UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL … · Aos amigos, Douglas Jung, Fernanda Boff, Lícia...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS MESTRADO EM ARTES CÊNICAS PROCESSOS DE CRIAÇÃO CÊNICA Julia Lüdke CORPOS QUE VIDEODANÇAM: UM CONVITE AO LOOPING PORTO ALEGRE 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

MESTRADO EM ARTES CÊNICAS

PROCESSOS DE CRIAÇÃO CÊNICA

Julia Lüdke

CORPOS QUE VIDEODANÇAM: UM CONVITE AO LOOPING

PORTO ALEGRE

2015

Julia Lüdke

Corpos que videodançam: um convite ao looping

Memorial reflexivo-crítico de criação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Orientador: Prof.° Dr. Walter Lima Torres Neto

Coorientadora: Prof.ª Dra. Suzane Weber da Silva

PORTO ALEGRE

2015

Julia Lüdke

Corpos que videodançam: um convite ao looping

Memorial reflexivo-crítico de criação de Mestrado aprovado como requisito para a obtenção do título de mestre em Artes Cênicas, pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, formado pela seguinte banca examinadora:

Orientador: Prof.º Dr. Walter Lima Torres Neto

Coorientadora: Prof.ª Dra. Suzane Weber da Silva

Banca: Prof.ª Dra. Mônica Dantas PPGAC/ UFRGS Prof.ª Dra. Luciana Paludo ESEFID/ UFRGS Prof.º Dr. Airton Ricardo Tomazzoni dos Santos Especialização Dança/ PUCRS

AGRADECIMENTOS

À minha linda família, por me manter em movimento.

Ao Fernando Faleiro, pelo amor e bom humor.

Aos amigos, Douglas Jung, Fernanda Boff, Lícia Arosteguy e Arion Engers

por doar, de forma dedicada e generosa, sua arte ao trabalho.

Aos orientadores, Walter Torres Lima Neto e Suzi Weber,

pelas contribuições valorosas.

Ao Airton Tomazzoni, à Mônica Dantas e Luciana Paludo,

pela prontidão e disponibilidade em contribuir para o trabalho.

À Flávia Valle, por toda atenção e carinho, sempre presente.

Ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas,

pela oportunidade de crescimento.

Aos amigos mestrandos, pela parceria na caminhada.

Ao Coletivo Sala 209, Usina das Artes, Casa Cultural Tony Petzhold,

Juliana Werner e Centro Administrativo Fernando Ferrari

por acolher o processo de pesquisa em seu espaço.

“Dessas palavras não nascem explicações e

ainda menos chaves definitivas ou receitas

que dariam diretamente acesso à obra, mas

antes vozes, sussurros de corpos, a

elaboração de um texto vivo e múltiplo [...].”

(Laurence Louppe)

RESUMO

O presente memorial, "Corpos que videodançam: um convite ao looping" tem como objetivo central observar, compreender e analisar aspectos do conhecimento incorporado na relação construída entre os corpos dos bailarinos e a câmera, frente à experimentação, à composição e à edição do movimento na criação coreográfica da videodança Experimento Looping. O recorte proposto para esta criação, análise e reflexão poética é a relação entre o que se denominou “corpos videodançantes”, ou seja, os corpos dos bailarinos envolvidos na investigação, Fernanda Bertoncello Boff, Douglas Jung e esta pesquisadora, tanto como observadora, quanto como corpo videodançante; e a câmera GoPro. A proposta principal do processo criativo era transformar as ações de gravar e dançar em uma nova ação: videodançar. E se a câmera dançasse? E se os bailarinos gravassem? Para tanto, foi construída uma estrutura de metal, semelhante ao volante de um carro, para que os bailarinos pudessem manusear e se relacionar com a câmera durante a coreografia, elaborando uma trajetória e uma dinâmica coreográfica para essa câmera. Destes experimentos emergiram procedimentos, técnicas e relações de poder, que foram observadas e registradas no ateliê, através dos seguintes dados etnográficos: um diário de processo, entrevistas semiestruturadas com os bailarinos e vídeos gravados pela GoPro. Neste trabalho escrito, os dados são analisados por um viés da poética, ou seja, levam-se em consideração as escolhas, os procedimentos, as condutas e as técnicas na busca por compreender e aproximar-se do fazer criativo e os caminhos dos artistas envolvidos. Neste sentido, utilizou-se a teorização enraizada, que promove o ir e vir entre a teoria e a prática. Ao longo dos experimentos e procedimentos propostos, como as tarefas, os improvisos, a coreoedição e a endoedição, encontrou-se no movimento de “looping” uma forma de relação criativa entre os corpos dos bailarinos e à câmera em movimento e que resultaram no produto e material de análise desta pesquisa.

Palavras-chave: Corpos videodançantes; GoPro; Videodança; Coreoedição; Endoedição.

.

ABSTRACT

The present memorial, "Bodies that videodance: an invitation to looping" has the main objective of observing, understanding and analysing aspects of the embodied knowledge built in the relationship between the dancers‟ bodies and the camera, regarding the movement trial, the composition and the edition in the creation of the videodance called Looping Experiment. The frame proposed for this criation, poetic analysis and reflection is the relationship between what is called "videodancing bodies", in other words, the bodies of the dancers engaged in this research, Fernanda Bertoncello Boff, Douglas Jung and this researcher, both as an observer and as a videodancing body; and the GoPro camera. The main purpose of the creative process was to transform the actions of “record” and “dance” in a new action: videodance. What if the camera dance? What if the dancers record? Therefore, a metal structure was built, similar to a steering wheel of a car, so that the dancers could handle and relate to the camera during the choreography, developing a trajectory and a choreographic dynamic for this camera. From these experiments, procedures, techniques and power relations emerged, which have been observed and recorded in the studio through the following ethnographic data: a journal of the process, semi-structured interviews with dancers and videos recorded by the GoPro camera. In this written work, the data is analyzed through a poetic perspective, that is, it is take into account the choices, procedures, behaviors and techniques in the search to understand and approach to the creative ways of the artists involved. In this sense, we used the Grounded Theory, which promotes the coming and going between theory and practice. Over the proposed experiments and procedures, such as tasks, improvisations, the coreoedition and endoedition, it was found in the "looping" movement a form of creative relationship between the dancers‟ bodies and the moving camera, which resulted in the product and material of analysis in this research.

Key-words: Videodancing Bodies; GoPro; Videodance; Coreoedition; Endoedition.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO OU DE ONDE PARTE O OLHAR ................................................ 13

2. O PROCESSO CRIATIVO .................................................................................... 19

2.1 SEGUINDO RASTROS DE PERTENCIMENTO ................................................. 19

2.2 O RECORTE ....................................................................................................... 27

2.2.1 A videodança e o ato de videodançar ......................................................... 27

2.2.2 Os corpos que videodançam......................................................................... 30

2.2.3 Pistas para análise dos corpos videodançantes ......................................... 34

2.3 A APRESENTAÇÃO DOS CORPOS VIDEODANÇANTES ................................ 37

2.3.1 Os bailarinos colaboradores ......................................................................... 37

2.3.2 A câmera ......................................................................................................... 48

2.4 A ESTRUTURA DO PROCESSO CRIATIVO ...................................................... 51

2.4.1 O organograma do processo criativo ........................................................... 52

3. ANÁLISES E REFLEXÕES .................................................................................. 56

3.1 A RELAÇÃO COM A CÂMERA ........................................................................... 56

3.1.1 A potência de deslizar .................................................................................... 62

3.1.2 O duplo controle ............................................................................................. 68

3.1.3 Um desvio para reafirmar o caminho da criação ......................................... 70

3.2 PROCEDIMENTOS ............................................................................................. 73

3.2.1 Experimento III – Dos pés à cabeça .............................................................. 76

3.2.1.1 A tarefa .......................................................................................................... 76

3.2.1.2 O improviso ................................................................................................... 86

3.2.2 O Experimento Looping ................................................................................. 90

3.2.3 Coreografar editando, editar coreografando ............................................... 96

3.2.4 A gravação final ............................................................................................ 101

3.2.4.1 A decupagem .............................................................................................. 101

3.2.4.2 Os lugares da experiência ........................................................................... 103

3.2.4.3 A montagem ................................................................................................ 114

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 116

5. REFERÊNCIAS ................................................................................................... 116

ANEXO A – Diário de processo ............................................................................ 124

ANEXO B – O Equipamento .................................................................................. 141

ANEXO C – Roteiro da entrevista ........................................................................ 144

ANEXO D – Áudio transcrição das entrevistas ................................................... 145

ANEXO E – Arquivos videográficos e fotográficos do processo ...................... 176

ANEXO F – Termo de consentimento livre e esclarecido .................................. 177

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Página 22 Figura 1: Foto da videodança Diálogo com a Luz (2011). Crédito da foto: Arion Engers.

Página 24 Figura 2: Foto da videodança Intangível (2012). Crédito da foto: Camila Carneiro Martins.

Página 25 Figura 3: Foto da videodança S (2012). Crédito da foto: Julia Lüdke.

Página 25 Figura 4: Foto da videodança 5678 (2012). Crédito da foto: Adriano Del Duca.

Página 37 Figura 5: Frame retirado do Making of do processo (2014). Créditos: Lícia Arosteguy.

Página 39 Figura 6: Frame retirado do vídeo gravado pela GoPro, no encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).

Página 41 Figura 7: Fotografia do Espetáculo Guia Improvável para corpos mutantes (2013), no qual os dois colaboradores dividem o palco atualmente. Créditos da foto: Cristiano Prim.

Página 43 Figura 8: Organograma das técnicas, gêneros de dança, professores artistas, grupos e instituições citadas como indispensáveis para suas formações corporais como bailarinos (Fernanda Boff, Julia Lüdke e Douglas Jung) – estão em destaque e em relação o que mais contribuiu na realização desta pesquisa.

Página 45 Figura 9: Fotografia do processo criativo do Experimento Looping. Encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre, (2014). Crédito da foto: Lícia Arosteguy.

Página 47 Figura 10: Tabela de funções vivenciadas belos bailarinos na produção de videodança em outros circuitos e suas respectivas obras e datas.

Página 49 Figura 11: Foto do processo, no encontro realizado no Parque Farroupilha (2014). Crédito da foto: Lícia Arosteguy.

Página 51 Figura 12: Frame retirado do Making Of do processo (2014). Crédito: Lícia Arosteguy.

Página 53 Figura 13: Organograma das etapas, com datas e locais, do

processo criativo da videodança Experimento Looping.

Página 64 Figura 14: Foto ilustrativa da posição “Mão em gancho”. Crédito da foto: Julia Lüdke.

Página 65 Figura 15: Foto ilustrativa da posição “Com duas mãos”. Crédito da foto: Julia Lüdke.

Página 65 Figura 16: Foto ilustrativa da posição “Com uma mão na haste”. Crédito da foto: Julia Lüdke.

Página 66 Figura 17: Foto ilustrativa da posição “Com uma mão na base”. Crédito da foto: Julia Lüdke.

Página 71 Figura 18: Foto ilustrativa do colete usado para acoplar a câmera ao peito da bailarina no Experimento IV.

Página 82 Figura 19: Esquema ilustrativo da “estratégia base” utilizada no decorrer do processo.

Página 89 Figura 20: Frames retirados do vídeo gravado pela GoPro no improviso semiestruturado realizado no Experimento III, no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014).

Página 89 Figura 21: Frames retirados do vídeo gravado pela GoPro no improviso semiestruturado realizados no Experimento III, no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014).

Página 92 Figura 22: Esquema ilustrativo para demonstrar o giro realizado pela GoPro no eixo sagital, que constitui o movimento de looping.

Página 93 Figura 23: Frame retirado do vídeo explicativo do mecanismo utilizado na filmagem da coreografia You're All The World to Me, do musical Royal Wedding (1951).

