CONTRACAMPOREVISTADOPROGRAMADEPSGRADUAOEMCOMUNICAOUNIVERSIDADEFEDERALFLUMINENSE
VERSUS: A BUSCA POR UMA IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA
Xenya de Aguiar Bucchioni1 Juliana Sayuri Ogassawara2
Resumo: Data de 1975 o nascimento do jornal alternativo Versus, imerso na proposta de publicar aventuras, idias, reportagens e principalmente cultura, assumindo neste ltimo pilar um forte carter de resistncia. Nas pginas de Versus encontra-se um discurso pico das tramas latino-americanas, com seus heris e sua realidade fantstica, que no jornal ganhava matizes metafricos para expressar o horror das ditaduras instauradas na Amrica Latina da dcada de 1970. Neste artigo, pretendemos resgatar a memria de Versus, discutindo ainda a atuao do jornal na composio das identidades latino-americanas. Palavras-chave: Amrica Latina. Imprensa Alternativa. Ditadura Militar. Resistncia. Versus.
Abstract: First released in 1975, the alternative newspaper Versus had a distinguished proposal to publish adventures, ideas and reportages that, from a cultural point of view, build up a strong sense of resistance. Among its pages, an epical Latin American discourse can be found, with its heroes and fantastic reality, narratives that actually addressed, in a metaphorical way, the horrors of Latin Americans dictatorships from the period. This article will bring back the memory of Versus and discuss the role of this journal in the construction of Latin American identity.
Key-words: Latin America. Alternative press. Dictatorship. Resistence. Versus.
1. Versus, um jornal de aventuras, idias, reportagens e cultura
Versus nasceu em 1975, no auge da imprensa alternativa brasileira (1975-1977), uma
experincia jornalstica efervescente durante a asfixia da ditadura militar (1964-1985).
Debruado sobre as questes da Amrica Latina, o tablide trazia um novo vis sobre a
cultura, tateando uma identidade latino-americana. Na esteira dos jornais alternativos, Versus
1 Jornalista, mestranda do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Miditica (UNESP) e integrante do Grupo de Pesquisa Mdia e Sociedade (CNPq). E-mail: [email protected] 2 Jornalista e mestranda em Histria Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (FFLCH-USP). E-mail: [email protected]
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abria caminho para mais uma via possvel ao jornalismo brasileiro, alinhando-se imprensa
alternativa, durante o Estado Autoritrio, um momento em que a imprensa sai de cena como
palmatria do mundo e ocupa o incmodo banco dos rus (AQUINO, 1999, p. 157).
nesse enquadre contextual que se via o surgimento da imprensa alternativa (Pereira,
1986). poca, essa imprensa era como um fogo-ftuo a iluminar as zonas obscuras do
autoritarismo. Ela vive, ou sobrevive, nos regimes fechados em que o poder estabelece um
controle cerrado do sistema de comunicao (CAPARELLI, 1980, p. 41). A partir dessa
perspectiva histrica do fenmeno alternativo, a atmosfera sufocante da censura e da
represso s atividades culturais e intelectuais atiava ainda mais a busca por espaos para
respirar novas ideias, inspirar transformaes polticas e transpirar em manifestaes scio-
culturais. Na emboscada entre a ditadura e a grande imprensa complacente, era preciso
encontrar brechas para respirar:
Brechas numa rede que estava sendo jogada. Por meio delas, iriam surgir os primeiros brotes da chamada imprensa alternativa. Espao que se queria livre no apenas dos constrangimentos da ditadura, mas tambm das orientaes dos donos dos grandes jornais (REIS, 2002, p. 441).
Portanto, alm do tenebroso espectro poltico, preciso considerar que a indstria
cultural e a grande imprensa ilustrada pelos conglomerados Globo e Abril e pelos jornais
Folha e O Estado de S. Paulo evidenciam sua consolidao no Brasil na dcada de 60
(TASCHNER, 1992, p. 17).
Assim, foi nos marcos de um capitalismo monopolista tardio e sob a gide de um regime poltico autoritrio de controle militar, no qual boa parte dos direitos de cidadania foram restringidos ou inexistentes, que a indstria cultural viveu um perodo de grande desenvolvimento, o qual, em funo de tal enquadramento, ganharia certa especificidade (TASCHNER, 1992, p. 105).
