UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
MESTRADO EM ARTES CÊNICAS
PROCESSOS DE CRIAÇÃO CÊNICA
Julia Lüdke
CORPOS QUE VIDEODANÇAM: UM CONVITE AO LOOPING
PORTO ALEGRE
2015
Julia Lüdke
Corpos que videodançam: um convite ao looping
Memorial reflexivo-crítico de criação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.
Orientador: Prof.° Dr. Walter Lima Torres Neto
Coorientadora: Prof.ª Dra. Suzane Weber da Silva
PORTO ALEGRE
2015
Julia Lüdke
Corpos que videodançam: um convite ao looping
Memorial reflexivo-crítico de criação de Mestrado aprovado como requisito para a obtenção do título de mestre em Artes Cênicas, pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, formado pela seguinte banca examinadora:
Orientador: Prof.º Dr. Walter Lima Torres Neto
Coorientadora: Prof.ª Dra. Suzane Weber da Silva
Banca: Prof.ª Dra. Mônica Dantas PPGAC/ UFRGS Prof.ª Dra. Luciana Paludo ESEFID/ UFRGS Prof.º Dr. Airton Ricardo Tomazzoni dos Santos Especialização Dança/ PUCRS
AGRADECIMENTOS
À minha linda família, por me manter em movimento.
Ao Fernando Faleiro, pelo amor e bom humor.
Aos amigos, Douglas Jung, Fernanda Boff, Lícia Arosteguy e Arion Engers
por doar, de forma dedicada e generosa, sua arte ao trabalho.
Aos orientadores, Walter Torres Lima Neto e Suzi Weber,
pelas contribuições valorosas.
Ao Airton Tomazzoni, à Mônica Dantas e Luciana Paludo,
pela prontidão e disponibilidade em contribuir para o trabalho.
À Flávia Valle, por toda atenção e carinho, sempre presente.
Ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas,
pela oportunidade de crescimento.
Aos amigos mestrandos, pela parceria na caminhada.
Ao Coletivo Sala 209, Usina das Artes, Casa Cultural Tony Petzhold,
Juliana Werner e Centro Administrativo Fernando Ferrari
por acolher o processo de pesquisa em seu espaço.
“Dessas palavras não nascem explicações e
ainda menos chaves definitivas ou receitas
que dariam diretamente acesso à obra, mas
antes vozes, sussurros de corpos, a
elaboração de um texto vivo e múltiplo [...].”
(Laurence Louppe)
RESUMO
O presente memorial, "Corpos que videodançam: um convite ao looping" tem como objetivo central observar, compreender e analisar aspectos do conhecimento incorporado na relação construída entre os corpos dos bailarinos e a câmera, frente à experimentação, à composição e à edição do movimento na criação coreográfica da videodança Experimento Looping. O recorte proposto para esta criação, análise e reflexão poética é a relação entre o que se denominou “corpos videodançantes”, ou seja, os corpos dos bailarinos envolvidos na investigação, Fernanda Bertoncello Boff, Douglas Jung e esta pesquisadora, tanto como observadora, quanto como corpo videodançante; e a câmera GoPro. A proposta principal do processo criativo era transformar as ações de gravar e dançar em uma nova ação: videodançar. E se a câmera dançasse? E se os bailarinos gravassem? Para tanto, foi construída uma estrutura de metal, semelhante ao volante de um carro, para que os bailarinos pudessem manusear e se relacionar com a câmera durante a coreografia, elaborando uma trajetória e uma dinâmica coreográfica para essa câmera. Destes experimentos emergiram procedimentos, técnicas e relações de poder, que foram observadas e registradas no ateliê, através dos seguintes dados etnográficos: um diário de processo, entrevistas semiestruturadas com os bailarinos e vídeos gravados pela GoPro. Neste trabalho escrito, os dados são analisados por um viés da poética, ou seja, levam-se em consideração as escolhas, os procedimentos, as condutas e as técnicas na busca por compreender e aproximar-se do fazer criativo e os caminhos dos artistas envolvidos. Neste sentido, utilizou-se a teorização enraizada, que promove o ir e vir entre a teoria e a prática. Ao longo dos experimentos e procedimentos propostos, como as tarefas, os improvisos, a coreoedição e a endoedição, encontrou-se no movimento de “looping” uma forma de relação criativa entre os corpos dos bailarinos e à câmera em movimento e que resultaram no produto e material de análise desta pesquisa.
Palavras-chave: Corpos videodançantes; GoPro; Videodança; Coreoedição; Endoedição.
.
ABSTRACT
The present memorial, "Bodies that videodance: an invitation to looping" has the main objective of observing, understanding and analysing aspects of the embodied knowledge built in the relationship between the dancers‟ bodies and the camera, regarding the movement trial, the composition and the edition in the creation of the videodance called Looping Experiment. The frame proposed for this criation, poetic analysis and reflection is the relationship between what is called "videodancing bodies", in other words, the bodies of the dancers engaged in this research, Fernanda Bertoncello Boff, Douglas Jung and this researcher, both as an observer and as a videodancing body; and the GoPro camera. The main purpose of the creative process was to transform the actions of “record” and “dance” in a new action: videodance. What if the camera dance? What if the dancers record? Therefore, a metal structure was built, similar to a steering wheel of a car, so that the dancers could handle and relate to the camera during the choreography, developing a trajectory and a choreographic dynamic for this camera. From these experiments, procedures, techniques and power relations emerged, which have been observed and recorded in the studio through the following ethnographic data: a journal of the process, semi-structured interviews with dancers and videos recorded by the GoPro camera. In this written work, the data is analyzed through a poetic perspective, that is, it is take into account the choices, procedures, behaviors and techniques in the search to understand and approach to the creative ways of the artists involved. In this sense, we used the Grounded Theory, which promotes the coming and going between theory and practice. Over the proposed experiments and procedures, such as tasks, improvisations, the coreoedition and endoedition, it was found in the "looping" movement a form of creative relationship between the dancers‟ bodies and the moving camera, which resulted in the product and material of analysis in this research.
Key-words: Videodancing Bodies; GoPro; Videodance; Coreoedition; Endoedition.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO OU DE ONDE PARTE O OLHAR ................................................ 13
2. O PROCESSO CRIATIVO .................................................................................... 19
2.1 SEGUINDO RASTROS DE PERTENCIMENTO ................................................. 19
2.2 O RECORTE ....................................................................................................... 27
2.2.1 A videodança e o ato de videodançar ......................................................... 27
2.2.2 Os corpos que videodançam......................................................................... 30
2.2.3 Pistas para análise dos corpos videodançantes ......................................... 34
2.3 A APRESENTAÇÃO DOS CORPOS VIDEODANÇANTES ................................ 37
2.3.1 Os bailarinos colaboradores ......................................................................... 37
2.3.2 A câmera ......................................................................................................... 48
2.4 A ESTRUTURA DO PROCESSO CRIATIVO ...................................................... 51
2.4.1 O organograma do processo criativo ........................................................... 52
3. ANÁLISES E REFLEXÕES .................................................................................. 56
3.1 A RELAÇÃO COM A CÂMERA ........................................................................... 56
3.1.1 A potência de deslizar .................................................................................... 62
3.1.2 O duplo controle ............................................................................................. 68
3.1.3 Um desvio para reafirmar o caminho da criação ......................................... 70
3.2 PROCEDIMENTOS ............................................................................................. 73
3.2.1 Experimento III – Dos pés à cabeça .............................................................. 76
3.2.1.1 A tarefa .......................................................................................................... 76
3.2.1.2 O improviso ................................................................................................... 86
3.2.2 O Experimento Looping ................................................................................. 90
3.2.3 Coreografar editando, editar coreografando ............................................... 96
3.2.4 A gravação final ............................................................................................ 101
3.2.4.1 A decupagem .............................................................................................. 101
3.2.4.2 Os lugares da experiência ........................................................................... 103
3.2.4.3 A montagem ................................................................................................ 114
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 116
5. REFERÊNCIAS ................................................................................................... 116
ANEXO A – Diário de processo ............................................................................ 124
ANEXO B – O Equipamento .................................................................................. 141
ANEXO C – Roteiro da entrevista ........................................................................ 144
ANEXO D – Áudio transcrição das entrevistas ................................................... 145
ANEXO E – Arquivos videográficos e fotográficos do processo ...................... 176
ANEXO F – Termo de consentimento livre e esclarecido .................................. 177
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Página 22 Figura 1: Foto da videodança Diálogo com a Luz (2011). Crédito da foto: Arion Engers.
Página 24 Figura 2: Foto da videodança Intangível (2012). Crédito da foto: Camila Carneiro Martins.
Página 25 Figura 3: Foto da videodança S (2012). Crédito da foto: Julia Lüdke.
Página 25 Figura 4: Foto da videodança 5678 (2012). Crédito da foto: Adriano Del Duca.
Página 37 Figura 5: Frame retirado do Making of do processo (2014). Créditos: Lícia Arosteguy.
Página 39 Figura 6: Frame retirado do vídeo gravado pela GoPro, no encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).
Página 41 Figura 7: Fotografia do Espetáculo Guia Improvável para corpos mutantes (2013), no qual os dois colaboradores dividem o palco atualmente. Créditos da foto: Cristiano Prim.
Página 43 Figura 8: Organograma das técnicas, gêneros de dança, professores artistas, grupos e instituições citadas como indispensáveis para suas formações corporais como bailarinos (Fernanda Boff, Julia Lüdke e Douglas Jung) – estão em destaque e em relação o que mais contribuiu na realização desta pesquisa.
Página 45 Figura 9: Fotografia do processo criativo do Experimento Looping. Encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre, (2014). Crédito da foto: Lícia Arosteguy.
Página 47 Figura 10: Tabela de funções vivenciadas belos bailarinos na produção de videodança em outros circuitos e suas respectivas obras e datas.
Página 49 Figura 11: Foto do processo, no encontro realizado no Parque Farroupilha (2014). Crédito da foto: Lícia Arosteguy.
Página 51 Figura 12: Frame retirado do Making Of do processo (2014). Crédito: Lícia Arosteguy.
Página 53 Figura 13: Organograma das etapas, com datas e locais, do
processo criativo da videodança Experimento Looping.
Página 64 Figura 14: Foto ilustrativa da posição “Mão em gancho”. Crédito da foto: Julia Lüdke.
Página 65 Figura 15: Foto ilustrativa da posição “Com duas mãos”. Crédito da foto: Julia Lüdke.
Página 65 Figura 16: Foto ilustrativa da posição “Com uma mão na haste”. Crédito da foto: Julia Lüdke.
Página 66 Figura 17: Foto ilustrativa da posição “Com uma mão na base”. Crédito da foto: Julia Lüdke.
Página 71 Figura 18: Foto ilustrativa do colete usado para acoplar a câmera ao peito da bailarina no Experimento IV.
Página 82 Figura 19: Esquema ilustrativo da “estratégia base” utilizada no decorrer do processo.
Página 89 Figura 20: Frames retirados do vídeo gravado pela GoPro no improviso semiestruturado realizado no Experimento III, no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014).
Página 89 Figura 21: Frames retirados do vídeo gravado pela GoPro no improviso semiestruturado realizados no Experimento III, no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014).
Página 92 Figura 22: Esquema ilustrativo para demonstrar o giro realizado pela GoPro no eixo sagital, que constitui o movimento de looping.
Página 93 Figura 23: Frame retirado do vídeo explicativo do mecanismo utilizado na filmagem da coreografia You're All The World to Me, do musical Royal Wedding (1951).
Página 94 Figura 24: Frame retirado do vídeo da coreoedição gravado com a GoPro no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014), (à esquerda) em comparação com a imagem da coluna no mesmo movimento de parada de mãos (à direita), demonstrando a inversão de relação entre cabeça e cóccix.
Página 95 Figura 25: Frames retirados do vídeo da coreoedição, gravada pela câmera GoPro no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014), demonstrando as inversões no alinhamento cabeça-cóccix em relação aos loopings realizados pela câmera.
Página 98
Figura 26: Frame retirado do vídeo do Making Of, demonstrando o trabalho de endoedição realizado a partir das imagens
visualizadas no preview fornecido pelo aplicativo da GoPro instalado no celular da pesquisadora (2014). Crédito: Lícia Arosteguy.
Página 102 Figura 27: Tabela da decupagem que serviu como guia para o dia da gravação final.
Página 104 Figura 28: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro durante o improviso semiestruturado do Experimento III (2014).
Página 106 Figura 29: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).
Página 106 Figura 30: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial de Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).
Página 108 Figura 31: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial de Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).
Página 109 Figura 32: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial de Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).
Página 110 Figura 33: Foto do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), em Porto alegre.
Página 111 Figura 34: Frame retirado do vídeo gravado com a GoPro durante a gravação final, realizada no heliporto do CAFF, em Porto Alegre (2014).
Página 114 Figura 35: Esquema demonstando a organização das sequências gravadas em uma montagem, especificando o tempo de cada inserção.
Página 141 Figura 36: Primeiro modelo GoPro Hero 35mm e seus acessórios.
Página 142 Figura 37: GoPro Hero 3+ Black edition e seus acessórios.
Página 143 Figura 38: Foto do suporte metálico projetado exclusivamente para o projeto. Crédito da foto: Julia Lüdke.
13
1. INTRODUÇÃO OU DE ONDE PARTE O OLHAR
Este memorial se classifica como uma pesquisa realizada em artes, no campo
das artes cênicas, especificamente, na área da dança, pois se trata de uma
investigação que busca “a compreensão do conhecimento incorporado de um
coreógrafo ou artista” (FORTIN & GOSSELIN, 2014, p. 1). Neste caso, buscou-se
compreender o conhecimento incorporado pelos bailarinos colaboradores, Fernanda
Boff e Douglas Jung, enquanto “corpos videodançantes” e por mim, como será
explicitado adiante, que também participei como corpo videodançante, no processo
de criação da videodança Experimento Looping. Sendo uma pesquisa acadêmica
em artes, compreende-se “[...] uma dupla produção: uma obra de arte e um
embasamento em texto” (Id. Ibid., p. 14). Deste modo, a prática artística foi
estruturada com base no pressuposto de: a fusão entre as ações de dançar e
gravar, da qual emerge uma possibilidade criativa para o ato de videodançar.
Partindo desta ideia, os corpos videodançantes são constituídos pelos corpos dos
bailarinos e à câmera. O embasamento textual, por sua vez, preocupou-se em
compreender como se desenvolveu esta relação entre os corpos videodançantes,
através da análise poética da criação do movimento.
Nesse sentido, os bailarinos colaboradores são considerados coautores deste
processo criativo, pois todo trabalho corporal e coreográfico, mesmo que dirigido e
concebido por mim, veio da entrega e disponibilidade destes dois corpos carregados
de subjetividade e singularidade. Deste modo, esta pesquisa não se alicerça na
relação com seus integrantes através da ideia de que o coreógrafo ou diretor é
detentor da obra e os bailarinos são seus intérpretes, e sim na concepção de uma
obra composta da multiplicidade de corpos, conforme aponta Laurence Louppe
(2012):
Uma vez mais, a noção de <<intérprete>>, enquanto mero substituto dos criadores da obra vacila, porque a criação coreográfica deixa de ser um facto único e originário de um <<autor>>, como se verifica na maior parte das obras de arte. Vários corpos circulam e reúnem-se no corpo e na sensibilidade do coreógrafo e, nesse diálogo com o corpo dos bailarinos, eles próprios cruzados por múltiplas histórias pessoais, os corpos multiplicam-se (LOUPPE, 2012, p. 81).
14
Assim sendo, fica evidente a necessidade da investigação partir não apenas
da minha vivência e observação, mas, principalmente, por tentar se aproximar ao
máximo da experiência destes dois coautores do Experimento Looping. Pois é, de
maneira efetiva, da relação entre esses bailarinos, comigo mesma e da câmera que
surge a videodança e se constitui a prática desta pesquisa de mestrado. Tal
realidade inscreve este trabalho no grupo de estudos, descrito por Fortin (2009, p.
79), que não se dedicam a realizar uma investigação típica e exclusivamente
etnográfica, pois não se detém apenas às questões de ordem cultural, mas vão,
também, necessitar reunir esses tipos de dados etnográficos. Conforme a autora, os
dados etnográficos são “dados empíricos provenientes de uma presença sobre o
campo para responder a questões que se impõe a prática” (FORTIN, 2009, p. 79),
sendo possível utilizá-los para diferentes propósitos de análise, que não,
necessariamente, para o campo da antropologia. Portanto, os tipos de dados
etnográficos que compõe a fonte primeira de análise deste trabalho são:
a) As minhas descrições e observações anotadas em um diário de processo.
Estas anotações privilegiaram informações técnicas e processuais dos
acontecimentos, bem como sensações, insights e opiniões particulares.
Todavia, as descrições e reconstruções das vivências do ateliê estão,
certamente, carregadas da minha forma de ver e entender o mundo.
b) A entrevista semiestruturada realizada com cada bailarino, separadamente,
em meio ao processo criativo. Estas entrevistas foram realizadas no espaço
da Casa Cultural Tony Petzhold1, onde os bailarinos já desenvolvem outros
trabalhos de criação. Foram gravadas em arquivo de áudio e transcritas de
acordo com as normas acadêmicas. As questões abordavam, inicialmente,
informações sobre a formação e referências específicas na área da dança e
da videodança, a fim de fornecer um perfil dos artistas e registrar pela forma
da escrita os saberes advindos da prática, que permanecem muitas vezes
anônimos. E de modo privilegiado, questões sobre a percepção e o
1 Casa Cultural Tony Seitz Petzhold é um espaço cultural que propõe a difusão e preservação do
movimento e da história da dança em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. Iniciou suas atividades a partir da ação da bailarina Tony Petzhold, que ali fundou sua Escola de Bailados Clássicos Tony Seitz Petzhold, no final da década de 1950. Ao longo dos anos, a casa foi sede de grupos de dança e teatro e abrigou trabalhos de diversos profissionais das áreas da dança, teatro, yoga, música e artes plásticas. Atualmente, oferece aulas de Educação Somática, Axys Syllabus, Contato Improvisação, Circo, Integral Bambu e etc, orientadas por profissionais da capital. Disponível em: < https://casaculturaltonypetzhold.wordpress.com/about/> Último acesso em: 06 de junho de 2015.
15
entendimento deles sobre os procedimentos, as propostas e os resultados
obtidos. Valorizando tanto informações advindas das cinestesias2, como o
entendimento racional da prática.
c) Os vídeos gravados pela câmera, durante todo o processo. As imagens
capturadas no decorrer de todos os experimentos foram armazenadas, sendo
algumas, inclusive, editadas para fins de comparação, reflexão e análise do
desenvolvimento da prática.
Ainda se podem enumerar alguns dados complementares que também
contribuíram para esta elaboração escrita sobre a prática. São eles: as fotos e o
Making of produzido por Lícia Arosteguy3, os áudios de algumas conversas com os
bailarinos e com a coorientadora Suzi Weber e vídeos externos, de registro, de
alguns experimentos.
Paralelo a esta construção, identifica-se o desejo de compreender o que se
pode conhecer de uma prática e de que forma fazê-lo. Tais questões fundamentam
a linha de processos de criação na qual esta pesquisa se insere. Nesse caso o foco
principal passa a ser o percurso até se chegar à obra, e não o produto em si. Sendo
assim, a obra é entendida como o resultado de um caminho repleto de escolhas,
vivências, questões e não algo desvinculado de seu processo. A abordagem
escolhida para tanto foi a poética. Segundo Sandra Rey (1996, p. 83), “a pesquisa
em arte vai encontrar respaldo teórico na poïética, que propõe-se como uma ciência
e filosofia da criação, levando em conta as condutas que instauram a obra”. Ou seja,
se trata de uma abordagem que procura delinear as escolhas, procedimentos e
condutas criadoras, dando a ver os caminhos trilhados por seus artistas. Laurence
Louppe (2012) contribui para esse pensamento ao posicionar sobre a perspectiva
poética em que seu próprio livro, “Poética da dança contemporânea”, foi escrito:
2 A cinestesia, ou Kinesthesia, é usada nesta pesquisa conforme a definição de Sklar (1995), revisada
por Foster (2011, p. 8): “For Sklar kinesthetic analysis entails attending to the qualitative dimensions of moviment, the kind of flow, tension, and timing of any given action as well as the way in which aany person‟s movement interacts and interrelates with objects, events, and other people.” 3 Lícia Arosteguy graduou-se em Design pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2011. Em 2013 cursou a Pós-graduação em Direção de Fotografia Cinematográfica da Escola Superior de Cinema e Audiovisual da Catalunya (ESCAC), em Terrassa/Barcelona (Espanha). Desde 2010 integra a Ânima Cia. de Dança, em Porto Alegre, dirigido por Eva Schul. Fez cursos em algumas escolas renomadas como a P.A.R.T.S (Bruxelas/Bélgica) e SEAD (Salzburg/ Áustria).
16
A abordagem será poética, o que significa que a compreensão da dança implica não somente o conhecimento das suas manifestações, mas também das suas práticas. Só compreenderemos a arte do movimento se integrarmos os seus saberes e, geralmente, se nos envolvermos nessa atividade, nesse poiein em que os processos de elaboração já se encontram repletos de toda a complexidade artística que revelam (LOUPPE, 2012, p. 30).
Louppe (2012) toca em um ponto fundamental para se entender de onde
parte o olhar desta reflexão crítica. Juntamente com a necessidade de se envolver
nesse poiein (retomando a proposta da autora), surge a questão: até que ponto um
pesquisador deve se envolver com a prática? Este é um tema delicado no campo
das pesquisas em artes e de suma importância para o estabelecimento
metodológico desta investigação. Conforme Salles (2014, p.66), “a arte vive,
portanto, um encontro de método que não implica, necessariamente, em busca
consciente”. O processo de criação do Experimento Looping está inserido em um
contexto de pesquisa acadêmica. Desse modo é de interesse dessa investigação
que os procedimentos e as escolhas envolvidas em seu desenvolvimento sejam
explicitados, para que se tornem conscientes e gerem saberes e novos
questionamentos. Entender a pesquisa em artes por esse viés faz com que não se
produzam respostas estanques a respeito do nível ou formato permitidos de
envolvimento dos pesquisadores com suas práticas e procedimentos artísticos.
Apenas evidencia a importância de que estas escolhas metodológicas sejam
conscientes, para que cada pesquisador, com suas especificidades, estejam aptos a
refletir e analisar como sua participação reverbera na pesquisa e na escrita de seu
trabalho.
Ao longo de todo prática, ocupei o papel de proponente dos experimentos,
guiando e direcionando o processo. Em alguns momentos, o fiz de maneira mais
diretiva, interferindo diretamente nas escolhas da videodança. Em outros, de forma
mais indireta e subjetiva, fornecendo apenas balizas para que os bailarinos
criassem. Apenas esses fatos já marcam a minha presença no campo pesquisado.
Somado a isto, está a minha escolha de participar, no Experimento III, como um
corpo videodançante, com o intuito de acumular dados cinestésicos e não somente
visuais. Ou seja, pelo desejo de não apenas afirmar, por exemplo, que a câmera tem
um peso e que ele interfere, transforma e pede por uma reestruturação corporal dos
bailarinos, na criação do movimento, mas sentir este peso e perceber estas
17
adaptações e incorporações no meu próprio corpo. Pois o pesquisador interessado
em observar, descrever e compreender as incorporações (como a própria palavra
deflagra) de uma prática, não o fará sem acessar as sensações do seu próprio
corpo. E dentro desta perspectiva, Louppe (2012) convida o sujeito da análise a
transitar entre “o discurso e a prática, o sentir e o fazer, a percepção e a realização”
(LOUPPE, 2012, p. 30).
No entanto, não acredito que este trabalho se trate de uma auto-etnografia,
que Fortin (2009) define como “[...] uma escrita do eu que permite o ir e vir entre as
experiências pessoais e as dimensões culturais, a fim de colocar em ressonância a
parte mais sensível de si” (FORTIN, 2009, p. 83). Pois a forma com que conduzi
minhas descrições, observações e análises não apontam somente para minha
própria prática como proponente de um processo criativo, mas, sobretudo, para a
experiência dos corpos videodançantes a partir do conjunto de regras por mim
direcionadas em cada experimento. Os relatos da minha trajetória como artista e
pesquisadora auxiliam a acompanhar de onde surgiram certas questões de pesquisa
e aproximam o leitor da subjetividade que, inegavelmente, permeia minhas
observações e interpretações para este trabalho escrito, todavia, não constituem o
centro da pesquisa. Com semelhante importância, estão expostas as vivências
prévias dos bailarinos, relatadas em entrevista.
Portanto, a partir da escolha e do acúmulo dos dados etnográficos e da
definição da poética como forma de abordá-los, que “não diz somente o que uma
obra de arte nos faz, ela ensina-nos como o faz” (LOUPPE, 2012, p.27), é o
momento de explicitar a forma com que esta pesquisa se relacionou com o estado
da arte que a circunda. Para discutir sobre as percepções adquiridas no ateliê,
houve um trânsito entre os saberes teorizados e a prática, tanto de acadêmicos
como de outros artistas. Sem, no entanto, se tornar refém de excessivas
teorizações, as quais acabam por engessar a soberania do fazer artístico. Pode-se,
com isso, afirmar, guardadas as devidas diferenças entre o campo da antropologia e
o da arte, que se utilizou uma análise por teoria enraizada, como expõe Weber
(2010), ao falar de sua própria pesquisa de doutorado:
Estes caminhos de ida e volta entre os dados empíricos e os textos teóricos fazem parte do que Payllé (1994) chama de uma análise por teorização enraizada (théorisation ancrée). Este tipo de análise propõe uma teorização embasada e construída através da comparação entre a teorização em construção e a realidade dos dados empíricos. Segundo Payllé (1994) para uma análise de teorização enraizada, o corpus é o mesmo do antropólogo:
18
notas de terreno, transcrições de entrevistas formais e informais, registros em vídeo e documentos variados (WEBER, 2010, p. 3-4).
Posto isto, este memorial crítico-reflexivo se organiza em dois grandes
capítulos. No primeiro capítulo, “O processo criativo”, estão contempladas as
informações e as descrições que constituem a base da elaboração e da organização
do processo criativo do Experimento Looping, assim como seu recorte teórico. Nele,
estão expostos os conhecimentos, termos, ferramentas e noções de estudiosos e
artistas que ajudaram a fazer este trânsito entre a teoria e a prática. Dentre os
conceitos abordados estão: a videodança, os corpos videodançantes, o
bailarino/videasta e os vetores de percepção da elaboração do movimento (peso,
fluxo, tempo e espaço) (Laban, 1978). Para tanto, utilizam-se as autoras: Santana
(2006), Spanghero (2003), Vasconcellos (2012) e Louppe (2012).
No segundo capítulo, “Análise e reflexões”, encontram-se as reflexões e as
análises poéticas do processo, a partir dos dados etnográficos coletados. Constitui o
corpo da análise a relação construída entre bailarinos e câmera, assim como os
procedimentos escolhidos, a partir dos quais se constrói o processo e a obra, ou
melhor, o que é o processo em si. Contribuem na análise dos dados empíricos os
saberes estabelecidos na primeira parte e os seguintes autores: Lepecki (2012),
Agamben (2009), Gil (2013), Salles (2014), Ostrower (1987) e Louppe (2012). Bem
como, a referência da obra de Fred Astaire, Royal Wedding (1951).
Nos anexos estão contidos os diários de processo, a história e características
da GoPro, o roteiro utilizado para as entrevistas com os participantes, a áudio
transcrição das entrevistas, os arquivos de vídeos da GoPro, bem como edições de
estudo, utilizando também os vídeos de registro gravados nos três primeiros
experimentos, o Making Of e as fotos produzidas pela Lícia Arosteguy. Todo esse
material potencializa a leitura desse trabalho escrito e pode ser acessado a qualquer
momento. Fica desse modo, a critério de cada leitor a decisão de quando o quiser
fazer.
19
2. O PROCESO CRIATIVO
2.1 SEGUINDO RASTROS DE PERTENCIMENTO
A presente questão de investigação é resultado de um conjunto de
experiências que me atravessaram durante minha trajetória como aluna, bailarina,
fotógrafa, criadora, professora, pesquisadora e agora em uma forte imersão de
pesquisa em nível de mestrado. No entanto, o caminho que me levou a conhecer a
videodança não foi direto, tão pouco foi pela via do audiovisual. Foi, sobretudo,
relacionado ao universo da dança. Minhas inquietações e motivações nesta área
estão contaminadas pelas minhas vivências enquanto um corpo dançante.
Curiosamente, por ter passado minha infância em Ji-Paraná, uma cidade do
interior de Rondônia, que nos anos 90 não possuía escolas ou professores de
dança, meu primeiro contato com esta arte foi através de fitas de vídeos (VHS) de
registros caseiros das minhas primas dançando ballet, além dos filmes como
Flashdance (1983) ou Footloose (1984), reprisados com frequência nas redes
abertas de televisão. Foi apenas em 2000, quando já tinha 13 anos, que tive minhas
primeiras aulas de ballet clássico, jazz e posteriormente a dança contemporânea.
Havia me mudado para Palmas, no Tocantins, onde existiam mais oportunidades na
área da dança. Aos 18 anos, tornei-me professora da mesma escola na qual
comecei a dançar e naquele momento decidi que buscaria uma formação
profissional aprofundada.
Ao ingressar na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em Canoas, no
Rio Grande do Sul, no curso Tecnólogo em Dança (2006) e posteriormente na
Licenciatura em Dança (2011), pude ampliar o meu horizonte não apenas para a
técnica e a execução de um vocabulário de movimentos já estabelecido, mas para a
pesquisa e a criação do movimento, por diferentes caminhos. Foi, neste momento,
que tive meu primeiro contato com a videodança. Tive a oportunidade de conhecer o
trabalho desenvolvido pelo coreógrafo Diego Mac4, através de uma disciplina
ministrada pela professora Flávia Pilla do Valle5. Nesta oportunidade, fizemos alguns
4 Diego Mac é bailarino e coreógrafo porto-alegrense. Graduado em Dança, Especialista e Mestre em
Poéticas Visuais (UFRGS). Desenvolve pesquisas poético-teóricas entre dança, imagem e novas tecnologias. 5 Atualmente, é professora do Curso de Dança da UFRGS. Na época relatada, era professora e
coordenadora do Curso Tecnólogo em Dança da ULBRA. Doutora em Educação pela UFRGS.
20
exercícios com base no processo criativo em videodança de Mac e assistimos as
suas obras Pas de Corn (2006)6 e Mexendo nas Partes (2007)7, além de Enter The
Achilles (1995) e de The Cost of Living (2004) do grupo DV8 Physical Theatre8.
Estas referências, além de me apresentarem a possibilidade de misturar vídeo e
dança, constituem influências em meu trabalho, direta ou indiretamente. Por
exemplo, um dos experimentos propostos para o processo aqui pesquisado, o
“Duplo Controle”, que será tratado mais adiante, foi criado a partir de um dos
exercícios trazidos por Diego Mac naquela ocasião.
Na sequência, o workshop de videodança oferecido pelo Festival
Internacional Dança.com, em Porto Alegre, ministrado pelo professor Marcus
Moraes9 em 2010, contribuiu para este caminho de entrelaçamento entre o vídeo e a
dança. A oficina se dividiu em dois momentos: primeiramente, assistimos a várias
produções de artistas reconhecidos em âmbito mundial na área, como Philippe
Decouflé10, e depois fizemos exercícios em grupo, buscando brincar com as
possibilidades do vídeo para a dança. Naquela fase, nossas pesquisas ainda eram
experimentais. Os equipamentos não eram apropriados. O material videográfico nem
chegou a ser editado, mas foi a primeira vez que me envolvi não só apenas em
dançar, mas em gravar também.
Mestre em Dança pela New York University e Especialista pelo Laban/Bartenieff Institute. Tem formação em dança contemporânea, moderna, ballet. Foi autora dos Referenciais Curriculares da Dança/Arte do Estado do Rio Grande do Sul. Em 2013, dois de seus livros foram selecionados pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola, PNBE do Professor 2013. Desde 2012, coordena o PIBID/Dança da UFRGS/CAPES e desenvolve pesquisa na linha dos estudos culturais. 6
Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=l573mRwt_Cw> Último acesso em: 18 de janeiro de 2014. 7 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aXOxfmpoaHc> Último acesso em: 18 de
janeiro de 2014. 8 Criado em 1986 por Lloyd Newson, a companhia DV8 vem desenvolvendo trabalhos que refletem os
interesses pessoais de pesquisa de seu criador sobre questões sociais, psicológicas e políticas. Rejeita a abstração característica da maioria dos trabalhos em dança contemporânea, realizando produções conduzidas por conceito ou por uma narrativa. A companhia produziu muitas obras de grande repercussão internacional, inclusive filmes de dança. 9 Marcus Moraes é formado em Design pela PUC-Rio e Mestre em Teatro pela Unirio. É professor da
disciplina “Dança e Multimídia” da Faculdade Angel Vianna desde 2002. Ministra cursos de videodança em diversas cidades do Brasil desde 2006 pelo Festival Dança em Foco e outros, como o Festival de Dança de Joinville. Criou a videoinstalação "Grafismos" com o coreógrafo Paulo Caldas (Caixa Cultural Rio, 2010) e dirigiu o DVD "Memória em Movimento", com Marise Reis, projeto contemplado pelo prêmio Funarte / Klaus Vianna de Dança (2011). 10
Philippe Decouflé é um famoso coreógrafo, dançarino, mímico, diretor de teatro e artista plástico francês. Com mais de vinte anos de carreira, Decouflé atingiu um sucesso internacional. Criou sua própria companhia, DCA, em 1983. Dentre suas obras de sucesso, cita-se: Lhe P'tit Bal (1994) e Codex lhe filme (1987). Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Philippe_Decoufl%C3%A9> Último acesso em: 25 de maio de 2015.
21
Em 2011 participei da criação e produção da videodança Diálogo com a Luz11,
juntamente com a bailarina Luiza Moraes12 e com o artista audiovisual Arion Engers
Moreira13. Ela foi gravada na Sala 209 da Usina do Gasômetro14, em Porto Alegre.
Neste processo, participei no papel de bailarina, apenas, improvisando frente à lente
da câmera. Reunimo-nos uma única vez. Enquanto nós, bailarinas, improvisávamos,
Arion experimentava formas para a gravação. No resultado das imagens,
percebemos na luz que adentrava à sala, através das imensas janelas, um ponto de
partida para uma criação. Os fragmentos de movimentação foram gravados sem
estruturações, de forma espontânea e organizados coreograficamente na edição do
vídeo, resultando em um trabalho sensível e muito rico visualmente15. Esta
experiência despertou com força meu interesse em manusear e entender o que
estava sendo gravado, pois, durante o trabalho, senti falta de um contato mais
próximo com a câmera.
11
Disponível para visualização em: < http://vimeo.com/41163603 > Último acesso em: 25 de maio de 2015. 12
Luiza Moraes é bailarina, pesquisadora e coreografa porto-alegrense. Formada em História (UFRGS) e mestre em dança pela Centre National de la Danse (CNDC) em Angers, França. Atualmente, reside em Budapeste (Hungria), onde continua a desenvolver suas pesquisas em dança e performance. 13
Formado em Comunicação Social - Jornalismo em 2006 pela UNIJUÍ (Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul), pós-graduado em cinema em 2009 pela UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos). Trabalhou mais de seis anos como montador e finalizador em produtoras de cinema em Porto Alegre. 14
A sala 209 da Usina do Gasômetro é um local de referência para a dança contemporânea de Porto Alegre e região desde 2005. Ela faz parte do projeto Usina das Artes e é coordenada pelo Coletivo de Dança Sala 209, encabeçada pelas companhias Eduardo Severino Cia. de Dança e Ânima Cia. de Dança. Nela acontecem, diariamente, aulas, ensaios das companhias responsáveis e residências de artistas locais, para desenvolvimento de suas pesquisas criativas, dentre outros eventos, oficinas, mostras e circulações de espetáculos, locais, nacionais e internacionais. 15
A videodança Diálogo com a Luz foi selecionada para dois festivais, sendo exibida na XIII Edição do Festival Internacional de Videodanza de Buenos Aires, Argentina, em 2011, e na XI Edição do Festival Internacional de Vídeo & Dança - Dança em Foco - no Rio de Janeiro, Brasil, em 2013.
22
Figura 1: Foto da videodança Diálogo com a Luz (2011). Crédito da foto: Arion Engers.
Em 2012, ao me mudar para Curitiba, Paraná, tive uma vivência crucial,
sendo a atual pesquisa, de certo modo, continuidade desta experiência. O
Laboratório de Videodança é um projeto de extensão oferecido pela Faculdade de
Artes do Paraná, tendo como público-alvo não apenas alunos, mas também a
comunidade. Coordenado pelo professor Demian Garcia16 e pela bailarina e
pesquisadora Bruna Spoladore17, é composto principalmente por alunos dos cursos
de cinema e de dança, mas recebe também pessoas de teatro, dentre outras
formações. A partir dessa iniciativa se criou o Coletivo Na Janela18, que continua
fomentando as produções e visibilidade da videodança na comunidade curitibana.
Com a proposta de promover um espaço para pesquisa, reflexão e produção na
área, o laboratório corroborou com a ideia de que, a partir da definição de Pradier
(2000), acredito ser uma visão transdisciplinar da videodança.
16
Professor de Som e de Trilha para Cinema, Sonoplastia e História do Cinema na FAP (Faculdade de Artes do Paraná); Compositor musical para Cinema, Teatro e Dança assim como editor de som e sound designer; possui graduação em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) (1994) e mestrado em Cinema e Audiovisual - Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (2009). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Arte e Tecnologia, Composição Musical e Edição de som. Atua no mercado cinematográfico, teatral e publicitário brasileiro e francês. 17
Professora colaboradora na Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com bolsa da Fundação de Amparo a Pesquisa da Bahia (FAPESB). Participa do Grupo de Pesquisa Elétrico - Pesquisa em Ciberdança, do Grupo de Pesquisa em Dança e do Núcleo de Pesquisa em Arte e Tecnologia da Faculdade de Artes do Paraná (NATFAP). Coordena, junto a Demian Garcia, os projetos de extensão do Laboratório de Videodança e do Núcleo de Criação e Produção em Videodança e é proponente no Um - Núcleo de Pesquisa Artística em Dança da FAP. 18
Mais informações sobre o Coletivo Na janela estão disponíveis em: <http://najanela.kinghost.net/> Último acesso em: 23 de janeiro de 2015.
23
[...] a noção implica a qualidade criadora do diálogo não somente entre disciplinas, mas conciliação – e por conseguinte – entre o homem interior e o homem exterior, entre a experiência e a teoria, entre o sujeito e o objeto. Daí podem emergir novos objetos, novos saberes, novos métodos, atitudes e práticas (PRADIER, 2000 p. 42).
No Laboratório, os papéis não eram fixos, todos os integrantes podiam ocupar
e experimentar os lugares de bailarino, videasta, cinegrafista ou editor. Tanto nos
exercícios, quanto na criação e produção, o grupo não estava mais dividido entre as
pessoas oriundas do cinema e as da dança, todos nós estávamos na condição de
artistas trocando conhecimentos, experiências e nos arriscando. O que brotava
desse diálogo dava forma aos trabalhos propostos e realizados. É principalmente
nesse sentido que esta pesquisa encontra rastros na experiência acima relatada. Foi
a partir desse entendimento de videodança como algo criado da fusão e da troca
entre dança e vídeo, com uma libertação de regras engessadas e uma enorme
curiosidade e interesse pelo singular, que novas possibilidades criativas tanto
corporais, como visualmente, foram emergindo na minha prática artística.
Foi nesse período que participei da produção das videodanças: Intangível
(2012)19, como bailarina e criadora, colaborando na concepção; S (2012), como
proponente do trabalho e diretora; e 5678 (2012), como bailarina e videasta. Dentre
as muitas investigações e os processos elaborados dentro do laboratório, 5678 foi o
mais importante para construir a relação entre câmera e bailarino que proponho para
esta pesquisa, de tal forma, que considero esta pesquisa acadêmica uma
continuidade ou uma variante dessa videodança. Éramos três bailarinas e uma
câmera. Uma de nós criou uma sequência coreográfica curta, a segunda bailarina,
com o objetivo de registrar uma parte do corpo durante a movimentação da primeira
bailarina, também elaborou uma sequência enquanto operava a câmera. A terceira,
com o mesmo objetivo, criou uma movimentação, só que a partir do segmento criado
pela segunda bailarina, que o repetiria, agora sem a câmera. A primeira bailarina
adaptou a sua sequência para receber a câmera e com ela enquadrar o movimento,
tanto da primeira como da segunda, sem, no entanto, alterar muito sua
movimentação, a fim de conseguir fechar um circuito dinâmico e complexo. A
câmera circulava também de forma coreografada. Ao som de um cronômetro,
19
Disponível em: <http://vimeo.com/45338951> Último acesso em: 23 de janeiro de 2015.
24
repetíamos ciclicamente todas as sequências engendradas, dando a ideia de uma
máquina.
A partir desse trabalho, realizou-se uma instalação na qual a videodança, que
consistia na imagem gravada pela câmera no decorrer do circuito, era projetada,
simultaneamente, à coreografia cênica com o equipamento. As imagens projetadas
foram gravadas dias antes, no mesmo espaço da instalação, com o mesmo figurino
e editadas previamente, para serem reproduzidas em looping. Não foram utilizadas
as imagens em tempo real por limitações tecnológicas, tornando-se um diálogo entre
as imagens de registro e a efemeridade da dança cênica. Pela primeira vez percebi
a câmera como um corpo dançante e a possibilidade de, como bailarina e
cinegrafista, ao mesmo tempo, potencializar a relação entre câmera e bailarino na
criação de uma videodança.
Figura 2: Foto da videodança Intangível (2012). Crédito da foto: Camila Carneiro Martins.
25
Figura 3: Foto da videodança S (2012). Crédito da foto: Julia Lüdke.
Figura 4: Foto da videodança 5678 (2012). Crédito da foto: Adriano Del Duca.
26
Foi também no Laboratório de Videodança da FAP que tomei conhecimento
da GoPro20. Por mais que não tenha produzido nenhum trabalho com ela naquele
período, tive a oportunidade de acompanhar o trabalho de outros colegas que
possuíam o equipamento, instigando-me a adquiri-la e inseri-la na pesquisa que
desenvolvo hoje. Em um primeiro contato, atentei para as suas facilidades e
possibilidades. Por ser portátil, leve, ter as “proporções” aproximadas de um olho e
poder, inclusive, ser acoplada ao corpo, demonstrava uma grande afinidade ao
movimento dançado, podendo contribuir muito na relação do vídeo e da dança.
A partir desses diferentes lugares da experiência que ocupei em minha
trajetória, tanto com a dança, quanto com a videodança, pude amadurecer certos
questionamentos e voltar a atenção não apenas para as possibilidades que o vídeo
pode trazer à dança, mas também como a dança pode modificar o vídeo, buscando
uma relação íntima entre essas duas artes, não apenas no momento da edição. E se
a câmera dançasse? E se o bailarino fosse o cinegrafista? Seria possível que as
imagens capturadas demonstrassem ou reverberassem as qualidades de movimento
do bailarino que manuseasse a câmera? Como seria dançar e gravar ao mesmo
tempo? Esta pesquisa, portanto, foi elaborada e executada com o intuito de buscar
formas de compreender e analisar estas questões, ou ainda fomentar novas e outras
a respeito das muitas possibilidades de relacionamento entre o corpo dançante, a
câmera e o vídeo.
20
A GoPro é uma câmera digital voltada originalmente para registrar esportes e possui a qualidade de uma câmera profissional, com a vantagem de ser versátil. Foi criada por Nick Woodman em 2005. Inicialmente se tratava de uma câmera analógica, com filme de 35mm. Atualmente é digital e possui lente fixa com um ângulo de 170 graus de largura em vídeo de alta definição de 1080p. (Ver anexo B)
27
2.2 O RECORTE
2.2.1 A videodança e o ato de videodançar
Por meio de revisão bibliográfica, a pesquisadora Regina Miranda (2000,
p.118-119) encontrou um artigo publicado por Elisa Vaccarino em 1997, em uma
revista alemã chamada Ballet Tanz, o qual sugere que o termo “videodança” foi
cunhado, em 1988, pela curadora do centro Georges Popidou, Michele Bargues, ao
precisar classificar uma programação que não se encaixava na categoria “vídeos de
dança”. Não obstante, Brum (2012, p. 108) ressalta que, em 1975, o jornal Dance
Scope já havia publicado o texto Videodance21, escrito por Jeffrey Bush e Peter Z.
Grossman, em 1975.
Tão valoroso quanto especificar, historicamente, quando surgiu a expressão,
é entender que ela surge por demanda de uma prática a qual não se encaixava nas
categorias até então estudadas. Nesse sentido, compreender quais são e como se
estabelecem essas novas formas de relacionamento entre a arte do audiovisual e a
da dança, torna-se mais rico do que saber se foi Westbeth (1974), de Merce
Cunningham (1919 – 2009) 22, a primeira videodança, ou se foi A Study in
Coreography for Camera (1945), de Maya Deren (1917-1961)23, que, mesmo sendo
parte do cinema, deve ser considerado o marco seminal da videodança. Pois como
era uma artista múltipla, transitou pela dança, pelo cinema, pela literatura e
fotografia, sendo uma das pioneiras na tentativa de pôr em relação, em diálogo, as
diferentes formas de expressão, em especial, o cinema e a dança. Foi precursora do
cinema experimental, sendo referência até hoje em trabalhos e pesquisas artísticas
e acadêmicas.