Página 94 Figura 24: Frame retirado do vídeo da coreoedição gravado com a GoPro no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014), (à esquerda) em comparação com a imagem da coluna no mesmo movimento de parada de mãos (à direita), demonstrando a inversão de relação entre cabeça e cóccix.

Página 95 Figura 25: Frames retirados do vídeo da coreoedição, gravada pela câmera GoPro no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014), demonstrando as inversões no alinhamento cabeça-cóccix em relação aos loopings realizados pela câmera.

Página 98

Figura 26: Frame retirado do vídeo do Making Of, demonstrando o trabalho de endoedição realizado a partir das imagens

visualizadas no preview fornecido pelo aplicativo da GoPro instalado no celular da pesquisadora (2014). Crédito: Lícia Arosteguy.

Página 102 Figura 27: Tabela da decupagem que serviu como guia para o dia da gravação final.

Página 104 Figura 28: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro durante o improviso semiestruturado do Experimento III (2014).

Página 106 Figura 29: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).

Página 106 Figura 30: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial de Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).

Página 108 Figura 31: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial de Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).

Página 109 Figura 32: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial de Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).

Página 110 Figura 33: Foto do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), em Porto alegre.

Página 111 Figura 34: Frame retirado do vídeo gravado com a GoPro durante a gravação final, realizada no heliporto do CAFF, em Porto Alegre (2014).

Página 114 Figura 35: Esquema demonstando a organização das sequências gravadas em uma montagem, especificando o tempo de cada inserção.

Página 141 Figura 36: Primeiro modelo GoPro Hero 35mm e seus acessórios.

Página 142 Figura 37: GoPro Hero 3+ Black edition e seus acessórios.

Página 143 Figura 38: Foto do suporte metálico projetado exclusivamente para o projeto. Crédito da foto: Julia Lüdke.

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1. INTRODUÇÃO OU DE ONDE PARTE O OLHAR

Este memorial se classifica como uma pesquisa realizada em artes, no campo

das artes cênicas, especificamente, na área da dança, pois se trata de uma

investigação que busca “a compreensão do conhecimento incorporado de um

coreógrafo ou artista” (FORTIN & GOSSELIN, 2014, p. 1). Neste caso, buscou-se

compreender o conhecimento incorporado pelos bailarinos colaboradores, Fernanda

Boff e Douglas Jung, enquanto “corpos videodançantes” e por mim, como será

explicitado adiante, que também participei como corpo videodançante, no processo

de criação da videodança Experimento Looping. Sendo uma pesquisa acadêmica

em artes, compreende-se “[...] uma dupla produção: uma obra de arte e um

embasamento em texto” (Id. Ibid., p. 14). Deste modo, a prática artística foi

estruturada com base no pressuposto de: a fusão entre as ações de dançar e

gravar, da qual emerge uma possibilidade criativa para o ato de videodançar.

Partindo desta ideia, os corpos videodançantes são constituídos pelos corpos dos

bailarinos e à câmera. O embasamento textual, por sua vez, preocupou-se em

compreender como se desenvolveu esta relação entre os corpos videodançantes,

através da análise poética da criação do movimento.

Nesse sentido, os bailarinos colaboradores são considerados coautores deste

processo criativo, pois todo trabalho corporal e coreográfico, mesmo que dirigido e

concebido por mim, veio da entrega e disponibilidade destes dois corpos carregados

de subjetividade e singularidade. Deste modo, esta pesquisa não se alicerça na

relação com seus integrantes através da ideia de que o coreógrafo ou diretor é

detentor da obra e os bailarinos são seus intérpretes, e sim na concepção de uma

obra composta da multiplicidade de corpos, conforme aponta Laurence Louppe

(2012):

Uma vez mais, a noção de <<intérprete>>, enquanto mero substituto dos criadores da obra vacila, porque a criação coreográfica deixa de ser um facto único e originário de um <<autor>>, como se verifica na maior parte das obras de arte. Vários corpos circulam e reúnem-se no corpo e na sensibilidade do coreógrafo e, nesse diálogo com o corpo dos bailarinos, eles próprios cruzados por múltiplas histórias pessoais, os corpos multiplicam-se (LOUPPE, 2012, p. 81).

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Assim sendo, fica evidente a necessidade da investigação partir não apenas

da minha vivência e observação, mas, principalmente, por tentar se aproximar ao

máximo da experiência destes dois coautores do Experimento Looping. Pois é, de

maneira efetiva, da relação entre esses bailarinos, comigo mesma e da câmera que

surge a videodança e se constitui a prática desta pesquisa de mestrado. Tal

realidade inscreve este trabalho no grupo de estudos, descrito por Fortin (2009, p.

79), que não se dedicam a realizar uma investigação típica e exclusivamente

etnográfica, pois não se detém apenas às questões de ordem cultural, mas vão,

também, necessitar reunir esses tipos de dados etnográficos. Conforme a autora, os

dados etnográficos são “dados empíricos provenientes de uma presença sobre o

campo para responder a questões que se impõe a prática” (FORTIN, 2009, p. 79),

sendo possível utilizá-los para diferentes propósitos de análise, que não,

necessariamente, para o campo da antropologia. Portanto, os tipos de dados

etnográficos que compõe a fonte primeira de análise deste trabalho são:

a) As minhas descrições e observações anotadas em um diário de processo.

Estas anotações privilegiaram informações técnicas e processuais dos

acontecimentos, bem como sensações, insights e opiniões particulares.

Todavia, as descrições e reconstruções das vivências do ateliê estão,

certamente, carregadas da minha forma de ver e entender o mundo.

b) A entrevista semiestruturada realizada com cada bailarino, separadamente,

em meio ao processo criativo. Estas entrevistas foram realizadas no espaço

da Casa Cultural Tony Petzhold1, onde os bailarinos já desenvolvem outros

trabalhos de criação. Foram gravadas em arquivo de áudio e transcritas de

acordo com as normas acadêmicas. As questões abordavam, inicialmente,

informações sobre a formação e referências específicas na área da dança e

da videodança, a fim de fornecer um perfil dos artistas e registrar pela forma

da escrita os saberes advindos da prática, que permanecem muitas vezes

anônimos. E de modo privilegiado, questões sobre a percepção e o

1 Casa Cultural Tony Seitz Petzhold é um espaço cultural que propõe a difusão e preservação do

movimento e da história da dança em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. Iniciou suas atividades a partir da ação da bailarina Tony Petzhold, que ali fundou sua Escola de Bailados Clássicos Tony Seitz Petzhold, no final da década de 1950. Ao longo dos anos, a casa foi sede de grupos de dança e teatro e abrigou trabalhos de diversos profissionais das áreas da dança, teatro, yoga, música e artes plásticas. Atualmente, oferece aulas de Educação Somática, Axys Syllabus, Contato Improvisação, Circo, Integral Bambu e etc, orientadas por profissionais da capital. Disponível em: < https://casaculturaltonypetzhold.wordpress.com/about/> Último acesso em: 06 de junho de 2015.

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entendimento deles sobre os procedimentos, as propostas e os resultados

obtidos. Valorizando tanto informações advindas das cinestesias2, como o

entendimento racional da prática.

c) Os vídeos gravados pela câmera, durante todo o processo. As imagens

capturadas no decorrer de todos os experimentos foram armazenadas, sendo

algumas, inclusive, editadas para fins de comparação, reflexão e análise do

desenvolvimento da prática.

Ainda se podem enumerar alguns dados complementares que também

contribuíram para esta elaboração escrita sobre a prática. São eles: as fotos e o

Making of produzido por Lícia Arosteguy3, os áudios de algumas conversas com os

bailarinos e com a coorientadora Suzi Weber e vídeos externos, de registro, de

alguns experimentos.

Paralelo a esta construção, identifica-se o desejo de compreender o que se

pode conhecer de uma prática e de que forma fazê-lo. Tais questões fundamentam

a linha de processos de criação na qual esta pesquisa se insere. Nesse caso o foco

principal passa a ser o percurso até se chegar à obra, e não o produto em si. Sendo

assim, a obra é entendida como o resultado de um caminho repleto de escolhas,

vivências, questões e não algo desvinculado de seu processo. A abordagem

escolhida para tanto foi a poética. Segundo Sandra Rey (1996, p. 83), “a pesquisa

em arte vai encontrar respaldo teórico na poïética, que propõe-se como uma ciência

e filosofia da criação, levando em conta as condutas que instauram a obra”. Ou seja,

se trata de uma abordagem que procura delinear as escolhas, procedimentos e

condutas criadoras, dando a ver os caminhos trilhados por seus artistas. Laurence

Louppe (2012) contribui para esse pensamento ao posicionar sobre a perspectiva

poética em que seu próprio livro, “Poética da dança contemporânea”, foi escrito:

2 A cinestesia, ou Kinesthesia, é usada nesta pesquisa conforme a definição de Sklar (1995), revisada

por Foster (2011, p. 8): “For Sklar kinesthetic analysis entails attending to the qualitative dimensions of moviment, the kind of flow, tension, and timing of any given action as well as the way in which aany person‟s movement interacts and interrelates with objects, events, and other people.” 3 Lícia Arosteguy graduou-se em Design pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2011. Em 2013 cursou a Pós-graduação em Direção de Fotografia Cinematográfica da Escola Superior de Cinema e Audiovisual da Catalunya (ESCAC), em Terrassa/Barcelona (Espanha). Desde 2010 integra a Ânima Cia. de Dança, em Porto Alegre, dirigido por Eva Schul. Fez cursos em algumas escolas renomadas como a P.A.R.T.S (Bruxelas/Bélgica) e SEAD (Salzburg/ Áustria).

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A abordagem será poética, o que significa que a compreensão da dança implica não somente o conhecimento das suas manifestações, mas também das suas práticas. Só compreenderemos a arte do movimento se integrarmos os seus saberes e, geralmente, se nos envolvermos nessa atividade, nesse poiein em que os processos de elaboração já se encontram repletos de toda a complexidade artística que revelam (LOUPPE, 2012, p. 30).

Louppe (2012) toca em um ponto fundamental para se entender de onde

parte o olhar desta reflexão crítica. Juntamente com a necessidade de se envolver

nesse poiein (retomando a proposta da autora), surge a questão: até que ponto um

pesquisador deve se envolver com a prática? Este é um tema delicado no campo

das pesquisas em artes e de suma importância para o estabelecimento

metodológico desta investigação. Conforme Salles (2014, p.66), “a arte vive,

portanto, um encontro de método que não implica, necessariamente, em busca

consciente”. O processo de criação do Experimento Looping está inserido em um

contexto de pesquisa acadêmica. Desse modo é de interesse dessa investigação

que os procedimentos e as escolhas envolvidas em seu desenvolvimento sejam

explicitados, para que se tornem conscientes e gerem saberes e novos

questionamentos. Entender a pesquisa em artes por esse viés faz com que não se

produzam respostas estanques a respeito do nível ou formato permitidos de

envolvimento dos pesquisadores com suas práticas e procedimentos artísticos.

Apenas evidencia a importância de que estas escolhas metodológicas sejam

conscientes, para que cada pesquisador, com suas especificidades, estejam aptos a

refletir e analisar como sua participação reverbera na pesquisa e na escrita de seu

trabalho.

Ao longo de todo prática, ocupei o papel de proponente dos experimentos,

guiando e direcionando o processo. Em alguns momentos, o fiz de maneira mais

diretiva, interferindo diretamente nas escolhas da videodança. Em outros, de forma

mais indireta e subjetiva, fornecendo apenas balizas para que os bailarinos

criassem. Apenas esses fatos já marcam a minha presença no campo pesquisado.