O incio da indstria cultural brasileira se afinou com o perodo ditatorial, porm, por
outro lado o momento histrico abarcou ainda o florescimento da imprensa alternativa, que
de 1964 a 1980 prosperou e sucumbiu com cerca de 150 peridicos.
Lato sensu, a definio de imprensa alternativa abriga as publicaes nas quais
presente a resistncia contracultural (MICCOLIS, 1986, p. 3). Aglutinando intelectuais,
jornalistas e setores de esquerda, a imprensa alternativa designada ainda marginal,
contracultural, nanica, de leitor, independente e underground (CHINEM, 1995, p. 7) , era
tambm um novo espao de articulao social. Distante das polticas dominantes, encontrava-
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se na imprensa alternativa o desejo das geraes de 1960-1970 de protagonizar as
transformaes sociais de seu tempo.
Geraes que opunham-se por princpio ao discurso oficial (KUCINSKI, 1991, p.
XIII), articulando ainda o desejo das esquerdas de protagonizar as transformaes
institucionais que propunham e a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaos alternativos
grande imprensa e universidade (KUCINSKI, 1991, p. XVI). Assim, resistncia era a
palavra de ordem contra a ordem ditatorial e a grande imprensa predominante. Com essa
palavra-chave, Versus se insere no fenmeno alternativo. Em outubro de 1975, alavancado
pela mente inventiva de Marcos Faerman:
[...] Versus nasceu de um delrio que eu tive em Cuiab... Eu havia ido ao Mato Grosso fazer uma matria para o JT e conheci Juruna... Cuiab o centro geodsico da Amrica do Sul, o pr-do-sol me encheu de emoo; me apaixonei pela idia de um jornal que falasse dos ndios, da Amrica Latina, que tivesse aquele pr-do-sol. Sonhei com um jornal que contasse a histria dos povos da Amrica Latina... que fosse realidade e fico, de grandes histrias, narradas como histrias, e havia o fascismo na Amrica Latina, havia Chile, eu queria um jornal que contasse a histria da resistncia na Amrica Latina [...] (KUCINSKI, 2003, p. 254).
No nterim de 1975 a 1979, foram lanadas as 34 edies de Versus. Inicialmente, o
tablide bimestral era modestamente vendido de mo em mo, mas aos poucos passou a ser
distribudo em bancas de jornal de So Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras cidades.
Uma vez consolidada sua distribuio nacional, no seu apogeu em 1977, o jornal alternativo
superou a marca de 35 mil exemplares vendidos, graas, sobretudo, originalidade e beleza
de cada edio (KUCINSKI, 2003, p. 250).
Marcos Faerman estreou no jornalismo em 1961, no jornal ltima Hora, que se
tornaria o Zero Hora. L, ao lado de Lus Fernando Verssimo, o jornalista criou um Caderno
de Cultura, que j continha o grmen criativo do que seria o projeto Versus. Passando pelo
Jornal da Tarde e por publicaes alternativas como Bondinho, Ex e Mais Um, Faerman
buscava abrir um espao para a grande reportagem.
Descontente com a burocratizao do jornalismo, Faerman imprimia em Versus a
defesa constante de um jornal desgarrado de frmulas e modelos, mas alinhado clareza e
preciso da reportagem. Alm dele, importantes personagens da criao do jornal foram os
jornalistas Moacir Amncio, Percival de Souza, Wagner Carelli, Enio Squeff, Omar de Barros
Filho (BARROS FILHO, 2007). Depois vieram compor a equipe o jornalista Caco Barcellos e
os intelectuais Bris Schnaiderman e Modesto Carone.
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2. Trs Versus
A trajetria do jornal marcada por trs fases: inicialmente, a linha editorial se voltava
para o passado, propondo a cultura como forma de ao poltica (da 1 12 edio); passa
depois por uma fase de transio, dando mais nfase situao presente (12 24 edio),
poca em que publica o caderno dedicado questo negra, Afro-Latino-Amrica, que se
tornou um espao de aglutinao de militantes do movimento negro; finalmente, aps
claramente assumir o discurso politizado, o jornal passa a discutir a poltica nacional (24
34 edio).
