XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS
HISTÓRIA DO DIREITO
ANTONIO CARLOS WOLKMER
GUSTAVO SILVEIRA SIQUEIRA
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H673
História do direito [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS;
Coordenadores: Gustavo Silveira Siqueira, Antonio Carlos Wolkmer, Zélia Luiza Pierdoná –
Florianópolis: CONPEDI, 2015.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-5505-059-6
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de
desenvolvimento do Milênio
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. História. I. Encontro
Nacional do CONPEDI/UFS (24. : 2015 : Aracaju, SE).
CDU: 34
Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br
XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS
HISTÓRIA DO DIREITO
Apresentação
O interesse pela História do Direito tem crescido significativamente no Brasil nos últimos
anos. A inclusão da disciplina no conteúdo dos cursos de graduação, desde o início dos anos
2000, tem contribuído para o conhecimento e expansão da área. Sendo ainda uma área (ou
sub-área) nova, a História do Direito, ainda luta para sedimentar-se academicamente dentre
as disciplinas chamadas de zetéticas. Ao contrário da Filosofia do Direito e da Sociologia do
Direito, já consagradas em currículos, eventos e produções nacionais, a História do Direito
ainda carece, se comparada com as outras áreas, de um certo fortalecimento metodológico e
teórico.
Nesse sentido a existência de fóruns, como o GT de História do Direito no CONPEDI,
auxilia que trabalhos, já com preocupações metodológicas e teóricas de grande sofisticação,
convivam com os de pesquisadores iniciantes no tema. Mas, se por um lado, a referida
disciplina luta para consolidar sua especialidade em relação à Sociologia do Direito e à
Filosofia do Direito, ela é palco de internacionalização e de refinados trabalhos acadêmicos.
A ausência da disciplina no Brasil, durante alguns anos, fez com que o intercâmbio
internacional fosse uma necessidade, logo na formação da disciplina. O mencionado fato
levou diversos professores e pesquisadores a uma profunda inserção no meio acadêmico
internacional. Daí o contraste da História do Direito: uma disciplina jovem, pouco difundida
e sedimentada em muitos cursos jurídicos, mas que, por outro lado, tem dentre seus
pesquisadores mais inseridos, um elevado nível de pesquisa e internacionalização.
Neste contexto, os trabalhos apresentados no CONPEDI e publicados aqui, servem para
demonstrar uma área em transição e em processo de fortalecimento. Assim, eles contribuem
para problematização de métodos, metodologias e teorias que podem ser aplicadas à História
do Direito.
As apresentações tiveram temas genéricos e específicos, abarcando desde aspectos da
presença e influência do "common law no Brasil, passando pelo direito romano e temas
conexos. Também foram discutidos pensadores como Hobbes, Virilio, Habermas e Leon
Duguit, e temas como espaços femininos, ideias marxistas, movimentos sociais e a trajetória
do Direito no Brasil. Este foi o principal tema dos trabalhos que reuniu contribuições sobre o
Período Colonial, a escravidão, a educação e a cultura jurídica. Também foi problematizado
o Direito no Período do Império, as eleições de 1821, a obra de Diogo Feijó, a questão da
legislação sobre a adoção e o Estado laico e confessional. Sobre o Período Republicano, os
trabalhos preocuparam-se com história do Direito Penal, crimes políticos, jurisprudência do
STF e Relatório Figueiredo.
Desejamos a todos uma excelente leitura!
Antonio Carlos Wolkmer (UFSC - UNILASALLE)
Gustavo Silveira Siqueira (UERJ)
Zélia Luiza Pierdoná (MACKENZIE)
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO LONGO DA HISTÓRIA JURÍDICA BRASILEIRA E O SEU PAPEL PARA O DESENVOLVIMENTO DO
ESTADO LAICO
THE PRINCIPLE OF RELIGIOUS FREEDOM ON THE BRAZILIAN LEGAL HISTORY AND ITS ROLE IN THE DEVELOPMENT OF THE SECULAR STATE
Rogério Magnus Varela Gonçalves
Resumo
Da mesma forma como foi tormentosa, no plano da história universal, a consolidação da
liberdade religiosa, assim também o foi na evolução histórico-constitucional dessa temática
no Brasil. Nessa marcha evolutiva, sempre houve uma ligação muito estreita entre a história
do tratamento jurídico dos sentimentos religiosos em Portugal e no Brasil. É que na vivência
do constitucionalismo em Portugal e no Brasil, verificaram-se três momentos nítidos e
distintos: um princípio comum, um afastamento relativo e um reatamento estreito. O texto
busca estudar a liberdade religiosa no que tange ao seu surgimento e a sua solidificação no
direito brasileiro, bem como a sua importância para o desenvolvimento do estado laico.
Palavras-chave: Liberdade religiosa, História do direito, Direito constitucional.
Abstract/Resumen/Résumé
The consolidation of the religious freedom was arduous in the evolution of this theme in
Brazil, just as it was in the universal context. During the process of advance, the relation
between State and Religion was quite identical in Brazil and Portugal. The history of the
Brazilian and Portuguese constitutionalism have the different phases: the same origin, a
separation due the Brazilian autonomy and a rapprochement. The main objective of the work
is to analyze the root and the consolidation of the religious freedom in the Brazilian state, as
well as its importance to the development of the secular state.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Religious freedom; legal history; constitutional law
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1. INTRODUÇÃO
O presente estudo analisa as principais pegadas históricas relativas ao surgimento e a
consolidação do primado da liberdade religiosa no Brasil. Muito em virtude da colonização
portuguesa e dos estreitos laços firmados (do descobrimento até a decretação da
independência, em 1822) entre Portugal e a religião católica apostólica romana, a observação
histórica revela que o Brasil tradicionalmente foi composto de uma sociedade de maioria
monoconfessional católica. Ferreira da Cunha (2007, 197) assinala que, desde longa data, a
história constitucional portuguesa imbrica-se na brasileira, até porque, em ambos os países, o
grande legislador constitucional foi D. Pedro. Portanto, a exemplo do que ocorrera em terras
lusitanas1, não existiram conflitos religiosos de maior relevância ao longo da história do
Brasil. Registre-se, a respeito, que uma das características marcantes da sociedade brasileira
foi o senso comum de tolerância e de respeito pelas escolhas religiosas das pessoas. A
harmonia religiosa prepondera e é vislumbrada no campo institucional-religioso, entre as
distintas confissões religiosas, bem como entre os adeptos, sendo também uma tônica no
relacionamento travado entre o poder político e o poder religioso.
Convém, todavia, relativizar essas assertivas, por serem muito amplas e genéricas.
Como estratégia para realizar essa tarefa, será feita uma pequena abordagem sobre alguns dos
principais fatos da história do Brasil que têm correlação com a temática religiosa. Nessa
caminhada, verificar-se-á que a regra (harmonia religiosa) foi permeada por períodos de
exceção (intolerância e perseguição religiosas). Isso aconteceu geralmente como reflexo de
alguns períodos lusitanos de maior inflexibilidade na imposição de uma religião oficial,
fazendo com que as minorias religiosas sofressem indisfarçáveis violências.
O estudo do percurso histórico que será iniciado nas linhas seguintes serve também
para demonstrar que a sedimentação da liberdade religiosa foi elemento de indisfarçável
importância para o desenvolvimento do ideário republicano em terras brasileiras, bem como
possui ligação inquebrantável com a defesa da natureza laica do Estado brasileiro.
2. O BRASIL-COLÔNIA E A QUESTÃO RELIGIOSA
Durante o período colonial brasileiro, preponderava o imperialismo lusitano, sendo
1 Acerca da ausência de atritos religiosos graves desde a fundação da nacionalidade portuguesa até o reinado de
D. Manuel, vide ADRAGÃO, 2002. p. 284. O autor lusitano chega mesmo a referir que a Igreja Católica teria
sido um componente decisivo, juntamente com a unidade linguística, para a formação da identidade nacional
portuguesa.
461
inquestionável que os principais ecos ouvidos na parte mais tropical do Atlântico eram a
união entre o trono e o altar. Verificava-se também a conjugação de dois grandes interesses da
coroa portuguesa e da Igreja Católica: o econômico e o religioso.
As alegações acima expendidas são robustecidas com as lições de Riolando Azzi
(2001, pp. 46/74). Ele lembra que, à frente do projeto de expansão do império e do
cristianismo, estavam os monarcas portugueses, aos quais, desde meados do século XV, os
papas haviam concedido o direito do padroado. Em decorrência desse direito, a Santa Sé
delegava aos reis de Portugal a missão de evangelizar as novas terras, estabelecendo nelas a
instituição eclesiástica. Assim, sob o manto protetor do monarca, os colonizadores
portugueses julgavam-se imbuídos da missão de organizar a cristandade colonial, ou seja,
difundir e expandir a cristandade lusitana. O povo português daquela quadra histórica era
essencialmente desbravador e colonizador, sendo considerado também como possuidor de
muita fé. Contudo, a fé era bem peculiar, na medida em que era perpassada pelo espírito da
cruzada, segundo a qual a cruz e a espada deveriam caminhar juntas na expansão do reino de
Deus. Tal fato deixou a sua marca na história brasileira, porquanto vários nativos foram
mortos em decorrência de resistirem à conversão católica.
Para Gilberto Freyre (1999, p. 29), a manutenção da unidade religiosa era o principal
fator de preocupação do colonizador português. Tanto era assim que os benefícios da coroa
portuguesa, dentre os quais as doações de terras (por meio das cartas de sesmarias), apenas
poderiam ser concedidos aos católicos. Segundo afirma, na formação do Brasil, os
colonizadores estavam despreocupados com a unidade e a pureza racial, mas sensivelmente
voltados para uma homogeneidade do espírito. Com efeito, durante o século XVI, a Colônia
esteve aberta aos estrangeiros, apenas sendo exigido pelas autoridades coloniais que fossem
adeptos da fé católica. Tanto era assim que, durante largos períodos coloniais, havia a prática
de ir um frade a bordo de qualquer embarcação que aportasse no Brasil, com o desiderato de
examinar a consciência dos recém-chegados. A heterodoxia era fator de inibição do efetivo
ingresso no território brasileiro. A debilidade física, a saúde comprometida e a natureza até
mesmo contagiosa da enfermidade eram postas em plano secundário. O que importava, para a
aceitação dos estrangeiros, era sua saúde religiosa, então compreendida como sinônimo de se
professar a religião católica.