Somado a isto, está a minha escolha de participar, no Experimento III, como um

corpo videodançante, com o intuito de acumular dados cinestésicos e não somente

visuais. Ou seja, pelo desejo de não apenas afirmar, por exemplo, que a câmera tem

um peso e que ele interfere, transforma e pede por uma reestruturação corporal dos

bailarinos, na criação do movimento, mas sentir este peso e perceber estas

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adaptações e incorporações no meu próprio corpo. Pois o pesquisador interessado

em observar, descrever e compreender as incorporações (como a própria palavra

deflagra) de uma prática, não o fará sem acessar as sensações do seu próprio

corpo. E dentro desta perspectiva, Louppe (2012) convida o sujeito da análise a

transitar entre “o discurso e a prática, o sentir e o fazer, a percepção e a realização”

(LOUPPE, 2012, p. 30).

No entanto, não acredito que este trabalho se trate de uma auto-etnografia,

que Fortin (2009) define como “[...] uma escrita do eu que permite o ir e vir entre as

experiências pessoais e as dimensões culturais, a fim de colocar em ressonância a

parte mais sensível de si” (FORTIN, 2009, p. 83). Pois a forma com que conduzi

minhas descrições, observações e análises não apontam somente para minha

própria prática como proponente de um processo criativo, mas, sobretudo, para a

experiência dos corpos videodançantes a partir do conjunto de regras por mim

direcionadas em cada experimento. Os relatos da minha trajetória como artista e

pesquisadora auxiliam a acompanhar de onde surgiram certas questões de pesquisa

e aproximam o leitor da subjetividade que, inegavelmente, permeia minhas

observações e interpretações para este trabalho escrito, todavia, não constituem o

centro da pesquisa. Com semelhante importância, estão expostas as vivências

prévias dos bailarinos, relatadas em entrevista.

Portanto, a partir da escolha e do acúmulo dos dados etnográficos e da

definição da poética como forma de abordá-los, que “não diz somente o que uma

obra de arte nos faz, ela ensina-nos como o faz” (LOUPPE, 2012, p.27), é o

momento de explicitar a forma com que esta pesquisa se relacionou com o estado

da arte que a circunda. Para discutir sobre as percepções adquiridas no ateliê,

houve um trânsito entre os saberes teorizados e a prática, tanto de acadêmicos

como de outros artistas. Sem, no entanto, se tornar refém de excessivas

teorizações, as quais acabam por engessar a soberania do fazer artístico. Pode-se,

com isso, afirmar, guardadas as devidas diferenças entre o campo da antropologia e

o da arte, que se utilizou uma análise por teoria enraizada, como expõe Weber

(2010), ao falar de sua própria pesquisa de doutorado:

Estes caminhos de ida e volta entre os dados empíricos e os textos teóricos fazem parte do que Payllé (1994) chama de uma análise por teorização enraizada (théorisation ancrée). Este tipo de análise propõe uma teorização embasada e construída através da comparação entre a teorização em construção e a realidade dos dados empíricos. Segundo Payllé (1994) para uma análise de teorização enraizada, o corpus é o mesmo do antropólogo:

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notas de terreno, transcrições de entrevistas formais e informais, registros em vídeo e documentos variados (WEBER, 2010, p. 3-4).

Posto isto, este memorial crítico-reflexivo se organiza em dois grandes

capítulos. No primeiro capítulo, “O processo criativo”, estão contempladas as

informações e as descrições que constituem a base da elaboração e da organização

do processo criativo do Experimento Looping, assim como seu recorte teórico. Nele,

estão expostos os conhecimentos, termos, ferramentas e noções de estudiosos e

artistas que ajudaram a fazer este trânsito entre a teoria e a prática. Dentre os

conceitos abordados estão: a videodança, os corpos videodançantes, o

bailarino/videasta e os vetores de percepção da elaboração do movimento (peso,

fluxo, tempo e espaço) (Laban, 1978). Para tanto, utilizam-se as autoras: Santana

(2006), Spanghero (2003), Vasconcellos (2012) e Louppe (2012).

No segundo capítulo, “Análise e reflexões”, encontram-se as reflexões e as

análises poéticas do processo, a partir dos dados etnográficos coletados. Constitui o

corpo da análise a relação construída entre bailarinos e câmera, assim como os

procedimentos escolhidos, a partir dos quais se constrói o processo e a obra, ou

melhor, o que é o processo em si. Contribuem na análise dos dados empíricos os

saberes estabelecidos na primeira parte e os seguintes autores: Lepecki (2012),

Agamben (2009), Gil (2013), Salles (2014), Ostrower (1987) e Louppe (2012). Bem

como, a referência da obra de Fred Astaire, Royal Wedding (1951).

Nos anexos estão contidos os diários de processo, a história e características

da GoPro, o roteiro utilizado para as entrevistas com os participantes, a áudio

transcrição das entrevistas, os arquivos de vídeos da GoPro, bem como edições de

estudo, utilizando também os vídeos de registro gravados nos três primeiros

experimentos, o Making Of e as fotos produzidas pela Lícia Arosteguy. Todo esse

material potencializa a leitura desse trabalho escrito e pode ser acessado a qualquer

momento. Fica desse modo, a critério de cada leitor a decisão de quando o quiser

fazer.

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2. O PROCESO CRIATIVO

2.1 SEGUINDO RASTROS DE PERTENCIMENTO

A presente questão de investigação é resultado de um conjunto de

experiências que me atravessaram durante minha trajetória como aluna, bailarina,

fotógrafa, criadora, professora, pesquisadora e agora em uma forte imersão de

pesquisa em nível de mestrado. No entanto, o caminho que me levou a conhecer a

videodança não foi direto, tão pouco foi pela via do audiovisual. Foi, sobretudo,

relacionado ao universo da dança. Minhas inquietações e motivações nesta área

estão contaminadas pelas minhas vivências enquanto um corpo dançante.

Curiosamente, por ter passado minha infância em Ji-Paraná, uma cidade do

interior de Rondônia, que nos anos 90 não possuía escolas ou professores de

dança, meu primeiro contato com esta arte foi através de fitas de vídeos (VHS) de

registros caseiros das minhas primas dançando ballet, além dos filmes como

Flashdance (1983) ou Footloose (1984), reprisados com frequência nas redes

abertas de televisão. Foi apenas em 2000, quando já tinha 13 anos, que tive minhas

primeiras aulas de ballet clássico, jazz e posteriormente a dança contemporânea.

Havia me mudado para Palmas, no Tocantins, onde existiam mais oportunidades na

área da dança. Aos 18 anos, tornei-me professora da mesma escola na qual

comecei a dançar e naquele momento decidi que buscaria uma formação

profissional aprofundada.

Ao ingressar na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em Canoas, no

Rio Grande do Sul, no curso Tecnólogo em Dança (2006) e posteriormente na

Licenciatura em Dança (2011), pude ampliar o meu horizonte não apenas para a

técnica e a execução de um vocabulário de movimentos já estabelecido, mas para a

pesquisa e a criação do movimento, por diferentes caminhos. Foi, neste momento,

que tive meu primeiro contato com a videodança. Tive a oportunidade de conhecer o

trabalho desenvolvido pelo coreógrafo Diego Mac4, através de uma disciplina

ministrada pela professora Flávia Pilla do Valle5. Nesta oportunidade, fizemos alguns

4 Diego Mac é bailarino e coreógrafo porto-alegrense. Graduado em Dança, Especialista e Mestre em

Poéticas Visuais (UFRGS). Desenvolve pesquisas poético-teóricas entre dança, imagem e novas tecnologias. 5 Atualmente, é professora do Curso de Dança da UFRGS. Na época relatada, era professora e

coordenadora do Curso Tecnólogo em Dança da ULBRA. Doutora em Educação pela UFRGS.

20

exercícios com base no processo criativo em videodança de Mac e assistimos as

suas obras Pas de Corn (2006)6 e Mexendo nas Partes (2007)7, além de Enter The

Achilles (1995) e de The Cost of Living (2004) do grupo DV8 Physical Theatre8.

Estas referências, além de me apresentarem a possibilidade de misturar vídeo e

dança, constituem influências em meu trabalho, direta ou indiretamente. Por

exemplo, um dos experimentos propostos para o processo aqui pesquisado, o

“Duplo Controle”, que será tratado mais adiante, foi criado a partir de um dos

exercícios trazidos por Diego Mac naquela ocasião.

Na sequência, o workshop de videodança oferecido pelo Festival

Internacional Dança.com, em Porto Alegre, ministrado pelo professor Marcus

Moraes9 em 2010, contribuiu para este caminho de entrelaçamento entre o vídeo e a

dança. A oficina se dividiu em dois momentos: primeiramente, assistimos a várias

produções de artistas reconhecidos em âmbito mundial na área, como Philippe

Decouflé10, e depois fizemos exercícios em grupo, buscando brincar com as

possibilidades do vídeo para a dança. Naquela fase, nossas pesquisas ainda eram

experimentais. Os equipamentos não eram apropriados. O material videográfico nem

chegou a ser editado, mas foi a primeira vez que me envolvi não só apenas em

dançar, mas em gravar também.

Mestre em Dança pela New York University e Especialista pelo Laban/Bartenieff Institute. Tem formação em dança contemporânea, moderna, ballet. Foi autora dos Referenciais Curriculares da Dança/Arte do Estado do Rio Grande do Sul. Em 2013, dois de seus livros foram selecionados pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola, PNBE do Professor 2013. Desde 2012, coordena o PIBID/Dança da UFRGS/CAPES e desenvolve pesquisa na linha dos estudos culturais. 6

Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=l573mRwt_Cw> Último acesso em: 18 de janeiro de 2014. 7 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aXOxfmpoaHc> Último acesso em: 18 de

janeiro de 2014. 8 Criado em 1986 por Lloyd Newson, a companhia DV8 vem desenvolvendo trabalhos que refletem os

interesses pessoais de pesquisa de seu criador sobre questões sociais, psicológicas e políticas. Rejeita a abstração característica da maioria dos trabalhos em dança contemporânea, realizando produções conduzidas por conceito ou por uma narrativa. A companhia produziu muitas obras de grande repercussão internacional, inclusive filmes de dança. 9 Marcus Moraes é formado em Design pela PUC-Rio e Mestre em Teatro pela Unirio. É professor da

disciplina “Dança e Multimídia” da Faculdade Angel Vianna desde 2002. Ministra cursos de videodança em diversas cidades do Brasil desde 2006 pelo Festival Dança em Foco e outros, como o Festival de Dança de Joinville. Criou a videoinstalação "Grafismos" com o coreógrafo Paulo Caldas (Caixa Cultural Rio, 2010) e dirigiu o DVD "Memória em Movimento", com Marise Reis, projeto contemplado pelo prêmio Funarte / Klaus Vianna de Dança (2011). 10

Philippe Decouflé é um famoso coreógrafo, dançarino, mímico, diretor de teatro e artista plástico francês. Com mais de vinte anos de carreira, Decouflé atingiu um sucesso internacional. Criou sua própria companhia, DCA, em 1983. Dentre suas obras de sucesso, cita-se: Lhe P'tit Bal (1994) e Codex lhe filme (1987). Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Philippe_Decoufl%C3%A9> Último acesso em: 25 de maio de 2015.

21

Em 2011 participei da criação e produção da videodança Diálogo com a Luz11,

juntamente com a bailarina Luiza Moraes12 e com o artista audiovisual Arion Engers

Moreira13. Ela foi gravada na Sala 209 da Usina do Gasômetro14, em Porto Alegre.

Neste processo, participei no papel de bailarina, apenas, improvisando frente à lente

da câmera. Reunimo-nos uma única vez. Enquanto nós, bailarinas, improvisávamos,

Arion experimentava formas para a gravação. No resultado das imagens,

percebemos na luz que adentrava à sala, através das imensas janelas, um ponto de

partida para uma criação. Os fragmentos de movimentação foram gravados sem

estruturações, de forma espontânea e organizados coreograficamente na edição do

vídeo, resultando em um trabalho sensível e muito rico visualmente15. Esta

experiência despertou com força meu interesse em manusear e entender o que

estava sendo gravado, pois, durante o trabalho, senti falta de um contato mais

próximo com a câmera.