Pretendemos esquadrinhar uma anlise de Versus, sobretudo em sua fase inicial e,
portanto, brevemente perpassaremos os pontos principais de sua transio e de seu fim.
preciso lembrar que o declnio e o fim da imprensa alternativa so usualmente justificados
pelo fim da prpria ditadura, como se sua nica razo de existir fosse a resistncia
(KUCINSKI, 1991, p. XXV). Entretanto:
Alm disso, interessante atentar para o que a memria construiu em relao imprensa alternativa. Ela vinculou umbilicalmente este tipo de jornalismo censura, justificando o trmino de sua fase urea com base na hiptese da inexistncia de motivaes para a sua continuidade, a partir da extino da represso (AQUINO, 1999, p. 23).
Para alm da redemocratizao, na verdade, o que fez a imprensa alternativa definhar
foi uma srie de fatores truncados, dentre os principais esto: a debilidade econmica dessa
imprensa que, marcada por uma averso estrutura capitalista, no atentava para a
administrao financeira; a disperso dos jornalistas, intelectuais e ativistas polticos com a
abertura poltica, o que tornou difcil manter unidas as diferentes vertentes esquerdistas, pois
os partidos no precisavam mais conviver na imprensa, lanando cada um o seu prprio meio
de comunicao; a imprensa tradicional investiu por um curto tempo na experincia do
jornalismo considerado crtico, antes monoplio da alternativa. Jornais de ampla circulao
como O Pasquim, Versus e Em Tempo optaram pela circulao nacional via Editora Abril,
mas as grandes distribuidoras impunham aos jornaleiros o pagamento adiantado pelas cotas de
jornal que recebiam, alm de se apoderarem de 40% da receita, fato que financeiramente
debilitava ainda mais os alternativos.
Mais um fator a ser lembrado o sectarismo ideolgico no interior das redaes,
expressado em divergncias poltico-partidrias e ideolgicas para os rumos tanto do jornal
quanto do Pas. H de se frisar que os atores sociais durante o fazer jornalstico, no entanto,
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procuram atingir alvos que so definidos antes da luta, mas o prprio movimento da histria
os leva, muitas vezes, a mudar de rumo (CAPELATO, 1994, p. 13) e este seria o caso dos
desvios trilhados pelos principais personagens da imprensa alternativa, que durante o ofcio
jornalstico foram levados a caminhos diversos e por vezes divergentes com o desenrolar dos
acontecimentos histricos.
Ao enfocar as questes polticas e, portanto, se politizar efetivamente Versus perde sua
linha-mestra inicial. Destacamos que, em um primeiro momento, Faerman foi simpatizante do
movimento da Liga Operria, mas sua inclinao brizolista o levava para caminhos opostos
aos de seus companheiros. Ao mesmo tempo em que abriu espao notcia do lanamento do
movimento Convergncia Socialista, lanado pela Liga, Faerman concedeu amplos espaos a
Brizola, o heri de seu imaginrio, o chefe da resistncia gacha contra o golpe, o
idealizador e comandante da campanha pela legalidade (KUCINSKI, 2003, p. 263).
Aps as prises de militantes da Convergncia, Faerman decide abandonar o jornal,
acompanhado por Vitor Vieira, Evaldo Lins, Mrio Augusto Jacobskind e outros. Jorge
Pinheiro, Omar de Barros Filho, Enio Bucchioni e Jlio Tavares ainda publicam nove edies
do jornal a ltima sairia em outubro de 1979.
Ao revisitar a trajetria histrica de Versus, pretendemos discutir a atuao da
imprensa, considerando que:
Manancial dos mais frteis para o conhecimento do passado, a imprensa possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens atravs dos tempos [...] Atravs dela se trava uma constante batalha pela conquista dos coraes e mentes essa expresso de Clvis Rossi define bem a atividade jornalstica. Compete ao historiador reconstituir lances e peripcias dessa batalha cotidiana na qual se envolvem mltiplos personagens (CAPELATO, 1994, p. 13).