Na mesma linha de pensamento, Guedes Soriano (2002, p. 68) esclarece que o
português considerava seu igual apenas aquele que tinha a mesma religião. O aspecto central,
para o colonizador lusitano, era que o estrangeiro professasse a religião católica. Em
consequência, o não-católico era tido como um verdadeiro adversário político, temendo-se
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que o seu ingresso no país pudesse fragilizar a estrutura colonial desenvolvida em parceria
com a religião católica. Havia, pois, um forte liame entre a Igreja (católica) e o Estado (coroa
portuguesa). Durante toda a história colonial brasileira, esse enlace foi mantido, com o
objetivo de combater os calvinistas franceses, os reformadores holandeses e os protestantes
ingleses, além, evidentemente, dos ateus. Durante o período colonial brasileiro, o Estado
português controlou, com mão de ferro, o campo religioso, tendo perpetrado, dentre outras, as
seguintes medidas: estabeleceu o catolicismo como religião oficial; concedeu-lhe o
monopólio religioso; subvencionou suas atividades; reprimiu as crenças e as práticas
religiosas dos índios e dos negros escravos; impediu a entrada de religiões concorrentes,
sobretudo a protestante, proibindo seu livre exercício no país (2001, pp. 127/128).
É de se destacar também que a Igreja Católica, no período do Renascimento, por
ocasião das descobertas ultramarinas, estava assaz envolvida com as questões seculares. O
objetivo era obter uma expansão missionária da grandeza correspondente à que se exigia,
levando-se em consideração o vasto campo de ação aberto com os novos territórios e um
substancial número de indivíduos para serem transformados em novos cristãos. Como já foi
referido alhures, inicialmente se conferiu aos colonos a missão de conversão dos gentios.
Entretanto, com o passar dos anos, restou evidente a pouca eficácia desse modelo, de modo
que a Igreja Católica teria que empreender novos esforços para difundir o cristianismo no
ultramar. As ordens religiosas se propuseram, nesta perspectiva, a levar adiante esse
movimento missionário, sendo os franciscanos os protagonistas nessa tarefa. Posteriormente,
alguns integrantes da Companhia de Jesus mostraram grande interesse no seu envio para
auxiliar na conversão religiosa dos gentios do Novo Mundo. Como se verificará adiante, os
membros da Companhia de Jesus iriam assumir uma posição de destaque na tarefa de
evangelização dos indivíduos que povoavam os novos territórios ultramarinos.
Nesse ponto, a história do Brasil, como é evidente, tinha uma vinculação estreita com
a de Portugal, até porque faziam parte de uma só história. Prova disso é que, pouco antes do
descobrimento das terras brasileiras, D. Manuel assinou, em 25 de dezembro de 1496, um
édito que determinava a expulsão, no prazo de dez meses, de todos os judeus e mouros não-
convertidos, residentes em terras portuguesas. Foi nesse contexto, de pouca tolerância para
com as minorias religiosas, que Pedro Álvares Cabral aportou nas novas terras sul-
americanas. Logo após a chegada nas distantes terras da Ilha de Vera Cruz, coube a Frei
Henrique Soares de Coimbra celebrar a primeira missa no novo território, com o
inquestionável intuito de deixar patente a estreita ligação entre a Coroa portuguesa e a religião
católica.
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Desde cedo, ficou evidenciada, no território recém-descoberto, a ligação entre o
Estado e a Igreja Católica, bem como o alargamento da jurisdição eclesiástica portuguesa para
o novo continente conquistado em decorrência de sua expansão marítima. Como lembra
Correa da Silva (2004, p. 26), o novo território foi logo submetido à jurisdição espiritual do
vigário de Tomar. Já em 1551, foi criada, pelo papa Júlio III, a primeira diocese em terras
brasileiras, com sede na cidade de São Salvador. Em 1676, por obra do papa Inocêncio XI, a
diocese de São Salvador foi elevada à Dignidade Arcebispal e metropolitana, tendo como
sucedâneas, em solo brasileiro, as dioceses de São Sebastião do Rio de Janeiro e Olinda.2
A criação da Companhia de Jesus, durante o reinado de D. João III, foi uma
reafirmação do governo lusitano, no sentido de tomar para si a missão de difundir e exigir a
observância da fé cristã nas terras descobertas, aí se incluindo o Brasil, agora com o decisivo
auxílio dos religiosos. A responsabilidade de cristianizar as novas terras coube,
fundamentalmente, aos missionários jesuítas que, partindo de território luso, intencionavam
aculturar religiosamente os povos conquistados, impondo-lhes os usos e os costumes cristãos.
Com esse objetivo, a Companhia de Jesus estabeleceu-se na América portuguesa e, junto com
o primeiro governador-geral, vieram para o Brasil os primeiros jesuítas: os padres Manuel da
Nóbrega, Antônio Pires, Aspicuela Navarro, Leonardo Nunes, Diogo Jácome e Vicente
Rodrigues. Apesar de não ter sido a primeira ordem a aqui se instalar, eis que, como dito
alhures, os franciscanos foram os precursores nessa empreitada eclesiástica, os integrantes da
Companhia de Jesus foram os mais proeminentes atores na vida religiosa colonial brasileira.
A Companhia de Jesus pretendia não apenas cristianizar os povos do Novo Mundo,
mas também conquistar essas almas para a Igreja Católica. Porém, não se pode negar que os
propósitos confessionais das ordens religiosas que se dirigiam às terras descobertas estavam
impregnados de ambições políticas. Em nome de intenções piedosas, estabelecia-se a luta pela
restauração do poder político da Igreja de Roma, abalado pela reforma protestante. Nessa
tarefa, a Companhia de Jesus buscava trazer os povos das novas terras para o seio da Igreja
Católica. Por outro lado, buscava impedir que ocorresse, nas comunidades indígenas, a
penetração das seitas "heréticas". Com esse propósito, lançava as bases da igreja romana,
além de manter a vigilância sobre os colonos, de forma que não se desgarrassem dos preceitos
católicos. Essas funções eram outorgadas às ordens religiosas em geral e aos jesuítas em
particular.
2 Registre-se, em complemento à informação da autora, que, além de São Sebastião do Rio de Janeiro e Olinda, a
elevação de Salvador a arcebispado teve o objetivo de também lhe tornar sufragâneas as dioceses africanas de
Angola e de Cabo Verde.
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O ensino ministrado pelos jesuítas, tanto em Portugal quanto no Brasil, era público e
gratuito. Entretanto, a manutenção econômica dos membros da Companhia de Jesus era
subvencionada pelo poder público. Para tanto, D. Sebastião instituiu, em 1564, uma taxa
especial destinada à Companhia, denominada redízima, que era descontada sobre todos os
dízimos e direitos da Coroa. Para além dessa cooperação econômica do Estado, as missões
possuíam fonte própria de subsistência dos religiosos, eis que montavam verdadeiras
empresas agroextrativas nas terras conquistadas. Esse bom relacionamento entre os poderes
político e religioso enfrentou um momento de grande desgaste, quando, no ano de 1759, os
jesuítas foram compelidos a abandonar as terras brasileiras, em face de um decreto expedido
durante o governo de D. José. É que teriam sido acusados de colaboração com a guerra
libertária realizada contra a Coroa portuguesa, além de acusações de que enfrentavam
problemas com a catequização dos indígenas (SILVA, 2004, p. 28).
O mesmo D. João III, apesar de criar a Companhia de Jesus em seu reinado, foi
responsável por um dos períodos de manifestação oficial da intolerância religiosa, com o
cesarismo do Estado em Portugal, seguindo-se a implantação da Inquisição. Com efeito, o
citado monarca exerceu forte pressão perante o poder religioso, tendo mesmo ameaçado o
papa Paulo III de cisma. Logrou o seu intento e conseguiu do Vaticano a autorização
definitiva para a instauração do Tribunal da Inquisição em Portugal, em 1547, desencadeando
graves consequências para as colônias. Não obstante jamais tenha sido instituído um Tribunal
da Inquisição no Brasil, não se pode desconhecer que, ao longo do período colonial, essa
instituição funcionava plenamente em Lisboa. Assim, os acusados de cometerem crimes
religiosos no Brasil eram transportados até Lisboa para serem julgados e, a depender do
veredicto, executados. Atitudes dessa natureza reforçavam a intolerância religiosa e
demonstram a ausência de liberdade religiosa no Brasil durante o período colonial.
Contudo, o mais relevante elemento jurídico na relação firmada entre o Estado
português e a igreja, tendo perdurado durante o período colonial e imperial brasileiros, não foi
a Companhia de Jesus, tampouco o Tribunal da Inquisição, mas sim foi o direito de padroado
(jus patronatus). Como resultado desse sistema de auxílio recíproco entre os poderes político
e religioso, foi deferida pelos papas a concessão do direito de padroado aos reis portugueses
da época. Eram vários os direitos e deveres do padroado português, dentre os quais se
destacam: a construção, a conservação e a reparação das igrejas, mosteiros e demais lugares
de culto das dioceses; a doação dos objetos necessários ao culto; a deputação e o sustento dos
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eclesiásticos e seculares necessários à ministração do serviço religioso (NUNES, 2005, pp.
150/151).3
No regime do padroado, o soberano português era considerado o patrono da igreja.
Firmava-se entre o Estado e a Igreja Católica uma estruturação jurídica semi-contratual
(bilateral e onerosa), pela qual aquele cobrava diretamente da população os dízimos e rendas
eclesiásticas e, em troca, obrigava-se a manter e expandir a propriedade da igreja, financiar o
trabalho educacional e missionário, bem como sustentar o clero secular (diocesano) e regular
(ordens). Dentre os poderes do soberano, estava a prerrogativa para a designação de bispos,
párocos e outros funcionários da igreja, que eram incorporados à estrutura estatal (ALVES,
2008, p. 45). Registre-se que esse privilégio de escolha dos candidatos às dioceses ou
paróquias não dispensava a confirmação e a anuência do papa, que se reservava o direito de
aceitar ou não a indicação do soberano.
