o resto é mutável

e flutuante.

É precisamente porque estamos dispostos ‘a constituir amizades e companheirismos profundos’, e ansiamos por isso de modo mais vigoroso e intenso do que nunca, que nossos relacionamentos são cheios de som e fúria, repletos de ansiedade e estados de alerta perpétuo. Estamos dispostos a isso, já que os vínculos de amizade são [...] nossa única ‘escolta [social] em meio às águas turbulentas’ do mundo líquido-moderno. Precisamos de uma escolta para enfrentar essas ‘águas turbulentas’ (BAUMAN, 2009, p. 218).

Porém a abertura para este tipo de “escolta” que nos oferecem as amizades e

companheirismos profundos é extremamente problemática, e tende a ir ao encontro

das soluções fáceis para problemas complexos lançadas pelo mercado. É a carência

pela constituição de laços humanos significativos, em um contexto de

descartabilidade permanente, que nos leva a procurar soluções consumistas – que

são, afinal, aquelas que estão à disposição numa sociedade de consumo; em outras

palavras, “é o horrível espectro do descartável”, “da redundância, da rejeição, da

exclusão”, que “nos faz buscar a segurança num abraço humano” – e “é dessa

viagem que somos desviados para os shoppings” (BAUMAN, 2005, p. 164).

Em oposição a este tipo de lógica, Cipriano Algor reflete que “as pessoas não

são coisas, as pessoas querem estar sempre nos primeiros lugares”; “e não só

querem estar neles, como querem que se diga e que os demais o notem”

(SARAMAGO, 2016, p. 21). É nas relações que Algor constrói com sua família, com

sua amada em segredo, com seu cão Achado, que o oleiro faz dos afetos sua

fortaleza contra a resignação. Quando finalmente a transição da olaria ao Centro se

torna praticamente inevitável, e Algor passa a “ver-se a si mesmo como se vivesse

numa ilha que se vai tornando mais pequena em cada dia que passa” (idem, p. 267),

o personagem realiza um dos últimos passeios com seu cão, a pensar em tudo que

estava prestes a perder:

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Se algo de novo aqui aconteceu foi ele ter deixado escorregar pela cara abaixo umas quantas custosas lágrimas, há um ror de tempo que elas andavam lá represadas, sempre vai não vai a ponto de se derramarem, afinal estavam prometidas para esta hora triste, para esta noite sem lua, para esta solidão que não se resignou. [...] Ali ficaram por mais de duas horas o cão e o seu dono, cada qual com os seus pensamentos, já sem lágrimas que um chorasse e o outro secasse, quem sabe se à espera de que a rotação do mundo voltasse a pôr todas as coisas nos seus lugares, sem esquecer algumas que até agora ainda não conseguiram encontrar sítio (SARAMAGO, 2016, p. 263-264).

O desafio que a morada instável e fugidia do Palácio de Cristal impõe aos

habitantes do mundo líquido-moderno passa, como argumenta Donskis (BAUMAN;

DONSKIS; 2014, p. 13) pela procura de sensibilidade, de maneiras de ação

adequadas aos seres humanos e a toda sua riqueza imaginativa: uma busca que,

em colaboração com as ciências humanas e sociais, com a filosofia, com a literatura,

crie “um novo campo global de compreensão mútua, crítica social e

autointerpretação”. A separação entre estes campos – quando a tendência à

individualização e ao autoenclausuramento já não é mais a exceção, mas a regra da

vida na cidade – nos conduzirá à barbárie. O mal hoje, prossegue o filósofo lituano,

na linha do que vem sendo defendido aqui, não está confinado aos sistemas

totalitários e autoritários, embora estes ainda existam e negar sua força seria tolice.

Ocorre que a “geografia simbólica do mal” penetrou nos chamados “corações e

mentes” dos habitantes do mundo líquido-moderno, em seus padrões de

pensamento e tendências de consciência. O mal se expõe com mais frequência

quando “deixamos de reagir ao sofrimento de outra pessoa, quando nos recusamos

a compreender os outros, quando somos insensíveis e evitamos o olhar ético

silencioso” (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p.16). Este é o caminho para a cegueira

moral, para a adiaforia. Quando ruma à casa de Isaura Madruga para cumprir sua

promessa, Cipriano Algor novamente se pronuncia contra essa cegueira:

Venho cumprir o prometido, trazer-lhe o cântaro, Muito obrigada, mas realmente não devia estar a incomodar-se, depois do que conversámos lá no cemitério pensei que não há grande diferença entre as coisas e as pessoas, têm a sua vida, duram um tempo, e em pouco acabam, como tudo no mundo, Ainda assim, se um cântaro pode substituir outro cântaro, sem termos de pensar no caso mais do que para deitar fora os cacos do velho e encher de água o novo, o mesmo não acontece com as pessoas, é como se no nascimento de cada uma se partisse o molde de que saiu, por isso é que as pessoas não se repetem (SARAMAGO, 2016, p. 62).

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No que se refere à adiaforia, Donskis relaciona corretamente a banalização

da violência, repetida incessantemente pelos meios de comunicação, a um estado

em que o horror se torna costumeiro, e não causa mais reação; de modo

semelhante, os repetidos escândalos políticos eliminam a sensibilidade para os

temas públicos e “produz indivíduos insensíveis, cuja natureza e atenção sociais só

são despertadas por estímulos sensacionais e destrutivos”, de maneira que a

estimulação se torna um método e uma forma de autorrealização (BAUMAN;

DONSKIS; 2014, p. 49). Dentre as variadas causas para adiaforização

contemporânea, como o triunfo da racionalidade instrumental e a transposição da

lógica relacional entre mercado e consumidores para interações humanas, está este

anestesiamento, essa retirada de nossa zona de sensibilidade devido ao excesso de

estímulos.

Quando estava elaborando o argumento para Ensaio sobre a cegueira, em

1993, José Saramago trabalhava simultaneamente em um diário que veio a ser

publicado sob o título de Cadernos de Lanzarote, em referência à ilha na qual o

autor morava à época. Nos Cadernos encontramos indicações preciosas do

processo criativo que levou à escrita de Ensaio sobre a cegueira. Descobrimos, por

exemplo, que a ideia inicial do autor era explorar um lapso temporal extremamente

dilatado, ao longo do qual todos os videntes de uma geração seriam sucedidos por

pessoas que começariam a nascer, viver e morrer cegas, para em seguida dar

origem a uma nova geração de videntes, e assim por diante. Saramago certamente

conhecia o conto de H.G. Wells The country of the blind (“O país dos cegos”),

publicado originalmente em 1904, sobre um viajante que se depara com uma

população há muito tempo isolada, composta inteiramente por cegos. No conto,

dado que as dimensões arquitetônicas, sociais e estéticas da comunidade eram

organizadas para os cegos, o viajante, contrariando o ditado, não se torna rei, mas

estranho, inassimilável, desajeitado e indesejável.

Uma passagem dos Cadernos de Lanzarote é importante para nossa

discussão sobre adiaforia. Nela, Saramago conta como, a bordo de um avião a

caminho de Lisboa, passa os olhos por um jornal e se detém numa fotografia que

mostra dois jovens chineses, presos políticos, ajoelhados, amarrados com as mãos

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às costas e calcados pelas espingardas de três soldados. Apesar da “realidade

aterradora” da fotografia, Saramago prossegue

Deixo de olhar, penso que isto é banal, que todos os dias nos põem diante dos olhos imagens que em nada ficam a dever e esta (para não falar nas torturas e mortes fingidas que as televisões servem a domicílio), e chego a uma conclusão: que todos esses horrores, repetidos, cansativamente vistos e revistos em variações máximas e mínimas, se anulam uns aos outros, como um disco em cores, rodopiando, se vai aproximando, pouco a pouco, do branco. Como evitar que fiquemos, nós, também, imersos numa outra espécie de brancura, que é a ausência do sentir, a incapacidade de reagir, a indiferença, o alheiamento? (SARAMAGO, 1997, p. 43)

O trecho é uma chave interpretativa importante, tanto para a cegueira branca,

quanto para os votos em branco, temas principais dos Ensaios de Saramago. Em

ambos, subsiste o alheamento, o afastamento e a indiferença, seja em relação ao

outro ou em relação ao processo político democrático. No caso de Ensaio sobre a

cegueira, é possível, se utilizando do trecho do diário, interpretar a cegueira branca

como uma manifestação direta da adiaforização, da insensibilidade moral resultante

do excesso de mensagens grotescas que são recebidas diariamente. É bem

verdade, no entanto, que no caso de Ensaio sobre a lucidez os votos em branco

espelhem menos a indiferença em relação a qualquer processo político – e portanto

qualquer forma de transformação social – e mais a indistinção que vigora na

configuração político-partidária da democracia contemporânea, ilustrada no livro

pelos três partidos que disputam a arena do poder, nomeados simplesmente de

PDD (Partido Da Direita), PDE (Partido Da Esquerda) e PDM (Partido do Meio). Os

votos são a constatação e o reforço de que, tal como na reflexão de Saramago em

Diários de Lanzarote, os partidos, independentes dos aparentes matizes ideológicos

distintos, findam por se aproximar e se indiferenciar, “como num disco em cores,

rodopiando, se vai aproximando, pouco a pouco, do branco”. De qualquer modo, a

saída deste estado de letargia causado pelo excesso e a saturação de imagens

banalizantes parece residir, para Saramago, na singularização, no “tornar carne” o

que é conceito, espetáculo ou estatística, nos forçando a encarar o que aliciava ao

desvio:

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Talvez escolhendo deliberadamente uma destas imagens, uma só, e depois não permitir que nada nos distraia dela, tê-la ali sempre, diante dos olhos, impedindo-a de se esconder por trás de outros quaisquer horrores, que teria sido a maneira melhor de perder a memória de todos (SARAMAGO, 1997, p. 43).

A resistência emerge nos romances de Saramago através dos afetos – por

definição jamais indiferentes, os afetos são também uma resposta à cegueira moral

e à adiaforia da sociedade de consumo contemporânea. Isso é algo inerente à prosa

do autor, verdadeiro não apenas na obra que é corpus principal deste trabalho, mas

também na união de Jesus e Maria de Madalena em O Evangelho segundo Jesus

Cristo, na paixão de José pela mulher anônima em Todos os nomes, na morte

corporificada em mulher e tornada amante em As intermitências da morte e no amor

incondicional que guia a mulher do médico em meio à terra arrasada de Ensaio

sobre a cegueira. Os acontecimentos desestabilizadores que irrompem, exigindo o

pensar e o movimento, fazem emergir da realidade sua potência latente, seu

potencial utópico. Apenas quando engolido pela lógica do Centro e forçado a viver

nas suas dependências, para onde não poderá levar seu cão, Cipriano Algor se

mune de coragem para visitar Isaura Madruga, oferecer-lhe Achado e confessar o

que sente, como uma espécie de despedida contaminada pelo seu senso de

inutilidade:

Não tenho nada a oferecer, sou uma espécie a caminho da extinção, não tenho futuro, não tenho sequer presente, Presente tem-no, esta hora, esta sala, a sua filha e o seu genro que o vão levar, esse cão aí deitado aos seus pés, Mas não essa mulher, Não perguntou, Nem quero perguntar, Porquê, Repito, porque não tenho nada para lhe oferecer, Se o que disse ainda há pouco foi sentido e pensado, tem o amor, O amor não é casa, nem roupa, nem comida, Mas comida, roupa e casa, por si sós, não são amor (SARAMAGO, 2016, p. 300).