11

Disponível para visualização em: < http://vimeo.com/41163603 > Último acesso em: 25 de maio de 2015. 12

Luiza Moraes é bailarina, pesquisadora e coreografa porto-alegrense. Formada em História (UFRGS) e mestre em dança pela Centre National de la Danse (CNDC) em Angers, França. Atualmente, reside em Budapeste (Hungria), onde continua a desenvolver suas pesquisas em dança e performance. 13

Formado em Comunicação Social - Jornalismo em 2006 pela UNIJUÍ (Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul), pós-graduado em cinema em 2009 pela UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos). Trabalhou mais de seis anos como montador e finalizador em produtoras de cinema em Porto Alegre. 14

A sala 209 da Usina do Gasômetro é um local de referência para a dança contemporânea de Porto Alegre e região desde 2005. Ela faz parte do projeto Usina das Artes e é coordenada pelo Coletivo de Dança Sala 209, encabeçada pelas companhias Eduardo Severino Cia. de Dança e Ânima Cia. de Dança. Nela acontecem, diariamente, aulas, ensaios das companhias responsáveis e residências de artistas locais, para desenvolvimento de suas pesquisas criativas, dentre outros eventos, oficinas, mostras e circulações de espetáculos, locais, nacionais e internacionais. 15

A videodança Diálogo com a Luz foi selecionada para dois festivais, sendo exibida na XIII Edição do Festival Internacional de Videodanza de Buenos Aires, Argentina, em 2011, e na XI Edição do Festival Internacional de Vídeo & Dança - Dança em Foco - no Rio de Janeiro, Brasil, em 2013.

22

Figura 1: Foto da videodança Diálogo com a Luz (2011). Crédito da foto: Arion Engers.

Em 2012, ao me mudar para Curitiba, Paraná, tive uma vivência crucial,

sendo a atual pesquisa, de certo modo, continuidade desta experiência. O

Laboratório de Videodança é um projeto de extensão oferecido pela Faculdade de

Artes do Paraná, tendo como público-alvo não apenas alunos, mas também a

comunidade. Coordenado pelo professor Demian Garcia16 e pela bailarina e

pesquisadora Bruna Spoladore17, é composto principalmente por alunos dos cursos

de cinema e de dança, mas recebe também pessoas de teatro, dentre outras

formações. A partir dessa iniciativa se criou o Coletivo Na Janela18, que continua

fomentando as produções e visibilidade da videodança na comunidade curitibana.

Com a proposta de promover um espaço para pesquisa, reflexão e produção na

área, o laboratório corroborou com a ideia de que, a partir da definição de Pradier

(2000), acredito ser uma visão transdisciplinar da videodança.

16

Professor de Som e de Trilha para Cinema, Sonoplastia e História do Cinema na FAP (Faculdade de Artes do Paraná); Compositor musical para Cinema, Teatro e Dança assim como editor de som e sound designer; possui graduação em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) (1994) e mestrado em Cinema e Audiovisual - Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (2009). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Arte e Tecnologia, Composição Musical e Edição de som. Atua no mercado cinematográfico, teatral e publicitário brasileiro e francês. 17

Professora colaboradora na Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com bolsa da Fundação de Amparo a Pesquisa da Bahia (FAPESB). Participa do Grupo de Pesquisa Elétrico - Pesquisa em Ciberdança, do Grupo de Pesquisa em Dança e do Núcleo de Pesquisa em Arte e Tecnologia da Faculdade de Artes do Paraná (NATFAP). Coordena, junto a Demian Garcia, os projetos de extensão do Laboratório de Videodança e do Núcleo de Criação e Produção em Videodança e é proponente no Um - Núcleo de Pesquisa Artística em Dança da FAP. 18

Mais informações sobre o Coletivo Na janela estão disponíveis em: <http://najanela.kinghost.net/> Último acesso em: 23 de janeiro de 2015.

23

[...] a noção implica a qualidade criadora do diálogo não somente entre disciplinas, mas conciliação – e por conseguinte – entre o homem interior e o homem exterior, entre a experiência e a teoria, entre o sujeito e o objeto. Daí podem emergir novos objetos, novos saberes, novos métodos, atitudes e práticas (PRADIER, 2000 p. 42).

No Laboratório, os papéis não eram fixos, todos os integrantes podiam ocupar

e experimentar os lugares de bailarino, videasta, cinegrafista ou editor. Tanto nos

exercícios, quanto na criação e produção, o grupo não estava mais dividido entre as

pessoas oriundas do cinema e as da dança, todos nós estávamos na condição de

artistas trocando conhecimentos, experiências e nos arriscando. O que brotava

desse diálogo dava forma aos trabalhos propostos e realizados. É principalmente

nesse sentido que esta pesquisa encontra rastros na experiência acima relatada. Foi

a partir desse entendimento de videodança como algo criado da fusão e da troca

entre dança e vídeo, com uma libertação de regras engessadas e uma enorme

curiosidade e interesse pelo singular, que novas possibilidades criativas tanto

corporais, como visualmente, foram emergindo na minha prática artística.

Foi nesse período que participei da produção das videodanças: Intangível

(2012)19, como bailarina e criadora, colaborando na concepção; S (2012), como

proponente do trabalho e diretora; e 5678 (2012), como bailarina e videasta. Dentre

as muitas investigações e os processos elaborados dentro do laboratório, 5678 foi o

mais importante para construir a relação entre câmera e bailarino que proponho para

esta pesquisa, de tal forma, que considero esta pesquisa acadêmica uma

continuidade ou uma variante dessa videodança. Éramos três bailarinas e uma

câmera. Uma de nós criou uma sequência coreográfica curta, a segunda bailarina,

com o objetivo de registrar uma parte do corpo durante a movimentação da primeira

bailarina, também elaborou uma sequência enquanto operava a câmera. A terceira,

com o mesmo objetivo, criou uma movimentação, só que a partir do segmento criado

pela segunda bailarina, que o repetiria, agora sem a câmera. A primeira bailarina

adaptou a sua sequência para receber a câmera e com ela enquadrar o movimento,

tanto da primeira como da segunda, sem, no entanto, alterar muito sua

movimentação, a fim de conseguir fechar um circuito dinâmico e complexo. A

câmera circulava também de forma coreografada. Ao som de um cronômetro,

19

Disponível em: <http://vimeo.com/45338951> Último acesso em: 23 de janeiro de 2015.

24

repetíamos ciclicamente todas as sequências engendradas, dando a ideia de uma

máquina.

A partir desse trabalho, realizou-se uma instalação na qual a videodança, que

consistia na imagem gravada pela câmera no decorrer do circuito, era projetada,

simultaneamente, à coreografia cênica com o equipamento. As imagens projetadas

foram gravadas dias antes, no mesmo espaço da instalação, com o mesmo figurino

e editadas previamente, para serem reproduzidas em looping. Não foram utilizadas

as imagens em tempo real por limitações tecnológicas, tornando-se um diálogo entre

as imagens de registro e a efemeridade da dança cênica. Pela primeira vez percebi

a câmera como um corpo dançante e a possibilidade de, como bailarina e

cinegrafista, ao mesmo tempo, potencializar a relação entre câmera e bailarino na

criação de uma videodança.

Figura 2: Foto da videodança Intangível (2012). Crédito da foto: Camila Carneiro Martins.

25

Figura 3: Foto da videodança S (2012). Crédito da foto: Julia Lüdke.

Figura 4: Foto da videodança 5678 (2012). Crédito da foto: Adriano Del Duca.

26

Foi também no Laboratório de Videodança da FAP que tomei conhecimento

da GoPro20. Por mais que não tenha produzido nenhum trabalho com ela naquele

período, tive a oportunidade de acompanhar o trabalho de outros colegas que

possuíam o equipamento, instigando-me a adquiri-la e inseri-la na pesquisa que

desenvolvo hoje. Em um primeiro contato, atentei para as suas facilidades e

possibilidades. Por ser portátil, leve, ter as “proporções” aproximadas de um olho e

poder, inclusive, ser acoplada ao corpo, demonstrava uma grande afinidade ao

movimento dançado, podendo contribuir muito na relação do vídeo e da dança.

A partir desses diferentes lugares da experiência que ocupei em minha

trajetória, tanto com a dança, quanto com a videodança, pude amadurecer certos

questionamentos e voltar a atenção não apenas para as possibilidades que o vídeo

pode trazer à dança, mas também como a dança pode modificar o vídeo, buscando

uma relação íntima entre essas duas artes, não apenas no momento da edição. E se

a câmera dançasse? E se o bailarino fosse o cinegrafista? Seria possível que as

imagens capturadas demonstrassem ou reverberassem as qualidades de movimento

do bailarino que manuseasse a câmera? Como seria dançar e gravar ao mesmo

tempo? Esta pesquisa, portanto, foi elaborada e executada com o intuito de buscar

formas de compreender e analisar estas questões, ou ainda fomentar novas e outras

a respeito das muitas possibilidades de relacionamento entre o corpo dançante, a

câmera e o vídeo.

20

A GoPro é uma câmera digital voltada originalmente para registrar esportes e possui a qualidade de uma câmera profissional, com a vantagem de ser versátil. Foi criada por Nick Woodman em 2005. Inicialmente se tratava de uma câmera analógica, com filme de 35mm. Atualmente é digital e possui lente fixa com um ângulo de 170 graus de largura em vídeo de alta definição de 1080p. (Ver anexo B)

27

2.2 O RECORTE

2.2.1 A videodança e o ato de videodançar

Por meio de revisão bibliográfica, a pesquisadora Regina Miranda (2000,

p.118-119) encontrou um artigo publicado por Elisa Vaccarino em 1997, em uma

revista alemã chamada Ballet Tanz, o qual sugere que o termo “videodança” foi

cunhado, em 1988, pela curadora do centro Georges Popidou, Michele Bargues, ao

precisar classificar uma programação que não se encaixava na categoria “vídeos de

dança”. Não obstante, Brum (2012, p. 108) ressalta que, em 1975, o jornal Dance

Scope já havia publicado o texto Videodance21, escrito por Jeffrey Bush e Peter Z.

Grossman, em 1975.

Tão valoroso quanto especificar, historicamente, quando surgiu a expressão,

é entender que ela surge por demanda de uma prática a qual não se encaixava nas

categorias até então estudadas. Nesse sentido, compreender quais são e como se

estabelecem essas novas formas de relacionamento entre a arte do audiovisual e a

da dança, torna-se mais rico do que saber se foi Westbeth (1974), de Merce

Cunningham (1919 – 2009) 22, a primeira videodança, ou se foi A Study in

Coreography for Camera (1945), de Maya Deren (1917-1961)23, que, mesmo sendo

parte do cinema, deve ser considerado o marco seminal da videodança. Pois como

era uma artista múltipla, transitou pela dança, pelo cinema, pela literatura e

fotografia, sendo uma das pioneiras na tentativa de pôr em relação, em diálogo, as

diferentes formas de expressão, em especial, o cinema e a dança. Foi precursora do

cinema experimental, sendo referência até hoje em trabalhos e pesquisas artísticas

e acadêmicas.