No ano de 1677, foi instituído, na cidade de São Salvador, o primeiro Tribunal
Eclesiástico do Brasil. A criação dessa corte despertou o interesse pelo estudo do direito da
religião e resultou na elaboração, já em 1707, da primeira obra jurídica exclusivamente
brasileira, intitulada “As constituições primeiras do arcebispado da Bahia” (ALVES, 2008, p.
46). Convém registrar que o discurso mobilizado no referido estudo não é de grande pureza
jurídica, eis que estava impregnado do discurso teológico-confessional. Em sua essência, o
texto foi resultante do primeiro sínodo arquidiocesano, tendo posteriormente se tornado a base
do direito canônico brasileiro.
A situação jurídica da igreja no território português da América estava estabilizada e
se manteria sem alterações de maior importância ao longo do restante do período colonial.
Esse quadro permaneceu mesmo após a elevação, em 1720, da colônia do Brasil à condição
de vice-reino de Portugal. Em suma, e buscando a retenção de ideias centrais, poder-se-ia
afirmar que, durante o período colonial, os principais elementos caracterizadores do fenômeno
religioso em terras brasileiras foram: a predominância do preconceito religioso e as
consequentes restrições às liberdades religiosas; a violência contra os índios e negros que, em
alguma medida, resistiam a conversão ao catolicismo; a marcante presença educacional dos
jesuítas; a instalação do Tribunal Eclesiástico; o efetivo exercício do direito do padroado e a
3 A autora Rosa Dionízio Nunes destaca que o direito do padroado foi sendo sedimentado paulatinamente e que o
processo de ampliação das concessões durou cerca de oitenta anos para ser concluído. Lembra que, através do
documento Dudum pro parte, de Leão X, datado de março de 1516, passou a ser conferido aos reis de Portugal o
direito universal de padroado em todas as igrejas sob o seu domínio. Esclarece ainda a pesquisadora que a
primeira referência expressa ao padroado real, nos territórios do ultramar, é encontrada na bula Dum fidei
constantiam, datada de 07 de junho de 1514, de Leão X. Nela, foi concedido ao monarca português, D. Manuel I,
o direito de apresentação para todos os benefícios nas terras adquiridas nos dois anos anteriores e nas
futuramente adquiridas, sendo que nas restantes o direito pertencia ainda à Ordem de Cristo.
466
atuação da “santa inquisição”. Na verdade, as mudanças de maior impacto no panorama
jurídico-religioso do vice-reino do Brasil só iriam ocorrer após a compulsória transferência da
família real portuguesa para terras sul-americanas, buscando refúgio da iminente invasão de
Napoleão Bonaparte. Surgiu, a partir daí, um novo momento da temática religiosa no Brasil,
especificamente no início do período imperial.
3. O BRASIL IMPÉRIO E A QUESTÃO RELIGIOSA
Dois anos após a chegada da família real portuguesa ao Brasil, que ocorreu em 1808,
foram assinados pelo príncipe regente D. João três tratados de aliança e comércio entre as
Coroas de Portugal e de Inglaterra. No Tratado da Amizade, Comércio e Navegação, verifica-
se a primeira concessão de uma literal (e relativa) garantia de tolerância religiosa no direito
luso-brasileiro conferida aos súditos britânicos. Foi-lhes facultada a prática de seus cultos
religiosos, mesmo que distintos dos cultos da igreja católica apostólica romana.4
4 Existe, nesse aspecto, relevante discordância doutrinal: para Ingrid Pinheiro Correa da Silva, o tratado apenas
permitia que os súditos da coroa inglesa que residissem no Brasil realizassem seus cultos em suas casas ou em
locais destinados às reuniões e que não possuíssem forma exterior de templo (obra citada, p. 31). Já para Othon
Moreno de Medeiros Alves, o tratado foi mais abrangente, permitindo que os súditos ingleses edificassem
templos, capelas ou igrejas. Esta maior amplitude levou-o a advogar a tese de que haveria um primeiro sinal de
liberdade e não de simples tolerância religiosa (obra citada, p. 48). Inicialmente, não se pode concordar com a
alegação de que havia uma liberdade religiosa, ante as restrições e as penalidades impostas aos que criticassem a
religião católica. Havia, sim, tolerância. Quanto ao dissenso doutrinário acima apontado, no que diz respeito à
existência ou inexistência de possibilidade de edificação de igrejas e capelas, o texto contido no art. 12 do
tratado, assinado em 19 de fevereiro de 1810, não deixa dúvidas de que Medeiros Alves está correto. Porém, a
divergência é justificável, eis que, muito embora fosse possível construir igrejas e capelas, elas não poderiam
possuir tal forma exterior. Para dar maior fidedignidade ao alegado, o trabalho julgou oportuno transcrever o
texto do tratado: “Sua Alteza real, o Príncipe Regente de Portugal, declara, e se obriga no seu próprio nome, e no
de seus herdeiros e sucessores, que os vassalos de Sua Majestade Britânica, residentes nos seus territórios e
domínios, não serão perturbados, inquietados, perseguidos ou molestados por causa de sua religião, mas antes
terão perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e celebrarem o serviço divino em honra do
Todo-Poderoso Deus, quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas Igrejas e Capelas, que Sua Alteza
Real agora, e para sempre graciosamente lhes concede a permissão de edificarem e manterem dentro dos seus
domínios. Contanto, porém, que as sobreditas Igrejas e Capelas sejam construídas de tal modo que externamente
se assemelhem a casas de habitação; e também que o uso dos sinos não lhes seja permitido para o fim de
anunciarem publicamente as horas do serviço divino. Ademais, estipulou-se que nem os vassalos da Grã-
Bretanha, nem quaisquer outros estrangeiros de comunhão diferente da religião dominante nos domínios de
Portugal, serão perseguidos ou inquietados por matéria de consciência, tanto no que concerne às suas pessoas
como suas propriedades, enquanto se conduzirem com ordem, decência e moralidade e de modo adequado aos
usos do país, e ao seu estabelecimento religioso e político. Porém, se se provar que eles pregam ou declamam
publicamente contra a religião católica, ou que eles procuram fazer prosélitas, ou conversões, as pessoas que
assim delinquirem poderão, manifestando-se o seu delito, ser mandadas sair do país, em que a ofensa tiver sido
cometida. E aqueles que em público se portarem sem respeito, ou com impropriedade para com os ritos e
cerimônias da religião católica dominante serão chamados perante a polícia civil e poderão ser castigados com
multas, ou com prisão em suas próprias casas. E se a ofensa for tão grave e tão enorme que perturbe a
tranquilidade pública e ponha em perigo a segurança das instituições da Igreja e do Estado estabelecidas pelas
leis, as pessoas que tal ofensa fizerem, havendo a devida prova do fato, poderão ser mandadas sair dos domínios
de Portugal. Permitir-se-á também enterrar em lugares para isso designados os vassalos de Sua Majestade
Britânica que morrerem nos territórios de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal; nem se perturbarão de
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Desde então, inaugurou-se um período de tolerância religiosa no direito brasileiro,
algo que viria a influenciar a elaboração da Lei Fundamental do Império, em 1824. Com o
advento da Carta Constitucional imperial, é possível fazer-se um retrato da questão jurídico-
religiosa pelo espírito contido no seu art. 5º. O citado dispositivo dispunha que a religião
católica apostólica romana continuaria a ser religião oficial do Império. Entretanto, todas as
demais religiões eram permitidas em seu culto doméstico e particular, em casas para isso
destinadas, sem demonstração exterior de templo. Havia, pois, a consolidação do regalismo,
eis que o modelo adotado deixava evidenciada a precedência do poder político, sendo
induvidoso que as exigências da liberdade religiosa foram, naquela oportunidade, seriamente
mutiladas.
Ao apreciar a questão religiosa na Constituição imperial, José Afonso da Silva (2001,
p. 254) chegou a afirmar que, em verdade, não houve no Império liberdade religiosa. Lembra
que o culto católico gozava de grande privilégio e podia realizar-se livremente. Todavia,
muitas restrições eram impostas à organização e ao funcionamento da própria religião oficial,
a ponto de hoje se reconhecer que era uma religião manietada e escravizada pelo Estado,
através da sua intervenção abusiva na esfera da igreja. Ora, se não havia real liberdade
religiosa nem em prol da religião oficial, com maior de razão, eram impostas severas
discriminações para as minorias religiosas, que eram apenas toleradas. Por exemplo, os
cidadãos que não professassem a religião oficial, os chamados “acatólicos”, não poderiam, até
o advento da Lei Saraiva (de 1881), ser eleitos para cargos públicos, sendo verdadeiramente
excluídos da vida política.
Foi observando esse contexto que Rui Barbosa (1880, p. 142) negou categoricamente
a existência de liberdade religiosa, de consciência e de culto no período imperial brasileiro.
Para ele, a liberdade religiosa só seria possível com um processo de irradiação sensível da
consciência livre. Por essa razão, não se podia falar em liberdade religiosa e de consciência,
sem a efetiva liberdade de cultos. Já para Ribeiro Bastos (2000, p. 191), a liberdade de
consciência religiosa existia, até porque estava interligada com o plano interior do indivíduo.
O que não havia era a liberdade de exteriorização dessa consciência religiosa. Por
conseguinte, entende que existia, no Império, a liberdade de crença, sendo restrita apenas a
liberdade de culto.
modo algum, nem por qualquer motivo, os funerais ou as sepulturas dos mortos. Do mesmo modo, os vassalos
de Portugal gozarão nos domínios de Sua Majestade Britânica de uma perfeita e ilimitada liberdade de
consciência em todas as matérias de religião, conforme o sistema de tolerância que se acha neles estabelecido.
Eles poderão livremente praticar os exercícios da sua religião pública, ou particularmente nas suas casas de
habitação, ou nas capelas, e lugares de culto designados para este objeto, sem que lhes ponha o menor obstáculo,
ou embaraço, ou dificuldade alguma, tanto agora como no futuro”. Vide REILY, 1993. pp. 40/41.