O afeto ao final se materializa, e é com Isaura Madruga, como recentíssima

membra da família, junto ao restante do grupo, que se partem os personagens para

longe do vilarejo, da olaria, da cintura industrial e do Centro, como que consumados

numa espécie de “dor feliz, de felicidade dolorosa, esse ser e não ser, esse ter e não

ter, esse querer e não poder” (SARAMAGO, 2016, p. 304-305). Antes de partir em

definitivo da olaria e do lar, Cipriano Algor dispõe as estatuetas de barro rejeitadas

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“no chão, de pé, firmes na terra molhada”; “reuniu-as às suas irmãs escorreitas e

sãs, com a chuva tornar-se-ão lama, e depois em pó quando o sol a secar, mas esse

é o destino de qualquer de nós” (idem, p. 349). Trezentos bonecos, um exército

impassível de barro, composto por figuras do passado, para guardar e ocupar um

espaço que foi esvaziado de vida.

"Nós nos salvaremos pelos afetos", afirmou Ernesto Sábato (2008, p. 50), "o

mundo nada pode contra um homem que canta na miséria". São certamente belas

palavras, e talvez fortes o suficiente para reavivar o princípio de esperança que

anima Cipriano Algor. Mas até que ponto – invocando Ulrich Beck (2010) – não é

esta uma solução biográfica para contradições sistêmicas? A utopia não é interior –

ao menos não unicamente interior: ela é também uma projeção do que se deseja do

mundo externo. Se é possível extrair dela potências de resistência, até que ponto

tais potências se expandem e se efetuam quando constritas a um indivíduo e seus

afetos?

5.3 UTOPIA, CRIAÇÃO E RESISTÊNCIA

Ainda que os projetos modernos de perfeição enclausurada tenham retirado

sua força do “horror à diferença e da impaciência com a alteridade” (BAUMAN, 1999,

p. 272), foi a partir da fé da modernidade no progresso que se engendrou a ideia de

que qualquer problema social pode ser resolvido, de que outras formas sociais

podem ser engenheiradas32: é nessa brecha que temos que buscar a noção forte da

utopia contemporânea como construção de possíveis. A mente moderna nasce

desta ideia de que o mundo pode ser transformado, e o projeto moderno pode ser

lido como uma rejeição ao mundo tal como está posto. Se a utopia é um projeto

fundamentalmente moderno, é paradoxalmente da essência da modernidade

desafiar a mesmitude do Palácio de Cristal e das utopias clássicas (BAUMAN,

2005). A perfeição, tal como a utopia para Bloch, “é um eterno ‘ainda não’” – sua

visão pode ser um elogio à imobilidade, “mas a tarefa dessa visão é puxar-nos e

32 “A convicção moderna de que a sociedade não precisa ser como é, que pode ser melhorada, tornou

cada caso de infelicidade individual e grupal um desafio, um problema a atacar” (BAUMAN, 1999, p. 272).

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empurrar-nos para longe daquilo que é, impedir-nos de permanecer imóveis” (idem,

p. 144). Quando Cipriano Algor recebe as primeiras notificações de que pode ter o

contrato com o Centro rompido, tendo-se em vista o desinteresse dos clientes pelas

louças de barro, o oleiro observa a casa e a oficina com um novo olhar, carregado

de tristeza, mas também de espera; como movimento de algo que se interrompe,

mas que se sabe vivo, pulsante:

Olhou em redor e reparou pela primeira vez que tudo ali estava como coberto de barro, não sujo de barro, somente da cor que ele tem, da cor de todas as cores com que saiu da barreira, o que foi sendo deixado por três gerações que todos os dias mancharam as mãos no pó e na água do barro, e também, lá fora, a cor de cinza viva do forno, a derradeira e esmorecente mornidão de quando o deixavam vazio, como uma casa donde saíram os donos e que se deixa ficar, paciente, à espera, e amanhã, se tudo isto não se acabou já para sempre, outra vez a primeira chama da lenha, o primeiro bafo quente que vai rodear como uma carícia a argila seca, e depois, aos poucos e poucos, a tremulina do ar, uma cintilação rápida de brasa, o alvorecer do esplendor, a irrupção deslumbrante do fogo pleno (SARAMAGO 2016, p. 35).

A modernidade líquida é sobretudo uma radicalização dos princípios expostos

por Marx e Engels sobre a sociedade burguesa no Manifesto do Partido Comunista,

sintetizados pela máxima “tudo que é sólido se desmancha no ar”: uma sociedade

em “revolução genuinamente permanente”, “deflagrada pela modernização

compulsiva e obsessiva de todos os aspectos da existência humana” (BAUMAN,

2009, p. 84). Essa revolução permanente produz o duplo efeito de não apontar para

um paraíso que sinalize o fim da história – pois sendo puro movimento não pode ser

estase – e banalizar e esvaziar o significado de revolução como transformação

estrutural da sociedade – matando com isso as raízes sobre as quais se arvoravam

grande parte das ideias utópicas. Ademais, ao contrário das distopias do século XX,

o futuro se assemelha cada vez mais a algo que se faz “por si mesmo”, ou no

mínimo mediante a concertação de difusas e volúveis forças de mercado, no interior

das quais é difícil discernir um poder projetivo único e autoritário, do tipo Grande

Líder de Orwell (BAUMAN; DONSKIS; 2014). A questão de se é possível um projeto

de vida que contemple relações sociais alternativas diante duma realidade cada vez

mais marcada pela contingência imoderada, pelo destino cego e pela aleatoriedade

ganha, neste contexto, centralidade.

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É fundamental que se diga, neste caso, que não vivemos sob o estigma do

“fim da ideologia”, mas sob o signo de uma “ideologia da privatização”, que apela

unicamente ao indivíduo e às soluções individualmente desenhadas a resolução

para os problemas sociais33 (BAUMAN, 2009). Esse deslocamento operado a partir

de cima para o uso da população convida a desinteressar-se sobre qualquer

totalidade ou composição de visões de uma “boa sociedade”. É neste sentido

também que Slavoj Zizek e Peter Thompson (2013) falam em privatização da

esperança, em referência à obra de Ernst Bloch. A “ideologia da privatização” e a

privatização da esperança esvaziam os esforços de resistência e rebelião atribuindo

aos indivíduos, e unicamente a eles, o papel de transformação de si mesmos, ao

mesmo tempo em que desacredita a transformação social; fazendo isso, torna-se

uma ideologia da conservação da sociedade, turvando as expectativas de revisá-la.

A lógica do mercado, putativamente factual e inescapável, revela seus

absurdos em diálogo de Cipriano Algor com um dos subchefes do Centro. O

subchefe indica que submeterá um primeiro lote dos bonecos fabricados pela família

Algor – confeccionados, note-se, como tentativa de “reciclar” sua utilidade perante o

Centro, já que as louças não mais interessavam – no intuito de averiguar a questão,

para o Centro “essencialíssima”, se o “valor de uso, elemento flutuante, instável,

subjectivo por excelência, se situa demasiado abaixo ou demasiado acima do valor

de troca” (SARAMAGO, 2016, p. 239). Quando interrogado por Cipriano Algor o que

decorreria daí, o subchefe responde, condescendentemente, que não lhe iria

“descobrir o segredo da abelha” 34 (ibidem). Algor, contrariado, afirma sempre ter

ouvido dizer “que o segredo da abelha não existe, é uma mistificação, um falso

mistério, uma fábula que ficou por inventar”, ao que o subchefe responde, para

espanto do oleiro: “Tem razão, o segreda da abelha não existe, mas nós

conhecemo-lo” (ibidem). Diante da última frase do subchefe, Algor sentiu como que

uma agressão, e percebeu, “dentro da sua rústica cabeça”, “sem carta de sociólogo

nem de economista”, uma verdade fundamental sobre a sociedade de consumo:

33 Ideologia resumida de forma aguda pela declaração de Margaret Thatcher – não por acaso um

símbolo do neoliberalismo – de que “não existe essa coisa de sociedade”.

34 “Segredo da abelha” – expressão que indica algo oculto, misterioso.

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Vira cair uma máscara e percebera que por trás dela estava outra exactamente igual, compreendia que as máscaras seguintes seriam fatalmente idênticas às que tivessem caído, é verdade que o segredo da abelha não existe mas eles conhecem-no. [...] possivelmente o segredo da abelha reside em criar e impulsionar no cliente estímulos e sugestões suficientes para que os valores de uso se elevem progressivamente na sua estimação, passo a que se seguirá em pouco tempo a subida dos valores de troca, imposta pela argúcia do produtor a um comprador a quem foram sendo retiradas pouco a pouco, subtilmente, as defesas interiores resultantes da consciência da sua própria personalidade, aquelas que antes, se alguma vez existiu um antes intacto, lhe proporcionaram, embora precariamente, uma certa possibilidade de resistência e autodomínio (SARAMAGO, 2016, p. 240).

Como anuncia uma das gigantescas fachadas do Centro, que “traçava com

descaso irônico o diagrama relacional em que se consumava a cumplicidade

inconsciente da cidade com o engajamento consciente que a manipulava e absorvia”

(SARAMAGO, 2016, p. 241): “VENDER-LHE-ÍAMOS TUDO QUANTO VOCÊ

NECESSITASSE SE NÃO PREFERÍSSEMOS QUE VOCÊ PRECISASSE DO QUE

TEMOS PARA VENDER-LHE” (SARAMAGO, 2016, p. 282). A obscena frase do

chefe fez desaparecer no oleiro os vestígios que restavam da realidade do mundo

em que acostumou-se a viver: o mundo telúrico, manchado pelo barro, tangível. Fê-

lo sentir que a partir daquele dia “tudo seria pouco mais que aparência, ilusão,

ausência de sentido, interrogações sem resposta” (SARAMAGO, 2016, p. 242).

Algor, no entanto, é um utópico: nasceu “com uma cabeça que sofre da incurável

doença de justamente se preocupar com o que seria ou com o que poderia ter sido”

(SARAMAGO, 2016, p. 272), como ele próprio se define. A rejeição de Algor ao

Centro, em seu âmago e em suas atitudes, é também uma rejeição a esta ideologia

da sociedade dos consumidores, que “representa o mundo como um depósito de

potenciais objetos de consumo” – o que é a definição mais primária de um shopping

center – e a vida individual como uma busca permanente por barganhas que

alavanquem o valor de mercado do próprio indivíduo (BAUMAN, 2009, p. 151).

A jornada da família Algor termina de modo deliberadamente inconclusivo:

sem rumo definido, mas exatamente por isso expectante e prenhe de possibilidades.

Nesse cenário, é necessário ressignificar a utopia com base na contingência

imanente às configurações atuais, sob o risco de nos rendermos ao discurso de que

é impossível elaborar novas formatações das relações sociais, orientadas sob outros

paradigmas.

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Por que, paradoxalmente, a mesma coletividade obsessiva com a

modernização anuncia, no campo político, a ideia de que a sociedade atual atingiu

“o ápice de estabilidade, destruindo todas as alternativas a si mesma” (BAUMAN,

1999, p. 285). Essa é uma ideia evidentemente conveniente para os interessados no

discurso que apregoa que “não há alternativas”. Os especialistas em ciência e

política à serviço do mercado são, neste caso, cada vez mais ciosos de que as

coisas permaneçam como estão – caso em que, argumenta convincentemente

Stengers (2015, p. 43-44), caminharemos inevitavelmente para a catástrofe:

Os economistas e outros candidatos à produção de respostas globais fundadas na ‘ciência’ só existem para mim como poder de prejudicar. A autoridade deles só existe na medida em que o mundo, nosso mundo, permaneça como está – ou seja, fadado à barbárie. Suas ‘leis’ supõem, antes de tudo, que ‘nós’ fiquemos em nosso lugar, desempenhemos os papéis que nos são atribuídos, tenhamos o egoísmo cego e a incapacidade congênita de pensar e de cooperar, o que faz da guerra econômica generalizada o único horizonte concebível.