21
Disponível em: <http://www.tospitimou.com/images/Videodance1975.pdf>. Último acesso em: 21 de maio de 2014. 22
Merce Cunningham era um bailarino e também coreógrafo norte-americano. Suas obras e pesquisa foram muito importantes e influentes na história da dança moderna e contemporânea, servindo de referência para pesquisas e experimentações até hoje. Pioneiro na área de dança e tecnologia, bem como na videodança. Teve forte influência de artistas de outras áreas, como John Cage. Uma das marcas de seus trabalhos é a inserção do acaso como forma de composição coreográfica. Para mais informações, indica-se ler: SANTANA, Ivani. Corpo aberto: Cunningham, dança e novas tecnologias. São Paulo: EDUC/FAPESB. 2002. 23
Para mais informações sobre Maya Deren sugere-se ler: BRUM, Leonel. Videodança: uma arte do devir. In: CALDAS, Paulo (Org.). Dança em foco: ensaios contemporâneos de videodança. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012. p.75-114.
28
É fundamental voltar a atenção para o fato de que o vocábulo surgiu da
necessidade de entender e nomear o que vinha sendo pesquisado, experimentado e
discutido, com profundo embasamento empírico. Cada uma das experiências, sejam
elas históricas ou atuais, do cinema ou do vídeo, possuem suas formas específicas
de procurar tensionar e entender a tecnologia audiovisual em relação ao corpo
dançante e constituem rudimentos do que está se chamando de videodança. Sendo
assim, há um cuidado para que a busca e o desenvolvimento desses conceitos não
limitem ou engessem esse debate e as produções na área. Outro cuidado é para
não descreditar trabalhos que não se encaixem, exatamente, nas definições, ou que
de alguma maneira proponham transgressões a tais conceitos. Pois, é através de
rupturas, aproximações e afastamentos, que se mantém a arte em movimento.
É justamente essa multiplicidade e efervescência de potenciais criativos que
constituem o que Douglas Rosenberg (2000) chama de gênero24, ou o que Décio
Pignatari (1995 apud WOSNIAK, 2006 p. 1) propõe como signagem25, ou o que Ivani
Santana (2006) considera um ponto de convergência da dança na cultura digital.
A videodança é um dos pontos de convergência existentes nessa Cultura Digital, assim como outras formas da dança mediada pelas novas tecnologias. Pois então não existem fronteiras, já que não existem mais territórios. Trata-se apenas de emergências dos tempos de agora (SANTANA, 2006 p.8).
Sem o intuito de realizar uma revisão bibliográfica ampla sobre o termo e sim
estabelecer balizas para análise do processo, toma-se como base a classificação
proposta por Maíra Spanghero (2003). Para a autora, a videodança é uma “[...]
forma de experimentação que conquistou domínios próprios, tanto territoriais quanto
estéticos" (SPANGHERO, 2003, p.36). A partir das diferentes formas de
relacionamento, entendimento e prática entre dança e audiovisual, Spanghero
(2003, p.36) elaborou três categorias:
a) O registro em estúdio ou palco, que realiza a gravação da coreografia,
originalmente criada sem relação com o vídeo e sem sofrer grandes
modificações, mas permite uma visualização de detalhes que não se vê da
24
Tradução nossa. 25
“Signagem é o neologismo criado por Décio Pignatari para evitar usar o termo “linguagem” ao se referir aos fenômenos não-verbais, como, por exemplo, a fotografia, a televisão, o teatro, e, neste caso, a dança, ou especificamente, o vídeo-dança (sistema áudio-hápticovisual). Consultar a obra de Signagem da Televisão (PIGNATARI, 1980)”. (WOSNIAK, 2006, p.1)
29
plateia do teatro. O interesse é o registro, citando o exemplo dos vídeos
feitos pela Companhia Grupo Corpo26 de seus espetáculos.
b) A adaptação de uma coreografia para o audiovisual, que transforma uma
coreografia originalmente realizada para cena e transportada para o meio
digital. A autora cita como exemplo, o grupo DV827, pois realizam uma
releitura de uma coreografia cênica para a câmera e o ambiente do
computador.
c) Por último, as danças pensadas diretamente para a tela, apontadas pela
autora como o equivalente ao screen choreography, as quais pressupõem
a dança de um suporte para outro, como nas outras categorias, mas que,
em seu processo de criação, são carregados de transformações capazes
de criar novos conceitos. A coreografia é criada em função do corpo do
vídeo, levando em consideração o resultado na tela. Foi dado como
exemplo, dentre outros, as criações de Merce Cunningham.
Dentre as categorias oferecidas por Spanghero (2003, p.36), a que mais se
aproxima desta pesquisa é a terceira, as danças pensadas diretamente para a tela.
O interesse do processo de criação do Experimento Looping e da análise deste
trabalho é justamente investigar como estimular e potencializar a relação entre
bailarinos, câmera e videasta, observando como isso reverbera no material gravado
e editado, assim como nos corpos envolvidos. A forma encontrada, para levar ao
extremo a relação entre os três, foi colocar o bailarino também no papel de videasta,
para que o movimento da câmera fosse coreografado por eles, os quais, por sua
vez, têm sua movimentação modificada na relação estabelecida pela câmera. Assim
sendo, levo a termos literais as palavras de Spanghero (2003):
[...]o que interessa primordialmente é que a câmera dance com o bailarino e que o bailarino se coloque no espaço e no tempo da câmera. No olhar da câmera. Quando a dança é captada pelo olho da imagem, ela ganha outra existência. Na realidade, este jogo adaptativo permite o florescimento de novas práticas para a dança e a modificação do corpo (SPANGHERO, 2003, p. 38).
26
Vídeos disponíveis no canal do grupo em <https://www.youtube.com/user/GrupoCorpoOficial>. Último acesso em: 25 de maio de 2014. 27
Ver nota de rodapé 4.
30
A esse respeito e em consonância com esta pesquisa, Santana (2006)
acredita que o conceito de videodança ultrapassa a ideia de algo que se localiza na
fronteira entre a dança e o vídeo, porém, trata-se simplesmente de justapor ou
aproximar estas áreas. Ela é a emergência de um novo modo de expressão,
singular, independente, que resulta do contato entre a dança e o audiovisual. Desse
modo, não se trata mais de dançar e gravar, mas sim de uma nova ação com novas
exigências, trata-se de videodançar. O objetivo, neste caso, não é criar um novo
verbo para o dicionário e sim chamar a atenção para as possibilidades de uma nova
prática, que modifica e é modificada pelos sujeitos da experiência, aos quais
denominei de “corpos videodançantes”. São eles: os bailarinos, Fernanda
Bertoncello Boff, Douglas Jung e, em alguns momentos, eu mesma, e a câmera,
GoPro.
2.2.2 Os corpos que videodançam
Ao realizar uma pesquisa pelos termos “videodançar”, “corpos que
videodançam” ou “corpo que videodança”, em livros e na internet, a pesquisadora
Jaqueline Reis Vasconcellos (2012) foi a única encontrada ao utilizar a expressão no
título de seu artigo “Um olhar sobre o corpo que videodança”28. No entanto, não
chega a referenciá-lo novamente no restante do texto. Para a autora, os corpos que
videodançam são “sintético/digitais”, mesmo que homólogos aos corpos físicos dos
quais partem. Ela desenvolve o tema a partir da ideia de corpo digitalizado,
“humano/sintético”, que se configura a partir da arte híbrida da videodança,
codificada por meio da relação do corpo com dispositivos eletrônicos, como
descreve:
Os elementos que cercam a composição em Dança e em Audiovisual, como a construção dramatúrgica [1] do corpo, a relação corpo-espaço e mesmo o processo de decupagem [2] são reconfigurados quando organizados no ambiente digital, binário, dos so‟ftwares que compõe e configuram o videodança. Assim, este corpo, imerso neste universo não poderá ser entendido como uma transposição humana, uma cópia ou réplica da realidade, ele é outro, particular e distinto, ainda que o mesmo. Nesse
28
VASCONCELLOS, Jaqueline Reis. Um olhar sobre o corpo que videodança. Acervo Mariposa. Disponível em: <http://acervomariposa.com.br/vidbr/2012/02/02/um-olhar-sobre-o-corpo-que-videodanca/> Último acesso em: 09 de junho de 2015.
31
ambiente de possibilidades digitais as partes escolhidas na composição não falam do todo, elas são o todo (VASCONCELLOS, 2012)
29.
Mesmo reconhecendo a importância e o vasto campo de pesquisa sobre o
corpo digitalizado, presente na obra final da videodança, pelo trabalho de edição, as
questões que compõem esta investigação acadêmica estão voltadas para o
processo que antecede a edição das imagens e do corpo humano/digital. O recorte é
feito sobre o relacionamento criativo necessário entre bailarinos, câmera e videasta
para gerar as imagens a serem editadas. No processo criativo do Experimento
Looping, estes são considerados os corpos envolvidos na ação de videodançar.
Reconhece-se que os corpos “humano/digitais” e os corpos videodançantes estão
tão intimamente ligados que não há como analisá-los isoladamente ou sem levar em
consideração como um interfere no outro e vice-versa. Inclusive, utilizaram-se,
durante o processo, os corpos “humano/sintéticos” como referência para a criação e
refinamento dos corpos videodançantes, como se verá adiante.
A ideia de nomear a câmera e também os bailarinos como corpos
videodançantes se construiu nessa pesquisa em função do conceito, há muito
estabelecido, de corpo dançante. A professora e pesquisador Mônica Dantas (2009,
p. 1) aborda o corpo dançante, embasada na visão de vários teóricos
imprescindíveis:
O corpo dançante é um corpo treinado, modelado, construído (FOSTER, 1997), um corpo fenomenológico e sensível (FRALEIGH, 1987), um corpo virtual e paradoxal (GIL, 2004), um sistema aberto de troca de informações (KATZ, 1994), um rizoma plástico, sensorial, motor e simbólico (BERNARD, 1990), um laboratório da percepção (SOUQUET, 2005).
A autora ainda aponta dois contextos para os corpos dançantes. Ambos oram
elaborados a partir da pesquisa de Dantas a respeito das obras “Aquilo de que
somos feitos” da Lia Rodrigues Companhia de Danças e “Marché aux puces, nous
sommes usagés e pas chers” da Dona Orpheline Danse, mas que são pertinentes
para o desenvolvimento dessa pesquisa:
a) Treinamento e Formação:
As concepções do corpo dançante como corpo treinado, heterogêneo e autônomo referem-se à formação e ao treinamento de cada intérprete em cada companhia. Revelam que os bailarinos constroem seus corpos a partir da incorporação de diferentes experiências, indo do balé à dança moderna,
29
Ver nota de rodapé 26.
32
do butô às danças africanas e afro-brasileiras, da educação somática às práticas esportivas, do teatro físico à experiência da performance. Elas refletem assim a diversidades de formações dos bailarinos em cada companhia, bem como as múltiplas referências presentes na formação de cada bailarino. Essas concepções indicam também que os bailarinos se responsabilizam por sua formação e treinamento e que, nesse processo, são capazes de cultivar suas características pessoais e de fazer escolhas levando em conta seu bem-estar (DANTAS, 2009, p. 2).
b) Processos de realização coreográfica:
As noções do corpo dançante como corpo íntimo, energético, engajado, vulnerável e amante concernem à implicação dos bailarinos nos processos de realização coreográfica, revelando que os intérpretes integram à sua prática artística as experiências cotidianas mais ordinárias e mais íntimas, fazendo convergir sua energia e mesmo sua vida ao projeto coreográfico do qual fazem parte. Elas mostram que os bailarinos são capazes de se fragilizar e de se transformar para bem servir à obra. Essas concepções indicam também que os bailarinos são capazes de se posicionar em função de suas convicções e de seus desejos e que eles estão prontos a se investir numa ação coletiva. Além disso, a concepção do corpo dançante como corpo amante indica que o prazer e o desejo são componentes importantes da construção do corpo dançante nas duas obras (DANTAS, 2009, p. 2).
Entende-se, portanto, que os bailarinos colaboradores desta pesquisa já
vieram para este processo criativo carregados das incorporações de suas
experiências, a partir de suas escolhas e de seus interesses. Sendo importante para
a pesquisa e a análise abordar essas experiências. Todavia, o que se observa é que
os corpos dançantes, neste caso, não foram convidados para dançar, mas para
videodançar. E para alcançar tal desejo houve aprendizado, treinamento, formação,
engajamento e também fragilização para que acontecesse um relacionamento íntimo
da arte da dança com o vídeo, tornando-se, assim, não mais corpos apenas
dançantes, mas videodançantes. Eles se disponibilizaram a engajar a experiência de
sua bagagem corporal e até mesmo colocá-las em questionamento, adquirindo
novas maneiras de fazer, para construir e servir às especificidades e propostas do
Experimento Looping.
E a câmera? Por que incluí-la como um corpo videodançante? Ela se
encaixaria como corpo dançante? Mesmo entendendo que a GoPro se trata
primeiramente de um equipamento, um dispositivo, alguns diriam até mesmo
inanimado, neste processo de criação, em particular, ela assume um papel de
importância e de destaque. O treinamento, a elaboração corporal e afetiva dos
bailarinos se constitui a partir do relacionamento com a câmera. Ela não está alheia,
distante do movimento, ela é a peça, a presença, o corpo imprescindível, tanto
33
quanto os bailarinos, para que a criação aconteça. Sendo assim, não se trata de
uma relação tradicional com o equipamento, ele foi incorporado como corpo
videodançante.
Estruturou-se, então, três papéis diferentes entre os corpos videodançantes: o
bailarino, o bailarino/videasta e a câmera. Por hora, mostra-se fundamental
esclarecer o papel do que classifiquei como “bailarino/videasta”, pois dentre tantos
elementos que compõem este processo, ele se tornou a principal chave de ligação
entre a dança e o vídeo. Começa-se por questionar-se: por que chamar de
bailarino/videasta e não de operador de câmera ou cinegrafista?
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, 2009, p.
467), o cinegrafista é o “[...] que ou quem opera uma câmera de cinema ou de
televisão; câmera”, não é, necessariamente, responsável por criar e elaborar os
planos, mas sim, executá-los de forma técnica e apropriada. Por esta razão o termo
“videasta” se mostrou mais apropriado, pois se trata de um “vídeo-artista”, muitas
vezes ele se encarrega por todas as etapas da produção de vídeo, desde sua
concepção até sua manufatura30. Os artistas colaboradores não eram apenas
executores técnicos da proposta. O movimento envolvido no manuseio da câmera
era valorado tanto pela sua finalidade, de obter a imagem desejada, como pelo
gesto, pelo domínio da ação envolvida no movimento por si só. O conceito de
motion, criado por Nikolais (1971), expressa bem a diferença entre os movimentos
que realizamos todos os dias com objetivos práticos e técnicos, do ato de dançar,
como expõe Louppe (2012):
Nikolais, por seu lado, reúne no conceito de motion o gesto consciente e a consciência do gesto. << Enquanto arte, a dança é a arte do motion, não do movimento...>> O motion é o gesto consciente e, sobretudo, a consciência do gesto: a consciência de todos os caminhos os caminhos visíveis e invisíveis que percorrem o corpo ou apenas as falanges de um dedo. O motion diz respeito ao movimento como travessia da sua própria experiência. A <<dança>> existe quando esta experiência do ser-em-movimento, as qualidades e os modos da sua entrega ao motion prevalecem sobre todos os outros parâmetros, quer da acção, quer da criação artística (LOUPPE, 2012, p. 116).
Mais uma vez, repete-se no discurso a consciência, o ser-em-movimento, o
sujeito, a subjetividade do corpo. Dessa forma, não há como observar e analisar o
processo artístico, ou melhor, a relação entre a dança e o vídeo sem ser pelo olhar
30
Estas informações foram retiradas da Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Videasta> Último acesso em: 24 de maio de 2015.
34
de cada corpo videodançante. De acordo com o Dicionário Teórico e Crítico de
Cinema (AUMONT & MARIE, 2012, p. 215-216), “o olhar distingue-se da visão pelo
fato de emanar do sujeito que percebe, de maneira ativa e mais ou menos
deliberada; a vista é assim o resultado do olhar.” Mas como acessar e analisar estes
corpos videodançantes? Qual o meio de perceber e entender os sujeitos em relação
ao ato de videodançar, proposta por esta pesquisa?
2.2.3 Pistas para análise dos corpos videodançantes
Encontrei no livro, “Poéticas da dança contemporânea”, de Laurence Louppe,
a elaboração e a discussão sobre ferramentas muito valorosas para esta análise. Ela
chama estas ferramentas, para a compreensão entre discurso e prática, de “vectores
perceptíveis dessa elaboração” (LOUPPE, 2012, p. 103). Dentre as citadas, destaco:
o espaço, o peso, o fluxo e o tempo.
As expressões espaço, fluxo, peso e tempo são amplamente utilizados tanto
no meio acadêmico, como no meio prático da dança. É impossível trazê-las para a
discussão sem falar de Rudolf Laban (1879-1958)31, que estudou, organizou e
classificou-as como “os quatro fatores do movimento”. Todavia, não é objetivo deste
estudo realizar uma análise do movimento segundo a Labanálise32, que é muito mais
complexo do que apenas estes fatores. O que interessa é integrar esses saberes
junto à prática e à reflexão envolvidas nesta pesquisa. Para tanto, defino-as segundo
a pesquisadora, Laurence Louppe (2012), anteriormente citada, pois além de trazer
as origens, principalmente em Laban, ela ainda elabora um paralelo com outros
autores e artistas, atualizando tais conhecimentos. Desse modo, conforme a autora:
a) O peso é um dos mais importantes, pois é através dele que o sujeito escolhe
a forma como ele se relaciona com a gravidade, se cede a ela em uma
31
Rudolf Laban nasceu na Bratislava em 1879. Criou vários centros de estudos do movimento, onde buscava uma consciência dos movimentos cotidianos ou não, unindo questões fisiológicas e psíquicas, emocionais. Criou um sistema de notação do movimento, conhecido nos EUA como Labanotation. Foi bailarino e coreógrafo, tornando-se muito importante na história da dança mundial. “Sua pesquisa e metodologia sobre o uso do movimento humano, pela profundidade e extensão, são hoje base para uma melhor compreensão do homem por meio do movimento, modernamente utilizada nos mais diversos ramos da arte e da ciência: dança, teatro, educação, trabalho, psicologia, antropologia, etc” (VECCHI apud LABAN, 1978, p.10). 32
“É um sistema de observação, descrição e notação de todas as formas de movimento, derivado do trabalho de Rudolf Laban, seus colegas e seus alunos. Um vocabulário sistemático e metodologia de descrição do movimento” (YOUNGERMAN, 1978, apud PRESTON-DUNLOP, 1998, apud RENGEL, 2001, 91).
35
queda ao chão, ou se resiste, usando sua força muscular para tal. Sendo
assim, o peso situa o ser no mundo, através do tato o indivíduo sente a ação
da gravidade, que o permite perceber seu próprio peso em um tempo e
espaço. A partir desta ideia, Louppe (LOUPPE, 2012, p. 105) afirma que “no
tratamento do peso, o controlo por parte do sujeito e o abandono à atracção
da gravidade são os dois pólos através dos quais se articula primeiramente a
poética do peso.” Além disso, é a partir da transferência do peso que o
movimento se funda, como coloca a autora “a cinetografia de Laban dos
anos 1920 faz da transferência de peso a unidade aberta que é fundadora
de todo o acto motor” (LOUPPE, 2012, p. 103).
b) O fluxo, por sua vez, refere-se ao tratamento dado a este peso. Isto é, para
resistir ou ceder à ação gravitacional, o corpo se utiliza da ação do tônus
muscular, essas gradações da tensilidade, “[...] ou seja, o grau de
intensidade do tônus muscular [...]” (LOUPPE, 2012, p. 103), são
responsáveis por construir a dinâmica de espaço e tempo do corpo em
movimento, assim como afirma a autora:
As tensões não são directamente visíveis na forma, mas conduzem as linhas de força responsáveis pelo movimento. Elas estão no cerne de toda a expressividade do movimento: no seu grau de intensidade, no seu regime espácio-temporal, no seu trabalho sobre as dinâmicas (LOUPPE, 2012, p. 173).
c) O tempo, dentre todos os fatores, é o que mais gera divergências e
discussões. Nesta investigação, iremos abordar o tempo sob a perspectiva do
“fraseamento”, que é “um dos elementos mais relevantes na organização do
tempo” (LOUPPE, 2012, p. 156). O fraseamento se estrutura da relação entre
três outros fatores: o peso, o fluxo e o espaço. São eles que ditam as
durações do movimento, isto é, “o fraseado, mais do que um elemento
isomórfico entre dança e música, consiste na organização sensorial e motora
das durações, no fôlego interior que insufla uma temporalidade singular.”
(LOUPPE, 2012, p. 157). A partir dessa organização das durações se
estruturam os acentos, as rupturas, as pausas e os aceleramentos.
d) Conforme afirma Louppe (2012, p. 190) “uma das tarefas mais importantes
que competem ao bailarino, assim como ao teórico, é a distinção entre
<<espaço>> e <<lugar>>, no sentido objectivo, de uma localização concreta.”
Para esta pesquisa, torna-se especialmente importante esta diferenciação,
36
pois ambos, espaço e lugar, são peças importantes para o desenvolvimento
desta videodança. Assume-se a definição de Haygood (1995 apud LOUPPE,
2012, p.191) que define lugar como uma “superfície de exploração de
sensações corporais” (LOUPPE, 2012, p. 191). O lugar pode ser substituído,
reconstruído, provisoriamente, mesmo sabendo que influenciará na ação, ele
não é insubstituível. O lugar diz respeito à arquitetura, a topologia do
ambiente, a estrutura física, que a obra pode escolher levar ou não em
consideração na criação. Já o espaço não é dado, não é externo ao sujeito,
ele é construído pelo bailarino, que é ao mesmo tempo construído por ele. “É
uma força constituinte” (LOUPPE, 2012, p. 188). Pois, “A par do movimento
dos corpos no espaço, existe o movimento do espaço nos corpos” (LABAN,
1981, p. 23 apud LOUPPE, 2012, p. 189). Sendo este espaço constituído pelo
corpo em relação com o seu tempo, peso e fluxo, elaboração dinâmica
initerruptamente. Sendo assim:
Trata-se de um espaço que o corpo encara como um outro corpo, um espaço como parceiro, onde o corpo, se souber dominar os seus estados tensionais, pode inventar consistências e <<esculpi-las>> (o <<carving space>> de Laban, que se inicia com a modelagem do espaço de proximidade) (LOUPPE, 2012, p. 189).
Além da diferenciação das noções de espaço e lugar, faz-se necessário
entender que, nesta pesquisa observam-se, ainda, dois ambientes diferentes: o
digital e o físico. O ambiente físico diz respeito aos corpos videodançantes, criando
suas relações de espaço, tempo, peso e fluxo, em virtude, também, de um lugar
(que no decorrer do processo foi se mostrando cada vez mais importante) que
influencia na criação coreográfica. O ambiente digital se constitui no recorte feito
pelo frame do vídeo, sendo criado em primeira instância pelos corpos
videodançantes e pelo lugar de gravação, que, em um segundo momento, “são
reconfigurados quando organizados no ambiente digital, binário, dos so‟ftwares que
compõe e configuram o videodança”, como afirma Vasconcellos (2012)33.
A partir dos procedimentos e dos saberes escolhidos para esta investigação,
optou-se por descentralizar a elaboração da videodança pelos softwares de edição,
priorizando o trabalho com os corpos videodançantes no ambiente físico como meio
de alterar, reconfigurar e organizar a videodança no espaço digital. Esta escolha
33
Ver nota de rodapé 26.
37
fomentou o trânsito entre a vivência corporal do movimento e a percepção visual da
imagem gerada nesse experimento, reforçou a importância do ir e vir entre as
experiências de sentir o peso da câmera durante a coreografia e de ver como isso
reverbera no recorte do “olhar câmera”. Sendo assim, fundou um elo entre o
movimento dançado e a imagem gravada. Reforça-se o fato de que a escolha de
diminuir ao máximo o uso dos softwares na edição das imagens da videodança se
tratou de uma opção que ajudou a dar continuidade no recorte das questões
levantadas pela pesquisada, não como algo a ser valorado como bom, ruim, correto
ou incorreto, e sim, como uma baliza ou procedimento a ser observado e que
conduzem a obra em sua singularidade.
2.3 A APRESENTAÇÃO DOS CORPOS VIDEODANÇANTES
2.3.1 Os bailarinos colaboradores
Figura 5: Frame retirado do Making of do processo (2014). Crédito: Lícia Arosteguy.
Douglas Jung. Artista nascido em Canela, em 1984. Tem 31 anos. É
bailarino, coreógrafo e professor de dança contemporânea. Criador do Coletivo
Moebius e coreógrafo do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre,
desempenha grande influência na dança porto-alegrense. Tem um grande interesse
38
pelas artes visuais, pela performance e pela moda. Artista múltiplo e efervescente,
tem um olhar sensível sobre o corpo e o movimento.
Minha relação com o Douglas Jung é mais recente. Nosso primeiro contato
foi, em 2011, quando participei de uma oficina de Educação Somática em que ele
participou como aluno convidado. Mas, antes disso, já acompanhava, como
espectadora, o seu trabalho como bailarino, no “Folias Fellinianas” (2007), realizado
pelo Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre, dirigido por Airton Tomazzoni34
e no espetáculo “Alice (adulto)” (2007), produzido pelo Grupo Gaia, dirigido por
Diego Mac e Alessandra Chemello35. No momento que comecei a me inserir na cena
da dança em Porto Alegre, contudo, ele havia saído do país. Nunca trabalhamos
juntos em um processo artístico, nem compartilhamos o palco, porém sempre tive
uma forte afinidade com suas produções. Após seu retorno à Porto Alegre, em
meados de julho de 2013, comecei a frequentar suas aulas, sendo seus trabalhos de
espiral, fluxo e qualidade de movimento, referência para a minha formação corporal
como bailarina. A videodança Pas de Corn (2007), criado por Diego Mac (em que o
Douglas contribuiu com a semente da ideia) faz parte das minhas influências como
pesquisadora e criadora. Nosso convívio, mesmo que mais recente, também se
configura como amizade, pois se estende além de interesses e ambientes apenas
profissionais voltados para as artes.
34
Airton Tomazzoni é coreógrafo, jornalista, diretor e gestor público cultural, estando à frente da Cia. Municipal de Dança de Porto Alegre, do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre e do Centro Municipal de Dança de Porto Alegre. Doutor em Educação pela UFRGS é professor do curso de Especialização em Dança da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). 35
Alessandra Chemello é bailarina e coreógrafa. Iniciou seus estudos em dança em 1990, na cidade de Caxias do Sul e, a partir de 1998 iniciou sua carreira profissional na dança em Porto Alegre. Idealizou e criou o Grupo Gaia – dança contemporânea, hoje um dos grupos de dança mais atuantes do Rio Grande do Sul, em que desenvolve as funções de diretora geral, coreógrafa e bailarina.
39
Figura 6: Frame retirado do vídeo gravado pela GoPro, no encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).
Fernanda Bertoncello Boff. Artista nascida em Porto Alegre, em 1989. Tem
25 anos. É bailarina, pesquisadora e criadora, produtora e professora no campo da
dança e da arte circense. Múltipla, curiosa e disciplinada, dedica-se completamente
em suas escolhas e caminhos pela arte da dança contemporânea, bem como pela
educação em arte. Vem fundando sua marca no quadro artístico e político da dança
de Porto Alegre.
Minha relação com a Fernanda Boff começou na montagem coreográfica do
projeto Dar Carne a Memória36, que se propunha a remontar espetáculos da
coreógrafa Eva Schul37, na ocasião dividimos o palco no trabalho Um Berro Gaúcho
(1977), em 2010. Neste mesmo ano participamos do Workshop de Videodança,
ministrado pelo professor Marcus Moraes38, no qual desenvolvemos um exercício de
criação em videodança, com equipamentos muito precários. Esta oficina foi um
momento marcante que partilhamos, pois foi a primeira experiência de ambas com a
videodança de fato. Infelizmente, estes arquivos de imagem acabaram se perdendo.
36
Projeto que teve como objetivo a recriação e a celebração de parte do patrimônio coreográfico da dança moderna e contemporânea na cidade, através da remontagem de obras coreográficas de Eva Schul, que são representativas de momentos-chave de sua carreira e, em consequência, do desenvolvimento da dança contemporânea no Rio Grande do Sul e no Brasil. Disponível em: <https://darcarneamemoria.wordpress.com/about/> Último acesso em: 10 de janeiro de 2015. 37
Eva Schul é um dos principais nomes da dança moderna no Brasil e atualmente é diretora da Ânima Cia de Dança, em Porto Alegre, onde leciona sua técnica. Coreografou o último trabalho da Cia Municipal de Dança de Porto Alegre, o Espetáculo Salão Grená (2014). Disponível em: <http://wikidanca.net/wiki/index.php/Eva_Schul> Último acesso em: 10 de janeiro de 2015. 38
Ver nota de rodapé 9.
40
Voltamos a trabalhar juntas, em 2014, no NECITRA – Núcleo de Estudos e
Experimentações com Circo e Transversalidades, coordenado pelo circense e
bailarino Diego Esteves39, onde realizamos uma residência para pesquisas autorais.
Dentro do Núcleo, a Fernanda vem desenvolvendo uma pesquisa chamada “Tudo
que vai volta”, que se propõe a estudar as possibilidades de reversão do movimento,
utilizando o vídeo como recurso metodológico de criação e execução, visando
adquirir as qualidades de movimento do corpo retrocedendo o movimento. Este
projeto surgiu no mesmo período em que desenvolvíamos o processo criativo,
compartilhando muitas referências e provocações. Como relata a bailarina:
[...] esse projeto “Tudo o que vai, volta” é a ideia de constituir uma sequência de movimentos e explorando as possibilidades de retrocesso do movimento, a partir do vídeo. Então, como é que foi o processo: eu fiz um laboratório de improvisação, me gravei, coloquei no editor de vídeo e retrocedi. A partir desse retrocesso, eu recortei as partes que mais me chamaram atenção e aí, desse recorte, eu tentei captar, fazer a junção desses recortes, o que foi quase impossível. Eu não conseguia me copiar, nem copiar a ida, nem a volta, eu não conseguia, assim, foi super difícil. Então serviu muito mais de referência do que de algo bem concreto, né, esse movimento, depois esse, depois esse. Daí eu fechei uma coreografia pra ser apresentada na quinta edição do Desdobramentos
40, como tipo, ó,
até aqui que eu cheguei com esse projeto, com essa ideia. Então o vídeo serviu dentro do procedimento metodológico (BOFF, 2014, informação verbal).
O contato entre os dois bailarinos também vem de um período anterior a esta
pesquisa. A Fernanda já havia sido aluna do Douglas no Grupo Experimental de
Dança de Porto Alegre em 2010 e bailarina de um de seus trabalhos, Foi pro Espaço
(2012), que foi realizado com ex-bailarinos do Grupo Experimental. Estas
experiências facilitaram a proximidade e intimidade entre os dois. Atualmente, eles
compartilham o palco no espetáculo Guia Improvável para corpos mutantes (2013),
com direção de Airton Tomazzoni, além de tanto eu, como a Fernanda, continuar a
fazermos as aulas livres com o Douglas. O que nos torna mais próximos ainda
profissionalmente, pois implica em afinidades estéticas e profissionais.
39
É artista cênico, produtor, gestor, diretor e professor. É fundador e coordenador do NECITRA – Núcleo de Estudos e Experimentações com Circo e Transversalidades onde criou, dirigiu e atuou em muitas montagens. Foi Coordenador de Dança do Estado do Rio Grande do Sul, junto ao IEACen – Instituto Estadual de Artes Cênicas da Secretaria de Cultura do Estado, coordenador do Colegiado Setorial de Circo do Estado e conselheiro da ASGADAN – Associação Gaúcha de Dança. Disponível em: <http://necitra.com/sobre/elenco/diego-esteves/> Último acesso em: 10 de janeiro de 2015. 40
O “Desdobramentos” é um evento de mostra dos trabalhos pesquisados e criados pelos artistas residentes do NECITRA, que acontece periodicamente ao longo do ano.
41
Figura 7: Fotografia do Espetáculo Guia Improvável para corpos mutantes (2013), no qual os dois colaboradores dividem o palco atualmente. Créditos da foto: Cristiano Prim.
Como se pode observar acima, as trajetórias dos colaboradores e a minha se
cruzam e ocupam o mesmo contexto, ou seja, a cena da dança contemporânea
porto-alegrense. As escolhas destes artistas para o Experimento Looping não foram
aleatórias, ou feitas de modo impessoal. Descrever os critérios de seleção e as
experiências conjuntas e individuais dos artistas envolvidos no processo é
fundamental, pois ajuda a reconhecer e perceber com riqueza de detalhes quem são
os sujeitos os quais criam o movimento, agenciando as relações entre espaço,
tempo, peso e fluxo, de forma singular e que, acima de tudo, dão corpo a esta
pesquisa e a esta obra. Se qualquer um deles fosse substituído ou deixasse de
participar, certamente, outra pesquisa se configuraria, porque, sobretudo, trata-se de
uma investigação e criação coletiva.
Os colaboradores foram convidados levando em consideração, como se pôde
verificar anteriormente, o entrosamento existente entre eles e de ambos em relação
a mim. Iniciar uma investigação com prazos estabelecidos e em que se busca uma
verticalização de certas experimentações na arte e na videodança, exige do grupo
investimento de tempo, de energia e de disponibilidade à troca e aos
questionamentos. Se não houvesse afinidade, certamente, assuntos de outras
ordens poderiam se colocar à frente da pesquisa, dificultando a exploração. Tendo
isto em vista, procurei por dançarinos com quem já possuía experiências
42
profissionais anteriores. Tanto com a Fernanda, quanto com o Douglas, mantenho
um relacionamento que extrapola o âmbito apenas profissional para uma amizade,
com os quais compartilho outras afinidades além da dança.
A opção de dois bailarinos se deu para efetivar a possibilidade de que ambos
experimentassem tanto o papel de bailarino como o de bailarino/videasta e que
pudessem trocá-los de forma dinâmica. Dessa maneira, configurou-se um triângulo
relacional dinâmico entre a câmera e os dois bailarinos. Ademais, essa estrutura
propiciou que, como pesquisadora, eu pudesse me afastar e observar sem
comprometer as propostas, bem como me inserir quando necessário, compondo um
quarteto, no caso, dois bailarinos, a câmera e um bailarino/videasta. A opção de não
ter mais do que dois participantes aconteceu em virtude do tempo reduzido
destinado a realização do processo criativo. Uma equipe grande poderia oferecer
complicações em questões práticas, como organizar horários para os encontros,
bem como tenderia a dificultar o diálogo, o que influencia no trabalho criativo,
impedindo muitas vezes uma exploração e relação mais profunda e verticalizada. Ao
contrário do que poderia ocorrer entre um pequeno grupo desenvolvendo uma
proposta, em um curto período de tempo.
A fim de expor de forma mais didática as experiências dos corpos que
sustentam e constroem o Experimento Looping, elaborou-se um organograma com
técnicas ou artistas que os participantes citaram em entrevista como indispensáveis
em sua formação corporal como bailarinos, juntamente com a da pesquisadora.
Essa estratégia explicita o pertencimento dos bailarinos colaboradores no campo da
dança. Muito desse conhecimento incorporado, a partir do que lhes foi repassado
por professores de dança em salas de aula, não se encontra enquanto registro
escrito, daí a importância de inscrever essas filiações no organograma. O
conhecimento repassado a eles encontra-se nos seus corpos e no de vários outros,
enquanto movimento e ações dançantes, desse modo, conhecimento incorporado,
dinâmico, vivo, objetivo e subjetivo, resultado de gerações de dança.
Nos boxes azuis estão as referências em comum, por gêneros de dança,
grupos e instituições, ao longo de cada linha que liga o box ao bailarino estão os
nomes dos professores artistas mencionados. As referências que não possuem
nomes foram citadas sem maiores especificações. Os nomes em vermelho são os
artistas e, consequentemente, seus gêneros, grupos e instituições (em azul mais
43
escuro), que foram considerados pelos bailarinos como importantes e influentes para
o desenvolvimento deste processo criativo.
Figura 8: Organograma das técnicas, gênero de dança, professores artistas, grupos e instituições citadas como indispensáveis para suas formações corporais como bailarinos (Fernanda Boff, Julia
Lüdke e Douglas Jung) – estão em destaque e em relação o que mais contribuiu na realização desta pesquisa.
Este organograma pretende abarcar grande parte das referências e das
experiências contidas na trajetória dos participantes, para construção de um perfil de
cada bailarino, indicando, deste modo, seus pertencimentos no campo da dança. O
primeiro aspecto é que se trata de corpos contemporâneos, abertos a diversidade de
expressões e formações. Não há uma linhagem corporal pura, mas também não se
trata de uma mistura superficial delas, no sentido de acumular outras informações,
uma vez que cada formação afetou-os enquanto sujeitos e corpos dançantes. Pode-
44
se afirmar que os bailarinos em questão se encaixam perfeitamente na descrição de
Louppe (2012):
A vasta reserva da herança moderna e as riquezas infinitas das práticas, das filosofias corporais e dos diversos ensinamentos incessantemente em mutação permitiram ao bailarino de hoje, talvez mais modestamente, não inventar o corpo, mas procurar compreender, apurar e aprofundar o seu corpo e, sobretudo, fazer dele um projeto lúcido e singular (LOUPPE, 2012, p.70).
Nesta linha, não se tratam de corpos que se dedicam a enquadrar os
movimentos em busca de um resultado estético homogêneo, como é o caso das
grandes companhias de ballet, por exemplo. Pelo contrário, estão preparados para
lidar com o novo e abertos para construir relacionamentos de troca, buscando
transformações. Isto pode ser verificado nas suas fala, ao citarem como
fundamentais em suas formações as experiência em áreas fora da dança como as
artes circenses.
Outra observação importante é que todos buscaram uma formação
acadêmica na dança. Ainda que em instituições diferentes, inclusive
internacionalmente, como é o caso do Douglas. Pode-se afirmar que estes corpos
videodançantes também estão ou estiveram inseridos em ambientes que discutem e
pensam a dança, o corpo, o movimento e a criação, enquanto conhecimento
teorizado, inclusive. Esta vivência em comum propiciou um adensamento da reflexão
acadêmica para a habilidade de elaborar as vivências e na forma de expor suas
percepções e possíveis conceituações, tanto no decorrer do processo, quanto nas
entrevistas, o que contribuiu imensamente para a pesquisa, tendo em vista que esta
também está inserida em um contexto acadêmico.
Dentre as referências citadas como importantes para o desenvolvimento
desta pesquisa, gostaria de ressaltar as artes circenses, do artista e professor Diego
Esteves41 e do próprio Douglas Jung, com a dança contemporânea, citada pela
Fernanda, e dos artistas e professores Libby Farr42 e Matej Kejzar43, citada pelo
41
Ver nota de rodapé 23. 42
Nascido no Texas, Elisabeth “Libby” Farr realizou sua formação em dança na School of American Ballet, em Nova York, dançando para várias companhias de balé nos EUA e na Europa. Ela é professora convidada regular na PARTS e na Escola Contemporânea de Londres e leciona também em outras escolas. Seu ensino é baseado na técnica de dança clássica. O foco central é sobre o reforço da sensibilização das linhas do corpo. 43
Matej Kejzar nasceu na Eslovênia. É dançarino e novo coreógrafo que está despontando. Estudou em Amsterdam School for New Dance Development (SNDO). Após seus estudos, trabalhou em escolas europeias reconhecidas como professor e coreógrafo tais como SNDO, Amsterdam,
45
Douglas. A experiência circense, presente nos corpos dos dois bailarinos, mostra-se
muito útil na realização do Experimento Looping, principalmente o uso dos
equilíbrios e das acrobacias. Se não houvesse um preparo físico e técnico para este
tipo de movimentação, a pesquisa, certamente, teria tomado outro rumo. Também é
interessante notar como a bailarina vê em seu colega de processo uma referência e
caminho para a sua formação corporal. Desse modo, o processo do Experimento
Looping se torna um ambiente de troca entre os profissionais, reafirmando a
importância da tradição oral da dança e o intercâmbio entre o meio artístico e o meio
de pesquisa acadêmico.
Figura 9: Fotografia do processo criativo do Experimento Looping. Encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).
Crédito da foto: Lícia Arosteguy.
Já as vivências específicas relatadas pelo Douglas, sobre as aulas realizadas
enquanto aluno da SEAD, traz um caminho de construção do entendimento do corpo
e do espaço, de modo singular, que de fato acrescentaram ao propósito desta
pesquisa, como aponta o próprio Douglas (JUNG, 2014, informação verbal):
Tem outras coisas, né, uma outra parte da minha pesquisa, que eu acho que informa muito mais o que eu tô fazendo contigo do que especificamente o trabalho desse professores, mas eu consigo ver essa relação muito, muito
SEAD/Salzburg e Tanzquartier Wien, e também na Índia, China e Taiwan. No seu trabalho como coreógrafo e professor, ele se utiliza da colaboração de músicos, atores e pintores. Foi integrante da Cia Rosas, uma importante Cia de dança contemporânea belga dirigida por Anne Teresa De Keersmaeker, e seu desenvolvimento artístico é bastante influenciado por Katie Duck e Martin Sonderkamp. Disponível em: <https://eduardoseverinociadedanca.wordpress.com/category/danca-contemporanea/page/2/> Último acesso em: 25 de maio de 2015.
46
próxima entre uma coisa e outra, porque eu comecei a me interessar pelo o que eu me interesso hoje muito pelo contato com essas pessoas, então não dá pra isolar assim. Que é a questão dos olhos, do ponto de vista, é... Sobre as coisas, que eu acho que interferem bastante quando a gente tá falando do trabalho com câmera, né, com um ponto de vista externo ao corpo, mas aí eu preciso... Pelo menos pra dentro dessa pesquisa, eu acho que eu entendi que é: pra que certas coisas funcionem, eu como performer preciso antever o que a câmera vai ver, então esse também requer um treinamento, uma certa prática, que eu comecei a usar e acessar com o Matej e com a Libby, e que depois veio pra dentro da minha prática como performer, como coreografo, como pesquisador e etc. e tal (JUNG, 2014, informação verbal).
O percurso percorrido pelo artista é movido por seus interesses,
inquietações, e é significativo compreender como este trabalho também poderá
alimentar e contribuir para com o percurso destes artistas. Não se trata de uma via
de mão única, há uma doação, por parte dos bailarinos, para o processo, mas há,
também, um retorno desse processo aos seus interesses e trajetórias particulares.
Como o Douglas relatou, determinados conhecimentos incorporados em sua
trajetória como bailarino que obtiveram espaço de vazão nesta pesquisa, e essa
relação entre suas vivências com o Matej ou a Libby, por exemplo, e esta
investigação, multiplica os saberes e a arte, bem como o constitui enquanto artista.
Dentre os critérios levados em consideração para a composição do grupo
para a pesquisa estava, incontestavelmente, o interesse por dança com mediações
tecnológicas e alguma vivência prévia nesse campo. O desejo de que os integrantes
tivessem curiosidade criativa a esse respeito era muito claro, no entanto, não era
obrigatório que tivessem conhecimento aprofundado e muita experiência com as
tecnologias envolvidas no audiovisual. Pois como afirma Larrosa (2002, p. 22), “[...]
uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a
experiência é impossível”. Ou seja, talvez uma grande carga de informações sobre
como operar uma câmera poderia, até mesmo, engessar e inibir a espontaneidade e
a curiosidade, a experiência em si. Seguindo o pensamento de Larrosa (2002)
presente na citação acima, a disponibilidade para trocar, transgredir, transformar o
que já se sabe e não apenas reproduzir as informações assimiladas, é mais
importante na escolha dos participantes do que o nível de informação ou
conhecimento de cada um na área do audiovisual, pois torna possível a experiência
e com ela a criação de novos saberes e questionamentos.
Dessa forma, ambos possuem bagagem em videodança. No quadro abaixo
estão organizados alguns trabalhos realizados diretamente em videodança ou em
47
produções relacionadas com vídeo ou fotografia que demonstram o interesse e
disponibilidade para troca entre a dança e o audiovisual na trajetória dos
colaboradores. Desse modo, a tabela a seguir tem o objetivo principal de elencar as
funções vivenciadas pelos participantes, apontado para o fato de que não se tratam
de artistas que chegam para fazer parte dessa investigação como páginas em
branco, e sim que a cada novo processo as obras se contaminam e se multiplicam
na trajetória de cada artista. As informações foram adquiridas através das
entrevistas e no decorrer do processo.