468
Os elementos constitucionais mais característicos da relação Estado-igreja durante o
Império foram os seguintes: havia a confessionalidade do Estado (vivenciava-se um Estado
confessional com claro regalismo); havia o caráter público e oficial da Igreja Católica
Apostólica Romana; havia tolerância religiosa individual e coletiva; as religiões não-católicas
deveriam manter-se fora do espaço público. Sem dúvida, durante o Império, o regime do
padroado foi mantido. Observe-se também que o preâmbulo da Constituição invocava a
proteção da Santíssima Trindade. O texto constitucional ainda estabelecia que os cemitérios
eram religiosos, sendo que havia a recusa de sepultamento para os que não professavam a
religião do Estado. O padroado, todavia, deixava de ser uma concessão papal e transmudara-
se num direito próprio do principado civil. Nesse sentido, o § 2º do art. 102 da Constituição,
além de conceder a faculdade ao imperador para nomear bispos, conferia-lhe também a
possibilidade de promover benefícios eclesiásticos e negar a vigência de qualquer norma
eclesiástica que fosse contrária aos dispositivos constitucionais. Em suma, a
constitucionalização da tolerância religiosa foi o marco mais relevante deixado pela Carta
Política do Império.
A monarquia brasileira se fragilizou ao longo dos anos. Em consequência,
começaram a ser ouvidas, por todos os lados, vozes a defender a implantação da República.
Ademais, estavam cada vez mais presentes as ideias liberais. No campo das relações travadas
entre o poder político e o religioso, o liberalismo influenciaria diversos setores da sociedade,
difundindo ideias de liberdade, livre-arbítrio, gradativa emancipação da pessoa humana e
crença no valor de cada indivíduo. A propagação dessas ideias liberais ocorreu,
fundamentalmente, em seguida à distribuição de diversos periódicos franceses e por meio dos
estudantes brasileiros que se graduavam em Coimbra. A ação da maçonaria também foi
relevante na propagação do liberalismo no Brasil (SILVA, 2004, p. 33). Desde que foi
fundada a Grande Loja de Londres, em 1717, a maçonaria passou a refletir o espírito do
século: tolerância religiosa; fé no progresso da humanidade e em Deus (considerado pelos
maçons como o Supremo Arquiteto da humanidade); racionalismo; aversão pelo sacerdócio
oficial e pela fé em milagres. Por essa identificação com os pensamentos libertários da
Revolução Francesa e pela presença de seus membros em quase todos os movimentos
revolucionários que eclodiram à época (aí se incluindo a proclamação da República no
469
Brasil), a maçonaria passou a ser identificada como a grande inimiga do trono e do altar,
tornando-se o alvo preferencial da nominada “Santa Aliança”.5
O consórcio (quase uma simbiose) existente entre os poderes político e religioso, que
perdurou até o final do Império, produziu uma série de atritos e de distorções. Vários foram os
confrontos decorrentes da natureza antiliberal do Estado e das constantes interferências
religiosas no Estado e deste na igreja, contribuindo para a derrocada imperial (RIBEIRO,
2002, p. 83). Com efeito, a abolição da escravatura, ditada pela Lei Áurea, somada às pressões
de relevantes figuras públicas (muitas das quais por meio da maçonaria e outras ligadas a
autoridades católicas) abriram uma fenda nas relações estabelecidas entre o governo imperial
e a Igreja Católica. Essa fissura fomentou o episódio conhecido por “questão religiosa”,
culminando por conduzir à proclamação da República, em 15 de novembro de 1889 (SILVA,
2004, p. 34). É inegável que a “questão religiosa” foi o evento catalisador do distanciamento
entre a Igreja Católica e o regime imperial. A partir daí, a continuidade da aliança entre igreja
e Estado tornara-se insustentável, sendo a questão religiosa elemento decisivo e determinante
para a vitória dos propósitos de instalação republicana no Brasil. Naturalmente, as
significativas modificações no quadro político provocaram claros desdobramentos na temática
religiosa.
4. A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA E A QUESTÃO RELIGIOSA
A liberdade religiosa e a laicidade do Estado em terras brasileiras foram
estabelecidas logo após a proclamação da República e, até mesmo, antes de ser promulgada a
primeira Constituição republicana. Esse foi o momento de viragem da temática religiosa no
Brasil que, desde 1500, caracterizara-se pela existência de uma confissão religiosa imposta ou
recomendada pelo Estado. Assim, a partir da proclamação da República, o Estado deixou de
ser o mandatário da igreja.
Com efeito, em 07 de janeiro de 1890, foi promulgado o Decreto nº 119-A, do
governo provisório, estabelecendo a separação entre o Estado e as igrejas, determinando-se,
também, a extinção do padroado. Desde o advento do citado diploma legal, o Estado
brasileiro assumiu a posição de garantidor da liberdade e da pluralidade religiosa. A doutrina
especializada atribui a Rui Barbosa a redação da normativa de separação. Para José Afonso da
5 Isabel Lustosa realizou um estudo de fôlego, com abordagem predominantemente histórica, sobre a
importância da maçonaria na proclamação da República do Brasil e na defesa dos pensamentos liberais. Vide
LUSTOSA, 2000, pp. 56/58.
470
Silva (1997, p. 244), a República principiou estabelecendo a liberdade religiosa, bem como a
separação entre igrejas e Estado. Isso se deu antes mesmo da constitucionalização do novo
regime, com o citado Decreto nº 119-A, de 1890, expedido pelo governo provisório.
Para Guedes Soriano (2002, p. 73), Rui Barbosa teve um papel fundamental no
processo de separação entre as igrejas e o Estado e também na promoção da liberdade
religiosa. O sistema republicano emergente não mais podia conviver com as restrições à
liberdade religiosa, especialmente no que se referia ao culto religioso. A liberdade de
pensamento e de consciência, conforme alegava Rui Barbosa, era de pouca valia, quando se
restringia a exteriorização dessas faculdades. Por essa razão, procurou-se fazer do Brasil um
Estado laico, observando-se que tal rompimento ocorreu com relativa tranquilidade e sem
movimentos anticlericais violentos. A participação de Rui Barbosa foi decisiva para a
elaboração de um texto que enfrentou, com serenidade, um dos temas mais delicados do
Estado brasileiro de então. Segundo a doutrina especializada, além de discreto e preciso, o
texto não continha excessos, nem expressava ódios ou quaisquer sentimentos antirreligiosos
(SCAMPINI, 1974, p. 378).
A ideia de separação contava com robusta aceitação popular, entendendo-se que
contribuiria para a pacificação nacional e a promoção da estabilidade da República. Some-se a
esse elemento o auspicioso fato de que não houve qualquer expropriação de propriedades e de
bens da religião majoritária. Mesmo no seio desta, havia vozes preferindo a liberdade
religiosa republicana ao tratamento dispensado pelo antigo modelo de religião oficial
imperial. Usava-se o argumento de que a proteção estatal anteriormente concedida pelas
autoridades políticas do Império tinha se convertido numa espécie de engessamento das
atividades religiosas.
Além das contínuas ingerências imperiais nos domínios da igreja, havia uma
sistemática frieza, para não dizer desprezo, no que concerne aos reclamos da religião católica.
Sendo assim, de maneira geral, a posição da Igreja Católica quanto à lei de separação foi de
concordância. Até porque, da forma como foi redigido o decreto da separação, assegurava-se
à Igreja Católica uma gama de liberdades como ela nunca logrou ter no tempo da Monarquia
(SCAMPINI, 1974, p. 380). Contudo, não deixaram de existir críticas6, sendo as mais
evidentes aquelas contra a secularização dos cemitérios públicos e o reconhecimento jurídico
limitado ao matrimônio civil (ALVES, 2008, p. 54/55).
6 A pastoral coletiva (constituída pelo arcebispo da Bahia, dez bispos e um vigário capitular), em 19 de março de
1890, aprovou um dos raros documentos de maior contestação da Igreja Católica em face da Lei de Separação.
Nesse documento, lamentava-se a cisão, afirmando-se que o trono poderia ter desaparecido de terras brasileiras,
mas que o altar ainda se encontrava de pé.
471
Para autores como Pedro Oro (2005, p. 439), Augusto Kirchhein (2003, p. 51),
Mainwaring (1989) e Giumbelli (2002, p. 238), a natureza pacífica da separação brasileira
entre o Estado e as Igrejas encontrava justificativa no fato de que a implantação jurídica da
liberdade religiosa deu-se por meio de iniciativas estatais e não tanto como fruto de pressões
populares. Como outro motivo suscitado para que a laicização brasileira fosse pouco
conflituosa, dizia-se que a questão da laicidade não conseguiu alcançar, no Brasil, um público
abrangente, ficando circunscrita às elites eclesiásticas, políticas e intelectuais. Tal
peculiaridade contribuiu para que o sentimento e a própria constatação popular de mudança
tivessem sido tímidos.
As mais marcantes modificações decorrentes do Decreto nº 119-A, de 1890, e que,
segundo Medeiros Alves (2008, pp. 54/55), teriam se perenizado no direito brasileiro foram as
seguintes: separação normativa entre o Estado e as igrejas, razão pela qual nem a União nem
os Estados Federados poderiam expedir quaisquer normas sobre assuntos religiosos, vedar o
seu livre exercício ou sustentar qualquer culto às expensas do dinheiro público; plena
liberdade interna e administrativa das organizações religiosas, o que incluiria o direito à livre
constituição civil, segundo o seu credo e disciplina; ilicitude de quaisquer atos públicos ou
privados que viessem a impossibilitar o livre exercício da liberdade religiosa coletiva previsto
no decreto; liberdade religiosa como expressão de um direito civil individual e também
coletivo, com pleno reconhecimento público da personalidade jurídica de direito privado
(não-estatal) das organizações religiosas e do direito destas de adquirir, gerenciar e manter seu
acervo patrimonial; extinção do padroado do Estado sobre a Igreja Católica, com todas as suas
instituições próprias, prerrogativas e recursos administrativos. Esta derradeira alteração foi de
suma importância, eis que – na prática e em concreto – propiciou a garantia e a efetividade
das demais medidas.