Diante disso, ao enfatizar os traos culturais do projeto Versus buscamos delinear
lances e peripcias na composio de uma identidade cultural, a partir de um jornal que se
aventurava pelas palavras: reportagens, idias e cultura.
3. Em busca de alternativas: Versus e a contra-cultura
As palavras versus e contracultura apresentam um ponto de encontro: a oposio.
No s pelo ttulo estampado, mas por suas tentativas de oposio, contestao e resistncia,
Versus se alinha s experincias alternativas no campo cultural na dcada de 1970,
principalmente aps o processo de abertura democrtica. Mediante o discurso poltico, a
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ruptura com valores tradicionais, o uso de novas construes lingsticas e a desconstruo da
arte canonizada, os movimentos culturais das dcadas de 60 e 70 propunham novas formas de
fazer cultural, diferenciando-se da cultura oficial.
Muitas destas experincias manifestavam no s a tentativa de fazer chegar ao pblico sua produo, mas, e principalmente, expressavam opes de resistncia poltica e ideolgica, a presena de novas concepes na forma e no contedo, a busca de novas prticas coletivas num tempo de mudanas (HABERT, 1996, p. 77).
Bernardo Kucinski enquadra Versus (So Paulo) como representante da vertente
existencial e contracultural da imprensa alternativa, ao lado de O Pasquim e Flor do Mal (Rio
de Janeiro), Verbo Encantado (Salvador), Pato Macho (Porto Alegre), isto , jornais:
Mais voltados a crtica dos costumes e a ruptura cultural, tinham suas razes nos movimentos de contra-cultura norte-americanos e, atravs deles, no orientalismo, no anarquismo e no existencialismo de Jean Paul Sartre. Investiam principalmente contra o autoritarismo na esfera dos costumes e o moralismo hipcrita da classe mdia (KUCINSKI, 1991, p. XV).
No editorial comemorativo ao primeiro aniversrio do jornal, fica expresso o projeto
cultural e poltico idealizado:
Um jornal sem vergonha de assumir a reflexo e a cultura, num momento em que, na grande imprensa, Letras, Artes e Pensamento eram relegados condio de variedades. Ao mesmo tempo, no sentamos Versus como uma revista literria. (Alguma vezes, assim fomos chamados e isso nos aborreceu). Nem como uma revista cultural. Talvez porque nosso conceito da literatura e da cultura nos conduzisse a outros caminhos (VERSUS, outubro de 1976, p. 2).
Para Festa, a imprensa alternativa dos anos 70 era marcada por:
[...] publicaes de carter cultural, poltico e expressavam interesses da mdia burguesia, dos trabalhadores e da pequena burguesia. Eram espaos nos quais grupos de oposio ou frentes polticas emitiam uma corajosa condenao do regime poltico (FESTA, 1986, p. 16).
Todavia, quanto ao pblico leitor, o estilo, o rebuscamento das expresses, os
assuntos, o contedo, enfim, fizeram da imprensa alternativa produto de intelectuais, ou
atingindo apenas a vanguarda dos movimentos sociais (CAPARELLI, 1980, p. 46).
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Especialmente a partir de 1974, novas mudanas redesenham o panorama da imprensa:
o colapso do milagre econmico, o crescente ativismo poltico, a reintegrao dos primeiros
presos polticos vida civil atravs da imprensa alternativa, o incio da relativa abertura
democrtica no governo Geisel e a vitria da oposio nas assemblias legislativas estaduais.
Nesse cenrio, eclodiram projetos editoriais ambiciosos e o boom de jornais alternativos, com
diversificao temtica e regionalista.
At 1975, os jornais alternativos se constituram no em meros smbolos de
resistncia da sociedade civil ao autoritarismo, ou a expresso de um movimento ou uma
articulao de resistncia: eles eram a prpria resistncia (KUCINSKI, 1991, p. 54). Neste
ano, deflagra-se uma crise do padro complacente da imprensa convencional e uma forte
movimentao social e intelectual, precipitada pela tortura e assassinato de Vladimir Herzog.
A notcia da morte de Herzog corre como um rastilho de plvora e se forma imediatamente um poderoso movimento de protesto. [...]. A morte de Herzog precipita o protesto que estava atravessado na garganta da intelectualidade paulista desde o comeo daquela onda de prises (KUCINSKI, 2001, p. 35).