Fernanda Boff Douglas Jung
Bailarino Faz de conta que (2010) (Vídeo de divulgação) Experimento Portabilidade (2013) Ao teatro (2013) (Curta-metragem)
Projeto.Gif (2014)
Por baixo da mesa (2006)
O colecionador de movimentos (2011)
Bem Passado (2006)
Keep on (2010)
Operador de
câmera
O que se passa pela sua cabeça (2012)
Keep on (2010)
Concepção Experimento Portabilidade (2013) Pas de Corn (2006)
Keep on (2010)
Auxiliar de direção O que se passa pela sua cabeça (2012)
Assistente
Coreográfico
The silence of place (2011)
Outras pesquisas
relacionadas
Tudo que vai volta (2014) Body It (2013)
Figura 10: Tabela de funções vivenciadas belos bailarinos na produção de videodança em outros circuitos e suas respectivas obras e datas.
Uma das funções trazidas na tabela que mais chama atenção para esta
análise é a de operador de câmera. Como dito anteriormente, não era necessário
perícia na área, mas o conhecimento mínimo sobre o funcionamento de uma
câmera, mesmo não sendo a mesma utilizada nesta pesquisa, fez com que a
48
pesquisa pudesse partir de outro estágio de relacionamento entre os corpos
videodançantes. Das produções citadas acima, destaco as videodanças:
Experimento Portabilidade (2013) e Keep on (2010), que foram trabalhos concebidos
e realizados por eles. O primeiro trabalho citado foi uma produção independente,
com a concepção e coreografia da Fernanda, que também atuou como bailarina e
contou com Diego Esteves na operação de câmera e edição. A criação trata de
como as diferentes versões digitais da artista se comportam e tentam se enquadrar
no espaço a cada ponto de vista proposto pela câmera.
E o segundo foi realizado como material de uma disciplina cursada pelo
Douglas na Salzburg Experimental Academy of Dance (SEAD), na qual o artista é
responsável pela concepção, operação da câmera e edição, contando com Britt
Kamper Nielsen como bailarina. O trabalho tinha como proposta criar uma narrativa
através da edição de sequências de câmera parada, com entradas e saídas do
bailarino no frame. Estas duas criações demonstram que, seja em nível de exercício,
seja em nível de uma produção independente, não se tratam de executores do
movimento, mas de criadores críticos e envolvidos na elaboração da ideia como um
todo. Vale ainda mencionar as pesquisas que cada um desenvolve a parte e que se
relacionam com o uso de vídeo ou fotografia, pois, de formas diferentes, estes
artistas estão envolvidos e pensando formas de tensionar a tecnologia, a dança e o
corpo. Nesse sentido, contar com participantes com uma formação tão múltipla e de
qualificação relevante contribuiu muito para o trabalho.
2.3.2 A Câmera
Em cada opção de câmera está contido um universo criativo possível,
propondo diferentes tipos de relacionamentos entre a arte e a tecnologia. Com isso,
a escolha da GoPro conferiu ao processo uma conjuntura de especificidades
singulares, sendo importante dar atenção a esse aspecto. Havia, inicialmente, o
interesse de se desenvolver diferentes experimentos a partir de diferentes câmeras.
Contudo, no momento da elaboração da estrutura dos experimentos, ficou claro que
cada equipamento traria um universo de possibilidades que dificultaria o
49
aprofundamento da pesquisa. Optou-se, desse modo, em utilizar apenas a GoPro,
pois demonstrava um vasto campo pouco explorado em relação a dança.
Um dos aspectos que mais me chamou atenção em relação à câmera é que,
desde a sua origem, está vinculada ao movimento corporal, pois foi criada para
facilitar e possibilitar melhores ângulos para fotografar os surfistas. São inúmeros os
vídeos disponíveis na internet que utilizam a GoPro para registrar esportes, objetos
e pessoas em movimento. Trata-se de um equipamento pequeno, relativamente fácil
de operar, que realiza automaticamente as regulagens necessárias para diferentes
condições luminosas, resistente, capaz de captar imagens em qualidade profissional
e muito estáveis (consegue estabilizar boa parte dos tremidos e solavancos naturais
do movimento do corpo humano e etc.). Todas essas características, aliadas à
estrutura metálica elaborada especialmente para este projeto, facilitaram a
apropriação do equipamento pelos bailarinos.
Na maioria das produções, a câmera é operada apenas pelo videasta, ou
cinegrafista, a escolha da GoPro deu à câmera mais mobilidade no papel de um
corpo videodançante. Tal aproximação talvez não fosse possível se a câmera
exigisse regulagens manuais durante a filmagem, ou fosse tão pesada e difícil de
carregar junto ao corpo. Ver a câmera como um corpo que videodança transformou
o uso da tecnologia não apenas em uma ferramenta ou meio, mas em motivo de
criação do movimento. Sendo assim, ela se tornou não somente um meio, um
instrumento, mas um potente corpo criativo.
Figura 11: Foto do processo, no encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014). Crédito da foto: Lícia Arosteguy.
50
O fato de a câmera não possuir um visor embutido não permitia a quem
estava manuseando ver em tempo real o que estava gravando, o enquadramento ou
a angulação. Esta característica que, a princípio, parecia ser um problema a ser
resolvido, tornou-se uma aliada no desenvolvimento de um vínculo mais profundo
entre o equipamento e os bailarinos. Não poder controlar a imagem visualmente
acabou liberando a atenção dos bailarinos, não para o produto final, mas para o
“entre”, tanto para quem manuseava o equipamento no momento, quanto para quem
dançava em relação a ele. Sendo assim, é possível pensar em consonância ao que
Machado (2007) propõe:
As técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem mediações inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderia substituir por quaisquer outras. Eles estão carregados de conceitos, eles têm uma história e derivam de condições produtivas bastante específicas. [...] o artista digno desse nome busca se apropriar das tecnologias mecânicas, audiovisuais, eletrônicas e digitais numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar em benefício de suas ideias estéticas (MACHADO, 2007, p. 16).
Indo de encontro com o pensamento de Machado acima citado, observou-se
em virtude dessa característica específica do equipamento, a falta de visor,
instaurou-se o procedimento denominado “estratégia base”, que será abordado mais
detalhadamente no subcapitulo “3.2 Procedimentos”. A GoPro viabiliza e fomenta a
estética e metodologicamente o processo criativo, mas os conceitos e história de
que está carregada potencializam a reflexão e a escrita desse trabalho. Primeiro,
aconteciam os momentos de experimentação e investigação corporal,
posteriormente, a visualização do material gravado e, então, o retorno à
experimentação, buscando novas resoluções e manutenção do que se mostrou
interessante. Essa maneira de trabalho tirou o foco apenas da percepção guiada
pela visão e pela forma, potencializando a cinestesia e a construção de um corpo
mais disponível e atento de modo global, como foi evidenciado no relato do Douglas,
na página 45-46. Assim como a experiência de cada bailarino interferiu diretamente
nos caminhos que construíram no processo, também o equipamento diz muito aos
rastros deste trabalho, principalmente dentro da proposta de exploração de corpos
que não somente dancem, mas videodancem.
51
Figura 12: Frame retirado do Making Of do processo (2014). Crédito: Lícia Aroteguy.
2.4 A ESTRUTURA DO PROCESSO CRIATIVO
A parte prática da pesquisa foi realizada ao longo do ano de 2014, de modo
intenso de janeiro a maio, e a gravação final em novembro, com ensaios distribuídos
nos meses de intervalo. Ao total, foram realizados 18 encontros, com duração de
aproximadamente 3 (três) horas cada. O espaço utilizado na maior parte do
processo de criação, onde foram desenvolvidos os experimentos e exercícios de
preparação corporal e criação, foi a sala 209 da Usina do Gasômetro, que é um local
de referência para a dança contemporânea de Porto Alegre e região desde 2005.
Ela faz parte do projeto Usina das Artes e é coordenada pelo Coletivo de Dança
Sala 209, encabeçada pelas companhias Eduardo Severino Cia. de Dança44 e
Ânima Cia. de Dança45.
44
A Eduardo Severino Cia de Dança, formada em 2000, por Eduardo Severino e Luciano Tavares, núcleo artístico da Cia, desenvolve uma trajetória em dança, com uma montagem a cada ano, composta por artistas convidados para cada projeto artístico. Receberam financiamento para algumas das montagens assim como algumas premiações locais e nacionais, participaram de eventos representativos na área pelo Brasil e no Exterior. 45
A Ânima Cia de Dança foi fundada no ano de 1991, no momento em que a coreógrafa Eva Schul retornou a Porto Alegre. São vinte e dois anos de trabalho no cenário das Artes Cênicas no RS, Brasil e exterior. A primeira apresentação se deu no ano de sua fundação, no teatro Cacilda Becker/RJ, dentro do projeto “Olhar Contemporâneo da Dança”. Desde então, mantém-se na cena contemporânea da dança.
52
A escolha da sala 209 se deve muito ao fato de que boa parte da minha
história como bailarina foi influenciada e propiciada por este espaço. Desde a
faculdade venho estreitando os laços com este lugar. Ao participar como bailarina na
Ânima Cia. de Dança em 2010, bem como no acolhimento de propostas
independentes, como a gravação da videodança Diálogo com a Luz46, realizada na
sala, tornou-se um lugar de referência acessível para mim. Além do vínculo artístico
e afetivo, a sala 209, bem como a Usina do Gasômetro, é ampla, com janelas
grandes, que permitem boa iluminação e espaço para o deslocamento, requesitos
indispensáveis para o vídeo, no caso desta prática. Nos experimentos, no entanto,
não foram utilizadas apenas a sala 209, mas os ambientes de circulação da Usina
do Gasômetro, como o Mezanino e o local de exposições, no primeiro andar. Outros
locais foram utilizados na parte final da prática e serão abordados com mais
detalhes adiante.
2.4.1 O organograma do processo criativo
Para expor, em um quadro geral, como o processo criativo foi estruturado e
construído ao longo deste período, foi elaborado um organograma das etapas, com
suas respectivas datas e locais.
46
A videodança Diálogo com a Luz foi um trabalho experimental em parceria com a bailarina Luiza Moraes e o videomaker Arion Engers, em 2011.
53
Figura 13: Organograma das etapas, com datas e locais, do processo criativo da videodança Experimento Looping.
Com exceção do “Experimento IV”, os encontros contaram com os dois
colaboradores. As etapas, acima demonstradas, podem ser agrupadas em quatro
momentos diferentes:
a) Experimentos: esta parte do processo tinha o objetivo de familiarizar os
bailarinos à proposta da pesquisa, bem como, às especificidades do
equipamento e, a partir dos exercícios e tarefas de criação, construir a
relação entre bailarinos e câmera, e principalmente, o papel do
bailarino/videasta. Tendo como base o material dos quatro primeiros
experimentos, realizou-se um encontro para assisti-los e discuti-los.
Observou-se, então, que dentro de cada experimento aconteceram diferentes
resultados estéticos da relação entre a GoPro e os bailarinos, com variadas
54
formas de configurar uma videodança. Percebeu-se, desse modo, a
necessidade de direcionar a criação do movimento, visando a produção final.
Em resposta a demanda identificada, elaborou-se o “Experimento Looping”,
que tinha como ponto de partida o fragmento criado no Experimento III – “Dos
pés a cabeça”.
b) Procedimentos de Criação: foram formuladas duas metodologias de
criação, a “Coreoedição” e a “Endoedição” para dar continuidade a
composição da coreografia dos corpos videodançantes. A Coreoedição se
propôs a editar coreografando e coreografar editando, em um paralelo com a
nomenclatura do audiovisual, de forma resumida, seria o referente ao
processo de montagem. Já a endoedição era responsável por editar o ritmo
da videodança, mas não através dos softwares de edição, e sim físicamente,
através do trabalho corporal de fraseamento de tempo, de espaço, de peso e
de fluxo. Destes procedimentos, formalizaram-se dois planos-sequência, que,
somado ao fragmento do Experimento III, constituíram o material da edição
final. Neste momento também foi testado um procedimento para inserir cortes
na coreografia, que simulassem corporalmente o fade out dos softwares de
edição, que consistia em bloquear a lente da câmera com alguma parte do
corpo do outro bailarino. Todavia, acabaram não sendo utilizados, por não
produzirem o efeito imaginado e pela falta de tempo para continuar
investigando tal possibilidade.
c) Lugares da Experiência: categorizei este momento como experimento
também, pois, em cada local ocupado, houve uma exploração das
possibilidades que o lugar oferecia. Por motivos práticos de locação, tivemos
acesso ao lugar escolhido para a gravação final somente um único dia. Por
esse motivo, os momentos de produção e locação se misturam, porque foi
preciso experimentar e adaptar às especificidades do ambiente em relação à
coreografia, além de gravar no mesmo dia.
d) Produção Final: esta fase abrange a captura das imagens, com figurino e
locação definitiva, bem como a edição do material, através do programa
Adobe Premiere CS6 para formalização da videodança Experimento Looping.
55
Este organograma é uma forma sistematizada de demonstrar a estrutura do
Experimento Looping. Entende-se que um processo criativo possui balizas e guias,
mas, como qualquer criação, gera caos, dificultando a exata divisão de categorias e
etapas. Entretanto, esses mapas, essas divisões e categorizações ajudam na busca
por uma compreensão dos caminhos e escolhas da pesquisa e na visualização geral
de algo tão complexo. Nos próximos capítulos estas etapas serão abordadas com
mais detalhes, acrescentando dimensões de análise à prática. No anexo E estão
armazenados vídeos editados para análise e como amostras de todo material
gravado durante os experimentos e procedimentos do processo, bem como
fotografias e o making of que podem ser visualizados como forma de potencializar a
leitura dos próximos capítulos.
56
3. ANÁLISES E REFLEXÕES
3.1 A RELAÇÃO COM A CÂMERA
Durante o processo de criação do Experimento Looping ocorreu a fusão de
duas ações antes distintas: coreografar e gravar. Isto se deve ao relacionamento
não convencional entre bailarinos e câmera. Como bem pontua o bailarino Douglas
Jung em entrevista, “[...] o fazer coreográfico tá muito conectado com o papel da
câmera e vice-versa” (JUNG, 2014, informação verbal). A percepção do bailarino
sobre o processo está alinhada com as ideias que balizaram este fazer artístico. Ao
se propor que a GoPro fosse não apenas operada pelos bailarinos, mas que a
criação de seu trajeto fosse coreografada, tendo como base as práticas e valores da
dança contemporânea, o papel e o entendimento desse equipamento foram
modificados, a começar pelo fato de suas técnicas de utilização não estarem mais
voltadas, diretamente, para o seu campo de origem, o audiovisual.
Na mesma medida, a presença da câmera no ateliê de criação desafia os
bailarinos à, também, adaptarem-se a ela, relacionando-se com suas
especificidades, o que gera novos saberes e maneiras de dançar. Em outras
palavras, transformou-se a ação convencional de gravar em um caminho possível
para a criação coreográfica. Desse modo, concebeu-se um entendimento não
tradicional do papel da câmera, como acrescenta o bailarino:
No trabalho com a GoPro, a relação com ela e com-de-para a câmera, ela já tá intrínseca no momento em que tu liga ela e que tu põe ela dentro da coreografia, ela já é parte da dança, é borrada essa margem de onde acaba o trabalho do vídeo e onde começa o trabalho da composição coreográfica. Acho que a via contrária é mais fácil de delimitar, mas pra gente, dentro do processo, dentro da execução daquela dança, é bem difícil de marcar esse limite, assim (JUNG, 2014, informação verbal).
Questiona-se, então, qual seria o papel da câmera nessa videodança? Qual
relação se estabeleceu entre os bailarinos e a GoPro a partir dessa nova
perspectiva? Seria puramente técnica? Seria essa relação horizontal ou vertical? Ela
pressupõe uma dominação de um pelo outro? Ao ouvir os relatos dos bailarinos
durante as entrevistas, foi possível destacar termos como: “parceira”, “entidade”,
“terceiro corpo”, conferindo uma presença à câmera que vai além de um
instrumento, para alcançar algo desejado, principalmente no que se refere à criação
57
coreográfica. Ao colocar a câmera no espaço coreográfico ela deixa de ser apenas
um equipamento, para se tornar um corpo, com qualidades, especificidades, um
peso e que em contato com os corpos do Douglas e da Fernanda, adquiriu fluxos e
trajetórias de movimento no espaço, assim como descreve a bailarina Fernanda:
Poderia comparar com, sei lá, com contato e improvisação, talvez, que às vezes tu... Às vezes não rola. Às vezes não rola, assim, quando começa a dançar com uma pessoa. Não dá, aquele corpo estranho, aquela coisa, parece que não encaixa, né, não faz muito sentido, tu não consegue, né, tudo meio trincado, assim. Mas depois, com o tempo, os dois começam a se entender um pouquinho melhor, as tarefas são bem importantes nesse sentido, né, ter tarefas pra serem cumpridas, tu consegue focar, né, mais em alguma coisa específica. Tipo, o foco é seguir uma parte do corpo e, nossa, eu acho que isso é crucial dentro da evolução dessa relação, assim. Porque senão é qualquer coisa, né, e aí como é que tu vai saber como é que tu tem que se relacionar com elas? Tem que ir aos poucos, então primeiro é só segurar, é só segurar, não tem muito mais o que fazer. Aí, aos poucos, tu vai começar a se mover junto, enfim (BOFF, 2014, informação verbal, grifo meu).
Contudo, não se trata apenas de um objeto ou corpo com o qual os bailarinos
têm que se relacionar pelo movimento dançado apenas no espaço compreendido no
ateliê. As descrições dos bailarinos quanto ao seu relacionamento com a GoPro e
sua estrutura metálica, no que tange as questões corporais cinestésicas, poderia
conduzir para o entendimento, proposto por Lepecki (2012), de devir-coisa,
colocando-os em um lugar de não possessão entre si e libertação de seu valor
enquanto mercadoria no processo de subjetivação. No entanto, não é possível
deixar de lado a importância e a influência da imagem capturada pela câmera no
decorrer do processo, guiando e direcionando a criação coreográfica. Nesse novo
espaço recortado por seus enquadramentos e pelas dinâmicas de sua condução, a
GoPro é, sim, um dispositivo e nunca houve o intuito ou o interesse de libertá-la de
sua funcionalidade, pois, a gravação de um videodança sempre esteve entre os
objetivos desse processo.
Para se pensar mais a fundo sobre este assunto, mostra-se necessário visitar
o conceito de Giorgio Agamben (2009), utilizado por Lepecki (2012) para descrever
um dispositivo. Segundo Agamben (2009, p. 38) dispositivo é “qualquer coisa que
tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar,
modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos
dos seres viventes”. Para desenvolver o tema, o autor traz as definições dos
dicionários populares franceses, a origem do termo e a concepção a partir de Michel
58
Foucault. Nos dicionários franceses, Agamben (2009, p. 34), deflagra três
significados, que, segundo ele, de algum modo estão presentes no uso
foucaultiano47. São eles:
a) Jurídico escrito: “Isto é, a parte da sentença (ou de uma lei) que decide ou
dispõe”. (AGAMBEN, 2009, p.38);
b) Tecnológico: modo de organização de uma máquina ou mecanismo, ou o
próprio mecanismo em si.
c) Militar: meios dispostos em conformidade com um plano.
Para este estudo, interessa pensar sobre o significado tecnológico, pois a
câmera é, antes de tudo, uma máquina e para Philippe Dubois (2004), uma
“máquina de imagem”. Conforme o autor:
Todas essas “máquinas de imagem” pressupõem (ao menos) um dispositivo que institua uma esfera “tecnológica” necessária a constituição da imagem: uma arte do fazer que necessita, ao mesmo tempo, de instrumentos (regras, procedimentos, materiais, construções, peças) e de um funcionamento (processo, dinâmica, ação, agenciamento, jogo) (DUBOIS, 2004, p.33).
Desse modo, tanto o processo de captura, que demanda uma organização de
suas peças, em detrimento de um mecanismo, quanto às dinâmicas e
agenciamentos para a operação do equipamento, que exige uma técnica, fazem da
câmera de vídeo um dispositivo tecnológico. No caso da GoPro, a operação técnica
desse maquinário para constituição da imagem, por parte do bailarino/videasta, é
simples, restringe-se a ligar e desligar, e mesmo esta tarefa pode ser feita por
controle remoto, por outra pessoa que não ele. A câmera não possui nenhum outro
tipo de regulagem como zoom ou necessidade de estabelecer o foco, pois tudo é
feito automaticamente pela GoPro no decorrer da dança. Assim que escolhida a
opção de vídeo e a qualidade da imagem, antes de iniciar a gravação, não há mais
nada para regular. Apesar disso, no que diz respeito à coreografia envolvida em sua
movimentação para obter as imagens nos enquadramentos desejados (com
dinâmicas de afastamento, aproximação e rotação para os loopings), o trabalho
técnico, poético e intuitivo exigido era muito grande.
47
Conforme Agamben (2009, p. 28-29), embora Foucault não tenha elaborado precisamente uma definição para dispositivo, há como apontar três aspectos para uma conceituação: o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta, inscrevendo relações de poder; ele é o resultado do cruzamento de relações de poder e saber e o dispositivo é um conjunto heterogêneo, linguístico e não linguístico, sendo a rede que se estabelece entre esses elementos.
59
Não são apenas seus mecanismos de captura e geração da imagem digital
que nos faz entender a GoPro como um dispositivo. Ela foi peça motriz para os
procedimentos de criação e direcionamento coreográfico do Experimento Looping.
Para desenvolver a ideia, é interessante voltar ao estudo de Lepecki (2012), que
considera a própria coreografia como um dispositivo, pois ela possui “capacidades
de capturar, modelar e controlar gestos e comportamento” (LEPECKI, 2012). Como
o próprio autor definiu:
Disciplina que pode ser entendida precisamente como um dispositivo (ou aparato) de captura de gestos, de mobilidade, de disposição e de tipos de corpos, de intenções e de inclinações corporais, com o intuito de os colocar a serviço de espetaculares exibições de corpos em presença (e de corpos como presenças, amarrados a todo um sistema de presentificação da presença) (LEPECKI, 2012, p. 96).
No caso desta pesquisa, as imagens gravadas eram produzidas alheias ao
visor em tempo real, o que permitia uma maior liberdade criativa aos bailarinos,
mesmo que já conduzidas, de certa forma, pela memória visual e corporal,
associando as imagens aos movimentos realizados para obtê-las. Posteriormente,
os movimentos eram remodelados e reconfigurados, a partir de feedbacks advindos
da visualização dos vídeos gravados. Este procedimento foi repetido até chegar ao
que se considerava “eficaz” para a coreografia, reverberando no trajeto e na
dinâmica da câmera, bem como, nos vídeos gravados. Esta estratégia será tratada
com mais detalhes na sequência. Ou seja, a própria imagem conduziu e influenciou
nitidamente os procedimentos coreográficos e a movimentação formalizada. Era a
partir do que a GoPro registrou durante as experimentações e improvisações que a
coreoedição foi estruturada. As qualidades e a expressividade da movimentação
foram sendo configuradas tendo como base as imagens obtidas a cada repetição
dos movimentos formalizados.
Todavia, tanto Agamben (2009), quanto Lepecki (2012), não veem a relação
entre os “seres viventes”48 e os dispositivos de forma positiva. Para o primeiro autor,
os dispositivos estão dominando, cada dia mais, os indivíduos, desencadeando um
processo de “dessubjetivação”49 do sujeito, nos restando somente profaná-los, “isto
48
O autor divide o “existente” em dois grandes grupos: dos seres viventes e dos dispositivos. Como resultado da relação “corpo a corpo” entre eles, surge o sujeito, criando, assim, múltiplos processos de subjetivação (AGAMBEN, 2009, p. 41). 49
Com o crescimento ilimitado dos dispositivos atuais e, consequentemente, a proliferação dos processos de subjetivação, Agamben denuncia um processo de “dessubjetivação”, em que não há a recomposição de um novo sujeito de forma real, apenas a atribuições de números de telefone pelo
60
é, da restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado nesses”
(AGAMBEN, 2009, p. 51). Enquanto o segundo autor afirma que tanto o sujeito
como os dispositivos (objetos), são aprisionados pelo seu valor de mercado e por
sua funcionalidade, tornando-se lixo quando desvalorizados e profaná-los, nesse
sentido, seria afirmar o poder dos sujeitos sobre as coisas, o que para ele é
inaceitável. Desse modo, o autor propõe uma liberdade dos objetos e dos sujeitos
por um processo de des-possessão50, intitulada coisidade51, ou seja, “sujeitos e
objetos podem se tornar menos sujeitos e menos objetos e mais coisas” (LEPECKI,
2012, p. 98). Nesse sentido, pode-se dizer que no Experimento Looping a câmera é
menos objeto e mais corpo, para se pensar, finalmente, em dois bailarinos e uma
câmera como três corpos videodançantes e, em determinados momentos do
processo, eu, também, como corpo videodançante.
Entendida, assim, a relação entre os dispositivos e os sujeitos por meio desse
trabalho criativo, não houve o interesse nem de destituir a funcionalidade do “objeto
câmera” enquanto dispositivo, nem se almejou uma possessão fetichista da
tecnologia envolvida. Vejo a relação constituída no triângulo formando entre os
bailarinos e câmera no Experimento Looping como uma dinâmica e contínua troca
de “poder”, assim como em um diálogo. Pois, primeiramente, o bailarino propõe o
movimento a ser gravado e em torno dele se cria o movimento para gravá-lo. Neste
instante, por mais que as memórias corporais e os treinamentos se conectem às
imagens digitais, há uma liberdade criativa dos bailarinos. Há um poder nas
escolhas dos gestos, que não dizem respeito, apenas, ao que a imagem
videográfica precisa, pois ainda há a subversão da experimentação e do improviso
na busca por algo reinventivo, por outras possibilidades de construção da imagem e
do corpo, as quais possam surpreender, afastando-se das gravações tradicionais de
videodança. Em um segundo momento, os vídeos retribuem informações quanto ao
qual podem ser controlados ou, inclusive, a participação no número de uma audiência televisiva, por exemplo (AGAMBEN, 2009, p. 42-48). 50
“Chamo essa força des-possessiva e deformadora que todo objeto exerce sobre o sujeito de „coisa‟” (LEPECKI, 2012, p. 98). 51
“A „coisa‟ nos lembra que os organismos vivos, o inorgânico, e aquele terceiro produzido pelo seu confronto chamado „subjetividade‟, todos necessitam ser libertados da força subjugadora chamada dispositivo-mercadoria – força que esmaga a todos num mundo da vida empobrecido, ou triste, ou dócil, ou limitado, ou utilitário. E uma coisa (ou seja, a „coisidade‟ em qualquer objeto e sujeito) pode realmente nos oferecer vetores e linhas de fuga longe da soberania imperialista de dispositivos colonizadores” (LEPECKI, 2012, p.99).
61
fluxo, espaço-tempo e dinâmicas da movimentação da trajetória, para o
bailarino/videasta e para o outro bailarino.
Apoia-se, então, nas ideias de Arlindo Machado (1996, p. 9-10), de que a
humanidade e a sua liberdade não são definidas em oposição às máquinas e sim
como parte de nossa reinvenção enquanto humanos. Pois é a partir da relação com
o mundo que as técnicas, as tecnologias e as máquinas são criadas. Dessa feita,
mostrou-se muito potente questionar a forma como utilizamos a câmera na
videodança tradicionalmente. Ao tensionar a interação entre ela e os bailarinos,
reconheceu-se as diferenças, e, por isso, fugiu-se de buscar hierarquias, entre a
GoPro e os corpos dançantes. Dessa forma, contribui Machado (1996):
O artista da era das máquinas é, como o homem de ciência, um inventor de formas e procedimentos; ele recoloca permanentemente em causa as formas fixas, as finalidades programadas, a utilização rotineira, para que o padrão esteja sempre em questionamento e as finalidades sob suspeita (MACHADO, 1996, p.15).
Acredito que o poder dado à câmera, enquanto objeto, máquina, tecnologia e
dispositivo, é o conhecimento de suas especificidades e dos saberes envolvidos nos
artifícios e técnicas de manuseio, fazendo disto o cerne da busca por possibilidades
criativas para além de seu valor e função enquanto mercadoria. Na mesma medida,
o poder dado ao sujeito, bailarino/videasta, vem da consciência de que esses
saberes são apreendidos ou criados apenas a partir da relação de experiência e
percepção subjetiva e objetiva entre o sujeito e a câmera. Contribuindo para essa
ideia, o bailarino Douglas conclui:
Então, eu acho que o lance da relação com a câmera é muito do experimentar e do se manter curioso, do deixar que a proposta e o resultado da proposta continuem mudando, continuem se alterando, continuem se retroalimentando, continuem se fazendo mútuas perguntas e diferentes perguntas todas as vezes (JUNG, 2014, informação verbal).
Sendo assim, foi a partir das minhas percepções e das percepções dos
bailarinos, em seus relatos e ações, no decorrer dos experimentos, que pude
observar alguns momentos nevrálgicos para o estabelecimento do relacionamento
de parceria, troca e de forma não hierárquica ou de distanciamento entre o
equipamento e os bailarinos. Nessas ocasiões, inclusive, questionou-se padrões e
se colocou em suspensão as finalidades do audiovisual e da dança na construção
da videodança. Tais momentos serão apontados e analisados a seguir.
62
3.1.1 A potência de deslizar
Em todo relacionamento com pretensões de se estabelecer laços mais
profundos e duradouros, há possibilidade de se prever um momento de namoro. Em
senso comum, esse estágio se caracteriza por uma diminuição progressiva da
“cegueira” causada pela paixão, que se mostra mais refém de ações hormonais do
que de uma construção racional. Trata-se de conhecer a outra pessoa, suas
características que nos agradam ou não. Em paralelo com os primeiros
experimentos, observo que se tratou exatamente de um namoro entre a GoPro, a
Fernanda, o Douglas e eu (tanto como parceira de ateliê, quanto como na
materialização da proposta da pesquisa). Pois como colocou a bailarina Fernanda,
“primeiro é só segurar, é só segurar, não tem muito mais o que fazer. Aí, aos
poucos, tu vai começar a se mover junto” (BOFF, 2014, informação verbal).
Sendo assim, para conduzir esse “namoro” optei, após apresentar a câmera e
suas possíveis regulagens, em propor tarefas simples e bem determinadas. Na
ocasião da elaboração dos experimentos, não tinha consciência da referência
teórica e artística dos procedimentos de tarefas, criado por Anna Halprin, mas
certamente eles já se encontravam presentes na minha prática enquanto artista,
repassados pela tradição verbal dos muitos professores que fizeram parte da minha
formação. Desse modo, para construção desta reflexão, retomo esses conceitos,
dando a devida importância às suas origens.
Anna Halprin foi uma dançarina e coreógrafa americana muito importante
para a história da dança e da performance da metade do século XX. Influenciou
muitos trabalhos e artistas da época e posteriores. Foi ela que trouxe o termo
“tarefa” em 195752, trazendo os movimentos cotidianos para o campo da dança A
respeito do procedimento proposto por Halprin, em sua fase inicial, Rossini (2011),
afirma que “as tarefas não implicando em criação de algo novo, desconhecido,
colaboravam para que o foco do trabalho estivesse, em muitas oportunidades,
voltado para a organização do movimento e do esforço empregado” (ROSSINI,
2011, p. 39). Foi exatamente com esse intuito que as primeiras tarefas como
caminhar, correr, pular e rolar, com e sem a câmera, por exemplo, foram realizadas.
Visto que era preciso segurar essa “estranha” parceira, sentir seu peso, observar e
52
Texto e informações retiradas da pesquisa de Elcio Gimenez Rossini, “Tarefas: uma estratégia para criação de performances”, 2011, p.37-56.
63
percepcionar o que e como ela vê e constrói o espaço dançado conjuntamente e
assim também perceber o seu próprio corpo, peso e visão e construção do espaço.
Laurence Louppe (2012) contribui pontuando que:
As práticas de observação do corpo em estúdio desenvolvem-se frequentemente a dois, e o corpo do outro, nos seus suportes, nos seus contatos ou mesmo na sua observação táctil ou visual, revela-me o meu próprio corpo. Essa busca raramente passará pela imagem ou pela figura anatómica, mas, sobretudo, pelas sensações e intensidades (LOUPPE, 2012, p. 71).
No caso deste trabalho, a investigação passa também pela imagem, tendo ela
grande importância, todavia, não a isolamos das outras fontes de percepção
corporal, espacial e temporal (se há a necessidade de separar tais fatores).
Principalmente, tendo em vista que os corpos videodançantes constituem a origem
de toda exploração e construção desta videodança. Essa ideia fica clara no relato
das percepções do bailarino Douglas, num primeiro momento:
Eu entendo que eu preciso antever o que a câmera vai ver, mas a câmera não tá perto do meu olho, então eu preciso desenvolver habilidades de foco, de observação, tanto com os meus olhos, quanto com outras áreas do meu corpo, pra poder manipular a câmera e fazer a tomada precisa que o trabalho tá pedindo (JUNG, 2014, informação verbal).
E, num segundo momento:
A distribuição do meu peso e a distribuição do meu peso segurando uma câmera, em movimento é outra, logo eu vou ter que me relacionar com essa câmera e com o meu próprio corpo ao mesmo tempo, de uma outra maneira. E se eu ainda colocar na roda o fato de que essa relação entre o meu peso e o peso da câmera vão gerar uma qualidade diferente de imagem, quão mais for refinado o meu saber corporal com relação a isso, aí tem um pano pra manga pra ficar trabalhando nisso por anos, né, porque eu sempre vou descobrir uma maneira diferente, uma maneira de saltar, me locomover sem que essa ação prejudique a qualidade da imagem que tá sendo captada, como é que eu posso fazer isso de diferentes maneiras? (JUNG, 2014, informação verbal).
Diante dessas falas, percebe-se o momento de busca por uma técnica,
enquanto “uma arte do fazer humano” (DUBOIS, 2004, p. 33), não como algo
recebido de fora, mas constituído a partir do próprio fazer. Não há o interesse de
moldar um treinamento específico, e, sim, buscar como cada corpo resolve e
constrói as equações dessas tarefas, que servem de pano de fundo para o
estabelecimento das relações. O “como”, “how” também se mostrou o mais potente
64
para a exploração e criação nos procedimentos de Anna Halprin, e a esse respeito
Rossini (2011) discorre:
A tarefa constitui uma estrutura, um esqueleto, funciona como um elemento de sustentação definido e sólido, mas, ao mesmo tempo, incompleto. A determinação exata de uma ou mais ações não impede que o performer crie variações relativas às qualidades do movimento, tais como ritmo, tonicidade, velocidade e duração, por exemplo. Em decorrência das decisões que ele deve tomar, no momento de executar a tarefa, essa estrutura se torna única. As tarefas não exigem um corpo capaz de realizar proezas que superem limites e, tampouco, exigem uma técnica corporal específica. As tarefas não moldam os corpos, são os corpos que as moldam, elas adaptam-se às condições físicas do sujeito que as realiza (ROSSINI, 2011, p. 44).
Com base nos experimentos I, II e III, com suas respectivas tarefas descritas
no Anexo A, chegaram-se a alguns saberes a partir dos corpos videodançantes e os
desejos coreográficos envolvidos. “Segurar” (se segurar), como afirmou a bailarina
Fernanda53, é o primeiro passo do relacionamento entre bailarinos e a GoPro, nada
mais justo do que expor as formas encontradas de fazê-lo. Chegaram-se as
seguintes possibilidades destacadas:
a) Mão em gancho: mais utilizado para movimentações onde a câmera
percorreria trajetórias no nível baixo, sem precisar que o bailarino/videasta
também estivesse deitado no solo, facilitando os deslocamentos em
velocidade;
Figura 14: Foto ilustrativa da posição “Mão em gancho”. Crédito da foto: Julia Lüdke.
53
“Primeiro é só segurar, é só segurar, não tem muito mais o que fazer. Aí, aos poucos, tu vai começar a se mover junto” (BOFF, 2014, p. informação verbal).
65
b) Com duas mãos: permitia uma maior estabilidade da câmera e consequentemente
da imagem. Também possibilitava uma precisão maior para as dinâmicas e os fluxos
de movimento contidos. Manipulava-se a GoPro e sua estrutura semelhante a um
volante;
Figura 15: Foto ilustrativa da posição “Com duas mãos”. Crédito da foto: Julia Lüdke.
c) Com uma mão na haste: utilizada mais em momentos de transferência da
câmera de um bailarino para o outro, possibilitava a distância do equipamento
em relação ao centro do corpo e liberava outras partes da estrutura para o
outro bailarino, porém significava maior instabilidade da imagem;
Figura 16: Foto ilustrativa da posição “com uma mão na haste”. Crédito da foto: Julia Lüdke.
d) Com uma mão na base: permitia o afastamento da câmera em relação ao
centro do corpo do bailarino, além de liberar a outra mão para possíveis
66
apoios e idas ao chão, mantendo, no entanto, uma maior estabilidade em
comparação com a opção anterior.
Figura 17: Foto ilustrativa da posição “Com uma mão na base”. Crédito da foto: Julia Lüdke.
É claro que estas são as maneiras mais marcantes e usadas, havendo
variações conforme as necessidades de execução. Ainda se tentou um contato dos
pés entre as hastes em alguns rolamentos, mas a estrutura não possibilitava garras
eficazes para os dedos dos pés, sendo assim, essa posição foi descartada para este
processo. Outra característica observada foi o formato ovalado da estrutura de metal
que impossibilitava um ponto de apoio estável da GoPro no chão ou sobre qualquer
superfície plana. Em virtude dessa característica, não houve em nenhum momento o
afastamento entre câmera e bailarino/videasta, sem que o outro bailarino assumisse
o papel. Para futuras experimentações, seria interessante desenvolver diferentes
designs de estruturas que possam promover ainda mais formas de relacionamento e
de criação.
Outro aspecto importante observado foi a importância entre o movimento das
articulações do pulso, cotovelos e ombros na angulação da lente e nos níveis de
enquadramento. Podendo, com isso, comparar-se às diversas possibilidades de
observação do espaço que se obtém a partir do movimento do globo ocular, do
pescoço, da coluna e das dobras da perna. Portanto, investiu-se em uma cuidadosa
busca e um refinamento de como compor a trajetória da câmera, desde os micro até
os macro movimentos e de como eles reverberaram na imagem e vice-versa.
A relação entre os corpos videodançantes, no que diz respeito ao peso, se
baseou em um fluxo contido, isto é, “em tensilidade acrescida, o peso terá um
67
aspecto de fluído contínuo. Na sucessão de acções do effort-shape54, Laban
personifica-o pela acção de <<deslizar>>.” (LOUPPE, 2012, p.107). A “tensilidade
acrescida” demonstra um aumento do tônus muscular, produzindo movimentos
conduzidos. Em momento algum a câmera realizou uma queda livre ou o próprio
bailarino/videasta cedeu seu peso à ação da gravidade, abandonando-se ao solo, a
uma parede ou ao outro bailarino. Segundo o próprio Laban (1978):
Deslizar é, essencialmente, um movimento sustentado e direto, com um toque leve. Ao deslizarem, o homem e sua divindade envolvem-se na experiência da infinitude do tempo e da cessação do peso da gravidade, embora estejam ambos atentos para a clareza dimensional de seus movimentos (LABAN, 1978, p. 44).
Pelo deslizamento se imprimiu uma dinâmica de recorte do espaço com
“cortes cirúrgicos”, limpos e bem demarcados. Na continuidade de sua ideia, Laban
(1978, p. 44), remete o movimento de deslizar à forma encontrada pelos homens de
representar os deuses, os poderes sobre-humanos. Não se configura nesta
pesquisa, porém, o intuito de remeter a câmera e a tecnologia ao poder de realizar
ações não humanas, pois é através do movimento dos bailarinos que esta dinâmica
se estabelece. O ato de deslizar é uma resultante das diferentes técnicas de
manuseio e de contato com a câmera, explicitadas anteriormente, que apontam para
a criação de uma geografia de espaço, tempo, peso e fluxo do movimento em íntima
relação com a mesma.
Entretanto, tal ação, como descreve Laban (1978), pode conferir ao
movimento e ao espectador certa sensação de “onipresença” e “onisciência”, que, a
princípio, é atribuída aos deuses, que deslizam sobre o universo, e esta era uma
sensação que o Experimento Looping desejava para o público. Ao longo das tarefas,
improvisações, criações e composições, a escolha das sequências coreográficas, os
trajetos da GoPro e suas dinâmicas, foram realizadas, principalmente, para alcançar
a sensação de participação ao espectador da coreografia. Reforço que não se
pretendia criar um simbolismo divino para a câmera e para a videodança em geral,
mas que se constituiu uma investigação de movimento que se interessou por uma
54
Sistema effort/shape é um método de descrição das mudanças das qualidades do movimento em termos de modos de manifestação e em termos de modos de adaptação do corpo no espaço. Este sistema permite a análise e a anotação da dinâmica expressiva do movimento. Esta anotação é realizada a partir de diagramas que permitem especificar: 1 - a qualidade do movimento = e o esforço/effort; 2 - a configuração que o movimento toma no espaço tridimensional = forma/shape (RENGEL, 2001, p. 115).
68
presença ativa de quem assiste, e que se mostrou potencializada pela ação de
deslizar.
3.1.2 O duplo controle
O Experimento II, intitulado “Duplo Controle”, seguiu a mesma estrutura de
tarefas abordada anteriormente, com ações bem claras e definidas a serem
exploradas e que estão descritas com maior importância de detalhes no Anexo A.
Descrevendo de forma sucinta, foi pedido a um dos bailarinos que guiasse seu
parceiro pelo espaço do ateliê (sala 209, Usina do Gasômetro). O outro bailarino
estava inicialmente de olhos fechados e só os abria ao comando de seu guia; na
ocasião, o sinal de comando, tanto para abrir como para fechar, era um aperto no
ombro, braço ou mão. A Fernanda foi a primeira a guiar e o Douglas a ser
conduzido. O que se observou é que a bailarina conduzia seu parceiro, caminhando
pela sala, da mesma forma que o faria se estivesse carregando uma câmera. Após
encontrar a local exato do ateliê, posicionava o colega, com perícia, ajustando sua
altura (nível) e regulando, minunciosamente, o ângulo de inclinação da cabeça, bem
como sua direção. Depois de construído o quadro de gravação, dava o sinal para
que o Douglas abrisse os olhos. Ao finalizar seu tempo de “gravação” daquele
plano55, dava o sinal para que ele os fechasse novamente, seguia para o próximo
lugar escolhido e repetia o processo.
Em um drástico oposto, Douglas, ao conduzi-la, estando ela de olhos
fechados, o fez de forma contínua e dinâmica. Eles dançavam juntos, explorando
níveis, velocidades, corridas, enquanto, simultaneamente, fornecia os sinais para
que abrisse e fechasse os olhos. Enquanto a Fernanda demonstrou grande
preocupação em compor os quadros, escolhendo seu local e ângulo com cuidado e
planejamento para formar uma linha de imagens na memória visual de seu colega, o
Douglas se preocupou mais com o movimento em si, criando uma linha de memórias
que priorizavam, também, outras fontes sensoriais que não apenas a visão do
espaço e sua arquitetura. Deste modo, surgiram questões sobre o papel do bailarino
em relação com a câmera e vice-versa. O bailarino/videasta estaria dançando ou
55
“[...] um plano é qualquer segmento de filme compreendido entre duas mudanças de plano” (AUMONT & MARIE, 2012, p. 230).
69
gravando? O que se queria era dançar gravando ou gravar dançando? Mas o que
significa gravar? Gravar é dar importância ao enquadramento, ao foco, ao
posicionamento visual como fez a Fernanda. E dançar? Dançar, como o fez o
Douglas, trata-se de fluir em diferentes dimensionalidades planas, dando ênfase ao
corpo em movimento. E o desafio está em balancear todos estes elementos em uma
mesma ação, a de videodançar.
Mais do que uma busca por criar ou explorar formas e procedimentos, este
experimento trouxe à luz o discurso envolvido na pesquisa sobre a câmera. No
relato da Fernanda está explicitada a importância deste momento para a
continuidade da pesquisa e para a forma com que os próximos experimentos seriam
encarados:
Depois também de entender, de estar nos dois espaços, do bailarino e do videomaker
56 e depois de entender a câmera em si como um parceiro, né,
de dança, foram alguns processos que foram aos poucos se fazendo entender, né. De cara o que eu vi foi isso: “tá, é, eu vou dançar e filmar, as duas coisas” e aí depois que a gente começou a trabalhar que eu comecei a entender essa ideia de “tá, não, mas a câmera também dança, ela também tá junto”(BOFF, 2014, informação verbal).
E eu fui bem quadradinha, assim, no exercício, tipo... Foi nesse exercício, assim, que eu entendi “ah, tá, não é só isso, é muito mais do que isso”, e aí aos poucos que eu me senti, foi me dando um pouquinho mais de liberdade e vendo, né, que é uma característica bastante da GoPro também, né (BOFF, 2014, informação verbal).
Houve uma dependência relacional entre os corpos videodançantes quanto à
criação e execução da coreografia, mas, ao mesmo tempo, um descolamento, um
entendimento de que a GoPro não era um equipamento subjugado ao bailarino
enquanto um instrumento. Pelo contrário, ela era instrumento e fonte de troca de
conhecimentos técnicos, intuições e sensações, tanto quanto eles próprios. Porque,
ao pensar a câmera subserviente aos desejos e regulagens de seu operador,
pensasse, igualmente, em seu operador submisso a fornecer os controles que a
máquina precisasse. Sendo assim, não se tratou de um único controle, mas sim de
um duplo controle em relação dinâmica de esforços entre a câmera e o
bailarino/videasta.
