UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
Escola de Comunicação, Educação e Humanidades
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
VINICIUS SUZIGAN FERRAZ
DISCURSOS MIDIÁTICOS SOBRE O DESASTRE DA
SAMARCO: UMA ANÁLISE DAS REPORTAGENS NAS
REVISTAS VEJA E CARTACAPITAL
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2018
2
VINICIUS SUZIGAN FERRAZ
DISCURSOS MIDIÁTICOS SOBRE O DESASTRE DA
SAMARCO: UMA ANÁLISE DAS REPORTAGENS NAS
REVISTAS VEJA E CARTACAPITAL
Dissertação apresentada em cumprimento parcial às
exigências do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação Social da Universidade Metodista de
São Paulo (UMESP) para obtenção do grau de
Mestre.
Orientador entre agosto/16 e dezembro/17: Prof. Dr.
José Salvador Faro
Orientador final: Prof. Dr. Mateus Yuri Passos
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2018
3
FICHA CATALOGRÁFICA
F413d Ferraz, Vinicius Suzigan
Discursos midiáticos sobre o desastre da Samarco: uma
análise das reportagens nas revistas Veja e CartaCapital / Vinicius
Suzigan Ferraz. 2018.
176 p.
Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) --Escola de
Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2018.
Orientação de: José Salvador Faro e Mateus Yuri Passos.
1. Comunicação 2. Jornalismo 3. Jornalismo (Internet) 4.
Revista Veja - Análise do discurso 5. Revista CartaCapital -
Análise do discurso I. Título.
CDD 302.2
4
A dissertação de mestrado sob o título: “DISCURSOS MIDIÁTICOS SOBRE O DESASTRE
DA SAMARCO: UMA ANÁLISE DAS REPORTAGENS NAS REVISTAS VEJA E
CARTACAPITAL”, elaborada por VINICIUS SUZIGAN FERRAZ, foi apresentada e
aprovada em 01 de OUTUBRO de 2018, perante banca examinadora composta por Prof. Dr.
Mateus Yuri Passos (Presidente/UMESP), Profa. Dra. Cilene Victor (Titular/UMESP) e Profa.
Dra. Katarini Giroldo Miguel (Titular/UFMS).
__________________________________________
Profº. Dr. Mateus Yuri Passos
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
________________________________________
Profº. Dr. Luiz Alberto de Farias
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Pós-Graduação em Comunicação Social
Área de concentração: Processos Comunicacionais
Linha de pesquisa: Comunicação midiática, processos e práticas socioculturais
5
Este trabalho é dedicado aos meus pais, minha irmã e minha noiva.
Também a todos os professores demitidos do PósCom da UMESP.
6
AGRADECIMENTOS
Agradecer à minha família, por ter me dado toda a estrutura para que esse sonho pudesse ter
sido concretizado.
À minha noiva, Bruna Sturian, pelo imenso apoio e paciência nos dias difíceis. O seu suporte
foi fulcro dessa dissertação.
Agradecer o meu orientador inicial, o Prof. Dr. José Salvador Faro. Tem muito da sua
influência nesse trabalho.
Lembrar também dos professores que, injustamente, foram demitidos do PósCom e que
demonstraram o real significado da palavra dignidade: Dr. Marli dos Santos, Dra. Elizabeth
Gonçalves, Dra. Cicilia M. K. Peruzzo, Dr.a Magali Cunha do Nascimento, Dr. Sebastião
Squirra, Dr. Wilson da Costa Bueno, Dr. Daniel Galindo. Os seus ensinamentos perdurarão a
minha existência.
Agradeço também a amizade dos inúmeros amigos e amigas que fiz ao longo do trajeto.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), fomentador da
pesquisa.
Pra finalizar, agradecer aos novos professores do PósCom da UMESP, principalmente os
professores doutores Mateus Yuri Passos e Dimas Kunsch que contribuíram imensamente com
o final da dissertação. Seguimos tentando compreender o mundo.
7
Resumo
Esta pesquisa investiga, com a ajuda da análise do discurso, as estratégias discursivas das
reportagens online de Veja e CartaCapital logo após o rompimento das barragens de Fundão e
Santarém, de propriedade da empresa Samarco Mineração S.A., ocasionando o maior desastre
socioambiental do Brasil, no subdistrito de Bento Rodrigues, na cidade de Mariana/MG,
deixando 19 mortos, um número desconhecido de feridos e desaparecidos e um rastro de 600
quilômetros de lama tóxica até desaguar no oceano Atlântico, já no litoral do estado do Espírito
Santo. Parte-se da hipótese de que esses veículos, do modo como cada um deles noticia o
acontecimento em suas plataformas online, acabam por trazer as suas representações dos fatos
de maneira a enfatizar, em tempos de polarização política, discursos legitimadores de suas
linhas e práticas editoriais numa métrica ideológica aceitável. No campo dos referenciais
teóricos, na parte referente à metodologia, o trabalho dialoga com Dominique Maingueneau,
entre outros autores que trabalham com AD. Entre os principais objetivos do trabalho, busca-
se entender se as estratégias discursivas utilizadas pelas revistas sedimentam e/ou viabilizam
um caminho para essa polarização política. Dessa forma, o trabalho está estruturado em três
capítulos: o primeiro consiste em recontar as histórias que envolveram o desastre de Samarco
através de documentos e fontes oficiais; no segundo procura-se dar ênfase às questões teórico-
metodológicas de pesquisa, fazer a discussão sobre linguagem e sua imbricações com discurso
e mídia; no terceiro e último capítulo, as atenções se voltam para as análises, tanto quantitativa,
naquilo que chamamos de “a grande narrativa”, quanto qualitativa, aplicando a AD Francesa
sobre as duas primeiras reportagens publicadas por cada portal após o acontecimento. Entende-
se que as duas revistas constroem suas narrativas e discursos de acordo com a hipótese aqui
sugerida, legitimando, em Veja, um discurso liberal-conservador e, em CartaCapital, um
discurso progressista, viabilizando caminhos para essa polarização político-ideológica.
Palavras-chave: Comunicação. Jornalismo. Reportagem. Análise do Discurso. Polarização
ideológica.
8
Abstract
This research investigates, with the help of discourse analysis, the discursive strategies of Veja
and CartaCapital online news reports shortly after the rupture of the Fundão and Santarém
dams, owned by Samarco Mineração S.A., causing the greatest socio-environmental disaster in
Brazil, in Bento Rodrigues sub-district, in the city of Mariana-MG, leaving 19 dead, an
unknown number of injured and disappeared, and a trail of 600 kilometers of toxic mud until it
disembogue into the Atlantic Ocean, already on the coast of the state of Espírito Santo. It is
hypothesized that these news oganizations, in the way each of them reports the event on their
online platforms, end up bringing their representations of the facts so as to emphasize, in times
of political polarization, discourses legitimizing their editorial lines and practices on an
acceptable ideological metric. In the field of theoretical references, in the part referring to
methodology, this work dialogues with Dominique Maingueneau, among other authors working
with AD. Among the main objectives of the work, we try to understand if the discursive
strategies used by the magazines sediment and / or enable a way for this political polarization.
In this way, the work is structured in three chapters: the first is to recount the stories that
involved the Samarco disaster through official documents and sources; In the second one, the
emphasis is on the theoretical-methodological questions of research, on the discussion of
language and its imbrications with discourse and the media; in the third and last chapter, the
attention is drawn to the quantitative analysis of what we have called the "great narrative" and
qualitative, applying the French AD on the first two news reports published by each portal after
the event. It is understood that the two magazines construct their narratives and discourses
according to the hypothesis suggested here, legitimating in Veja a liberal-conservative
discourse and, in CartaCapital, a progressive discourse, making possible ways for this political-
ideological polarization.
Palavras-chave: Comunnication. Journalism. News report. Discourse Analysis. Ideological
polarization.