21

Disponível em: <http://www.tospitimou.com/images/Videodance1975.pdf>. Último acesso em: 21 de maio de 2014. 22

Merce Cunningham era um bailarino e também coreógrafo norte-americano. Suas obras e pesquisa foram muito importantes e influentes na história da dança moderna e contemporânea, servindo de referência para pesquisas e experimentações até hoje. Pioneiro na área de dança e tecnologia, bem como na videodança. Teve forte influência de artistas de outras áreas, como John Cage. Uma das marcas de seus trabalhos é a inserção do acaso como forma de composição coreográfica. Para mais informações, indica-se ler: SANTANA, Ivani. Corpo aberto: Cunningham, dança e novas tecnologias. São Paulo: EDUC/FAPESB. 2002. 23

Para mais informações sobre Maya Deren sugere-se ler: BRUM, Leonel. Videodança: uma arte do devir. In: CALDAS, Paulo (Org.). Dança em foco: ensaios contemporâneos de videodança. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012. p.75-114.

28

É fundamental voltar a atenção para o fato de que o vocábulo surgiu da

necessidade de entender e nomear o que vinha sendo pesquisado, experimentado e

discutido, com profundo embasamento empírico. Cada uma das experiências, sejam

elas históricas ou atuais, do cinema ou do vídeo, possuem suas formas específicas

de procurar tensionar e entender a tecnologia audiovisual em relação ao corpo

dançante e constituem rudimentos do que está se chamando de videodança. Sendo

assim, há um cuidado para que a busca e o desenvolvimento desses conceitos não

limitem ou engessem esse debate e as produções na área. Outro cuidado é para

não descreditar trabalhos que não se encaixem, exatamente, nas definições, ou que

de alguma maneira proponham transgressões a tais conceitos. Pois, é através de

rupturas, aproximações e afastamentos, que se mantém a arte em movimento.

É justamente essa multiplicidade e efervescência de potenciais criativos que

constituem o que Douglas Rosenberg (2000) chama de gênero24, ou o que Décio

Pignatari (1995 apud WOSNIAK, 2006 p. 1) propõe como signagem25, ou o que Ivani

Santana (2006) considera um ponto de convergência da dança na cultura digital.

A videodança é um dos pontos de convergência existentes nessa Cultura Digital, assim como outras formas da dança mediada pelas novas tecnologias. Pois então não existem fronteiras, já que não existem mais territórios. Trata-se apenas de emergências dos tempos de agora (SANTANA, 2006 p.8).

Sem o intuito de realizar uma revisão bibliográfica ampla sobre o termo e sim

estabelecer balizas para análise do processo, toma-se como base a classificação

proposta por Maíra Spanghero (2003). Para a autora, a videodança é uma “[...]

forma de experimentação que conquistou domínios próprios, tanto territoriais quanto

estéticos" (SPANGHERO, 2003, p.36). A partir das diferentes formas de

relacionamento, entendimento e prática entre dança e audiovisual, Spanghero

(2003, p.36) elaborou três categorias:

a) O registro em estúdio ou palco, que realiza a gravação da coreografia,

originalmente criada sem relação com o vídeo e sem sofrer grandes

modificações, mas permite uma visualização de detalhes que não se vê da

24

Tradução nossa. 25

“Signagem é o neologismo criado por Décio Pignatari para evitar usar o termo “linguagem” ao se referir aos fenômenos não-verbais, como, por exemplo, a fotografia, a televisão, o teatro, e, neste caso, a dança, ou especificamente, o vídeo-dança (sistema áudio-hápticovisual). Consultar a obra de Signagem da Televisão (PIGNATARI, 1980)”. (WOSNIAK, 2006, p.1)

29

plateia do teatro. O interesse é o registro, citando o exemplo dos vídeos

feitos pela Companhia Grupo Corpo26 de seus espetáculos.

b) A adaptação de uma coreografia para o audiovisual, que transforma uma

coreografia originalmente realizada para cena e transportada para o meio

digital. A autora cita como exemplo, o grupo DV827, pois realizam uma

releitura de uma coreografia cênica para a câmera e o ambiente do

computador.

c) Por último, as danças pensadas diretamente para a tela, apontadas pela

autora como o equivalente ao screen choreography, as quais pressupõem

a dança de um suporte para outro, como nas outras categorias, mas que,

em seu processo de criação, são carregados de transformações capazes

de criar novos conceitos. A coreografia é criada em função do corpo do

vídeo, levando em consideração o resultado na tela. Foi dado como

exemplo, dentre outros, as criações de Merce Cunningham.

Dentre as categorias oferecidas por Spanghero (2003, p.36), a que mais se

aproxima desta pesquisa é a terceira, as danças pensadas diretamente para a tela.

O interesse do processo de criação do Experimento Looping e da análise deste

trabalho é justamente investigar como estimular e potencializar a relação entre

bailarinos, câmera e videasta, observando como isso reverbera no material gravado

e editado, assim como nos corpos envolvidos. A forma encontrada, para levar ao

extremo a relação entre os três, foi colocar o bailarino também no papel de videasta,

para que o movimento da câmera fosse coreografado por eles, os quais, por sua

vez, têm sua movimentação modificada na relação estabelecida pela câmera. Assim

sendo, levo a termos literais as palavras de Spanghero (2003):

[...]o que interessa primordialmente é que a câmera dance com o bailarino e que o bailarino se coloque no espaço e no tempo da câmera. No olhar da câmera. Quando a dança é captada pelo olho da imagem, ela ganha outra existência. Na realidade, este jogo adaptativo permite o florescimento de novas práticas para a dança e a modificação do corpo (SPANGHERO, 2003, p. 38).

26

Vídeos disponíveis no canal do grupo em <https://www.youtube.com/user/GrupoCorpoOficial>. Último acesso em: 25 de maio de 2014. 27

Ver nota de rodapé 4.

30

A esse respeito e em consonância com esta pesquisa, Santana (2006)

acredita que o conceito de videodança ultrapassa a ideia de algo que se localiza na

fronteira entre a dança e o vídeo, porém, trata-se simplesmente de justapor ou

aproximar estas áreas. Ela é a emergência de um novo modo de expressão,

singular, independente, que resulta do contato entre a dança e o audiovisual. Desse

modo, não se trata mais de dançar e gravar, mas sim de uma nova ação com novas

exigências, trata-se de videodançar. O objetivo, neste caso, não é criar um novo

verbo para o dicionário e sim chamar a atenção para as possibilidades de uma nova

prática, que modifica e é modificada pelos sujeitos da experiência, aos quais

denominei de “corpos videodançantes”. São eles: os bailarinos, Fernanda

Bertoncello Boff, Douglas Jung e, em alguns momentos, eu mesma, e a câmera,

GoPro.

2.2.2 Os corpos que videodançam

Ao realizar uma pesquisa pelos termos “videodançar”, “corpos que

videodançam” ou “corpo que videodança”, em livros e na internet, a pesquisadora

Jaqueline Reis Vasconcellos (2012) foi a única encontrada ao utilizar a expressão no

título de seu artigo “Um olhar sobre o corpo que videodança”28. No entanto, não

chega a referenciá-lo novamente no restante do texto. Para a autora, os corpos que

videodançam são “sintético/digitais”, mesmo que homólogos aos corpos físicos dos

quais partem. Ela desenvolve o tema a partir da ideia de corpo digitalizado,

“humano/sintético”, que se configura a partir da arte híbrida da videodança,

codificada por meio da relação do corpo com dispositivos eletrônicos, como

descreve:

Os elementos que cercam a composição em Dança e em Audiovisual, como a construção dramatúrgica [1] do corpo, a relação corpo-espaço e mesmo o processo de decupagem [2] são reconfigurados quando organizados no ambiente digital, binário, dos so‟ftwares que compõe e configuram o videodança. Assim, este corpo, imerso neste universo não poderá ser entendido como uma transposição humana, uma cópia ou réplica da realidade, ele é outro, particular e distinto, ainda que o mesmo. Nesse

28

VASCONCELLOS, Jaqueline Reis. Um olhar sobre o corpo que videodança. Acervo Mariposa. Disponível em: <http://acervomariposa.com.br/vidbr/2012/02/02/um-olhar-sobre-o-corpo-que-videodanca/> Último acesso em: 09 de junho de 2015.

31

ambiente de possibilidades digitais as partes escolhidas na composição não falam do todo, elas são o todo (VASCONCELLOS, 2012)

29.

Mesmo reconhecendo a importância e o vasto campo de pesquisa sobre o

corpo digitalizado, presente na obra final da videodança, pelo trabalho de edição, as

questões que compõem esta investigação acadêmica estão voltadas para o

processo que antecede a edição das imagens e do corpo humano/digital. O recorte é

feito sobre o relacionamento criativo necessário entre bailarinos, câmera e videasta

para gerar as imagens a serem editadas. No processo criativo do Experimento

Looping, estes são considerados os corpos envolvidos na ação de videodançar.

Reconhece-se que os corpos “humano/digitais” e os corpos videodançantes estão

tão intimamente ligados que não há como analisá-los isoladamente ou sem levar em

consideração como um interfere no outro e vice-versa. Inclusive, utilizaram-se,

durante o processo, os corpos “humano/sintéticos” como referência para a criação e

refinamento dos corpos videodançantes, como se verá adiante.

A ideia de nomear a câmera e também os bailarinos como corpos

videodançantes se construiu nessa pesquisa em função do conceito, há muito

estabelecido, de corpo dançante. A professora e pesquisador Mônica Dantas (2009,

p. 1) aborda o corpo dançante, embasada na visão de vários teóricos

imprescindíveis:

O corpo dançante é um corpo treinado, modelado, construído (FOSTER, 1997), um corpo fenomenológico e sensível (FRALEIGH, 1987), um corpo virtual e paradoxal (GIL, 2004), um sistema aberto de troca de informações (KATZ, 1994), um rizoma plástico, sensorial, motor e simbólico (BERNARD, 1990), um laboratório da percepção (SOUQUET, 2005).

A autora ainda aponta dois contextos para os corpos dançantes. Ambos oram

elaborados a partir da pesquisa de Dantas a respeito das obras “Aquilo de que

somos feitos” da Lia Rodrigues Companhia de Danças e “Marché aux puces, nous

sommes usagés e pas chers” da Dona Orpheline Danse, mas que são pertinentes

para o desenvolvimento dessa pesquisa:

a) Treinamento e Formação:

As concepções do corpo dançante como corpo treinado, heterogêneo e autônomo referem-se à formação e ao treinamento de cada intérprete em cada companhia. Revelam que os bailarinos constroem seus corpos a partir da incorporação de diferentes experiências, indo do balé à dança moderna,

29

Ver nota de rodapé 26.

32

do butô às danças africanas e afro-brasileiras, da educação somática às práticas esportivas, do teatro físico à experiência da performance. Elas refletem assim a diversidades de formações dos bailarinos em cada companhia, bem como as múltiplas referências presentes na formação de cada bailarino. Essas concepções indicam também que os bailarinos se responsabilizam por sua formação e treinamento e que, nesse processo, são capazes de cultivar suas características pessoais e de fazer escolhas levando em conta seu bem-estar (DANTAS, 2009, p. 2).

b) Processos de realização coreográfica:

As noções do corpo dançante como corpo íntimo, energético, engajado, vulnerável e amante concernem à implicação dos bailarinos nos processos de realização coreográfica, revelando que os intérpretes integram à sua prática artística as experiências cotidianas mais ordinárias e mais íntimas, fazendo convergir sua energia e mesmo sua vida ao projeto coreográfico do qual fazem parte. Elas mostram que os bailarinos são capazes de se fragilizar e de se transformar para bem servir à obra. Essas concepções indicam também que os bailarinos são capazes de se posicionar em função de suas convicções e de seus desejos e que eles estão prontos a se investir numa ação coletiva. Além disso, a concepção do corpo dançante como corpo amante indica que o prazer e o desejo são componentes importantes da construção do corpo dançante nas duas obras (DANTAS, 2009, p. 2).