Com este discurso reconhecido, houve um grande desafio advindo do novo
papel de bailarino/videasta: o de não priorizar apenas o trajeto e a dinâmica da
56
O termo videomaker foi substituído, posteriormente à entrevista, por videasta, por questões conceituais.
70
câmera na construção da imagem em detrimento do próprio corpo, com sua
organização e seu caminho do movimento cênico, que também é dançado e não
apenas como operação do equipamento. Quanto a essa dificuldade a bailarina
Fernanda relata:
Porque, quando tu tá com a câmera, tu dá muito mais atenção a ela do que ao teu próprio corpo, então acho que uma das minhas maiores dificuldades foi isso, assim, que eu acho que foi uma coisa que eu tentei trabalhar mais, não perder o olhar da câmera que seria o melhor, o melhor ângulo, o melhor olhar dela, né. [...]Mas como que eu vou dar foco nisso, mas pensando no meu corpo ao mesmo tempo? Aí que eu acho que foi esse foi esse o maior problema: de eu não encontrar onde tava o meu corpo no melhor ângulo da câmera, ou eu estar com o melhor ângulo da câmera, mas eu bater com meu joelho no chão, porque não tô cuidando, ou estar meio torta assim, ou virar a mão e daí daqui a pouco não consigo mais virar a câmera (BOFF, 2014, informação verbal).
Por mais que a movimentação criada e realizada pelo bailarino/videasta não
tivesse como proposta a investigação de movimentos virtuosos e de estilos
específicos, mas sim de qualidades de caminhadas e corridas nos níveis alto, médio
e baixo, rolamentos e saltos, foi preciso uma reorganização corporal. Isto se deu,
principalmente, em virtude da indisponibilidade de um ou dos dois braços, por esse
ou aquele estar carregando a câmera, o que influenciou no equilíbrio, nos apoios e
nas alavancas. Sendo assim, tomou-se consciência de que, tão importante quanto o
refinamento da imagem da videodança, é o trabalho corporal e estético não só de
quem dança frente à câmera, mas de quem a conduz; levando, então, à busca pela
equalização dos dois ambientes construídos na coreografia, o físico, onde se veem
bailarinos e GoPro em ação e o ambiente digital, o qual é visto e construído pela
lente da câmera.
3.1.3 Um desvio para reafirmar o caminho da criação
Por mais que se tenha optado por não dar continuidade ao Experimento IV,
Corpo Cyborg, ele trouxe uma forma completamente diferente de relação entre o
bailarino e a GoPro, que não se pode deixar de expor. Uma de suas propostas
consistia em acoplar a câmera ao peito da Fernanda, através de um colete,
representado na figura abaixo e, assim, explorar movimentações de autogravação.
Estando o equipamento acoplado ao corpo, a relação se torna tão íntima e
71
simbiótica, que não há um “entre”, isto é, não há uma diferenciação, um
reconhecimento de seus corpos e características como coisas distintas. Ao invés,
tem-se uma interferência direta no corpo dançante, constituindo um novo corpo,
tanto no espaço físico, como no digital.
Figura 18: Foto ilustrativa do colete usado para acoplar a câmera ao peito da bailarina no
Experimento IV.
Um caminho para se entender essa outra relação possível é o conceito de
prótese. Segundo Clarke (2004, p. 208, tradução minha), no início do século XVIII, o
termo “prosthesis” surgiu para conceituar partes artificiais do corpo. Ainda conforme
a autora, etimologicamente a palavra deriva do grego “prosthesis” (adição), que, por
sua vez, vem de “prostihenai” (adicionar a), que é composto por pros (antes,
adjunto) e tithenai (colocar)57. A prótese, principalmente nas áreas médicas, é
sugerida como substituição para um membro ou uma válvula, por exemplo. Isto não
condiz, necessariamente, ao seu uso nas artes. Nesse sentido, a ideia de “revestir-
se de tecnologia” (CLARKE, 2004, p. 208, tradução minha)58, advinda da origem do
termo, usado por Clarke para estudar o uso de próteses nas performances de
57
“At the beginning of the eighteenth century the word „prosthesis‟ came to mean na artificial body part. The term derived from the Greek, prosthesis („addition‟), from prostithenai („add to‟), which was composite of pros- („to‟) and tithenai („to put, or place‟)” (CLARK, 2004, p. 208). 58
“This literal putting on of technology [...]” (CLARK, 2004, p. 208).
72
Stelarc59, contribui para o entendimento do tipo de inter-relação entre a tecnologia do
vídeo e o corpo dançante neste experimento, por mais que esta pesquisa se
diferencie em muitos aspectos do trabalho do artista em referência. Pois, “a
fisicalidade e a imperiosa presença da adição protética traz a ênfase de volta à
experiência corporal e o design do corpo, e às questões que se relacionam com a
proximidade de si e do „outro‟” 60 (CLARKE, 2004, p. 208)
Nesse ensejo, observou-se a deformação da estrutura anatômica da bailarina,
com seus membros desproporcionalmente longos e a possiblidade de reinventar,
recriar o corpo que dança, assim como percebê-lo e acessá-lo de forma diferente.
Na mesma linha de pensamento, Miranda (2000, p. 138) chama esse processo de
ampliação da “linguagem dos ossos, músculos, órgãos, fluxos e dinâmicas”
(MIRANDA, 2000), em termos coreográficos, de “corpos impossíveis”, afirmando
que:
A excitação do antinatural é reafirmada aqui, de uma maneira bastante semelhante ao prazer e estímulo estético derivado das técnicas virtuosísticas do balé clássico. Este corpo antigravitacional, multifacetado, expandido, hipersensível, desaparecido, do avesso, nos convida a uma nova definição do “artificial” e do “extra/ordinário” e nos convida também a novos desejos em relação ao corpo performático (MIRANDA, 2000, p. 138).
Muitos seriam os procedimentos e as possibilidades criativas a surgir dessa
linha de relação entre o artista e a tecnologia, no caso a GoPro, que favorecem por
seu formato e por seus acessórios. Ainda que esta “excitação”, citada pela autora,
tenha circulado pelos interesses desta pesquisa, em uma decisão coletiva com os
bailarinos, decidiu-se que não era por este viés que se queria buscar estes corpos
antigravitacionais, expandidos, desaparecidos. Ao invés de servir como um caminho
para investigação, o Experimento IV, serviu como um desvio para reafirmar a
escolha poética de criação e relação com a câmera. Tão importante quanto os
caminhos escolhidos, para entender e refletir sobre um fazer criativo, são os
caminhos abandonados. Pois “diante de cada obra de arte importante, lembre-se de
59
“Stelarc is a performance artist who has visually probed and acoustically amplified his body. He has made three films of the inside of his body. Between 1976-1988 he completed 25 body suspension performances with hooks into the skin. He has used medical instruments, prosthetics, robotics, Virtual Reality systems, the Internet and biotechnology to explore alternate, intimate and involuntary interfaces with the body.” Disponível em: < http://stelarc.org/?catID=20239> Último acesso em: 11 de junho de 2015. 60
“However, the physicality and overriding presence of the prosthetic addition bring the emphasis back to bodly experience and to body design, and to questions that relate to the proximity of self and „other‟” (CLARKE, 2004, p. 208).
73
que talvez outra, mais importante ainda, tenha tido que ser abandonada” (KLEE,
1990, p. 190 apud SALLES, 2014, p. 35).
3.2 PROCEDIMENTOS
Dando seguimento à pesquisa, começa-se a voltar às atenções para a análise
das escolhas dos procedimentos de criação e de formalização do trabalho artístico
Experimento Looping. Até então, os experimentos e suas tarefas giravam em torno
da exploração e construção de possibilidades para o relacionamento entre os corpos
videodançantes. Não havia, a priori, o compromisso de criar e produzir tendo em
vista a obra. Mesmo porque, utilizando as palavras de Laurence Louppe (2012)
sobre o início de uma obra coreográfica:
Dir-me-ão: o movimento é o meio, o corpo é o instrumento. Que movimento? Que corpo? Vimos que nem o movimento nem o corpo existem a priori, antes das cinesias que as fundam. O trabalho do coreógrafo é inventar o corpo (ou, no mínimo, eleger nos corpos já trabalhados e conscientes uma corporeidade em ressonância com o seu projeto) (LOUPPE, 2012, p. 257-258).
Sendo assim, o que se almejou, intensamente, nos primeiros experimentos,
através das tarefas, foi buscar esta corporeidade ressonante com o projeto. Não que
esta busca não tenha sido contínua no decorrer de todo o processo. Todavia, a
amplitude de sua exploração foi sendo restringida e direcionada, cada vez mais, à
medida que as escolhas dos procedimentos foram sendo tomadas. E é sobre as
escolhas poéticas que recaem as atenções neste momento, tendo como base a
definição de Louppe (2012, p. 27), que afirma que a poética “revela-nos o caminho
seguido pelo artista para chegar ao limiar onde o acto artístico se oferece à
percepção, o ponto onde a nossa consciência a descobre e começa a vibrar com
ela”.
Nesse sentido, torna-se compreensível que se formulem as perguntas: de que
trata este trabalho artístico? Qual o tema por trás da criação? E, para respondê-las,
cito Doris Humphrey (1991, apud LOUPPE, 2012, p. 257): “pouco importa o tema; a
primeira coisa a ter em consideração resume-se numa só palavra: acto.” Portanto,
foram ao longo das ações, no próprio movimento que se acessaram as chaves as
quais guiaram os procedimentos, ou seja, que se revelaram os desejos e as
importâncias dos elementos envolvidos na criação e concretização da videodança.
74
Na mesma linha de pensamento de Louppe (2012), o filósofo José Gil (2002,
p. 63) conceitua coreografia como “um conjunto de movimentos que possui um nexo
próprio”. O nexo, por sua vez, “não é ditado nem pela sua finalidade nem pela sua
expressividade” (Id. Ibid.). Isto é, não é preciso, necessariamente, buscar sentido
para a dança (para a coreografia) externamente à própria ação de dançar. Para
pontuar a ideia, o autor cita a bela fala de Cunningham (1998) a esse respeito:
Se um bailarino dança ─ o que não é a mesma coisa que ter teorias sobre a dança ou sobre o desejo de dançar ou sobre os ensaios que se fazem para dançar ou sobre as recordações deixadas no corpo pela dança de algum outro ─, mas se um bailarino dança, tudo já está presente. O sentido presente, se é isso que queremos. É como este apartamento onde vivo; olho em toda a minha volta, de manhã, e pergunto-me, o que é que tudo isto significa? Significa: isto é onde eu vivo. Quando danço, significa: isto é o que estou fazendo. Uma coisa que é justamente a coisa que aqui está (CUNNINGHAM in HARRIS & VAUGHAN, 1998, p. 97, apud GIL, 2002, p. 63).
Consequentemente, conforme Gil (2002) seria vão pensar que o nexo de uma
criação em dança pudesse ser “traduzido” completamente para linguagem e
pensamentos expressos em palavras. Ou seja, por mais que a linguagem verbal e
escrita tenha permeado todo processo, inclusive fazendo parte de sua construção, a
própria criação, foco desta analise, bem como o nexo, se constitui em outro suporte:
no movimento, na estruturação corporal dos bailarinos. Sendo assim, torna-se mais
potente tentar criar na escrita uma forma de absorver, de aproximar e de
compreender a experiência, criando pontes entre esses dois fazeres, o dançar e o
escrever. Não se trata, no entanto de diminuir a linguagem verbal ou escrita em
detrimento da arte da dança ou vice-versa, ou ainda desacreditar e afastar as pontes
já construídas entre esses fazeres, mas apenas entender de que se trata de
caminhos diferentes, onde não há correlativos absolutos entre palavras e
movimentos, por exemplo. Assim, resta a quem se dedica a estudar e refletir sobre o
fazer artístico da dança duas possibilidades, conforme o autor:
[...] não pretendermos dizer tudo desse nexo ─ não porque ele encerre algum núcleo de sentido inefável, mas porque se diz de modo diferente da linguagem; ou fazer da constatação cunninghamiana (o sentido da dança é o próprio ato de dançar), o ponto de partida de uma aproximação da dança o mais próximo possível dos restos concretos do bailarino. Não procurando extrair-lhe o sentido, mas desposando o mais estreitamente possível o movimento do gesto corporal (GIL, 2002, p. 63-64).
É em conformidade com estes teóricos e artistas, os quais prepararam esse
“terreno” de entendimentos, que estabeleço esta reflexão. Na tentativa de aproximar-
75
se do ato da dança, da videodança, o mais estreito possível com os “restos
concretos dos bailarinos” (Ibid.), inclusive para observar a estruturação desse nexo
que integra este processo em uma obra.
Entende-se que não há como traduzir a ação de videodançar, mas há como
“dizer diferente”. Primeiramente, é preciso reafirmar que não existe “uma narrativa
que <<organiza do exterior>> as componentes internas de um movimento dançado”
(LOUPPE, 2012, 257)61, deste modo, será por meio da descrição e da
argumentação dos procedimentos criados e adotados que pretende-se abordar o
processo de criação do trabalho Experimento Looping.
Surge, então, um importante termo, que se torna guia e aliado desta análise:
o procedimento. Segundo o Dicionário Priberam62, tanto o termo “processo”, como
“procedimento”, vem do latim “procedere” que significa “avançar, ir para frente”,
pode-se dizer então que o processo é a ação de seguir avante e o procedimento
estaria voltado para o “como” se avança, ou seja, os métodos, as maneiras e os
modos. Este “avançar” pressupõe a construção de um caminho, ao qual se pretende
acessar por meio de uma escrita crítica-reflexiva. Conforme Salles (2014, p. 66), na
criação, o método deve ser observado de uma perspectiva diferente, como
procedimentos lógicos de investigação, responsáveis pelo desenvolvimento da obra.
Entender o método por este viés, segundo a autora, é certamente mais
enriquecedor para as descobertas quanto ao ato criador. Para ela, os procedimentos
são elaborados e realizados durante todo o processo, no entanto, não é uma busca,
necessariamente consciente. Tendo sido a videodança, Experimento Looping,
realizada em um contexto acadêmico de pesquisa, é de interesse que os
procedimentos envolvidos em seu desenvolvimento sejam explicitados, que se
tornem conscientes, gerando saberes e novas questões. Para tal, irei descrever os
“procedimentos lógicos de investigação” (SALLES, 2014, p. 66), aproximando as
falas dos bailarinos em entrevista a respeito dessa experiência, as minhas próprias
percepções do processo, juntamente com a compreensão de técnicas e qualidades
61
“[...] seguramente, não existe um <<argumento>>, como no ballet clássico, nem, como afirma Michèle Febvre, uma narrativa que <<organiza do exterior>> as componentes internas de um movimento dançado” (LOUPPE, 2012, p. 257). 62
Disponível em: < http://www.priberam.pt/dlpo/procedimento> Último acesso em: 11 de junho de 2015.
76
de movimento e as produções acadêmicas que contribuem para o entendimento
desses procedimentos.
3.2.1 Experimento III – Dos pés à cabeça
Este experimento foi o único em que atuei, também, como bailarina/criadora,
além de proponente e condutora da tarefa. Portanto, as memórias acessadas
passam também pelo meu corpo enquanto corpo videodançante. Ou seja, não
apenas por sua observação, mas pela vivência. Desse modo, utilizando o termo
criado pela antropóloga Eunice Durham (1986), pode-se caracterizar por uma
“participação observante63”, pois faço parte do grupo pesquisado e neste momento
participo da ação, mesmo assim, com o esforço consciente de um pesquisador.
Justifico minha escolha pela necessidade de vivenciar em meu próprio corpo o que
vinha propondo aos bailarinos, pois a memória corporal da experiência enriquece
meu entendimento desta prática, além de me empoderar de minhas próprias
propostas e desejos artísticos.
O experimento III se dividiu em dois momentos diferentes. O primeiro é
constituído pela tarefa elaborada previamente e proposta aos bailarinos. O segundo
momento se trata do improviso semiestruturado, que se utilizou do material criado no
decorrer da tarefa como referência, sendo, desse modo, uma continuidade do
primeiro momento.
3.2.1.1 A tarefa
A tarefa pode ser descrita em três ações diferentes:
a) Ação 1: Criar uma sequência de cinco movimentos, com a tarefa de sair do
nível alto (em pé) e ir para o nível baixo (deitado). O número de movimentos é
uma média para o tamanho da sequência, pois, compreende-se que não há
63
Termo proposto pela antropóloga Eunice R. Durham, para descrever análises nas quais o próprio pesquisador está inserido como sujeito do um grupo pesquisado. A observação participante favorece e valoriza a subjetividade do observado, privilegiada pela participação, sem, no entanto, ser parte do grupo estudado. No caso da participação observante, o próprio observador é parte de seu objeto de estudo, que na antropologia vem munido de uma forte carga política. Para mais informações, consultar “A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspectivas” (DURHAM, 1986, p.17-37).
77
uma unidade de movimento definível, não sendo, inclusive, a intensão obtê-la,
apenas balizar a extensão da célula coreográfica. Cada bailarino, individual e
simultaneamente, desenvolveu sua sequência;
b) Ação 2: Em duplas, o bailarino/videasta deveria criar uma sequência
coreográfica (uma trajetória) para e com a câmera a partir do fragmento
criado pelo outro colega anteriormente, com a tarefa de enquadrar/focar
partes do corpo escolhidas. A ação foi elaborada em três etapas: a trajetória 1
(envolvendo a escolha de parte do corpo), a trajetória 2 (envolvendo a
escolha de outra parte do corpo diferente da primeira) e a trajetória final
(envolvendo a mescla das duas trajetórias criadas em uma);
c) Ação 3: Criadas e formalizadas as sequências coreográficas pelos pares
bailarino + bailarino/videasta, a proposta era encadeá-las em uma única
coreografia, compondo um plano-sequência64. Ou seja, coreografar o trânsito
da câmera entre os bailarinos/videasta, que na ocasião ficaram organizados
nas seguintes duplas e ordem: 1º - Fernanda (bailarina) e Douglas
(bailarino/videasta), 2º - Douglas (bailarino) e Julia (bailarina/videasta), 3º -
Julia (bailarina) e Fernanda (bailarina/videasta).
Retomando a bibliografia de Rossini (2011, p. 45) a respeito de Anna Halprin
e seus procedimentos de tarefas, acrescenta-se que “podemos entender as tarefas
de Halprin como limite e, em concomitância, como abertura. Limite que determina a
ação ou ações a serem realizadas e abertura pela qual cada corpo a realizará de
forma particular, integrando a elas suas características próprias.” Dessa feita, os
limites eram claros, ir da posição em pé para a posição deitada em uma média de
cinco movimentos. Não obstante, o “entre”, constituído do ponto inicial ao ponto final,
revela uma infinidade de possibilidades de como realizá-lo. Por exemplo, enquanto a
movimentação do Douglas era mais contínua, acelerada e com um peso-fluxo
contido, apresentando uma tensilidade muscular65 menor, a movimentação da
Fernanda era mais desacelerada, segmentada, com acentuações no fraseamento,
com um peso-fluxo contido e com uma tensilidade muscular maior. Já minhas
64
“Como o termo indica, trata-se de um plano bastante longo e articulado para representar o equivalente de uma sequência” (AUMONT & MARIR, 2012, p. 231). 65
Ver página 35, tópico letra “b”.
78
escolhas buscaram movimentos pendulares66, repetições, como um acomodar-se no
chão, com um tempo desacelerado, com peso fluxo, também contido, e com uma
tensilidade muscular menor.
Esta ênfase no “como”, tanto no que diz respeito à escolha da trajetória do
movimento, quanto no fraseamento envolvido na sua execução, que é característica
da utilização da tarefa como estratégia de criação, também é, claramente
identificada na ação 2. Ou seja, surgem as questões: qual parte do corpo dar foco?
Como acompanhar? E as respostas se tornam um meio de analisar como se
estrutura a relação criativa entre bailarinos e câmera.
Observo que as escolhas não foram aleatórias, por mais que não tivesse um
critério instituído pela tarefa. Percebe-se que o foco era dado às partes que
“comandavam” ou “direcionavam” o caminho de descida do corpo do bailarino da
posição em pé para a posição deitada. Tomo como exemplo o experimento quando
realizado pela Fernanda como bailarina e o Douglas como bailarino/videasta. O
primeiro movimento feito pela Fernanda foi uma mudança brusca de olhar, com a
rotação da cabeça no eixo longitudinal, do centro para o lado esquerdo, seguido de
um arqueamento lento e contínuo do tronco lateralmente, que foi iniciado por uma
circundução do ombro direito. Em um movimento rápido e direto, suspende a perna
direita esticada no ar, afastando-a da perna de base esquerda. A partir desse
momento, o pé conduz a torção de todo o corpo, desenhando um círculo no solo, ao
redor do próprio corpo, formando um espiral até a posição sentada no chão,
passando, respectivamente, pelo apoio dos joelhos, coxas e quadril. Para levar o
tronco à posição deitada, o caminho da ação é comandado pela cabeça e pelos
braços, que desenham um semicírculo no chão, acomodando o corpo.
Fica clara a importância dada à cabeça e ao pé na condução do trajeto
“esculpido67” pelo corpo da Fernanda no espaço, do nível alto ao nível baixo. Não
sendo por acaso a escolha do Douglas em utilizá-los como referência para
desenvolver a sua movimentação e a da câmera. Portanto, neste experimento, a
construção da trajetória da câmera está diretamente ligada à “energia” que circula
66
Os movimentos pendulares se caracterizam por usar a articulação como ponto fixo, central, e através do peso da parte do corpo em questão, impulsionado por uma força, realiza um movimento oscilatório em torno do ponto fixo. 67
“Trata-se de um espaço que o corpo encara como um outro corpo, um espaço como parceiro, onde o corpo, se souber dominar os seus estados tensionais, pode inventar consistências e <<esculpi-las>> (o <<carving space>> de Laban, que se inicia com a modelagem do espaço de proximidade)” (LOUPPE, 2012, p. 189).
79
pelo corpo do bailarino gravado na realização do movimento, ou seja, a forma como
o bailarino em questão gerencia e elabora em seu corpo o peso, fluxo e tempo na
construção de um espaço singular, pelo movimento. É esse fraseamento que o
bailarino/videasta assimila para sua própria movimentação com a câmera, a partir
das dinâmicas contidas na ação do outro bailarino. Por exemplo, para acompanhar o
pé direito da Fernanda se afastar do pé esquerdo de base, em um movimento que
podemos indicar como: acelerado, direto e contido; o Douglas movimenta a câmera
do enquadramento da cabeça para o pé com a mesma dinâmica.
Dessa feita, a trajetória68 e o fraseamento caracterizam dois pilares
importantes. Eles serão observados durante todo o processo de criação, pois na
trajetória se entrelaçam o caminho do bailarino/videasta, com suas orientações,
níveis, planos e distâncias69, com o caminho da câmera, com seus
enquadramentos70, ângulos71 e planos72. Ambos estão intimamente ligados e
dependem, reciprocamente, um do outro. Já o fraseamento, e seus fatores
perceptíveis, tornaram-se as chaves para fazer emergir o “ser do trajeto”73, que
esculpe este espaço poético no ambiente que denominamos, anteriormente, de
físico e reverbera no ambiente digital, dando ritmo às imagens, no que será
chamado mais adiante de “endoedição”. E o gerenciamento de todos estes
elementos dão a ver a coreografia que surge da relação entre GoPro,
bailarino/videasta e bailarino.
68 “É a união dos pontos por onde se desloca o movimento. A trajetória define o ponto exato de início
do movimento, para onde é conduzido e aonde chega” (RENGEL, 2001, p. 129). 69
“É certo que, no seu processo de investigação ou de clarificação dos dados espaciais, o bailarino deve confrontar-se com os conceitos de nível (alto, intermédio, baixo), orientação (lateral, perpendicular, oblíquo, entre outros), planos (vertical, horizontal, lateral, sagital – que Laban converteu, aliás, em termos de experiência para relativizar o seu carácter abstrato: a mesa horizontal, a entrada vertical, a roda sagital) e distâncias, etc.” (LOUPPE, 2012, p. 188). 70
“Mas as palavras “enquadrar” ou “enquadramento” apareceram com o cinema, para designar o conjunto do processo, mental e material, pelo qual se chega a uma imagem que contém um certo campo visto de um certo ângulo” (AUMONT & MARIE, 2012, p. 98). 71
“O ângulo da câmera determina tanto o ponto de vista do público quanto a área abrangida pelo plano” (MASCELLI, 2010, p. 17). 72
“Plano define uma visão contínua filmada por uma câmera sem interrupção. Cada plano é uma tomada. [...] Se, de alguma forma, a configuração é alternada – por meio do movimento da câmera, da troca de lente ou da filmagem de uma ação diferente -, trata-se de um novo plano, e não de uma tomada repetida” (MASCELLI, 2010, p. 19). 73
Termo cunhado pelo arquiteto, urbanista e filósofo, Paul Virilio. Que reclama por uma “trajetividade”. “... Entre o subjetivo e o objetivo parece não haver lugar para o “trajetivo”, este ser do movimento do aqui até o além, de um até o outro, sem o qual jamais teremos acesso a uma compreensão profunda dos diversos regimes de percepção do mundo que se sucederam ao longo dos século, regimes de visibilidade das aparências ligados à história das técnicas e das modalidades de deslocamento [...]” (VIRILIO, 2014, p. 126).
80
Ao sair do papel de proponente e coreógrafa, para me aproximar à ação de
videodançar, ainda no papel de bailarina, percebi que minha dança era outra frente a
uma câmera tão próxima. A GoPro era, ao mesmo tempo, parceira na criação,
juntamente com o bailarino/videasta (no caso a Fernanda), e a presença do
espectador. Era muito clara a mudança da minha presença74 corporal (muscular) dos
momentos em que explorava, relembrava minha movimentação sem a câmera e
após a expressão “gravando”, era a mesma sensação das luzes do palco serem
acessas ou as cortinas se abrirem para o público. Há alguém vendo, ou irá ver por
meio daquele olho que lhe acompanha.
Sentia como se mostrasse algo muito íntimo de mim para este olho, não
apenas físico, mas dotado de um olhar subjetivo. Os alarmes emitidos pela câmera
antes de sua luz vermelha se acender, para indicar que a gravação havia iniciado,
me lembraram do terceiro sinal antes do espetáculo começar. É claro que a
possibilidade de parar e fazer novamente existia, e inclusive foi o caminho
encontrado durante todo o processo. Mas a cada novo sinal a expectativa de dar o
máximo para aquela gravação se renovava.
Agora compreendo o porquê dos improvisos como procedimentos tão ricos
para a criação com a câmera, pois, até mesmo, esta possibilidade de gravar
novamente se exclui, colocando os bailarinos intensamente naquele momento,
característica tão marcante da dança, sua efemeridade. Nesse sentido, Louppe
(2012), elabora um texto fundamental sobre o bailarino e o instante: “O bailarino
trabalha no instante. A presença total no instante, sem prazo ou antecipação
estipulada, é tudo o que constitui a qualidade de um acto de dança. É um elemento
igualmente essencial de elaboração da <<presença>> do bailarino” (LOUPPE, 2012,
p. 163).
Enquanto bailarina/videasta existem outras demandas para se tomar
consciência, elaborar e integrar, e que competem com a minha presença corporal,
pois é preciso estar presente enquanto bailarino e videasta, no mesmo instante. Sou
74
“A <<presença>> pode ser lida como a qualidade de <<estar lá>> (o que decorreria de uma compreensão topológica do ser), assim como uma pessoa se expressa em termos relacionais pela força comunicativa do <<eu>> e da aura tensional e espacial que o corpo, ao mesmo tempo, ressuma e organiza. Contudo, para o bailarino, este aspecto também tem a ver com a urgência de estar presente no presente (conceito de tempo). Sem a <<presença>>, nada passa de instantaneidade do acto, da correspondência profunda entre o movimento e a natureza do instante que se ilumina (e que é iluminado)” (LOUPPE, 2012, p. 163-164).
81
outro corpo, com um novo peso, um novo centro, que se movimenta com novos
apoios e não possui dois, mas três olhos. Trabalho estes olhos em e para dois
ambientes diferentes. Simultaneamente em que a dança emerge da minha relação
com a câmera, a videodança emerge da minha relação com a câmera e com a
Fernanda. Sem o outro bailarino a preocupação com o caminho da câmera, de seus
enquadramentos e da imagem que obterá, enfraquece, restando apenas dois corpos
dançando, ou seja, eu e a GoPro. Ao inserir o outro bailarino, nos tornamos todos
corpos videodançantes, criando uma nova maneira de nos mover entre o ambiente
físico (onde criamos, principalmente um espaço dinâmico e singular) e o digital (no
qual o espaço elaborado e o lugar geram a imagem).
Juntamente com todas estas exigências advindas do papel do
bailarino/videasta, havia as regras envolvidas na tarefa proposta pelo experimento.
Como pesquisadora, minhas observações prévias do processo me auxiliaram a, de
antemão, perceber a importância da cabeça, dos braços e das pernas, ou seja, das
extremidades, no movimento do Douglas. Reparei que as torções e os lançamentos
das extremidades reverberavam na reorganização do centro do bailarino. Entretanto,
estes starts oferecidos pelos membros e a cabeça não surgiam como acentuações,
o fluxo era mantido, com a mesma tensilidade. Em determinados momentos, havia
movimentos iniciados pelos pés e as pernas, ao mesmo tempo, pelas mãos e os
braços, esculpindo linhas, até mesmo de oposição. Portando, escolhi acompanhar
as mãos e os pés, imprimindo uma dinâmica próxima ao fluxo do Douglas, sem
acentuações, apenas pausas. Lembro-me de manter os joelhos flexionados para
evitar qualquer impacto brusco ao movimento da GoPro. Outra escolha foi a de levar
a câmera ao mesmo nível do bailarino quando ele alcança a posição deitado,
deslizando a câmera pela superfície do chão para acompanhar o movimento.
Desse modo, o bailarino/videasta deve, em um primeiro instante, observar a
movimentação do outro com o desejo de perceber sua dinâmica, tomando
consciência de seu fraseamento, para obter informações que possibilitem a escolha
das partes do corpo que a câmera irá acompanhar. Trata-se de um trabalho delicado
e sensível, que exige uma “escuta” apurada do outro.
Cabe, nesse momento, tratar da “estratégia base” estabelecida para
desenvolver e refinar estes pilares dentro dos próprios procedimentos. A estratégia
já vinha acontecendo durante os outros experimentos, mas se estabeleceu, com
82
maior clareza neste experimento, como base para a realização de, praticamente,
todos os procedimentos. Este “procedimento lógico de investigação”, utilizando as
palavras de Salles (2014, p. 66), configurou-se nos primeiros experimentos para a
exploração, o conhecimento e o autoconhecimento dos corpos videondançantes e, a
partir do Experimento III, para a criação e o direcionamento da videodança. Trata-se
da troca contínua de poder entre bailarinos e câmera, remontando um diálogo, esse
que foi abordada no capítulo anterior75. Para criar o caminho do movimento, tanto
quanto para imprimir uma dinâmica a ele, instituiu-se a prática demonstrada na
figura abaixo:
Figura 19: Esquema ilustrativo da “estratégia base” utilizada no decorrer do processo.
Inicialmente, tanto o bailarino, quanto o bailarino/videasta apresentam uma
movimentação conforme seus desejos, memórias corporais e repertórios de
movimento (a maneira de acessar e criar estas propostas de movimento varia a cada
experimento). Logo após, o material gravado pela GoPro é visualizado através do
preview fornecido por um aplicativo instalado em meu aparelho celular. Este
aplicativo funciona por meio de sinal Wi-Fi, que permite ver os vídeos que acabaram
de ser capturados e até mesmo enquanto está sendo gravado na tela do celular.
Neste momento, eram observadas as questões de trajetória e fraseamento.
Considero essa etapa crucial para o desenvolvimento dos corpos dançantes em
75
Ver página 60.
83
corpos videodançantes, pois como afirma Spanghero (2003, p. 35) “a câmera muda
o olhar do coreógrafo, o corpo do cinegrafista, o olhar do cineasta, o corpo que
dança e a sua reprodução”. Seguindo essa ideia, observa-se que a partir da
percepção do espaço do movimento, também através do “olhar da câmera”76, que
essas modificações nos corpos e, consequentemente, nos próprios movimentos
aconteceram. Porém, não se configura em uma relação na qual os bailarinos se
tornam funcionários da câmera, mas através de soluções criativas para a harmonia
entre as necessidades do equipamento e dos bailarinos.
E isso é super sedutor, assim, é bem instigante e suscita toda uma curiosidade, tanto imediata quanto depois que a coisa já aconteceu, porque enquanto tu tá fazendo, tu quer tentar entender e otimizar e refinar o teu trabalho de captador de imagem, enquanto tu continua sendo performer de dança. E aí depois que tu vê o resultado daquilo gravado em vídeo, tu consegue assistir, tu vai fazer o trabalho mental de reconstruir aquele padrão de movimento e dalí tu pode tirar mais refinamento pra próxima tomada, entende. Ao mesmo tempo que tu te vê dentro da cena, tu consegue te enxergar fora dela, na frente e atrás da câmera, por dentro e por fora,o elemento gerador e o elemento captado pelo olho da câmera. É bem bonito, é bem cheio de coisa pra cavocar (JUNG, 2014, informação verbal).
Como se vê na imagem acima e se confirma na fala do bailarino, após a
visualização do vídeo, houve uma reformulação do caminho do movimento do
Douglas, para alcançar uma dinâmica pretendida para a videodança. Na primeira
imagem, o bailarino saía do enquadramento da cabeça para o pé da Fernanda, indo
da posição ereta com o peso distribuído nos dois pés, para a posição de ajoelhado,
com apenas um joelho no chão. Após observar o resultado na imagem, chegou-se a
conclusão que para obter uma troca de quadro mais direta e rápida, seria mais
eficiente afastar os pés de base e realizar uma grande flexão dos dois joelhos, como
se vê na segunda imagem. Esse sistema se desenvolve por meio de um forte
trabalho perceptivo dos participantes, como descreve Ostrower (1987):
Enquanto identificamos algo, algo também se esclarece em nós e em nós; algo se estrutura. Ganhamos um conhecimento ativo e de e de auto-cognição, uma noção que, ao identificar as coisas, ultrapassa a mera identificação. Em qualquer situação em que nos encontremos, por exemplo, haverão de surgir inúmeros dados, dos quais alguns talvez já sejam familiares, outros novos, alguns talvez desconexos e outros até mesmo
76
“A psicologia cognitiva define o olhar como um ato sensório-informativo consciente e voluntário, entrando na estratégia de conhecimento e de comportamento do sujeito em seu ambiente. Essa abordagem torna parcialmente fácil a comparação entre o olhar do espectador e „olhar‟ da câmera, já que este último, manifestado por um ponto de vista, uma distância, um enquadramento, eventualmente um movimento, uma profundidade de campo e etc., é calculado, voluntário, deliberado” (AUMONT & MARIE, 2012, p. 215).
84
insólitos. No entanto, de modo aparentemente misterioso, de pronto os unimos. Os dados serão vistos em conjunto, pertencentes à situação à qual também nos percebemos. E, em conjunto, serão interligados e avaliados: os dados, as várias ligações conosco, bem como as ligações entre ligações. Serão percebidos como a trama de um evento em cuja ordenação interior compreendemos consistir o conteúdo da situação (OSTROWER, 1987, p.57).
Pode-se afirmar que o maior desafio foi, no caso, estabelecer as ligações
entre o que se enxergava pela câmera e o movimento realizado. Foi esta
investigação de como integrar os detalhes observados na imagem para a execução
dos caminhos, gestos e dinâmicas, que possibilitou em grande parte aos bailarinos
conhecer e criar uma relação íntima, singular e dinâmica com a GoPro. O bailarino
Douglas expõe sobre esse agenciamento para encontrar um denominador comum
entre todos os elementos, inclusive com relação aos interesses poéticos do
processo:
Eu entendo que eu preciso antever o que a câmera vai ver, mas a câmera não tá perto do meu olho, então eu preciso desenvolver habilidades de foco, de observação, tanto com os meus olhos, quanto com outras áreas do meu corpo, pra poder manipular a câmera e fazer a tomada precisa que o trabalho tá pedindo. Então é como se essa mecânica da visão e da posição do olho, do enquadramento das coisas, do meu ponto de vista com relação ao corpo do outro, que no caso é a Fernanda, tivesse que ser apurada e refinada de dois pontos de vista, e não de um só. Do ponto de vista do meu olho, pra prender a cena global e enxergá-la de fora, pra então escolher o quê que eu vou captar mais de perto, ou o que eu vou seguir, que dinâmica vou dar pro movimento do olho da câmera; e também com as minhas mãos, né, pra eu saber e ter uma noção exata de que se o olho da câmera tá na posição que vai captar aquilo que eu antevi (JUNG, 2014, informação verbal).
Portanto, não é por acaso que esta “estratégia base” tenha se instituído no
decorrer de todo o processo, pois foi através desse sistema que se conseguiu
aproximar os corpos videodançantes e direcionar as escolhas de criação da
videodança. Ela permitiu essa ação de “antever”, citada pelo Douglas, sem, no
entanto, escravizar a percepção dos bailarinos/videastas a um visor ao longo da
coreografia com a GoPro. E a partir desta experiência, observou-se que os
colaboradores, enquanto estavam no papel de bailarinos/videasta, demonstraram
dificuldade em distribuir a atenção não apenas para equipamento, mas para o seu
próprio corpo em relação à expressividade, enquanto corpo dançante.
Neste sentido, a inclusão das passagens de câmera entre os
bailarinos/videasta de forma coreografada, na ação 3, reforçou a ideia de que a ação
de dançar e a de gravar estavam fusionadas. Isso significa que o artista não se
85
destitui do papel de bailarino para assumir o de videasta, mudando seu “estado
corporal” para tal, eles são trabalhados conjuntamente, desse modo, emergindo os
corpos videodançantes. Antes da criação das ligações das sequências, era possível
observar que a atenção com relação ao corpo e ao gesto expressivo do
bailarino/videasta era deixada um pouco de lado. O que importava mais, naquele
momento, era descobrir a trajetória e o fraseamento da câmera. Com o desafio
envolvido em realizar a sequência com a câmera, passá-la ao colega e continuar
executando a coreografia, os corpos videodançantes passaram a dançar
conjuntamente. Parecia ficar cada vez mais claro, desde o Experimento II, que não
se tratava de apenas conduzir a GoPro, mas dançar com ela, em contato direto ou
não.
No início da pesquisa existiam questões, curiosidades, desejo por
compreender determinados aspectos da criação de uma videodança. Todavia foram
realmente tomando forma e força no decorrer dos experimentos e procedimentos.
Foi a partir das percepções da prática e do outro, tanto da pesquisadora, como dos
bailarinos, que as ideologias que impulsionaram o processo criativo foram sendo
formuladas. Esse amadurecimento da ideia por trás da pesquisa e da criação é
possível de ser identificado na percepção descrita pela Fernanda em entrevista,
sobre a respectiva tarefa. Em sua fala, ela explicita seu incômodo e faz uma crítica
pessoal sobre a sequência que criou para a Ação 1 da tarefa. Ela afirma que se a
sequência coreográfica criada na Ação 1 fosse vista, separadamente, da Ação 2, ela
deveria ser revista, refinada, aprofundada. Não obstante, a artista entende que a
sequência em questão é realmente estabelecida, inclusive, recriada, em relação com
a câmera e o bailarino/videasta, de forma digital e física.
Foi uma tarefa super simples e rápida, né, tipo quatro ou cinco movimentos, que mude de nível, que vá de pé até o chão. E, tá, daí eu fiz ali, rapidinho alguma coisa, e aí a gente gravou e foi o que ficou. Se depois, né, pudesse escolher, eu acho que eu mudaria, mas pensando na sequência de movimento. Só que, se eu for pensar na sequência de movimento em diálogo com a câmera e com o Doug, eu acho que eu não mudaria. Porque... Porque é outra coisa, não é só sequência de movimento, né, eu acho a sequência de movimento, tipo, ai, como eu fui simplória nisso que eu fiz, sabe, mas o resultado dela, junto com a câmera e com o olhar do Doug disso, né, eu acho que eu não mudaria (BOFF, 2014, informação verbal).
86
3.2.1.2 O Improviso
A proposta consistia em uma improvisação semiestruturada para a exploração
de novas possibilidades de composição, criação e trânsito da câmera entre os
bailarinos, tendo como ponto de partida as sequências de movimentos criadas e
encadeadas em um plano-sequência na tarefa anterior, entretanto, com liberdade
para novas experimentações.
Iniciamos o improviso, realizando a coreografia do plano-sequência de
referência, assim como havia sido formalizada. O que se viu, em seguida, foi um
resgate de trechos isolados da coreografia que havia sido recém-realizada. Os
trechos surgiam em ordem aleatória, em fragmentos pequenos ou mais extensos. E
não eram apenas os criados por nós, mas as células coreográficas dos colegas
também. Considero que esta dinâmica foi possível devido à “estratégia base” tratada
anteriormente. Tendo em vista que para a criação da trajetória da GoPro, na Ação 2
da tarefa “Da cabeça aos pés”, foi necessário certo número de repetições,
intercaladas pelas visualizações das imagens capturadas, sendo possível que todos
os bailarinos entendessem as suas movimentações e as dos outros também.
Os trechos escolhidos pelos bailarinos podiam até ser “o mesmo” que eles
executavam no experimento anterior, contudo, não se podia ter certeza que seriam
gravados pelo mesmo bailarino/videasta, o que fomentava um novo universo de
escolhas e perspectivas para a movimentação da câmera e novos pontos de vista
para o movimento dançado. A configuração do grupo era de dois bailarinos, um
bailarino/videasta e a GoPro, sendo que os papéis se alternavam conforme a
câmera transitava. Tal estrutura permitia, embora momentaneamente, que duas
pessoas fossem enquadradas ao mesmo tempo, devido ao movimento do
equipamento. Ao assistir o material capturado pela GoPro, o trânsito da câmera
entre os bailarinos era tão intenso que, em determinado instante, não havia como
saber ao certo com quem ela estava, ela simplesmente estava. Parecia “pairar”,
“deslizar”, entre e com os corpos videodançantes. Aos poucos, os fragmentos do
plano-sequência de referência foram se transformando nas repetições e abrindo
espaço para novas movimentações, novas propostas.
Antes de discutir sobre os insights e escolhas poéticas provenientes deste
improviso, faz-se necessário discorrer sobre a escolha dos procedimentos em si. Há
87
uma forte diferença, para o processo criativo, entre a improvisação presente na
tarefa do primeiro momento e desta desenvolvida aqui. Ainda com base na visão de
Rossini (2011, p. 47), “as Tarefas são uma modalidade de improvisação, ou
podemos dizer, também, que são estratégias para improvisação”. Para ele, “a
improvisação é um campo aberto e vasto; e a tarefa é uma restrição específica
desse campo, sem obstruí-lo por completo” (ROSSINI, 2011, p. 47), ou seja, são
modalidades ou estratégias de improvisação.
O que se percebe, no caso da tarefa do “Dos pés a Cabeça”, em comparação
com este improviso é, justamente, as restrições e a forma ou método utilizado para
lidar com ela. Na primeira proposta, o objetivo e o desafio criativo estavam em se
manter dentro das regras que designavam o que deveria ser feito e a “liberdade” de
improvisação se encontrava em como fazê-lo; no segundo caso, havia abertura tanto
para “o quê”, quanto para “como”. Havia uma tarefa envolvida neste improviso,
todavia, as “regras” que a estruturavam serviam mais como balizas, dando ao
bailarino a possibilidade de extrapolá-las quando achasse potente. Desse modo,
intentava-se manter a abordagem dos procedimentos e conceitos investigados pela
pesquisa até então, sem, no entanto, retirar-lhes o frescor envolvido em transgredi-
los. A esse respeito, o bailarino Douglas relata:
“Dos pés à cabeça” foi super importante pra entender mais e melhor da relação com a câmera e do tipo de imagem que eu gero, né, do meu colega e do espaço. E aí, talvez não tanto pra formação, pra formatar material, eu acho que ele serviu muito justamente por isso, por dar noções de ritmo, de mecânica, de peso, de ponto de vista pra informar o que aconteceu depois. Porque eu acho que, se a gente tivesse continuado fechando e coreografando estritamente, marcando coisas, o frescor teria se perdido. E ele sempre voltou, no momento em que a gente abria, deixava coisas novas aparecerem e essas coisas novas já apareciam informadas pela prática “Dos pés à cabeça”, né (JUNG, 2014, informação verbal).
A diferença entre as duas abordagens criativas se mostra, inclusive, na
posição tomada pelos colaboradores para a execução das propostas. Na tarefa, no
primeiro procedimento, cada bailarino escolheu um lugar na sala e, isoladamente,
exploraram maneiras para realizar o que lhe havia sido solicitado. Testavam
possibilidades, ao mesmo tempo em que às avaliavam criticamente. Eles paravam
para pensar, elaborar, perceber, entender, escolher e tornavam a tentar e praticar.
Depois, em dupla com o bailarino/videasta, o mesmo formato de trabalho foi
estabelecido. O foco não estava em toda a movimentação executada na exploração,
ou seja, no presente efêmero, mas no ideal de movimento buscado para suprir as
88
especificidades propostas pela tarefa. Já no improviso, existiam as balizas que
nutriam o movimento, mas o foco estava na experiência em si, no presente, em estar
disponível e atento para perceber o espaço externo e interno, para a realização do
movimento.