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Antes e depois da barragem de fundão, do subdistrito de Bento Rodrigues e
imediações. ............................................................................................................................... 19
Figura 2 – Variação do Índice de Produção Mineral (IPM) no 2º/2015. Base de comparação:
mesmo mês do ano anterior ...................................................................................................... 28
Figura 3 – Índice de preço de minério de ferro a vista ............................................................. 28
Figura 4 – As maiores empresas do setor de mineração ........................................................... 29
Figura 5 – Caminho do minério ................................................................................................ 32
Figura 5 – Destruição de mata ciliar ocasionado pelo desastre da Samarco em áreas de
preservação permanente ao longo do Rio Doce. ...................................................................... 38
Figura 6 – capa da primeira edição da revista Veja .................................................................. 82
Figura 7 – capa da Veja em sinal de protesto contra o AI5 ...................................................... 85
Figura 8 - Processos de “transformação” e “transação” no âmbito do contrato de comunicação
de Patrick Charaudeau (2006). ................................................................................................. 88
Figura 9 – Exemplar simbólico de CartaCapital ..................................................................... 93
10
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Relação de tragédias no estado de Minas Gerais .................................................... 21
Tabela 2 – Diferenciação entre notícia e reportagem ............................................................... 75
Tabela 3 – Proposta de tabela de valores-notícia para operacionalizar análises de
acontecimentos noticiáveis / noticiados. .................................................................................. 97
Tabela 4 – Fontes citadas nas notícias e reportagens em Veja ............................................... 100
Tabela 5 – Setores sociais invocados em Veja ....................................................................... 103
Tabela 6 – Editorias e temas em Veja .................................................................................... 105
Tabela 7 – Tratamentos em Veja ............................................................................................ 107
Tabela 8 – Fontes citadas nas notícias e reportagens em CartaCapital ................................. 108
Tabela 9 – Setores sociais em CartaCapital .......................................................................... 110
Tabela 10 – Editorias e temas em CartaCapital..................................................................... 112
Tabela 11 – Tratamentos em CartaCapital ............................................................................ 113
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
CAPÍTULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO: AS HISTÓRIAS POR TRÁS DO
DESASTRE DA SAMARCO 16
1.1 A cronologia do desastre da Samarco 18
1.2 Política, economia e meio ambiente 25
1.3 Samarco, Vale e BHP-Billiton: poder e negligenciamento 30
1.4 O desastre ambiental 35
CAPÍTULO 2 - A ANÁLISE DO DISCURSO FRANCESA E A REPORTAGEM:
CAMINHOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 42
2.1 Linguagem, discurso e ideologia 43
2.2 Análise do discurso e os meios de comunicação 57
2.3 Estruturalismo e Pós-estruturalismo 60
2.4 Contrato de comunicação midiático e o ethos discursivo 63
2.5 A reportagem jornalística em revista enquanto gênero: da mídia impressa à digital 69
CAPÍTULO 3 - OS ESTUDOS SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DO DESASTRE:
UMA ANÁLISE QUANTITATIVA E QUALITATIVA 79
3.1 As revistas Veja e CartaCapital e seus ethos discursivos perante seus leitores: um
contrato de comunicação 80
3.2 A grande narrativa: um ano de cobertura online das revistas 94
3.3 Análise discursiva das reportagens “Tragédia de Mariana: para que não se repita” e
“Mar de lama, literalmente”, em Veja e CartaCapital 117
CONSIDERAÇÕES FINAIS 131
REFERÊNCIAS 136
ANEXOS 143
12
INTRODUÇÃO
Os meios de comunicação permeiam a vida do ser humano, principalmente a vida
urbana. Pode-se dizer que sua ubiquidade é fator intrínseco à vida moderna: a mídia exerce
influência em praticamente todos os níveis e instâncias socioculturais, tendo a capacidade de
invadir todos os espaços e atingir a todos através de seu poder de difusão simbólico. Essa
onipresença da mídia alterou e continua a alterar o caráter sociocultural, “assim, as questões
tradicionais sobre o uso e os efeitos dos meios de comunicação precisam levar em consideração
as circunstâncias nas quais a cultura e a sociedade passaram a ser midiatizadas” (HJARVARD,
2008, p.55)
Essa sintética avaliação sobre o comportamento midiático em sociedades modernas
busca explicar os objetivos desta pesquisa: entender as estratégias discursivas por trás das
abordagens das revistas Veja e CartaCapital, em seus portais online, sobre o desastre da
Samarco, este que é considerado um desastre tecnológico, já que o rompimento das barragens
de Fundão e Santarém ocasionou a maior tragédia socioambiental brasileira.
A recuperação das histórias do rompimento das barragens da Samarco, localizadas em
Bento Rodrigues, subdistrito da cidade de Mariana-MG e a tentativa, por meio de fontes e
documentos oficiais, de destrinchar um acontecimento dessa magnitude em todas as suas
perspectivas, os seus desdobramentos sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais,
não é tarefa das mais fáceis. Além de uma bibliografia especializada e também as luzes trazidas
pela análise crítica dos discursos dos meios de comunicação sobre o evento, este levantamento
demanda muita paciência e organização para que a apuração dos fatos se dê na pretensão de
fazer uma reconstituição de maneira mais fiel aos relatos e documentos. É certo que o fato não
se resume ao que será escrito e descrito aqui, em primeiro lugar porque seria arrogância por
parte deste pesquisador em querer atingir tal objetivo; em segundo porque toda obra aberta é
inacabada, a história continua a ser tecida através do tempo. Uma terceira ponderação seria a
de que a representação é uma construção ativa e que ela depende sistematicamente da
pragmática do contexto, mas essa é uma discussão que faremos mais à frente.
Dessa forma, a iniciativa deste projeto parte da tentativa de compreender os mecanismos
discursivos embutidos nas reportagens e notícias que as revistas Veja e CartaCapital fizeram
sobre o caso, em seus portais online, e também as ideologias que perpassam o fato no trato
noticioso, trabalho dos mais árduos, já que as representações dos acontecimentos são sempre
13
enviesadas, ou seja, as marcas, os traços e os objetivos dos enunciadores se mostram na tentativa
de apresentar o fato perante o seu público, este que por sua vez tem papel ativo nessa
construção: o enunciatário contrata o enunciador para dizer aquilo que ambos legitimam como
verdade nessa troca simbólica. Assim, tanto Veja quanto CartaCapital, periódicos que são
notadamente reconhecidos por seguirem linhas político-ideológicas distintas, acabam por
imprimir os traços e marcas enunciativas nas representações que fazem da realidade através de
eventos comunicacionais, sedimentando, em tempos de polarização política, caminhos
possíveis que viabilizam essa divisão ideológica em polos antagônicos de pensamento, assim
como nos mostra Ferraz:
O que deveria servir para fomentar a discussão de ideias, o pluralismo
intelectual e o crescimento do debate político inteligente vem se transformando
numa divisão da sociedade em, como o próprio nome diz, polos antagônicos de
pensamento que se combatem, produzindo e reproduzindo ideias superficiais,
onde a intolerância se esconde na defesa do contraditório e, segundo Norberto
Bobbio (1995, p. 33), “não há nada mais ideológico do que a afirmação de que
as ideologias estão em crise”. E esse tipo de pensamento diádico não é novo
(FERRAZ, 2018, p. 2).
Por fim, a pesquisa também tem um ar de memória, já que serve para que não nos
esqueçamos de Mariana-MG, tragédia essa que é fruto, entre inúmeras outras coisas, da
irresponsabilidade, negligência e da ganância das empresas que lá operam.
Indignação é um léxico que nos acompanha no levantamento do nosso objeto de estudo,
já que soluções ainda não foram viabilizadas para as famílias de Bento Rodrigues, Paracatu de
Baixo e Barra Longa, subdistritos atingidos pela lama tóxica oriunda do rompimento das
barragens da Samarco e que tiveram seus bens, parentes, amigos e sonhos soterrados pelo
desastre. A esperança é que eles tenham condições de seguir as suas vidas da melhor maneira
possível e que essa história, no final, ainda tenha conclusões mais positivas.
Esta dissertação está organizada em três capítulos. O primeiro procura abordar,
sistematicamente, os acontecimentos e os fatos que circundam o desastre da Samarco e a
tragédia em Mariana-MG. Essa tarefa só foi possível graças às fontes e documentos oficiais,
análise crítica dos discursos que os meios de comunicação fizeram sobre o fato e bibliografia
especializada, dentre elas, o livro Vozes e Silenciamentos: crime ou desastre ambiental?, uma
construção coletiva da disciplina Linguagem: Jornalismo, Ciência e Tecnologia, do Programa
de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Labjor/IEL/Unicamp, organizado pela
Profa. Dra. Graça Caldas. O livro é uma das mais competentes tentativas de resgatar a memória
do desastre que, em uma abordagem multidisciplinar, se debruça sobre aspectos sociais,
14
ambientais, políticos, culturais e econômicos que estão envolvidos na complexa tentativa de
expor, de maneira holística, o fato e suas representações. A publicação também aborda a vida
da cidade e de seus moradores antes e depois da tragédia, o desastre tecnológico, as vozes e os
silêncios promovidos pelos meios de comunicação, entre outras pesquisas contundentes.
O segundo capítulo visa explicar, de maneira teórico-metodológica, alguns preceitos
sobre o método aqui utilizado: a análise do discurso. Nesse sentido, fizemos uma discussão
sobre o que é linguagem, o que é discurso e como esse último pode difundir aspectos
ideológicos e culturais através dos meios de comunicação de massa. Para embasar o método de
AD são esboçadas algumas explicações teóricas tanto para o estruturalismo, quanto para o pós-
estruturalismo e como esses pensamentos filosóficos intersectam a análise do discurso.
Também discutimos alguns conceitos chave para entendermos a relação do nosso corpus de
pesquisa, as revistas Veja e CartaCapital, com os seus leitores, por meio do que Patrick
Charaudeau (2006) chamou de contrato de comunicação midiático, o que, basicamente, tece
uma visão peculiar sobre os processos de trocas simbólicas embutidos nos discursos sociais e
prevê certas cláusulas tácitas, que permitem a eficácia comunicativa e o reconhecimento mútuo
nessa troca entre locutor e interlocutor já que "a eficácia das palavras só se exerce na medida
em que aquele que a experimenta reconhece aquele que a exerce como no direito de exercê-la
[...]" (BOURDIEU, apud CHARADEUAU, 2006, p. 66). Também faz parte da nossa
fundamentação teórica explicar o conceito de ethos discursivo como a imagem projetada do
enunciador em seu discurso e como essa imagem interfere na relação entre locutor e
interlocutor, nessa relação dialogal. Para terminar o segundo capítulo, tratamos da reportagem
jornalístico enquanto gênero, sua diferença com a notícia e sua trajetória do impresso ao digital.
No que tange a análise do corpus de pesquisa pré-delimitado, fez-se o seguinte caminho:
contextualizamos e identificamos os ethos discursivos das revistas Veja e CartaCapital e
imbricamos o conceito com o contrato de comunicação, a fim de entender como se dão essas
trocas simbólica, do acontecimento à interpretação. Também foi sistematizada uma análise
qualitativa em cima de um ano de conteúdo, partindo das coberturas das revistas do dia 05 de
novembro de 2015 ao dia 04 de novembro de 2016, interpretando os resultados através de quatro
índices: a pluralidade das fontes; os setores sociais invocados na construção dessas narrativas;
e, por fim, quais foram os temas e seus tratamentos respectivos. Por fim, aplicamos a AD em
cima dos enunciados das reportagens “Tragédia em Mariana: para que não se repita”, em Veja
e “Mar de lama literalmente”, em CartaCapital.
15
Os resultados das análises nos mostraram que a nossa hipótese estava correta e que os
periódicos corroboraram com a polarização política vigente no país, mas muito por meio do
que pregam em suas linhas editoriais e como abordaram a problemática ambiental, abordagens
que são destinadas aos públicos leitores específicos de cada revista, sendo assim, produzidos
materiais jornalísticos que condizem, ideologicamente com esses co-enunciadores através do
contrato de comunicação.