A Carta Política de 1891 promoveu a constitucionalização da natureza laica do
Estado, deixando evidenciada a separação entre o poder político e o religioso. Esta é a
constatação a que se chega a partir da detida análise dogmático-constitucional do seu texto. O
§ 2º do artigo 11 vedava aos Estados, bem como à União, estabelecer, subvencionar ou
embaraçar o exercício dos cultos religiosos. O art. 72 resumia a mudança no tratamento da
temática religiosa no país, ao dispor que todos os indivíduos e confissões religiosas podiam
exercer, pública e livremente, o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens,
observadas as disposições do direito comum (§ 3º); a República reconheceria apenas o
casamento civil (§ 4º); os cemitérios passaram a ter caráter secular, sendo administrados pela
autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos
472
em relação aos seus crentes, desde que não ofendessem a moral pública e as leis (§ 5º); o
ensino ministrado nos estabelecimentos públicos seria laico (§ 6º); nenhum culto ou igreja
gozaria de subvenção oficial, nem teria relações de dependência ou aliança com o governo da
União ou o dos Estados (§ 7º); por motivo de crença ou função religiosa, nenhum cidadão
brasileiro poderia ser privado de seus direitos civis e políticos nem eximir-se de cumprimento
de qualquer dever cívico (§ 28º); os que alegassem motivo de crença religiosa com o fim de se
isentarem de qualquer ônus que as leis da República impusessem aos cidadãos, e os que
aceitassem condecorações ou títulos de nobiliárquicos estrangeiros perderiam todos os
direitos políticos (§ 29º).
Desde o nascimento da República brasileira, foi instituída a liberdade religiosa e
como tal ela se constitui em patrimônio jurídico a ser preservado. Tal foi o entendimento que
norteou as demais cartas constitucionais da República Federativa do Brasil ao longo do século
XX.
5. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1934
Registre-se, desde logo, a natureza muito efêmera da Constituição de 1934, tendo
sido a de menor tempo de vigência em toda a história constitucional brasileira. A Lei
Fundamental em apreço foi decorrente da Revolução Constitucionalista de 1932, ocasião em
que a força pública do Estado de São Paulo entrou em choque com o exército brasileiro. Era
evidente, ao final da dita revolução, a necessidade de profundas alterações na Constituição de
1891, já obsoleta em face do dinamismo e da rápida evolução da política brasileira no início
do século XX. A Carta reformulava a organização da República Velha e era marcada por
mudanças progressistas.
No que tange à temática religiosa, em virtude de pressão de grupos políticos de
interesses religiosos e com lastro em bases liberais mais moderadas, a Constituição
incorporava ares de maior colaboração estatal para com as confissões religiosas. Se na
Constituição de 1891 a laicidade era marcada pelo distanciamento, o novo texto constitucional
caracterizava-se por uma laicidade positiva, aqui entendida como o Estado que deve ter em
conta as crenças religiosas na sociedade, não podendo ignorar o fenômeno religioso. O
modelo brasileiro deixava de ser o de laicidade por omissão, caracterizada pelo
distanciamento do Estado em face da questão religiosa, e passava a assumir o aspecto de uma
laicidade por atenção.
473
Não se pode esquecer que, uma vez convocada a Assembleia Constituinte, a igreja
participou do processo de escolha dos seus integrantes, por intermédio da Liga Eleitoral
Católica. Tratava-se de uma entidade comandada por leigos que defendiam uma série de
propostas para a nova Constituição, dentre as quais constava a indissolubilidade do
casamento, com a não aceitação do divórcio e a atribuição de efeitos civis ao casamento
religioso.7 Pode-se afirmar, então, que a Carta Política de 1934 promoveu, em certa medida,
uma recristianização da legislação brasileira. Não representou um retorno ao passado da união
entre o Estado e as igrejas, mas assegurou um respeito ao sentimento religioso dos cidadãos
(KOWALIK, 2009, p. 3). Não obstante tenha mantido a natureza laica do Estado brasileiro,
relativizou a separação entre o campo religioso e o político, evitando que fosse total, completa
e absoluta.8
Tanto é assim que houve um movimento “contra o laicismo da Constituição de 1891”
que conseguiu estabelecer um novo modus vivendi entre as religiões e o Estado. Como
resultado, foram aprovadas na Constituição de 1934 cinco alterações dignas de destaque nesta
temática. Como primeira, mencionou-se, no preâmbulo da Constituição, que os representantes
do povo brasileiro punham a sua confiança em Deus, invocado no ato de promulgação do
texto constitucional. A segunda alteração consistiu numa cláusula aposta ao texto de vedação
de subvenção oficial aos cultos e a aliança ou dependência. Com efeito, o constituinte de 1934
manteve o texto e o sentido do Decreto 119-A de 1890 e da Constituição de 1891. Todavia,
estabeleceu uma ressalva, no sentido de admitir no Brasil a cooperação entre Estado e igrejas.
Haveria, pois, que se relativizar a proibição de auxílios do Estado em prol das igrejas, quando
o interesse coletivo o exigisse.
7 O Supremo Tribunal Federal apreciou a retomada, pela Constituição de 1934, da aceitação de efeitos civis ao
casamento religioso. Com efeito, o então Ministro Cunha Peixoto, relator dos embargos no recurso
extraordinário registrado sob o nº 83.859-7/RJ, afirmou que a Constituição de 1934, abandonando o critério
rígido relativamente ao casamento leigo, prevalente no início da República, seguiu um caminho mais liberal,
permitindo o casamento religioso com efeito civil, mediante a observância de algumas formalidades que o
subordinavam à legislação material. Destacou ele a indispensabilidade de que os nubentes se habilitassem
perante a autoridade civil, para resolver os casos de oposição e verificar a existência ou não de impedimentos.
Apenas desse modo é que poderia o casamento celebrado perante sacerdote ou ministro de entidade religiosa ser
inscrito no Registro Civil. 8 Para muitos pensadores, desde longa data, ou existe separação absoluta ou não existe separação. Não haveria,
portanto, um ponto intermediário. Apenas a título ilustrativo, Melasporos foi um dos primeiros no Brasil a
registrar a necessidade de uma separação total entre o poder político e o religioso. Para ele, a separação completa
entre igrejas e Estado, a independência absoluta do poder religioso na economia, governo e direção dos cultos,
era o único meio de tornar satisfatórias as relações dos poderes civil e eclesiástico. Afirmou ainda que toda
restrição à liberdade do homem no exercício desse direito inalienável, toda intervenção coativa no cumprimento
dessa obrigação, todo esforço para constranger a consciência era um atentado contra a prerrogativa reservada e
privativa de Deus sobre o homem. Até porque a crença e o culto não podem ser agradáveis a Deus, senão quando
voluntários. Vide MELASPOROS, 1866. p. 26 e pp. 17/18.
474
A terceira modificação dizia respeito ao reconhecimento dos efeitos civis ao
casamento religioso. Nesse aspecto, observou-se a pluriconfessionalidade religiosa, eis que o
casamento celebrado perante o ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não
contrariasse a ordem pública ou os bons costumes, produziria os efeitos civis. A quarta
mudança permitiu a assistência religiosa em instituições públicas de internamento coletivo,
como hospitais, penitenciárias e instituições militares (registre-se que tal assistência, por
expressa disposição do art. 113, nº 6, haveria de ser sem ônus para os cofres públicos e não
poderia causar constrangimento ou coação aos assistidos).
A quinta alteração relevante no texto constitucional de 1934 foi a introdução do
ensino religioso como matéria facultativa nas instituições públicas. Essas mudanças foram
interpretadas como sinais marcantes da ruptura que o constituinte de 1934 efetuou do texto da
primeira Carta Constitucional da República (ALVES, 2008, pp. 61/62). Houve ainda algumas
alterações secundárias envolvendo as relações entre o Estado e as igrejas, tais como o retorno
da gestão dos cemitérios por parte das igrejas e a explicitação de que as associações religiosas
adquiririam sua personalidade jurídica, nos termos da lei civil.
No entendimento de Milton Ribeiro (2002, p. 86), a restrição da liberdade religiosa
em face da ordem pública e dos bons costumes teria a finalidade de abrir espaços contrários à
liberdade de crença e de culto. No entanto, o presente estudo entende que tais limitações
decorreram da natureza não absoluta de qualquer direito fundamental, mesmo o de liberdade
religiosa. Com efeito, como os direitos e os seus titulares estão em constante interação, é de se
louvar a prudência do constituinte de 1934 em reafirmar a possibilidade de, numa ponderação
de valores, fazer necessárias e pontuais restrições à liberdade de crença e de culto. Logo, não
se enxerga qualquer pretensão constitucional de sufocamento da crença ou do culto, mas sim
o desejo de compatibilizar tais garantias com outros bens jurídicos de igual grandeza e
dignidade constitucionais.
Reconheça-se também que o espírito da Constituição era respeitoso para com as
escolhas religiosas dos indivíduos, ao estabelecer que não haveria quaisquer privilégios ou
distinções por motivo de crenças religiosas ou concepções políticas (art. 113, item 1º). Como
reforço ou complemento, também ficou estabelecido que ninguém seria privado de qualquer
de seus direitos por motivo de convicções filosóficas, políticas ou religiosas (art. 113, item
4º). Por fim, a Constituição consagrou a inviolabilidade de consciência e de crença e garantiu
o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não houvesse qualquer contrariedade à
ordem pública e aos bons costumes (art. 113, item 5º). Para alguns mais críticos, a
Constituição de 1934 teria sido a mais católica da história do constitucionalismo brasileiro.
475
Afirma-se que a grande proximidade de Getúlio Vargas (que viria a governar o Brasil entre
1930 e 1945) com importantes autoridades eclesiásticas teria permitido que a Igreja Católica
recuperasse uma série de privilégios. A religião católica ostentava, no dizer de Ricardo
Mariano (2001, p. 145), o status de religião “quase-oficial” do país.
