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Avaliação da Incapacidade
Prof Dr Marcelo Riberto & Profa Dra Linamara Rizzo Battistella
Conceitos iniciais
Qualquer intervenção na área de saúde deve partir de uma avaliação
rigorosa que deve ser o mais completa possível. É a partir dessas informações
que os objetivos terapêuticos são traçados e são escolhidas as estratégias
mais adequadas para chegar aos mesmos.
Na Medicina Física e de Reabilitação (MFR), assim como nas demais
especialidades médicas, o aforismo acima enunciado continua válido e ainda
apresenta particularidades adicionais, pois alguns conceitos abstratos exigem
claro delineamento para que se entenda o âmbito de intervenção da
especialidade.
O modelo de entendimento da funcionalidade humana
A MFR é orientada por uma abordagem biopsicossocial voltada à
funcionalidade e incapacidade. Ela se fundamenta no modelo da Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), proposto pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) e aprovada pela sua assembléia anual
de maio de 2001. Esse modelo está esquematizado na figura 1 e permite a
visualização da inter-relação dos conceitos apresentados adiante.
O entendimento da funcionalidade humana parte da normalidade
fisiológica (funções do corpo) e anatômica (estruturas do corpo), entendida
como a integridade das funções fisiológicas e das partes anatômicas do corpo,
seja do ponto de vista estatístico ou qualitativo, mesmo que a idéia de
“normalidade” seja fruto de contestação ideológica.
De posse de um corpo sadio, o individuo devidamente estimulado
poderá realizar tarefas do seu quotidiano, às quais chamaremos de atividades.
Quando houver composição de atividades e a presença de outras pessoas nas
situações de vida, o termo proposto será participação. Com isso, estão
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definidos três níveis de observação da funcionalidade humana: o corpo, a
individualidade e a sociedade.
Exemplificando, uma pessoa destra pode ter uma amputação de um
dedo da mão esquerda, não poder mais tocar violino e ser aposentado do seu
emprego na orquestra sinfônica. Neste exemplo simples os problemas são
descritos nos diferentes níveis citados no parágrafo acima: a estrutura do corpo
- dedo; a atividade – tocar violino e a participação – trabalhar na orquestra.
Figura 1 – Modelo da funcionalidade humana da CIF
Os aspectos negativos das funções e estruturas do corpo são definidos
como deficiências, os problemas para realizar atividades são limitações a
atividades e no âmbito das participações usa-se a expressão restrição a
participação. No exemplo mencionado acima, deficiência é a ausência do dedo,
a limitação é não poder tocar o instrumento e restrição é a impossibilidade de
trabalhar.
Classicamente, o conceito de incapacidade referia-se apenas às
dificuldades que a pessoa poderia apresentar para realizar as atividades.
Todavia, devido a dificuldade para definir precisamente quando se falava de
deficiência ou incapacidade, ou quando a incapacidade se referia ao âmbito
pessoal ou social, preferiu-se ampliar o termo incapacidade para todos os
aspectos negativos da funcionalidade (deficiências, limitações às atividades e
restrições a participação), resultantes da interação do indivíduo com uma
determinada condição de saúde e dos fatores de contexto.
Os fatores de contexto são um construto de aspectos da realidade dos
indivíduos que não estão diretamente relacionados ao corpo ou à saúde, mas
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que interferem de forma decisiva na resultante final de atividade ou
participação. Podem ser didaticamente divididos em duas categorias: fatores
pessoais e fatores ambientais.
Os fatores ambientais estão todos componentes do meio exterior ao
indivíduo que interferem na sua funcionalidade, tais como tecnologia, ambiente
natural e modificações realizadas pelo homem, redes de apoio, atitudes das
pessoas, serviços públicos, sistemas organizacionais e políticas.
Por outro lado, os fatores pessoais são as características de uma
pessoa que a tornam única e distinta das demais. São fatores intrínsecos,
como aspectos biométricos, sexo, idade. Também incluem aspectos da história
de vida pessoal, como formação educacional, experiências prévias, atitudes e
crenças pessoais.
No exemplo acima, suponhamos que o paciente que teve a amputação
do dedo tenha um plano de seguro para as suas mãos e, em virtude de não
poder mais tocar o violino, receba uma indenização para o resto da sua vida.