16
CAPÍTULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO: AS HISTÓRIAS POR TRÁS DO DESASTRE
DA SAMARCO
A introdução deste capítulo possui alguns objetivos de pesquisa. Primeiro, introduzir o
leitor no contexto que abrange a nossa dissertação. Em segundo, entender o multifacetado tema
que percorre o nosso objeto de pesquisa e alguns dos seus nuances. Por fim, mas não por último,
também dissecar o motivo da escolha lexical pela palavra desastre em vez de tragédia, ou
qualquer outro sinônimo equivalente. Começaremos pelo final.
A origem da palavra tragédia é retomada da mitologia grega. É a junção das palavras
em grego tragos, que significa bode, e oidé, cuja representação, linguisticamente falando, está
no lugar de canção. Tragédia, para os gregos, remete à canção do bode. Para a mitologia grega,
toda vez que um herói ou um deus era celebrado, assim como Dionísio ou Apolo, antes da
celebração, costumeiramente louvado pela apresentação de peças de autores célebres, exibiam-
se cantores que usavam como ornamentos pés de cabra ou de bode. Nessas cerimônias, o canto
desses artistas era acompanhado pelo sacrifício de um bode. A cenografia tem como simbologia
exprimir a ideia de que os bodes, como animais devastadores dos vinhedos, seriam inimigos de
Dionísio, o deus grego do vinho, e por essa razão deveriam ser sacrificados.
Tragédia, na modernidade, é um léxico que está para simbolizar um acontecimento
catastrófico, doloroso, geralmente acompanhado de alto valor impactual, como a desgraça que
acomete muitas vítimas ou, em ordem capitalista, que envolve uma grande quantidade de
dinheiro. Poderíamos replicar a palavra com o significado moderno para representar o que
aconteceu em Mariana-MG. Uma tragédia com vários sacrifícios sociais, econômicos, políticos,
ambientais e humanos, 19, para sermos mais exatos. Vamos tentar ir um pouco mais além.
Segundo o sociólogo alemão Ulrich Beck (2011), vivemos em uma sociedade de risco.
Os desastres que acometem a vida social de tempos em tempos nos trazem de volta a essa
realidade dura, principalmente em países subestruturados como o Brasil. Imersos em nosso
cotidiano, os riscos parecem ser de ordem virtual, não nos atingindo ou simplesmente não
existindo, sendo ignorado em diversos casos, como parece ser o caso do desastre tecnológico
da Samarco.
Dessa forma, o autor alemão propõe uma abordagem sociológica que apresente novos
problemas e uma nova teoria para explicar as sociedades modernas, teoria que ousa ultrapassar
os conceitos marxistas, centrais e paradigmáticos para o estudo das ciências sociais desde o
17
século XIX, que apresentam como fulcro central a luta de classes na sociedade. Isso não quer
dizer que esse tipo de pensamento se esvai com a aparição das teorias de Beck, mas que existe
uma associação de pensamentos para pensar a vida em sociedade de maneira mais complexa.
A pesquisadora Cilene Victor desata essa complexidade na visão de Beck:
Para Beck (1999), os riscos fortalecem a sociedade de classes, uma vez que os
ricos podem tentar evitá-los. Escolher onde morar e ter acesso à informação
confere aos ricos uma vantagem sobre as classes populares que, com pouco
poder aquisitivo e dificuldade de acesso à informação, têm menos
possibilidades de escolhas, especialmente de moradia (VICTOR, 2014, p. 6)
Assim, o autor coloca os riscos ambientais como eixo para a definir a sociedade de risco.
Não se trata aqui de riscos comuns, mas aqueles que se apresentam como causadores de graves
consequências, se tornando irreversíveis e, uma vez identificados, que ultrapassam qualquer
limite e classe social. Mas de qual riscos estamos falando? A socióloga Julia Silva Guivant nos
ajuda:
Trata-se de riscos contra os quais não podemos obter seguros para proteção,
porque não podem ser calculados. Eles estão na dimensão da incerteza. A
energia nuclear e os agrotóxicos eram exemplos paradigmáticos. O pacto pelo
progresso realizado entre ciência e indústria teria sido a origem da sociedade
de risco que agora vem até nós com um forte efeito bumerangue (GUIVANT,
2016, p. 230)
Nesse sentido, o desastre é definido, então, como a materialização do risco. “Um
desastre é produzido através da combinação de fenômenos naturais perigosos e situações
vulneráveis” (ROMERO; MASKREY, 1993). Também pode ser entendido como a
probabilidade de realização de um perigo.
Portanto, é com base nas explicações científicas e não mitológicas/etimológicas que
ficamos com a definição lexical de desastre para classificar o que aconteceu na cidade de
Mariana-MG e suas redondezas.
Também se faz necessário explicar e explicitar que o desastre (ou até mesmo a tragédia,
a catástrofe) não é de Mariana-MG, como foi muito erroneamente publicado pela imprensa
tradicional durante a cobertura do acontecimento. O desastre é antropogênico e por sê-lo, tem
nome e CNPJ: o desastre em si é de responsabilidade da empresa Samarco e de suas operadoras,
as gigantes mineradoras Vale e BHP-Billiton, além do descaso dos poderes públicos que pouco
fizeram para fiscalizar a exploração mineral da área.
Ora, se o desastre é de Mariana-MG, pressupõe-se um eufemismo linguístico que
permite não responsabilizar os culpados pelo risco e, consequentemente, pela materialização do
desastre. Permite enxergar que quem estava errada, desde o começo, foi a cidade de Mariana e
18
o seu subdistrito de Bento Rodrigues. Também é errado classificar o desastre como ambiental,
também comumente utilizado pela mídia na divulgação do fato. Se o desastre é ambiental,
significa subentender que ele aconteceu de forma natural, sem influência do homem, apenas
por forças da natureza, tais como terremotos, furacões, entre outros. O desastre é tecnológico
já que foram falhas estruturais na barragem de Fundão que permitiu a sua ruptura, inundando o
subdistrito de Bento Rodrigues com a violência de uma “tsunami”.
Assim, o que se procura fazer neste primeiro capítulo é entender e contextualizar o
acontecimento de forma mais verossímil possível, entendendo a cronologia do desastre
tecnológico das barragens de Fundão e consequentemente de Santarém, desde o seu início (por
volta das 15 horas do dia 05 de novembro de 2015) até o final desse dia. Também iremos
destrinchar a trinca economia, política e meio ambiente e como esses setores sociais estão
imbricados com a tragédia em si, além de entender, simbolicamente, quem foram os
personagens (Samarco, Vale e BHP-Billiton) que demandaram tamanho sacrifício humano e
socioambiental de uma região cujo o único destino foi servir de aterro para as mazelas e
negligências do capital: o subdistrito de Bento Rodrigues, na cidade de Mariana-MG.
Por fim, situar o leitor na compreensão do complexo (e longo) impacto ambiental que
ao qual foi submetida uma das maiores bacias hidrográficas do mundo, a bacia do Rio do Doce,
contaminando o rio homônimo, prejudicando a população que um dia se aproveitou
economicamente dele.
1.1 A cronologia do desastre da Samarco
Iremos, neste subcapítulo, tecer uma linha do tempo sobre a sucessão de fatos para a
reconstrução do acontecimento principal: o rompimento da barragem de Fundão e suas
consequências, tais como a inundação da lama tóxica no subdistrito de Bento Rodrigues, distrito
de Santa Rita Durão, em Mariana-MG, e também dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce.
Essa reconstituição cronológica será feita com a ajuda de dados oficiais, fontes bibliográficas,
meios de comunicação e órgãos públicos condizentes. A tentativa aqui é reconstruir as primeiras
horas do fato. O rompimento das barragens aconteceu no dia 05 de novembro de 2015.
Basicamente, o que aconteceu foi que a barragem de Fundão, localizada no subdistrito
de Bento Rodrigues, distrito de Santa Rita Durão, na cidade de Mariana-MG, rompeu-se no dia
05 de novembro de 2015. A barragem, de responsabilidade da empresa Samarco Mineração
S.A, era uma contenção que segurava rejeitos da exploração de minérios de ferro entre outros
produtos químicos que, ao romper-se, despejou lama tóxica em cima de outra barragem, a de
19
Santarém, que conjuntamente liberaram cerca de 60 milhões de metros cúbicos no rastro de
Bento Rodrigues, ocasionando a morte de 19 pessoas e vários feridos. As razões desse evento
trágico são várias, desde o descaso do poder público, leis pouco severas, ganância e negligência
das empresas envolvidas, entre outros fatores.
Figura 1 – Antes e depois da barragem de fundão, do subdistrito de Bento Rodrigues e
imediações.
Fonte: Divulgação/ Airbus Defence and Space
Segundo os autos do Ministério Público Federal, por meio da Força Tarefa Rio Doce e
a Procuradoria da República nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, o fato é dado dessa
forma:
É fato público e notório que, em 05/11/2015, por volta das 15:00 horas, houve o
rompimento da barragem Fundão e o galgamento dos rejeitos de mineração sobre a
barragem Santarém, localizadas no Complexo Industrial de Germano, Município de
Mariana/MG, ambas operadas pela Samarco Mineração S.A, e localizadas na Bacia
do Rio Gualaxo do Norte, afluente do Rio do Carmo, que é afluente do Rio Doce. O
citado rompimento gerou ondas de rejeitos de minério de ferro e sílica, entre outros
particulados, que pela velocidade e volume ocasionaram e continuam causando
impactos ambientais e sociais imensuráveis ao longo de toda a Bacia Hidrográfica
do Rio Doce (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2015, p. 11).