Como já referido no início deste tópico, a Carta Constitucional de 1934 foi bastante
fugaz. Em 10 de novembro de 1937, em pleno período de campanha presidencial, Getúlio
Vargas, sob o falacioso argumento de que se deveria deter a iminente infiltração comunista
em terras brasileiras, outorgou uma nova Constituição, deixando de ser um legítimo
presidente e transformando-se em ditador. Por conseguinte, o Estado revolucionário e
libertário até então pregado pela Carta de 1934 seria substituído por um Estado com
indisfarçável perfil autoritário.
6. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1937
A Carta Política de 10 de novembro de 1937 manteve a separação entre o Estado e as
igrejas, respeitando a tradição e o espírito republicano que se instalara desde o final do século
anterior. Tal assertiva resta evidente quando se aprecia a alínea “b” do art. 32 do referido
texto mandamental, que estabelecia ser vedado à União, aos Estados e aos Municípios
estabelecer ou subvencionar o exercício dos cultos religiosos. Entretanto, o espírito de
laicidade por atenção deixa de existir, verificando-se um retorno ao modelo de laicidade por
omissão. Tal fato comprometeu o cânone da cooperação entre o Estado e as confissões
religiosas. Pontes de Miranda (Apud SCAMPINI, 1974, p. 164) confirma essa mutação, ao
afirmar que a Constituição de 1937, no que se refere à laicidade do Estado, teria saltado a de
1934 e retornado a de 1891.
A Carta em exame não fez menção expressa à liberdade de consciência e de crença,
referindo-se apenas à liberdade de culto. Nesse sentido, o item 4 do art. 122 preconizava que
todos os indivíduos e confissões religiosas poderiam exercer, pública e livremente, seu culto,
associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum,
as exigências de ordem pública e dos bons costumes. O presente texto atribui a ausência de
referência à liberdade de consciência e de crença, entre outros motivos, ao fato de a
Constituição ter sido elaborada de afogadilho, com evidente má técnica legislativo-
constitucional. Contudo, é preciso fazer uma interpretação mais alargada do art. 123 da
Constituição de 1937. Dispunha o referido dispositivo que a especificação das garantias e
direitos enumerados não excluiria outras garantias e direitos resultantes da forma de governo e
476
dos princípios consignados na Constituição. Tal abertura poderia servir para abranger as
liberdades de consciência e de crença.
No que concerne ao casamento, a Constituição de 1937 quedou-se silente, não
dispondo sobre o matrimônio civil nem sobre o religioso, tendo deixado o regramento de tão
importante matéria para a regulamentação infraconstitucional. Houve, por conseguinte, a
recepção da Lei nº 379, de 16 de janeiro de 1937, que tinha atribuído os efeitos civis ao
casamento religioso previsto na Constituição de 1934.
Com a queda de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo, era necessária a elaboração
de uma nova Carta Constitucional, menos centralizadora e mais consentânea com os
parâmetros democráticos que voltavam a ser vislumbrados no território brasileiro. No campo
religioso, verificava-se o aumento do número de religiões não-católicas. Esse fato levou o
texto constitucional a ser mais receptivo para com a ideia de igual dignidade constitucional
das diversas confissões religiosas. É o que se irá estudar em seguida.
7. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1946
A Constituição de 1946, promulgada em 18 de setembro, foi resultado do processo
de redemocratização do país. Entre outras inovações, trouxe, em seu texto, vários preceitos no
sentido de evitar o centralismo e, assim, buscar implantar, efetivamente, o federalismo em
terras brasileiras. O contexto histórico nacional (com a queda do regime ditatorial de Getúlio
Vargas) e mundial (com a derrota de Adolf Hitler e de seus aliados na II Guerra Mundial) não
permitia a continuidade de asfixias à democracia. Assim, era chegado o momento de se
romper com o modelo anteriormente imposto e diluir as responsabilidades decisórias pelos
componentes da estrutura federativa. Impunha-se também promover a descentralização e a
desconcentração administrativas, para além de inserir, no contexto da dogmática
constitucional, uma série de valores e de axiomas9 esquecidos até o conhecimento dos
horrores praticados no decorrer da II Guerra Mundial. Partindo do fato de que a Constituição
democrática de 1946 resgatou o federalismo no Brasil, Michel Temer (2000, p. 72) assinala
que, nessa quadra histórica, o país experimentou a democracia de uma forma mais ampla e os
Estados-membros recuperaram parte de sua autonomia política.
9 A doutrina constitucional espanhola faz menção aos valores superiores que devem ser perseguidos pela
Espanha. A vigente carta constitucional do Brasil refere-se, em seu preâmbulo, aos valores supremos da
sociedade brasileira. A carga axiológica hoje vivenciada muito se deve aos primeiros textos constitucionais do
pós-guerra. Acerca do problema dos valores nas constituições hodiernas, vide CUNHA, 2008. pp. 83/90.
477
Fazendo-se um cotejo histórico-constitucional, verifica-se que a Carta de 1946 tinha
grandes aproximações com a Constituição de 1934, com algumas melhorias e
aprimoramentos. Ademais, teve o condão de provocar alargadas consequências no tratamento
das questões do direito da religião em terras brasileiras. A Lei Fundamental de 1946 manteve
a separação entre as igrejas e o Estado, conforme se depreende da leitura do seu art. 31.
Dispunha ele que era vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
estabelecer ou subvencionar cultos religiosos ou embaraçar-lhes o funcionamento. Além
disso, proibia aos entes federados manter relação de aliança ou dependência com qualquer
culto ou igreja, ficando ressalvada, todavia, a colaboração em prol do interesse coletivo.
A Carta Política de 1946 proclamou a inviolabilidade da liberdade de consciência e
de crença, bem como assegurou o livre exercício dos cultos religiosos, excetuando-se os casos
em que eles contrariassem a ordem pública ou os bons costumes (§ 7º do art. 141).
Estabeleceu que, por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém poderia
ser privado de nenhum de seus direitos. Ressalvava apenas a possibilidade de alguém invocar
essa convicção para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei aos
brasileiros em geral, ou recusasse os que ela estabelecesse em substituição daqueles deveres, a
fim de atender escusa de consciência (§ 8º do art. 141).
Seguindo esse ideário, prescreveu que, sem constrangimento dos favorecidos, fosse
prestada (por cidadão brasileiro) assistência religiosa às forças armadas e, quando solicitada
pelos interessados ou seus representantes legais, também nos estabelecimentos de internação
coletiva (§ 9º do art. 141). Preconizou, ainda, que os cemitérios teriam caráter secular e que
seriam geridos pela autoridade municipal. Nesse aspecto, convém destacar que permitiu a
quaisquer confissões religiosas praticar seus ritos no recinto dos cemitérios. Também é digno
de nota o fato de o texto constitucional permitir que as associações religiosas mantivessem
cemitérios particulares (§ 10 do art. 141).
Ademais, reafirmou a liberdade religiosa no Brasil, ao determinar, no § 1º do art.
141, ser inviolável a liberdade de consciência e crença, assegurando o livre exercício dos
cultos religiosos, salvo se contrariassem a ordem pública e os bons costumes. O Estado tomou
para si a missão de proteger as manifestações da liberdade religiosa, obrigando-se, por
imperativo constitucional, a impedir perturbações que partissem de terceiros e que tivessem
por finalidade o atingimento do efetivo direito de manifestação da pertença religiosa
(SCAMPINI, 1974, p. 178).
Ainda na esteira da retomada de preceitos da Constituição de 1934, o § 7º do artigo
141 da Carta de 1946 estabeleceu que a aquisição da personalidade jurídica das associações
478
religiosas dar-se-ia na forma da lei civil. Todavia, elas tinham liberdade para comprar ou
alienar bens, sendo-lhes também assegurado o direito de auto-organização. Outro retorno ao
espírito da Carta de 1934 foi observado no que concernia ao casamento. Nesse sentido, o art.
163, §§ 1º e 2º, tanto permitia a celebração separada do casamento civil e do religioso, como
também reconhecia a celebração conjunta, observando-se os ritos religiosos de cada
confissão, bem como as prescrições da lei civil. Como se observa, compôs-se um Estado mais
amigo e, consequentemente, mais colaborativo com a religião, sem que com ela se
confundisse.
8. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1967 E NA EMENDA
CONSTITUCIONAL Nº 1/1969
O pêndulo da história fez com que o Brasil voltasse a vivenciar um regime ditatorial,
tendo sido elaborada, por conseguinte, uma nova constituição autoritária. Registre-se que o
movimento antidemocrático imposto pelos militares em 1964 era, à época, uma constante na
América Latina. Nesse contexto, em 24 de janeiro de 1967, foi aprovada a nova Constituição
brasileira. O objetivo era institucionalizar e legalizar o regime militar que promovera o golpe
em 1964. Estabelecia-se, no ordenamento jurídico brasileiro, uma hierarquia constitucional
centralizadora, ante o maior peso concedido ao Poder Executivo em detrimento do Poderes
Legislativo e Judiciário. Não obstante o novo texto constitucional tenha mantido,
formalmente, o Brasil como uma federação, saltava aos olhos o seu desiderato centralista.
O relacionamento entre o Estado e a religião, como era de se esperar, também sofreu
mutações com a nova ordem constitucional militarizada, ante a tendência, própria dos
governos antidemocráticos, no sentido de centralizar a temática em legislação federal. Como
se não bastasse, o texto constitucional achou por bem enumerar os campos de atuação
preferencial de cooperação entre o Estado e as igrejas. Tais inovações funcionaram como
cláusulas limitatórias ou restritivas da cooperação entre o poder político e o poder religioso. O
art. 9º da Carta Constitucional de 1967 estabelecia, em seu inciso II, que era proibido à União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o exercício ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança. Ressalvava, entretanto, a colaboração por interesse
público, na forma e nos limites da lei federal, notadamente no setor educacional, no
assistencial e no hospitalar.