Como pontua Larrosa (2002, p.21) “a experiência é o que nos passa, o que
nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, o que toca”.
Ou seja, está no poder da presença do “sujeito da experiência”, que conforme o
autor, “[...] é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos.” (LARROSA,
2002, p. 24). Não havia espaço para parar e reelaborar a resposta, era preciso estar
sensível às mudanças das dinâmicas, para escolher e, dessa forma, abandonar
todas as outras possibilidades coreográficas que foram negadas com a escolha,
simultânea e initerruptamente.
O improviso semiestruturado como estratégia criativa promove a abertura
para maior valorização da intuição. Não que na realização da tarefa a intuição não
estivesse presente, tendo em vista a afirmação de Ostrower (1987, p. 56) de que “a
intuição está na base dos processos de criação”, sendo “dos mais importantes
modos cognitivos do homem” (OSTROWER, 1987, p. 56). Todavia, vejo que o
improviso favorece a ação mais espontânea, com um equilíbrio maior entre a técnica
e a afetividade com o trabalho criativo realizado. E sobre a ação espontânea
intuitiva, Ostrower (1987) complementa:
A ação espontânea intuitiva não é um ato reflexo ante um acontecimento, embora eventualmente inclua atos reflexos. Cabe ver, nessa ação intuitiva, mais do que a reação de dum organismo humano: ela é reação de uma personalidade humana; e mais do que uma reação, ela é sempre uma ação. A ação humana encerra formas comunicativas que são pessoais e ao mesmo tempo são referidas à cultura (OSTROWER, 1987, p.56).
Nesse sentido, os ganhos para a construção da obra foram expressivos. Pois,
dentro das ações propostas, estava contido todo o vocabulário e as questões
investigadas até então, sejam técnicas ou ideológicas, misturadas à personalidade e
afetividade com que cada bailarino percebeu o processo até aquela etapa. O que
observo e entendo dessa prática é que no improviso os bailarinos encontraram um
espaço mais sensível e receptivo para reagir, ou melhor, agir, a partir de suas
personalidades e vontades.
Após a vivência dos quatro experimentos, nos reunimos em minha casa para
assistir a todos os vídeos gravados pela GoPro e discutir sobre o rumo e as
89
escolhas a serem feitas, objetivando a elaboração da videodança. Por meio dos
experimentos, muitas possibilidades criativas foram exploradas de forma rudimentar
e que, se aprofundadas, dariam origem a diferentes obras. Apenas nas imagens do
improviso, pode-se ver elementos como auto-filmagem (que foi brevemente
explorada no Experimento IV) e a investigação de movimento a partir do contato
corporal entre bailarino/videasta, bailarino e câmera, que levariam a pesquisa para
outra direção.
Figura 20: Frames retirados do vídeo gravado pela GoPro no improviso semiestruturado realizado no Experimento III, no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014).
No entanto, em um contexto de pesquisa acadêmica, delimitar o foco do que
se quer conhecer e ainda cumprir prazos, juntamente com a necessidade de
agenciar a disponibilidade de tempo dos artistas envolvidos e dos espaços
utilizados, foi preciso abandonar alguns caminhos para se manter e aprofundar
outros. Por conseguinte, o que mais chamou atenção do material capturado no
improviso e ao qual se resolveu, coletivamente, dar continuidade como objeto central
de nossa criação foram as rotações da GoPro, invertendo o teto e o chão.
90
Figura 21: Frames retirados do vídeo gravado pela GoPro no improviso semiestruturado realizados no Experimento III, no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014).
Como se pode ver na figura 21, as imagens traziam uma nova perspectiva
para o movimento dos bailarinos. É evidente que outros elementos explorados no
decorrer do processo continuaram a aparecer até a gravação final, contudo, o cerne
da pesquisa de movimento e dos procedimentos envolvidos eram estes giros, aos
quais chamei de Loopings, e o modo com que os corpos videodançantes se
relacionam a partir disso.
3.2.2 O Experimento Looping
No Experimento Looping, voltei a vivenciar a pesquisa enquanto proponente e
observadora do processo. Senti a necessidade de me afastar da ação, isto é, do
trabalho envolvido em estar na frente ou com a GoPro, para poder observar o
quadro geral, em uma perspectiva externa à própria prática. As minhas percepções
vieram tanto da observação das explorações e do improviso fisicamente, quanto da
visualização do preview do aplicativo instalado no meu celular, exibindo o que
estava sendo gravado com 4 (quatro) segundos de atraso (delay). Portanto, eu podia
ter acesso ao um panorama mais completo do desenvolvimento do experimento.
Segundo o Dicionário Oxford Escolar (1999, p.542), o termo em inglês
“loop” pode ser traduzido como “volta”, “curva”. Para Aline Couri (2005, p. 2), “em
geral, refere-se a algo que se fecha em si mesmo, seu fim é um reinício”. A autora
traz o conceito para tratar dos loopings de som, imagem, programação, dispositivos
ou processos. Mesmo que o termo represente para o audiovisual um recurso de
repetição criativa ou apenas como uma forma de reprodução da imagem, não foi por
este viés que escolhi o looping como nome para o experimento. Foi ao assistir os
vídeos do improviso que tive a sensação de estar dentro de um avião, realizando
manobras, voltas e giros no ar. Dessa forma, a primeira palavra que me veio à
memória foi “looping”.
Se aprofundasse a busca nos tipos de acrobacia aérea, talvez a mais
adequada em comparação com o movimento realizado pela câmera fosse o
91
tounneau (roll)77 Contudo, criou-se uma afetividade pela expressão “looping”, e todo
o processo e a própria videodança sofreriam uma perda de identidade, se, nesse
momento da pesquisa, se optasse pela troca do nome em virtude de uma fidelidade
conceitual. Usa-se, desse modo, muito mais o significado atribuído à sua tradução
para o português, ou seja, o movimento de voltas e curvas, do que os conceitos
audiovisuais ou da acrobacia aérea, que são, fortemente, associados a essa
expressão.
Outro looping que não foi levado em consideração para a escolha do nome,
mas que, no entanto, no decorrer do processo foi sendo observado é o presente na
estratégia base. O circuito realizado entre a execução do movimento e o vídeo
gravado e o retorno ao movimento, remonta uma dinâmica circular, mas que não
reinicia do ponto pelo qual partiu, mas de um ponto que só existe a partir do inicial,
trazendo a ideia de um espiral.
Este loop se aproxima mais da noção de repetição proposta por Couri (2005),
no início desse subcapítulo. A própria autora traz a ideia de “loop espiral” que
mesmo se referindo a um recurso criativo e poético no tratamento da imagem, no
contexto do audiovisual e no ambiente digital ou fílmico, pode servir como um
caminho para entender este movimento que não é circular e sim espiral, o qual
funda a estratégia base do processo de criação coreográfica do Experimento
Looping, pois como a autora afirma:
Façamos, portanto, uma distinção entre o que chamaremos de “loop circular” do “loop espiral”. A imagem de um círculo sugere um retorno ao mesmo estado ou condição que havia no seu inicio; ao contrário, numa espiral, o loop está na razão ou fórmula da espiral, e não no próprio movimento: o fim da espiral não é seu inicio, mas sim um ponto com características semelhantes ao inicio da curva, porém já desenvolvido em um outro aspecto, seja no tempo, em certa interação ou evolução. São como guias cíclicas de certo processo contínuo ou evolutivo (COURI, 2005, p. 3).
Isso posto, o movimento de looping da câmera se caracterizava por um
movimento de giro de 180o ou de até 360o no plano frontal, ao redor do eixo sagital,
se considerar a GoPro da seguinte forma:
77
“Tounneau (roll): rotação ao redor do eixo longitudinal.” Disponível em: < http://aeromagia.net/2012/12/07/acrobacia-aerea-campeonato/> Último acesso: 11 de junho de 2015. O eixo longitudinal do avião corresponde ao eixo sagital do piloto, sendo os eixos da GoPro os mesmos do piloto, pois são considerados a partir da posição dos olhos humanos e da lente da câmera, se aproxima desta manobra em relação ao piloto e não ao avião.
92
Figura 22: Esquema ilustrativo para demonstrar o giro realizado pela GoPro no eixo sagital, que constitui o movimento de looping.
Ao rotar 180o, a câmera invertia a posição do piso e do teto em relação à linha
do horizonte no frame da imagem. Ao realizar essa inversão, a GoPro ofereceu aos
corpos videodançantes um novo espaço de criação, onde se pode dançar com os
pés no “teto” e também ao processo o desafio de investigar em nosso espaço físico
cotidiano o tipo de movimentação potente para esse espaço digital particular. Como
os corpos do bailarino, bailarino/videasta e da câmera se relacionam e videodançam
nesse ambiente invertido? É possível realizar estas inversões no corpo do bailarino
que dança para e com a câmera? Baseado nessas questões, o Experimento
Looping foi elaborado e proposto.
Voltando um pouco no tempo, em 1951, no filme Royal Wedding78 na
coreografia da música You're All The World to Me, Fred Astaire79 literalmente
dançava pelas paredes e pelo teto, quebrando com a força da gravidade. A cena foi
gravada em tomada única. Para criar a ilusão de que Astaire era capaz de vencer a
força da gravidade, o cenário foi construído dentro de uma enorme gaiola de aço
78
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=z0GgQKEQchA>. Último acesso em: 21 de maio de 2014. 79
Considerado um dos melhores bailarinos de sapateado, Fred Astaire, além de bailarino foi um dos coreógrafos pioneiro dos grandes musicais americanos. Entre 1933 e 1957, criou 150 números de dança.
93
com engrenagens que o possibilitava girar 360°80. A câmera estava acoplada a essa
gaiola, que rotava junto com o cenário. Portanto, a câmera não mudava seu ângulo
ou perspectiva em relação ao cenário, mas ambos giravam conjuntamente, na
mesma direção e eixo. Havia uma grande responsabilidade sobre o bailarino para
desenvolver a técnica e preparo corporal necessário para dançar num espaço em
movimento.
Figura 23: Frame retirado do vídeo explicativo do mecanismo utilizado na filmagem da coreografia You're All The World to Me do musical Royal Wedding (1951)
81.
Na figura acima, a gaiola na qual estavam fixados o cenário e a câmera está
representada pelo círculo e este, por sua vez, fazia rotar toda estrutura enquanto o
bailarino dançava gerenciando, com seu preciosismo técnico, o chão que se movia,
girando sob seus pés. Tanto a coreografia de Astaire como o Experimento Looping
propõe uma rotação da câmera, inclusive no mesmo eixo. Entretanto, diferente da
intenção de dar a sensação de não estar sobre o efeito da gravidade, esta pesquisa
interessa-se em investigar, justamente esta cena, onde, visivelmente, o chão passa
a ser o teto e vice-versa. Não há uma alteração real na orientação do espaço físico,
como no cenário de Astaire, apenas na orientação da GoPro, consequentemente, na
sua imagem. No musical, tanto o cenário, quanto a câmera, giram juntas e no
mesmo sentido, já no Experimento Looping, o lugar é fixo e quem gira é a câmera.
80
A descrição e explicação de como foi realizada a cena, que apesar de não ter sido registrada, foi remontada pelo próprio diretor do filme, Stanley Donen, para o clip da música de Lionel Richie, Dancing on the Ceiling, em 1986. Disponível em: <http://www.bigfott.com/Astaire_Unwound.html>. Último acesso em: 21 de maio de 2014. 81
Fonte: <http://youtu.be/i0g3g6AvLtM> Último acesso: 23 de julho 2014.
94
Sendo assim, o trabalho corporal de Fred Astaire era para não evidenciar a rotação
do cenário, por outro lado, a pesquisa corporal do Douglas e da Fernanda era para
explorar as potencialidades dos encontros e desencontros entre as voltas do
equipamento, e, por conseguinte, do espaço digital e as inversões dos corpos dos
bailarinos.
A pesquisa de movimento dos bailarinos tinha como proposta explorar as
possibilidades de inversões da relação do alinhamento entre a cabeça e o cóccix. Ao
contrário da GoPro, estas inversões não precisavam acontecer apenas no eixo
sagital, mas em todos os eixos e planos, dinamicamente. Buscava-se, desse modo,
diferentes pontos de apoio no solo, não apenas pés, pernas e quadris, mas mãos,
antebraços, cabeça, ombros e etc.
Figura 24: Frame retirado vídeo da coreoedição gravado com a GoPro no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014) (à esquerda) em comparação com a imagem da coluna no
mesmo movimento de parada de mãos (à direita), demonstrando a inversão de relação entre cabeça e cóccix.
82
O procedimento utilizado para este experimento seguiu a mesma linha do
anterior, “Dos pés a cabeça”. Começou com uma investigação individual de
movimento, separadamente da câmera. Em seguida, buscou-se estabelecer uma
relação entre os loopings da câmera e as inversões do corpo dos bailarinos, através
da estratégia base83 referida anteriormente, isto é, realizar células de movimento
isoladas, assistir as imagens gravadas, refinar o movimento. Todavia, observou-se
que as inversões dos bailarinos e os giros da GoPro, realizados pelo
82
Fonte da imagem à direita: <olavosaldanha.wordpress.com>. Disponível em: <https://olavosaldanha.wordpress.com/atraves-do-corpo-humano/> Último acesso em: 11 de junho de 2015. 83
Ver página 81-82.
95
bailarino/videasta, estavam “desconectados”, não aguçava quem estava assistindo a
tentar acompanhar o movimento. O efeito alcançado em alguns momentos do
improviso anterior não estava acontecendo.
Dessa forma, decidiu-se por voltar ao improviso semiestruturado, que tinha
como baliza todos os conceitos mencionados acima, porém com a liberdade para
extrapolá-los. A partir das imagens obtidas, notou-se que os loopings realizados
bruscamente, sem a preocupação de procurar uma sintonia com o fraseamento do
movimento do bailarino que estava sendo gravado, bem como o distanciamento
espacial entre bailarino/videasta e o bailarino, não favoreciam o efeito buscado.
Mostrou-se muito mais interessante para este processo, tanto em termos visuais, ou
seja, a imagem gravada, quanto corporais, a aproximação dos corpos
videodançantes e o cuidado com a harmonia entre as dinâmicas do movimento dos
bailarinos e da câmera. Optou-se em buscar os elos entre o movimento do corpo
humano e o da máquina, principalmente quanto ao tempo e o caminho do
movimento, e não evidenciar o que o equipamento podia fazer e que o corpo
humano não tinha como acompanhar e vice-versa.
Figura 25: Frames retirados do vídeo da coreoedição, gravada com a câmera GoPro no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014), demonstrando as inversões no alinhamento cabeça-
cóccix em relação aos loopings realizados pela câmera.
96
O trabalho corporal desenvolvido pelo bailarino/videasta consistia na criação
da trajetória da câmera em conjunto com a consciência do seu próprio corpo e gesto
ao dançar com o equipamento, elaborando e conectando, simultânea e
coreograficamente, o espaço físico e o digital, além de estar atento para
percepcionar o movimento e a dinâmica das inversões proposta pelo outro bailarino.
A técnica corporal mais presente na realização deste experimento, bem como para a
formalização da videodança, no que se refere à coreografia do bailarino, foi a
circense, possível de ser observada nos equilíbrios, nas paradas de mão e de
cabeça. A dança contemporânea, de forma geral, mostrou-se presente em seus
valores e ferramentas com as alavancas, os pontos de apoio e expirais. Ambos já
possuíam experiência formativa nesta área, como se evidenciou.
Novamente, foi possível destacar a tendência da Fernanda em movimentos
mais angulares, com equilíbrios, pausas e mudanças repentinas de dinâmicas. Ao
mesmo tempo, viu-se a tendência do Douglas por movimentos mais ininterruptos,
fluídos, com espirais e ondulações. Ao final do experimento, os materiais gravados
escolhidos, para dar continuidade à criação, foram os dois planos-sequência do
improviso semiestruturado: um do Douglas como bailarino/videasta e da Fernanda
como bailarina e o outro da Fernanda como bailarina/videasta e o Douglas como
bailarino.
3.2.3 Coreografar editando, editar coreografando
Como foi apontada no decorrer deste memorial, a chave principal desta
pesquisa e experimentação foi fazer da ação de dançar e de gravar algo
significativamente novo, singular e emergente para os participantes: o ato de
videodançar. Reverberando a partir da escolha de colocar o bailarino também no
papel de videasta, surgiu o desejo de diminuir o máximo possível a utilização dos
softwares de edição de imagem, na montagem da coreografia a ser exibida na
videodança. O intuito era fazer, também, com que a ação de coreografar, com base
nos saberes e nas vivências advindas da dança, se relacionasse com a ação de
editar, igualmente carregada dos conhecimentos e das experiências do audiovisual,
dando vazão a novas possibilidades de criação, que se solidificam no “entre”. Desta
97
empreitada, surgiram dois procedimentos que nomeei de “coreoedição” e
“endoedição”.
A coreoedição consistiu na primeira etapa desta fusão. A partir dos dois planos-
sequência gravados no improviso do experimento anterior, eu, enquanto coreógrafa
e, mesmo que não profissionalmente, editora de vídeo, selecionei trechos e os
organizei em duas sequências de imagem, recortando e colando-as. A primeira
sequência tratava-se do Douglas como bailarino/videasta e da Fernanda como
bailarina; já a segunda era a Fernanda como bailarina/videasta e o Douglas como
bailarino. Ou seja, trata-se do que o audiovisual caracteriza como montagem e o que
a dança entende como composição coreográfica.
A montagem em termos técnicos do audiovisual “trata-se de colar uns após os
outros, em uma ordem determinada, fragmentos de filme, os planos, cujo
comprimento foi igualmente determinado de antemão” (AUMONT & MARIE, 2012, p.
195). Estes segmentos recortados e colados devem ser arranjados conforme um
ritmo, e este, por sua vez, advêm de uma narrativa, das sensações e dos efeitos
buscados e expostos no roteiro, no caso do cinema. Na composição coreográfica
algo similar ocorre, principalmente, no que diz respeito à dança contemporânea.
Frases de movimento, a princípio, desconectadas e até mesmo divergentes, são
integradas no corpo dançante por um nexo84, que como já foi abordado
anteriormente, não precisa ter um significado além do próprio movimento. Karen
Pearlman (2012) se propõe em seu artigo, “A edição como coreografia”, a traçar um
paralelo entre a coreografia e a edição, utilizando as definições de “composição”,
“arranjo” e “regência”, trazidas da música. Em sua escrita, a autora aproxima o
trabalho do editor, sobretudo para o que se entende como arranjar do que compor:
O compositor cria a música e seus ritmos, ao passo que um editor não inventa exatamente alguma coisa. Ele arranja os ritmos da mesma maneira que alguém monta um arranjo de flores: sem criar as flores ou, nesse caso, as sequências, mas escolhendo as seleções, a ordem e a duração delas (PEARLMAN, 2012, p. 220).
Pode se compreender a coreoedição, também como um arranjo, pois a
“matéria-prima”, os vídeos, foram criados e gravados pelos bailarinos. Eu, enquanto
coreoeditora, apenas os escolhi e os arranjei em determinada ordem. Entretanto, a
seleção das partes que comporiam o plano, bem como a ordem com que foram
84
Ver página 72-73.
98
organizadas seguia um nexo. Tinha-se como critério de escolha o potencial que o
movimento da câmera e, por conseguinte, da imagem de apreender a minha
atenção, como espectadora, fazendo-me acompanhar com meu próprio corpo o
movimento de looping da câmera. Inclusive a vertigem era uma das sensações,
estesias, que se queria alcançar para a videodança. Esta ideia encontra-se,
também, na fala do bailarino Douglas, até mesmo como algo que contamina outros
trabalhos do artista, como expõe: “Então esse jogo de pontos de vista, por mais que
a plateia não vá se mover, a gente tá pensando a peça e os espaços e os motivos
coreográficos e a maneira de executá-los, já jogando com esse elemento foco, né”
(JUNG, 2014, informação verbal).
Figura 26: Frame retirado do vídeo do Making Of, demonstrando o trabalho de endoedição realizado a partir das imagens visualizadas no preview fornecido pelo aplicativo da GoPro instalado em meu
celular (2014). Crédito: Lícia Arosteguy.
No entanto, isto não era o suficiente para que estes vídeos tivessem um ritmo
singular e se tornassem uma videodança harmônica e coerente. Os cortes entre um
segmento do vídeo e outro para coreoedição eram secos, ou seja, “[...] a passagem
de um plano para outro era feita por uma simples colagem, sem que fosse marcado
por um efeito de ritmo ou por uma trucagem” (AUMONT & MARIE, 2012, p. 66). Era
preciso coreografar o fraseamento envolvido na criação do movimento para que a
qualidade de deslizar da câmera em loopings vertiginosos surgisse. Mas decidiu-se
que os elementos de tempo, fluxo e espaço do movimento presentes no frame
seriam editados no corpo dos bailarinos, em um procedimento que se nomeou
99
“endoedição”. Nesse sentido, a escolha da ordem dos segmentos selecionados para
montagem na coreoedição foi o mais aleatório possível, pois o interesse era
justamente estimular e desafiar os integrantes a resolverem os cortes secos,
corporalmente.
A expressão “endoedição”85 foi elaborada utilizando o prefixo “endo”, que vem
do grego “éndon” e que exprime a noção de “dentro”, pois a intenção era pontuar
que o trabalho realizado pela edição seria feito dentro da matriz de onde se criou o
vídeo em primeiro lugar: os corpos do bailarino/videasta e do bailarino, em relação
com a GoPro. Para tanto, o procedimento se estruturou da seguinte maneira: os
bailarinos retomaram a movimentação criada durante o improviso do Experimento
looping e que foi coreoeditada em dois vídeos separados. Isto foi feito olhando o
material e “reproduzindo-o”, tanto a movimentação do bailarino/videasta, como a
movimentação do bailarino.
É importante lembrar que este trabalho de resgatar as movimentações
geradas por improviso e que, inclusive, não são mais as mesmas, pois já sofreram
transformações na coreoedição, foram realizadas pelos corpos videodançantes
através do olhar da câmera, que possui um enquadramento e uma dinâmica própria,
a qual não é a mesma do espaço físico. Nesse sentido, foi desafiador para os
bailarinos, que tinha uma memória videográfica, mas não de um olhar externo à
ação, mas imerso no movimento e em movimento. Não se tratava de um vídeo de
registro, mas uma resultante da própria coreografia em si. E para acessar os
movimentos, foi preciso que a Fernanda e o Douglas acessassem, também, à
memória corporal desenvolvida durante todo o processo, no aprendizado das
distâncias, dos tempos, na forma de segurar e manipular o equipamento, na
construção dos enquadramentos e trajetórias da GoPro.
Mesmo assim, algumas coisas não foram possíveis de ser retomadas, como
relata Fernanda:
Por exemplo, aquela hora que o Doug faz a vela, né, que nunca mais consegui encontrar aquele melhor ângulo. Mas como que eu vou dar foco nisso, mas pensando no meu corpo ao mesmo tempo? Aí que eu acho que foi esse foi esse o maior problema: de eu não encontrar onde tava o meu corpo no melhor ângulo da câmera, ou eu estar com o melhor ângulo da câmera, mas eu bater com meu joelho no chão, porque não tô cuidando, ou
85
De certa forma, a escolha do termo “endoedição”, principalmente a referência do prefixo “endo”, vem da minha vivência como aluna de graduação do curso de ciências biológicas da UFRGS, onde tal termo era amplamente utilizado.
100
estar meio torta assim, ou virar a mão e daí daqui a pouco não consigo mais virar a câmera (BOFF, 2014, informação verbal).
Os cortes secos foram “editados” corporalmente também. Cada
bailarino/videasta e bailarino criaram movimentos de ligação que integrassem os
segmentos soltos em um plano-sequência coerente e dinâmico. Através da
“estratégia base” (realizar o movimento, assistir ao preview da imagem gravada,
refinar e propor modificações ao movimento) criou-se o fraseamento. Foi muito mais
a dinâmica construída durante este “loop espiral”, da estratégia base, integrando os
trechos cortados em uma só coreografia, do que a forma dos movimentos escolhidos
para unir cada segmento da coreoedição. Pois como aponta Gil (2013),
experimentar ou ensaiar se trata muito mais de encontrar um fluxo de movimento do
que de formas ou figuras:
O que é experimentar, “ensaiar”? É chegar a um ponto de “coordenação física” tais que “a energia” passa “naturalmente”. Trata-se de fluxos de movimentos mais que de formas ou de figuras (como no ballet). Ensaiando uma sequência de movimento e verificando que a energia passa, o bailarino encontra-se diante de múltiplas possibilidades de outros movimentos. Ensaia de novo, e escolhe, e assim sucessivamente, criando, criando um fluxo de energia. As formas compõem-se pouco a pouco, e pesam sem dúvida na escolha das sequências; mas não são determinantes, pelo contrário, dependem do destino que o bailarino quer dar à energia, criando núcleos intensivos ou atenuando o seu impulso, acelerando a velocidade, modulando a força do movimento (GIL, 2013, p.64).
Na entrevista da Fernanda reincide a sua preocupação em ter tido mais
tempo para pensar, elaborar o movimento, agora na ligação entre os cortes:
[...] e daí fiquei pensando: “ah, mas eu podia ter mudado tem umas coisas ali que tão truncadas, que eu não consigo. Por quê? Porque não tive tempo de pensar mais, porque eu fiz as costuras entre um movimento e outro, né, da coreoedição, eu fiz de forma simples, quem sabe eu não poderia, nanana”, mas que, com a relação com a câmera, eu não sei se eu mudaria (BOFF, 2014, informação verbal).
Mais tempo de processo, certamente, teria colaborado para um número maior
de possibilidades a serem escolhidas. No entanto, é a preocupação pela criação “de
forma simples” que me chama atenção. Noto que este questionamento se aplica
muito enquanto bailarina, ao corpo dançante, do que em relação com a câmera, ao
corpo videodançante. Acredito que se justifique no fato de que a GoPro muda o
movimento dançado, através do fraseamento dado para a sua trajetória, pois como
afirma Brown (1968, p. 22 apud LOUPPE, 2012, p. 116), “mudem o tempo e o
101
espaço, e o próprio movimento mudará”. Somado ao entendimento lançado por Gil
(2013, p. 64), anteriormente, de que as formas pensam na escolha da sequência,
mas dependem diretamente do destino que o bailarino deseja dar a energia.
Foi a partir destes dois procedimentos que se chegou a um plano-sequência,
em que se coreografou, inclusive, a transferência da câmera da Fernanda para o
Douglas. Este material, somado ao plano-sequência criado a partir do Experimento
III, constituem a base da videodança gravada oficialmente, no dia 16 de novembro
de 2014, no Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF) .
3.2.4 A gravação final
A produção final e a própria videodança não caracterizam o centro desta
análise. Mesmo assim, apontam para questões discutidas e levadas em
consideração no e do processo. É um resultado que demonstra conquistas e novas
demandas, possibilidades, ou até mesmo falhas que poderiam e podem continuar a
serem trabalhadas, nesta retroalimentação contínua e constante. É nesse sentido
que serão abordadas as etapas envolvidas na gravação e na montagem da
videodança como produto final.
3.2.4.1 A decupagem
A palavra “decupagem” é um termo original do audiovisual e que se refere aos
primeiro estágio de elaboração do filme no papel, baseado no roteiro, servindo de
referência para a equipe técnica (AUMONT & MARIE, 2012, p. 71). Como descreve
o Dicionário Teórico e Crítico de Cinema (Ibid., p. 71), “ela designa, então, de
modo mais metafórico, a estrutura do filme como seguimento de planos e de
sequências, tal como o espectador atento pode perceber”. Todo o processo de
criação desta videodança foi conduzido com o intuito de reduzir ao máximo a
utilização de recurso de edição, para que se tentasse resolver tudo que fosse
possível corporalmente. Por esta razão, e também pelo fato de não se tratar de um
roteiro, com uma narrativa ou trama a ser contada, a decupagem do Experimento
102
Looping se ateve a organizar os planos-sequência já coreografados e formalizados e
elaborar os planos de ligação entre eles. Desse modo, criou-se um fio condutor que
reuniu os fragmentos soltos, todavia, não desconexos, em uma obra.
O material formalizado foram os planos-sequência criados no decorrer do
processo: no Experimento III, “Dos pés a cabeça”, no qual a minha partitura de
movimento foi apreendida e reformulada pelos bailarinos e no Experimento Looping,
pelos procedimentos de coreoedição e endoedição. A concepção das emendas para
esses segmentos foram idealizadas antecipadamente e improvisadas no dia da
gravação final, na locação escolhida. Foi a partir dessa decupagem que
desenvolvemos a gravação final:
NOMES DOS PLANOS DESCRIÇÃO DOS PLANOS
Introdução Douglas Douglas, com a GoPro acoplada à
cabeça, apresenta o lugar a partir da sua
perspectiva. Bases para improvisação:
auto-filmagem, sombra, exploração do
lugar e do próprio corpo, caminhadas e
corridas.
Finalizar com giros contínuos com a
aceleração gradual no eixo longitudinal.
Plano-sequência 1 – Experimento III Douglas com a câmera na mão e
Fernanda posicionada e parada para
iniciar a coreografia.
Iniciar com giros contínuos com
desaceleração gradual até parar de
frente para Fernanda para iniciar a
coreografia.
Coreografia do plano-sequência 1.
Introdução Fernanda Fernanda, com a GoPro acoplada à
cabeça, apresenta o lugar a partir da sua
perspectiva. Bases para improvisação:
103
sombra, exploração do lugar e do próprio
corpo, caminhadas e corridas.
Finalizar com giros contínuos com a
aceleração gradual no eixo longitudinal.
Plano-sequência 2 –
Experimento Looping
Fernanda com a câmera na mão e
Douglas posicionado e parado para
iniciar a coreografia.
Fernanda inicia com giros contínuos com
desaceleração gradual até parar de
frente para o Douglas para iniciar a
coreografia.
Coreografia do Plano-sequência 2.
Fechamento Julia com a câmera na mão.
Câmera se afasta e enquadrar os dois
bailarinos e desliza para além deles.
Figura 27: Tabela da decupagem que serviu como guia para o dia da gravação final.
3.2.4.2 Os Lugares da experiência
Como foi pontuado no início deste memorial, há que se diferenciar lugar de
espaço. O espaço foi abordado de forma intensa até o presente momento, pois se
trata da construção do movimento em si, de cada bailarino e em consonância com a
proposta da pesquisa. No decorrer dos experimentos foi se observando, também, a
importância do lugar, da arquitetura, na criação da videodança. Mais do que apenas
em função puramente visual, como uma moldura para a dança, o lugar potencializou
os efeitos buscados pelos looping, ou seja, a vertigem, a oposição entre terra e céu.
Houve um entrelaçamento e contaminação entre a topologia do lugar e o espaço
construído pelos corpos videodançantes, como aponta Douglas:
Teve uma vez que eu lembro, que a gente comentou que a dança que tava aparecendo e as imagens tava aparecendo eram super arquitetônicas, lá na Usina. Eu acho que, isso aconteceu, e aí eu acho que foi naquele mesmo ensaio que a gente resolveu abrir a estrutura e improvisar e prestar mais
104
atenção no espaço. E daí, dalí foi uma avalanche de ideias novas que escorreram pra dentro do trabalho (JUNG, 2014, informação verbal).
O momento relatado pelo bailarino diz respeito ao primeiro improviso
realizado no Mezanino da Usina do Gasômetro, durante o Experimento III. Devido à
amplitude de sua estrutura, com o teto muito alto e suas estruturas metálicas e
geométricas, a diferença entre o chão e o teto ficaram bem demarcadas no
movimento de looping. A partir de então, começou-se uma pesquisa por possíveis
lugares que fossem altos e amplos, da mesma forma que o Mezanino.
Figura 28: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro durante o improviso semiestruturado do Experimento III (2014).
Com isso, ao invés de teto, surgiu a ideia de céu. Tratava-se de um lugar
aberto de fato. A primeira possibilidade pensada foi o próprio terraço da Usina do
Gasômetro, pois havia um laço forte e afetivo da pesquisa com a Usina, já que tudo
havia sido construído neste ambiente até aquela etapa. No entanto, por questões de
reforma que o terraço estava passando na época, não foi possível a utilização deste
local.
Foi então que se cogitou o Parque da Farroupilha (Redenção). A visão do
contraste entre o verde do gramado e o azul do céu parecia cooperar para as
imagens e os efeitos desejados pelo trabalho. Entretanto, dois aspectos que não
conversavam com a proposta foram levantados: o chão e o excesso de informação
no entorno. O chão é um aspecto muitas vezes esquecido no decorrer de um
105
processo. Contudo, para o espaço e a sua organização dinâmica, criados pelos
corpos videodançante em relação à estrutura oferecida pela Sala 209 e o Mezanino
da Usina, o solo se tornou mais que apenas a superfície, mas, sim, afetivo,
convidativo a outras possibilidades criativas, conforme aponta Louppe (2012):
O solo não é somente uma superfície de deslocamento funcional. Na dança moderna e contemporânea, o solo tem um papel ao memso tempo orgânico e filosófico; tem o papel afectivo já mencionado. Como diz Iréne Hultman, o solo <<é o nosso primeiro aliado contra a gravidade... Contudo, exerce também uma função cognitiva, inclusive como interface entre a força da gravidade e a experiência do corpo. Por seu turno, Kajo Tsuboi afirma nas suas aulas que é possível <<dançar, ou seja, dialogar com o centro da terra>>. A dança contemporânea não dança no solo, dança com ele (LOUPPE, 2012, p. 203).
Nesse sentido, o solo pode modificar a relação desenvolvida com a gravidade
e, consequentemente, na organização corporal de peso, fluxo, espaço e tempo. A
irregularidade, a sujeira, a umidade da grama impossibilitaram muitos fraseamentos
e conquistas do processo, das quais não se queria abrir mão.
Outro aspecto importante ressaltado são as informações capturadas pela
câmera ao redor da ação coreográfica. Preocupou-se em não incorporar para a
videodança tantas simbolizações e significações presentes tanto no lugar, quanto
em cada transeunte capturado pela GoPro, pois se trata de um dos parques mais
tradicionais e frequentados de Porto Alegre. Entendeu-se, desse modo, que o
trabalho pedia por locais mais “limpos”, geométricos, arquitetônicos, retomando as
informações que, em primeiro lugar, haviam chamado a atenção no Mezanino.
106
Figura 29: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).
Dessa maneira, iniciou-se uma busca por terraços, para que o contraste entre
a arquitetura da cidade e o céu limpo e azul ficasse bem evidente. A busca por um
terraço alto o suficiente para o efeito desejado e que fosse acessível foi muito difícil.
Foi perguntando entre os conhecidos que descobrimos o terraço da Juliana Werner,
uma amiga do círculo da dança, que morava em um prédio de vinte andares na
Avenida Cristóvão Colombo. Começamos o encontro às 9h30min e terminamos às
11h30min. Foram combinadas, previamente, que as roupas deveriam ser de cores
neutras, entretanto, observou-se que a composição de cores da imagem acabou
fincada com os tons muito similares.
Figura 30: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial da Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).
107
Acredito que nesta locação criamos uma variação do material construído até
então, uma videodança independente enquanto obra, mas que para este contexto é
parte de um projeto maior, pois, ao final do encontro, ainda restavam desejos das
sensações não alcançadas tanto na imagem como no corpo. Neste momento do
processo eu ainda ensaiava a coreografia referente ao Experimento III, do qual
participei da exploração como corpo videodançante. Foi após este dia que resolvi
passar a minha parte para o Douglas e a Fernanda e ficar apenas como proponente
da pesquisa.
Devido ao entendimento conquistado pelas vivências no Mezanino e no
Parque Farroupilha, de que o lugar é uma importante fonte de exploração e
reelaboração coreográfica e que deve ser absorvido e utilizado pela pesquisa, optou-
se por iniciar o encontro com uma improvisação nos mesmos moldes da realizada no
Mezanino, como forma de reconhecer este novo território e suas potencialidades. Os
bailarinos podiam ou não resgatar trechos das coreografias formalizadas até então.
De fato, a partir disso houve “uma avalanche de ideias novas que escorreram pra
dentro do trabalho” (JUNG, 2014, informação verbal). Após o improviso, os planos-
sequências já estruturados começaram a ser desmembrados e os jogos de
composição, ou seja, novos arranjos começaram a ser experimentados.
No decorrer da manhã, o sol foi mudando de posição. A sombra, não apenas
do bailarino/videasta, mas da própria câmera, começou a ser projetada no chão.
Este elemento foi incorporado ao trabalho, pois era muito interessante para a obra
que o corpo videodançante emergente da relação entre a GoPro e o
bailarino/videasta obtivesse seu momento de protagonismo na própria imagem
gravada. Esta mesma referência será vista na gravação final da videodança.
108
Figura 31: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial da Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).
O que não estava sendo levado em consideração eram os parapeitos altos
dos terraços de prédios residenciais. Todas as movimentações realizadas no chão
perdiam completamente o efeito, pois se tratava de uma caixa de concreto onde o
céu aparecia com dificuldade. Mesmo assim, os recortes que a caixa cinza do
terraço fazia no céu eram muito interessantes, porém em um dos lados havia uma
parede e um varal de roupas que impedia que a câmera desse um giro completo no
eixo longitudinal, percorrendo 360º de céu aberto. Para que a videodança
caminhasse na direção pretendida para o trabalho, evidenciando céu e terra,
naquele local, seria necessário o uso de edições e cortes mais elaborados, pois a
execução da gravação em plano-sequência deixaria evidentes estas informações do
próprio lugar e para isso. As possibilidades era ricas, todavia a ideia da imagem
perseguida nos direcionava para outro lugar.
109
Figura 32: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial da Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).
A partir deste dia, decidi retornar ao trabalho elaborado em dois planos-
sequências, e, mesmo apreciando todas as conquistas de composição e criação
realizadas no terraço da Juliana Werner, dar prioridade para o objetivo estabelecido
no início da pesquisa, de utilizar o mínimo possível os softwares de edição de vídeo
e todas as suas poderosas ferramentas de manipulação da imagem. Não saberia
dizer se para a videodança (enquanto produto) tenha sido a escolha mais rica, mas
enquanto pesquisa, pareceu ser a mais coerente.
Foi pelo incômodo gerado pelos parapeitos do terraço que se chegou a ideia
de utilizar um heliporto. Após muitas dificuldades em encontrar um heliporto que
estivesse disponível para este tipo de utilização, o projeto foi muito bem acolhido
pelo Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF). Este prédio, além de estar
localizado entre o centro histórico de Porto Alegre e o lago Guaíba, é um cartão
postal de referência da cidade. Se o processo se interessava pela arquitetura e
pelos recortes urbanos, sem que houvesse um parapeito bloqueando as
movimentações de solo, este era o lugar.
110
Figura 33: Foto do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), em Porto alegre.86
Todavia, tínhamos um limite de tempo cedido para a utilização do heliporto,
das 14h às 17h e a Fernanda teria que sair às 16h, somando 2h de gravação. A
decupagem foi executada com rigor no dia e os momentos de improviso foram
pontuais e curtos. Não foi possível repetir muitas vezes as coreografias dos planos-
sequência. Foram realizadas duas gravações de cada segmento. Junto com a
questão tempo, surgiram outros obstáculos a serem superados e que influenciaram
sobremaneira no material gravado.
O clima. Para a gravação, o dia não poderia estar mais adequado:
Céu azul e sem nuvens: as nuvens fazem com que o sensor
automático da câmera se confunda quanto à quantidade de luz
ofertada. Se uma nuvem obstrui a luminosidade solar, isto pode
causar momentos de frames escuros ou excessivamente claros
quando desobstruído, prejudicando a imagem capturada. Além
disso, o céu azul era o que se procurava para dar contraste com a
cidade.
Sol ainda alto, porém não acima da cabeça dos bailarinos: o sol do
meio-dia, que se posiciona bem acima das cabeças, acaba
86
Fonte da imagem: site oficial da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Regional do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.seplag.rs.gov.br/conteudo/1938/governo-altera-horario-dos-servicos-publicos-nesta-4%EF%BF%BD-feira-para-desafogar-transito-> Último acesso em: 11 de junho de 2015.
111
formando sombras no rosto dos bailarinos, abaixo dos olhos e
cabeça, dando um aspecto sombrio às pessoas.
Figura 34: Frame retirado do vídeo gravado com a GoPro durante a gravação final, realizada no heliporto do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), em Porto Alegre (2014).
No entanto, para os bailarinos o clima não era o mais adequado. Por não
haver nuvens, o sol os atingia de forma intensa e ininterrupta. Sendo ainda
necessário ressaltar que o topo do prédio de mais de vinte andares, já havia
recebido todo o sol da manhã. Foi providenciado protetor solar e água, além de
pausas fundamentais, o que diminuiu ainda mais o tempo de exploração do lugar.
O solo. Novamente a questão do solo, que está ligada diretamente em como
o lugar pode influenciar uma obra, aparece. Como a coreografia havia sido criada e
ensaiada em locais com piso liso e próprio para deslizamentos, configurou-se uma
grande disponibilidade para movimentações no solo. Mais que isso, durante o
Experimento Looping, incentivaram-se diferentes tipos de apoios no chão (braços,
cabeça, ombros e etc.), pelas investigações de inversões da relação entre a cabeça
e o cóccix. Com isso, os lugares que mais informam sobre o processo seriam a sala
209 e o Mezanino da Usina das Artes, como pontua o Douglas:
Eu acho que uma coisa que faz diferença é pensar que, como a gente trabalhou mais tempo na Usina do Gasômetro, na 209, e também mais tempo no mezanino da Usina, talvez o trabalho tenha sido informado muito mais por esses dois lugares de uma permanência, do que pela Redenção e pelo terraço da Ju (JUNG, 2014, informação verbal).
112
Para que o heliporto do CAFF informasse tanto quanto a Usina, seria preciso
tempo de trabalho, reconhecimento, apropriação e incorporação. Em vista da
impossibilidade desta opção, restou reconhecer a necessidade de mais vivência no
heliporto e se dar uma última tarefa:
Aí, pra concluir, eu acho que, no espaço de gravação, na locação final, a gente também começou a descobrir coisas diferentes e maneiras diferentes de dar, ver o trabalho e de fazer ele se apresentar no espaço, que talvez valesse a pena ter experienciado mais de uma vez. Pra que essa informação do espaço aparecesse de uma maneira talvez mais potente, tanto pro corpo, quanto pra câmera, mas também foi legal passar pela experiência de chegar com o trabalho, que tem já as suas particularidades, e se dar a tarefa de adaptar ele imediatamente pra um espaço diferente, com outra altura, com toda uma noção diferente de segurança, de espaço, de atmosfera, de temperatura, de ponto de vista lá de cima, a vista que se tem lá de cima, a relação que se tem lá de cima com o entorno é bem diferente de fazer a mesma coreografia fechada numa sala de ensaio. Então, como é que tu projeta foco e presença num lugar que não tem parede e a próxima coisa que tu vê tá a quilômetros de distância de ti, é totalmente diferente (JUNG, 2014, informação verbal).
O lugar pode afetar emocional e corporalmente os corpos videodançante. No
primeiro momento que subimos no terraço, a Fernanda se deparou com um desafio,
o medo de dançar e um lugar tão alto e, aparentemente, sem proteção. Ainda mais,
em se tratando de movimentos de inversão, que, facilmente, desestabilizam o ponto
de referência do bailarino. Sobre esta experiência a bailarina relata:
Não é com relação ao processo, em relação ao processo, pra mim, foi totalmente positivo. Com relação à minha pessoa, foi negativa a questão da altura, porque eu tenho medo e eu me vi numa situação até constrangedora, tipo: “Julia, eu não tô conseguindo fazer”, sabe, tipo: “não tô conseguindo, e agora? E agora?”. Mas aí tu já me veio com uma solução: “fecha o olho”, aí já melhorou. E aí depois também, eu percebi que quando eu enxergava o Doug, a primeira vez que eu tentei fazer a parada de cabeça, o Doug não tava comigo, me filmando, eu olhei pro nada, assim, não consegui. Daí, depois que ele tava me filmando, eu tinha ele como referência, então conseguia ficar com o olho aberto (BOFF, 2014, informação verbal).
Juntamente com a influência emocional da altura, a colaboradora ainda falou
sobre sua fragilidade física em relação ao solo quente e áspero. O medo de se
machucar tornou o solo um elemento não convidativo e de difícil “vínculo afetivo”
para a movimentação e isto modificou as durações (tempo), a receptividade do peso
nos apoios no solo e, consequentemente, o fluxo e o espaço. No entanto, o que a
Fernanda não considera parte do processo, eu, no papel de pesquisadora e
proponente, vejo como “o processo”, pois o movimento aparece contaminado pelo
sujeito, de seus medos, desejos, desinteresses e interesses. Decidi oferecer opções
113
para verificar se seria possível, se o medo da altura se tratava de uma questão de
tempo e adaptação ou se realmente seria o caso de cancelar a gravação. Contudo,
em nenhum momento tive a intenção de ir além dos limites de cada um deles. Como
a Fernanda foi se mostrando cada vez mais confortável em se movimentar,
colocando o Douglas como um ponto de referência em meio ao vasto horizonte, dei
continuidade a gravação, com as pausas necessárias.