Segundo o funcionário Andrew Oliveira da empresa Integral - uma terceirizada da
Samarco -, o primeiro tremor aconteceu por volta das 14 horas. Ele foi um dos primeiros
envolvidos na tragédia a falar com os jornalistas sobre o acontecimento. Após o tremor, a ordem
da Samarco foi para que os funcionários continuassem a trabalhar e que o abalo era algo
ordinário. Duas horas depois, um tremor mais intenso aconteceu provocando desespero nos
funcionários, que começaram a correr. “Por volta das 16h30, por aí assim, começou a
praticamente ter um terremoto, mesmo, um terremoto” (TRAJANO, 20115), disse Oliveira,
comparando a intensidade do tremor com a de um abalo sísmico. O tremor era oriundo da
barragem de Fundão, localizada no subdistrito de Bento Rodrigues:
20
Em entrevista posterior concedida à revista Veja, o engenheiro da Samarco,
Germano Silva Lopes, admitiu que os funcionários notaram um tremor vindo da
barragem de Fundão, localizada no subdistrito de Bento Rodrigues, cerca de 40 km
do centro da cidade de Mariana. Contudo, sua vistoria não constatou nenhuma
irregularidade (CARNEIRO, 2017, p. 76).
Lopes, na mesma entrevista, afirmou que o rompimento da barragem de Fundão
aconteceu apenas uma hora após a vistoria, às 15 horas. Deixou claro também que, ao romper-
se, a lama tóxica despejada pela barragem também sobrecarregou e ocasionou a ruptura de outra
barragem, a de Santarém, “ocasionando o despejo de cerca de 60 milhões de toneladas de lama
sobre o subdistrito de Bento Rodrigues” (CARNEIRO, 2017, p. 76).
Às 15h30, os rejeitos tóxicos avançavam sobre o subdistrito de Bento Rodrigues e as
pessoas que ali viviam ficaram ao sabor da sorte, já que a falta de aviso sonoro e os poucos
avisos por telefone feitos pela Samarco não foram suficientes para que a vida de 19 vítimas,
dentre elas duas crianças, uma de 5 e outra de 7 anos, fossem salvas. A tragédia só não foi maior
porque a sorte, nesse caso, tinha nome: Paula Alves. A moradora local, assim que soube da
avalanche de lama tóxica que se seguia para Bento Rodrigues, pegou a sua moto e saiu
percorrendo as ruas da cidade, numa tentativa de alertar as pessoas sobre a enxurrada que
prosseguia para lá.
Para a Samarco, na figura de seu coordenador de projetos, Germano Silva Lopes, a
justificativa pela falta de comunicação sonora, entre outros itens de segurança, se ampara na
Lei nº 12.334 (BRASIL, 2010) que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens
(PNSB) e cria o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB). Para
ele, todas as especificações da lei foram cumpridas integralmente, mas sua fala ignora o Artigo
12, inciso IV, que prevê “estratégia e meio de divulgação e alerta para as comunidades
potencialmente afetadas em situação de emergência” (MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA,
2013). Outro instrumento legal definido pelo Departamento Nacional de Produção Mineral
(DNPM), através da Portaria nº 526/2013, afirma que “cabe ao empreendedor alertar a
população potencialmente afetada” (DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÃO
MINERAL, 2017). No entanto, no plano de emergência elaborado e entregue em 2014 pela
Samarco ao governo de Minas Gerais consta que “a responsabilidade por avisar e remover as
pessoas em risco iminente é da Defesa Civil” (FERREIRA, 2017, p. 103). Em seu favor, a
Defesa Civil diz que suas atividades só são acionadas após a consumação dos desastres, ou seja,
não tem como objetivo prever ou/e prevenir acidentes. Outro imbróglio desta luta jurídica
consiste que o coordenador da Defesa Civil de Minas Gerais, Helbert Lourdes, contou que a
21
cópia do plano de emergência não constava nas mãos do órgão e que o aviso do rompimento da
barragem foi dado pela PM e não pela Samarco, assim como descreve Ferreira:
No Plano entregue ao governo federal, a Samarco reconhece como sua a obrigação
de “alertar a população”, mas que, em casos de ruptura das barragens “as ações não
são desempenhadas somente pela Samarco”, havendo também a necessidade de
órgãos públicos contatarem a população. Apesar de reconhecer como sua a
atribuição de alertar em caso de acidente, a mineradora não especifica como e quem
seriam os responsáveis por cada tarefa (FERREIRA, 2016, p. 103).
Às 16h49, sai a primeira notícia nos meios de comunicação sobre o desastre. O portal
online Uai, pertencente ao Estado de Minas, deu o furo sobre o rompimento das barragens e
continuou a fazer suítes sobre o desastre. Às 17h30, o Portal Diário do Aço, também começou
a cobrir o fato e destacou que essa não foi a primeira vez que tragédias com barragens
aconteceram em Minas Gerais. Segue a lista:
Tabela 1 – Relação de tragédias no estado de Minas Gerais
1986 Barragem rompe na mina de Fernandinho/Itabirito
2001 Barragem rompe em Macacos, Belo Horizonte
2003 Barragem de resíduos rompe em Cataguases
2007 Barragem da mineradora Rio Pomba rompe em Cataguases
2014 Barragem da Herculano Mineração rompe em Itabirito
Fonte: Portal Diário do Aço
Essa não tão breve lista demonstra o descaso do poder público e das empresas que
empreendem atividade de exploração de minério em Minas Gerais, estado em que a mineração
é parte importante de sua economia.
A prefeitura de Mariana emitiu nota oficial, duas horas e trinta e cinco minutos depois
do rompimento da barragem de Fundão (17h35). A pedido da Samarco, a prefeitura também
solicitou que os moradores evacuassem Bento Rodrigues. Segue nota na íntegra:
Houve o rompimento da Barragem de Fundão, da Samarco Mineração, atingindo
parte do distrito de Bento Rodrigues, zona rural, distante 23 quilômetros de Mariana.
As equipes do Corpo de Bombeiros, agentes da Guarda Municipal e Defesa Civil
municipal estão no local neste momento para avaliação dos danos (Prefeitura
Municipal de Mariana-MG apud CARNEIRO, 2017, p. 78)
Somente às 17h40, duas horas e quarenta minutos após o rompimento da barragem de
Fundão o poder público chegou ao local. O mesmo Portal Uai, fazendo a cobertura ao vivo,
22
reportou que tinham sido deslocados helicópteros da Polícia Civil e Militar e equipes de
emergências ambientais de Belo Horizonte, assim como equipes de resgate do Corpo dos
Bombeiros.
A assessoria de imprensa da Samarco demorou três horas e dois minutos para se
pronunciar e, de maneira simplória, não forneceu grandes informações, apenas disse que
apurava o acontecido. A analogia infeliz é que o “despreparo da Samarco frente à crise está
claro, assim como eram as águas do Rio Doce. A cada silenciamento ou refugo, a Samarco
coloca em cheque seu slogan/assinatura: Desenvolvimento com envolvimento” (CARNEIRO,
2017, p. 79).
Às 18h16, as primeiras descrições da situação começaram a pipocar nos meios de
comunicação. O Globo destacou a cena desoladora da região:
Em entrevista à rádio “CBN”, o comandante do Corpo de Bombeiros de Mariana,
Adão Severino Júnior, afirmou que a situação é “dramática” e que o número de
mortos pode passar de 40. Segundo a Polícia Militar, a lama chegou a 2 metros e
meio de altura e atingiu uma distância de oito quilômetros da barragem. Cerca 600
moradores vivem no distrito de Bento Rodrigues (O GLOBO, 2015).
Finalmente, às 18h25, a Samarco, por meio de sua página no Facebook, divulgou uma
nota informando e assumindo o rompimento das barragens. A nota tem um tom de apoio à
população e aos esforços do poder público, mas a eximição de culpa também está presente:
A Samarco informa que houve um acidente em sua barragem denominada Fundão,
localizada na unidade de Germano, nos municípios de Ouro Preto e Mariana (MG).
A organização está mobilizando todos os esforços para priorizar o atendimento às
pessoas e a mitigação de danos ao meio ambiente. As autoridades foram devidamente
informadas e as equipes responsáveis já estão no local prestando assistência. Não é
possível, neste momento, confirmar as causas e extensão do ocorrido, bem como a
existência de vítimas. Por questão de segurança, a Samarco reitera a importância de
que não haja deslocamentos de pessoas para o local do ocorrido, exceto as equipes
envolvidas no atendimento de emergência. (SAMARCO, 2015).1
As primeiras informações tocantes à culpa do desastre vieram da Folha de S. Paulo que
usaram a expressão “Tsunami de lama” para começar a reportagem do dia 06/11/2015, onde
ofereciam detalhes do ocorrido e usaram como fonte o Diretor do Sindicato Metabase Mariana,
Sérgio Moura, que citou um suposto abalo sísmico como um dos fatores responsáveis pelo
rompimento da barragem:
1 Disponível em: https://www.facebook.com/SamarcoMineracao/posts/1677277292489086, acessado em
20/03/2018.
https://www.facebook.com/SamarcoMineracao/posts/1677277292489086
23
Segundo Moura, a Samarco disse que houve abalos sísmicos na região às 14h. O
Observatório da USP registrou, a 22km do local, tremor de 2,55 na escala Richter,
mas considerado de baixo impacto (com até 3 na escala, nem costuma ser sentido
pelas pessoas). O rompimento ocorreu uma hora e meia depois (FOLHA DE S.
PAULO, 2015)
Isso não quer dizer que a principal hipótese sobre o acontecimento do desastre teria sido
causada por fatores de ordem natural, como os abalos sísmicos, mas é importante salientar que
eles aconteceram e que também podem ter sido alavancados pelos eventos da própria barragem
de Fundão. Nesse sentido, a hipótese sobre a influência dos abalos sísmicos na região e o
impacto desse tipo de evento no desastre anunciada foi descartada pelos especialistas. No total,
foram sentidos 11 abalos na região no dia do desastre: os dois registrados antes do rompimento
foram os mais significativos, atingindo 2,7 e 2,5 na escala Richter, que vai até 9. Joaquim
Pimenta Ávila, o engenheiro que projetou a barragem de Fundão, em depoimento à Polícia
Federal, afirmou "que o sismo ocorrido no local, de 2,6, somente afetaria se o rejeito já estivesse
quase saturado e próximo de estado de liquefação". Carlos Martinez, professor de engenharia
hidráulica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) corrobora a declaração de Ávila
e faz um adendo ao afirmar que “o que levou ao colapso provavelmente foi a junção de uma
dezena de fatores: liquefação, problema de drenagem, problema construtivo da estrutura. Isso
tudo somado pode resultar num evento catastrófico” (O GLOBO, 2016).