Some-se a este contexto a permanente instabilidade de qualquer relação

social na sociedade de consumo – uma sociedade de refugiados – e tem-se um

desafio para o confronto franco ao modo de vida estabelecido, e a qualquer esforço

de resistência que demande trabalho a longo prazo. Se provavelmente a grande

maioria de nós não está certa sobre nossa permanência em determinado lugar, e se

os vínculos estabelecidos podem ser quebrados a qualquer tempo, soa como perda

de tempo investir em esforços “coletivos”. Citando Bauman (2005, p. 161):

[...] onde não há pensamento a longo prazo, nenhuma expectativa de ‘vamos nos ver novamente’, dificilmente pode haver um senso de destino compartilhado, um sentimento de irmandade, um impulso de cerrar fileiras, ficar ombro a ombro ou marchar no mesmo passo. A solidariedade tem pouca chance de brotar e fincar raízes. Os relacionamentos destacam-se sobretudo pela fragilidade e a superficialidade.

No entanto, à falha dos esforços de planificação e engenharia social, dos

quais o comunismo é talvez o exemplo mais notável, não pode se seguir a

resignação e desqualificação de qualquer alternativa societal, que dirá de formas

novas e pulsantes de resistência. Essas últimas, na verdade, são atualmente o

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maior testemunho de que a utopia, enquanto criação de possíveis, vislumbre de

alternativas, continua viva. E não como paralisação e fim da história, mas como

dinâmicas formas de atuação frente às forças cegas – ou nem tão cegas assim – do

mercado e do autoritarismo do Estado. O desapontamento de forma geral não

parece deixar de ser, como lembra Heidegger, mãe do conhecimento e estímulo à

ação (BAUMAN, 2009). Por um lado, é forçoso reconhecer o fenômeno da

“privatização da esperança” (THOMPSON; ZIZEK; 2013), que de certa forma mina

as perspectivas utópicas e subsume a atuação política ao mercado. Aqueles que

estão do lado privilegiado da moeda, como o subchefe do Centro, não se cansarão

de afirmar que os que se opõem ao Centro são cada vez menos combativos e

menos numerosos (SARAMAGO, 2016). Anda assim, há claros sinais de que a

sociedade contemporânea pode gerar alternativas políticas próprias.

Bauman (1999) aponta alguns aspectos comuns do que podemos chamar de

rebeliões contemporâneas. Em primeiro lugar, o planejamento organizado a partir de

um núcleo de poder centralizado deu lugar a um movimento popular pulverizado,

muitas vezes impulsionado pelas tecnologias de comunicação. Isso não significa que

os movimentos não têm líderes, mas sim que as lideranças surgem no decorrer do

movimento: estes não decorrem daqueles. Em segundo lugar, os acontecimentos

parecem ocorrer sem planejamento, seguindo a lógica da sucessão episódica; seus

agentes explorando, conforme se expandem, as possibilidades criadas. Aqui há uma

confluência com o pensamento de Stengers (2015), para quem acontecimentos

como o debate em torno dos Organismos Geneticamente Modificados na Europa

abriram caminho para formas insuspeitas de questionamento da política e da própria

ciência. O movimento de resistência gerou caminhos novos à medida que se

expandia, não mais com um plano fixo do tipo que responda plenamente à questão

“o que fazer” – ao que a contracultura socialista prontamente responderia: revolução,

expropriação, ditadura do proletariado, etc. –, mas como uma oposição nova forjada

frente a novos desafios que se impunham. Para a autora, menos importante do que

responder em definitivo que “outro mundo” é possível construir é engajar-se nas

formas de resistência a um mundo que caminha para a barbárie – novamente, aqui,

a ideia de transformação de sina em destino, de resistência como alternativa radical

à resignação e ao perecimento. A resposta para a “questão qual alternativa iremos

construir”, segundo a autora, não cabe a nós:

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[...] ela cabe a um processo de criação cuja enorme dificuldade seria insensato e perigoso subestimar, mas que seria suicídio considerar impossível. Não haverá resposta se não aprendermos a articular luta e engajamento nesse processo de criação, por mais hesitante e balbuciante que seja (STENGERS, 2015, p. 44).

É neste esteio de pensamento que Richard Sennett (2012) advoga por uma

modalidade de humanismo que leve em consideração uma cooperação informal –

porque as regras da cooperação não são estabelecidas com antecedência, mas

surgem no curso do processo de cooperar – e irrestrita – porque nenhum dos lados

ingressa na cooperação sabendo de antemão qual o melhor projeto, qual é o

“verdadeiro” caminho. Essas respostas surgem ao longo do processo. Tendo

perdido sua fé na salvação vinda do alto – seja da religião, do Estado ou do partido –

a população parece desacreditar de formas antigas de contestação, mas não cessa

de produzir novas e eficazes estratégias, ainda que estas estejam se

desenvolvendo, caso a caso, em contextos específicos de experimentação e

descoberta (idem). É a uma semelhante revitalização do princípio humanístico do

ser humano como processual, incompleto, e por isso impelido à transformação que

Ernst Bloch (2005) também recorre em seus escritos. O termo interregno, utilizado

por Gramsci, ganha em significação aqui: vivemos em uma época na qual as velhas

maneiras de fazer as coisas evidentemente não funcionam mais, enquanto formas

mais eficientes não estão à vista, ou são voláteis, precoces e incipientes demais

para serem notadas (BAUMAN; DONSKIS; 2014).

Neste sentido, Bauman corretamente aponta para o crescimento de um poder

de “protesto unificador, socialmente integrador, voltado contra o impacto divisionário,

socialmente desintegrador, da falta da eficácia dos projetos políticos disponíveis”

(BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 143)35. Os sonhos perigosos de que fala Slavoj Zizek

(2012) parecem derivar da falência de projetos totalizantes e de eficácia garantida,

35 Novamente, estamos aqui no terreno da ambivalência e da incerteza no que diz respeito ao

resultado desse poder de protesto no âmbito decisório do Estado-nação. O ano em que o Brasil sonhou perigosamente, para remeter à expressão que intitula o livro de Slavoj Zizek (2012) provavelmente foi 2013, e as chamadas Jornadas de Junho, dentre outras coisas, gestaram movimentos sociais conservadores (MBL, Vem pra Rua) e uma ojeriza geral à política que flerta com o fascismo.

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mas retiram também daí a sua força, na medida em que exigem permanente

trabalho criativo. O espectro da indignação ronda o planeta, ocupa ruas e praças, e

em algum momento há de se modular e modelar suas demandas mais claramente,

bem como articular com mais precisão os seus métodos. O enfraquecimento dos

nossos absolutos, para citar George Steiner (2003), não deve redundar na rendição

a imperativos cegos. É provavelmente diante deste cenário que o esforço criativo

orientado para novas configurações sociais, um esforço eminentemente utópico, é

mais importante. Esse caráter de criação está impregnado em outra das

características das formas de rebelião contemporâneas: o que Bauman designa de

“intransigente ironia” dos que protestam, “relutantes em ser manobrados e

demovidos do carnavalesco, desordeiro e despreocupado desrespeito pelos

poderosos” (BAUMAN, 1999, p. 295). A vitória dos rebelados não acontece às

custas da conquista de fortalezas ou de tiros desferidos, mas da força

aparentemente irremovível da liberdade redescoberta nas ruas. O silêncio com que

os habitantes da cidade dos votantes em branco de Ensaio sobre a lucidez

protestam, ocupando as ruas contra as medidas do Estado de exceção

implementado, não pode ser interpretado como passividade – assim como o próprio

voto em branco não pode ser reduzido à resignação –, mas denotam uma nova

forma de processo decisório e ação política, que desnuda e denuncia a falência da

democracia rendida ao fisiologismo e aos interesses econômicos.

Em certa medida opondo-se às observações de Zizek e Bauman, Sloterdijk

aponta como, contemporaneamente, a contestação da globalização também é, ela

própria – e isto dentro de sua filosofia mais ampla de uma imunologia geral,

desenvolvida especialmente na trilogia Esferas – globalização, pois faz parte de uma

reação “imunitária e indispensável dos órgãos locais às infecções provocadas pela

ampliação do formato do mundo” (SLOTERDIJK, 2008, p. 166). Nesse contexto,

afirma o autor:

A tendência epocal para as formas de vida individualistas põe a nu a sua significação imunológica: hoje, nas ‘sociedades’ avançadas – e talvez pela primeira vez na história da coexistência dos hominídeos –, são os indivíduos quem, na sua qualidade de portadores de competências imunitárias, se desligam dos seus corpos de grupo (que, até aqui, eram sobretudo protectores) e querem maciçamente desacoplar a sua felicidade e sua infelicidade da forma da comuna política (SLOTERDIJK, 2008, p. 166).

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Viveríamos, portanto, um período de transmutação irreversível de construções

imunitárias coletivas, portanto dotados de projetos políticos, para “designs

imunitários individualistas” (ibidem). Consequentemente, a força de atração de

projetos coletivos contra-hegemônicos se apresenta, na melhor das hipóteses, como

uma espécie de farsa. Ainda que não se possa de forma sensata questionar a nossa

tendência “epocal” ao individualismo, é problemático decretar o fim da comuna

política – o que seria, de forma mais ampla, sentenciar o fim da construção de

quaisquer outros “possíveis” gestados coletivamente. Mais preciso seria dizer que

nossas formas de elaboração e criação política vêm se transformando

essencialmente, sem que se possa dizer exatamente em que elas desembocarão.

Naomi Klein (2017) observa apropriadamente que muito do que se produz em

termos de distopias na ficção científica hollywoodiana atual tematiza a desigualdade

social radicalizada, representando elites que se estabelecem em bunkers

guarnecidos onde a minoria rica esbanja luxo enquanto que a favela generalizada

basicamente luta pela sobrevivência. Nada mais coerente, sendo a arte um objeto

cultural que faz parte de uma sociedade com uma tendência à concentração de

renda que beira a indecência. Os temas distópicos do século XX eram outros,

encapsulados sob a sombra da repressão totalitária do Estado – entidade que hoje,

segundo Bauman (2007), tendo abandonado sua função de apólice contra

infortúnios individuais que por um tempo ostentou sob a alcunha de Estado de bem-

estar social, retrai-se ao ponto de minimamente “regular” (flexibilizando com isso os

sentidos para o termo ao máximo possível) as operações de mercado globais que

lhe ditam a forma. A questão unde malum hoje é mais complexa, e tão multifacetada

quanto as possibilidades de consumo de um shopping center. Para Bauman, a crise

das utopias pode ser lastreada na crise do próprio Estado-nação:

Creio que as visões de uma ‘boa sociedade’ saíram de moda, em última instância, porque os poderes capazes de concretizá-las sumiram de nossa vista. Por que eu quebrar a cabeça tentando responder à questão ‘O que fazer’ se não há resposta à questão ‘Quem o fará’? Hoje atravessamos múltiplas crises, porém, a mais profunda delas, de fato uma ‘metacrise’, que torna todas as outras quase insolúveis, é a crise da agência. E mais importante ainda, da ‘agência tal como a conhecemos’, da herdada e atual agência do Estado, experimentada e testada pelas gerações passadas, que

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a montaram e que as recomendaram a nós (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 106).

Novamente, talvez o maior desafio da nossa época seja a criação de utopias.