Como conseqüência da amputação também apareceu uma queixa de dor na
mão. Por um tempo, ele ficou deprimido, mas a renda mensal lhe permitiu um
bom nível de vida. O programa de reabilitação, por meio de medicamentos
controlou o humor e o suporte emocional permitiu enfrentar o afastamento do
violino. Ele decidiu aproveitar sua afinidade com a música e seu perfil de
liderança para iniciar a carreira de regente, com o que voltou a freqüentar os
palcos de outrora. Desde a amputação, ele vinha recebendo benefício
previdenciário de “auxílio doença” e aguardava sua aposentadoria. Todavia,
mediante a constatação pelo perito de que ele havia voltado ao trabalho na
orquestra, o benefício foi interrompido e a aposentadoria foi negada. Ele não se
importou com a interrupção do benefício, tendo em vista que a renda oriunda
do seguro e do trabalho como maestro o superava muito.
Uma nova perspectiva do indivíduo passa a ser percebida quando os
fatores de contexto são considerados. Aspectos pessoais, como a frustração
com a amputação e incapacidade causada por ela representa uma barreira
interna ao desenvolvimento da funcionalidade. Todavia, a ressignificação da
situação com a ajuda do suporte psicoafetivo do programa de reabilitação e
controle da dor, o aproveitamento das habilidades prévias e da dinâmica
pessoal de relacionamento, são facilitadores. Ainda, é necessário destacar que
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o suporte financeiro propiciado pelo seguro, o benefício previdenciário, o apoio
pelo serviço de saúde e atitude sem preconceito da orquestra ao aceitá-lo na
regência são fatores ambientais com claro efeito facilitador.
Os fatores de contexto podem, portanto, atuar como facilitadores ao
incrementar as potencialidades do indivíduo para realização de atividades ou
participação. Em contraposição, as barreiras são os aspectos do ambiente e da
pessoa que impedem total ou parcialmente essas realizações e que não estão
diretamente relacionados á condição de saúde.
Capacidade é definida como a realização de uma atividade por um
indivíduo no seu maior nível potencial, ou seja, quando tem o melhor conjunto
de fatores facilitadores. Em contraposição, aquilo que ela de fato faz na sua
rotina diária é o seu desempenho. A discrepância entre a capacidade e o
desempenho deve ser sempre observada, pois destaca a interferência dos
fatores de contexto sobre as atividades e participações. Se, por um lado o
tratamento médico e as terapias de reabilitação atuam aumentando a
capacidade (curam o corpo, ou aumentam a força, a coordenação, a eficiência
dos órgãos etc), a identificação dos facilitadores e barreiras permite
intervenções que otimizam o desempenho, tornando-o o maior possível e mais
próximo da capacidade.
No exemplo com o qual vimos trabalhando, uma barreira importante foi a
desestruturação da auto-imagem e das expectativas do músico que se viu
incapacitado. A capacidade para reger estava presente, mas o desempenho
era muito inferior, pois o fator pessoal (forma de enfrentamento do problema)
impedia o seu potencial. O suporte psicoafetivo agindo como fator ambiental
facilitador, permitiu o estabelecimento de um novo plano de vida de
restauração da capacidade de trabalho (igualando a capacidade e
desempenho).
O modelo, teoricamente, não privilegia a etiologia e adota uma
terminologia aceita mundialmente para mensurar a funcionalidade no nível do
indivíduo e também considerando os aspectos socioambientais. Este modelo
teórico é útil para a definição e avaliação de qualquer programa e intervenção
de reabilitação. Ele identifica a patologia subjacente, os problemas no nível do
funcionamento dos órgãos e da estrutura corporal permitindo reconhecer o
potencial para restauração / otimização da funcionalidade do indivíduo. Além
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disso, este modelo leva em consideração a habilidade de participação em
sociedade, a qual depende não somente da funcionalidade do sujeito, mas
também de fatores contextuais que afetam a vida e o ambiente do paciente e
seus familiares.
Avaliação da incapacidade
Partiremos do modelo de entendimento da funcionalidade humana
exposto acima para relacionar aspectos que devem ser sistemática e
rotineiramente observados na pessoa com deficiência.
Estruturas do corpo
Partindo do parâmetro anatômico de normalidade, descreve-se a
alteração morfológica atual. São aspectos normalmente observados na pessoa
com deficiência motora: a amplitude de movimento articular, deformidades da
coluna e do esqueleto apendicular, trofismo muscular, aspecto da pele e
anexos, amputações ou ausência de membros ou segmentos de membros.
Recursos propedêuticos complementares à inspeção visual são
radiografias e outros recursos de imagem, medidas objetivas como
comprimento, circumetria (facilmente documentados com uma fita métrica) e
registro da movimentação articular com um goniômetro.