479
Na esteira da fragilização da liberdade de expressão, o parágrafo único do art. 30
estabelecia que não seria tolerada a publicação de pronunciamentos que envolvessem ofensas
às instituições nacionais, propaganda de guerra, de subversão, de ordem política ou social, de
preconceitos de raça, de religião, dentre outras. Na mesma linha repressiva de manifestação, e
com claro ar de reiteração do pensamento anteriormente descrito, o § 8º do art. 15310
determinava que não seriam toleradas as propagandas de guerra, de subversão da ordem ou de
preconceitos de religião, de raça ou de classe e de publicação e exteriorização contrárias à
moral e aos bons costumes.
O art. 15011
garantia que todos eram iguais perante a lei, sem distinções relativas ao
sexo, à raça, ao trabalho, ao credo religioso e às convicções políticas (§ 1º). Também
estabelecia ser plena a liberdade de consciência, ficando assegurado aos crentes o exercício
dos cultos religiosos, que não contrariassem a ordem pública e os bons costumes (§ 5º).
Igualmente, prescrevia que, por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou
política, ninguém seria privado de qualquer dos seus direitos, salvo se a invocasse para
eximir-se de obrigação legal imposta a todos. Nesse caso, a lei poderia determinar a perda dos
direitos incompatíveis com a escusa de consciência (§ 6º).
O governo militar, atendendo às solicitações da Igreja Católica, por meio do § 1º do
art. 175 da Constituição, estabeleceu a indissolubilidade do casamento. Houve, porém, grande
pressão popular e desconforto religioso por parte de algumas religiões minoritárias, tudo em
virtude do fato de que o constituinte tinha desconsiderado as confissões religiosas que
admitiam a dissolução do enlace matrimonial. Em consequência dos reclamos populacionais,
foi aprovada a Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977, implantando o divórcio
no ordenamento jurídico brasileiro. A matéria foi regulamentada no mesmo ano, por
intermédio da Lei nº 6.515. Contudo, as garantias constitucionais referentes à liberdade
religiosa e de crença eram postas de lado quando estavam em causa questões de segurança
nacional. Flávio Pierucci e Reginaldo Prandi (1996, p. 247) afirmam que, nos chamados anos
de chumbo, não havia liberdade religiosa perante a doutrina da segurança nacional, nem
liberdade de palavra, de associação, de reunião, de divulgação e de imprensa.
O regime militar entrou em declínio, muito em virtude da pressão popular para
escolher o presidente da República que, segundo a Constituição de 1967, era eleito de forma
indireta, pelo Parlamento, bem como em face da insubordinação popular contra as atrocidades
10
Dispositivo constitucional reenumerado pela EC 1/69. 11
Com o advento da Emenda Constitucional nº 1/1969, o texto mencionado no trabalho passou a integrar o art.
153 e não mais o art. 150.
480
cometidas. Com o término do período ditatorial, houve a redemocratização do Brasil. Com
isso, houve a necessidade de elaboração de uma nova Carta Constitucional que trouxesse no
seu corpo uma carga valorativa mais democrática e mais respeitosa para com os direitos
fundamentais. Nesse novo contexto, foi promulgada a Constituição de 1988. Também é
inequívoco que a nova modelação constitucional tinha palavras a proferir sobre a temática
religiosa.
9. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Precedida de intensa expectativa popular, foi promulgada, em 05 de outubro de 1988,
a atual Lei Fundamental brasileira. A nova Constituição consagrava em seu texto: o
estabelecimento de um extenso rol de direitos detentores de fundamentalidade; a consignação
de mecanismos facilitadores da participação popular no cotidiano das decisões políticas e
administrativas do país; a indisfarçável crença do constituinte na natureza dirigente da nova
Constituição. Recebeu a denominação popular de Constituição Cidadã, mormente porque
elevou a dignidade da pessoa humana ao status jurídico de fundamento da República. Nesse
sentido, partiu do reconhecimento de que a pessoa constitui-se no preferencial alvo estatal,
não podendo ser reduzida a um elemento secundário (não supremo) do ordenamento jurídico.
Noutras palavras, a dignidade da pessoa humana, como fundamento republicano, exige que se
interprete o Estado como um Estado de cidadãos, construído a partir da pessoa e para servi-la
(COSTA, 1999. pp. 191/199).
Tais particularidades da vigente Constituição brasileira, mormente com uma
preocupação mais inclusiva do constituinte para com os cidadãos e com um maior respeito
democrático pela diversidade, tiveram desdobramentos na abordagem da temática religiosa.
Para Chaitz Scherkerkewitz (1996, pp. 60 e ss.), ela consagra a liberdade de religião como
sendo um direito fundamental, além de prescrever que a República Federativa do Brasil se
constitui em um Estado laico. Significa que o constituinte firmou a democrática opção de
atribuir ao Estado o encargo de proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita
compreensão religiosa, proscrevendo a intolerância e o fanatismo. Assegurou a existência de
uma cristalina divisão entre o Estado e as igrejas, não sendo possível o estabelecimento de
uma religião oficial. Dentro de um contexto de dever de proteção, o Estado brasileiro tomou
para si a tarefa de proteger e garantir o livre exercício de todas as religiões.
Registre-se, entretanto, que o preâmbulo da vigente Carta Política brasileira
promoveu uma invocação divina que parece colidir com a natureza laica do Estado, também
481
proclamada pela mesma Constituição (art. 5º, inciso VI, e art. 19, inciso I). Tal matéria é para
muitos um falso problema, porquanto o Supremo Tribunal Federal brasileiro firmou o
entendimento de que o preâmbulo não seria detentor de força jurídica, expressando apenas
uma conotação meramente histórica e política. Não é objeto deste trabalho discutir a natureza
das disposições constitucionais preambulares. Porém, independentemente da natureza da
motivação do preâmbulo (jurídica, política ou histórica), ele parece pouco respeitoso para
com os ateus. Afinal, são cidadãos que merecem de todos e do Estado igual direito, respeito e
consideração, de modo que não se deveria invocar qualquer divindade na Lei Maior de uma
nação.
A par disso, não se pode olvidar que a inserção de figuras divinais no preâmbulo da
Constituição é uma característica marcante nos textos de outrora, sendo igualmente certo que
tem se verificado, nos dias atuais, uma queda de intensidade do uso de tal invocação. Apenas
para uma breve aportação historiográfica (eis que não se tem qualquer pretensão de fazer-se
uma abordagem científica da história dessa temática), registre-se que foi atitude comum a
invocação do nome de Deus em remotas leis da humanidade, apontando-se os seguintes
exemplos: Hamurabi fez a abertura do seu Código de Leis fazendo, invocando o Deus Anum;
Justiniano promulgou seu Digesto com a constituição Deo auctore; o Código de Sete Partidas
trazia em seu frontispício a máxima “Deus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas”; as
Leis das Índias começavam invocando por “Deus, nosso senhor”.12
Contudo, existe, nos presentes dias, uma tendência no sentido de se evitar, dentro de
um pensamento secularizado, a invocação divina no interior das disposições normativas. Um
dos mais claros exemplos do que se alega foi a versão final do preâmbulo do Tratado para
uma Constituição Europeia (de Roma). Após um debate ferrenho ocorrido com as igrejas
(que, na sua maioria, insistiam na inserção do nome de Deus no frontispício constitucional), o
referido Tratado não contém qualquer referência a Deus nem faz menção ao cristianismo ou à
herança cristã da Europa. Dentre os principais argumentos para a já citada curva de
intensidade decrescente do uso do nome de Deus na linguagem jurídica, destacam-se: a
racionalidade, a pureza da lei, o progresso e a secularização.13
12
Para uma visão global a respeito da pertinência ou não de se invocar, em textos jurídicos (aí se incluindo a
legislação, a doutrina e a jurisprudência), o nome de Deus, vide F. PUY, 1988. pp. 487/499. 13
PÉREZ RUIZ, 1985. O autor elenca a concepção de vários autores, no sentido de que seria pouco racional ou
científico o uso ou o recurso aos deuses para a decisão dos casos juridicamente relevantes (primado da
racionalidade). Afirma que a pureza metódica de Kelsen seria impeditiva de qualquer elemento estranho ao
mundo jurídico, aí se incluindo o religioso (preceito da pureza). Aduz, outrossim, que o progresso científico e
tecnológico seria inconciliável com o aparente atraso de se sobrepor o ordenamento jurídico vigente a aspectos
metafísicos (cânone do progresso). Por fim, garante que o avanço da sociedade fê-la afastar-se de apegos
religiosos, tornando-a secularizada. Por essa razão, não se poderia mais admitir que os paradigmas clericais
482
O constituinte originário da Carta Constitucional vigente no Brasil, ignorando essa
nova tendência mundial, manteve-se fiel ao modelo clássico. Mantendo a tradição, assinalou,
no preâmbulo, que estava a promulgar aquela Constituição “sob a proteção de Deus”. Mesmo
os defensores do uso do nome de Deus nas normatizações afirmam que ele não pode ser
invocado de maneira vã. Essa invocação só deveria ocorrer nos raros casos em que tal fato
fosse necessário (circunstâncias em que o objeto a ser tratado na lei ou no julgamento fosse de
índole religiosa), sob pena de se vulgarizar o ato de invocação divina. Sendo assim, não é
necessário invocar Deus para promulgar a Constituição de um país. Trata-se de um fato
histórico, sociológico, jurídico e político, não tendo, portanto, conotação religiosa. Espera-se
que não se procure encontrar uma base anticlerical nas ideias ora expostas. Não se trata de
uma bandeira do ateísmo em face do teísmo, mas apenas da necessidade de tratamento
isonômico entre todas as pessoas que devem ser igualmente representadas e respeitadas no
texto constitucional (sejam elas crentes ou descrentes de qualquer religião).
O Estado brasileiro, dentro de seus quadrantes geográficos, tem o dever de
salvaguardar o pluralismo religioso. Deve, além disso, criar condições materiais para o livre
exercício dos atos religiosos por parte das diversas confissões religiosas, para além de velar
pela pureza do princípio da igualdade religiosa. Contudo, esse mesmo Estado, sem que tal
mister se constitua em paradoxo ou contradição com o citado preceito, deverá manter-se à
margem de assuntos religiosos, sem incorporar, em sua ideologia, a preferência por qualquer
religião.