Klein (2017) indica que imaginamos coletivamente tantas vezes o cenário

apocalíptico de vencedores contra perdedores para a nossa espécie que talvez uma

das mais urgentes tarefas seja a de imaginar outros possíveis fins para a

humanidade que incluam a construção de consenso e a união diante da crise, a

derrubada de fronteiras em contraste com a imagem de muros sendo erguidos. Na

realidade, como insinua Zizek (2014), nosso fetiche contemporâneo quase

generalizado pelo fim do mundo (expresso em fantasias destrutivas levadas adiante

por vírus mortais, catástrofes naturais, zumbis ou alienígenas com alma de colmeia –

todos, quem diria, desprovidos de face política à qual contrapor ou construir

qualquer alternativa) representa não apenas uma pulsão por reinício edênico de uma

sociedade destruída, mas principalmente uma narrativa sedutora em que os

problemas sociais se resolvem através da violência, e nada mais. São chamados à

restauração, elegias da despolitização e da desesperança.36

Para além das distopias e das utopias degeneradas que nos seduzem, talvez

seja possível enxergar na obra de Saramago outras forças, que se revelam em

potências de resistência insuspeitas. Porque o objetivo de toda arte distópica, afirma

Klein (2017), nunca foi agir como um “GPS temporal”, nos indicando a direção

inevitável, mas nos alertar e nos despertar para os caminhos perigosos que

seguimos, e aos quais tão subservientemente tantas vezes prestamos reverência.

As distopias são romances de advertência (BAUMAN; DONSKIS; 2014). Como

afirma Bauman, a respeito dos romancistas distópicos do século passado, eles

36 Uma interpretação alternativa ao fenômeno é oferecida por Emil Cioran, o qual, como se viu,

considera tanto as utopias quanto as distopias infernos de uma razão alucinada. Para ele, se a utopia exige que se abdique da liberdade tendo-se em vista uma felicidade prometida, porém nunca alcançada, “como não imaginar uma utopia às avessas, uma liquidação do bem e do mal imenso vinculados à existência de qualquer ordem social? O projeto é atraente, a tentação, irresistível. Como acabar com um conjunto tão vasto de anomalias? Seria preciso algo comparável ao solvente universal que os alquimistas buscavam e cuja eficácia se apreciaria não nos metais, mas nas instituições. Na espera de que a fórmula seja encontrada, observemos de passagem que a alquimia e a utopia, em seus aspectos positivos, têm uma grande semelhança: perseguindo, em domínios heterogêneos, um sonho de transmutação parecido, se não idêntico, uma se apega ao irredutível na natureza, a outra ao irredutível na história. O elixir da vida e a cidade ideal padecem de um mesmo vício do espírito, ou de uma mesma esperança” (CIORAN, 2011, p. 101).

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Esperavam que essas perspectivas [delineadas em suas obras] chocassem seus companheiros de viagem rumo ao desconhecido, sacudindo-os do torpor de ovelhas marchando com humildade para o abatedouro: será esse o nosso destino, avisavam eles – a menos que vocês se revoltem (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 62).

A arte sempre nos aponta o possível, não o necessário, e muito menos o

desejável. Em ensaio sobre Ernst Bloch e a Privatização da Esperança, Peter

Thompson (2013) lembra o lugar comum que é dizer, hoje, que é mais fácil imaginar

o fim do mundo do que o fim do capitalismo; no entanto, é sempre bom lembrar,

seguindo o próprio Bloch, que nossos pensamentos direcionados ao apocalíptico

não são o primeiro respiro de algo novo, mas muito provavelmente as emanações

finais de algo velho. A utopia regenerada não pode aniquilar o devir e a contingência

– ela deve abraçá-los. Não se trata, que fique claro, de flexibilizar nossas

esperanças, até porque isso, com algum sucesso, já é feito cotidianamente pelo

mercado. É antes um esforço de criação adaptativa frente a um mundo em

permanente mudança; um mundo que, pelo menos desde o princípio da

modernidade, sempre esteve como tal, sendo as fabulações que constroem uma

cidade ideal no interior da qual tudo tem o seu lugar e nada muda emanações de

algo velho que instiga mais à restauração do que à mudança.

O genial longa Snowpiercer (2013), baseado na graphic novel francesa Le

Transperceneige, de Jacques Lob, e dirigido pelo sul-coreano Joon-Ho Bong, é

emblemático de muito do que está sendo discutido aqui. No filme, um trem, o

Snowpiercer do título, é o único refúgio para os humanos que sobreviveram a uma

catástrofe climática humanamente gerada, que lançou o mundo em uma nova e

mortal era glacial. O trem, cujo percurso realiza uma volta completa ao mundo, se

mantém em constante movimento, alimentado por um motor que aparentemente

resolveu o problema da entropia e funciona em modo moto-perpétuo, graças à

genialidade do seu criador e líder, interpretado no filme por Ed Harris. Na enorme

locomotiva há sempre movimento, mas jamais mudança. Os vagões traseiros são

superlotados, ocupados por refugiados vivendo em condições precárias,

alimentados por barras de proteína produzidas a partir da trituração de insetos e

constantemente assediados pelas forças de segurança dos vagões dianteiros. A

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109

parte traseira sequer possui janelas. Seu mentor espiritual é interpretado por um

automutilado John Hurt, que encarnou Winston Smith em 1984. Nos vagões

dianteiros, vive uma elite abastada e plenamente abastecida de tudo que possuíam

antes do mundo acabar. A separação entre os vagões é absoluta. Numa das cenas,

a personagem de Tilda Swinton, que interpreta uma espécie de lugar-tenente de Ed

Harris, pune um dos passageiros dos vagões traseiros por uma transgressão e

aproveita para realizar uma preleção aos “ingratos” dos vagões anteriores, que

segundo ela deviam agradecer pela “generosidade” de serem aceitos ali. Ela coloca

um sapato na cabeça do passageiro e atenta para a anormalidade que aquilo

representa: no trem, tudo tem que ter seu lugar; isso é, ela salienta, uma questão de

ordem. Ninguém põe um sapato na cabeça, portanto, os refugiados que se

contentem em ser sapatos, que a elite, fica implícito, seria a cabeça. Para a elite que

vive em um habitat de recursos infinitos, protegidos de todos os perigos internos e

externos, e ainda assim sempre abertos para a visão de um mundo em constante

movimento, o trem certamente é uma utopia. Para os escravos da obra de Thomas

More, quão paradisíaca seria a ilha de Utopia? Novamente, pode-se argumentar que

utopias não são distopias às avessas – ou estas são uma conclusão lógica

daquelas, ou a distinção se dá com base na perspectiva: basicamente de que lugar

do trem parte a fala.

A tragédia de Cipriano Algor não deve servir apenas como testemunho de

possibilidades frustradas, proibidas. As histórias, como nos diz Bauman (2005, p.

26-27)

São como holofotes e refletores – iluminam parte do palco enquanto deixam o resto na escuridão. Se iluminassem o palco todo, de fato não teriam utilidade. Sua tarefa, afinal, é ‘limpar’ o palco, preparando-o para o consumo visual e intelectual dos espectadores; criar um quadro que se possa absorver, compreender e reter, destacando-o da anarquia dos borrões e manchas que não se podem assimilar e que não fazem sentido.

As histórias ajudam as pessoas em busca do entendimento, separando o relevante do irrelevante, as ações de seus ambientes, a trama de seus antecedentes e os heróis ou vilões que se encontram no centro do roteiro das hostes de excedentes e simulacros. É missão das histórias selecionar, e é de sua natureza incluir excluindo e iluminar lançando sombras.

Se as histórias nos revelam o que estava oculto, e ocultam aquilo que

precisamos enublar temporariamente para compreender melhor, então sim, é

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preciso imaginar que Cipriano Algor resiste. Não como um exercício de “apego

compulsivo ao positivo" (ADORNO, 2003)37 ou de otimismo ingênuo (BLOCH, 2005),

e sim como uma demonstração de que, se sociologia não é autoajuda, não pode ser

também pura reflexão resignada. Literatura, por óbvio, não é uma coisa nem outra: é

o um “laboratório e festa dos possíveis” (ALBORNOZ, 1985, p. 27), em que se

abrem perspectivas e onde é possível a realização, ainda que fragmentária, da

utopia. A leitura, discorre Cipriano Algor em diálogo com sua filha,

Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa, A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar (SARAMAGO, 2016, p. 77).

Emil Cioran (2011, p. 25), por sua vez, em crítica à falta de perspectiva dos

seus conterrâneos europeus, defende que deve-se impor “tarefas impossíveis” em

lugar do “horrível bom senso” que desfigura e desencaminha o mundo, em si mesmo

já nada maravilhoso.

Aproximando essas reflexões da história de Cipriano Algor, observamos como

o ato de criação desempenha um papel central em toda a obra e é, ele próprio, um

ato de resistência. Ainda que a propensão consumista contemporânea instigue a

37 Em entrevista dada à revista Der Spiegel no ano de sua morte, 1969, Theodor Adorno foi

confrontado com a afirmação, feita por Jürgen Habermas, de que sua dialética abandonara-nos nos "pontos mais negros" da resignação à "esteira destrutiva da pulsão de morte". Adorno replica que "preferiria dizer que é o apego compulsivo ao positivo que provém da pulsão de morte", e prossegue: "A filosofia não pode, por si só, recomendar medidas ou mudanças imediatas. Ela muda precisamente na medida em que permanece teoria. Penso que seria o caso de perguntar se, quando alguém pensa e escreve as coisas como eu faço, se isso não é também uma forma de opor-se. Não será também a teoria uma forma genuína da prática?" (ADORNO, 2003, p. 136) É uma questão válida. Escrever uma dissertação, por exemplo, é muitas vezes antes a culminância de um rito disciplinar do que um ato de resistência. O que não quer dizer que, através do texto, não se possa praticar oposição e resistência. Em linhas gerais, resumir o mérito de um trabalho teórico a partir das categorias de "negatividade" e "positividade" é típico de um discurso que se dobra à lógica do marketing, ou – o que é pior – ao fetiche da autoajuda. No mais, sociologia e literatura não podem deixar de encarar a realidade de frente, e muitas vezes o fazem quando aparentam justamente distanciar-se mais dela, como defende Adorno.

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atitude descompromissada, da qual o Centro do romance é certamente um epítome

incisivo, persiste no oleiro tanto o prazer da criação no barro – trabalho que, em

grande medida, o define – quanto o cuidado pela obra, mesmo quando imperfeita. O

oleiro sabe reconhecer que “toda arqueologia de materiais é uma arqueologia

humana” (SARAMAGO, 2016, p. 84) e que sua obra, levada à cabo ao longo de três

gerações de trabalhadores do barro, não é matéria morta:

O que este barro esconde e mostra é o trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais e os dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios dos caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros (SARAMAGO, 2016, p. 84).

Algor decide intercalar as semanas que lhe restam de contrato para produzir

os artefatos novos para o Centro (os bonecos) e retirar os produtos rejeitados, por

imposição da administração (a louça descartada), naquilo que o narrador denomina

de “semanas de criação” e “semanas de destruição”. Antes de se entregar à tarefa

da destruição da obra rejeitada, o oleiro prefere iniciar pela criação dos bonecos de

barro, cujas figuras foram escolhidas ao acaso de uma enciclopédia antiga junto à

filha.

[...] toda a gente sabe que o estado de espírito do criador não é o mesmo que o do destruidor, daquele que destrói, se eu pudesse começar pelos bonecos, isto é, pela criação, de mais a mais na excelente disposição de ânimo em que me encontro, aceitaria com outra coragem a dura tarefa de ter de destruir os frutos do meu próprio trabalho, que é o mesmo que destruí-los não ter a quem os vender, e, pior ainda, não achar quem os queira, mesmo dados (SARAMAGO, 2016, p. 125).