Figura 2 – goniometria do tornozelo
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Funções do corpo
As primeiras funções a serem observadas são os aspectos cognitivos,
como o nível de consciência, linguagem, qualidade de voz, organização do
pensamento, crítica quanto ao próprio estado de saúde e funcionalidade. Essa
avaliação pode ser complementada por testes neuropsicológicos de
sofisticação variada que podem ser realizados em ambiente de consultório ou
em situações mais controladas. Estes aspectos das funções cognitivas serão
aprofundados na aula de reabilitação do paciente com lesões encefálicas
adquiridas.
Como a incapacidade motora é o tema central deste texto, daremos
ênfase a descrição da avaliação das funções fisiológicas mais relacionadas ao
movimento:
• Força – avaliada por meio do teste manual de força, que é de fácil
realização em consultório e na beira do leito e serve para
avaliação grosseira de segmentos corpóreos com deficiências
mais graves. Outros recursos para quantificação da força são os
testes com pesos fixos definindo a carga máxima para a
realização de 10 repetições ou podem ser usados dinamômetros
isométricos ou isotônicos
Figura 3 – Dinamômetro isocinético
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• Reflexos e tônus muscular, bem como sensibilidade superficial e
profunda, coordenação motora e visuo-espacial, percepção visual
e auditiva são adequadamente avaliados no exame físico.
• Padrão de marcha – deve ser avaliado por meio da observação
do paciente no consultório se as dimensões do mesmo assim o
permitirem. Avaliações mais precisas podem ser feitas com
sistemas eletrônicos que quantificam parâmetros como:
o Qualidade da marcha: terapêutica, domiciliar, comunitária
o Necessidade de dispositivos auxiliares de marcha
o Velocidade da marcha
o Tamanho do passo
o Cadência
o Cinemática – a relação entre os segmentos do corpo
durante a marcha
o Cinética – as cargas e forças aplicadas a cada segmento
do corpo durante a marcha
o Eletroneuromiografia de superfície – o recrutamento
muscular em cada fase do ciclo de marcha
Figura 4 – Análise cinemática e eletromiográfica da marcha
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• Avaliação podobarométrica – é um recurso computadorizado, no
qual a pressão nas diferentes regiões da planta do pé é obtido por
meio de transdutores que podem ser adaptados aos sapatos e
possibilitando a avaliação durante a marcha. É particularmente útil
nos quadros dolorosos, deformidades dos pés e pés insensíveis.
Figura 5 - Podobarometria
Outros aspectos relacionados à avaliação global do paciente e que
interferem diretamente sobre a capacidade funcional são aqueles relacionados
ao sistema cardiovascular (pressão arterial, freqüência cardíaca, débito
cardíaco, condicionamento cardiovascular, condições arteriais periféricas),
respiratório (freqüência respiratória, parâmetros expirométricos), hematológico
(anemia), metabólicas (equilíbrio hídrico, salino, metabolismo de carbohidratos,
lipídeos e proteínas).
Como parte rotineira da propedêutica, mas com especial importância na
avaliação da pessoa com deficiência, estão a avaliação gastrointestinal
(particularmente com relação a padrão de evacuações, aspectos de fezes e
necessidade de laxantes ou outros facilitadores) e genitourinário (tanto no
desempenho e satisfação com a vida sexual, fertilidade, bem como controle,
aspecto e recursos usados para diurese). Estas avaliações serão exploradas
com mais detalhes na aula sobre lesão medular.
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Atividades e participações
Um conjunto básico de atividades são entendidas como aquelas que são
efetuadas quase pela totalidade das pessoas em condições normais num dado
contexto social – a elas atribui-se a expressão atividades de vida diária (AVD).
Nelas estão contidos os seguintes subgrupos:
• Auto-cuidados: alimentação, higiene pessoal e banho, vestuário,
controle esfincteriano e uso do vaso sanitário
• Transferências: consistem da mudança de posição do corpo e da
passagem de uma superfície para outra, como passar de sentado
para em pé ou de uma cama para a cadeira.
• Locomoção no plano, rampas e escadas
• Comunicação, incluindo a compreensão e expressão, por meios
verbais ou não-verbais
• Resolução de problemas básicos e complexos, com a
identificação dos mesmos, proposição de soluções e auto-
correções.
Todavia, outras atividades e participações que exigem a utilização de
recursos ou treinamentos específicos também são habitualmente realizadas e
interferem na funcionalidade como um todo. Também são chamadas atividades
de vida prática (AVP) ou atividades instrumentais de vida diária (AIVD):
• Aprendizado e utilização do conhecimento, como ler, escrever,
calcular etc
• Cuidados domésticos
• Vida financeira
• Uso de meios de transporte
• Interação interpessoal, na família, com amigos, desconhecidos e vida
romântica
• Trabalho remunerado ou não
• Vida comunitária, entendida a partir de atividades de socialização,
esporte, lazer, participação em associações e vida religiosa
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Cada um dos tópicos mencionado acima pode ser estudado e
quantificado isolado ou em conjunto com os demais por meio de entrevista,
com escalas qualitativas ou quantitativas.