Em outra parte da entrevista, a bailarina apontou que se sentiu decepcionada
por não conseguir bloquear o medo. Enquanto observadora, vejo que ela conseguiu,
sim, ultrapassar seus medos, pois a gravação ocorreu dentro das possibilidades de
todo o contexto e circunstâncias, ao ponto de não ter percebido que esta questão
tinha abalado-a de forma mais contundente, pois todos estavam muito interessados
e curiosos para ver o resultado do trabalho naquele espaço.
Sendo assim, a videodança é o resultado de toda vivência individual e
coletiva. De forma geral, na opinião dos dois bailarinos a “peregrinação” pelas
locações contribuiu e nutriu o trabalho, pois todo grupo estava atento, disponível e
sensível às influências externas e como elas transformam os corpos e o movimento,
como demonstra a fala de ambos os participantes:
Eu acho que modificou e enriqueceu, né. Porque daí, de novo, se a câmera e o corpo geram uma especificidade juntos, em cada um dos espaços essa especificidade vai se apresentar de uma maneira diferente. Então eu acho que o produto final foi informado por cada um desses lugares (JUNG, 2014, informação verbal).
Eu vejo... Eu não vejo de forma negativa essa peregrinação, acho que até a gente podia ter experimentado outros lugares, se a gente conseguisse, né. Tinha uma ideia de fazer na areia, na praia e tal. Eu acho que isso enriqueceu o trabalho, poder ver como é que a coisa toda funciona e com mais uma influência, né, que é a influência do espaço, né, a influência do ambiente, do tamanho, da temperatura, da... Da relação com as outras pessoas que tão passando ou não, sei lá, de tu ter uma grade, de tu não ter uma grade, de tu ter uma parede, antes não ter uma parede, enfim. E de perceber o tanto, no momento da experimentação, né, de como que isso influencia e como que influencia no resultado depois da... Pensando na gravação em si, né, eu acho que isso enriqueceu, tipo, bah, tá, isso aqui tem que ter um espaço amplo, espaço amplo funciona muito (BOFF, 2014, informação verbal).
Outro consenso foi a necessidade de fazer este novo lugar do heliporto fluir.
Descobrir os horários, as posições, os apoios ideais, dentre muitos outros elementos
que interferem nas especificidades da câmera e dos bailarinos e deixá-los “respirar”
junto com a coreografia. O que foi impossível de abarcar dentro das limitações das
114
agendas do CAFF, dos bailarinos e da própria pesquisa. Apenas este elemento do
processo já daria uma investigação diferente e complexa.
3.2.4.3 A montagem
Como foi proposta desde o início do processo, a montagem tratou de unir os
planos-sequência e suas emendas, na ordem estabelecida na decupagem, e utilizar
o mínimo possível os efeitos de edição, como recortar, sobrepor, retroceder a
imagem, dentre tantos outros. Os giros realizados pelo bailarino/videasta, no eixo
longitudinal, foram a solução corporal encontrada para que os cortes entre os planos
não fossem secos e as emendas não ficassem tão evidentes. A montagem resultou
na seguinte estrutura:
Figura 35: Esquema demonstando a organização das sequências gravadas em uma montagem, especificando o tempo de cada inserção.
Como não havia o intuito de utilizar a edição através dos softwares de
imagem como ferramenta declarada de criação coreográfica, como acontece
tradicionalmente, as ferramentas de edição utilizadas foram:
a) O efeito de transição de vídeo chamado Dip to White, que faz com que a
imagem fique progressivamente branca. O primeiro foi aplicado na
115
introdução da Fernanda (00;02;57;04) e o outro no final do fechamento
(00;08;13;20), como pode ser visto na videodança presente no anexo E.
Para mim, o fio condutor do Experimento Looping se tornou uma metáfora da
própria relação entre câmera e bailarinos/videasta explorada no decorrer dos
experimentos e procedimentos. Nos planos introdutórios, os bailarinos estão com a
GoPro acoplada ao seu próprio corpo, na cabeça e na altura dos olhos, o que
retoma, de certo modo, as possibilidades vivenciadas no Experimento IV, “Corpo
Cyborg”. Desse modo, a câmera se encontrava sujeita à subjetividade de cada
bailarino. Em seguida, passando para as mãos, em um descolamento pelos giros,
atingindo uma relação de troca e não de adição entre o bailarino/videasta e a
câmera. Este caminho foi trilhado tanto pelo Douglas, como pela Fernanda. E no
momento final, há um descolamento entre GoPro e bailarinos, assim, deslizando, ela
se projeta para além dos dois. A apresentação do heliporto pelo ponto de vista de
cada bailarino, enquanto a câmera se encontra acoplada ao corpo, também remonta
como o lugar era visto, e, de certa forma, sentido por cada um. Fator que foi
deflagrado ao longo do processo como valioso. Estas foram algumas ideias que me
motivaram a estruturar o trabalho da forma como está. Não há com isso o interesse
de que se torne um enredo ou história a ser vinculada à videodança, pois como já foi
dito anteriormente, a ação de videodançar é a essência desta obra, sem temas ou
significações externas ao ato. Todavia, o “apetite semiotizante” (FÈBVRE, 1995
apud DANTAS, 2014, p.1) que se carrega, me fez elucubrar sobre tais associações
e significações como poesia, não como roteiro ou tradução do movimento.
116
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi potente observar, no decorrer de todo o processo, a assimilação e as
contribuições dos bailarinos tanto frente às técnicas criadas e aprendidas, quanto às
ideias e recortes envolvidos pesquisa, dentro deste transito livre e intenso de ações,
reações e relações entre os corpos videodançantes. O conhecimento incorporado
pelos participantes se deu na vivência, nas experimentações, nas repetições que se
mostravam carregadas de apelativo para percepção visual. Todavia, no ir e vir entre
a imagem do vídeo e a ação de videodançar, os bailarinos souberam como criar
uma ponte entre suas percepções cinestesicas, valiosas para o universo da dança, e
os feedbacks fornecidos pelo preview das imagens do vídeo. Ao editar
coreografando e coreografar editando, através dos procedimentos de coreoedição e
endoedição, os participantes incorporaram na sua forma de dançar, tanto em termos
de trajetória e forma, quanto em expressividade e fraseamento, especificidades do
universo do audiovisual, o que demandou um refinamento de sua percepção e
execução do movimento no que diz respeito ao espaço, tempo, fluxo e peso em
relação ao manuseio da GoPro, durante a coreografia.
Neste sentido, considero finalmente que o looping no desenvolver da
pesquisa acabou por desempenhar um papel central, não apenas porque diz
respeito às voltas que a câmera dá e que compõem o trabalho, mas pela dinâmica
de “loop espiral” que o próprio processo assumiu. Ou seja, a “fórmula” encontrada
para desvendar o trabalho e potencializar a relação entre os corpos videodançantes
se estruturou durante as ações cíclicas de fazer, assistir e fazer novamente, em um
movimento de constante transformação e elaboração; pois, conforme Couri (2005, p.
3), “o fim da espiral não é seu início, mas sim um ponto com características
semelhantes ao início da curva, porém já desenvolvido em outro aspecto, seja no
tempo, em certa interação ou evolução”.
Nesse sentido, a gravação final se tornou algo representativo, como um
marco que aponta para a demarcação de um limite estabelecido por esta pesquisa,
com suas possibilidades de tempo, recursos e escolha do seu recorte de análise.
Pois o espiral formado pelo processo poderia e pode continuar sendo percorrido
infinitamente, a partir das imagens gravadas no heliporto do CAFF. E como
popularmente se diz, “um trabalho de mestrado não se termina, e sim se abandona”,
117
porque se reconhece que a prática artística, bem como uma investigação acadêmica
é inesgotável se em cada volta desse espiral se propuser um novo ponto de vista
para o olhar observador ou criador.
Este memorial demonstrou uma possibilidade criativa para a relação entre
bailarinos e câmera, fundindo as ações de gravar e coreografar, através de
diferentes procedimentos, com suas tarefas e estratégias. Com isto, fica latente a
consciência das inúmeras potencialidades que foram, inevitavelmente, sendo
abandonadas no caminho. Ao mesmo tempo, insurgem desejos de continuidades,
que extrapolam os limites temporais desta pesquisa, como: os cortes feitos, a partir
da obstrução da lente da câmera com alguma parte do corpo, levando a um
“blackout corporal”, que não foram aprofundados; a exploração da câmera acoplada
como parte/extensão do corpo dos bailarinos; o contato corporal entre bailarino,
bailarino/videasta e câmera, indo para uma investigação no campo do contato
improvisação, talvez; a exploração do peso livre, com quedas dos corpos e da
câmera; a criação de uma nova estrutura metálica para o equipamento que possa
permitir o afastamento entre o bailarino/videasta e a câmera; dirigir-se para o
caminho da performance, com as videoinstalações; analisar o processo a partir da
recepção dos espectadores, quanto às percepções corporais das imagens
visualizadas; dentre muitas outras ideias que surgiram, também, por parte dos
bailarinos colaboradores. E, porventura, estas ideias seminais tenham continuidade
em outros contextos de investigação, tanto na minha trajetória, como no caminho
trilhado pelo Douglas e pela Fernanda, uma vez que as incorporações desta
pesquisa partem com eles, para se multiplicarem em outros corpos e estudos.
Outra questão importante foi a escolha de não utilizar a edição de imagem, no
ambiente digital, como forma de manipulação e transformação das imagens para a
criação da videodança. A manipulação das imagens nos softwares de edição é uma
característica marcante nos trabalhos de videoarte. No entanto, no Experimento
Looping, optou-se por abrir mão desta possibilidade para que se pudesse observar
mais atentamente o quanto seria possível alterar e dar dinâmica à imagem no
ambiente digital apenas pelo trabalho corporal dos bailarinos em relação com a
câmera, pelo trabalho de elaboração dos fatores de peso, fluxo, tempo e espaço. Se
considerarmos as imagens de todo o processo, principalmente nas gravações no
Mezanino, poderíamos afirmar que é possível imprimir uma dinâmica na imagem
118
apenas pelo trabalho corporal do bailarino, do bailarino/videasta e da câmera.
Todavia, a gravação final, no heliporto do CAFF, não constitui a melhor versão,
quanto ao fraseamento, mas visualmente demonstrou se aproximar mais da ideia
desejada, pelos motivos anteriormente abordados. Nesse sentido, a utilização das
ferramentas de edição poderia contribuir para alcançar as sensações intentadas,
mas seria coerente?
Isso nos leva a colocar em questionamento até que ponto a gravação final
constitui o resultado de todo processo do Experimento Looping. Fica o sentimento
de que se trata, sobretudo, de um início do que de um final. Pois é apresentado aos
corpos videodançantes um novo fator de influência, desconhecido até então, que é o
heliporto do CAFF, com todo um universo de elementos para contribuir. Observo que
em cada local percorrido, o Mezanino, o Parque Farroupilha, o terraço e o heliporto,
são variações dessa formalização coreográfica criada na sala 209. Não se trata de
uma trajetória linear de construção, como blocos colocados uns após os outros. Se
mostra mais como emergências que podem ser vistas isoladamente, mas que fazem
parte de algo maior e que tem ligação nos corpos videodançantes. Contudo,
entende-se a gravação e a edição final como “emoldurar um fragmento de caos”,
como escreveram Gilles Deleuze e Félix Guattari (1991 apud, LOUPPE, 2012, p.
221): “A arte emoldura um fragmento de caos para formar um caos composto que se
torna então sensível.”
119
5. REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. AMOROSO, Daniela Maria. Dançando com as máquinas: um olhar para o copo na
dança e a tecnologia na sociedade através de um espetáculo de dança-tecnologia. Dissertação (Mestrado), Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução de Eloisa Araujo Ribeiro. Campinas: Papirus, 2012. BENDER, Carol. Cinema Dance: the development of an art form as defined by
Busby Berkeley`s work with the Hollywoos musical during the great depression. Albuquerque: The University of New Mexico, 2009. 84p. Thesis (Master) – Master of Arts, Departamento of Theater and Dance, The University of New Mexico, Albuquerque, 2009. BRUM, Leonel. Videodança: uma arte do devir. In: BRUM, Leonel; CALDAS, Paulo; LEVY, Regina (Orgs.) Dança em foco: ensaios contemporâneos de videodança. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012. CALDAS, Paulo (org.). Dança em foco: ensaios contemporâneos de videodança.
Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012. CALDAS, Paulo (org.); BONITO, Eduardo (org.); LEVY, Regina (org.). Dança em foco, vol. 4: Dança na Tela. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009. Vol. 3: Entre
Imagem e Movimento. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2008. CLARKE, June. Pros + thesis. In: HEATHFIELD, Adrian (Org.). Live: Art and Performance. London & New York: Routledge, 2004. COURI, Aline. O loop na arte audiovisual experimental. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 28. 2005, Rio de Janeiro. g.. Rio de Janeiro: INTERCOM, 2005. Disponível em: <http://www .intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R0870-1.pdf> Último acesso em: 25 de junho de 2015. CRAINE, Debra; MACKRELL, Judith. The Oxford Dictionary of Dance. Oxford:
Oxford Press, 2010. DANTAS, Mônica. A pesquisa em dança não deve afastar o pesquisador da experiência da dança: reflexões sobre escolhas metodológicas no âmbito da pesquisa em dança. Revista da Fundarte. Montenegro. Ano 7, nº 13 e nº 14, p. 13-
18, 2007. _______________. Concepções de corpos dançantes na coreografia contemporânea na perspectiva de bailarinos-criadores. In: REUNIÃO DE
120
PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 5. 2009, São Paulo. Anais... São Paulo: ABRACE, 2009. Disponível em: <
http://www.portalabrace.org/vreuniao/textos/ pesquisadanca/Monica_Dantas_-_Concepcoes_de_corpos_dancantes_na_coreografia_contemporanea_na_perspectiva_de_bailarinos-criadores.pdf > Último acesso em: 23 de junho de 2015. ________________. Escolhas metodológicas no âmbito da pesquisa em dança. 2008. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 5. 2008. Belo Horizonte. Anais...Belo Horizonte: ABRACE, 2008. Disponível em:< http://www.portalabrace.org/vcongresso /textos/pesquisadanca/Monica%20Fagundes%20Dantas%20%20Escolhas%20metodologicas%20no%20ambito%20da%20pesquisa%20em%20danca.pdf> Último acesso em: 13 de julho de 2015. ________________. O corpo dançante entre a teoria e a experiência: estudos dos processos de realização coreográfica em duas companhias de dança contemporânea. Do Corpo: ciências e artes, Caxias do Sul, 2011. v. 1. N. 1. Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/docorpo/article/view /1300> Último acesso em: 24 de julho de 2014. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: COSAC NAIFY, 2004. DURHAM, Eunice Ribeiro. A pesquisa antropológica com populações urbanas, problemas e perspectivas. In: DURHAM, Eunice Ribeiro; CARDOSO, Ruth Correa Leite (Org.). A aventura antropológica. Teorias e pesquisas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. FORTIN, Sylvie. Contribuições Possíveis da Etnografia e Auto-etnografia para a pesquisa qualitativa em práticas artísticas. Tradução de Helena Maria Mello. Revista Cena, Porto Alegre, n. 7, p.7-88, 2009. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/cena/issue/view/910/show>. Último acesso em: 22 de julho de 2014. FORTIN, Sylvie; GOSSELIN, Pierre. Considerações metodológicas para a pesquisa em artes cênicas. Art Research Journal/ Revista de Pesquisa em Artes ABRACE, ANPAP, ANPPOM em parceria com a UFRN, Brasil, v. 1, p. 1-20, 2014.
FOSTER, Susan. Empatia Cinestésica e Política da Compaixão. In: FERNADES, Ciane. Estudos em Movimento IV: Dança-teatro, voz e diferença. Salvador: UFBA/PPGAC, 2010. _____________. Choreographing Empathy - Kinesthesia in performance. New
York: Routledge, 2011. GIL, José. O Movimento Total: O Corpo e a Dança. São Paulo: Iluminuras, 2013. GODARD, Hubert. Gesto e percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia. Lições de dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2001.
121
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus editorial, 1978.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação [online], n°19, p. 20-28, 2002. Disponível em: < http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf> Último acesso em: 22 de junho de 2014. LEPECKI, André. 9 variações sobre coisas e performance. Urdimento: revista de estudos em artes cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 19, p. 95-101, 2012. Disponível em: <http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/2012/Urdimento_19/nove_variacoes_sobre_coisas_e_performance.pdf> Último acesso em: 23 de junho de 2015. LOUPPE, Laurence. Poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro,
2012. ________________. Corpos híbridos. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia. Lições de dança 2. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2000. MASCELLI, Joseph V. Os cinco Cs da cinematografia: técnicas de filmagem. São
Paulo: Summus editorial, 2010. MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2007. _______________. Máquina e Imaginário: O Desafio das Poéticas Tecnológicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. MACHADO, Diego. O colecionador de movimentos: ensaios videográficos de
imagem e(m) movimento. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. ________________. Reflexões sobre as relações entre dança e vídeo. Revista Gambiarra, Niterói, n.2, ano II, 2009. Disponível em: < http://www.uff.br/gambiarra
/artigos/0002_2009/danca/DMac/> Último acesso em: 22 de junho de 2014. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, São Paulo: EPU, 1974. MARTIN, Andée. Utopia e outros lugares do corpo. Tradução de Mônica Dantas. Cena 9, Porto Alegre, 2011. Nº 9. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/cena/article/view/22787>. Último acesso em: 22 de junho de 2014. MCLUHAN, Marshal. Os meios de comunicação como extensões do homem.
São Paulo: Cultrix, 1969. MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
122
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011. _______________________. O Olho e o Espirito. Lisboa: Veja, 1992. MIRANDA, R. Dança e tecnologia. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Orgs.). Lições de dança 2. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2000.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes,
1987. PEARLMAN, Karen. A edição como coreografia. In: CALDAS, Paulo (Org.). Dança em foco: ensaios contemporâneos de videodança. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012.
PEREIRA, Sayonara. Rastros do Tanztheater no processo criativo de ES-BOÇO:
espetáculo cênico com alunos do Instituto de Artes da UNICAMP. São Paulo: Annablume, 2010. PRADIER, Jean- Marie. Os estudos teatrais ou o deserto científico. Tradução de
Antônia Pereira. Revista Repertório Teatro & Dança, Salvador, Ano 3, n°4, p. 38-55, 2000. REY, Sandra. Da prática à teoria: três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em poéticas visuais. Revista Porto Arte, Porto Alegre, v. 7, n. 13, p. 81-95, 1996. RENGEL, Lenira Peral. Dicionário de Laban. Campinas: UNICAMP. Dissertação (Mestrado), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinhas, Campinas, 2001. ROQUET, Christine. Da análise do movimento à abordagem sistêmica do gesto expressivo. Rio de Janeiro: O Percevejo, 2011. Vol. 3. N° 1. Disponível em: <
http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/viewFile/1784/1447> Último acesso em: 22 de julho de 2014. ROSENBERG, Douglas. Screen Dance. In: DANCE FOR THE CAMERA
SYMPOSIUM, Madison, 2000. Disponível em: < http://www.dvpg.net /docs/screendance.pdf> Último acesso em: 24 de julho de 2014. ROSSINI, Elcio Gimenez. Tarefas: uma estratégia para criação de performances.
Porto Alegre: UFRGS, 2011. 151p. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 2014. SANTANA, Ivani. Corpo aberto: Cunningham, dança e novas tecnologias. São
Paulo: Educ, 2002.
123
SANTANA, Ivani. Dança na cultura digital. Salvador: EDUFBA, 2006. ______________. Esqueçam as fronteiras! Videodança: ponto de convergência na cultura digital. (edição triligue). In: CALDAS, Paulo; BRUM, Leonel (Org.). Dança em foco. Coleção Dança e Tecnologia. Rio de Janeiro: Instituto Telemar, 2006. SPANGHERO, Maíra. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo: Itaú Cultural, 2003. SUQUET, Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção, In: CORTINE, Jean-Jacques (Org). História do Corpo. Volume 3: As Mutações do Olhar. O século XX. Petrópolis: Vozes, 2008. VASCONCELLOS, Jaqueline. Um olhar sobre o corpo que videodança!
Disponível em: <http://acervomariposa.com.br/vidbr/2012/02/02/um-olhar-sobre-o-corpo-que-videodanca/> Último acesso em: 23 de junho de 2015. VIRILIO, Paul. O espaço crítico: e as perspectivas do tempo real. Tradução de
Paulo Roberto Pires. São Paulo: Editora 34, 2014. WOSNIAK, Cristiane do Rocio. Dança, cine-dança, vídeo-dança, ciber-dança: Dança, tecnologia e comunicação. Curitiba: Curitiba: Universidade Tuiuti do Paraná, 2006, 148 p. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens, Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2006. WEBER, Suzane. Metodologia de inspiração etnográfica em pesquisas de práticas corporais artísticas. In: CONGRESSO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNCIAS, 6., 2010, São Paulo. Anais...São Paulo: ABRACE, 2010. Disponível em: <http://portalabrace.org/memoria/vicongressopesquisaemdanca.html > Último acesso: 23 de junho de 2015. (S.A.) Dicionário Priberam On-line da Língua Portuguesa. Disponível em: < http://www.priberam.pt/dlpo/procedimento> Último acesso em: 11 de junho de 2015. (S.A.). Oxford Escolar para estudantes brasileiros de inglês português-inglês inglês-português. Somerset: Oxford University Press, 1999.
Entrevistas – Fontes de informação verbal
BOFF, Fernanda Bertoncello. Informação verbal. Porto Alegre, 2014.
Entrevista realizada em 27/11/2014, na Casa Cultural Tony Petzhold. JUNG, Douglas. Informação verbal. Porto Alegre, 2014. Entrevista realizada em 27/11/2014, na Casa Cultural Tony Petzhold.
124
ANEXO A – DIÁRIO DE PROCESSO
Experimento I - Deriva
28 de janeiro de 2014
Local: Sala 209 da Usina do Gasômetro
Mesmo que os bailarinos e eu já tivéssemos uma relação próxima fora do
contexto da pesquisa, para iniciar o trabalho foi preciso promover o envolvimento e o
entrosamento com a proposta, para assim começar a explorar a movimentação
pretendida. As vivências prévias dos bailarinos na área da videodança e seu
entrosamento de outros trabalhos contribuíram muito para iniciarmos em um
contexto mais maduro e sólido. Em uma conversa inicial, esclareci como seria
conduzido o processo, abordando tanto os elementos práticos (calendário, horário e
local), quanto conceitual, explanando sobre minhas referências e questões voltadas
aos corpos videodançantes e a GoPro.
A prática deste experimento dividiu-se em quatro momentos:
a) Caminhar | Correr | Saltar
Para Dominique Dupuy (1990, p. 31-33 apud LOUPPE, 2012, p. 70) “o corpo
se sujeita a uma situação próxima do vazio; ele é previamente construído e colocado
no seu lugar. Encontra-se uma espécie de ausência, de silêncio de onde tudo pode
surgir”. Laurence Louppe (2012, p. 70-71) dá continuidade a ideia afirmando que
“toda investigação sobre o corpo requer esse silêncio meditativo e concentrado, em
que o sujeito do corpo parte à procura de si – do outro em si ou de si no outro”. Em
concordância com estas concepções, iniciei todo o trabalho de investigação e
criação do movimento em busca deste “silêncio de onde tudo pode surgir” e para
mim o silêncio nada tem a ver com a imobilidade. Portanto, foi através das ações de
correr, saltar e correr que escolhi começar a trabalhar a percepção cinestésica do
corpo, colocando atenção nas transferências de peso, que é tão elementar para
qualquer movimento, na relação com a gravidade, que se mostra no peso e fluxo, ou
seja, na intensidade de musculatura envolvida para oferecer resistência ou não à
gravidade, os pontos de apoio dos pés, o mais frequente contato do corpo com o
125
solo. Pois, conforme Rudolf Laban (1978, p. 48-49), um dos grandes responsável
por estudar e estruturar um sistema de análise do movimento (no qual me baseei
para o exercício), para além do movimento observado, existe um labirinto de
combinações que demonstram sua complexidade:
Cada fase do movimento, cada mínima transferência de peso, cada simples gesto de qualquer parte do corpo revela uma aspecto de nossa vida interior. Cada um dos movimentos se origina de uma excitação interna dos nervos, provocada tanto por uma impressão sensorial imediata quanto por uma complexa cadeia de impressões sensoriais previamente experimentadas e arquivadas na memória. Essa excitação tem por resultado o esforço interno, voluntário ou involuntário, ou impulso para o movimento (LABAN, 1978, p. 48-49).
É claro que a proposta, aqui, não tinha o intuito de mergulhar em um exame
sistemático das ações envolvidas no caminhar, correr e pular, mas de fornecer
parâmetros aos bailarinos para a construção de uma consciência do próprio corpo e
do outro antes de entrar em contato com a câmera, para que eles possam
acompanhar, atentamente, as transformações que emergem dos diferentes estados
corporais.
b) Stop | Play | Acelera | Desacelera | Retrocede
Após a sensibilização promovida pelas ações de caminhar, correr e saltar
propôs-se dar continuidade com um exercício que consistia em um dos bailarinos
improvisava sua movimentação livremente, enquanto os outros participantes,
incluindo eu, poderiam orienta-lo através das ordens: play (sempre que quiser dar
início ao improviso livre), pause (para que o bailarino busque a imobilidade), acelera
e desacelera (para que o movimento seja realizado em velocidade rápida ou lenta) e
retrocede (o bailarino terá que executar o movimento que acabou de improvisar ao
reverso, até onde sua memória permitir ou o mais próximo do trajeto anterior). Foi
interessante poder ver as características do improviso de cada um. O Douglas tinha
tendência a trazer movimentos espiralados, com um encadeamento mais continuo
entre as partes do corpo, como reverberações, já a Fernanda demonstrava uma
movimentação mais segmentada, com angulações das articulações e com um tempo
mais acelerado.
Para buscar um primeiro contato e diálogo entre câmera (GoPro) e bailarinos,
propus um experimento, ao qual dei o nome de Deriva. Inicialmente, realizamos um
jogo para aquecimento, já buscando referências da linguagem do vídeo e do
equipamento. O jogo consistia em um dos bailarinos dançar livremente, porém
126
atento aos comandos que os que estavam de fora iam fornecendo. Os comandos
eram: play, pause, rebobina, acelerado e câmera lenta. Através desses comandos
era possível "editar" corporalmente o movimento.
O experimento em específico consistia na seguinte tarefa: um dos bailarinos
percorreu um trajeto, à sua escolha, pela Usina do Gasômetro, enquanto o outro o
seguia, registrando a seu modo com a câmera. Foram levantadas possibilidades
antes da realização do exercício de formas possíveis para o registro, como: simular
a caminhada do colega em primeira pessoa, selecionar partes específicas do corpo
para seguir durante o trajeto, correr, circundar e etc. O intuito principal deste
experimento era explorar o funcionamento da câmera e do seu suporte, seu peso, o
centro de gravidade do corpo que porta a câmera, como o meu movimento reverbera
na qualidade da imagem produzida pela câmera, a distância focal que a lente da
GoPro grava e ainda, explorar as possibilidades de criação que podem surgir,
mesmo que em uma simples caminhada.
Como a GoPro não possui visor para que se possa ver em tempo real o que
está sendo gravado, após a realização da tarefa cada bailarino descreveu através da
escrita de um roteiro, o que acreditava ter gravado com o "olho" da câmera enquanto
a guiava. Mesmo sem ver de fato, através de uma memória corporal muscular e
ocular, os bailarinos tinham a noção de como alcançar os enquadramentos
desejados. As únicas dificuldades ao comparar os escritos e os vídeos foi o fato do
ângulo de visão da câmera ser ultra-amplo, isto é, enquadrava praticamente todo
espaço. Para os bailarinos gravarem um detalhe fechado da mão era preciso
aproximar muito o aparelho do membro em questão, sendo assim, em alguns
momentos se pensava estar focando apenas uma parte quando na realidade o
enquadramento era bem mais amplo.
Descrição feita pela bailarina Fernanda Boff a partir do registro do trajeto
percorrido pelo bailarino Douglas Jung:
1. Descendo as escadas: tentativa de movimentar a câmera para cima e para
baixo no mesmo ritmo dos passos.
2. Moldura: afastado, perto e em outro ângulo; mover a câmera rapidamente.
127
3. Labirinto pique-esconde: entre as paredes e portas, jogo de “perseguir”,
perder e procurar.
4. Deitado no banco: tempo desacelerado, filmando no nível do banco, depois
foco na mão.
5. Janela/porta de vidro: troca de lugar.
No geral: pausas, deixar o Doug87 passar e depois buscá-lo, virar a câmera de
cabeça para baixo; mudanças de velocidade tentando deixar a câmera estável ou
instável.
Descrição feita pelo Douglas a partir do registro do trajeto percorrido pela
Fernanda:
1- início no labirinto. Atrás da Fê88, porém não muito aberto.
2 - Entrada no saguão. Muito aberto e foi fechando conforme avançou e parou na
coluna de concreto.
3 - Jogo de espaços ao redor da segunda coluna, corpo inteiro (com pequenos
cortes?).
4 - Entrada atrás dos fornos. Meio corpo de novo.
5 - Corrida plano aberto e distante dela.
6 - Câmera entra no próximo espaço com outra luz. Fê chega e entra na "chaminé".
Câmera de baixo para cima.
7 - Fê sai primeiro, desaparece ao redor das escadas.
8 - Câmera enquadra ela pela grade. Pausa.
9 - Câmera vai até ela.
10 - Passa dela bem de perto.
11 - Obstrui o caminho mais perto ainda.
87
Abreviação do nome do bailarino Doulgas Jung, dado pela bailarina Fernanda Boff. 88
Abreviação do nome da bailarina Fernanda Boff, dado pelo bailarino Douglas Jung.
128
12 - Entra no mezanino 360º. Corrida plano aberto.
13 - Dedo, rosto, ombro - fechado.
14 - Elevador todo corpo.
Experimento II – Duplo Controle
30 de janeiro de 2014
Sala 209 da Usina do Gasômetro
Depois de concretizado este primeiro contato com o equipamento em
movimento, senti a necessidade de desenvolver um trabalho que permitisse
triangular o relacionamento entre os próprios bailarinos e a câmera. Observei que
assim, a presença do equipamento dentro dos exercícios de improvisação se
tornava mais fluido. Para isso elaborei o segundo experimento, o qual chamei de
Duplo Controle. Este experimento teve como referência o exercício um exercício que
realizei ainda no curso tecnólogo em dança, que foi proposto pelo coreógrafo Diego
Mac.
Iniciamos o trabalho com uma tarefa de manipulação, que consistiu em um
bailarino conduzir o outro pela sala, explorando níveis e dinâmicas diferentes de
movimento. Através de um sinal, no caso um aperto no ombro, dava-se o comando
para que o bailarino conduzido abrisse e fechasse os olhos. Sendo assim, o
condutor manipulava a movimentação e o conduzido "gravava" com os seus olhos.
Após os dois bailarinos experimentarem as tarefas de conduzir e ser conduzido, foi
inserido a câmera. O bailarino no papel de conduzido portava a Gopro e tinha a
liberdade de direcioná-la, porém não tinha o controle de sua movimentação corporal
e começava com os olhos fechados, abrindo-os apenas nos últimos momentos do
exercício; o bailarino condutor tinha o controle remoto da câmera que o permitia
escolher quais momentos seriam gravados, ao mesmo tempo em que manipulava o
colega, mas não tinha o controle direto do direcionamento da câmera.
129
Ao dividir os comandos da câmera entre os dois bailarinos, meu intuito era de
explorar as resoluções e diálogos possíveis no relacionamento complexo entre o
meu movimento, o da câmera e o do outro bailarino, e como reverbera e interfere na
imagem capturada, além da seleção, de certa forma, aleatória do que registrar. O
fato de a câmera ser operada pelos dois ao mesmo tempo exigia dos bailarinos uma
trabalho conjunto, envolvimento e atenção.
O resultado das imagens como um todo não apresentaram um valor estético
muito grande. Os olhos fechados do condutor da câmera acabaram fazendo com
que houvesse muito registro de espaços vazios. Sendo assim levanto a importância
da relação entre o "olho" da câmera e o olho do bailarino, podemos dizer que
passamos a visualizar o espaço e criar o movimento, a partir do que o equipamento
é capaz de gravar?
Durante a primeira tarefa, tratamos o olho do bailarino como a estrutura de
uma câmera, com seu diafragma89 regulável por onde a luz entra e as pálpebras
como a “cortina” do obturador90, que abre e fecha, foi possível explorar as diferentes
possibilidades do olho. Em um momento específico, enquanto o Douglas estava no
comando e a Fernanda ocupava o papel de câmera, ele dava o sinal de play e
pause repetidas vezes de forma acelerada, fazendo com que ela começasse a
piscar. Após o exercício tentamos traçar um paralelo com o equipamento e
entendemos que o piscar traz a ideia da fotografia, que possui um disparo, para
abertura e fechamento do obturador e que o vídeo nada mais é que uma sequência
de fotos, os frames, no caso da GoPro, 30 frames por segundo, sendo que o olho
humano consegue piscar apenas 5 vezes em um segundo.
Outro aspecto importante levantado após a tarefa foram as distâncias focais
que o olho humano consegue percorrer instantânea e automaticamente. No caso da
câmera, a cada foto é possível selecionar um foco específico e leva-se tempo para
esses ajustes. O olho percorre o espaço mudando as distâncias focais rapidamente,
o que torna difícil a tarefa de escolher o foco e realizar um "zoom".
Mesmo que as imagens deste experimento não cheguem a contribuir
efetivamente na produção da videodança, foi de extrema importância traçar estes
89
Diafragma fotográfico é o dispositivo que regula o tamanho da abertura do orifício por onde a luz entra na câmera, portanto é um dos reguladores da oferta luminosa que compõe a imagem. 90
Dispositivo das câmeras que abre e fecha mecanicamente permitindo ou não a entrada da luz. Funciona como uma cortina.
130
paralelos entre a câmera e o olho humano. Assim, caminhamos e afinamos nosso
relacionamento com o equipamento, vendo onde nos aproximamos, nos
reconhecemos e onde nos afastamos, nos estranhamos.
Além destas tarefas, experimentamos possibilidades de rolamentos,
caminhadas, corridas e saltos na busca por repertório de movimentos e acomodação
do equipamento ao corpo.
Experimento III – Dos pés a Cabeça
04 de fevereiro de 2014
Sala 209 da Usina do Gasômetro
Visando mais a composição de movimento para a câmera e bailarinos, surgiu
o experimento que chamei de Dos pés à cabeça. Ele se desenvolveu em dois
encontros.
A tarefa realizada neste experimento consistia em cada um dos bailarinos
criarem cinco movimentos para ir do nível alto para o baixo, inicialmente sem a
câmera. Posteriormente, o bailarino com a câmera, que irei chamar de
bailarino/videasta para melhorar o entendimento da proposta, tinha que criar uma
movimentação para seguir e registrar duas partes do corpo do outro bailarino
durante a realização dos cinco movimentos dele. Era possível escolher duas partes
do corpo e criar a movimentação separadamente e depois juntá-las em uma só,
escolhendo o que mais funcionou ou escolher as duas partes do corpo e criar a
sequência, alternando de uma vez só. Neste primeiro encontro foram criadas as
sequências de movimento das seguintes duplas: Douglas (bailarino/videasta) e
Fernanda (bailarina), Julia (bailarino/videasta) e Douglas (bailarino), Fernanda
(bailarino/videasta) e Julia (bailarina). Todos experimentaram todos os papéis.
A exploração e criação seguiram a seguinte dinâmica: cada bailarino/videasta
experimentava a movimentação, assistíamos ao vídeo, reelaborávamos ângulos e
enquadramentos e repetíamos, até atingir alguma proposta satisfatória. Neste
laboratório ficaram mais claras ainda as dificuldades e benefícios da GoPro não ter
visor. A memória para realização dos enquadramentos acontece por relações
131
espaciais e sensoriais do corpo, dois elementos fundamentais para a dança. Ou
seja, a memorização do caminho da câmera para alcançar a imagem desejada se dá
pelo movimento e pela relação espacial entre os dois bailarinos e a câmera. Talvez
prejudique no sentido de tornar mais trabalhosa a composição dos quadros e a
exploração das possibilidades, mas torna a relação entre corpo e máquina mais
íntima, pautada tanto em princípios vindos da dança, bem como do vídeo.
06 de fevereiro de 2014
Sala 209 e Mezanino da Usina do Gasômetro
No início do segundo encontro do experimento Dos pés a cabeça surgiu uma
questão durante a conversa inicial, a respeito do desejo de continuar desenvolvendo
algumas ideias que haviam surgido desde o início dos experimentos e que se
mostravam potentes questões de pesquisa de movimento e o desejo de uma
liberdade maior para experimentação das questões propostas, não tão codificadas
como os exercícios a serem cumpridos. Eu fui a primeira a demonstrar, como
proponente do projeto, meu desejo por seguir minha intuição quanto à mudança na
metodologia e tive um reforço positivo dos bailarinos.
Começamos pegando as sequências isoladas e conectamos uma na outra,
pensando no transito da câmera da mão de um bailarino para o outro. Exploramos
diferentes formas e escolhemos a seguinte ordem de bailarino/videastas: Douglas,
que está gravando a movimentação da Fernanda, passa a GoPro para mim, que
gravo a movimentação do Douglas, e posteriormente passa o equipamento para
Fernanda, que agora irá gravar a minha movimentação. Como se trata de uma
sequência gravada sem cortes, resolvemos a presença do terceiro bailarino que não
está envolvido na movimentação gravada a cada dupla, com corridas e a
possibilidade de desaparecer do quadro se colocando atrás do bailarino/videasta da
vez.
Após todo esse trabalho de conexão das cenas, na tentativa de realizar uma
transição de um processo mais metódico para algo com um grau maior de liberdade,
mas ainda sem muita reflexão ou elaboração, realizamos um improviso. Este
132
improviso não foi livre, mas semiestruturado e tinha a seguinte proposta: iniciar com
a sequência, sem cortes, dos cinco movimentos criados anteriormente, ao terminá-la
começar um improviso onde era possível modificar a ordem das sequências e das
duplas, pegar emprestado a movimentação de outro bailarino, brincar com as
corridas propostas como resolução para o terceiro bailarino e etc. Esta parte foi
realizada no espaço do mezanino também da Usina do Gasômetro, por ser mais alto
e ter mais espaço.
A partir deste improviso, várias ideias brotaram, dentre elas evidencio como
promissoras: as inversões de câmera de cabeça pra baixo, em relação aos
bailarinos que também invertiam a relação cabeça – cóccix; as corridas em relação
aos giros com a câmera – a GoPro gira em uma direção enquanto o bailarino corre
em um círculo no sentido inverso; passagens de câmera da mão de um bailarino
para o outro fazendo com que o público perca a referência de quem está com o
equipamento.
Experimento IV – Corpo Cyborg
11 de fevereiro de 2014
Sala 209 da Usina do Gasômetro
Este experimento propôs três tarefas: pesquisar movimentos de auto
filmagem, ainda utilizando a estrutura de suporte da Gopro e as possibilidades com
a câmera acoplada no peito e no ombro. Neste encontro trabalhei apenas com a
Fernanda, por questões de disponibilidade de horários. No decorrer da
experimentação, o que mais chamou atenção foi a criação de um novo corpo,
"alienígena". As deformações anatômicas, devido ao acoplamento da câmera,
causou estranhamento na bailarina, que se mostrou desconfortável de se ver no
vídeo, eram os braços desconectados, pernas muito prolongadas e os contornos do
rosto desproporcionais que apontavam que no vídeo não se tratava mais da
Fernanda, mas dela em simbiose com a câmera.
133
A partir dessa reflexão, começamos a tentar agregar a esse corpo alienígena
outro corpo, o meu. Tentamos trabalhar no sentido de construir um Frankentein91,
mas que em determinado momento abrisse ao publico a independência das partes
que o compõe, instigando o espectador a tentar desvendar suas partes.
Reunião
14 de fevereiro de 2014
Minha casa
Essa reunião foi marcada para que pudéssemos assistir a todo o material
gravado com mais calma e qualidade de imagem, expor questionamentos e
percepções do trabalho e discutir sobre como conduzir o processo a partir disso. Vi a
necessidade desta conversa principalmente pela questão metodológica levantada no
último encontro.
Começamos o encontro assistindo aos vídeos e a partir deles reconhecemos
que cada experimento era uma célula de criação em si. Na Deriva, podíamos
continuar trabalhando para substituir a caminhada simples pelo movimento dançado,
mas manter o motivo criativo percorrendo um trajeto pela cidade; no Duplo controle,
foi levantada a necessidade de repensar os olhos fechados, deixar a gravação sem
cortes e trabalhar o contato entre os bailarinos e câmera, propondo espaços
pequenos, claustrofóbicos; a partir do Dos pés à cabeça, surgiu a ideia de trabalhar
com a inversão da orientação da câmera, brincando com o espaço, onde em um
momento chão e teto invertem as posições, bem como os bailarinos podem brincar
com a relação cabeça – cóccix, jogando e dialogando com o espaço contido na
moldura de cada frame da gravação e ao mesmo tempo trabalhar as transições de
câmera entre os bailarinos em diferentes espaços; e mesmo que embrionariamente,
o experimento IV trouxe a possibilidade de um motivo de pesquisa de movimento a
partir do corpo “deformado”, alienígena, onde mãos e braços de indivíduos
91
"O temor a este corpo oco podendo ser causado pelo desenvolvimento da tecnologia e da ciência, condição que levaria à criação de um Ser-monstro, tem como ícone maior a obra de Frankenstein, de Mary Shelley" (SATANA, 2006, p. 17).
134
diferentes compõe um novo corpo que videodança, causando confusão para o
espectador.
Não havendo tempo hábil para possibilitar um aprofundamento do processo e
da reflexão, foi preciso fazer escolhas, dentre tantas possibilidades de criação e de
temas para discussão, principalmente por se tratar de uma área ainda tão fértil de
possibilidade e ainda pouco explorada. Para dar continuidade ao processo foi
escolhido o experimento III - Dos pés a cabeça como o motivo criativo que mais
dialoga com os interesses e referências mais presente no momento, pois é o que
mais instiga uma correlação entre os bailarinos e a câmera.
Experimento V – Experimento Looping
21 de fevereiro de 2014
Mezanino da Usina do Gasômetro
Como resolvido na reunião, começamos a aprofundar o Experimento III como
metodologia para continuar a pesquisa. Optamos pelo improviso semiestruturado,
isto é, trabalhamos com improviso, tendo como base para a exploração as inversões
de orientação da câmera dialogando com as inversões de orientação na relação
cabeça - cóccix do corpo dos bailarinos, o que chamamos de Experimento Looping.
A improvisação se mostrou interessante por "obrigar" o contato e a relação direta
entre os bailarinos e entre os mesmos e a GoPro.
Começamos brincando especificamente com as paradas de mão
dessincronizadas com a inversão da câmera, testamos planos fechados e abertos.
Depois deixei livre para que os bailarinos experimentassem diferentes formas de
inversões de apoios, por exemplo, apoio dos pés para as mãos, dos joelhos para
cabeça, dos quadris para os ombros e etc., enquanto eu manipulava a câmera,
experimentando diferentes qualidades para o movimento de inversão, por exemplo,
de forma brusca, turbulenta, sugerindo o mesmo balanço dos corpos dos bailarinos,
de forma lenta e continua, no sentido contrário à inversão dos bailarinos e etc.
Após assistir o material, surgiu a questão sobre o porquê algumas inversões
nos faziam acompanhar corporalmente o movimento contido na imagem que
135
assistíamos, nos deixando até mesmo nauseado, enquanto outras causavam um
distanciamento, uma desconexão com o movimento. Dentre as questões levantadas
estava o tempo e o caminho do movimento da câmera ser possível ao corpo
humano, como se deixasse o espectador em uma espécie de “primeira pessoa”.
Sendo assim, pedi para que os dois bailarinos tentassem encontrar esse tempo e
caminhos para a câmera, pois senti necessidade de parar para observar as imagens
e os corpos em movimento.
Ficou claro ao assistir que além do tempo e do caminho, outro elemento muito
importante para o looping era a proximidade entre câmera e bailarino. De certa
forma, nas primeiras explorações a câmera e os bailarinos se mostravam frios ao
diálogo, cada um tinha sua tarefa e podiam executá-la sem necessariamente ter que
se relacionar, neste primeiro momento a câmera se mostrava mais dominadora e
impositiva no jogo com as inversões e os bailarinos mais exibicionista em relação a
ela. No momento em que há essa aproximação, quando não se isola as tarefas de
cada um, começa a haver uma troca pra construção do looping, tanto bailarino
quanto câmera, cedem tempo e espaço para a criação do caminho do looping.
A partir dos vídeos desse encontro irei editar um novo vídeo com um plano-
sequência composto a partir dos momentos e movimentos interessantes e que mais
contribuem para o trabalho, colocando-os em uma ordem coreográfica. A esse
procedimento dei o nome de Coreoedição. Esse vídeo servirá de material para o
trabalho dos outros encontros e assim progressivamente.