A passagem é um lembrete de que o refugo, como apontava Mary Douglas,

não o é por suas qualidades intrínsecas, nem se torna tal mediante uma lógica

interna (BAUMAN, 2005). Igualmente, não é a diferença entre produtos úteis e lixo

que demarca a fronteira entre ambos – é a fronteira, elaborada pela preferência dos

projetistas, que conjura a diferença entre eles. O que define o lixo é propriamente

relacional. Aprendendo uma nova direção para o ofício, Algor e filha se debatem

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com os problemas da criação, no que Saramago, em referência ao Gênesis, chama

de “primeiro dia da criação”:

A Marta e a Cipriano Algor não se lhes acabará tão cedo este esforço, parte do barro com que modelam agora uma figura provém de outras que tiveram de desprezar e amassar, assim é com todas as coisas deste mundo, as próprias palavras, que não são coisas, que só as designam o melhor que podem, e designando as modelam, mesmo se exemplarmente serviram, supondo que tal pôde suceder em alguma ocasião, são milhões de vezes usadas e atiradas fora outras tantas, e depois nós, humildes, de rabo entre as pernas, como o cão Achado quando a vergonha o encolhe, temos de ir buscá-las novamente, barro pisado que também elas são, amassado e mastigado, deglutido e restituído, o eterno retorno existe mesmo, sim senhor, mas não é esse, é este (SARAMAGO, 2016, p. 156-157).

A interface entre trabalho e imaginação projetiva impulsiona Cipriano e a filha,

mesmo quando as perspectivas de reatar os laços comerciais com o Centro ficam

cada vez mais distantes. As passagens em que Cipriano Algor se nega

silenciosamente a despejar no lixo a louça recusada pelo Centro e a deposita numa

clareira à beira da estrada representam uma ação mediante a qual os objetos são

ressignificados e revalorizados em um esforço imaginativo: assim como o barro

fundido de outros oleiros, em outros tempos, é um tesouro repleto de signos para os

arqueólogos de hoje, talvez os escavadores do futuro percebam as mensagens que

emanam do trabalho de Algor, tudo porque ele se recusou a ter sua obra por lixo.

Basta ver com que cuidados desce Cipriano Algor de cada vez o declive, com que atenção descansa no solo as diferentes peças de louça, como as arruma irmãs com irmãs, como as encaixa quando tal é possível e aconselhável, bastará ver a irrisória cena que aos nossos olhos se oferece para ficarmos habilitados a afirmar que aqui não se partiu um único prato, nem nenhuma chávena perdeu a asa, nem nenhum bule ficou sem bico. As louças empilhadas cobrem em filas regulares o recanto de chão escolhido, rodeiam os troncos das árvores, insinuam-se entre a vegetação baixa, como se em algum livro dos grandes estivesse escrito que só desta maneira é que deveriam ficar ordenadas até à consumação do tempo e à improvável

ressurreição dos restos (SARAMAGO, 2016, p. 163-164).

Seu trabalho, reafirma Algor, “não é entulho”. Também os bonecos, depois de

criados e mesmo imperfeitos, são conservados. São um testemunho de que ali

depreendeu-se um esforço propriamente humano de criação, e, no sentido que

atribui Camus (2004), de resistência. Bauman (2009, p. 27) nota como persistem em

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nossos tempos essa ligação com o trabalho realizado por um indivíduo em

particular, se utilizando de sua dedicação e das suas habilidades, como “fantasmas

de antigos modos de ser”. Há, nesse processo, o que ele chama de “prazer da

ligação”, um sentimento “esquivo, mas muito real e extremamente intenso”:

O prazer de ‘fazer uma diferença’ que não interessa apenas a você. De causar um impacto e deixar sua marca. De sentir-se necessário - e insubstituível: um sentimento profundamente prazeroso, embora tão difícil de obter, e totalmente inatingível, ou melhor, inconcebível na solidão da preocupação consigo mesmo e quando a atenção se concentra estritamente na autocriação, na auto-afirmação e no autofortalecimento. Esse sentimento só pode vir de um sedimento do tempo, do tempo preenchido com seus cuidados – sendo estes o fio precioso com que se tecem as telas resplandecentes da ligação e do convívio (BAUMAN, 2009, p. 28).

Citando Foucault, Bauman (2009) aponta para o caráter retórico da questão

sobre a possibilidade da vida humana ser uma obra de arte: se a identidade não é

dada, ela só pode ser criada. Nossas vidas, defende Bauman, queiramos ou não,

são obras de arte, guiadas por desafios difíceis de confrontar diretamente,

vagamente inclinadas a objetivos que estão sempre um passo além do nosso

alcance e cujo escopo parece nunca harmonizar-se plenamente com nossas

aptidões. Isso era verdadeiro quando Sartre desenvolveu sua máxima de que a

existência precede a essência, de modo que é nosso projeto de vida, nossas ações

concretas, mediadas por nossas escolhas, que determinam quem somos e qual o

nosso destino. E permanece verdadeiro hoje, quando o projeto de vida é algo

volúvel, as escolhas se multiplicaram ad infinitum e nossas ações não trazem

consigo qualquer garantia de eficácia a longo prazo. O sujeito continua condenado à

liberdade, implicada aqui como a capacidade de agir conforme os próprios desejos e

perseguir objetivos estabelecidos, porém agora em meio a um cenário caracterizado

pela "incurável fragilidade das posições sociais e fontes de subsistência, pela

sensibilidade irritadiça dos vínculos inter-humanos, pela mutabilidade camaleônica

dos valores" (idem, p. 101). É preciso “tentar o impossível”, mesmo diante da

incerteza – ou talvez principalmente por causa da contingência. E é por isso que a

“felicidade ‘genuína, adequada e total’ sempre parece residir em algum lugar à

frente: tal como o horizonte, que recua quando se tenta chegar mais perto dele”

(idem, p. 32). O horizonte, aliás, é uma das metáforas que Eduardo Galeano se

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utiliza para caracterizar as utopias: tal como aquele, estas nunca estão ao nosso

alcance – sua função é nos instigar a continuar caminhando. Tal como os requisitos

civilizacionais de Freud, as utopias são horizontes imaginários (BAUMAN, 2005).

Cioran coloca a questão sob os seguintes termos:

Só agimos sob a fascinação do impossível: isto significa que uma sociedade incapaz de gerar uma utopia e de consagrar-se a ela está ameaçada de esclerose e de ruína. A sensatez, à qual nada fascina, recomenda a felicidade dada, existente; o homem recusa esta felicidade, e essa simples recusa faz dele um animal histórico, isto é, uma amante da felicidade imaginada (CIORAN, 2011, p. 90).

Seja como for, é este caminhar permanente, de criação e experimentação

incessante, que parece ser a sina do sujeito contemporâneo. Nossas vidas, propõe

Bauman (2009, p. 69), “foram dispostas como uma série inconclusa de experimentos

dos quais se espera que comprovem ou desautorizem definitivamente a validade da

proposição”. Como toda experimentação, a modelagem da vida como um objeto de

arte carrega inevitavelmente seus riscos, o que não torna o ato criativo menos

provocativo ou sedutor. Considerar que a vida é uma obra de arte não representa,

como soa a princípio, um postulado motivacional – é preciso levar em consideração

que a versão líquido-moderna da arte da vida promete liberdade para todos, mas a

distribui seletiva e esparsamente, de maneira que o esforço criativo que ela exige

pode simplesmente redundar em precariedade permanente, em subjetividade

construída a partir de estereotipagens feitas por outros. Isso não exclui, contudo, a

ânsia criadora que move não apenas as grandes obras de arte, mas também o

trabalho cotidiano, o mero estar-no-mundo que exige, como se reitera em A

Caverna,

[...] aquele repetido fazer e desfazer, aquele querer e não poder, aquele experimentar e emendar, não é verdade que só as grandes obras de arte sejam paridas com sofrimento e dúvida, também um simples corpo e uns simples membros de argila são capazes de resistir a entregar-se aos dedos que os modelam, aos olhos que os interrogam, à vontade que os requereu (SARAMAGO, 2016, p. 165-166).

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Toda vida humana, especialmente a moderna, que se movimenta sobre os

trilhos do indivíduo e da sua ratio, é vida de um ser dotado de vontade e liberdade

de escolha, as quais marcam sua forma, a despeito do incessante jogo de forças

entre o querer individual e a imposição de forças externas. “Diz-se que cada pessoa

é uma ilha, e não é certo, cada pessoa é um silêncio, isso sim, um silêncio, cada

uma com seu silêncio, cada uma com o silêncio que é” (SARAMAGO, 2016, p. 190).

São ecos do projeto humanista que se escuta em Saramago e em Bauman, e com

bastante clareza:

Ser um indivíduo (ou seja, ser responsável por sua escolha de vida, sua escolha entre as escolhas, e pelas consequências das escolhas que fez) não é em si uma questão de escolha, mas um decreto do destino. Com muita frequência, porém, é preciso exercer essa responsabilidade em condições que fogem inteiramente ao nosso alcance, seja intelectual ou prático. A vida humana consiste num confronto perpétuo entre as ‘condições externas’ (percebidas como ‘realidade’, por definição um assunto sempre resistente, e muitas vezes desafiador, à vontade do agente) e designa seus autores/atores: seu propósito de superar a resistência, o desafio e/ou inércia, ativos ou passivos, da matéria e reconstruir a realidade de acordo com a visão da ‘boa vida’ que escolheram (BAUMAN, 2009, p. 72).

Nesse caso, pensar a utopia na atualidade implica em considerar, como Paul

Ricoeur, as visões de “boa vida” como névoas de realização, nebulosas povoadas

por estrelas que apontam múltiplos caminhos, todos cintilantes, mas nenhum

seguramente protegido contra as incertezas (BAUMAN, 2009). Se não há mais

espaço para transferir para instâncias superiores os âmbitos decisórios das nossas

ações, a incerteza não é uma ameaça à moral, mas deve ser encarada como o

ambiente único em que a moralidade pode florescer (idem). Como no Sísifo de

Camus – e como, de resto, na filosofia existencialista do autor argelino de modo

geral – a ausência de sentido imanente na vida não implica na amoralidade, mas no

compromisso mais pungente, mais laborioso, da elaboração da ética sob uma ótica

exclusivamente humana. A incerteza obriga à responsabilidade e à escolha. Para

regenerar-se, a utopia contemporânea deve encarnar a contingência e a incerteza

como parte do seu projeto.

A singularidade que Cipriano Algor busca imprimir em suas obras (a despeito

de serem elas produtos em massa) e, de forma geral, no esforço de ser quem ele

quer ser (ou de descobrir quem é), com as relações significativas que lhe são caras,

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é similar à busca pelo Absoluto de que falava Tzvetan Todorov (2011). A criação, via

de regra, é orientada para um modelo perfeito, um “último modelo”, que não possa

ser aperfeiçoado, almejando assim acarretar todas as coisas boas que é possível

acarretar. É, ao mesmo tempo, um esforço particular, sendo por essa razão não um

modelo universal, mas uma espécie de “absoluto individual” (idem). Em determinado

ponto da trama, quando as esperanças de renovação do trabalho animam a

imaginação de Cipriano Algor e a filha, o narrador Saramago insere no romance A

Caverna uma das suas reflexões filosófico-teológicas:

Conta-se que em tempos antigos houve um deus que decidiu modelar um homem com o barro da terra que antes havia criado, e logo, para que ele tivesse respiração e vida, lhe deu um sopro nas narinas, alguns espíritos contumazes e negativos ensinam à boca pequena, quando não ousam proclamá-lo com escândalo, que, depois daquele acto criativo supremo, o tal deus não voltou nunca mais a dedicar-se às artes da olaria, maneira retorcida de denunciá-lo por ter, simplesmente, deixado de trabalhar. [...] É um facto histórico que o trabalho de modelagem, a partir daquele memorável dia, deixou de ser um atributo exclusivo do criador para passar à incipiente competência das criaturas, as quais, escusado seria dizer, não estão apetrechadas de suficiente sopro ventilador. [...] Sim, é certo, depois disso ninguém mais o tornou a ver, mas deixou-nos o que talvez fosse o melhor de si mesmo, o sopro, a aragem, a viração, a brisa, o zéfiro, esses que já estão entrando suavemente pelas narinas dos seis bonecos de barro que Cipriano Algor e a filha acabam de colocar, com todo cuidado, em cima de uma das pranchas de secagem (SARAMAGO, p. 182-183).