Às 19h01, o Ministério Público de Minas Gerais instaurou inquérito para investigar as
causas e responsabilidade do desastre. O responsável pela apuração foi o promotor de Justiça
Carlos Eduardo Ferreira Pinto, coordenador da Promotoria de Meio Ambiente. Foi enviada uma
equipe ao local para fazer a apuração dos fatos.
A essa altura, o acontecimento já estava sendo veiculado na TV aberta, com ampla
cobertura da Rede Globo, que apresentou um resumo do desastre com imagens ao vivo do local.
A dificuldade em se chegar ao local foi um dos principais empecilhos da grande mídia para
justificar a cobertura tardia do acontecimento.
O prefeito de Mariana, Duarte Eustáquio Gonçalves Júnior (PPS), reuniu-se com
representantes da Samarco, cinco horas após o rompimento da barragem de Fundão, às 20 horas.
A Prefeitura concedeu equipes médicas, enfermeiras e funcionários públicos para ajuda aos
sobreviventes. Duarte, mais conhecido como "Du", tinha assumido o cargo de prefeito de
Mariana em junho de 2015, depois da cassação de Celso Cota Neto (PSDB), eleito em 2012 e
cassado por improbidade administrativa no início de 2015. Foi o prefeito que administrou a
24
cidade durante o desastre da Samarco, cumprindo o final do mandato de Cota. Após reeleição
em 2016 com 26.078 votos (74,37% dos votos válidos), Júnior e seu vice, Newton Godoy
(PSD), também tiveram seus mandatos cassados dia 20/02/2017, em processos por suspeita de
captação ilícita de votos e prejuízo aos cofres públicos. Regiane Gonçalves, mulher do prefeito,
também foi alvo da decisão. Ela e o marido ficarão inelegíveis por oito anos e deverão pagar
multa de R$ 150 mil. A decisão da juíza Marcela Oliveira Decat de Moura aceitou as ações do
Ministério Público que alegou que um grande volume de materiais de construção foi doado pela
prefeitura com a finalidade de obter apoio eleitoral. Também, de acordo com o órgão, a ajuda
não cumpriu requisitos legais, já que o programa de cunho assistencial exige cadastro e análise
socioeconômica prévias dos beneficiados. Assim, complementa a juíza em sua decisão:
Em nenhum momento da história de Mariana era tão esperada uma conduta diferente
do prefeito. A cidade, assolada por uma crise financeira sem precedentes e sofrendo
com o maior desastre ambiental já ocorrido em solo brasileiro, viu seus recursos
financeiros serem distribuídos indistintamente entre vários eleitores, tudo como
forma de alavancar a candidatura de Duarte (JUSBRASIL, 2016).
Ele permanece no cargo, pois o recurso apresentado por Duarte Júnior ao Tribunal
Regional Eleitoral de Minas Gerais suspende as determinações da juíza até que o TRE-MG
decida sobre o caso.
Voltando ao desastre, donativos começaram a chegar às 20h08 graças a ação
humanitária mobilizada pelos meios de comunicação e também pelos órgãos oficiais, pedindo
ajuda aos sobreviventes do desastre que estavam alojados no ginásio Arena Mariana.
O Sindicato Metabase Mariana continuou suas denúncias contra a Samarco e veio a
público informar, às 20h49, que, mesmo sem dados oficiais, até o momento, 15 trabalhadores
tivessem morrido e outros 45, desaparecidos. Às 22h22, o mesmo Sindicato, representado pelo
seu diretor, Ronaldo Alves Bento, informou que não havia um plano de evacuação da região,
ao redor da barragem e, segundo ele:
Muita gente pode ter morrido por não conseguir sair a tempo. O que aconteceu foi
uma irresponsabilidade. Não temos até agora informação sobre as crianças dessa
escola. Todas as informações são sonegadas e ninguém tem até agora, oficialmente,
a dimensão desse acidente, mas sabemos que foi muito grave. O distrito de Bento
Rodrigues não existe mais (BENTO apud CARNEIRO, 2017, p. 86).
Às, 23h08, o prefeito Duarte Júnior, em conversa com os moradores de Bento Rodrigues
que não queriam deixar as suas residências, garantiu que eles seriam levados aos abrigos
disponíveis com o mínimo de dignidade.
25
Para finalizar o dia fatídico de 05 de novembro de 2015, a imprensa começou a veicular
informações, às 23h33, sobre um levantamento realizado pelos voluntários na Arena Mariana,
indicando que 100 a 200 pessoas ainda se encontravam ilhadas na parte mais alta da cidade, no
aguardo por resgate.
1.2 Política, economia e meio ambiente
Considerado já o maior desastre socioambiental brasileiro2, o rompimento das barragens
de Fundão poderia e deveria ter sido evitada. No que compete ao dever, um simples soar de
uma sirene poderia ter poupado a vida de 19 pessoas que foram soterradas pela enxurrada de
lama tóxica, sirene que estava prevista nos planos da Samarco em caso de acidente, mas que
não foi implementada.
A política ambiental brasileira também favorece a manutenção do sigilo das empresas
que trabalham com extração de recursos naturais. Diversos encontros internacionais (Cúpula da
Terra, Eco 92 e Rio+20) procuraram estabelecer leis e medidas para controle ambiental com o
objetivo de reduzir os impactos no meio ambiente e, amparada na Constituição de 1988, a
política ambiental brasileira tem procurado atender aos desafios que surgem. Foram criados
mecanismos para controle das atividades de empresas que trabalham com recursos naturais,
mas esses mecanismos têm se mostrado ineficazes para conter os danos ambientais de possíveis
acidentes.
Assim, três instrumentos são utilizados pela política ambiental brasileira atualmente:
Controle-Comando; Econômico; e Comunicação. O primeiro, como o próprio nome diz, cria
normas, regras e procedimentos visando controlar e limitar a ação de empresas e suas
utilizações dos recursos naturais através da fiscalização, penalização e proibição; o segundo,
tem como finalidade taxar e cobrar tarifas, além de também reduzir esses encargos assim que a
empresa se mostra “amiga do meio-ambiente”; e o terceiro, visa realizar informes e divulgação,
selos ambientais e promoções de educação ambiental, uma tentativa de conscientização social
por meio da comunicação e informação.
A instância Controle-Comando bifurca em outros dois relatórios: os EIAs (Estudo de
Impacto Ambiental) e os RIMAs (Relatório de Impacto Ambiental). É aí onde as empresas
envolvidas são beneficiadas. Apenas os RIMAs são divulgados e levados a público, já que os
2 Asserção consensual na imprensa e na sociedade brasileira. Afirmação também encontrada no livro “Vozes e
silenciamentos em Mariana: crime ou desastre ambiental?”, organizado pela pesquisadora Graça Caldas.
26
EIAs contêm informações e estratégias sigilosas das empresas. Quem compartilha essas
obrigações são os órgãos estaduais de meio ambiente e o Ibama, como partes integrantes do
Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA).
Há implicações também na Constituição brasileira para a proteção ambiental. Cabe ao
poder público e a toda a população defender e preservar o meio ambiente, mantendo-o
equilibrado (art. 225, inciso IV, da Constituição Federal). Cabe às instâncias estaduais,
municipais e federais o cumprimento das leis voltadas à proteção do meio ambiente (VARELA,
et al., 1998).
Outro instrumento que ajuda na proteção ambiental em geral é a Lei n. 9.605 (Lei de
Crimes Ambientais), de 12 de fevereiro de 1998, incluindo a preservação da fauna, flora, dos
recursos naturais e do patrimônio cultural. Essa lei dispõe de penas mais específicas,
abrangendo infrações tanto para pessoas físicas quanto para jurídicas.
Assim, falando especificamente da mineração e como essa atividade no Brasil está
concentrada principalmente na região sudeste (até porque foi nessa região onde aconteceu o
desastre aqui discutido), existem alguns órgãos estaduais e federais que fiscalizam esse tipo de
atuação. Acima de todos está o MMA (Ministério do Meio Ambiente); abaixo dele está o Ibama
(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), responsável, em
nível federal, pelo licenciamento e fiscalização ambiental e que, dentro dele, contém o CECAV
(Centro de Estudos de Cavernas); por ordem vem o MME (Ministério de Minas e Energia),
responsável pelas políticas em torno dos setores mineral, elétrico e petróleo/gás que subdivide-
se em outros três órgãos de controle da prática mineradora: SMM/MME (Secretaria de Minas
e Metalurgia), DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) e CPRM (Serviço
Geológico do Brasil); ANA (Agência Nacional das Águas); e por fim o CNRH (Conselho
Nacional de Recursos Hídricos).
Dentre os principais problemas ambientais derivados de atividades mineradoras estão a
poluição da água, do ar, da qualidade do terreno e sonora. No caso específico da extração de
ferro, atividade exercida pela Samarco em Mariana-MG, o principal problema é a poluição das
águas superficiais e a idade das barragens de contenção, considerada um fator de risco, que
podem e geralmente ficam danificadas principalmente pela falta de manutenção apropriada.
Medidas relativamente simples poderiam ser aplicadas para evitar tragédias, já que, geralmente,
27
a atividade mineradora acontece em grandes lugares, com cidades próximas, onde os
trabalhadores dessas empresas residem.
As dificuldades na fiscalização das empresas responsáveis pela atividade mineradora,
assim como os conflitos entre as instâncias da legislação ambiental, resultam no aumento da
burocracia e do risco na exploração mineral. Ou seja, “de uma maneira geral, as empresas
priorizam o mercado, em detrimento da segurança” (SIQUEIRA, 2016, p. 32).
Um outro coeficiente a ser adicionado à equação entre política e legislação era o
momento da mineração no Brasil no final de 2015. Atravessada pelo início da crise econômica
que ainda assola o país, o setor mineral também sofria dos impactos econômicos que teve como
principal locomotiva o freio do crescimento econômico chinês, resultando no fim do ciclo da
alta das commodities. O reflexo disso foi um crescimento de modestos 6% no setor em 2015,
que já tinha fechado 2014 com uma também pequena ascensão em 8%.