Procedimento de composição I & II
Coreoedição & Endoedição
07, 21 e 28 de março de 2014
Sala 209 da Usina do Gasômetro
Casa dos Estudantes Universitários da UFRGS
No decorrer destes três encontros se trabalhou a partir da coreoedição feita a
partir dos vídeos do Experimento Looping. A coreoedição foi feita da seguinte forma:
136
assisti aos vídeos e fiz uma seleção, tendo como critério a sintonia do
relacionamento bailarino - câmera e os loopings que mais proporcionaram esta visão
em primeira pessoa para o espectador. Após escolher os fragmentos, organizei-os
em uma sequência coreográfica, porém fiz questão de não trabalhar a transição de
um fragmento para outro através dos efeitos de edição no computador, deixei os
cortes secos para que as transições fossem trabalhadas no corpo. Por se tratar de
uma edição feita dentro da “matriz”, ou seja, a partir dos corpos videodançantes,
nomeei esse processo de Endoedição.
O processo de resgatar as relações traçadas entre bailarino - câmera -
espaço foi muito rico para levantar questões. Dentre elas evidencio: o acúmulo de
papéis que a câmera passou a ter, como bailarina, aparato tecnológico audiovisual e
potencializador da presença do espectador. A câmera emoldura o espaço em
frames, o que a princípio pode trazer a sensação de engessamento, porém acredito
que mais do que delimitar o frame, nesse trabalho, a GoPro dinamiza esse espaço,
o preenche com movimento. A câmera, a máquina, desenvolve e provoca uma
sinestesia, o espectador não apenas assiste aos looping, como também se envolve
corporalmente com eles, perseguimos com a cabeça o movimento realizado pelo
bailarino-câmera. Resgatar tanto da memória visual, quanto da muscular, tátil, o
movimento e sua relação com o espaço foi trabalhoso, cansativo e demandou tempo
e reflexão. A Fernanda relatou que na maioria das vezes era mais fácil remontar a
sequência e acessar a movimentação pensando nas imagens do vídeo do que na
movimentação corporal dançada em si. A afirmação nos levou a questionar até que
ponto estava-se de fato pensando no movimento enquanto bailarinos e videastas,
simultaneamente, ou ainda há uma grande dominação do visual em detrimento da
vivência corporal como um todo. É visto que imprimimos uma movimentação em
diálogo com a câmera, mas quais as qualidades que damos à movimentação do
nosso corpo quando estamos no comando da GoPro? Esquecemos o corpo
videodançante e apenas nos tornamos videastas?
137
Procedimento de composição III
Endoedição - Cortes
14 e 16 de abril de 2014
Casa Cultural Tony Petzhold
Após os encontros para remontar a coreodição, iniciamos o trabalho de
construir cortes dentro da própria movimentação. Os cortes consistiam em tampar
com alguma parte do corpo a lente da câmera. A tentativa era de reproduzir o corte
dos programas editores de vídeo de forma mecânica, para que a utilização dos
programas de computador se resuma a apenas para a escolha da ordem das
sequências e efeitos de cor. As primeiras tentativas acabaram não bloqueando
totalmente a entrada de luz, devido às partes do corpo escolhidas não terem boa
aderência da superfície da lente. Após observarmos as gravações, escolhemos
novamente os pontos de corte, levando em conta também os movimentos que
sucediam a abertura do quadro, o desbloqueio da lente. Percebemos que a
sensação de continuidade era maior e mais agradável se o movimento que vinha
após a desobstrução da câmera tinha mais deslocamento espacial. Movimentos
pequenos, mais internos, não passavam a sensação de continuidade, quebravam o
fluxo da coreografia. Decidiu-se então, retornar o foco para o estabelecimento de um
fraseamento em planos-sequência e não fragmentá-los mais.
Experimento VI - Espaços
03 de maio de 2014
Parque da Redenção
A primeira tentativa de locação para a gravação final foi o Parque da
Redenção, onde repassamos tudo que já havia sido montado. Verificamos que este
espaço não contribuía muito para a ideia de looping do trabalho, a oposição céu e
terra não ficava tão demarcada, além do gramado não oferecer um solo regular para
os trabalhos de equilíbrio e inversão cabeça - cóccix dos bailarinos. Outro importante
138
aspecto observado, foi a grande quantidade de informações que a Redenção tem,
poluindo a videodança com informações que não necessariamente dialogavam.
Neste dia a Lícia Arosteguy (apoio audiovisual), tirou algumas fotos do processo.
17 de maio de 2014
Terraço do prédio residencial da Juliana Werner
Com essa ideia bem marcada da inversão e a oposição de céu e terra, veio a
ideia de buscarmos lugares elevados, como terraços para experimentar ter a cidade
e o céu para jogar. Conseguimos um terraço no 22º andar, na região central da
cidade para explorar. As imagens registradas atingiram nossas expectativas.
Começamos com um improviso, pensando nas caminhadas e nas passagens de
câmera de um bailarino para outro e quando sentisse vontade retomar partes da
videodança que já estava montada. No início da manhã o céu estava nublado,
ficando difícil ver a cidade, mas no meio da manhã o céu se abriu e as sombras
formadas com o sol, colocavam o bailarino que conduzia a câmera no
enquadramento da imagem. Então exploramos essa possibilidade, jogando
espacialmente com o que já havíamos formalizado da videodança e para esse
momento, no contexto deste estudo, finalizamos o trabalho artístico. Fica a
sensação de que muito mais poderia vir e futuramente tenho certeza que
continuaremos aprofundando, em outros contextos de pesquisa e criação.
Neste momento estamos investigando possibilidades de outros terraços e
possivelmente um heliporto para gravação final da videodança, bem como os
figurinos. Ou seja, o momento é de produção da filmagem para a finalização e
refinamento do exercício como um trabalho artístico formalizado.
139
Ensaios
05 de maio de 2014
08 de maio de 2014
18 de setembro de 2014
Casa Cultural Tony Petzhold
Para que o trabalho não se perdesse entre a pausa que ocorreu do dia do
experimento no Parque Farroupilha, o Terraço do prédio residencial e o heliporto do
CAFF foram realizados ensaios. Nestes encontros foram repassados todos os
materiais já formalizados, dando foco não apenas a trajetória da câmera, mas
principalmente na manutenção do fraseamento, dinâmica, incorporada.
Foi no ensaio do dia 05, que passei minha parte no plano-sequência criando
no Experimento III – Dos pés a cabeça. A minha parte enquanto bailarina, foi
aprendida e adaptada para o corpo do bailarino Douglas, minha parte como
bailarina/videasta foi aprendida e adaptada para o corpo da bailarina/videasta
Fernanda. Assim, fechou o circuito de transito da câmera entre os dois em um plano-
sequência.
Produção Final – Gravação
16 de novembro de 2014
Mezanino da Usina do Gasômetro
Heliporto do Prédio Administrativo Fernando Ferrari (CAFF)
O dia amanheceu nublado, mas com o passar da manhã foi firmando um dia
de céu limpo, azul, sem nuvens. Na parte da manhã retomaram-se os planos-
sequências que constituíam a base da videodança. Ensaiou-se até retomar a
dinâmica proposta ao decorrer do processo, relembrando as trajetórias e fazendo os
últimos ajustes antes da gravação. Todos almoçaram e se dirigiram ao heliporto do
CAFF juntos. Lá mesmo os bailarinos se trocaram e maquiaram. Ao chegar no topo
do prédio, a primeira coisa percebida foi o chão áspero e quente, tornando-se difícil
140
o deslizamento e a intensidade da incidência solar sobre os bailarinos. Infelizmente,
o horário disponibilizado para a gravação era das 14h até as 17h, sendo que a
Fernanda teria que sair entre 16h e 16h30min. Foi o único horário em que se
conseguiu conciliar o horário dos bailarinos e do prédio. Então, resolveu-se enfrentar
o desafio. Fez-se um rápido reconhecimento do lugar, adaptaram-se os movimentos
de deslizamento, para caminhadas e rolamentos, assim como, se diminui o tempo
de permanência nas paradas e equilíbrios em apoios nas mãos, cabeça, e ombros.
Com esse contexto de tempo e características do lugar, perdeu-se muito dos
frasemantos ensaiados até então. Não que o resultado das imagens gravadas não
tenha sido bom, potente, todavia, aparece mais como o início de algo novo, a partir
do que já tínhamos estabelecido, do que uma consagração de tudo que havia sido
composto até então. Sendo assim, assume-se como obra final? Utilizam-se os
softwares de edição para tentar se aproximar da dinâmica, até então estabelecida?
Como ouvi muitas vezes da coreógrafa Bia Diamante, atuante em Porto Alegre e a
quem admiro, “o processo é soberano” (informação verbal). Nesse sentido, há que
se observar entender e assumir, cada devolução do processo a sua proposta, como
uma possibilidade de looping infinito, enquanto houver desejo de transformação e
isso não se acaba com o fim desta pesquisa.
141
ANEXO B - O equipamento
Para que seja possível dançar com a câmera é necessário uma câmera que
permita uma maior mobilidade, que não seja excessivamente pesada e que seja
resistente a impactos, para que o bailarino possa se movimentar confortavelmente,
sem ter que se preocupar em não danificar o equipamento. Pensando nestes
fatores, decidi por trabalhar com a GoPro. Tive meu primeiro contato com ela no
Laboratório de Videodança da Faculdade de Artes do Paraná (FAP).
A GoPro é uma câmera digital voltada originalmente para registrar esportes e
possui a qualidade de uma câmera profissional, com a vantagem de ser versátil. Foi
criada por Nick Woodman em 2005, através de sua empresa Woodman Labs, que
teve a ideia a partir de sua frustração por não conseguir fotos de qualidade enquanto
surfava. Inicialmente se tratava de uma câmera analógica, com filme de 35mm,
equipada com uma lente grande angular, um case para utilizar embaixo d'água, um
cabo disparador e uma alça para acoplar ao pulso.
Figura 36: Primeiro modelo GoPro Hero 35mm e seus acessórios92
Posteriormente evoluiu para o formato digital, onde começou a gravar 10
frames por segundo, de 3 Megapixel. Sua configuração atual de lente fixa com um
92
Disponível em: < http://zona55biketeam.blogspot.com.br/2012/12/reportagem-lancamento-gopro-hero3.html> Último acesso em 23 de julho de 2014.
142
ângulo de 170 graus de largura em vídeo de alta definição de 1080p. O modelo da
GoPro utilizada nesta pesquisa é a Hero 3+, Black edition, que possui qualidade de
vídeo e captura de imagem profissional, tem Wi-Fi integrado, o que permite a
visualização do que está sendo gravado e das fotos em uma aplicativo no celular e o
operar a câmera tanto pelo aplicativo, quanto pelo controle remoto que acompanha a
câmera.
Figura 37: GoPro Hero 3+ Black edition e seus acessórios93
Para a realização do Experimento IV - Corpo Cyborg foi necessário apenas as
alças que permitem acoplar a máquina ao corpo, acessórios que a própria GoPro já
produz e comercializa, porem para viabilizar o manuseio e trânsito da câmera entre
os bailarinos de forma eficiente e que favorecesse a mobilidade foi preciso construir
um suporte. A estrutura construída é circular, sem arestas para não machucar os
bailarinos e para o contato com o chão ser mais suave. Possui três alças acopladas
a uma chapa pequena de metal, onde a câmera é fixada - o acessório fixado à
chapa já veio com o kit - sendo que as alças estão direcionadas atrás da câmera,
respeitando o angulo de 170 graus de abertura da lente, para as mesmas não
invadirem o quadro da imagem captada. O material utilizado foi o metal soldado com
9mm, para garantir um certo peso e assim maior estabilidade para o deslocamento,
93
Disponível em: < http://www.preciolandia.com/br/go-pro-hero-3-black-edition-nf-na-caixa-8ridla-a.html > Último acesso em 23 de julho de 2014.
143
bem como resistência. Esse suporte e caixa de proteção da GoPro permitem
inúmeras possibilidades: ela pode ser lançada, sofrer impactos, que o bailarino
grave a si mesmo, mudanças rápidas de angulação, perspectiva, mais de um
bailarino segurá-la ao mesmo tempo e tudo isso amplia e tudo isso interfere e amplia
a mobilidade na busca desses corpos que videodançam.
Figura 38: Foto do suporte metálico projetado exclusivamente para o projeto. Crédito da foto: Julia Lüdke.
Os encontros foram registrados em vídeo, por uma segunda câmera, e as
conversas foram gravadas em arquivo de áudio, para que detalhes não se
perdessem, auxiliando na reflexão e escrita da dissertação, bem como para
acompanhar a evolução do trabalho. Para esse registro foi utilizada uma câmera
Cannon EOS T2i e a uma lente 18-55mm.
144
ANEXO C - Roteiro da entrevista semiestruturada utilizado com os bailarinos
colaboradores Fernanda Boff e Douglas Jung, após o término do processo.
Histórico dos Bailarinos
1. Quando é como sua relação com a dança teve início?
2. Quais técnicas, de forma geral, gênero de dança e professores na sua formação
corporal como bailarino você considera indispensável citar? E qual delas te
ajudaram no desenvolvimento desta pesquisa?
3. Qual sua experiência com videodança? Já havia trabalhado antes? Em que
contexto? Se sim, quais ou quem são suas referências?
4. Desenvolveu ou está desenvolvendo algum outro trabalho de criação que se
relacione/ converse com esta pesquisa?
5. Já havia tido contato com a câmera GoPro antes?! Se sim, em que contexto?
Processo Criativo
6. O que mais lhe interessou/motivou a participar desta pesquisa?
7. Como você descreveria sua relação com a câmera no decorrer do processo até o
dia da gravação final? Principalmente quanto a adaptação e refinamento da inserção
da câmera na sua movimentação, se ajudou, atrapalhou, ou seja, as dificuldades e
as facilidades de execução e de criação.
8. Como se sentiu assumindo a posição de videomaker, além do seu papel de
bailarino?
9. Quais foram suas percepções a respeito da criação do movimento em interação
com a câmera, a partir da proposta do ateliê "Dos pés à cabeça", com tarefas
definidas, em contraponto com o improviso semiestruturado do procedimento de
coreoedição?
10. Como você vê o procedimento de coreoedição em comparação com o método
de muitos coreógrafos de compor a partir da improvisação dos bailarinos?
11. Como você pensa essa transferência de lugares/locais e suas diferenças
influenciaram no trabalho, no decorrer do processo, primeiramente na Sala 209 e
mezanino da Usina das Artes (Usina do Gasômetro), depois no Parque Farroupilha
(Redenção), o terraço de um prédio residencial e para a locação final, no terraço do
Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF)?
145
ANEXO D – Áudio transcrição da entrevista semiestruturada, realizada com os
colaboradores Fernanda Bertoncello Boff e Douglas Jung após a gravação
final processo criativo.
Entrevistado: Douglas Jung
Entrevistador: Julia Lüdke
Data: 26/11/2014 – 19h35
Local: Casa Cultural Tony Petzhold - Avenida Cristóvão Colombo, 400 - Porto
Alegre, Rio Grande do Sul
Julia Lüdke – A primeira pergunta que eu queria fazer pra você é: quando e como
começou a sua relação com a dança?
Douglas Jung – Eu era bem, bem pequeno, e desde sempre, né, a família do meu
pai era mais festeira e eu via sempre todo mundo dançando, e meu pai dançava
com a minha mãe em casa, e a gente aprendia a dançar com a minha irmã. Aí, uns
anos mais tarde, ela, minha irmã, começou a fazer ballet, e a escola de ballet onde
ela fazia aula era do lado do escritório onde os meus pais trabalhavam, né. Então,
quando ela ia pra aula, eu ficava fora da escola, espiando pela janela e vendo ela
fazer aquilo, e aí, quando a gente chegava em casa, eu pedia pra ela me ensinar
aquilo que ela tinha aprendido na aula de ballet. E a gente usava uma bicicleta como
barra, varão da bicicleta como barra, e aí ela me ensinava as coisas mais básicas,
assim. Então eu devia ter o que? Uns sete, oito anos. Aí depois teve todo um
período que eu não podia fazer, que meu pai é professor de futebol, né, e eu tinha
que jogar futebol, não podia fazer ballet. Então, na adolescência, teve um período
também que a escola da minha irmã me chamou pra fazer umas coisas, e daí a
situação meio que piorou, porque né, eu já não tava mesmo mais na idade de não
entender que aquilo não era pra mim, supostamente. Então rolou toda uma proibição
e aí, com 19 anos, eu fui atrás da dança sozinho. Começou bem cedo, mas o
envolvimento mesmo com a dança foi bem tardio, já tinha 19 anos, 18 pra 19.
Julia Lüdke – Depois desse período, né, quando você começa a sua formação em
dança, quais as técnicas, de forma geral, modalidade de dança, professores,
pessoas que você considera indispensável citar na sua formação como bailarino? E
quais delas te ajudaram mais especificamente pra desenvolver esse trabalho?
146
Douglas Jung – Essa pesquisa contigo?
Julia Lüdke – Isso. De forma geral, quais que você acha que são indispensáveis
citar, pra tua composição corporal como bailarino, e qual dessas você acha que te
ajudou mais pra desenvolver essa pesquisa comigo?
Douglas Jung – Que difícil essa pergunta, porque eu passei pela mão de tanta
gente, né. Mas enfim. Eu acho que a primeira professora sempre é muito importante,
porque também depende dela a coisa de... Esse primeiro contato é muito precioso,
eu acho, né, e eu dei a sorte de cair na mão de uma pessoa muito fantástica, que é
Neusa Martinotto o nome dela. Lá em Canela, eu fazia jazz com ela, e tinha uma
outra professora, que já tinha sido formada por ela, que é a Maria Lina, que me dava
aula de tecido e circo acrobático. Então começou aí, né, essa coisa do envolvimento
mesmo começou com o jazz, com a Neusa, e com a Maria Lina, com os aéreos. Aí
depois, eu acho que a próxima revolução foi com a Lu Paludo e a Tati Rosa. Na
época do experimental, bastante coisa aconteceu, e ali que eu vi que alguma coisa
começou a ser direcionada pro lugar onde eu tô hoje, assim de entendimento de
dança, de entendimento de corpo. Aí, fora do Brasil, acho que tem dois nomes que
são bem especiais, que é a Libby Farr, que é uma professora de ballet, e também
mudou muita coisa no meu entendimento de corpo, de dança e de ballet, sobretudo.
E o Matej, que é um professor e parceiro de trabalho, que a gente compartilha
bastante coisa, assim, da visão, dos desejos e das vontades, tanto como criador,
como quanto praticante de dança, pesquisador de estúdio, pião de estúdio, como eu
gosto de chamar. Então acho que são esses, assim, essas seis pessoas, de dois em
dois.
Julia Lüdke – E pra esse trabalho tem algum desses que você citaria mais, que
mais te ajudou, mais te deu recurso, ou você acha que todos eles...
Douglas Jung – Eu acho que todos eles tão juntos, em progressão, mas os dois
últimos são, acho que, os que mais afetam esse trabalho. Tem outras coisas, né,
uma outra parte da minha pesquisa, que eu acho que informa muito mais o que eu tô
fazendo contigo do que especificamente o trabalho desse professores, mas eu
consigo ver essa relação muito, muito próxima entre uma coisa e outra, porque eu
comecei a me interessar pelo o que eu me interesso hoje muito pelo contato com
147
essas pessoas, então não dá pra isolar assim. Que é a questão dos olhos, do ponto
de vista, é... Sobre as coisas, que eu acho que interferem bastante quando a gente
tá falando do trabalho com câmera, né, com um ponto de vista externo ao corpo,
mas aí eu preciso... Pelo menos pra dentro dessa pesquisa, eu acho que eu entendi
que é: pra que certas coisas funcionem, eu como performer preciso antever o que a
câmera vai ver, então esse também requer um treinamento, uma certa prática, que
eu comecei a usar e acessar com o Matej e com a Libby, e que depois veio pra
dentro da minha prática como performer, como coreografo, como pesquisador e etc.
e tal.
Julia Lüdke – E com a videodança, qual é a sua experiência? Você já teve
experiências anteriores, trabalhos anteriores com a videodança?
Douglas Jung – Já, eu fiz dois trabalhos com o Diego Mac, um foi o “Por Baixo da
Mesa” em 2006, eu acho, no Casa Bild. Depois ele fez o “Colecionador de
Movimentos”, e aí eu doei alguns movimentos pra ele. Teve um trabalho com o
Airton Tomazzoni, que chamava “Bem Passado”, que também era videodança. Aí eu
fiz um projeto na escola, de videodança, na escola em Salzburg, em que eu fiz
roteiro, fiz direção coreográfica e fiz edição, tipo, todo o processo, do início ao fim
era com a gente, e o teu agora.
Julia Lüdke – E os que você fez aqui, antes de fazer direção e roteiro, você fez
sempre como bailarino ou participou da concepção?
Douglas Jung – Sempre como performer. Teve um, é engraçado até, porque essa
foi o único contato com o conceito e com a concepção da coisa, que também foi com
o Diego, que ele fez o videodança com pipocas, chama “Pas de Corn”. Então, o
envolvimento com isso, foi que isso eu dei a ideia de brincadeira, que na época ele
tinha comprado uma placa de vídeo nova e eu disse: “bah, agora vai fazer até
pipoca” e ele pegou essa sacada e fez um ballet com pipocas. Então esse, talvez de
todos, tenha sido o primeiro que eu me envolvi por acaso com o conceito, com a
imagem da coisa, enfim. Mas foi muito por acaso, os outros todos foram como
performer, à parte desse que eu fiz sozinho.
Julia Lüdke – Quais são as tuas referências nessa área de videodança?
148
Douglas Jung – Ah, não, peraí, teve mais um projeto. Eu fiz uma assistência
coreográfica no terceiro ano e a coreógrafa que tava trabalhando resolveu formalizar
o processo dela com o vídeo, que aí é o “Camilith”. Ela já tem bastante produção em
videodança, e aí eu fiz assistência coreográfica, limpeza do material e a assistência,
enfim, nas gravações e toda essa coisa. Não cheguei a me envolver na edição, mas
na gestão do movimento, dos planos e espaços onde a gente gravou, nesse
processo todo eu tava bem envolvido. Então, mais um.
Julia Lüdke – E quais são as tuas referências, nessa área de videodança, assim, de
trabalhos, artistas...
Douglas Jung – Não tem muitas, na verdade. Mas tem coisas que eu gosto
bastante, que são: o Philippe Decouflé, que é o DV8, os trabalhos mais antigos
principalmente. Tem coisas do La La La Human Steps, que são fantásticos pra
videodança. E, honestamente, de produção nova e de coisa, de material mais fresco
assim, que não seja referência histórica de videodança, coisas que são muito é...
Como é que eu posso dizer? Relevantes historicamente ou esteticamente não tem,
não tem muita referência assim, de coisas novas. Eu acho que por isso até que o
projeto me seduz bastante assim, porque é uma das primeiras coisas que eu vejo
em muitos anos que não é baseada numa mecânica de narrativa, de filmagem, de
edição, de concepção, que seja inovadora de verdade, é uma das primeiras coisas
que eu vejo que me atrai por isso, também.
Julia Lüdke – Você desenvolveu, isso você já meio que respondeu antes, ou está
desenvolvendo trabalhos que você acha que se correlacionam diretamente com o
que você tá fazendo nessa pesquisa? Seus trabalhos de criação de alguma forma
tem um link muito forte com essa pesquisa que você esta desenvolvendo?
Douglas Jung – Sim. Quer dizer, eu não sei também se importa, se é o meu
trabalho que se relaciona com a pesquisa ou vice versa, né. Porque, na verdade,
todas as coisas que eu tô fazendo hoje, de uma certa forma começaram antes do
meu envolvimento com a pesquisa. Logo, o material que eu ofereço dentro da
pesquisa vai refletir essas coisas que eu vejo fora, mas sim, tem uma conexão
bem... Na verdade, não importa, né, primeiro o ovo ou a galinha nesse caso, a não
149
ser que a gente fosse fazer uma análise bem precisa. Mas sim, tem, tem toda uma
relação e uma retroalimentação de coisas.
Julia Lüdke – Tem algum que você gostaria de citar?
Douglas Jung – Por exemplo, o trabalho do coletivo, um trabalho novo agora, que a
gente vai mostrar no sábado, o “Ìgbà”, a gente enxerga ele como um exercício de
contemplação, como uma música pros olhos. Então é o dirigir movimento pra que
ele seja lido pelo olho do espectador, com uma ordem e com o recorte preciso,
“agora a gente quer que vocês vejam isso, agora a gente quer que vocês vejam
aquilo”, é muito semelhante de dirigir câmera, né. Então eu tenho que pensar do
ponto de vista do espectador e eu tenho que pensar do ponto de vista de performer,
como eu dou a ver o detalhe que eu tô querendo mostrar, é como é que funciona a
mecânica de apreensão do olho, né. Eu foco o objeto e aí eu abro ele, dou zoom no
objeto e apago um pouco do horizonte do que tá acontecendo ao redor. Quando eu
volto pro horizonte, eu fecho o objeto e abro o horizonte de novo. E essa é uma
mecânica que é muito parecida com o olho da câmera, né. Então esse jogo de
pontos de vista, por mais que a plateia não vá se mover, a gente tá pensando a peça
e os espaços e os motivos coreográficos e a maneira de executá-los, já jogando com
esse elemento foco, né. Então eu acho que isso já é uma informação bem
substancial, assim. Nas áreas que eu dou e nas outras coisas que eu faço, o foco
também é bem importante, eu gosto de já associar isso, né, de puxar as pessoas e
dar pra elas, trazer pra perto delas, a noção de que a gente não dança no vácuo e
de que a gente precisa continuar vendo, pra continuar sendo visto no espaço de
performance de dança. Que isso também é parte da generosidade, que isso
aumenta o tamanho do movimento, que isso aumenta e refina as qualidades de
performance, então acho que o foco tem... O foco e a minha posição no espaço tem
bastante a ver, o que eu dou a ver através do movimento e aonde eu ponho o foco e
todas as questões, eu acho que elas atravessam a tua pesquisa e a tua pesquisa
atravessa essas questões. Ah, tem mais uma coisa que eu lembrei agora: por
exemplo, no nosso trabalho com a GoPro, eu mencionei antes que é como se... Eu
entendo que eu preciso antever o que a câmera vai ver, mas a câmera não tá perto
do meu olho, então eu preciso desenvolver habilidades de foco, de observação,
tanto com os meus olhos, quanto com outras áreas do meu corpo, pra poder
150
manipular a câmera e fazer a tomada precisa que o trabalho tá pedindo. Então é
como se essa mecânica da visão e da posição do olho, do enquadramento das
coisas, do meu ponto de vista com relação ao corpo do outro, que no caso é a
Fernanda, tivesse que ser apurada e refinada de dois pontos de vista, e não de um
só. Do ponto de vista do meu olho, pra prender a cena global e enxergá-la de fora,
pra então escolher o quê que eu vou captar mais de perto, ou o que eu vou seguir,
que dinâmica vou dar pro movimento do olho da câmera; e também com as minhas
mãos, né, pra eu saber e ter uma noção exata de que se o olho da câmera tá na
posição que vai captar aquilo que eu antevi. Faz sentido?
Julia Lüdke – Todo o sentido.
Douglas Jung – Tá, é isso.
Julia Lüdke – Agora, você já tinha desenvolvido ou tido contato com a câmera
GoPro?
Douglas Jung – Não.
Julia Lüdke – Nunca tinha manipulado nem pra outros fins?
Douglas Jung – Não.
Julia Lüdke – O que mais te interessou e te motivou a participar dessa pesquisa?
Douglas Jung – Eu acho que foi o fato de ela ser, primeiro, de videodança, que é
uma coisa que se formaliza e se pensa de uma maneira bem diferente daquilo que
eu tô acostumado a pensar e formalizar, né, envolvido com outras questões
também. O corpo é super importante, super presente, mas tem uma outra mecânica
por trás da composição, tem uma outra mecânica por trás da finalização e de toda a
coisa da pré e pós-produção que me interessa muito. E o fato de ser com uma
câmera diferente que tá envolvida no processo de coreografia, de feitura da
coreografia, o fazer coreográfico tá muito conectado com o papel da câmera e vice
versa. Tipo, a coisa de ela estar dentro da coreografia, de ela ser um terceiro corpo,
ou um terceiro olho, ou nenhuma dessas coisas, mas ela ser uma entidade dentro
do espaço que a gente cria, faz toda a diferença, né, não é um ponto de vista fixo
ou, como é o de uma câmera normal, né, convencional, que vai estar captando uma
151
coisa que eu tô fazendo, não necessariamente em relação a ela. No trabalho com a
GoPro, a relação com ela e com-de-para a câmera, ela já tá intrínseca no momento
em que tu liga ela e que tu põe ela dentro da coreografia, ela já é parte da dança, é
borrada essa margem de onde acaba o trabalho do vídeo e onde começa o trabalho
da composição coreográfica. Acho que a via contrária é mais fácil de delimitar, mas
pra gente, dentro do processo, dentro da execução daquela dança, é bem difícil de
marcar esse limite, assim. E isso é super sedutor, assim, é bem instigante e suscita
toda uma curiosidade, tanto imediata quanto depois que a coisa já aconteceu,
porque enquanto tu tá fazendo, tu quer tentar entender e otimizar e refinar o teu
trabalho de captador de imagem, enquanto tu continua sendo performer de dança. E
aí depois que tu vê o resultado daquilo gravado em vídeo, tu consegue assistir, tu
vai fazer o trabalho mental de reconstruir aquele padrão de movimento e dalí tu pode
tirar mais refinamento pra próxima tomada, entende. Ao mesmo tempo que tu te vê
dentro da cena, tu consegue te enxergar fora dela, na frente e atrás da câmera, por
dentro e por fora,o elemento gerador e o elemento captado pelo olho da câmera. É
bem bonito, é bem cheio de coisa pra cavocar.
Julia Lüdke – Como é que você descreveria sua relação com a câmera no decorrer
no processo, até o dia da gravação final? Pessoalmente, quanto às adequações, os
refinamentos, a inserção da câmera na movimentação, se ajudou, atrapalhou, quais
foram as dificuldades e facilidades de execução e de criação?
Douglas Jung – Eu falei bastante agora sobre isso, mas eu acho que tem uma
coisa que tem que acrescentar, que é: eu acho que nesse caso não existe ajuda ou
atrapalha, é só diferente. É uma lógica diferente que se cria, tanto pro corpo, quanto
pra câmera. Então, quando a gente fala de linguagens, a gente fala de linguagem da
dança, linguagem da videodança, dançar com uma câmera na mão produz uma
outra coisa, né, que daí eu não sei se é dança, se é videodança, se é o quê ou o que
eu tô falando também, mas que uma coisa interfere e modifica a outra e que eu não
colocaria como “ajuda” ou “atrapalha”, mas diferencia, né, fomenta o aparecimento
de outras coisas. A distribuição do meu peso e a distribuição do meu peso
segurando uma câmera, em movimento é outra, logo eu vou ter que me relacionar
com essa câmera e com o meu próprio corpo ao mesmo tempo, de uma outra
maneira. E se eu ainda colocar na roda o fato de que essa relação entre o meu peso
152
e o peso da câmera vão gerar uma qualidade diferente de imagem, quão mais for
refinado o meu saber corporal com relação a isso, aí tem um pano pra manga pra
ficar trabalhando nisso por anos, né, porque eu sempre vou descobrir uma maneira
diferente, uma maneira de saltar, me locomover sem que essa ação prejudique a
qualidade da imagem que tá sendo captada, como é que eu posso fazer isso de
diferentes maneiras? E mesmo do ponto de vista de produção: como é que eu posso
criar um outro suporte que vai otimizar essa captação? Como é que eu posso, a
minha relação com o espaço onde essa dança tá acontecendo, ela precisa de um
piso específico ou não precisa de um piso especifico? Ela precisa de um manejo da
cor e da luz especifico e manipulado praquele lugar, ou como a gente fez no terraço
com a luz do sol funciona? Mas aí que cores eu vou botar nisso? O movimento
funciona naquele piso do mesmo jeito que ele funcionava no estúdio? Não, não
funciona. Que compensações vão acontecer? Como é que o corpo resolve isso?
Como é que o coreógrafo resolve isso? Como é que o diretor de cena e de vídeo
resolve isso? Então, eu acho que o lance da relação com a câmera é muito do
experimentar e do se manter curioso, do deixar que a proposta e o resultado da
proposta continuem mudando, continuem se alterando, continuem se
retroalimentando, continuem se fazendo mútuas perguntas e diferentes perguntas
todas as vezes. E daí, em cima daquela resposta, é que vai aparecer a próxima, a
gente meio que... Eu tenho a impressão de que, quanto mais se tenta fechar ou
quanto mais a gente, durante o processo, tentou fechar coisas, à principio menos
interessante era o produto, ou a resposta poética que a gente tinha. Quanto mais
aberto e mais experimental e mais livre de parâmetros, mentira, com parâmetros,
mas livre dentro dos parâmetros, ou pra combinar parâmetros, mais interessante ia
ficando o resultado das coisas. Teve uma vez que eu lembro, que a gente comentou
que a dança que tava aparecendo e as imagens tava aparecendo eram super
arquitetônicas, lá na Usina. Eu acho que, isso aconteceu, e aí eu acho que foi
naquele mesmo ensaio que a gente resolveu abrir a estrutura e improvisar e prestar
mais atenção no espaço. E daí, dalí foi uma avalanche de ideias novas que
escorreram pra dentro do trabalho. E, na gravação, já lá no heliponto, o espaço que
a gente tava, que era muito mais limpo, e no nosso entorno, né, vazio e muito limpo,
mas tinha muita coisa ao redor que a câmera captava, precisava captar, talvez
pudesse captar ainda mais e que informava uma certa qualidade daquilo que a
153
gente tava dançando lá em cima, né. E coisas novas apareceram também nesse dia,
porque eu acho que a gente conseguiu se manter com o olho vivo e aberto, e o
coração aberto também, pro trabalho, pra deixar o espaço também nos informar
outras coisas, de continuar exercitando o papel de observador, dentro e fora do
trabalho, pra dentro do trabalho, pras mecânicas e dinâmicas que ele tem dentro
dele e quando pra fora, no lugar que a gente vai fazer ,o quê que a gente vai gravar,
o quê que a gente tá informando com isso, o quê que é possível fazer com essas
coisas. Enfim, é isso aí.
Julia Lüdke – Como você se sentiu assumindo a posição de videomaker, além do
papel de bailarino?
Douglas Jung – Ah, é tri bom (risos). É bem bom. Eu não sei se eu preciso falar
muito mais do que isso, porque eu acho que é super pessoal. Se tem uma coisa que
me deixa curioso, porque eu não sei como funciona no corpo, no espaço, ou o
conceito daquilo, mas aquilo tá envolvido no trabalho em que eu tô participando, eu
vou tentar fazer as duas coisas renderem o máximo possível. Eu acho que esse
projeto tinha essa característica muito forte, de te dar na mão uma coisa que tu não
sabe como funciona, e o material que tu vai gerar com esse elemento tu também
não sabe como é que ele vai funcionar, a priori. Então tu vai ter que te manter
curioso do início ao fim do processo pra poder entender e gerar um produto
interessante, quanto o projeto, fisicamente, do ponto de vista da câmera e o jeito que
a tomada, o ritmo da tomada, o ponto de vista, a observação do corpo do outro,
todas essas coisas que eu já falei antes fazem com que, fizeram na verdade, com
que eu me mantivesse curioso durante todo, todo o processo. E envolvido com essa
tarefa de ser videomaker e bailarino ao mesmo tempo, que é bem diferente. Eu acho
que, é, foi uma experiência bem boa.
Julia Lüdke – Quais foram suas percepções a respeito da criação do movimento e
interação com a câmera, a partir da proposta do atelier “Dos pés à cabeça”, que
tinha tarefas definidas, em contraponto com o improviso semiestruturado do
procedimento de coreoedição, que virou procedimento de coreoedição depois? Mais
especificamente sobre esse contraponto das duas estruturas.
154
Douglas Jung – Ah, eu acho que funcionou, pra mim, pelo menos, funcionou,
porque o lance “Dos pés à cabeça” foi super importante pra entender mais e melhor
da relação com a câmera e do tipo de imagem que eu gero, né, do meu colega e do
espaço. E aí, talvez não tanto pra formação, pra formatar material, eu acho que ele
serviu muito justamente por isso, por dar noções de ritmo, de mecânica, de peso, de
ponto de vista pra informar o que aconteceu depois. Porque eu acho que, se a gente
tivesse continuado fechando e coreografando estritamente, marcando coisas, o
frescor teria se perdido. E ele sempre voltou, no momento em que a gente abria,
deixava coisas novas aparecerem e essas coisas novas já apareciam informadas
pela prática “Dos pés à cabeça”, né. A coisa do feedback também, de ter um ponto
de retorno do vídeo e a gente poder assistir, e repetir aquele mesmo motivo de
improvisação, ou mesmo motivo coreográfico, poder voltar nesses lugares e fazer de
novo, isso foi muito bom. Mas eu acho que, pela prática bem fechada, com a
proposta super bem desenhada e mais restrita, pra depois abrir, foi o que funcionou
mais pra mim. Não sei se eu respondi a pergunta.
Julia Lüdke – Respondeu. Como você vê o procedimento de coreoedição em
comparação com o método de muitos coreógrafos, de compor a partir da
improvisação dos bailarinos? Colocando essas duas estruturas em comparação.
Douglas Jung – Peraí, repete a pergunta, por favor?
Julia Lüdke – Como você vê esse procedimento de coreoedição, de improviso, de
selecionar, cortar, depois a gente fazer as conexões, em comparação com esse
método muito usado por muitos coreógrafos, que é usar o improviso dos bailarinos
pra compor, isso pra uma cena e não pra um vídeo. Em comparação, como é que
você vê as duas coisas?
Douglas Jung – Mas tu coloca o vídeo nos dois casos?
Julia Lüdke – Não, um sem o vídeo e um com o vídeo.
Douglas Jung – Eu acho que é muito diferente, porque se o bailarino tá
improvisando e não tem nada que registre, e ele vai ter que recuperar aquele
material, a maneira de acessar é totalmente diferente, muda tudo, resignifica tudo.
Porque tu não vai aprender de novo o mesmo material, que foi o que a gente fez
155
com a câmera, ela te dá essa possibilidade de recuperar exatamente aquele
material, cortar, picotar, amassar, virar ele do avesso e conectar com outra coisa,
mas tu tem essa possibilidade de aprender de novo aquilo que tu já fez uma vez.
Com a improvisação sem registro, eu acho que o registro tá dentro do aparelho
gerador da coisa, então tu vai ter que acessar a memória daquilo e talvez já não seja
mais tão preciso, e tu vai ter que recuperar. E eu acho que daí, sim, nesse sentido
tem uma semelhança, que é: todas as vezes que eu tive que recuperar material de
improvisação e eu quis ficar estritamente com o que eu lembrava, não tinha lógica
nenhuma. A partir do momento em que eu deixava ele aberto e deixava ele mudar e
coisas novas aparecerem de dentro, apesar de ser a mesma raiz de memória, aí a
coisa começava a andar de novo. E daí nisso sim, eu acho que dá pra comparar, é
só a maneira de acessar a memória, o registro e a maneira de manipular o material
são totalmente diferentes pra mim.
Julia Lüdke – E tu acha que tem mais precisão com o material gravado ter acesso a
esse material e recuperar, mas tu acha que perde muito nessa mobilidade do
improviso do que você recupera numa memória corporal, e a que você recupera
numa memória imagética, né, digital, pra pegar...
Douglas Jung – Perde, eu acho que perde. Porque daí a gente tá falando de
produção e reprodução, que é uma coisa diferente de gerar ou de aprender, de
executar ou copiar, acho que daí a gente tá falando de coisas bem, bem, bem
diferentes.
Julia Lüdke – E tu acha que no processo de coreoedição a gente se exilou só no
ato de copiar, resgatar, ou você acha que teve respiro, ou não?
Douglas Jung – Teve, teve sim, teve sim. Porque teve coisas que a gente teve que
mudar, né, em função do espaço, em função do ritmo, em função de “ah, essa
tomada fica melhor daqui, então vou ter que mudar o espaço do teu movimento”,
depois que a coreografia já tava fechada, aí também eu não vou continuar fazendo
ela e ela não vai aparecer de novo com a mesma intenção que apareceu na
improvisação, ela vai ter outros signos mecânicos, outros signos imagéticos, outros
signos espaciais que vão resignificar ela. Então, na verdade não tá nunca fechado,
eu posso continuar dando respiro pra ela de outras maneiras, é só a maneira de
156
colocar as pecinhas do quebra cabeça de volta que é mais durinha, assim. E tem
como objetivo fixar e construir uma coisa que possa ser repetida, né. Que, no fim
das contas, coreografando com a memória de uma improvisação, também vai
acontecer mais ou menos a mesma coisa, mas aí eu acho que a maneira de acessar
a memória e o registro é que fazem toda a diferença, que deixou mais ou menos
duro, mais ou menos poroso, mais ou menos aberto.
Julia Lüdke – Tu também já deu uma tocada no assunto, mas se você tem alguma
coisa que você queira resgatar dessa pergunta pra acrescentar: que é a questão do
espaço final, como é que você pensa essa diferença de toda a criação dentro da
sala da Usina do Gasômetro, em primeiro lugar, depois no mezanino, aí a gente
chegou a usar a Redenção, o terraço da Juliana e, no final, a gente passou pro lugar
final e escolhido como locação de filmagem foi a CAFF, que a gente só teve contato
uma vez, pra filmar. Como você pensa essa transição de lugares, você acha que, de
alguma forma, prejudicou ou modificou?
Douglas Jung – Eu acho que modificou e enriqueceu, né. Porque daí, de novo, se a
câmera e o corpo geram uma especificidade juntos, em cada um dos espaços essa
especificidade vai se apresentar de uma maneira diferente. Então eu acho que o
produto final foi informado por cada um desses lugares. Eu acho que uma coisa que
faz diferença é pensar que, como a gente trabalhou mais tempo na Usina do
Gasômetro, na 209, e também mais tempo no mezanino da Usina, talvez o trabalho
tenha sido informado muito mais por esses dois lugares de uma permanência, do
que pela Redenção e pelo terraço da Ju. A gente chegou a trabalhar aqui algumas
vezes também, na Tony Petzhold, mas eu acho que esses lugares informaram
menos o trabalho do que os lugares que a gente permaneceu mais. Aí, pra concluir,
eu acho que, no espaço de gravação, na locação final, a gente também começou a
descobrir coisas diferentes e maneiras diferentes de dar, ver o trabalho e de fazer
ele se apresentar no espaço, que talvez valesse a pena ter experienciado mais de
uma vez. Pra que essa informação do espaço aparecesse de uma maneira talvez
mais potente, tanto pro corpo, quanto pra câmera, mas também foi legal passar pela
experiência de chegar com o trabalho, que tem já as suas particularidades, e se dar
a tarefa de adaptar ele imediatamente pra um espaço diferente, com outra altura,
com toda uma noção diferente de segurança, de espaço, de atmosfera, de
157
temperatura, de ponto de vista lá de cima, a vista que se tem lá de cima, a relação
que se tem lá de cima com o entorno é bem diferente de fazer a mesma coreografia
fechada numa sala de ensaio. Então, como é que tu projeta foco e presença num
lugar que não tem parede e a próxima coisa que tu vê tá a quilômetros de distância
de ti, é totalmente diferente. Eu acho que a câmera capta esse tipo de
particularidade, então, se alguma coisa, eu diria que a gente precisava ter feito mais
de uma vez em cima, lá na locação final.
Julia Lüdke – Teria mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar que seja
importante sobre o processo ou acha que já falou tudo?
Douglas Jung – Acho que já tá bom, só quero agradecer bastante, bastante,
bastante pelo crédito, as ideias e pela oportunidade de participar e pela felicidade de
ter participado. Obrigado.
158
Entrevistado: Fernanda Bertoncello Boff
Entrevistador: Julia Lüdke
Data: 27/11/2014 – 13h06
Local: Casa Cultural Tony Petzhold - Avenida Cristóvão Colombo, 400 - Porto
Alegre, Rio Grande do Sul
Julia Lüdke – Então, pra gente começar, eu queria saber: quando e como a sua
relação com a dança começou, teve início?