No por acaso, a primeira edio de Versus coincidiu ao assassinato de Herzog e traz
estampada na capa ttulos como: Eu fui condenado morte: confisses de um reprter
argentino, Eu me condenei morte: dirios de um escritos peruano, Ns vivemos na
morte: a vida em um hospcio mineiro. O jornal apresenta-se como uma metfora da prpria
morte.
Apesar de ser contemporneo do expressivo jornal Movimento, para Versus, mais do
que panfletagem de uma ideologia, o que contava era a experincia vivida, a histria que
arduamente se tecia no presente, nos solavancos com a ditadura.
Muito embora nunca estivesse alheio realidade poltica do Pas, Versus no abordava
diretamente a poltica real, valendo-se de metforas para se referir ao presente devido
acirrada represso aos jornais considerados subversivos pelo Estado Autoritrio. Nas
palavras de Bernardo Kucinski:
Versus foi ao mesmo tempo uma alternativa de linguagem, de organizao da produo jornalstica e de proposta cultural. Em vez do discurso poltico de Movimento, que o precedeu em alguns meses, usava uma narrativa mtica, operando no plano ideolgico atravs de metforas culturais e histricas (KUCINSKI, 2003, p. 249).
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Eis que Versus era uma imprensa voltada para outros aspectos da realidade, como a
cultura, a arte, a histria, a antropologia, a psicanlise e a psiquiatria. Mostrava nossas razes
comuns latino-americanas, contando histrias, aventuras e dores de nosso sculo (CHINEM,
1995, p. 34). Esse o contexto em que floresce Versus, uma revista de uma Amrica Latina
chocada pelo domnio das ditaduras (KUCINSKI, 2003, p. 256).
4. Por uma identidade na Amrica Latina
Debruado sobre a memria da Amrica Latina, Versus destacava suas expresses
culturais e artsticas, buscando delinear uma identidade partilhada entre os pases latino-
americanos. A identidade cultural latino-americana seria, segundo Versus, uma pr-condio
para a libertao dos povos latino-americanos, secularmente explorados e marcados por
cicatrizes do colonialismo, assolados ainda pelas ditaduras da poca.
Seara espinhosa, a questo da identidade ainda mais intrincada na Amrica Latina,
tecida pela articulao complexa de tradies e modernidades, diversas e dspares de um
continente heterogneo (CANCLINI, 1998, p. 28). Na trama dos pases latino-americanos
esto sedimentao, justaposio e entrecruzamento de tradies indgenas, do hispanismo
e lusitanismo coloniais, do escravo africano, das revolues e movimentos independentistas,
das ditaduras, da poltica moderna e, permeando todas essas dimenses, da hibridizao das
culturas.
Durante muito tempo a heterogeneidade cultural e o sincretismo da Amrica Latina
foram considerados obstculos ao progresso da civilizao americana. Os costumes indgenas
e africanos eram vistos com racismo e fortes doses de pessimismo em relao formao do
povo latino. O ideal de pureza cultuado no sculo XIX na Europa era posto em xeque pelas
anlises das sociedades latino-americanas, onde a miscigenao se transformava num
laboratrio vivo para a coliso dessas teorias. Nesse sentido, a questo da identidade era vista
como uma busca dolorosa para esses povos, matizes pessimistas em relao ao futuro dessas
naes perpassavam os estudos europeus, dispondo-nos a uma posio inferior. No sculo
XX, no editorial de Versus lia-se: Incas, Maias e Astecas, a sua (nossa) memria destruda milimetricamente. Destruir a cultura de um povo destruir sua moral e sua vontade de liberdade. Todas as culturas ndias so espezinhadas. Os ndios so escravizados. As escravides vo se suceder pelos tempos (VERSUS, dezembro de 1976, p. 2).
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Historicamente, a Amrica Latina foi solapada pela continuidade de concepes de
humanidade e histria provenientes das diversas filosofias europias, desvalorizando o
passado, a cultura e a realidade ibero-americana. Quadro dramtico que nas relaes entre
Amrica e Europa nos traz lamentaes:
A Amrica uma utopia, isto , o momento em que o esprito europeu se universaliza, desprende-se de suas particularidades histricas e concebe-se a si mesmo como uma idia universal que, quase milagrosamente, encarna e se fixa numa terra e num tempo preciso: o futuro (PAZ, 1984, p. 151).