Uma dimensão que permeia todas as síndromes incapacitantes é a
independência. Em maior ou menor grau de acordo com o quadro de cada
paciente, a possibilidade de definir o curso a ser dado para a própria vida pode
estar comprometido, reduzindo a autonomia na tomada de decisões. A
dependência implica necessariamente na disponibilização de esforço externo
ao indivíduo para satisfação das suas necessidades.
Um dos fatores que destaca a importância da dependência são suas
repercussões sobre o indivíduo, a família e a sociedade. Assim, a pessoa que
se torna dependente pode passar a ter uma pior avaliação do seu valor,
comprometendo sua auto-estima e cronicamente resultando em depressão. Por
outro lado, é necessário entender que a educação ocidental e urbana reforça a
crença de independência e é de se esperar que ela se torne um valor pessoal,
assim como a religião ou outros princípios pessoais. Desta forma, o
comprometimento da independência por conta da instalação de uma deficiência
resulta na desestruturação da auto-imagem, agravando ainda mais o quadro
emocional e as perdas.
Para a família, a instalação de uma pessoa dependente exige a
disponibilização de recursos – seja na forma de contratação de mão-de-obra ou
eleição de um cuidador entre os membros da família – comprometendo a renda
ou relacionamentos. A prestação de cuidados a uma pessoa dependente pode
ser extremamente desgastante à medida que o cuidador também perde a sua
autonomia e passar a precisar ficar disponível para a pessoa de quem ele
cuida. O tempo dedicado ao outro é uma das maiores fontes de estresse entre
cuidadores.
No âmbito social, a independência está diretamente relacionada à
participação, ou seja, quanto mais independente, maior a participação em
atividades sociais, trabalho, lazer etc. Todavia, essa associação não é
absoluta, havendo os felizes exemplos de pessoas que apesar da enormidade
das suas deficiências e da extrema incapacidade, ainda assim alcançam
participações de destaque em cargos de gestão privada ou pública e na vida
acadêmica.
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A Medida de Independência Funcional (MIF) é um instrumento de
avaliação da quantidade de cuidados que uma pessoa requer para as AVD.
Uma série de 18 atividades são avaliadas a partir da quantidade de cuidados,
ou nível de dependência, numa escala qualitativa de 7 níveis. Assim, a
pontuação 18 é a mais baixa e indica maior nível de dependência, enquanto o
valor 128 refere-se a independência completa para as atividades consideradas.
A MIF é um instrumento padrão para avaliação dos custos associados ao
cuidado diário de uma pessoa, especialmente em países nos quais as pessoas
com deficiência podem receber de seus seguros (sociais ou privados) o direito
a ir para instituições especializadas ou obter suporte contínuo de cuidadores
pagos. Ela também permite determinar as intervenções de reabilitação a serem
implementadas, pois identifica os aspectos mais comprometidos do indivíduo.
Também possibilita o acompanhamento da evolução funcional de forma
quantitativa. (consultar a folha “Formulário de avaliação da MIF”)
Participação
Reabilitação para Inclusão Social
A Organização Mundial da Saúde, desde o século passado, afirma que
saúde não é apenas ausência de doença e conceitua saúde como completo
“bem-estar” biopsicossocial. Esta afirmativa sinaliza o entendimento da
qualidade de vida como fator de importância na percepção do sujeito sobre sua
saúde. A interação com o meio social em que está inserido, o acesso aos bens
e serviços disponibilizados aos demais cidadãos, o reconhecimento do seu
próprio papel e de sua importância dentro do núcleo familiar e da comunidade
são alguns dos requisitos indispensáveis à qualidade de vida.
Qualidade de vida, na definição da OMS, é a percepção do indivíduo de
sua posição na vida, no contexto de sua cultura e no sistema de valores e em
relação às suas expectativas, padrões e preocupações. A qualidade de vida ou
os sentimentos que expressam esta condição – felicidade e bem-estar – são
uma preocupação antiga e muito relevante para as pessoas com deficiência.
O acesso à Reabilitação é um direito humano básico, garantido pela
Declaração das Nações Unidas (1993) e pela 58ª Resolução da Assembléia da
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Organização Mundial de Saúde (2005). Além disso, o Estado Brasileiro
assegura pela legislação o acesso das pessoas com deficiência aos serviços
de saúde.