Entende-se, portanto, que os bailarinos colaboradores desta pesquisa já

vieram para este processo criativo carregados das incorporações de suas

experiências, a partir de suas escolhas e de seus interesses. Sendo importante para

a pesquisa e a análise abordar essas experiências. Todavia, o que se observa é que

os corpos dançantes, neste caso, não foram convidados para dançar, mas para

videodançar. E para alcançar tal desejo houve aprendizado, treinamento, formação,

engajamento e também fragilização para que acontecesse um relacionamento íntimo

da arte da dança com o vídeo, tornando-se, assim, não mais corpos apenas

dançantes, mas videodançantes. Eles se disponibilizaram a engajar a experiência de

sua bagagem corporal e até mesmo colocá-las em questionamento, adquirindo

novas maneiras de fazer, para construir e servir às especificidades e propostas do

Experimento Looping.

E a câmera? Por que incluí-la como um corpo videodançante? Ela se

encaixaria como corpo dançante? Mesmo entendendo que a GoPro se trata

primeiramente de um equipamento, um dispositivo, alguns diriam até mesmo

inanimado, neste processo de criação, em particular, ela assume um papel de

importância e de destaque. O treinamento, a elaboração corporal e afetiva dos

bailarinos se constitui a partir do relacionamento com a câmera. Ela não está alheia,

distante do movimento, ela é a peça, a presença, o corpo imprescindível, tanto

33

quanto os bailarinos, para que a criação aconteça. Sendo assim, não se trata de

uma relação tradicional com o equipamento, ele foi incorporado como corpo

videodançante.

Estruturou-se, então, três papéis diferentes entre os corpos videodançantes: o

bailarino, o bailarino/videasta e a câmera. Por hora, mostra-se fundamental

esclarecer o papel do que classifiquei como “bailarino/videasta”, pois dentre tantos

elementos que compõem este processo, ele se tornou a principal chave de ligação

entre a dança e o vídeo. Começa-se por questionar-se: por que chamar de

bailarino/videasta e não de operador de câmera ou cinegrafista?

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, 2009, p.

467), o cinegrafista é o “[...] que ou quem opera uma câmera de cinema ou de

televisão; câmera”, não é, necessariamente, responsável por criar e elaborar os

planos, mas sim, executá-los de forma técnica e apropriada. Por esta razão o termo

“videasta” se mostrou mais apropriado, pois se trata de um “vídeo-artista”, muitas

vezes ele se encarrega por todas as etapas da produção de vídeo, desde sua

concepção até sua manufatura30. Os artistas colaboradores não eram apenas

executores técnicos da proposta. O movimento envolvido no manuseio da câmera

era valorado tanto pela sua finalidade, de obter a imagem desejada, como pelo

gesto, pelo domínio da ação envolvida no movimento por si só. O conceito de

motion, criado por Nikolais (1971), expressa bem a diferença entre os movimentos

que realizamos todos os dias com objetivos práticos e técnicos, do ato de dançar,

como expõe Louppe (2012):

Nikolais, por seu lado, reúne no conceito de motion o gesto consciente e a consciência do gesto. << Enquanto arte, a dança é a arte do motion, não do movimento...>> O motion é o gesto consciente e, sobretudo, a consciência do gesto: a consciência de todos os caminhos os caminhos visíveis e invisíveis que percorrem o corpo ou apenas as falanges de um dedo. O motion diz respeito ao movimento como travessia da sua própria experiência. A <<dança>> existe quando esta experiência do ser-em-movimento, as qualidades e os modos da sua entrega ao motion prevalecem sobre todos os outros parâmetros, quer da acção, quer da criação artística (LOUPPE, 2012, p. 116).

Mais uma vez, repete-se no discurso a consciência, o ser-em-movimento, o

sujeito, a subjetividade do corpo. Dessa forma, não há como observar e analisar o

processo artístico, ou melhor, a relação entre a dança e o vídeo sem ser pelo olhar

30

Estas informações foram retiradas da Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Videasta> Último acesso em: 24 de maio de 2015.

34

de cada corpo videodançante. De acordo com o Dicionário Teórico e Crítico de

Cinema (AUMONT & MARIE, 2012, p. 215-216), “o olhar distingue-se da visão pelo

fato de emanar do sujeito que percebe, de maneira ativa e mais ou menos

deliberada; a vista é assim o resultado do olhar.” Mas como acessar e analisar estes

corpos videodançantes? Qual o meio de perceber e entender os sujeitos em relação

ao ato de videodançar, proposta por esta pesquisa?

2.2.3 Pistas para análise dos corpos videodançantes

Encontrei no livro, “Poéticas da dança contemporânea”, de Laurence Louppe,

a elaboração e a discussão sobre ferramentas muito valorosas para esta análise. Ela

chama estas ferramentas, para a compreensão entre discurso e prática, de “vectores

perceptíveis dessa elaboração” (LOUPPE, 2012, p. 103). Dentre as citadas, destaco:

o espaço, o peso, o fluxo e o tempo.

As expressões espaço, fluxo, peso e tempo são amplamente utilizados tanto

no meio acadêmico, como no meio prático da dança. É impossível trazê-las para a

discussão sem falar de Rudolf Laban (1879-1958)31, que estudou, organizou e

classificou-as como “os quatro fatores do movimento”. Todavia, não é objetivo deste

estudo realizar uma análise do movimento segundo a Labanálise32, que é muito mais

complexo do que apenas estes fatores. O que interessa é integrar esses saberes

junto à prática e à reflexão envolvidas nesta pesquisa. Para tanto, defino-as segundo

a pesquisadora, Laurence Louppe (2012), anteriormente citada, pois além de trazer

as origens, principalmente em Laban, ela ainda elabora um paralelo com outros

autores e artistas, atualizando tais conhecimentos. Desse modo, conforme a autora:

a) O peso é um dos mais importantes, pois é através dele que o sujeito escolhe

a forma como ele se relaciona com a gravidade, se cede a ela em uma

31

Rudolf Laban nasceu na Bratislava em 1879. Criou vários centros de estudos do movimento, onde buscava uma consciência dos movimentos cotidianos ou não, unindo questões fisiológicas e psíquicas, emocionais. Criou um sistema de notação do movimento, conhecido nos EUA como Labanotation. Foi bailarino e coreógrafo, tornando-se muito importante na história da dança mundial. “Sua pesquisa e metodologia sobre o uso do movimento humano, pela profundidade e extensão, são hoje base para uma melhor compreensão do homem por meio do movimento, modernamente utilizada nos mais diversos ramos da arte e da ciência: dança, teatro, educação, trabalho, psicologia, antropologia, etc” (VECCHI apud LABAN, 1978, p.10). 32

“É um sistema de observação, descrição e notação de todas as formas de movimento, derivado do trabalho de Rudolf Laban, seus colegas e seus alunos. Um vocabulário sistemático e metodologia de descrição do movimento” (YOUNGERMAN, 1978, apud PRESTON-DUNLOP, 1998, apud RENGEL, 2001, 91).

35

queda ao chão, ou se resiste, usando sua força muscular para tal. Sendo

assim, o peso situa o ser no mundo, através do tato o indivíduo sente a ação

da gravidade, que o permite perceber seu próprio peso em um tempo e

espaço. A partir desta ideia, Louppe (LOUPPE, 2012, p. 105) afirma que “no

tratamento do peso, o controlo por parte do sujeito e o abandono à atracção

da gravidade são os dois pólos através dos quais se articula primeiramente a

poética do peso.” Além disso, é a partir da transferência do peso que o

movimento se funda, como coloca a autora “a cinetografia de Laban dos

anos 1920 faz da transferência de peso a unidade aberta que é fundadora

de todo o acto motor” (LOUPPE, 2012, p. 103).

b) O fluxo, por sua vez, refere-se ao tratamento dado a este peso. Isto é, para

resistir ou ceder à ação gravitacional, o corpo se utiliza da ação do tônus

muscular, essas gradações da tensilidade, “[...] ou seja, o grau de

intensidade do tônus muscular [...]” (LOUPPE, 2012, p. 103), são

responsáveis por construir a dinâmica de espaço e tempo do corpo em

movimento, assim como afirma a autora:

As tensões não são directamente visíveis na forma, mas conduzem as linhas de força responsáveis pelo movimento. Elas estão no cerne de toda a expressividade do movimento: no seu grau de intensidade, no seu regime espácio-temporal, no seu trabalho sobre as dinâmicas (LOUPPE, 2012, p. 173).

c) O tempo, dentre todos os fatores, é o que mais gera divergências e

discussões. Nesta investigação, iremos abordar o tempo sob a perspectiva do

“fraseamento”, que é “um dos elementos mais relevantes na organização do

tempo” (LOUPPE, 2012, p. 156). O fraseamento se estrutura da relação entre

três outros fatores: o peso, o fluxo e o espaço. São eles que ditam as

durações do movimento, isto é, “o fraseado, mais do que um elemento

isomórfico entre dança e música, consiste na organização sensorial e motora

das durações, no fôlego interior que insufla uma temporalidade singular.”

(LOUPPE, 2012, p. 157). A partir dessa organização das durações se

estruturam os acentos, as rupturas, as pausas e os aceleramentos.

d) Conforme afirma Louppe (2012, p. 190) “uma das tarefas mais importantes

que competem ao bailarino, assim como ao teórico, é a distinção entre

<<espaço>> e <<lugar>>, no sentido objectivo, de uma localização concreta.”

Para esta pesquisa, torna-se especialmente importante esta diferenciação,

36

pois ambos, espaço e lugar, são peças importantes para o desenvolvimento

desta videodança. Assume-se a definição de Haygood (1995 apud LOUPPE,

2012, p.191) que define lugar como uma “superfície de exploração de

sensações corporais” (LOUPPE, 2012, p. 191). O lugar pode ser substituído,

reconstruído, provisoriamente, mesmo sabendo que influenciará na ação, ele

não é insubstituível. O lugar diz respeito à arquitetura, a topologia do

ambiente, a estrutura física, que a obra pode escolher levar ou não em

consideração na criação. Já o espaço não é dado, não é externo ao sujeito,

ele é construído pelo bailarino, que é ao mesmo tempo construído por ele. “É

uma força constituinte” (LOUPPE, 2012, p. 188). Pois, “A par do movimento

dos corpos no espaço, existe o movimento do espaço nos corpos” (LABAN,

1981, p. 23 apud LOUPPE, 2012, p. 189). Sendo este espaço constituído pelo

corpo em relação com o seu tempo, peso e fluxo, elaboração dinâmica

initerruptamente. Sendo assim:

Trata-se de um espaço que o corpo encara como um outro corpo, um espaço como parceiro, onde o corpo, se souber dominar os seus estados tensionais, pode inventar consistências e <<esculpi-las>> (o <<carving space>> de Laban, que se inicia com a modelagem do espaço de proximidade) (LOUPPE, 2012, p. 189).

Além da diferenciação das noções de espaço e lugar, faz-se necessário

entender que, nesta pesquisa observam-se, ainda, dois ambientes diferentes: o

digital e o físico. O ambiente físico diz respeito aos corpos videodançantes, criando

suas relações de espaço, tempo, peso e fluxo, em virtude, também, de um lugar

(que no decorrer do processo foi se mostrando cada vez mais importante) que

influencia na criação coreográfica. O ambiente digital se constitui no recorte feito

pelo frame do vídeo, sendo criado em primeira instância pelos corpos

videodançantes e pelo lugar de gravação, que, em um segundo momento, “são

reconfigurados quando organizados no ambiente digital, binário, dos so‟ftwares que

compõe e configuram o videodança”, como afirma Vasconcellos (2012)33.

A partir dos procedimentos e dos saberes escolhidos para esta investigação,

optou-se por descentralizar a elaboração da videodança pelos softwares de edição,

priorizando o trabalho com os corpos videodançantes no ambiente físico como meio

de alterar, reconfigurar e organizar a videodança no espaço digital. Esta escolha

33

Ver nota de rodapé 26.