Perante essa perspectiva europia, Octavio Paz critica que a Amrica no um
passado, sequer um presente, uma idia, uma utopia, uma inveno. Para Leopoldo Zea
(apud PAZ, 1984), durante muito tempo a questo da Amrica foi monlogo da Europa, uma
das formas histricas pelas quais encarnava o pensamento eurocntrico hegemnico.
Atualmente, esse monlogo se transforma em dilogo. Um dilogo que no puramente
intelectual, mas sim social, poltico e vital (PAZ, 1984, p. 151).
A formao da identidade tem laos estreitos com a idia de diferena. Alm de
demarcarem fronteiras, as diferenas afirmam e reafirmam relaes de poder. Trata-se de uma
arena de disputa de legitimidade, tenses simblicas e atritos reais. A manifestao do poder
simblico est na hierarquizao das identidades, na gangorra de louvar e debelar uma
identidade em detrimento de outra. Os labirintos identitrios da Amrica Latina introduzem
uma diferena marcante: a forte hibridizao, o que abala e agrava essa disputa de poder.
No hibridismo, a identidade tende a enlear a suposta pureza e insolubilidade das
diferentes identidades nacionais, raciais ou tnicas. Isso porque a identidade resultante dessa
mistura no mais integralmente nenhuma das originais puras, embora apresente traos de
cada uma delas. preciso pensar a identidade enquanto uma construo social, produto de
relaes de poder e contextos scio-histricos e no como elemento passivo da cultura,
como essncia.
No caso especifico de Versus a necessidade de uma aproximao dos povos latinos era
evidenciada pelo contexto-histrico comum das dcadas de 60 e 70, no entanto o peridico foi
alm ao observar que, em verdade, nosso prprio passado poderia e deveria se constituir num
elemento unificador. Contudo, a construo da identidade no diz respeito somente s
semelhanas, nesse jogo de foras devemos encar-las pela idia de devir, de tornar-se o
hbrido, o mestio, como movimento e transformao.
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Para Mario Contreras (1996), a Amrica Latina seria uma criao histrica e
intelectual que tende a se diferenciar das outras culturas do mundo, em especial da europia e
da norte-americana. A constante busca por uma identidade assume nova importncia diante de
questionamentos como o comportamento cotidiano, o destino das riquezas naturais e humanas
na Amrica Latina. Sua emancipao implicaria, pois, na descoberta, criao e reinveno de
novas formas prprias de expresso cultural, histrica, econmica, poltica, artstica etc.
A intensa busca por uma identidade est intimamente relacionada aos diversos
processos de assimilao cultural da Amrica Latina, desde a colnia at o presente.
Ainda hoje no temos idia de quem somos, caminhamos lado a lado, nos esbarramos nos percalos da histria, mas continuamos desconhecidos e vivemos num conflituoso embate dialtico de no sermos ndios, no sermos negros, no sermos brancos, sendo todos ao mesmo tempo (AZEVEDO, 1996, p. 19).
Todos ao mesmo tempo. Na teia das relaes na Amrica Latina, a hibridizao
um fator marcante, entretanto, no deve ser compreendida como um amlgama de diferentes
culturas em perfeita harmonia. Para Ianni a identidade pode ser diferenciada, mltipla,
contraditria, em movimento (IANNI, 2001). Vale dizer que a pluralidade um agravante,
mas no um entrave, na busca por uma identidade latino-americana compartilhada.
O cerne da questo que a identidade dinmica, imbricada nos jogos de foras
simblicas para sua construo e legitimao. Assim, a emergncia de diferentes matizes da
identidade latino-americana transitria, em movimento. Pretendemos apenas pincelar um
elemento-chave para a construo dessa identidade em Versus: a cultura.