A igualdade de acesso à reabilitação e a participação social sem
qualquer forma de discriminação são os fundamentos de uma sociedade justa.
As pessoas com deficiência devem ser participantes ativos na criação e no
desenvolvimento dos serviços de reabilitação. As boas práticas na reabilitação
garantem que a pessoa com deficiência esteja no centro da abordagem
multidisciplinar e seja capaz de fazer escolhas quanto aos objetivos e
processos do programa de reabilitação.
A prevalência da incapacidade é aceita na maior parte dos países
desenvolvidos como em torno de 10%. No Brasil, o Censo Demográfico 2000
do IBGE mostrou que 14,5% da população tem algum tipo de deficiência. As
populações estão envelhecendo e isso implica num acréscimo de pessoas com
incapacidade.
A reabilitação é eficaz na redução da carga da incapacidade e no
aumento das oportunidades de inclusão social para as pessoas com
deficiência. Prevenir as complicações secundárias decorrentes da imobilidade,
da lesão cerebral e da dor produz muitos benefícios tanto qualitativamente para
o completo estado de saúde do indivíduo como quantitativamente em termos
de implicações financeiras para a sociedade.
O objetivo maior da Reabilitação é garantir autonomia e independência
funcional às pessoas com deficiência, consideradas as restrições impostas por
deficiências resultantes de doenças ou lesões. Na prática, este objetivo é
atingido mais satisfatoriamente através de uma combinação de medidas para
superar ou trabalhar com as deficiências do paciente e medidas para remover
ou reduzir as barreiras à participação do indivíduo em seu ambiente familiar e
social. Os dois resultados fundamentais da Reabilitação que devem ser
demonstrados são o bem-estar da pessoa e sua participação ativa na
sociedade incluindo a profissionalização.
Fatores de contexto Fatores ambientais
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Os fatores ambientais são classificados em 5 grupos fundamentais:
• Produtos e tecnologia – incluindo os artefatos desenvolvidos pelo
homem a partir do conhecimento tecnológico, conhecidos como
ajudas técnicas. Está incorporado aqui quase todo o armamental
terapêutico usado pelo médico generalista ou especialista, como
medicamentos e dietas, mas também todas as adaptações
efetuadas no meio ambiente para aumentar a desempenho
pessoal, como próteses, órteses, auxiliares de marcha, recursos
de acessibilidade física, dispositivos de ampliação visual ou
auditiva, ergonomia, meios de comunicação, entre outros.
o Próteses: são recursos tecnológicos de substituição de um
órgão ou membro. Exemplos de membros protéticos: pé,
perna, membro inferior, mão, dedos, mama, pênis, olho.
o Órteses: são recursos tecnológicos de substituição de uma
função ou aumento de desempenho. Exemplos de órteses:
suropodálica, cruropodália, coletes, posicionamento de
punho e dedos.
o Adaptações: são modificações do instrumental de trabalho
para a realização de AVD ou AVP.
o Meios auxiliares de marcha: são os recursos tecnológicos
de suporte ao corpo durante a marcha. Exemplos: muletas,
bengalas, andadores.
o Cadeiras de rodas: lembrando que há um sem-número de
adaptações disponíveis, podem ser de propulsão manual
ou mecânica-motorizada.
Estas ajudas técnicas devem ser avaliadas com relação ao real
impacto que têm sobre o desempenho. Isso significa verificar se elas
são realmente utilizadas. Características como custo e
disponibilização por recursos públicos interferem no acesso a tais
recursos. Todavia, não basta apenas tê-los, é necessário verificar se
estão adequadamente adaptados ao corpo, se o peso não é
excessivo, a qualidade e durabilidade do material, pontos de pressão
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e dor causada pelo uso, outras formas de desconforto ou irritação da
pele.
• Ambiente natural – contempla os aspectos geográficos relativos a
relevo, hidrografia, população, animais e poluição.