Para nível de comparação, no início do século (2000), o setor mineral era responsável
por 0,59% do PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil e, segundo dados do IBRAM (Instituto
Brasileiro de Mineração), entre 2001 e 2011 teve uma elevação de 550%, aumentando de US$
7 bilhões para US$ 50 bilhões. Em 2013 foi registrado uma participação do setor no PIB de 5%.
Com a redução da demanda nos mercados internacionais, o valor do volume de
produção - cerca de 400 milhões de toneladas anuais - caiu 20%, passando de R$
99,4 bilhões apurados em 2014 para R$ 78,7 bilhões, segundo dados do relatório
anual do Departamento Nacional de Produção Mineral do Ministério de Minas e
Energia. O minério é um dos principais produtos de exportação da balança comercial
brasileira (SIQUEIRA, 2017, p. 28).
O gráfico em seguida mostra a comparação de produção entre os segundos semestres
dos anos de 2014 e 2015. No ano do desastre, a produção mineral demonstrava uma oscilação
e variou de 9,1% em julho para 5,9% em agosto. Teve uma leve recuperação de 7,1% em
setembro, subiu para 7,7% em outubro e em novembro, mês do rompimento da barragem de
fundão, a produção caiu para 5,7% e terminou o ano, em dezembro, em 0,04%, queda
vertiginosa principalmente em decorrência da paralisação das atividades da Samarco. Isso
demonstra a pujança da empresa para o setor mineral, assim como o desastre também tem a sua
perspectiva econômica.
28
Figura 2 – Variação do Índice de Produção Mineral (IPM) no 2º/2015.
Base de comparação: mesmo mês do ano anterior
Fonte: DNPM/DIPLAM
Para os analistas das principais consultorias e bancos internacionais, essa retração ainda
se arrastará até 2020. O rompimento da barragem não foi o único entrave para o crescimento
econômico do setor, mas também o excesso de otimismo do empresariado também levou ao
baixo valor do minério de ferro, já que as mineradoras pediram empréstimos demasiados e
superestimaram o crescimento da demanda. Todas estas variáveis geraram uma queda no valor
do minério de ferro – usado para fabricar aço – atingindo níveis abaixo de R$ 40,00 após o
rompimento da barragem, valor mais baixo desde maio de 2009.
Figura 3 – Índice de preço de minério de ferro a vista
Fonte: Vale S.A.
29
Personagem principal do maior desastre ambiental brasileiro, a Samarco aparecia como
uma das líderes de receita e lucro líquido do setor de mineração e metalurgia brasileiro até 2014,
conforme o quadro abaixo.
Figura 4 – As maiores empresas do setor de mineração
Fonte: Valor econômico – ranking das 1000 maiores empresas
Mas o hostil cenário do mercado das commodities, aliado ao desastre da Samarco, em
2015, transformaram essa realidade. A Vale, a segunda maior mineradora do mundo, pela
primeira vez em sua história registrou o pior prejuízo de uma empresa brasileira, tendo um
déficit de R$ 44,2 bilhões. Já a Samarco havia investido R$ 6 bilhões em suas áreas de
exploração e registrou lucro de R$ 2,8 bilhões, em 2014. No mesmo ano havia figurado como
a 12ª maior exportadora do país e eleita pela revista Exame a melhor mineradora brasileira pela
quinta vez. Mas, em 2015, colheu um prejuízo de R$ 5,8 bilhões, afetada pelas determinações
jurídicas, na casa de R$ 9,8 bilhões para a reparação de danos, pagamento de multas e
exigências governamentais pós rompimento da barragem de Fundão.
Diante de tal cenário econômico, as empresas mineradoras do Brasil vinham num
processo de redução de gastos e do quadro de funcionários. Foram fechadas 1,5 mil vagas3 com
carteira assinada apenas no primeiro trimestre de 2015.
A redução de salários foi outro reflexo da crise, apresentando uma queda de 20,1% em
2015 e, consequentemente, o aumento de funcionários terceirizados. Somente a Samarco tinha
em seus quadros, em 2014, 3.117 trabalhadores celetistas (Consolidação das Leis do Trabalho
- CLT) e 3.517 terceirizados. O desastre ajudou a aumentar esse quadro, já que em novembro
de 2015, mês do acontecimento, a companhia colocou em prática um programa para a demissão
voluntária dos funcionários, programa que visava a redução em 40% da sua força de produção.
3 Dados obtidos através do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), fornecido pelo
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
30
1.3 Samarco, Vale e BHP-Billiton: poder e negligenciamento
A Samarco Mineração S.A é uma joint venture controlada pela brasileira Vale S.A e a
australiana BHP Billiton Brasil Ltda., “as duas maiores mineradoras do mundo” segundo
Campos et al. (2016, p. 73). A empresa, criada em 1977, é responsável pela extração de minério
de ferro no complexo de Germano, em Mariana, além de administrar quatro usinas de
pelotização no Espírito Santo, que exporta pelotas de minério de ferro para o exterior. Segundo
a lei, empresas que operam ou exercem atividades com riscos conhecidos, como a mineração
por exemplo, assumem o fardo por eventuais acidentes. Mas nem precisaria recorrer a lei para
constatar o descuido e irresponsabilidade da empresa nesse (des) caso.
Fundada em 1942, a Vale S.A controla 50% da Samarco. Em 2007, retirou as palavras
Rio Doce do seu nome na tentativa, segundo seus executivos, de facilitar a pronúncia da marca
pelo mundo afora. A Vale é líder mundial na produção e exportação de minério e pelotas de
ferro, também figurando entre as principais produtoras de outros minerais, tais como bauxita,
potássio, alumina, potássio, caulim, ferroligas, manganês, níquel e concentrado de cobre. A
empresa tem 47% da sua divisão acionária nas mãos de investidores estrangeiros; 12% são de
investidores brasileiros; 4,3% pertence ao governo federal na figura do BNDESPar. Em ações
vinculadas ao Acordo de Acionistas da Vale, válido até 2020, a divisão conta com 10% com a
Litel4; 4,2% para a Bradespar; 3,6% são da Mistsui & Co5; e a BNDESPar também possui 2,3%
desse tipo de ação. Por fim, existem as ações dentro do lock-up period de 6 meses, que estão
divididas em 11,3% para a Litel/Litela; 2,3% para a Bradespar; a Mistsui & Co possui 1,9%; e
novamente a figura da BNDESPar com 1,2%. A obviedade dos números indica que a maior
parte das ações da Vale pertence ao capital estrangeiro.
A outra metade da Samarci pertence à BHP-Billiton, uma fusão ocorrida em 2001 entre
a australiana Broken Hill Proprietary Company com a inglesa (radicada na África do Sul)
Billiton. A empresa anglo-australiana atua, além do Brasil, no Chile, Colômbia, Peru, na
América do Sul, além de Canadá, Estados Unidos, Reino Unido, Argélia, Paquistão, Papua-
Nova Guiné e Trinidad & Tobago. Tem como principais produtos o minério de ferro, diamante,
carvão mineral, petróleo, cobre, bauxita, urânio e níquel. Segundo notícias veiculadas na
4 A Litel conta no seu quadro acionário com a Previ (fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil),
Fundação Petros, a Fundação dos Economiários Federais (Funcef), a Fundação Cesp e fundos de investimentos
em ações (FIAs). 5 Parte de um conglomerado japonês, a Mitsui & Co Ltda. é uma filial brasileira controlada pela matriz japonesa
Mitsui & Co Ltd.
31
imprensa, a Vale negocia a saída da empresa anglo-australiana do quadro societário da
Samarco. A possibilidade é que a mineradora brasileira compre a participação da BHP-Billiton.
Essa seria uma alternativa para a Samarco voltar a operar logo no complexo de Germano, já
que com apenas um proprietário, o trabalho de reparação aos atingidos pode ser acelerado. As
informações ainda não são concretas.
A capacidade de produção da Samarco, antes do rompimento da barragem de Fundão,
era de 30,5 milhões de toneladas de ferro por ano. As pelotas de ferro eram o principal produto
da companhia, vendidas a empresas de Siderurgia do mundo todo. Além de controlar o
complexo de Germano, em Mariana, a empresa também tem outras unidades espalhadas pelo
mundo, tais como: unidade de Ubu, em Anchieta, no estado do Espírito Santo; escritórios de
venda em Belo Horizonte/MG, Vitória/ES, Amsterdã (Holanda) e Hong Kong (China). Assim,
a interligação entre o complexo de Germano e a unidade de Ubu se dá dessa forma:
As unidades de Germano (MG) e de Ubu (ES) são interligadas por três canais com
400 quilômetros, aproximadamente. Dessa forma é transportado o minério extraído
em Mariana para o estado vizinho. No Espírito Santo, quando o material chega, é
direcionado para as quatro usinas de pelotização, que transformam o material em
pelotas. Depois desse processo, a produção é direcionada para um terminal marítimo
próprio, que fica na região de Ubu. Ao todo, a Samarco possui 3,5 mil fornecedores
(SANTOS, 2017, p. 64)
Além da operação extrativista, a Samarco também atua no segmento hidrelétrico. São
duas usinas que produzem 14,5% do consumo anual de energia usado pela corporação. Uma
fica na cidade de Muniz Freire, no Espírito Santo e a outra na cidade de Nova Era, em Minas
Gerais, oriunda da participação do consórcio Guilman-Amorin.