A passagem ecoa as reflexões de Lévi-Strauss (1985) sobre o trabalho da

olaria e a analogia que o autor estabelece entre processos mentais de um ofício e os

móveis básicos da criação mítica. A cerâmica é uma das grandes artes da

civilização, estando presente em lares de diferentes classes sociais ao longo de

milênios – os egípcios “diziam ‘meu pote’ para dizer ‘meu bem’” (idem, p. 17). Nesse

sentido, o autor defende que, mesmo contemporaneamente, se observam

homologias, que recuperam crenças muito antigas, entre sistemas de ocupações

profissionais e sistemas de temperamento. Nas sociedades europeias tradicionais, o

ofício do oleiro se constituiu desde cedo como uma atividade familiar ou grupal – tal

como no romance de Saramago – e as oficinas de cerâmica foram geralmente

instaladas fora da cidade, perto dos bancos de argila que serviam de matéria-prima.

Nesses casos, os ceramistas “formavam uma pequena sociedade distinta da

comunidade aldeã, e não encarnavam uma função personalizada e bem definida no

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seio da sociedade” (idem, p. 18). Em consequência, era o ceramista que levava seus

produtos para o mercado ou para a feira, e as pessoas das nascentes cidades não

entravam em contato direto com ele. Através de extenso estudo etnográfico, Lévi-

Strauss demonstra como o trabalho com o barro se articula com as dimensões do

mito. Os índios americanos utilizam a argila, que tem que ser cozida e requer fogo,

como um elemento que está em jogo em um combate mitológico entre um povo

celeste e um povo da água, de modo que o oleiro e seus produtos “desempenham

um papel mediador entre as forças celestes e as forças terrestres” (idem, p. 20).

Essa ideia se replica, compondo-se de padrões semelhantes, quando se observa

analogias de estrutura e de conteúdo entre mitologias relacionadas à argila e à olaria

entre povos tão diferentes como os nativos do sul da Califórnia, as tribos das regiões

leste, norte e sul da América Andina (englobando territórios de Peru, Bolívia,

Colômbia, Venezuela) e a antiga mitologia japonesa – o pensamento mítico, assinala

Lévi-Strauss, “longe de representar um modo ultrapassado de atividade intelectual”,

está “presente todas as vezes em que o espírito se pergunta o que é a significação”

(idem, p.22). Percebe-se, em todos os casos estudados, que a arte da cerâmica não

é apenas atividade profissional, mas “objeto de cuidados, preceitos e proibições

múltiplas” (idem, p. 34), inserindo-se portanto num universo propriamente simbólico

de significação do mundo. Os mitos que envolvem a produção a partir do barro

articulam o mundo natural (ciclos climáticos e presença da água, fundamentais para

a produção da argila; animais como o engole-vento e outros zoemas, espécies

animais dotadas de uma função semântica), o mundo simbólico (ritos, interdições e

cosmogonias) e o mundo social (regras de parentesco, padrões de ciúme e

hierarquização valorativa de comportamentos).

O caso dos mitos de origem, exemplificado por Saramago na passagem de A

Caverna, é particularmente profícuo nesse sentido: o mito diegueano narra que o

demiurgo Tuchaipa “escavou o solo e retirou o barro com que fez os índios”; no mito

cahuilla, o criador Mukat criou os primeiros homens “trabalhando lentamente e

cuidadosamente a argila para modelar um belo corpo, como os que os homens têm

hoje em dia” (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 179); além, é claro, do mito cristão, em que

o demiurgo Jahweh modelou o homem com o barro da terra, insuflou em suas

narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente. Os exemplos e as

conexões estabelecidas por Lévi-Strauss permitem ao autor inferir que “os mitos

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sobre a origem do fogo na cozinha cedem lugar a mitos sobre a origem da

cerâmica”, ambos representando a transposição da natureza à cultura (idem, p.

221). Nas palavras do antropólogo:

Esses mitos ensinam que a terra não deve mais ser o que se come, e sim o que se coze como alimento para nele poder cozinhar o que se come. De alimento propriamente no estado de natureza, a terra assume o papel de recipiente, isto é, obra cultural (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 221).

Em todo caso, o ofício do oleiro se articula com dimensões outras que a pura

prática instrumental da criação a partir do barro. Nesse processo, relaciona-se com a

dimensão simbólica do mito, o qual, para Lévi-Strauss (idem, p. 215-216), nada mais

é do que um “sistema de operações lógicas” mediante o qual se elabora uma

solução parcial para um problema particular, acalmando, assim, o desassossego

“intelectual e se for o caso a angústia existencial, a partir do momento em que uma

anomalia, uma contradição ou um escândalo são apresentados como a

manifestação de uma estrutura de ordem mais aparente”. O trabalho de criação

material é também esforço demiúrgico de criação de significados e ordenação do

mundo.

Retornando à citação de Saramago, a cena é ilustrativa do quanto esse

cuidado demiúrgico é fundamentalmente utópico, no sentido de um esforço

permanente de criação e autocriação que procura inflar vida no inanimado, despertar

virtualidades adormecidas no real. Trata-se da busca por um Absoluto que não é

dado – note-se que, na passagem citada, deus abandona, ou quando muito, municia

mal suas criaturas para prosseguir em seu trabalho. Isso significa dizer que ele

precisa ser “criado e bafejado pelo sopro da vida – e não apenas num único ato de

criação; só pode existir num estado de criação permanente”, recriado diariamente,

pois “Absolutos não se encontram – são feitos”, só existem “na modalidade de

serem feitos” (BAUMAN, 2009, p. 108). Na modalidade de Absolutos construídos,

são também portadores de compromissos estabelecidos e, portanto, de uma

perspectiva ética. Como se lê em A Caverna:

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Nem todos os criadores se distraem das suas criaturas, sejam elas cachorros ou bonecos de barro, nem todos vão embora e deixam no seu lugar a inconstância de um zéfiro que só sopra de vez em quando, como se nós não tivéssemos esta necessidade de crescer, de ir ao forno, de saber quem somos (SARAMAGO, 2016, p. 184).

“Difícil é separarmo-nos daquilo que fizemos, seja coisa ou sonho”.

(SARAMAGO, p. 178). A reflexão sobre a arte da vida, lembra novamente Bauman,

conduz em último caso às ideias de autodeterminação e auto-afirmação, como

também à força de vontade de enfrentar a assombrosa tarefa que consiste em

“rejeitar e repelir resolutamente definições e ‘identidades’ impostas ou insinuadas

por outros”; “em resistir à corrente, fugindo das garras imobilizantes do impessoal

das Man de Heidegger, nascido da multidão e poderoso em função dela, ou do l’on

de Sartre” (BAUMAN, 2009, p. 139). Nesse sentido, Sloterdijk defende que a

“fenomenologia do tédio” de Heidegger só pode ser compreendida como uma saída

do Palácio de Cristal já estabelecido em toda a Europa, uma forma de “revolta

fenomenológica contra as exigências da estada no habitáculo técnico”. Nas precisas

palavras do autor:

Aquilo que mais tarde se chamará o Ge-stell (Dis-positivo) é esclarecido [por Heidegger] em pormenor pela primeira vez – nomeadamente no que diz respeito à existência inautêntica, privada de si própria. Quando cada pessoa é outra e nenhuma é ela própria, o humano é despojado da sua ek-stase, da sua solidão, da sua própria decisão, da sua ligação directa ao exterior absoluto, a morte. A cultura de massa, o humanismo e o biologismo são as máscaras alegres sob as quais se oculta, do ponto de vista do filósofo, o profundo tédio da existência que não tem desafio a enfrentar. A missão da filosofia seria então fazer explodir o tecto de vidro por cima da própria cabeça, a fim de repor o indivíduo numa relação imediata com o monstruoso (SLOTERDIJK, 2008, p. 187).

Aqui, podemos acrescentar, a arte da vida e o esforço criativo diário que lhe é

correspondente consiste também em resistir às forças da jaula de ferro, da

alienação, da anomia e da impessoalidade – das forças totalizantes e

homogeneizantes que criaram a cisão entrem homem e mundo que está na própria

origem do romance moderno (LUKÁCS, 2000). Forças que, na contemporânea

sociedade dos consumidores e no drama de Cipriano Algor, assumem a forma do

mercado e das suas dinâmicas adiaforizantes.

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O Centro para o qual Cipriano Algor é atraído é a promessa de uma cidade

ideal, mas que, para os propósitos de realização do personagem, é no mínimo

insubstancial, no máximo um simulacro de aprisionamento às sombras. Algor é

remanescente de uma sociedade de produtores: encontra satisfação e

reconhecimento em seu trabalho e na estabilidade da velha casa à sombra da

amoreira, sempre margeada pela oficina – quadro que é um lembrete permanente

de que ali não houve, ainda, a separação entre casa e trabalho. Até que, por forças

que lhe superam, o cenário é esvaziado, e Algor se torna um andarilho forçado,

coagido a buscar a felicidade através do consumo no interior do mini-mundo do

shopping center. A nostalgia sem objeto do personagem ao final do romance

encontra eco nas palavras de Bauman (2005, p. 117):

Esvaziada da confiança, saturada da suspeita, a vida é assaltada por antinomias e ambiguidades que ela não pode resolver. À espera de ir em frente sob o signo do lixo, ela cai do desapontamento para a frustração, aterrissando a cada vez no próprio ponto de que desejaria escapar quando começou a jornada exploratória. Uma vida assim vivida deixa atrás de si uma série de relacionamentos frustrados e abandonados – o refugo das condições globais de terra de fronteira, notória por reclassificar a confiança como um signo de ingenuidade e uma armadilha para o inábil e o simplório.

Em último caso, Cipriano Algor sai do Palácio de Cristal, escapa da caverna –

reconhecendo, entrementes, que o as pessoas da caverna talvez também sejam ele

e sua família, talvez o mundo todo. De qualquer forma, a constância que ancorava o

oleiro é abalada pela dinâmica contemporânea em que, “embora ainda se possa

sonhar em descrever antecipadamente um cenário para toda a vida, e mesmo

trabalhar arduamente para transformar esse sonho em realidade”, o apego a

qualquer cenário e a qualquer sonho, mesmo o seu próprio sonho, é assunto

perigoso e pode mostrar-se fatal (BAUMAN, 2009, p. 91). A situação de Cipriano

Algor resume as tensões ambivalentes que são ao mesmo tempo uma síntese da

condição humana contemporânea:

As pressões atuais não vão no sentido do autoenclausuramento e do afastamento do mundo. Pelo contrário, a libertação do indivíduo em relação à estreita rede de lealdades e obrigações herdadas ou artificialmente compostas, embora sólidas, fez os indivíduos libertados se abrirem para o mundo lá fora como nunca havia ocorrido na história humana. A nova

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abertura reforma o mundo exterior como um enorme contêiner de chances e oportunidades infinitas que devem ser ganhas ou perdidas, desfrutadas ou lamentadas, dependendo das habilidades, da engenhosidade e do esforço do indivíduo. Como tal, o mundo é simultaneamente um local de aventura excitante e uma vastidão repleta de perigos sombrios e apavorantes (o perigo do fracasso, com a vergonha e humilhação que ele traz, ocupando plausivelmente um lugar de honra entre eles) – objeto ao mesmo tempo de curiosidade e desejo intensos, e fonte de terror e do impulso de fugir (BAUMAN, 2009, p. 143).

As opções de Cipriano Algor, após seu sonho de produção anulado, parecem

conduzir, unicamente, à resignação de uma utopia degenerada e à desilusão da vida

constrita no Palácio de Cristal. Algor, no entanto, prefere não aceitar seu destino.