• Apoios e relacionamentos – são as pessoas e grupos sociais com
quem os indivíduos se relacionam
• Atitudes – abrangem os comportamentos, ações e crenças das
pessoas ou grupos de pessoas com quem os indivíduos se
relacionam. Uma atitude é uma disposição ou sentimento em
relação a uma pessoa ou coisa. No cotidiano, a atitude de um
profissional em relação a um paciente ou a uma situação é
importante porque atitudes de superioridade e conceitos
incorretos podem ser barreiras em potencial ao diagnóstico e
tratamento bem-sucedidos. A atitude de um profissional é
especialmente importante ao tratar com populações especiais tais
como pessoas com deficiência. A deficiência de uma pessoa pode
ser vista pelo profissional como uma característica negativa. Além
disso, este profissional pode ter o sentimento de que uma pessoa
com deficiência é diferente de uma pessoa normal. Em ambos os
casos, estas atitudes ou reações podem afetar a qualidade do
atendimento profissional à pessoa com deficiência. Por exemplo,
um gestor da área de saúde preconceituoso pode efetuar a
distribuição dos recursos de forma a deixar de fora as pessoas
com deficiência. As atitudes negativas da mídia podem influenciar
de forma contrária a sociedade, compondo o resultado adverso
que se caracteriza como preconceito e discriminação. O ambiente
cultural e social influencia as atitudes das pessoas. É importante
mensurar estes efeitos, avaliar o impacto destas atitudes na
alocação de recursos e nas políticas públicas. É fundamental a
implementação de ações administrativas para reverter estas
crenças e oportunizar o entendimento sobre a diversidade na
construção de uma sociedade justa.
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• Serviços, sistemas e políticas – são as instituições públicas ou
privadas e a forma como elas interferem sobre a funcionalidade
das pessoas
Alocação de Recursos para a Assistência à Pessoa co m deficiência
Uma das discussões mais relevantes na definição das estratégias de
assistência no âmbito da Medicina Física e Reabilitação é a questão da
alocação de recursos. Freqüentemente se justifica a dificuldade do
planejamento pela falta de informações adequadas; no entanto, a experiência
tem mostrado que os dados do Censo 2000 do IBGE são adequados e
suficientes para o planejamento e estimativa de alocação de recursos.
É preciso romper este círculo cruel que não disponibiliza recursos
porque não tem dados, por falta de recursos não se implementa uma
assistência de qualidade e a falta de assistência se reflete na falta de série
histórica.
Assim, mesmo considerando-se a possibilidade de equívocos, devemos
utilizar a base de dados do IBGE e propor políticas de operacionalização da
assistência. Além dos dados do IBGE, destacamos a importância dos registros
no sistema SIH-SUS decorrentes das internações hospitalares.
As informações do SUS traduzem a urgência do tema e a necessidade
de implementação das boas práticas de reabilitação.
Em 2005, o total de internações do SUS considerando todos os Estados
brasileiros correspondeu a 11.739.975, excluindo-se as internações
decorrentes de partos e outras causas maternas (Data SUS/2005).
O número de internações por acidentes vasculares cerebrais de todos os
tipos somou 204.203, refletindo um percentual de 2,23% (fonte: SIA-SUS,
2005). Um número não conhecido de pacientes com quadros mais leves é
atendido nos pronto-socorros e nas unidades clínicas, o que nos permite inferir
que os registros hospitalares são dos casos moderados e graves e, portanto,
com risco efetivo de seqüelas. Se 10% desses pacientes - conforme os dados
do DATASUS-Mort - vão a óbito, é de se supor que tenhamos 20.000 novos
casos por ano com necessidade de assistência reabilitacional, cuidados
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médicos, órteses e medicamentos. Na linha das doenças crônico-
degenerativas, os acidentes vasculares cerebrais são os de maior prevalência.
Desde 1980, observa-se uma mudança no perfil de internações e
mortalidade por causas externas.
Em 1980, os acidentes de trânsito assumiam uma grande importância.
Na década de 90, a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança, a melhoria
do sistema de atendimento pré e intra-hospitalar e a introdução em 1998 do
novo Código de Trânsito Brasileiro foram decisivos para o declínio observado
nessas ocorrências. Entre os acidentes de trânsito, permanecem as altas taxas
de atropelamento e acidentes com moto. No capítulo das causas externas,
chama atenção a tendência crescente das agressões e dos ferimentos por
arma de fogo.
Malta e colaboradores registram o processo de implantação da política
de redução da morbimortalidade por acidentes e violência; no entanto, os
números obtidos nos registros de internações do SUS ainda se apresentam
como um desafio às políticas de saúde e segurança e um alerta para a Política
Nacional de Reabilitação, que tem nesse jovem – preferencialmente do sexo
masculino, vitimizado pela violência – o alvo de sua atenção.
Nos mais de onze milhões de internações no Brasil, o SUS registra:
� 98.977 (1,08%) de pacientes com traumatismo crânioencefálico
� 6.393 (0,07%) de amputações dos membros superiores
� 3.666 (0,04%) de amputações dos membros inferiores
� 3.476 (0,04%) de traumas raquimedulares
Estes números não incluem as doenças que podem evoluir para lesões
medulares, ou os distúrbios metabólicos e plurimetabólicos que podem evoluir
para amputações de membros.