37

fomentou o trânsito entre a vivência corporal do movimento e a percepção visual da

imagem gerada nesse experimento, reforçou a importância do ir e vir entre as

experiências de sentir o peso da câmera durante a coreografia e de ver como isso

reverbera no recorte do “olhar câmera”. Sendo assim, fundou um elo entre o

movimento dançado e a imagem gravada. Reforça-se o fato de que a escolha de

diminuir ao máximo o uso dos softwares na edição das imagens da videodança se

tratou de uma opção que ajudou a dar continuidade no recorte das questões

levantadas pela pesquisada, não como algo a ser valorado como bom, ruim, correto

ou incorreto, e sim, como uma baliza ou procedimento a ser observado e que

conduzem a obra em sua singularidade.

2.3 A APRESENTAÇÃO DOS CORPOS VIDEODANÇANTES

2.3.1 Os bailarinos colaboradores

Figura 5: Frame retirado do Making of do processo (2014). Crédito: Lícia Arosteguy.

Douglas Jung. Artista nascido em Canela, em 1984. Tem 31 anos. É

bailarino, coreógrafo e professor de dança contemporânea. Criador do Coletivo

Moebius e coreógrafo do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre,

desempenha grande influência na dança porto-alegrense. Tem um grande interesse

38

pelas artes visuais, pela performance e pela moda. Artista múltiplo e efervescente,

tem um olhar sensível sobre o corpo e o movimento.

Minha relação com o Douglas Jung é mais recente. Nosso primeiro contato

foi, em 2011, quando participei de uma oficina de Educação Somática em que ele

participou como aluno convidado. Mas, antes disso, já acompanhava, como

espectadora, o seu trabalho como bailarino, no “Folias Fellinianas” (2007), realizado

pelo Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre, dirigido por Airton Tomazzoni34

e no espetáculo “Alice (adulto)” (2007), produzido pelo Grupo Gaia, dirigido por

Diego Mac e Alessandra Chemello35. No momento que comecei a me inserir na cena

da dança em Porto Alegre, contudo, ele havia saído do país. Nunca trabalhamos

juntos em um processo artístico, nem compartilhamos o palco, porém sempre tive

uma forte afinidade com suas produções. Após seu retorno à Porto Alegre, em

meados de julho de 2013, comecei a frequentar suas aulas, sendo seus trabalhos de

espiral, fluxo e qualidade de movimento, referência para a minha formação corporal

como bailarina. A videodança Pas de Corn (2007), criado por Diego Mac (em que o

Douglas contribuiu com a semente da ideia) faz parte das minhas influências como

pesquisadora e criadora. Nosso convívio, mesmo que mais recente, também se

configura como amizade, pois se estende além de interesses e ambientes apenas

profissionais voltados para as artes.

34

Airton Tomazzoni é coreógrafo, jornalista, diretor e gestor público cultural, estando à frente da Cia. Municipal de Dança de Porto Alegre, do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre e do Centro Municipal de Dança de Porto Alegre. Doutor em Educação pela UFRGS é professor do curso de Especialização em Dança da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). 35

Alessandra Chemello é bailarina e coreógrafa. Iniciou seus estudos em dança em 1990, na cidade de Caxias do Sul e, a partir de 1998 iniciou sua carreira profissional na dança em Porto Alegre. Idealizou e criou o Grupo Gaia – dança contemporânea, hoje um dos grupos de dança mais atuantes do Rio Grande do Sul, em que desenvolve as funções de diretora geral, coreógrafa e bailarina.

39

Figura 6: Frame retirado do vídeo gravado pela GoPro, no encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).

Fernanda Bertoncello Boff. Artista nascida em Porto Alegre, em 1989. Tem

25 anos. É bailarina, pesquisadora e criadora, produtora e professora no campo da

dança e da arte circense. Múltipla, curiosa e disciplinada, dedica-se completamente

em suas escolhas e caminhos pela arte da dança contemporânea, bem como pela

educação em arte. Vem fundando sua marca no quadro artístico e político da dança

de Porto Alegre.

Minha relação com a Fernanda Boff começou na montagem coreográfica do

projeto Dar Carne a Memória36, que se propunha a remontar espetáculos da

coreógrafa Eva Schul37, na ocasião dividimos o palco no trabalho Um Berro Gaúcho

(1977), em 2010. Neste mesmo ano participamos do Workshop de Videodança,

ministrado pelo professor Marcus Moraes38, no qual desenvolvemos um exercício de

criação em videodança, com equipamentos muito precários. Esta oficina foi um

momento marcante que partilhamos, pois foi a primeira experiência de ambas com a

videodança de fato. Infelizmente, estes arquivos de imagem acabaram se perdendo.

36

Projeto que teve como objetivo a recriação e a celebração de parte do patrimônio coreográfico da dança moderna e contemporânea na cidade, através da remontagem de obras coreográficas de Eva Schul, que são representativas de momentos-chave de sua carreira e, em consequência, do desenvolvimento da dança contemporânea no Rio Grande do Sul e no Brasil. Disponível em: <https://darcarneamemoria.wordpress.com/about/> Último acesso em: 10 de janeiro de 2015. 37

Eva Schul é um dos principais nomes da dança moderna no Brasil e atualmente é diretora da Ânima Cia de Dança, em Porto Alegre, onde leciona sua técnica. Coreografou o último trabalho da Cia Municipal de Dança de Porto Alegre, o Espetáculo Salão Grená (2014). Disponível em: <http://wikidanca.net/wiki/index.php/Eva_Schul> Último acesso em: 10 de janeiro de 2015. 38

Ver nota de rodapé 9.

40

Voltamos a trabalhar juntas, em 2014, no NECITRA – Núcleo de Estudos e

Experimentações com Circo e Transversalidades, coordenado pelo circense e

bailarino Diego Esteves39, onde realizamos uma residência para pesquisas autorais.

Dentro do Núcleo, a Fernanda vem desenvolvendo uma pesquisa chamada “Tudo

que vai volta”, que se propõe a estudar as possibilidades de reversão do movimento,

utilizando o vídeo como recurso metodológico de criação e execução, visando

adquirir as qualidades de movimento do corpo retrocedendo o movimento. Este

projeto surgiu no mesmo período em que desenvolvíamos o processo criativo,

compartilhando muitas referências e provocações. Como relata a bailarina:

[...] esse projeto “Tudo o que vai, volta” é a ideia de constituir uma sequência de movimentos e explorando as possibilidades de retrocesso do movimento, a partir do vídeo. Então, como é que foi o processo: eu fiz um laboratório de improvisação, me gravei, coloquei no editor de vídeo e retrocedi. A partir desse retrocesso, eu recortei as partes que mais me chamaram atenção e aí, desse recorte, eu tentei captar, fazer a junção desses recortes, o que foi quase impossível. Eu não conseguia me copiar, nem copiar a ida, nem a volta, eu não conseguia, assim, foi super difícil. Então serviu muito mais de referência do que de algo bem concreto, né, esse movimento, depois esse, depois esse. Daí eu fechei uma coreografia pra ser apresentada na quinta edição do Desdobramentos

40, como tipo, ó,

até aqui que eu cheguei com esse projeto, com essa ideia. Então o vídeo serviu dentro do procedimento metodológico (BOFF, 2014, informação verbal).

O contato entre os dois bailarinos também vem de um período anterior a esta

pesquisa. A Fernanda já havia sido aluna do Douglas no Grupo Experimental de

Dança de Porto Alegre em 2010 e bailarina de um de seus trabalhos, Foi pro Espaço

(2012), que foi realizado com ex-bailarinos do Grupo Experimental. Estas

experiências facilitaram a proximidade e intimidade entre os dois. Atualmente, eles

compartilham o palco no espetáculo Guia Improvável para corpos mutantes (2013),

com direção de Airton Tomazzoni, além de tanto eu, como a Fernanda, continuar a

fazermos as aulas livres com o Douglas. O que nos torna mais próximos ainda

profissionalmente, pois implica em afinidades estéticas e profissionais.

39

É artista cênico, produtor, gestor, diretor e professor. É fundador e coordenador do NECITRA – Núcleo de Estudos e Experimentações com Circo e Transversalidades onde criou, dirigiu e atuou em muitas montagens. Foi Coordenador de Dança do Estado do Rio Grande do Sul, junto ao IEACen – Instituto Estadual de Artes Cênicas da Secretaria de Cultura do Estado, coordenador do Colegiado Setorial de Circo do Estado e conselheiro da ASGADAN – Associação Gaúcha de Dança. Disponível em: <http://necitra.com/sobre/elenco/diego-esteves/> Último acesso em: 10 de janeiro de 2015. 40

O “Desdobramentos” é um evento de mostra dos trabalhos pesquisados e criados pelos artistas residentes do NECITRA, que acontece periodicamente ao longo do ano.

41

Figura 7: Fotografia do Espetáculo Guia Improvável para corpos mutantes (2013), no qual os dois colaboradores dividem o palco atualmente. Créditos da foto: Cristiano Prim.

Como se pode observar acima, as trajetórias dos colaboradores e a minha se

cruzam e ocupam o mesmo contexto, ou seja, a cena da dança contemporânea

porto-alegrense. As escolhas destes artistas para o Experimento Looping não foram

aleatórias, ou feitas de modo impessoal. Descrever os critérios de seleção e as

experiências conjuntas e individuais dos artistas envolvidos no processo é

fundamental, pois ajuda a reconhecer e perceber com riqueza de detalhes quem são

os sujeitos os quais criam o movimento, agenciando as relações entre espaço,

tempo, peso e fluxo, de forma singular e que, acima de tudo, dão corpo a esta

pesquisa e a esta obra. Se qualquer um deles fosse substituído ou deixasse de

participar, certamente, outra pesquisa se configuraria, porque, sobretudo, trata-se de

uma investigação e criação coletiva.

Os colaboradores foram convidados levando em consideração, como se pôde

verificar anteriormente, o entrosamento existente entre eles e de ambos em relação

a mim. Iniciar uma investigação com prazos estabelecidos e em que se busca uma

verticalização de certas experimentações na arte e na videodança, exige do grupo

investimento de tempo, de energia e de disponibilidade à troca e aos

questionamentos. Se não houvesse afinidade, certamente, assuntos de outras

ordens poderiam se colocar à frente da pesquisa, dificultando a exploração. Tendo

isto em vista, procurei por dançarinos com quem já possuía experiências

42

profissionais anteriores. Tanto com a Fernanda, quanto com o Douglas, mantenho

um relacionamento que extrapola o âmbito apenas profissional para uma amizade,

com os quais compartilho outras afinidades além da dança.

A opção de dois bailarinos se deu para efetivar a possibilidade de que ambos

experimentassem tanto o papel de bailarino como o de bailarino/videasta e que

pudessem trocá-los de forma dinâmica. Dessa maneira, configurou-se um triângulo

relacional dinâmico entre a câmera e os dois bailarinos. Ademais, essa estrutura

propiciou que, como pesquisadora, eu pudesse me afastar e observar sem

comprometer as propostas, bem como me inserir quando necessário, compondo um

quarteto, no caso, dois bailarinos, a câmera e um bailarino/videasta. A opção de não

ter mais do que dois participantes aconteceu em virtude do tempo reduzido

destinado a realização do processo criativo. Uma equipe grande poderia oferecer

complicações em questões práticas, como organizar horários para os encontros,

bem como tenderia a dificultar o diálogo, o que influencia no trabalho criativo,

impedindo muitas vezes uma exploração e relação mais profunda e verticalizada. Ao

contrário do que poderia ocorrer entre um pequeno grupo desenvolvendo uma

proposta, em um curto período de tempo.

A fim de expor de forma mais didática as experiências dos corpos que

sustentam e constroem o Experimento Looping, elaborou-se um organograma com

técnicas ou artistas que os participantes citaram em entrevista como indispensáveis

em sua formação corporal como bailarinos, juntamente com a da pesquisadora.