A ideologia estatal deve ser arreligiosa. A liberdade religiosa é um princípio
estruturante da relação travada entre o poder político e o religioso, bem como um direito
jusfundamental. É o princípio jurídico central e basilar que regula as relações entre o Estado e
as igrejas, em consonância com o direito fundamental dos indivíduos e dos grupos de
defender e propagar suas crenças religiosas. Os demais preceitos do direito da religião lhe
serão acessórios e complementares, quase que a atuar como coadjuvantes e solidários do
cânone básico da liberdade religiosa (SORIANO, 1990, p. 61).
Alguns autores, diversamente do que aqui será defendido, acreditam no total acerto
do atual modelo constitucional brasileiro de defesa da liberdade religiosa. Para Flávio Pierucci
e Reginaldo Prandi (1996, pp. 276/277), a prática religiosa e as organizações religiosas não
sofrem nenhuma discriminação negativa. Para eles, os atores da cena religiosa gozam até
mesmo de privilégios normativos, significando que, se alguma discriminação existe, é de
fossem mantidos como determinantes para os atos gênese legislativa e de aplicação das normas para o caso
jurídico concreto (princípio da secularização).
483
natureza positiva. Afirmam, em tom de arremate, que a liberdade religiosa está,
definitivamente, consagrada no ordenamento jurídico brasileiro.
Na mesma esteira de pensamento, Ricardo Mariano (2001, p. 165) afirma que a
liberdade religiosa, incorporada ao patrimônio jurídico do povo e do Estado brasileiro, se
efetivou plenamente após a segunda metade do século XX, firmando-se com uma base sólida
da realidade brasileira. Enfatiza, por fim, que atualmente situa-se na raiz da constituição do
pluralismo e do desenvolvimento do dinâmico mercado religioso brasileiro.
Firmado o contraponto argumentativo acima e tendo em conta o percurso histórico,
bem como o embasamento jurídico do tema, envereda-se pelo caminho das considerações
finais.
10. CONCLUSÕES
Não se pode negar que, ao longo dos anos, o Brasil conseguiu aprimorar, de forma
significativa, o tratamento destinado ao fenômeno religioso. No entanto, é preciso reconhecer
que ainda existe um longo percurso a ser vencido para a sedimentação de um Estado que,
simultaneamente, atenda a todos os cânones do direito da religião.14
Não se pode pensar que
já se alcançou a máxima efetividade social, política e jurídica da liberdade religiosa, nada
precisando melhorar quanto à laicidade, ao pluralismo religioso, à tolerância, à cooperação e à
igual dignidade constitucional das confissões religiosas. Pensar dessa forma seria ignorar as
perseguições e os privilégios ainda existentes no ordenamento jurídico e no trato
administrativo brasileiro, para além de conduzir a temática a um perigoso engessamento.
Entretanto, é de se reafirmar que os pontos mais conseguidos da temática religiosa no
Brasil, anteriormente listados, não podem ser confundidos com a suposta edificação de um
modelo juridicamente incriticável de laicidade e de liberdade religiosa. Existem problemas,
podendo-se apontar como um dos mais destacados a ausência de uma regulamentação
infraconstitucional. Some-se a isso a manutenção de uma jurisprudência nacional
comprometida com a religião católica, além de grande timidez doutrinário-jurídica no
enfrentamento da questão religiosa.
O modelo constitucional brasileiro, no que diz respeito à temática religiosa, ainda
preserva situações do tipo: a existência dos feriados religiosos; a ministração de educação
14
Em linha de concordância com o presente estudo, afirmando que o Brasil não seria um Estado inteiramente
laico, com especial enfoque na jurisprudência compromissária com a religião dominante, vide MARTEL, 2007.
pp. 11/57.
484
religiosa nas escolas públicas; a participação de líderes religiosos nas campanhas eleitorais,
candidatando-se mesmo nos locais onde exercem as suas funções eclesiásticas; a existência e
a criação de partidos políticos que tenham programas e propostas assumidamente religiosos e
que tenham nomes ou símbolos de identificação com conotação religiosa; a previsão de
liberação de recursos estatais para a edificação de capelas, oratórios e congêneres nos prédios
públicos, valendo-se dos tributos de toda a sociedade, aí se incluindo os agnósticos e os ateus;
a manutenção dos crucifixos em salas de aula, nos plenários de várias Casas Legislativas, em
várias Cortes de Justiça do país e nos prédios públicos em geral.
Outro ponto problemático é que a Constituição atual não faz expressa menção à
liberdade religiosa, apenas tendo se limitado a textualizar a inviolabilidade da liberdade de
consciência e de crença. Pode parecer que se tratou apenas de um dos muitos silêncios do
constituinte. Porém, foram esses mesmos silêncios constitucionais sobre a temática religiosa
que permitiram que o governo brasileiro assinasse, em 13 de novembro de 2008, nova
Concordata com a Santa Sé, contendo alguns dispositivos de duvidosa harmonização com os
preceitos da laicidade estatal, da igualdade e da liberdade religiosas.
Não se pode negar que avanços ocorreram. Porém, diversas melhorias ainda
precisam ser implantadas para uma convivência cada vez mais harmônica entre as distintas
confissões religiosas e os seus adeptos. É também necessário estabelecer marcos divisórios
mais claros na atuação dos poderes político e religioso. Nessa perspectiva, a primeira
constatação a que se pode chegar ao longo deste extenso trajeto dogmático-constitucional da
liberdade religiosa no ordenamento brasileiro é que o fenômeno religioso foi sempre um tema
polêmico nos mais distintos momentos históricos e políticos da vida na nação brasileira:
durante a experiência monárquica; por ocasião da implantação dos valores republicanos; em
plena ditadura ou na pulsante vida democrática.
Dalla Torre (2002, pp. 30/32 e pp. 47/49)15
enfatiza que a constituição deve ser
interpretada como um elemento social e jurídico vivo. Por conseguinte, o conceito do
princípio constitucional da liberdade religiosa possui força evolutiva (ZAGREBELSKY,
2007, pp. 91/104)16
.
15
Para ele, a Costituzione vivente é aquela concretamente observada, interpretada e aplicada dentro de
parâmetros aceitos pela consciência comum da sociedade regulada pela mesma norma constitucional. Trata-se de
um sinal de defesa do pensamento de Ferdinand Lassale em sua célebre obra “A essência da Constituição”. 16
Para o doutrinador italiano, a constituição viva (ou vivente) consistiria na experiência cotidiana de
interpretação levada a efeito pelas cortes constitucionais. Ele realça que os argumentos contrários à aceitação
deste molde consistem nos receios de uma jurisprudência criativa. Para o professor da Universidade de Turín, os
que suscitam os perigos da criação constitucional por parte das cortes constitucionais buscam: manter a
separação dos poderes; preservar o caráter judicial da justiça constitucional; preservar a legitimidade do poder
legislativo para a construção do direito legislado.
485
A evolução constitucional da liberdade religiosa tem inclinação pela expansão de seu
conceito (até em face do princípio da proibição de retrocesso dos direitos fundamentais) e,
portanto, visa a garantir mais direitos religiosos ao cidadão brasileiro.
Os avanços17
são claros, eis que, no período pré-constitucional brasileiro, havia a
intolerância religiosa. Avançou-se por ocasião do nascimento da primeira constituição
brasileira, a de 1824. Não obstante continuasse a prever um Estado religioso, oficialmente
atrelado à Igreja Católica, passou a mais claramente tolerar a liberdade de culto privado das
demais confissões religiosas. As constituições republicadas, por sua vez, efetivaram a
separação entre o Estado e as igrejas, tomando a liberdade religiosa e a laicidade do Estado
como um direito inviolável e um patrimônio social e jurídico que deve ser preservado e
aperfeiçoado para a presente e as futuras gerações.
Por fim, imperioso afirmar, em sede conclusiva, que a sedimentação do cânone da
liberdade religiosa foi um dos fatores centrais para o desenvolvimento do estado laico hoje
vivenciado em terras brasileiras.
11. REFERÊNCIAS
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17
Sobre a natureza não estática da liberdade religiosa, que deve sempre se amoldar às mutações sociais, registra-
se o pensamento de Ramón Soriano. Para ele, a liberdade religiosa não é o que foi nem o que é hoje; a liberdade
religiosa é um conceito histórico, como todas as liberdades, que no nosso tempo adota uma determinada forma,
que não é a única, nem a definitiva. Também a liberdade religiosa passou por várias etapas que a enriqueceram
pouco a pouco. Houve uma primeira etapa em que ela era reduzida exclusivamente à tolerância religiosa, ante o
predomínio de um monopólio religioso confessional: a religião dominante tolerava outros credos religiosos
diferentes (considerados “falsos e equivocados”), devido, primeiramente, aos imperativos da ordem pública e
depois ao reconhecimento da liberdade de consciência; uma etapa que substitui a outra do mais cruel
confessionalismo estatal, intransigente e militante representado, na Europa, pela diarquia do pontificado e do
império, guardião da tradição católica imperante no continente até as lutas religiosas do renascimento. Surgiu
uma segunda etapa de predomínio do pluralismo confessional, com o reconhecimento das distintas confissões
religiosas: a liberdade religiosa para as confissões, dentro de um panorama de relativa desigualdade no exercício
das religiões. A liberdade religiosa não está agora presidida pelo signo da tolerância no âmbito de uma única,
verdadeira e oficial religião do Estado, mas sim pela aceitação da pluralidade de credos dentro do território do
Estado; com este fenômeno religioso se engrandece e abarca uma diversidade de opções fideístas e a liberdade
religiosa se enriquece com a chegada de novos horizontes teológico-doutrinais; mas se trata, todavia, de um
pluralismo moderado, o pluralismo das opções fideístas e, exclusivamente, do coletivo dos crentes. Existe uma
terceira etapa na qual ainda não nos encontramos, mas que começa a brotar na doutrina da atualidade: a etapa do
pluralismo religioso integral, que representa a inserção das opiniões religiosas não fideístas dentro do conceito e
da proteção da liberdade religiosa (tradução própria). SORIANO, 1990, pp. 75/76.
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