Nas suas bem-aventuradas reportagens, ao retratar culturas particularizadas
perpassando pelas culturas negra, indgena, mestias, enveredando para particularidades de
Argentina, Brasil, Cuba, Nicargua etc. o jornal evidencia similitudes e diferenas entre os
povos. A fim de ilustrar essa cobertura especial, citamos as reportagens3:
Argentinaaa
Em meados de 1974, lentamente, o medo tomou posse dos argentinos. Mas,
antes, j havia iniciado sua luta para dominar o corpo e a alma de milhes de
pessoas.
Por Tomz Eloy Martnez Versus 1 outubro de 1975
3 Todos os artigos esto disponveis no site: http://www.versus.jor.br/
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A tica da conquista
A histria do Frei Bartolomeu de Las Casas, que h sculos tentou proteger a
vida dos ndios da Amrica e defendeu uma colonizao pacfica, contada
pelo lder poltico.
Por Jos Mart Versus 5 agosto de 1976
Gran Tierra
Do exlio em Barcelona, Eduardo Galeano escrevia para Versus. Aqui, ele
relata sua descoberta das secas terras da ponta de Mais, onde quatro ventos
se cruzam e Cuba comea.
Por Eduardo Galeano Versus 11 junho de 1977
Democracia racial: mito ou realidade?
Sem a escravido a estrutura econmica brasileira no teria existido. O
escravo foi a espinha dorsal da nova economia. Fazia crescer a riqueza do
pas, mas pagava com seu suor e sangue a apropriao de tudo pela
aristocracia branca.
Por Abdias do Nascimento Versus 16 novembro de 1977
Mrio Pedrosa: exlio, arte e imperialismo
Todas as grandes obras-primas da Europa no so melhores que os grandes
monumentos pr-colombianos, afirma Mrio Pedrosa, no retorno do exlio.
Por Omar L. de Barros Filho e Jlio Tavares Versus 17 dezembro de 1977
Crnicas do pas dos males
Tempos de engano em Hollywood. Uma travessia de Los Angeles,
Califrnia. Uma reportagem literria de uma poetisa argentina que
andarilhava na Babilnia americana, dourada pela ferrugem de quatro
dcadas de insnia.
Por Diana Bellessi Versus 27 dezembro de 1978
Nicargua guerrilheira
O enviado especial de Versus contou como encontrou Somoza no bunker.
Foi a ltima entrevista de Somoza antes da queda, e acabou reproduzida no
The New York Times.
Por Hlio Goldsztejn Versus 31 abril de 1979
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No Versus, a nfase destinada cultura, compreendida como ao e resistncia,
alicera essa construo de identidades. Mais do que propor respostas efmeras, fugazes,
fugidias o jornal alternativo lana mais questes, acalorando a discusso e, de fato,
cumprindo com a proposta da imprensa alternativa: voz aos que no tm voz. Assim, ainda
que no confronto com a censura e a represso, a imprensa alternativa se expressava: Vozes
silenciadas, mas no silncio de vozes (REIS FILHO, 2002, p. 450).
Tal presena de questionamentos instigantes pode ser conferida no editorial de sua
stima edio: Versus se define como a busca do fogo que h em toda cinza e questiona: onde
est a Nossa Amrica? Na flauta de nossos ndios? Nas runas dos Sete Povos das Misses?
Na pele de um emigrante nordestino? No medo de um fuzilado de Buenos Aires? Nos escritos
de Jos Mart? [...] (VERSUS, dezembro de 1976, p. 2).
5. Consideraes finais
Aps analisarmos Versus, duas consideraes de destaque so inescapveis: o jornal,
contando com um tom predominantemente cultural, ilustrativo da imprensa alternativa de
vertente existencial, mas no renuncia crtica poltica e resistncia ao contrrio, arma-se
da cultura como linguagem para dar vazo s suas crticas; o jornal instiga a busca por uma
identidade latino-americana, mas no se ilude com uma frmula ou resposta definitiva que
abarque a complexidade e a riqueza da Amrica Latina sob o vu de uma identidade una ao
contrrio, questiona ainda mais as razes e as flores germinadas nessa identidade. Por fim,
diramos que Versus uma publicao alternativa de resistncia que, em sua fase urea, fez o
que seu ttulo postula: um contraponto.
Referncias bibliogrficas
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Revista CONTRACAMPO Niteri n 20 agosto de 2009 semestral Pgina106
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