A avaliação circunstancial dos números registrados no DATA-SUS nos
remete a uma situação desafiadora, que é providenciar a necessária infra-
estrutura para mais de 300.000 novos pacientes a cada ano, sem considerar a
freqüência dos agravos de infância que em decorrência da anoxia neonatal,
das infecções do sistema nervoso central e das malformações congênitas
exigem um atendimento de Reabilitação especializado e articulado com o
sistema formal de educação.
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Referências
1. CIF: classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde. São Paulo: Edusp, 2003. 325 p.
2. European Academy of Rehabilitation Medicine, European Federation of Physical and Rehabilitation Medicine, European Union of Medical Specialists (Physical and Rehabilitation Medicine Section). White Book on Physical and Rehabilitation Medicine . Madrid; Universidad Complutense de Madrid, 1989.
3. MALTA, Deborah Carvalho, LEMOS, Maria do Socorro Alves, SILVA, Marta Maria Alves, et al. Iniciativas de vigilância e prevenção de acidentes e violências no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). Epidemiol. Serv. Saúde , v.16, n.1, p.45-55, mar. 2007.
4. SOUZA, Maria de Fátima Marinho de, MALTA, Deborah Carvalho, CONCEICAO, Gleice Margarete de Souza, et al. Análise descritiva e de tendência de acidentes de transporte terrestre para políticas sociais no Brasil. Epidemiol. Serv. Saúde , v.16, n.1, p.33-44, mar. 2007.
5. PEAT, M. Attitudes and access: advancing the rights of people with disabilities. CMAJ ; v. 156, n. 5, p. 657-9, mar. 1997.
6. Divisão de Medicina de Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Movimento sem barreiras. São Paulo: DMR HC FMUSP, 2005. 104 p.
Avaliação da incapacidade Questões
1) Um motoboy de 34 anos, sem doenças prévias, sofreu um acidente de
motocicleta grave no qual ocorreu amputação traumática ao nível do terço
médio da coxa esquerda. Também houve perda de 40% da volemia e
perfuração torácica, ele precisou de drenagem e desenvolveu pneumonia
hospitalar. Ficou 2 semanas em UTI em isolamento. Ao receber alta hospitalar,
estava muito emagrecido, com lesões de pele na extremidade do coto de
amputação, e o quadril esquerdo permanecia em flexo de 15º. Ele foi
aposentado por invalidez, pois não tinha outras habilidades profissionais.
Assinale a alternativa correta:
a. A amputação é a deficiência da função.
b. A restrição a participação neste caso é a fraqueza
c. A motocicleta é um fator pessoal
d. O tratamento médico é uma participação
e. O flexo de quadril é uma deficiência de estrutura
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2) O paciente encontra-se ansioso com relação ao tema de protetização, pois
deseja voltar às atividades rotineiras. Assinale a alternativa que correlaciona o
item avaliado e sua importância para a definição do programa de reabilitação:
a. O estado do coto (perimetria ou volume) e deformidade do quadril não
interferem na protetização (tamanho e angulação do encaixe)
b. A dor no coto melhora espontaneamente com a adaptação da prótese
(descarga de peso)
c. O treino de marcha com prótese produz o mesmo consumo energético
que a marcha normal, não exige avaliação da capacidade aeróbia
d. A cicatrização do coto é o primeiro item a ser solucionado, quando se
pensa em protetização
e. O equilíbrio não precisa ser avaliado, pois o paciente usará muleta.
3) Sua esposa trabalha como caixa de supermercado e estuda à noite num curso
supletivo. Ele passa o dia em casa com um filho 6 anos. O seu programa de
reabilitação ocorre num serviço ambulatorial. Assinale a alternativa correta
com relação às AVD e atividades domiciliares:
a. Independência para o banho – toma banho sozinho, sentado numa
cadeira de plástico
b. Sendo amputado de um membro inferior, ele não poderá mais dirigir
c. Devido a dor à flexão do quadril direito, só consegue calçar esse pé no
centro de reabilitação, com a supervisão de um terapeuta ocupacional e
uma calçadeira,mas não tem calçadeira em casa e fica descalço. O
desempenho é melhor que a capacidade.
d. No início do processo de reabilitação o filho o ajudava na locomoção
com cadeira de rodas dentro de casa. Não se fala de dependência
nesta situação, porque ele é o responsável pelo filho.
e. Este homem nunca fez qualquer tipo de trabalho doméstico, então sua
capacidade para fazê-los é nula.
4) Com relação à participação social (CIF), pode-se afirmar:
a. Como ele está aposentado, a capacidade de trabalho dele é nula.
b. A determinação da capacidade para o trabalho não exige uma avaliação
completa do potencial funcional.
c. Neste caso, a atitude do perito ao aposentá-lo atua como facilitador
para a participação social.