Suas estratégias de resistência dizem algo sobre o potencial utópico, como princípio

de esperança e construção de possíveis, que se abrem, arduamente, na sociedade

contemporânea.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS – POR UMA SOCIOLOGIA MENOR

Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem

responsabilidade talvez não mereçamos existir.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS – POR UMA SOCIOLOGIA MENOR

Cipriano Algor é um personagem fecundo para se pensar a condição humana

contemporânea, e encarna, através de seus dilemas, a sensação de permanente

deslocamento, estranhamento e fragilidade que assola os habitantes da sociedade

líquido-moderna. Em muitos sentidos, ele é a antítese do consumidor ideal numa

sociedade de consumo. Ele é um produtor, seus passos são lentos, suas investidas

cuidadosas, seus projetos duráveis. Telúrico, arraigado, ele se movimenta porque

forçado. Rejeita o lixo, mas não é apenas um resquício opaco, anacrônico, de um

tempo perdido. Sua história permite também pensar qual o status das utopias hoje,

quando nossas esperanças de redenção foram privatizadas e transformadas em

mercadorias. Para superar uma ética da resignação, é necessário também encontrar

em seus caminhos direções que apontem para a regeneração dessas utopias, para

o reavivamento da capacidade de imaginar novos possíveis e fazer irromper

acontecimentos desestabilizadores.

A aparente inconclusividade da principal obra analisada aqui, A Caverna – o

que também se pode dizer a respeito da obra do principal interlocutor de José

Saramago no trabalho, Zygmunt Bauman –, é reflexo de um estar-no-mundo

acompanhado da incerteza, e para qual não existem dilemas fáceis. O que os

autores oferecem como respostas são indicações, sinais que apontam para a

revitalização do humanismo face a uma sociedade adiaforizada e adiaforizante: a

salvação através dos afetos, a crença na significação imanente do labor humano, a

ordenação da vida como uma obra que é composta por escolhas e

responsabilidades.

O que se fez neste texto não foi uma sociologia da literatura saramaguiana,

embora em muitos momentos provavelmente o exercício tenha soado como tal.

Antes, busquei explorar as possibilidades de articulação entre sociologia e literatura,

à luz da obra de José Saramago. Realizar sociologia da literatura subsume um

campo de estudos a outro – nem sempre de forma hierárquica, mas simplesmente

como forma de demarcação do que se pretende estudar. Uma sociologia da arte, por

exemplo, implica em dizer, à partida, que se utilizará métodos e instrumentos

específicos de uma área científica – a sociologia – para dar conta de uma parte

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possível do seu universo, que de modo mais amplo é o mundo vivido. Novamente,

ainda que não se explicite uma hierarquização entre os campos, há uma

demarcação nítida dos seus termos. Antes de explorar as pontes, conexões e

possibilidades partilhadas, parte-se da delimitação de fronteiras. É diferente de

estruturar uma interface entre sociologia e literatura, o que pressupõe desde o início

enfatizar mais as conexões do que as diferenças. As possibilidades que um tal

exercício abre para a sociologia são vastas.

Como aponta Donskis (BAUMAN; DONSKIS; 2014), a sociologia, tal como um

romance, é um relato da experiência humana. Nesse caso, é necessário que as

ciências sociais, um campo “desprovido de melodia”, como argumenta Vytautas

Kavolis (idem, p. 9), se alimente dos sons que emanam de outras formas de

expressão e se revista de um olhar ético. Se a sociologia é, como defende Bauman

(BAUMAN; MAZZEO; 2016), uma hermenêutica secundária, isso significa que as

interpretações sociológicas são leituras do mundo dentre outras leituras. Abrir-se ao

potencial hermenêutico da literatura – algo que, aliás, todos os grandes sociólogos

fazem – significa então abandonar nossa “nostalgia do absoluto”, para citar Steiner

(2003)38 , por um projeto mais humano: mais cônscio das suas restrições, mas

também mais penetrante em seus esforços. Quando Steiner desenvolve sua crítica

ao que ele chama de sistemas “pós-teológicos” de pensamento – o marxismo, o

freudianismo, o estruturalismo –, não se trata apenas de uma denúncia ao caráter

dogmático dessas teorias ou à cientificidade ortodoxa que elas reivindicam para si. É

também um reconhecimento do potencial mitopoético criado através das imagens,

metáforas e enredos que estas teorias mobilizam, criando verdades que podem não

ser “objetivas”, mas são de ordem intuitiva e estética. Assim como o geólogo, Marx e

Freud revelam níveis de intercalação ocultos sob a superfície, mas que determinam

o contorno da paisagem que está mais imediatamente à vista. Isso é claro na sua

reflexão sobre Freud, em que o autor elogia Para Além do Princípio do Prazer como

“um dos mais extraordinários documentos da história da imaginação trágica

38 A incapacidade do ser humano de lidar com o caos, o que resulta inevitavelmente na nossa

inclinação inerente à classificação, significação e hierarquização, já foi tratada de forma brilhante por Claude Lévi-Strauss em O pensamento selvagem (1976). Camus (2004) usa a mesma expressão do título do livro de George Steiner em O mito de Sísifo, e Emil Cioran (2011, p. 34) afirma, em História e Utopia, que pode-se “sufocar tudo no homem, salvo a necessidade de absoluto”.

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ocidental”, no qual se formula “um mito do sentido da vida que é tão abrangente e

metaforicamente vigoroso como aqueles que nos chegaram de fontes antigas

coletivas” (STEINER, 2003, p. 32-33).

Na mesma medida, a psicanálise foi concebida como uma “arte da

interpretação” (BAUMAN, 1999), que transformava todo o mundo humano (sonhos,

atos aparentemente insignificantes, a religião, a própria civilização ocidental) em um

texto à espera de ser interpretado. Esse é uma obra cujo escopo, ousadia e

brilhantismo lhe garantem mérito por si próprio; não podemos medir seu “fracasso”

porque a neurologia moderna afirma que “não há inconsciente” ou a partir da

inexistência de certas pulsões universais apontadas por Freud. Noções como a de

“inconsciente” condensam uma chave de interpretação sobre nossa realidade e

sobre nós mesmos, uma chave que se bifurca e se ramifica em várias outras

conforme a tradição acadêmica se desenvolve. Grosso modo, é neste sentido que

Foucault (2001) falou de Freud e Marx e como “instauradores de discursividade” –

estamos sempre nos remetendo a eles, mesmo quando – ou talvez principalmente

quando – os contestamos.

Antes que os apocalípticos apontem a morte das ciências sociais, é

importante expressar, como o fez Agnes Heller (1989), que elas não fracassaram,

mas geraram autoconhecimento e nunca deixaram de produzir autoconhecimento da

sociedade moderna, de uma sociedade por isso mesmo contingente, de uma

sociedade entre muitas, a nossa sociedade. A mentalidade contemporânea atinge

um novo estágio quando percebe que “a aquisição de conhecimento não pode se

exprimir de nenhuma outra forma que não a da consciência de mais ignorância”

(BAUMAN, 1999, p. 256) – o que é verdadeiro pelo menos desde Sócrates, mas

agora se faz sentir de maneira mais radical. Isso não significa o fim da ciência (a

prudência nunca é demais neste território: é sempre bom lembrar que o “fim da

história” desembocou no alvorecer do neoliberalismo). É necessário enfrentar esse

fato, esse viver com a incerteza, com a inconclusividade, com as probabilidades

tomando gradativamente o campo das causalidades. Enfrentar esse fato significa

“saber que a jornada não tem um destino claro e, ainda assim”, como Cipriano Algor,

“persistir na viagem” (idem, p. 258).

Se as pretensões de totalidade das ciências humanas não se confirmam na

teoria, o valor de referência cognitivo e seu teor enquanto mitopoética de

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interpretação do mundo nem por isso são menos importantes. A própria existência

da cultura é, como indica Ernst Becker (1991, p. 21), “um mito vivo do significado da

vida humana, uma criação que desafia significados”. O mero fato de nos dispormos,

conscientes da nossa própria mortalidade, a desempenhar uma tarefa que nos

supera temporalmente – isto é, continuar vivendo, estar-com-outros diariamente – é

testemunha deste labor criativo. A consciência da mortalidade nos afeta através da

linguagem; mas é precisamente devido à linguagem, ao discurso, às palavras, enfim,

que podemos nos libertar da realidade imediata e experimentar outros mundos, que

poderão ser quando nós já não formos:

A linguagem pode nos informar como as coisas são, mas também é uma faca que nos corta, a nós, ao mesmo tempo produtores, usuários e criaturas das palavras, livres das coisas como elas são e da proximidade de sua presença. Usando palavras como fios, podemos tecer telas que não representem realidade alguma experimentada por nós [...]. a veracidade e a credibilidade dessas telas ‘não representacionais’ não diferem muito das do resto (BAUMAN, 2005, p. 27).

“Penso que as palavras só nasceram para poderem jogar umas com as

outras, que não sabem mesmo fazer outra coisa, e que, ao contrário do que se diz,

não existem palavras vazias” (SARAMAGO, 2016, p. 204), sentencia Marta Algor.

No que diz respeito ao Lebenswelt, ele não pode passar sem poesia e sonho,

mesmo naqueles aspectos que se supõem mais pragmáticos, como a atividade

econômica e o exercício do poder político. A política moderna não funciona sem

nossas histórias, e por isso necessita mais das ciências humanas do que o sabem

os próprios políticos. Como bem observa Leonidas Donskis:

Ter uma narrativa político-histórica plausível hoje significa ter uma política viável, e não programas disfarçados de política. A política torna-se impossível sem uma boa história, na forma de uma trama convincente ou de uma visão inspiradora. O mesmo se aplica à literatura de qualidade.

Quando não conseguimos usar corretamente um método em nossos trabalhos acadêmicos, ou quando um método nos desaponta, passamos para uma história. [...] Onde a linguagem intelectual fracassa, a ficção parece uma forma de escapar de nossa situação com uma interpretação do mundo à nossa volta (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 195).

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Para superar a dicotomia hermenêutica-positivista que marca a disciplina

desde sua origem, faria bem à sociologia se reatar a esta potência mitopoética.

Bauman, escreve, a propósito do filósofo russo Lev Chestov (um judeu russo que,

apesar de professor da Sorbonne ao final da vida, passou a carreira marcada pelo

estigma de ser um estranho, rejeitado no mundo acadêmico por ser membro de uma

minoria desprezada), o quanto existe de paroquialismo na busca filosófica pelos

absolutos e universais da existência.

A busca pelos filósofos do sistema último, da ordem completa, da extirpação de todo o desconhecido e ingovernável deriva – declarou ele – da adoração de um terreno firme e seguro, de um lar certo, e resulta na redução do infinito potencial humano. Tal busca do universal só pode degenerar em impiedosa exigência às possibilidades humanas (BAUMAN, 1999, p. 91-92).

Sem rejeitar o valor do pensamento estabelecido, Chestov defendia que a

tarefa da filosofia não é acalmar, mas perturbar a experiência humana, “ridicularizar

da maneira mais firme os juízos aceitos e afirmar paradoxos”: a tarefa do

pensamento é ensinar os homens a viver na incerteza (BAUMAN, 1999, p. 92).

Tarefa que por sua vez só pode ser realizada pelos nômades do pensamento, pelos

não estabelecidos, por aqueles que tomam a ambivalência e a complexidade da

condição humana como objetividade de pensamento. O intelectual moderno,

defende Bauman, apontando agora à Mannheim, é “um errante perpétuo e um

estranho universal. Ninguém de fato gosta dele exatamente por essa razão: em todo

lugar ele está fora de lugar” (idem, p. 94). Steiner (2003, p. 80), por sua vez, remete

a Heidegger, para quem as perguntas são a “oração do pensamento humano”, e

defende que o ocidental é um animal criado para fazer perguntas e buscar obter

respostas a qualquer custo: um animal que não faz da “inocência humana uma

instituição”.