Fernanda Boff – Ahm, que começou, começou, começou acho que começou como
começa pra quase a grande maioria, que é lá de pequenininha, fazendo aula de
ballet e sapateado. Daí eu fiz, sei lá, eu comecei desde que tava na escolinha, na
creche, devia ter três anos, eu acho. Daí fiz, daí eu era super envolvida assim, até
hoje, quando eu encontro a minha profe de ballet da escolinha, ela lembra. Eu tava
contando essa história esses dias até, que a gente dançava a música do Pimpão, do
Ursinho Pimpão, e que eu chorava dançando assim, que era muito emocionante e
tal, e ela lembra até hoje, que marcou muito ela. E pra mim, eu sempre fiquei muito
envolvida com essa parte da dança, né. Daí eu fiz ballet e sapateado na Vera
Bublitz, aí depois eu fui pra Vera Guerra, que é dança moderna. Mas tipo dança
moderna, não a dança moderna que depois a gente aprende na faculdade o que é
dança moderna, é uma dança moderna assim, meio que fazer o que a música fala
sabe? Uma dança criativa, eu acho até mais do que... Também não, porque dança
criativa tem um outro olhar, enfim, tá então nesse não-lugar aí. Mas é, acho que ela
colocou esse nome pra ter essa liberdade de não ter uma técnica muito específica,
né. Daí, nessa época, eu fiquei com um problema na coluna, uma hiperlordose bem
forte assim, e aí o médico, por ingenuidade, disse que eu tinha que parar de dançar,
que era a dança que tava me dando problema. E eu acreditei, minha mãe acreditou
e eu parei de dançar. Eu fiquei um tempo sem dançar e aí, claro, hoje eu vejo que foi
bastante ingenuidade do médico, mesmo porque tudo bem, até podia ser as aulas
que eu tava tendo, mas não era a dança o problema e sim o professor ou professora
que não tava cuidando disso, né, dessa parte, não era a dança, né. Mas eu nunca
deixei de dançar, mesmo não fazendo aula, tipo, sei lá, ficava dançando sozinha em
casa direto, no quarto, enlouquecendo. E aí depois que eu fui de fato, daí que eu
considero mesmo um envolvimento com a dança, seria esse, não sei, se primeiro,
159
tipo, conhecer a dança? Mas acho que, né, estamos falando de envolvimento
mesmo, pensar a dança como uma profissão, quando eu escolhi fazer faculdade
assim, que também foi bem por acaso. Que eu pensei tipo: “ah, eu parei de dançar,
não faço mais aula há um tempão, será que eu sou capaz, né, não tenho formação
técnica nenhuma...” Naquela época eu tinha essa visão também bem fechada, né,
de dança, tipo: “ah, tem que ser formada em ballet, ou tenho que pelo menos ter,
estar numa escola de dança há oito anos, né, no mínimo, fazendo... Como é que eu
vou ser professora? Como vou entrar na faculdade?” Mas aí, como não tinha mais
nada que me interessasse, daí eu resolvi arriscar e aí, bom, aí que eu virei, eu
considero realmente um envolvimento. Eu mergulhei de cabeça, assim, nessa
história de “tá, então isso vai ser minha profissão, é isso que eu quero, então eu vou
correr atrás todo tempo perdido, todo esse tempo que eu não... Que eu não fiz aula,
que, né, que eu deixei de saber coisas sobre dança, nesse tempo que eu vou estar
aqui”. Isso foi daí em 2009, quando eu passei no vestibular.
Julia Lüdke – Então, desde esse início até agora, quais técnicas, de forma geral,
modalidade de dança e professores, é indispensável citar? E qual dessas que você
citou você acha que mais te ajudou a desenvolver essa pesquisa comigo?
Fernanda Boff – Que legal essa pergunta. Deixa eu pensar... Tá, eu comecei assim,
também, de fato a fazer aula no grupo experimental. Então eu acho que seria
indispensável falar dos primeiros professores, assim, nessa fase mais focada, né,
em dança. Então eu acho que a Eva, Eva Schul, né, falando dos primeiros
professores, o Airton Tomazzoni, o Alexandre Rittmann e o Carlos Nunes, que é do
hip hop. Mas não acredito que esses foram os que mais me ajudaram, digamos, pra
desenvolver o trabalho contigo. Eu acho que eles são emblemáticos por isso, porque
foram os primeiros que, como... O Airton principalmente, assim, porque foi com o
Airton, e eu até falo isso no meu TCC, que eu pude me libertar um pouco dessa
ideia de dança como algo mais formal assim, né. Ele, né, foi com ele que eu, pra
mim eu tive a dança contemporânea, tipo a Eva dá dança contemporânea, mas ela
tem uma técnica bem específica e o Airton dava os laboratórios de criação, né, no
grupo experimental. E aí foi ali que eu vi, nossa, tipo, eu sempre me achei uma
pessoa super criativa assim, e eu pensei: “eu posso usar minha criatividade aqui
também”, não é repetir uma coreografia que alguém vai fazer, né, eu posso e, enfim.
160
Então eu acho que o Airton, sim, seria uma... Uma influência, assim, desde esse
início até hoje. Daí depois continuei no grupo experimental por mais dois anos,
continuei fazendo, daí tinha aula de ballet, de educação somática com a Bia... Dança
contemporânea, daí tinha a Didi, o André Spolaor, depois teve a Karenina, depois...
É bom ir pensando, tá, então eu acho que de influências específicas pro teu trabalho
eu diria, bem forte: o Airton, a Karenina, a Didi e o Doug. Pra mim eu acho que o
Doug é uma influência mais recente, mais inspiradora, digamos assim, é tanto
tecnicamente quanto esteticamente, se é que eu posso fazer essa... De uma busca,
tanto é que agora eu tô fazendo aula com ele e, tipo, depois que eu decidi sair do
grupo experimental também, eu pensei: “agora eu quero focar em algum trabalho
corporal que...” Daí, fora do grupo experimental, né, que eu acho que foi onde tive
mais aulas, eu diria o Diego, que é da parte circense, Diego Esteves. Porque, que
também daí é o que eu tenho agora de treinamento corporal. São as artes circenses
e a dança contemporânea do Douglas Jung. Tá, então esses dois seriam os mais
importantes, né, de técnica, técnicas circenses, equilíbrios acrobáticos, mais
especificamente, daí o Doug e daí de influência mais geral, assim, que eu acho que
me acompanha como algo que impregnou assim, corporalmente, o Airton, a
Karenina e a Didi. E aí tem a Mônica também, que me influenciou muito, mas mais
na parte acadêmica, de certa forma ela tá em mim assim, eu acho né, não como
técnica corporal, mas como perspectivas talvez. Acho que é isso.
Julia Lüdke – Qual a sua experiência, daí agora com videodança? Já havia
trabalhado antes? Em que contexto? E, se sim, quem são suas referências na
videodança?
Fernanda Boff – Deixa eu tentar me lembrar como é que eu conheci o videodança,
acho que foi no grupo experimental também, com algum dos laboratórios do Airton,
acho que a gente ia na P.F. Gastal, lá na que é a sala de cinema lá da Usina do
Gasômetro, assistir coisas. Aí eu fiz uma oficina de videodança no Festival Dança
em Foco, com o Marcos Moraes, então acho que ele seria a minha primeira
referência, assim, e aí... Tu era do meu grupo! Agora eu me lembrei, verdade! Quem
era? Era eu, tu, a Clarissa...
Julia Lüdke – Não lembro bem, eu só lembro de ti, pra falar bem a verdade.
161
Fernanda Boff – (Risos) Eu acho que aquele foi meu primeiro contato assim com
videodança, assim, tipo, tá, fazendo e pensando videodança. E aí já ali eu pensei:
“nossa, isso é muito legal, eu quero fazer isso!”, Mas né, daí foi ficando, ficando. Aí
no outro ano teve outra oficina do Dança em Foco, que foi de projeção. Daí essa tu
não fez, mas a Luisa fez, a Luisa era do meu grupo. Mas eu nem lembro o nome da
guria da oficina, porque a oficina não foi muito boa, então... Mas o trabalho dela era
bem legal, ela trabalhava com... Ela projetava coisas nas coisas, a Karenina também
tem um trabalho assim, tipo, tu filma um sofá contigo e daí tu projeta no sofá e tu tá
no sofá, né, essas brincadeiras assim. Mas a guria era uma professora péssima
assim. O trabalho dela era ótimo, mas ela era uma péssima professora, eu não me
lembro o nome dela. Tu vê, assim, não marcou, a oficina não me marcou. Aí, nesse
ano... Não, no ano anterior, que a gente fez o “Faz de conta que” no grupo
experimental, a gente gravou um vídeo de divulgação pro “Faz de conta que”.
Pensando um pouco, assim, mas foi uma coisa bem rápida, o Marcelo fez, não dá
pra chamar de videodança, eu acho. Depois disso teve o projeto do Diego, de
videocirco, e daí eu participei, tipo filmando e dando ideias, assim. Então videocirco
e videodança, né. Ganhou o Açorianos de dois mil e... Sem ser ano passado, o
outro, 2012, de Novas Mídias, que é... Daí também acho que foi a minha primeira
experiência profissional, digamos assim, com vídeo. Teve apoio, teve financiamento
do Catarse, isso em 2012. Aí 2013, já ano passado, com o Desdobramentos, né,
que é essa ideia de cada um pegar o seu projeto artístico, né, a sua ideia e botar em
prática, eu pensei: “bah, eu acho que é esse o momento de eu começar a focar no
vídeo mesmo”, assim, porque é uma coisa que eu tenho interesse e não... Enfim,
acabei não investindo, porque às vezes precisa de alguém puxando e eu pensei: “tá,
então é agora”. Daí eu fiz esse projeto, que virou o Experimento Portabilidade, e
também, aquela coisa, né, nunca, nunca é como tu imagina, mas rolou, fez, foi
indicado pro Prêmio Açorianos e agora passou numa mostra lá de São Carlos, uma
mostra de videodança. Aí ok, esse ok, daí eu participei do curta Ao Teatro, que a
parte que é da Nicole... Fischer, Nicole Fischer e o Marcelo Andrighetti, que é a
parte de dança ali que a gente fez, enfim, é a história sobre um espetáculo e aí o
elenco desse espetáculo, né, que eram duas pessoas, o cara tá de cadeira de rodas
e a mulher adoeceu também, e aí eu e o Diego seríamos o outro elenco, e ela vai
assistir, né, isso. Só que eu achei que a parte que a gente faz, que é a parte de
162
dança, ficou um videodança dentro do curta, assim, ficou muito legal. E acho que
também eu citaria como uma experiência de vídeo dentro disso. E aí, né, agora eu tô
com esse outro projeto do “Tudo que vai, volta”, que eu acho que tem a ver também
porque é isso, isso que eu te falei na tua entrevista: eu tenho a tendência de pensar
muito com o vídeo, não necessariamente fazer o vídeo, mas o vídeo como
ferramenta pra criação, assim, de alguma forma ele tá comigo ou... Eu não sei
explicar muito bem, eu penso isso, eu penso nas possibilidades de vídeo, assim, na
possibilidade que ele tem a mais que o corpo não tem, e que junto com o corpo
potencializa muito, né, uma criação artística. E me interessa muito isso, me interessa
muito. E aí, bom, aí o que eu fiz contigo, agora, acho que não me esqueci de nada.
Ah, agora no... Ontem, quarta-feira, a Paola também fez, se apresentou na Reitoria,
ela fez a performance dela e ela me chamou pra acompanhar, e eu disse: “ah,
Paola, posso te filmar? Posso experimentar umas coisas?”, e daí eu fiquei filmando
ela e foi tão legal, tão legal! Que eu gosto disso também, eu gosto de filmar, não só
de estar no vídeo como bailarina ou videomaker... Qual é o conceito de videomaker?
Julia Lüdke – É a pessoa que manipula a câmera.
Fernanda Boff – A câmera. Tá, então não só como bailarina, mas como videomaker
também me interessa bastante. E eu acho que também isso é uma das coisas que
mais me encantou no teu trabalho é isso: eu poder ser as duas coisas. Ou tu é um
ou tu é outro, não tem como ser os dois, e poder ser os dois, estar pensando nos
dois ao mesmo tempo é muito, bah, muito legal.
Julia Lüdke – Tu teria mais alguma referência na videodança?
Fernanda Boff – Ah, de referências de... Sim. Ah, eu acho que a primeira delas é
impossível não falar de Philippe Decouflé, né, que não tem um videodança que não
seja maravilhoso daquela criatura. Além do Marcos, né. Não sei se dá pra dizer que
o DV8 faz videodança, dá?
Julia Lüdke – Dá.
Fernanda Boff – Então eu acho que sim, referências de vídeo.
Julia Lüdke – Tem que ser o que tu acha, se tu acha...
163
Fernanda Boff – Eu acho que sim. É porque teatro físico né, eles se dizem como
um grupo de teatro físico, mas pra mim os vídeos deles são videodanças... Me vem
vários vídeos na cabeça, mas eu não necessariamente sei o nome dos artistas. Tem
um muito bom de Israel, eu não sei o nome deles. E tem um grupo de meninas que
dançam hip hop, que também que faz uns videos muito legais. Eu poderia pesquisar
esses nomes e te passar depois, pode ser? Porque não vou me lembrar agora. E
daqui, de Porto Alegre, tem a Nicole, que faz um trabalho bem legal de vídeo, a
Karenina faz videodança também, mas ela parou um pouco.
Julia Lüdke – Mas eles são referências pra ti?
Fernanda Boff – Eles são referências, são referências. São poucas pessoas aqui
que trabalham com isso. Mas são, são referências sim.
Julia Lüdke – Você já... Agora essa você já meio que deixou respondida, se tiver
alguma coisa a mais a acrescentar, é que se você já desenvolveu ou está
desenvolvendo algum outro trabalho de criação que se relacione e converse com
essa pesquisa que a gente tá fazendo?
Fernanda Boff – De vídeo, agora... Tá, ó, o que eu vou apresentar agora nos
Desdobramentos, do “Tudo o que vai, volta”, vai ser uma ideia que surgiu do
processo do “Corpos que videodançam”, que foi aquele exercício que a gente fez de
play e pause, acelera e desacelera. Então a minha ideia é pegar a coreografia que já
tá pronta, só que ao invés de eu botar o ritmo, o vai e volta que eu quiser, de onde
eu quiser, a ideia é que outras pessoas me digam. Daí, mas aí seriam tarefas, tipo
vai e volta, acelera e desacelera e pausa e finaliza. Seriam seis e eu pensei ou três
pessoas, cada uma com duas tarefas, ou duas pessoas, cada uma com três tarefas,
e elas iriam falando. Não sei se vai dar certo, vamos ver, mas é pra experimentar,
pra ver o que acontece. E é isso, essa ideia surgiu do processo, porque eu fiquei
pensando: “ah, o que eu vou fazer, o que eu vou fazer nessa edição?”, né, não
queria apresentar coreografia de novo. E daí eu tava, eu continuei... Daí sim, daí o
vídeo faz parte da minha metodologia lá, né, a senhorita era, como é, era minha
consultora de vídeos e...
Julia Lüdke – Se você quiser me falar um pouco desse trabalho de vai e volta
também...
164
Fernanda Boff – Tá, então, essa ideia, esse projeto “Tudo o que vai, volta” é a ideia
de constituir uma sequência de movimentos e explorando as possibilidades de
retrocesso do movimento, a partir do vídeo. Então, como é que foi o processo: eu fiz
um laboratório de improvisação, me gravei, coloquei no editor de vídeo e retrocedi. A
partir desse retrocesso, eu recortei as partes que mais me chamaram atenção e aí,
desse recorte, eu tentei captar, fazer a junção desses recortes, o que foi quase
impossível. Eu não conseguia me copiar, nem copiar a ida, nem a volta, eu não
conseguia, assim, foi super difícil. Então serviu muito mais de referência do que de
algo bem concreto, né, esse movimento, depois esse, depois esse. Daí eu fechei
uma coreografia pra ser apresentada na quinta edição do Desdobramentos, como
tipo, ó, até aqui que eu cheguei com esse projeto, com essa ideia. Então o vídeo
serviu dentro do procedimento metodológico. Daí a ideia a seguir disso era: filmar a
coreografia, né, essa sequência de movimentos fechada, filmar ela indo e ela
voltando, eu fazendo, né, ela indo e ela voltando; retroceder as duas filmagens e
comparar: como que é a qualidade do vídeo e como que é a qualidade minha
fazendo e tentar me aproximar cada vez mais da qualidade de vídeo, né, desse
corpo retrocedendo como vídeo, que tem toda a questão da gravidade, da
preparação do movimento, né, aquele movimento, aquele início de movimento que
às vezes a gente esquece que tem antes de voltar, né, aquela idinha que acontece
antes de voltar, todos esses detalhes. Só que essa parte eu não consegui fazer. E aí
eu consegui, sim, fazer outros laboratórios, com outras tarefas, né, eu fiz, tipo, um só
gestual, só de gestos, né, que é como começa, com a coisa do cabelo, que outros
gestos seriam interessantes. E outro com deslocamentos. Ah, foram três na
verdade: deslocamento pelo espaço, caminhadas e gestos e a terceira era direções,
e eu não podia ir mais de três movimentos sem conseguir voltar eles, que também
foi super difícil. Só que eu não consegui fazer nada com esse material, e daí eu não
queria apresentar de novo a mesma coisa nesse Desdobramentos. Foi aí que me
lembrei do nosso processo e pensei que poderia ser uma ideia bacana de pensar no
meu, tipo, como se eu fosse o vídeo e as pessoas dando essas tarefas.
Julia Lüdke – Só pra esclarecer: o “Tudo o que vai, volta” começou antes do
processo ou durante o nosso processo? O início desse trabalho começou antes ou...
Fernanda Boff – Começou... Quando é que a gente começou?
165
Julia Lüdke – A gente começou, de fato, lá em fevereiro.
Fernanda Boff – Fevereiro... Começou depois, eu acho, então. Começou depois. É,
começou depois, talvez tenha até um outro tipo de inspiração, então, aí, que eu nem
tenha percebido, né. Não... Sim, não, mas é legal, o que me inspirou muito pra esse
projeto, que, né, teve, acho que tem alguma coisa aí no nosso processo que pode
ter inspirado mais, mas eram alguns vídeos que eu via de pessoas. Só que não uma
coreografia, dentro da coreografia tinha um momento em que o bailarino fazia um
movimento e voltava, assim, normalmente um movimento absurdo de se voltar,
assim, tipo: como ele voltou dali? E aí aquilo, pra mim, sempre era o pico da
coreografia, quando aconteciam essas coisas, e daí eu pensei: “bah, imagina toda
uma coreografia que faça isso”, enfim. Uma das coisas que me inspirou foi isso, foi
ver outras pessoas fazendo.
Julia Lüdke – Você já havia tido contato com a GoPro? Se sim, que contexto, né,
pra fazer outras coisas também...
Fernanda Boff – Contato direto, ao vivo, não. Só de saber que existia, de ver vídeos
com GoPro, não contato direto, direto.
Julia Lüdke – O quê que mais te interessou e te motivou a fazer parte dessa
pesquisa?
Fernanda Boff – Eu acho que foi a proposta. É muito diferente de tudo o que eu já
tinha feito ou pensado sobre vídeo, assim, porque é uma coisa... Sabe aquela coisa
assim: “nossa, nunca pensaria nisso”. Isso, pra mim, eu acho que mais me encanta
é quando alguém pensa em alguma coisa que tu não pensou, e eu admiro muito
isso, né, não é uma coisa tipo: “ah, porque eu não pensei nisso”, né, tipo assim: “ah,
que droga”, não, eu me empolgo e eu quero ter outras ideias a partir disso, porque
isso me motiva também a, enfim, a estar trabalhando, né, acho que se eu não vejo
outras coisas interessantes no mundo e na vida, eu não... Tanto é que eu sinto
quando eu saio menos, quando eu assisto menos espetáculos e quando eu vejo...
Eu também, no meu trabalho artístico, me empobreço, assim. Por mais que, às
vezes, a gente assista umas coisas assim, às vezes até isso: umas coisas meio
“hã?”, dá ideia pra outras, ou pelo menos “ tá, eu sei que isso eu não quero fazer”,
né. Mas enfim, eu acho que isso foi o que mais me motivou: essa ideia original e
166
impensável por mim. E aí é isso, esse meu, além desse meu interesse pelo vídeo e
de estar nesses dois espaços, eu acho que é o da... Depois também de entender, de
estar nos dois espaços, do bailarino e do videomaker e depois de entender a câmera
em si como um parceiro, né, de dança, foram alguns processos que foram aos
poucos se fazendo entender, né. De cara o que eu vi foi isso: “tá, é, eu vou dançar e
filmar, as duas coisas” e aí depois que a gente começou a trabalhar que eu comecei
a entender essa ideia de “tá, não, mas a câmera também dança, ela também tá
junto”. Tanto é que um dos primeiros exercícios que a gente fez eu fui super direta e
reta, né, tipo, não... Era um de parar né? Aí a gente levava um olho para onde... Tu
abre o olho, agora não me lembro como é que era esse exercício, não vou te deixar
confusa nessa entrevista (risos).
Julia Lüdke – É o duplo controle, né, que você tinha que guiar um colega, aí a
câmera e você poderia dar as coordenadas de pausa e play...
Fernanda Boff – Isso! E eu fui bem quadradinha, assim, no exercício, tipo... Foi
nesse exercício, assim, que eu entendi “ah, tá, não é só isso, é muito mais do que
isso”, e aí aos poucos que eu me senti, foi me dando um pouquinho mais de
liberdade e vendo, né, que é uma característica bastante da GoPro também, né. Eu
respondi a pergunta?
Julia Lüdke – Respondeu sim, senhora. E como você descreveria a sua relação
com a câmera no decorrer do processo até o dia da gravação final? Principalmente
quanto a adaptação, refinamento da inserção da câmera na sua movimentação, se
ajudou, atrapalhou, ou seja, as dificuldades e facilidades de execução e de criação,
principalmente a respeito dessa dinâmica.
Fernanda Boff – Eu acho que foi bem difícil se adaptar com a câmera. É, como eu
vou dizer isso? Porque, quando tu tá com a câmera, tu dá muito mais atenção a ela
do que ao teu próprio corpo, então acho que uma das minhas maiores dificuldades
foi isso, assim, que eu acho que foi uma coisa que eu tentei trabalhar mais, não
perder o olhar da câmera que seria o melhor, o melhor ângulo, o melhor olhar dela,
né. Por exemplo, aquela hora que o Doug faz a vela, né, que nunca mais consegui
encontrar aquele melhor ângulo. Mas como que eu vou dar foco nisso, mas
pensando no meu corpo ao mesmo tempo? Aí que eu acho que foi esse foi esse o
167
maior problema: de eu não encontrar onde tava o meu corpo no melhor ângulo da
câmera, ou eu estar com o melhor ângulo da câmera, mas eu bater com meu joelho
no chão, porque não tô cuidando, ou estar meio torta assim, ou virar a mão e daí
daqui a pouco não consigo mais virar a câmera. Teve um dia lá, quando a gente
tava gravando, também que eu comecei a virar a câmera pro lado errado e eu não
conseguia mais fazer, porque aquilo já tava mais orgânico, virando, sei lá, pra
direita, quando eu comecei a virar pra esquerda, eu fiquei toda torta e eu não
conseguia mais. Só que eu tava pensando na câmera, tipo: “tá, eu preciso que a
câmera funcione, preciso que a câmera funcione, mas o meu corpo tá todo errado
aqui”. Então essa relação foi bem difícil, mas eu acho que ali, quando a gente deu
aquele gás inicial de processo, no final, eu tava bem mais a vontade de saber como
segurar, como não, como deixar o meu corpo estável pra câmera não mexer, abrir a
base, por quais os caminhos do meu corpo e o caminho da câmera, juntos, né, que
é essa conversa, esse diálogo entre meu corpo, corpo da câmera e o teu corpo e o
corpo do Doug. E eu acho que ali, mais pro final, a coisa tava ficando mais tranquila
de ser feita, não era uma briga, né, a câmera já tava mais amiga. Essa coisa de
entender também a distância, né, tem o ângulo muito aberto, então se eu ficar muito
longe não vai ficar legal; qual é a distância correta, se eu chegar muito perto, pode
bater, né, o Doug pode bater em mim, enfim. Só que aí, tipo, com esse tempo sem
trabalhar, e eu acho que eu perdi um pouco isso, no fim das contas, eu tive uma
insegurança, assim. Eu até tava falando pro Fernando, eu não sei nem se cabe na
entrevista, mas eu fiquei triste, assim, eu achei que eu não fui bem no dia que a
gente gravou sabe. Tá, tudo bem que eu também fiquei com medo, né, o medo,
digamos, não me ajudou muito, mas corporalmente, assim, eu achei que eu não tava
no meu... Não foi a melhor performance, digamos assim, que eu tive, de toda essa
relação, assim mesmo. Mas, quando a gente tava ensaiando, eu não senti isso,
então talvez tenha sido uma coisa do ambiente, não sei, mas eu acho que eu podia
ter ido melhor, eu fiquei meio... Mas o Fernando me disse que ficaram legais as
gravações, ele ficou me consolando: “não, mas ficou legal”, e eu “ah” (risos). Enfim,
então eu acho que, sim, que no início foi bem difícil, e aí depois melhorou e depois
ficou um pouquinho difícil de novo, mas não tão difícil quanto no início, né, não é
aquela coisa, assim, primeira vez segurando. Não, tem, tinha essa memória corporal
de relação com a câmera. Esqueci de alguma coisa?
168
Julia Lüdke – Não. E, do relacionamento, como tu vê tu te relacionar com a câmera,
tu mencionaste antes que é como uma parceira, né?
Fernanda Boff – Uhum. Sim, é como, sei lá, que exemplo que eu poderia dar?
Poderia comparar com, sei lá, com contato e improvisação, talvez, que às vezes tu...
Às vezes não rola. Às vezes não rola, assim, quando começa a dançar com uma
pessoa. Não dá, aquele corpo estranho, aquela coisa, parece que não encaixa, né,
não faz muito sentido, tu não consegue, né, tudo meio trincado, assim. Mas depois,
com o tempo, os dois começam a se entender um pouquinho melhor, as tarefas são
bem importantes nesse sentido, né, ter tarefas pra serem cumpridas, tu consegue
focar, né, mais em alguma coisa específica. Tipo, o foco é seguir uma parte do corpo
e, nossa, eu acho que isso é crucial dentro da evolução dessa relação, assim.
Porque senão é qualquer coisa, né, e aí como é que tu vai saber como é que tu tem
que se relacionar com elas? Tem que ir aos poucos, então primeiro é só segurar, é
só segurar, não tem muito mais o que fazer. Aí, aos poucos, tu vai começar a se
mover junto, enfim.
Julia Lüdke – Como você se sentiu assumindo a posição de videomaker além do
seu papel de bailarina?
Fernanda Boff – Como que eu me senti? Nossa, me senti muito feliz (risos). Não,
sério, eu gostei muito, porque às vezes eu acho que eu sou melhor sendo
videomaker do que sendo bailarina (risos). Tipo, não sei, ontem, por exemplo,
gravando a Paola, assim, eu encontrava uns ângulos, umas coisas, assim, que eu
ficava: “uau, isso é muito legal!”. Então os lugares de filmagem, assim, não eram
nem ângulos, não sei se eu posso chamar ângulo, não sei nada dessa linguagem do
vídeo, o quê que significam essas coisas, mas... E eu gosto de dessa transferência
de olhar, né, não é bem uma transferência, mas... É quase como eu gostaria de
estar olhando pra uma coisa, mas quem tá fazendo isso é a câmera e nisso ela é
minha cúmplice, né, ela é a minha... Minha parceira, porque ela tá fazendo uma
coisa que eu não poderia fazer sozinha, só com ela, né. É ela que vai, tipo, eu não
posso te ver dançando, né, porque não posso. Ou posso, mas não é o caso. Então
isso, não sei se é transferência essa ideia de algo que é uma extensão do teu corpo,
né, poderia pensar assim também, mas ela faz, ela tem um outro papel, ela não tem
o papel da minha mão, ela tá na minha mão, mas ela não é uma outra mão. Ela é
169
um outro olho e ela tem todas as características dela, específicas, que é dela, não
tem nada a ver com o meu olho. Mas é a possibilidade de eu enxergar de outra
forma alguma coisa. E às vezes eu acho que ela tá vendo de um jeito, porque eu tô
segurando ela de um jeito que eu quero, mas não, ela não, pode ser que ela não
queira do mesmo jeito que eu quero, ela vai ver do jeito dela, que ela tem as
características e especificidades dela, que eu vou dar o exemplo de novo daquela
porcaria daquele ângulo, que eu não consigo descobrir, que eu seguro ela e eu
acho: “ah, agora sim, é aqui, ela tá vendo do jeito que eu gostaria de estar vendo
isso daqui”, e aí eu vou olhar depois a gravação e não, ela não quer ver daquele
jeito, não era isso. Então eu acho que tem a ver com essa relação também, que aos
poucos foi evoluindo, né, com ela. Então eu me senti... Como me sinto como
videomaker dentro do... Me sinto com muito mais possibilidades, me sinto desafiada,
é uma... É algo bem desafiador, me sinto com uma responsabilidade maior, né,
dentro da... Dentro da pesquisa, né, uma responsabilidade... Não dá pra nem dizer
que é em dobro, porque o produto final é o olhar dela, né, então às vezes, se eu
caguei lá com o bailarino, a gente pode só cortar, não mostra que eu caí, não mostra
que... Mas a câmera não tem o que fazer, eu acho. Dá pra tirar também, se a
filmagem não ficou boa, tá, dá pra cortar, mas se filmar tudo mal, até as partes que o
Doug fez e se saiu super bem, não, é uma responsabilidade muito maior se eu não
tiver conectada com a câmera ali. Então tem esse tem esse nervosismo também, um
pouco desse... Desse desafio e dessa responsabilidade, principalmente porque lá,
onde a gente gravou a última vez, a gente não podia repetir muitas vezes por causa
do tempo, por causa do sol, por causa do chão então foi quase um tudo ou nada, né.
Que mais, que mais, que mais, que mais? Acho que é isso...
Julia Lüdke – Quais foram as suas percepções a respeito da criação do movimento
e interação com a câmera, a partir da proposta do atelier “Dos pés à cabeça”, com
tarefas bem definidas, em contraponto com o improviso e sendo estruturado com o
procedimento de coreoedição, que depois gerou o procedimento de coreoedição?
Quais são as suas percepções a respeito disso?
Fernanda Boff – Quando... Vou dividir, então, os dois. Quando a gente, eu lembro,
na verdade, da gente conversar bastante sobre isso na época lá e de como é difícil,
porque vai... Começou a surgir ideia, né, surgir ideia, surgir ideia de tanta... Disso,
170
de tanta possibilidade que a câmera proporciona e aí a gente disse não, tu
principalmente: “não, tem que focar, porque senão a gente não vai dar conta de
tudo”. Então eu acho que foi bem importante esse... Esse teu olhar de... Especificar,
né, as coisas. Então a questão da tarefa, lá, do primeiro, eu acho que eu mudaria a
minha sequência, por exemplo. Porque aquele dia foi... Foi uma tarefa super simples
e rápida, né, tipo quatro ou cinco movimentos, que mude de nível, que vá de pé até
o chão. E, tá, daí eu fiz ali, rapidinho alguma coisa, e aí a gente gravou e foi o que
ficou. Se depois, né, pudesse escolher, eu acho que eu mudaria, mas pensando na
sequência de movimento. Só que, se eu for pensar na sequência de movimento em
diálogo com a câmera e com o Doug, eu acho que eu não mudaria. Porque... Porque
é outra coisa, não é só sequência de movimento, né, eu acho a sequência de
movimento, tipo, ai, como eu fui simplória nisso que eu fiz, sabe, mas o resultado
dela, junto com a câmera e com o olhar do Doug disso, né, eu acho que eu não
mudaria. Então, por um lado, eu acho que a gente foi rápida na escolha ali dessa...
Dessa sequência, por outro, eu acho ótimo esse teu... Essa tua especificidade, sabe,
tipo: “não, a gente vai estruturar assim, assim, assim, não sei o quê, não sei o quê”.
Essa minha percepção desse, né. E depois eu te filmei, né? Então, isso é muito
louco: lembra que eu até comentei que foi muito estranho pra mim ver tu ensinando
a tua sequência pro Doug? Foi, eu nunca tinha visto algo assim (risos). Eu nunca
tinha visto essa sequência e eu: “tu faz isso?”, sabe, “como assim tu faz isso? Não
sabia que tu fazia isso”, porque daonde eu tô, como eu tô segurando a câmera... É
outra sequência também, é outra sequência, e eu achei, nossa, eu achei muito
esquisito, muito esquisito ver, mudou muito. Então... Então acho que é isso, tá,
dessa coisa de escolher uma coisa de primeira, mas que faz sentido, sabe, que por
um lado eu fico pensando: “ah, eu podia ter feito algo melhor”, sabe, alguma coisa
assim, mas por outro lado eu penso que foi a melhor escolha a ser feita. E daí, lá,
essa, o que resultou depois do experimento looping, que foi a que... A gente fez dos
pés à cabeça e, tipo, “vamos continuar até cansar”, né, “fazendo coisas pra ver o
que acontece”, foi isso, né?
Julia Lüdke – A gente começou a improvisar.
Fernanda Boff – Isso, em cima da... Repetindo as sequências, né, e depois também
mais livremente, fazendo outras coisas, se passando a câmera e tal. Aquilo lá pra
171
mim foi genial. Foi... Não sei, foi um momento muito, eu acho, de imersão mesmo e
de doação também, eu acho, porque tava muito quente aquele dia. E a gente insistia
e querer fazer outro, fazer outras coisas pra ver o quê que ia dar, né. Pra mim, eu
acho que a gente ganhou muito com aquilo ali, teve um ganho de dentro, de
entendimento da tua pesquisa e do processo, e um ganho de escolhas também
depois, né, de possibilidades e depois de escolhas, de abrir um leque, entender
melhor o quê que tava acontecendo, quê que é aquilo, o quê que é essa pesquisa,
começa, né, a coisa começa a fazer mais sentido. E de ter esse diálogo entre os
quatro elementos também, né: eu, tu, o Doug e a câmera, foi bem legal. E aí depois
o resgate que tu fez, né, lá no... Que foi o segundo momento de improviso, que, pra
mim, foi bem importante também, que a gente tentou meio que direcionado no início,
né, eu me lembro de tu direcionar, daí começou e não fechava, não fechava, mas
não é isso, não é isso, não é isso. E tu falou: “tá, vamos, vamos fazer mais uma vez,
assim meio a la loca, só que não com uma tarefa bem específica e aí vamos ver o
que acontece”. Ali também, acho que a gente teve um ganho bem forte, porque daí
tá, lá a gente abriu um leque de possibilidades, daí, que eu me lembro da gente
conversando e o Doug muito empolgado: “porque não, porque daí a gente pode
fazer, vamos ficar experimentando muito”, e tu falou: “não adianta a gente fazer um
monte de laboratório, ficar improvisando enlouquecidamente e depois não conseguir
reproduzir essas coisas, né”, que eu acho que é o mais difícil, principalmente porque
a gente tá lidando com um elemento tão específico. E aí a gente se reuniu na tua
casa e daí tu listou naquelas possibilidades, que a gente viu que eram interessantes,
e escolheu. E aí fomos pro looping, e ali também, eu acho que a gente teve um
ganho de especificidade, de direcionamento e aprofundamento que eu acho que foi
legal. E tão, tão, tão, tão da GoPro, sabe, só ela, assim, eu acho não teria outra
câmera pra fazer isso a não ser que... Tá, existe agora umas pequenininhas, mas
essa, esse efeito que ela tem de... Porque ela não... Quando tu vira a câmera, né, tá,
ela tá na direção normal, quando tu vira, o filme fica comprido, né, e os lados pretos,
os dois lados. E a GoPro não faz isso, eu não sei se outras câmeras pequenas
fazem, não sei, por isso que pra mim também é tão dela, não só pelo tamanho, pela
abrangência de lente e pela possibilidade de movimentação dela, mas por essa
característica de ela sempre preencher toda a tela, né. Então, pra mim, o looping é
tão da GoPro, assim, tipo, é dela, assim. E aí por isso que eu acho que esse ganho
172
de especificidade e aprofundamento foi muito bacana, dentro da... E é também uma
coisa que... Que a gente, como pessoa, não conseguiria fazer. Pensar, pensar,
pensar, pensar, eu tava numa linha lógica, daí eu me atravessei, agora eu ia falar
outra coisa... Ah, sim, e que daí veio a coreoedição, que também foi uma escolha
muito inteligente da sua parte. Sim, e aí muito inteligente, muito perspicaz e focada,
assim, que também é bem importante. Que também, se a gente for ver, a gente tirou
toda a sequência de um experimento, a gente tirou a escolha, mas isso, né, e daí
também fiquei pensando: “ah, mas eu podia ter mudado tem umas coisas ali que tão
truncadas, que eu não consigo. Por quê? Porque não tive tempo de pensar mais,
porque eu fiz as costuras entre um movimento e outro, né, da coreoedição, eu fiz de
forma simples, quem sabe eu não poderia, nanana”, mas que, com a relação com a
câmera, eu não sei se eu mudaria. Porque é isso, a gente vai ficar experimentando,
experimentando, experimentando, experimentando, e aí, e aí, e aí, sabe... Acho que
é isso.
Julia Lüdke – Como você vê o procedimento de coreoedição em comparação com o
método que muitos coreógrafos têm, de compor a partir da improvisação dos
bailarinos? Como é que você vê esses dois em comparação: coreoedição, com ir lá,
fazer o improviso, filmar, cortar, depois trazer, fazer os recortes, né, em comparação
com esse método que muitos coreógrafos usam, de, a partir da improvisação dos
bailarinos, compor?
Fernanda Boff – Sim... Que difícil, essa foi difícil. Tá, primeiro que eu vejo que se
tem em comum é isso, mas é diferente. Porque... Por quê? Tá, quando a gente...
Deixa eu me lembrar como é que a gente fez: tu trouxe o vídeo, com a coreoedição,
daí a gente olhou, daí a gente retomou a movimentação, depois retomou os lugares
do videomaker/bailarino e o olhar da câmera a partir disso. E a gente teve que fazer
as costuras, né, entre uma coisa e outra. Teve que criar esse... Essa continuidade
dentro de alguma coisa que foi editada no corte, né, no bruto assim. Como é que
eu... Como é que eu vejo essas duas coisas? É que eu também tenho pouca, eu não
tenho muita experiência nesse tipo de processo, tipo, a gente fazia muito com a Eva,
mas era uma coisa muito mais “criem diretamente, a partir desse improviso”, né, do
que “experimentem, pra depois a gente tirar material, pra depois a gente criar de
fato”, né. Eu acho que teve, dentro do nosso processo, teve isso, né, essa
173
experimentação, pra depois uma coreoedição, pra depois uma criação, só que, né,
isso, isso, isso são três coisas diferentes, pra mim. E aí do que eu já participei,
desses processos de criação de improviso, é muito mais tipo: “vai improvisando, mas
já vai criando”. Eu busco pra mim diferente, eu busco né, que nem eu falei, vamos
tentar experimentar, experimenta, vê o que acontece, pra depois... Mas é meio
inaceitável pros coreógrafos que eu já trabalhei com esse tipo de coisa, meio
inaceitável tu não conseguir fechar alguma coisa com o que tu ta fazendo, ou não
lembrar do que tu improvisou, não... Não, tu já tem que ir fazendo e tipo, isso vai
ficar, isso também e já junta com isso... As três coisas que, pra mim, foram bem
distintas nesse processo, eu vejo meio juntas quando é pra criar uma sequência de
movimentos dentro desse tipo de procedimento, é, tipo, é mais consciente, talvez, é
mais racional, mais... Com mais julgamento, com menos liberdade do que a gente
teve, assim.
Julia Lüdke – Do que a gente teve na pesquisa?
Fernanda Boff – Na pesquisa. Acho que é o que eu compararia dessas duas fases.
Se ficar confuso quando tu ouvir, ou tu não entender, pede que eu te escrevo, que
às vezes eu tô muito, fica passando muita coisa na minha cabeça.
Julia Lüdke – É pra registrar, mesmo, o teu processo mental, é pra ser assim...
Fernanda Boff – (risos)
Julia Lüdke – E aí a ultima pergunta, que tu também já deu uma pincelada lá em
cima: com relação aos espaços, que primeiro a gente utilizou a sala 209, depois o
mezanino, e depois do mezanino a gente deu uma passada na Redenção, foi pro
terraço da Juliana e, no final, a gente foi pra locação escolhida pra gravação final,
que é, na CAFF, lá, no heliponto. Como é que você acha que essa alteração dos
lugares e essa pouca permanência lá no CAFF influenciou o trabalho e no
processo? Como é que você vê essa influência, positiva, negativa, ou então, como
tu acha que influenciou?
Fernanda Boff – Eu vejo... Eu não vejo de forma negativa essa peregrinação, acho
que até a gente podia ter experimentado outros lugares, se a gente conseguisse, né.
Tinha uma ideia de fazer na areia, na praia e tal. Eu acho que isso enriqueceu o
174
trabalho, poder ver como é que a coisa toda funciona e com mais uma influência, né,
que é a influência do espaço, né, a influência do ambiente, do tamanho, da
temperatura, da... Da relação com as outras pessoas que tão passando ou não, sei
lá, de tu ter uma grade, de tu não ter uma grade, de tu ter uma parede, antes não ter
uma parede, enfim. E de perceber o tanto, no momento da experimentação, né, de
como que isso influencia e como que influencia no resultado depois da... Pensando
na gravação em si, né, eu acho que isso enriqueceu, tipo, bah, tá, isso aqui tem que
ter um espaço amplo, espaço amplo funciona muito. Os vídeos ganharam uma outra
qualidade estando no mezanino do que estando na 209, né. Pra mim, era uma coisa
tu fazer o looping ali na 209 e tu fazer no mezanino, já era muito diferente. E aí tá, aí
depois no terraço também tipo, uau, um outro efeito. Acho que é isso. E das tuas
sacadas também, né, desse... De como o espaço influencia, né, eu vejo como um
ponto positivo nesse sentido, de pensar nas influências e se deixar tomar por elas. O
ponto negativo que eu vejo, mas aí é bem pessoal e é meu, não é... Não é com
relação ao processo, em relação ao processo, pra mim, foi totalmente positivo. Com
relação à minha pessoa, foi negativa a questão da altura, porque eu tenho medo e
eu me vi numa situação até constrangedora, tipo: “Julia, eu não tô conseguindo
fazer”, sabe, tipo: “não tô conseguindo, e agora? E agora?”. Mas aí tu já me veio
com uma solução: “fecha o olho”, aí já melhorou. E aí depois também, eu percebi
que quando eu enxergava o Doug, a primeira vez que eu tentei fazer a parada de
cabeça, o Doug não tava comigo, me filmando, eu olhei pro nada, assim, não
consegui. Daí, depois que ele tava me filmando, eu tinha ele como referência, então
conseguia ficar com o olho aberto. E aí... Ah, e aí a minha fragilidade, né, eu sou
muito fragilzinha, é um saco, eu não crio cascão no pé, eu não crio, minha mão é
um... Ai, é muito fina, minha pele é muito fina, então eu fiquei toda cheia de não-me-
toques, assim, no chão, assim, com medo de me machucar. Não medo, medo é
foda, mas toda cagada (risos). Então eu fiquei com medo de altura e com medo de
me machucar, e aí por isso, também, eu fiquei um pouco decepcionada de não
conseguir bloquear isso, assim, de não conseguir dar conta desse medo do... Do
medo de altura, eu acho que eu até me sai bem, eu acho que me sai, “tá, vamos lá,
tu não tem outra opção, tu vai ter que fazer isso, tu não vai cair”, tive esse processo.
Mas a coisa de me machucar, até porque, realmente, tava muito quente o chão, e aí
é uma coisa mais sensitiva, né, assim, de sentir o calor e sentir as pedrinhas. O
175
medo de altura é mais psicológico, mais possível; o outro é mais sensorial, assim.
Então eu fiquei, fiquei com medo, mas esse é o único ponto negativo que eu vejo e
só aconteceu na última vez que a gente filmou, e é bem pessoal, assim, é bem meu,
é uma coisa que eu vou ter que tratar (risos). Na terapia.
Julia Lüdke – Tu teria mais alguma coisa que tu gostaria de acrescentar, que não
foi perguntado ou que tu acha importante pontuar ou comentar?
Fernanda Boff – Eu acho que... Eu poderia falar mais alguma coisa, mas não sei o
quê, deixa eu ver...
Julia Lüdke – Não, só se tu tiver alguma coisa pra...
Fernanda Boff – Acho que sim, acho que sim. Eu queria reafirmar, talvez, de insistir
na qualidade do teu trabalho, sabe, de tanto tu, como uma profissional, como uma
artista, como uma professora, como uma mestranda, como uma coreógrafa, como
uma videomaker, como uma pensadora da área; da relevância, da importância e da
qualidade desse trabalho. Porque, de todo o jeito que tu conduziu ele, de como tu
pensou ele, de como tu tem propriedade sobre ele. Que eu me sinto como uma
colaboradora, uma admiradora e uma envolvedora, mas, tipo, todo o mérito é teu,
assim, de toda a constituição da coisa em si e da potência disso, de como ele pode
pra muitos outros lugares e que taí, tá latente, tá pulsando. E sim, e reafirmar isso e
acreditar nisso, sabe, não... Independente do mestrado, independente de qualquer
outra coisa que às vezes nos trava, acreditar que é, porque é, sabe, é (risos). E que
eu me sinto realmente lisonjeada de fazer parte disso, assim, que como, pra mim,
pro meu crescimento como artista, da tua confiança e do teu direcionamento pra
coisa, me fizeram muito, me influenciaram muito, né. Acho que é isso. Parabéns!
176
ANEXO E – Arquivos videográficos, fotográfico do processo e a videodança
Experimento Looping.
Pode ser visualizado, também, através do canal no youtube “Julia Lüdke”, playlist
“Corpos que videodançam: um convite ao looping (Anexo E)”94.
94
Disponível em: <https://youtu.be/IwPvnE2tuSY?list=PLSCWj5okZBegPOOcxcO--eni4HKpUyp8D> Último acesso em: 16 de setembro de 2015.
Top Related