32
Figura 5 – Caminho do minério
Fonte: Site da Samarco
Apesar de tudo o que aconteceu, o que mais impressiona é que a Samarco ainda conta
com parte expressiva do apoio da população e das três instâncias do governo (federal, estadual
e municipal) para continuar a sua atividade de exploração de minério de ferro na região de
Mariana. Duarte Júnior, o prefeito da cidade, afirma que é a favor da mineração e que não apoia
a total suspensão das atividades da Samarco. Segundo Santos (2017, p. 63), a justificativa do
prefeito tem origem econômica. “Sem esconder o motivo de sua apreensão, o prefeito confirma
que 89% da arrecadação da cidade vem da mineração". Ele não esconde a sua preocupação com
a suspensão da maior atividade econômica do município, já que não houve investimentos em
fontes alternativas de arrecadação. O prefeito tentou intervir junto ao Governo Federal duas
vezes na tentativa de retomar as atividades da empresa. Na primeira delas, em maio de 2016,
recorreu ao ministro do meio ambiente, Sarney Filho, que recusou o pedido, alegando que
“ainda não havia convicção de que a tragédia tinha sido encerrada, como os fatos demonstraram.
Um ano depois, a lama continuou” (SANTOS, 2017, p. 63). Na segunda tentativa, recorreu ao
presidente da república, Michel Temer (MDB), em 2 de junho de 2016, para que usasse de força
política na tentativa de mobilizar a retomada das atividades da Samarco na região. A
justificativa é que a arrecadação caiu drasticamente na cidade.
Muito ainda tem sido noticiado desde o rompimento da barragem de contenção de
rejeitos Fundão. A principal denúncia é que a Samarco tinha em mãos, desde 2013, um
documento organizado por professores da UFMG, portanto dois anos antes do desastre, que
33
previa a ruptura, fato ignorado pelos executivos da empresa que continuaram a explorar minério
de ferro na região e também pelas autoridades competentes. O documento, realizado pelo
Instituto Prístino e assinado pelos técnicos Tereza Cristina Souza Sposito, Hebert Lopes
Oliveira, Felipe Fonseca do Carmo e Luciana H. Yoshino Kamino, analisou diversos aspectos
técnicos da barragem e colocou-os sob o estado de alerta. Porém, o laudo técnico foi ignorado
também pelas forças públicas, já que o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais
(COPAM) licenciou a obra, transformando os riscos, advertidos no documento, em
condicionantes a serem cumpridas. Já o Ministério Público do estado de Minas Gerais alega
que o problema tem origens mais antigas. Na solicitação da empresa para a construção da
barragem, em 2007, foram entregues apenas os dados básicos, ou seja, faltou um projeto
executivo com mais detalhes técnicos. Outra constatação é de que o poder público foi tão
omisso quanto a empresa se mostra no aspecto apontado pelo promotor Carlos Eduardo Ferreira
Pinto, ao evidenciar que a Fundação Estadual do Meio Ambiente aceitou o projeto dessa forma,
sem perguntas e exigências mais profundas. Santos corrobora:
No mesmo ano de 2007, a Samarco recebeu autorização para realizar obras em um
tempo curto de três meses. Já Maurício Campos Júnior, advogado da companhia,
declarou que “talvez não tenha sido entregue o projeto executivo” (SANTOS, 2017,
p.66).
Outra denotação de descaso do setor público e privado é que, no mesmo ano, em 2007,
havia uma preocupação com a água que escorria de rejeitos oriunda de uma pilha da Vale, perto
da área da barragem de Fundão. O receio era que esse escorrimento surtisse efeitos na barragem.
O MPE-MG não encontrou um suposto projeto técnico que teria sido elaborado na tentativa de
sanar o problema. Essa pilha de rejeito se tornou um problema em 2013. A empresa VogBR
Recursos Hídricos e Geoctecnia Ltda. elaborou um relatório técnico para a Samarco, mostrando
que a pressão da água estava sendo influenciada pelos rejeitos perto da barragem de Fundão,
apontando para que fosse feita uma drenagem no local. A voz da consultoria de engenharia foi
silenciada.
Um ano depois, em setembro de 2014, alertas sobre trincas na estrutura da barragem
foram feitos à Samarco. O engenheiro consultor responsável pelas recomendações técnicas,
Joaquim Pimenta de Ávila, também teve sua voz silenciada.
Em junho de 2016, após o desastre, o óbvio veio à tona. Autoridades vieram a público
alegar que a mineradora tinha consciência dos problemas com a barragem, mas que mesmo
assim assumiu os riscos da continuidade da extração mineral. Documentos que comprovam que
34
a Samarco conhecia os problemas da barragem caíram nas mãos do delegado da Polícia Federal,
Roger Lima de Moura. Assim, a elucidação sobre a teoria do risco segundo Germana Parente
Neiva Belchior, doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Diego de
Alencar Salazar Primo, advogado e mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará,
prevê:
Ante tal situação, surge a teoria do risco, segundo a qual aquele que desenvolve uma
atividade que ofereça riscos a terceiros deve arcar com os prejuízos decorrentes da
sua concretização, reparando os danos causados, mesmo que não tenha agido com
culpa. Surgia, então, a responsabilidade civil objetiva, restrita a situações
específicas, dentre elas, desde o século XX, os danos ambientais (BELCHIOR;
PRIMO, 2016, p. 26)
A Samarco também não cumpriu algumas medidas emergenciais, destacadas pelo
Ibama, na tentativa de reparação de danos socioambientais. Das 11 medidas previstas pelo
instituto logo após o rompimento de Fundão, apenas quatro foram cumpridas pela mineradora.
Em nota, o Ministério do Meio Ambiente se pronunciou:
O Comitê Interfederativo (CIF), formado por representantes da União, dos Estados
de Minas, do Espírito Santo e dos municípios afetados, determinou, na última terça-
feira (7), o prazo de dez dias para que a mineradora, controlada pela Vale e pela BHP
Billiton, apresente uma série de medidas para a contenção dos rejeitos remanescentes
até o início do período chuvoso, previsto para meados de outubro, entre outras ações.
Em vistorias realizadas em abril, o Ibama havia constatado que o ritmo de trabalho
na região está muito aquém do necessário para que o quadro seja revertido no prazo
previsto. A situação é preocupante na Usina Hidrelétrica Risoleta Neves/Candonga,
que fica a 110 km de Fundão, cujo reservatório reteve grande parte dos rejeitos da
Samarco. Cerca de 10 milhões de metros cúbicos permanecem depositados no local,
pressionando a estrutura da barragem. A Samarco foi notificada para retirar o
material com urgência e garantir a segurança da barragem (GOVERNO DO
BRASIL, 2016).
Entre os descasos de ordem privada da Samarco e, consequentemente, as suas
acionistas, também escondem-se as negligências de fiscalização pública, dos órgãos federais,
estaduais e municipais. A questão foge da alçada legislativa, já que o arcabouço regulatório da
atividade da mineração no Brasil, formado pelo Código de Mineração Brasileiro (1967), pela
Constituição Federal (1988) e pela Constituição do Estado do Pará, contempla de maneira
pertinente todos os aspectos da atividade mineradora, tais como humanos, econômicos e
relacionados à proteção ambiental. Porém, a poderosa legislação não pode, por si só, evitar os
desastres já que a triste realidade brasileira sugere que leis só são cumpridas quando são
coercitivas e, ao mesmo tempo, são coercitivas quando a fiscalização é efetiva. Por vezes, as
vistorias, os controles e estado de vigilância foram negligenciados pelo poder público, assim
como nos informa Pedro Peduzzi (2016), em reportagem da Agência Brasil:
35
De acordo com a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), caso
os alertas feitos pelos peritos – em especial os relativos à falta de fiscalização –
tivessem sido ouvidos pelas autoridades, a tragédia ocorrida em Mariana poderia ter
sido evitada, uma vez que é o poder público o responsável pela fiscalização destas
barragens (AGÊNCIA BRASIL, 2016).
Segundo reportagem do jornal Valor Econômico em 29/07/2016, o governo federal não
tem noção do que acontece com as centenas de barragens espalhadas pelo país. Uma auditoria
do TCU (Tribunal de Contas da União) revelou dados alarmantes. 72% das barragens de rejeito
de mineração da categoria A - alto risco de ruptura e potencial de causar grandes danos
humanos, econômicos e ambientais em caso de acidente - não foram fiscalizadas pelo poder
público, sendo que apenas 6% do montante total de fiscalizações, entre os anos de 2012 e 2015,
foram feitas em barragens dessa categoria (Tribunal de Contas da União, 2016). O órgão
responsável pelas vistoria é o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral). No
mesmo período, apenas 35% das barragens dessa natureza foram fiscalizadas pelo DNPM.
Somadas às com o dano potencial associado (DPA), o resultado é que apenas 28% das estruturas
enquadradas nas duas situações foram vistoriadas. Outro dado preocupante é que não houve
fiscalização, nos mesmos três anos analisados pelo documento, nas superintendências de
Amapá, Amazonas, Maranhão, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia e Sergipe. Somente no
Amazonas, das treze barragens cadastradas, dez estão adequadas, simultaneamente, nas duas
categorias (A e DPA). As razões pela falta de fiscalização são múltiplas, mas a principal colhida
pelas diligências do TCU é que o DNPM sofre de um esvaziamento e que cortes de verbas e
redução de pessoal são constantes. Assim, tanto a Samarco quanto os órgãos públicos
descumpriram compromissos básicos com a população do subdistrito de Bento Rodrigues. A
falta de seriedade estatal em diversas áreas do país é uma realidade preocupante e ameaçadora
do futuro.
1.4 O desastre ambiental
A tarefa de quantificar os impactos ambientais de tamanhão desastre não é algo fácil.
Mesmo passados mais de dois anos do acontecimento, as decorrências e as análises finais sobre
qual é o tamanho do desastre tecnológico que atingiu Bento Rodrigues, a cidade de Mariana, a
bacia do Rio Doce e seus afluentes, entre outras questões, estão longe de serem finalizadas.
As barragens de Santarém, Germano e Fundão formavam o Complexo Minerário de
Germano. Em 2008, a barragem de Fundão foi ativada e, conforme vimos, sua segurança foi
questionada em vários pontos e em várias ocasiões.