Nesse percurso de questionamento, se não leva em consideração as

perspectivas éticas dos seus pressupostos e se não conforma seus métodos à

aproximação com formas distintas de leitura de mundo, a própria sociologia torna-se

adiafórica, obcecada por estatísticas, metacríticas e unidades imaginárias que

passam longe do humano em carne e osso; destitui os indivíduos de seus rostos e

de sua individualidade, convidando o afastamento do olhar – o que é exatamente o

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oposto do que faz a literatura, que faz do seu terreno a individualidade e que,

mesmo quando drasticamente incômoda, como em Kafka, mesmeriza a visão. É

próprio da literatura particularizar, singularizar, nomear o que antes se fazia

anônimo. Se, assim como em Kafka, em Saramago não há mais personagens, mas

apenas “agentes coletivos de enunciação” (DELEUZE & GUATTARI, 2015), pela

boca de Cipriano Algor falam milhões de trabalhadores excluídos da possibilidade de

uma vida digna. Similarmente, os personagens “sem nome” de Saramago, neste

caso, são tanto a expressão de uma cultura inteira que fala através de seus

personagens (ZIZEK, 2014), como também – e na mesma medida – uma denúncia,

não uma corroboração, do anonimato e da invisibilidade em que pessoas são

jogadas todos os dias. Para recuperar a sagacidade em tempos sombrios,

argumenta Donskis (BAUMAN; DONSKIS; 2014, p. 18-19),

É preciso devolver a dignidade, da mesma forma que a ideia da inescrutabilidade essencial dos seres humanos, aos grandes homens e mulheres do mundo, mas também à multidão de extras, ao indivíduo estatístico, às unidades estatísticas, à massa, ao eleitorado, ao homem da esquina e ao querido povo – ou seja, todos aqueles conceitos ilusórios construídos por tecnocratas que se apresentam como democratas propagandeando a noção de que sabemos tudo que há para saber sobre as pessoas e suas necessidades, e que todos esses dados são apontados com exatidão e totalmente explicados pelo mercado, pelo Estado, pelas pesquisas sociológicas, pelas avaliações e por qualquer outra coisa que transforme as pessoas em anônimos globais.

Do que foi exposto, gostaria de elaborar, em um plano propositivo, dois

movimentos teóricos necessários para realizar aquilo que foi o fio condutor deste

trabalho: a articulação e a aproximação entre sociologia e literatura. Em um primeiro

plano é importante retomar a ideia, já esboçada anteriormente, sobre a literatura

menor, desenvolvida por Gilles Deluze e Félix Guattari (2015). A literatura menor,

defendem os autores, é aquela que se escreve sempre como um estrangeiro, como

alguém que ocupa espaços que não deveria, que busca as rachaduras da

normalidade e da linguagem e ali se abriga. Não é uma subliteratura ou uma “língua

menor”, “mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (idem, p.35).

Nesse caso, acredito ser possível falar na possibilidade de uma sociologia menor,

em termos semelhantes aos elaborados pelos autores. Uma sociologia

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desterritorializada, que se abre à diferença, na qual tudo é político e tudo é

coletivamente agenciado. Como aponta o narrador de A Caverna:

[...] saberíamos muito mais das complexidades da vida se nos aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições em vez de perdermos tanto tempo com as identidades e as coerências, que essas têm obrigação de explicar-se por si mesmas (SARAMAGO, 2016, p. 26).

Uma sociologia menor, portanto, seria aquela que faz da contradição seu

terreno e que se abre às múltiplas possibilidades de conexão e atravessamento por

outras formas de leitura do mundo, como a literatura – não advogo aqui pela

indistinção entre os campos, apenas aponto para o óbvio, isto é, o enriquecimento

decorrente da atenção dedicada para os pontos de contato e interpenetração entre

diferentes maneiras de interpretar o mundo. O objeto sociológico nesta perspectiva

também deve ter seu foco direcionado para as distopias do século XXI, as quais,

assim como suas correspondentes no século passado, anunciam e advertem para

transformações sociais aterradoras, mas que agora se tornam realidade numa

velocidade espantosa. Sociologia que aceita a contingência e a inconclusividade;

assume seu vetor de força racionalizante, mas não renega sua potência mitopoética

de leitura do mundo, tomando assim como horizonte o equilibro frágil entre evidência

e lirismo de que falava Camus (2004). Uma sociologia, enfim, que toma para si um

compromisso ético, que não reduz sujeitos a objetos e combate a adiaforização

permanentemente, não apenas no plano do discurso teórico, mas no cerne do

próprio fazer sociológico.

Um segundo movimento consistiria em redimensionar o lugar da literatura

face à sociologia e à produção teórica das ciências humanas de forma geral. Como

defendi ao longo deste texto, o autor literário, conscientemente ou não, concerta em

seu texto elementos aparentemente heterogêneos para a elaboração de uma

composição coesa, no interior da qual múltiplos fatores intervêm. Determinadas39

39 “Determinadas” aqui é indicativo de juízo de valor. Assim como nem todo trabalho sociológico é um

“bom” exercício dos métodos e práticas da disciplina, nem toda literatura é de qualidade. Certos de que “qualidade” é substantivo de extrema generalidade, não podemos senão concordar em que Madame Bovary não é Harry Potter, que Franz Kafka é melhor do que Augusto Cury e que autoajuda, livros motivacionais ou livros de aprimoramento pessoal não são literatura “de verdade” – isso sob

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obras conseguem portanto plasmar a realidade social, problematizá-la, expondo-lhe

suas fissuras e contradições; ou oferecer-lhe facetas explicativas variadas e

sobrepostas, superando aquilo que é autoevidente e pertencente ao senso comum –

exatamente como a sociologia. Se é preciso deixar que “a obra fale”, romances

como A Caverna falam sobre a sociedade de consumo, a adiaforização, a

interiorização dos espaços e as utopias tanto quanto obras sociológicas.

Novamente, Saramago desenvolve um argumento – o qual, mesmo reconhecendo

que soa como “descabelada utopia”, não deve deixar de ser aspiração – em defesa

dessa teoria:

[...] o romance deveria abrir-se, de certa maneira, à sua própria negação, deixando transfundir, para dentro do seu imenso e fatigado corpo, como afluentes revitalizadores, revitalizados por sua vez pela miscigenação consequente, o ensaio, a filosofia, o drama, a própria ciência (SARAMAGO, 1997, p. 256).

Neste sentido acredito que podemos falar de obras literárias como fundadoras

de discursividade, no sentido atribuído por Michel Foucault (2001) ao termo. Quando

Foucault atribui a Marx e Freud papel não exclusivo, mas certamente proeminente,

de instaurar discursividades, queria com isso dizer o autor francês que as teorias

como a do inconsciente e a da alienação não apenas “tornaram possível um certo

número de analogias” mas também “tornaram possível (e tanto quanto) um certo

número de diferenças”, abrindo assim o espaço para “outra coisa diferente deles e

que, no entanto, pertence ao que eles fundaram” (FOUCAULT, 2001, p. 286). Mais

do que autores de seus próprios textos, os fundadores de discursividade abriram a

regra e a possibilidade para formação de textos subsequentes; estes, por sua vez,

pena de que, caso não realizemos estas distinções, seja posta em risco a própria noção de cultura ocidental, a qual, como toda cultura, implica necessariamente em classificação e hierarquização. Dizer que tudo é literatura ou que todo texto tem igual valor equivale à atitude multiculturalista que considera toda cultura igual para, no final das contas, dedicar-lhes indiferença e abdicar da construção de uma convivência coletiva organizada segundo princípios socialmente acordados, que leve em consideração as diferenças de poder entre todos os envolvidos. No mais, isso não quer dizer que apenas obras “clássicas” se prestem ao exercício de articulação entre sociologia e literatura que se pretendeu desenvolver aqui. Certas obras são, no mínimo, indícios cristalinos da miséria intelectual de uma sociedade ou de uma época.

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orbitam em torno das referências instauradas: “a obra desses instauradores não se

situa em relação a ciência e no espaço que ela circunscreve; mas é a ciência ou a

discursividade que se relaciona a sua obra como as coordenadas primeiras” (idem,

p. 283). Foucault é peremptório ao afirmar que o que é fundado neste âmbito de

discursividade, o que é tornado possível por eles, é completamente diferente das

possibilidades abertas por um romancista, principalmente porque, sendo este

sempre o “autor do seu próprio texto”, ele sempre abre espaço para analogias e

semelhanças modeladas na sua própria obra – e não para o plano de diferenças e

contrastes que são coordenadas pela instauração, como no caso de Freud e Marx.

Ora, é possível objetar, em primeiro lugar, que também as obras literárias

estabelecem “possibilidades infinitas de discursos”, e estabelecem coordenadas

para as quais se remete permanentemente, seja para conformação seja para

negação do que foi estabelecido pelo autor. Senão, porque sempre é possível falar

tanto de Kafka quanto de Weber quando falamos de racionalização e labirintos

burocráticos; de Dostoiévski quanto de Freud para pensar as angústias que

destroçam e cindem o sujeito moderno; de Balzac quanto de Marx para dimensionar

a estrutura de classes do século XIX? Mais ainda, é possível, através destes

mesmos romancistas, reclassificar e reordenar conjuntos diferentes de questões

sociais, agora propriamente contemporâneas, como fazem Deleuze e Guattari

(2015) em relação a Kafka e o agenciamento maquínico do desejo e Peter Sloterdijk

(2008) em relação a Dostoiévski e a interiorização dos espaços no Palácio de

Cristal.

Em segundo lugar, cumpre rejeitar a hipótese de que o romancista é apenas

autor de seu próprio texto, e que, por conseguinte, ele modela apenas analogias em

relação à obra que instaura. O próprio realismo fantástico, gênero no qual

enquadramos aqui parte da obra de Saramago, subverte e parodia certas visões de

mundo e modalidades de expressão do ser, em particular visões de mundo

marcadamente modernas, como o iluminismo e o cartesianismo, podendo ser

interpretada como uma superação do realismo crítico-social (IANNI, 1993). Todo o

romance moderno é escrito à sombra de Cervantes; todo o romance contemporâneo

é escrito tendo por coordenada as rupturas estilísticas de Proust, Joyce e Woolf.

Não são apenas analogias que estes autores possibilitaram, mas disjunções e

diferenças em relação às obras posteriores. Considerar, portanto, a obra literária

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como passível de fundar uma discursividade é situar a literatura em um plano

discursivo ao qual, em verdade, sempre pertenceu: o plano das análises e

explicações da realidade que são clássicas, que não definham em sua capacidade

narrativa ao longo do tempo. Dizer que que uma obra literária pode fundar

discursividade, por outro lado, não é o mesmo que dizer que José Saramago

instaurou discursividade – isso seria tema para outro trabalho. Enfatizo apenas a

possibilidade da literatura, tal como as ciências humanas, produzir orientações

discursivas sobre a realidade a partir das quais se guiarão – contrapondo-se,

corroborando ou ampliando – leituras futuras.

A literatura como instauradora de discursividade e a prática de uma sociologia

menor são propostas condizentes com a afirmação de Saramago, para quem, “não

podendo saber o que é, realmente, a realidade, o que vamos fazendo são meras

‘leituras’ dela, ‘leituras de leituras’, infinitamente”; “arte e literatura são ‘leituras’

(SARAMAGO, 1997, p. 246). Nós, humanos, somos como “contos ambulantes,

contos feitos de contos”, “seres feitos de palavras, herdeiros de palavras e que vão

deixando, ao longo do tempo e dos tempos, um testamento de palavras, o que têm e

são” (idem, p. 239). De modo semelhante, ciência e literatura são códigos,

agrupamentos de sinais que buscam dar conta da realidade – mas nunca são a

realidade em si. O que fazemos, o que podemos fazer, nós, autores, literários ou

não, cientes e ciosos da nossa atividade, são leituras desta realidade. Não é pouca

coisa.

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