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d. Neste caso, a baixa escolaridade é um fator ambiental que interfere na
participação
e. A mera amputação do membro inferior não justifica a aposentadoria
5) Um homem de 50 anos, tabagista, obeso, diabético e hipertenso foi internada
com sinais de sofrimento isquêmico de pés. Ela contava que nos último ano
tinha dor em membros inferiores ao caminhar 100 ou 150 metros, mas que a
dor melhorava com repouso de 5 minutos. Na semana anterior à internação ele
percebeu uma úlcera na planta do pé esquerdo, não havia dor, mas os sinais
de inflamação e infecção local eram evidentes. Não houve melhora com
curativos domésticos e ele procurou o posto de saúde, de onde foi
encaminhado para um pronto socorro. Na recepção do PS verificou-se grave
comprometimento da sensibilidade dolorosa e ao toque leve, mau estado da
pele e onicomicose, além de pulsos pedioso e tibial posterior indetectáveis à
esquerda, mas levemente percebidos à direita. Na planta do pé esquerdo havia
uma úlcera que se estendia por toda face inferior do calcâneo, com exposição
de tecido subcutâneo e parte da musculatura plantar. Nesse pé também havia
uma lesão enegrecida junto a cabeça do primeiro metatarso, sem
comprometimento da integridade epidérmica. Ele foi internado para
antibioticoterapia e adequação do controle metabólico e da pressão, mas o
estado de perfusão do pé esquerdo piorou e foi proposta a amputação ao nível
do terço médio da perna direita. Ele morava apenas com a esposa, trabalhava
como vendedor de uma banca de jornais e no tempo livre gostava de “mexer
em aparelhos elétricos”, efetuando pequenos consertos de eletrodomésticos
para amigos e parentes. Assinale a alternativa correta:
a. Após a amputação bastará disponibilizar a órtese e ele rapidamente
deverá recuperar a capacidade de locomoção.
b. No centro de reabilitação, ele contou que trabalhara no ano anterior
como almoxarife onde permanecia muito tempo organizando objetos em
prateleiras altas. Na época desenvolveu dor nos ombros que persistia
até então. O exame físico mostrou redução da força e dor à rotação
interna dos ombros contra a resistência. O exame ultrassonográfico
evidenciou uma lesão dos tendões redondos menores e supra-
espinhais bilateralmente, o que, felizmente, não impede a locomoção
com muletas.
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c. A avaliação ergométrica (cicloergômetro de membros superiores)
evidenciou sofrimento miocárdico isquêmico frente a esforços leves. Ele
não terá problemas para o treino de marcha.
d. Uma semana após a alta surgiu uma pequena úlcera na planta do pé
direito. Estava indicada a realização de uma podobarometria e
utilização de uma palmilha especialmente desenhada para redução dos
pontos de maior pressão no pé.
e. Considerando as informações das alternativas b, c e d, não há
indicação de uso de cadeira de rodas.
6) Com relação ao paciente descrito na questão 5, pode-se afirmar:
a. Como ele continuou a trabalhar na banca de jornais, mesmo usando
uma cadeira de rodas, pode-se dizer que apesar de ter uma deficiência,
o comprometimento da participação não foi completo.
b. Como ele precisa de ajuda para vestir a metade inferior do corpo, mas
não a metade superior, ele não tem dificuldades para as AVDs.
c. Uma vez que ele conversa, resolve problemas, faz parte dos auto-
cuidados, sua independência está normal.
d. Não precisar de ajuda ou adaptação para lidar com dinheiro é sinal de
independência nas AVDs.
e. Apesar de tornar-se dependente para AVDs e algumas AVPs nenhuma
mudança ocorreu na sua família.
7) Assinale a alternativa correta com relação ao caso apresentado na questão 5:
a. A qualidade de vida do paciente é ruim, porque ele sofreu uma
amputação.
b. Quando ele foi questionado quanto aos seus objetivos com o programa
de reabilitação, ele disse não estar incomodado com usar a cadeira de
rodas, desde que pudesse fazer as AVDs de forma independente e ir à
banca de jornais em frente à sua casa.
c. Este paciente dirigia antes de sofrer a amputação, mas parou de fazê-
lo. O benefício social que mais vai ajudá-lo no transporte neste
momento é a isenção tarifária para ônibus e metrô.
d. Como ele evoluiu pra amputação do outro pé, piorou a condição
cardiológica com a redução da atividade física, agravou o quadro de
tendinite dos ombros ao usar a cadeira de rodas sem um preparo
adequado, ele só poderá se deslocar com ajuda de terceiros.