36
Às 15 horas do dia 05/11/2015, um tsunami de lama avançou sobre o subdistrito de
Bento Rodrigues. O primeiro impacto da enxurrada foi a barragem de Santarém e o córrego
desse subdistrito, acumulando a lama das duas barragens. Na sequência, foram atingidos os
Rios Gualaxo do Norte e Carmo, este que fica a 55 quilômetros do primeiro. Mais 22
quilômetros até a lama encontrar o Rio Doce. Navegando no curso natural da Bacia
Hidrográfica do Rio Doce, a lama tóxica foi carregada até sua foz, na cidade de Linhares/ES
chegando até o litoral capixaba, transformando o tom esmeralda do Oceano Atlântico em
marrom. O Rio Doce, assim como a sua Bacia Hidrográfica possuem uma importância relevante
para Minas Gerais, assim como país. Segundo Espindola et al. (2016), ela possui as seguintes
características:
A Bacia Hidrográfica do Rio Doce, com uma área de drenagem de 86.715 Km2, é
parte da Região Hidrográfica do Atlântico Sudeste 24. Desse total 86% encontram-
se no estado de Minas Gerais e 14% no Espírito Santo. Com uma população residente
de aproximadamente 3,6 milhões de habitantes, possui 228 municípios, total ou
parcialmente inseridos na área da drenagem da bacia, sendo que 202 estão em Minas
e 26 no Espírito Santo (ESPINDOLA et al., 2016, p. 83).
No momento do rompimento, 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de
ferro foram despejados morro abaixo que, segundo o Ibama, é um “resíduo classificado como
não perigoso e não inerte para ferro e manganês, conforme a norma brasileira de Resíduos
Sólidos - Classificação - ABNT NBR 10004” (IBAMA, 2015, p. 3). Desses, estima-se que 32
milhões de metros cúbicos tiveram como destino o meio ambiente. Um ano depois, ainda
sobraram 18 milhões, que continuaram a ser carregados rumo ao litoral do Espírito Santo
através do Rio Doce. O nível atual ainda é bastante preocupante.
No total foram 663,2 quilômetros percorridos pelos rejeitos de minério de ferro,
contaminando recursos hídricos de dois estados e passando por 40 municípios. O rastro de
destruição impactou, além da morte de 19 vidas humanas, vários hectares de matas nativas, a
morte de toneladas de peixes e de diversos organismos aquáticos e terrestres, já que a
transformação radical do ecossistema gerou consequências quase que instantâneas na região. É
impossível mensurar os danos causados não apenas para a região, mas também para o país.
Um laudo técnico preliminar publicado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) conjuntamente como o DIPRO (Diretoria de
Proteção Ambiental) e o CGEMA (Coordenação Geral de Emergências Ambientais), em
novembro de 2015, procurou apresentar dados preliminares sobre os impactos ambientais. A
37
apuração serviu como base para subsidiar a Ação Civil Pública e deixava claro a
responsabilidade da Samarco pelos danos ao meio ambiente.
O documento apontava impactos agudos de contexto regional (entendidos como a
destruição direta de ecossistemas), prejuízo à fauna e flora, assim como danos socioeconômicos
que influenciaram o equilíbrio da Bacia Hidrográfica do Rio Doce "com desestruturação [sic]
da resiliência do sistema" (IBAMA, 2015, p. 2).
Os primeiros apontamentos do laudo definem a intensidade do desastre. Para o
Glossário da Defesa Civil Nacional, desastre significa:
“[...] resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um
ecossistema, causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes
prejuízos econômicos e sociais. A intensidade de um desastre depende da interação
entre a magnitude do evento e o grau de vulnerabilidade do sistema receptor afetado”
(CASTRO, 1998 apud TOMINAGA; SANTORO; AMARAL, 2009, p. 14)
Os desastres são classificados de acordo com a intensidade, evolução e origem. São
quatro classificações a serem atribuídas a um desastre enquanto à intensidade: acidentes;
desastres de médio porte; desastres de grande porte; e desastres de muito grande porte
(MINISTÉRIO DA INGRAÇÃO NACIONAL, 2007). O rompimento da barragem de Fundão
foi classificado como desastre de muito grande porte e a conceituação sobre esse último nível
de classificação indica que: “os desastres de muito grande porte, para garantir uma resposta
eficiente e cabal recuperação, exigem intervenção coordenada dos três níveis do Sistema
Nacional de Defesa Civil – SINDEC – e, até mesmo, de ajuda externa” (MINISTÉRIO DA
INTEGRAÇÃO NACIONAL, 2007, p. 39-40) . O laudo do Ibama aponta:
Nessas condições, esses desastres não são superáveis e suportáveis pelas
comunidades, mesmo quando bem informadas, preparadas, participativas e
facilmente mobilizáveis, a menos que recebam ajuda de fora da área afetada, como
foi o caso. Nessas condições, o restabelecimento da situação de normalidade depende
da mobilização e da ação coordenada dos três níveis de governo (municipal, estadual
e federal) e em alguns casos, até de ajuda internacional (IBAMA, 2015, p. 3)
Quanto à evolução, o evento é classificado como súbito, isto é, “caracteriza-se pela
subtaneidade, pela velocidade com que o processo evolui e pela violência dos eventos adversos
causadores dos mesmos” (IBAMA, 2015, p. 3)
Para finalizar a classificação do desastre ambiental, em relação à origem, os critérios
disponíveis pela Política Nacional de Defesa Civil, documento elaborado pela Secretaria
Nacional de Defesa Civil, que por sua vez está atrelada ao Ministério da Integração Nacional
38
são: naturais, humanos ou antropogênicos e mistos. Nesse sentido não há dúvidas de que, se foi
provocado pelas ações e/ou houve omissão humana, o evento em questão classifica-se pela
segunda opção, como um desastre de origem humana ou antropogênica.
O Ibama acompanhou a evolução do desastre in loco, desde o dia 6/11, um dia após o
rompimento da barragem. Foram comprovados, preliminarmente:
[...] mortes de trabalhadores da empresa e moradores das comunidades afetadas,
sendo que algumas ainda restam desaparecidas; desalojamento de populações;
devastação de localidades e a consequente desagregação dos vínculos sociais das
comunidades; destruição de estruturas públicas e privadas (edificações, pontes, ruas
etc.); destruição de áreas agrícolas e pastos, com perdas de receitas econômicas;
interrupção da geração de energia elétrica pelas hidrelétricas atingidas (Candonga,
Aimorés e Mascarenhas); destruição de áreas de preservação permanente e
vegetação nativa de Mata Atlântica; mortandade de biodiversidade aquática e fauna
terrestre; assoreamento de cursos d´água; interrupção do abastecimento de água;
interrupção da pesca por tempo indeterminado; interrupção do turismo; perda e
fragmentação de habitats; restrição ou enfraquecimento dos serviços ambientais dos
ecossistemas; alteração dos padrões de qualidade da água doce, salobra e salgada;
sensação de perigo e desamparo na população (IBAMA, 2015, p. 4-5).
A turbidez da água do Rio Doce foi observada por toda a sua extensão, nos estados de
Minas Gerais e Espírito Santo, influenciada pela onda de lama de rejeitos. A bacia hidrográfica
do Rio Doce está localizada em 98% da sua área dentro do Bioma brasileiro denominado Mata
Atlântica e os outros 2% pertencentes ao Bioma Cerrado. Outro impacto significante dessa
mesma lama foram as áreas de preservação permanente (APP). São as vegetações ciliares,
faixas marginais florestais ao longo de qualquer curso d’água, em zonas rurais ou urbanas. “São
partes intocáveis da propriedade, onde não é permitida a exploração econômica direta”
(IBAMA, 2015, p.7). A importância dessa “proteção” ecológica é inestimável, que acarreta
desde a manutenção da biodiversidade local quanto para as comunidades que interagem com
ela de forma socioeconômica.
As vegetações nessas áreas atenuam a erosão do solo, regularizam os fluxos hídricos
e impedem o processo de assoreamento dos cursos da água, dentre outras funções
vitais. As APPs e as áreas de reserva legal têm um papel fundamental no ciclo da
bacia hidrológica como um todo (IBAMA, 2015, p.7).
Existem leis que visam proteger essas partes intocáveis. De acordo com o art. 38 da Lei
9.605/98, é crime ambiental destruir ou danificar floresta considerada de preservação
permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la como infringências das normas de proteção.
Figura 5 – Destruição de mata ciliar ocasionado pelo desastre da Samarco em áreas de
preservação permanente ao longo do Rio Doce.
39
Fonte: Ibama
Se faz necessário compreender o conteúdo da lama liberada pelas barragens de Fundão
e Santarém para se ter uma ideia melhor dos impactos ambientais do desastre. A Samarco
garante que a composição da lama é formada por rejeitos de minério de ferro e manganês,
misturados basicamente com água e areia. Afirma também que o material não é prejudicial ao
meio ambiente ou à saúde, confirmando os dados preliminares levantados pelo Ibama. Porém,
o Levantamento Ambiental Expedito (LAE) colhido em Regência (vila pertencente ao
município de Linhares/ES), documento elaborado pela Marinha do Brasil através do Navio de
Pesquisa Hidroceanográfico "Vital de Oliveira", datado do dia 08/01/2016, confirmou a
presença de metais pesados na foz do Rio Doce e no Oceano Atlântico, tais como: arsênio,
manganês, chumbo e selênio, cujas presenças significam potenciais prejuízos ambientais.
Resumidamente, o que as aferições hidrológicas feitas entre 26/11 a 05/12/2015, logo após o
vazamento da lama pela foz do Rio Doce, apresentaram:
a) grande quantidade de sedimentos de cor laranja em suspensão em toda a coluna
d'água e depositando-se no fundo nas áreas próximas da foz, num raio de até 15Km
para o norte e para o sul, até a isobatimétrica de 25 metros. Ressalta-se que não foram
feitas medições nas áreas de praia, com profundidades inferiores a 10 metros, onde
pode ocorrer a presença de lama além do limite aqui especificado; b) Também existe
lama em suspensão próximo ao fundo um pouco além desse limite citado no item a;
e c) Por fim, pôde ser vista uma “lama flutuante” na superfície da água que se estende
por vários quilômetros, onde
Top Related