Essa estratégia explicita o pertencimento dos bailarinos colaboradores no campo da

dança. Muito desse conhecimento incorporado, a partir do que lhes foi repassado

por professores de dança em salas de aula, não se encontra enquanto registro

escrito, daí a importância de inscrever essas filiações no organograma. O

conhecimento repassado a eles encontra-se nos seus corpos e no de vários outros,

enquanto movimento e ações dançantes, desse modo, conhecimento incorporado,

dinâmico, vivo, objetivo e subjetivo, resultado de gerações de dança.

Nos boxes azuis estão as referências em comum, por gêneros de dança,

grupos e instituições, ao longo de cada linha que liga o box ao bailarino estão os

nomes dos professores artistas mencionados. As referências que não possuem

nomes foram citadas sem maiores especificações. Os nomes em vermelho são os

artistas e, consequentemente, seus gêneros, grupos e instituições (em azul mais

43

escuro), que foram considerados pelos bailarinos como importantes e influentes para

o desenvolvimento deste processo criativo.

Figura 8: Organograma das técnicas, gênero de dança, professores artistas, grupos e instituições citadas como indispensáveis para suas formações corporais como bailarinos (Fernanda Boff, Julia

Lüdke e Douglas Jung) – estão em destaque e em relação o que mais contribuiu na realização desta pesquisa.

Este organograma pretende abarcar grande parte das referências e das

experiências contidas na trajetória dos participantes, para construção de um perfil de

cada bailarino, indicando, deste modo, seus pertencimentos no campo da dança. O

primeiro aspecto é que se trata de corpos contemporâneos, abertos a diversidade de

expressões e formações. Não há uma linhagem corporal pura, mas também não se

trata de uma mistura superficial delas, no sentido de acumular outras informações,

uma vez que cada formação afetou-os enquanto sujeitos e corpos dançantes. Pode-

44

se afirmar que os bailarinos em questão se encaixam perfeitamente na descrição de

Louppe (2012):

A vasta reserva da herança moderna e as riquezas infinitas das práticas, das filosofias corporais e dos diversos ensinamentos incessantemente em mutação permitiram ao bailarino de hoje, talvez mais modestamente, não inventar o corpo, mas procurar compreender, apurar e aprofundar o seu corpo e, sobretudo, fazer dele um projeto lúcido e singular (LOUPPE, 2012, p.70).

Nesta linha, não se tratam de corpos que se dedicam a enquadrar os

movimentos em busca de um resultado estético homogêneo, como é o caso das

grandes companhias de ballet, por exemplo. Pelo contrário, estão preparados para

lidar com o novo e abertos para construir relacionamentos de troca, buscando

transformações. Isto pode ser verificado nas suas fala, ao citarem como

fundamentais em suas formações as experiência em áreas fora da dança como as

artes circenses.

Outra observação importante é que todos buscaram uma formação

acadêmica na dança. Ainda que em instituições diferentes, inclusive

internacionalmente, como é o caso do Douglas. Pode-se afirmar que estes corpos

videodançantes também estão ou estiveram inseridos em ambientes que discutem e

pensam a dança, o corpo, o movimento e a criação, enquanto conhecimento

teorizado, inclusive. Esta vivência em comum propiciou um adensamento da reflexão

acadêmica para a habilidade de elaborar as vivências e na forma de expor suas

percepções e possíveis conceituações, tanto no decorrer do processo, quanto nas

entrevistas, o que contribuiu imensamente para a pesquisa, tendo em vista que esta

também está inserida em um contexto acadêmico.

Dentre as referências citadas como importantes para o desenvolvimento

desta pesquisa, gostaria de ressaltar as artes circenses, do artista e professor Diego

Esteves41 e do próprio Douglas Jung, com a dança contemporânea, citada pela

Fernanda, e dos artistas e professores Libby Farr42 e Matej Kejzar43, citada pelo

41

Ver nota de rodapé 23. 42

Nascido no Texas, Elisabeth “Libby” Farr realizou sua formação em dança na School of American Ballet, em Nova York, dançando para várias companhias de balé nos EUA e na Europa. Ela é professora convidada regular na PARTS e na Escola Contemporânea de Londres e leciona também em outras escolas. Seu ensino é baseado na técnica de dança clássica. O foco central é sobre o reforço da sensibilização das linhas do corpo. 43

Matej Kejzar nasceu na Eslovênia. É dançarino e novo coreógrafo que está despontando. Estudou em Amsterdam School for New Dance Development (SNDO). Após seus estudos, trabalhou em escolas europeias reconhecidas como professor e coreógrafo tais como SNDO, Amsterdam,

45

Douglas. A experiência circense, presente nos corpos dos dois bailarinos, mostra-se

muito útil na realização do Experimento Looping, principalmente o uso dos

equilíbrios e das acrobacias. Se não houvesse um preparo físico e técnico para este

tipo de movimentação, a pesquisa, certamente, teria tomado outro rumo. Também é

interessante notar como a bailarina vê em seu colega de processo uma referência e

caminho para a sua formação corporal. Desse modo, o processo do Experimento

Looping se torna um ambiente de troca entre os profissionais, reafirmando a

importância da tradição oral da dança e o intercâmbio entre o meio artístico e o meio

de pesquisa acadêmico.

Figura 9: Fotografia do processo criativo do Experimento Looping. Encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).

Crédito da foto: Lícia Arosteguy.

Já as vivências específicas relatadas pelo Douglas, sobre as aulas realizadas

enquanto aluno da SEAD, traz um caminho de construção do entendimento do corpo

e do espaço, de modo singular, que de fato acrescentaram ao propósito desta

pesquisa, como aponta o próprio Douglas (JUNG, 2014, informação verbal):

Tem outras coisas, né, uma outra parte da minha pesquisa, que eu acho que informa muito mais o que eu tô fazendo contigo do que especificamente o trabalho desse professores, mas eu consigo ver essa relação muito, muito

SEAD/Salzburg e Tanzquartier Wien, e também na Índia, China e Taiwan. No seu trabalho como coreógrafo e professor, ele se utiliza da colaboração de músicos, atores e pintores. Foi integrante da Cia Rosas, uma importante Cia de dança contemporânea belga dirigida por Anne Teresa De Keersmaeker, e seu desenvolvimento artístico é bastante influenciado por Katie Duck e Martin Sonderkamp. Disponível em: <https://eduardoseverinociadedanca.wordpress.com/category/danca-contemporanea/page/2/> Último acesso em: 25 de maio de 2015.

46

próxima entre uma coisa e outra, porque eu comecei a me interessar pelo o que eu me interesso hoje muito pelo contato com essas pessoas, então não dá pra isolar assim. Que é a questão dos olhos, do ponto de vista, é... Sobre as coisas, que eu acho que interferem bastante quando a gente tá falando do trabalho com câmera, né, com um ponto de vista externo ao corpo, mas aí eu preciso... Pelo menos pra dentro dessa pesquisa, eu acho que eu entendi que é: pra que certas coisas funcionem, eu como performer preciso antever o que a câmera vai ver, então esse também requer um treinamento, uma certa prática, que eu comecei a usar e acessar com o Matej e com a Libby, e que depois veio pra dentro da minha prática como performer, como coreografo, como pesquisador e etc. e tal (JUNG, 2014, informação verbal).

O percurso percorrido pelo artista é movido por seus interesses,

inquietações, e é significativo compreender como este trabalho também poderá

alimentar e contribuir para com o percurso destes artistas. Não se trata de uma via

de mão única, há uma doação, por parte dos bailarinos, para o processo, mas há,

também, um retorno desse processo aos seus interesses e trajetórias particulares.

Como o Douglas relatou, determinados conhecimentos incorporados em sua

trajetória como bailarino que obtiveram espaço de vazão nesta pesquisa, e essa

relação entre suas vivências com o Matej ou a Libby, por exemplo, e esta

investigação, multiplica os saberes e a arte, bem como o constitui enquanto artista.

Dentre os critérios levados em consideração para a composição do grupo

para a pesquisa estava, incontestavelmente, o interesse por dança com mediações

tecnológicas e alguma vivência prévia nesse campo. O desejo de que os integrantes

tivessem curiosidade criativa a esse respeito era muito claro, no entanto, não era

obrigatório que tivessem conhecimento aprofundado e muita experiência com as

tecnologias envolvidas no audiovisual. Pois como afirma Larrosa (2002, p. 22), “[...]

uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a

experiência é impossível”. Ou seja, talvez uma grande carga de informações sobre

como operar uma câmera poderia, até mesmo, engessar e inibir a espontaneidade e

a curiosidade, a experiência em si. Seguindo o pensamento de Larrosa (2002)

presente na citação acima, a disponibilidade para trocar, transgredir, transformar o

que já se sabe e não apenas reproduzir as informações assimiladas, é mais

importante na escolha dos participantes do que o nível de informação ou

conhecimento de cada um na área do audiovisual, pois torna possível a experiência

e com ela a criação de novos saberes e questionamentos.

Dessa forma, ambos possuem bagagem em videodança. No quadro abaixo

estão organizados alguns trabalhos realizados diretamente em videodança ou em

47

produções relacionadas com vídeo ou fotografia que demonstram o interesse e

disponibilidade para troca entre a dança e o audiovisual na trajetória dos

colaboradores. Desse modo, a tabela a seguir tem o objetivo principal de elencar as

funções vivenciadas pelos participantes, apontado para o fato de que não se tratam

de artistas que chegam para fazer parte dessa investigação como páginas em

branco, e sim que a cada novo processo as obras se contaminam e se multiplicam

na trajetória de cada artista. As informações foram adquiridas através das

entrevistas e no decorrer do processo.

Fernanda Boff Douglas Jung

Bailarino Faz de conta que (2010) (Vídeo de divulgação) Experimento Portabilidade (2013) Ao teatro (2013) (Curta-metragem)

Projeto.Gif (2014)

Por baixo da mesa (2006)

O colecionador de movimentos (2011)

Bem Passado (2006)

Keep on (2010)

Operador de

câmera

O que se passa pela sua cabeça (2012)

Keep on (2010)

Concepção Experimento Portabilidade (2013) Pas de Corn (2006)

Keep on (2010)

Auxiliar de direção O que se passa pela sua cabeça (2012)

Assistente

Coreográfico

The silence of place (2011)

Outras pesquisas

relacionadas

Tudo que vai volta (2014) Body It (2013)

Figura 10: Tabela de funções vivenciadas belos bailarinos na produção de videodança em outros circuitos e suas respectivas obras e datas.

Uma das funções trazidas na tabela que mais chama atenção para esta

análise é a de operador de câmera. Como dito anteriormente, não era necessário

perícia na área, mas o conhecimento mínimo sobre o funcionamento de uma

câmera, mesmo não sendo a mesma utilizada nesta pesquisa, fez com que a

48

pesquisa pudesse partir de outro estágio de relacionamento entre os corpos

videodançantes. Das produções citadas acima, destaco as videodanças:

Experimento Portabilidade (2013) e Keep on (2010), que foram trabalhos concebidos

e realizados por eles. O primeiro trabalho citado foi uma produção independente,

com a concepção e coreografia da Fernanda, que também atuou como bailarina e

contou com Diego Esteves na operação de câmera e edição. A criação trata de

como as diferentes versões digitais da artista se comportam e tentam se enquadrar

no espaço a cada ponto de vista proposto pela câmera.

E o segundo foi realizado como material de uma disciplina cursada pelo

Douglas na Salzburg Experimental Academy of Dance (SEAD), na qual o artista é

responsável pela concepção, operação da câmera e edição, contando com Britt

Kamper Nielsen como bailarina. O trabalho tinha como proposta criar uma narrativa

através da edição de sequências de câmera parada, com entradas e saídas do

bailarino no frame. Estas duas criações demonstram que, seja em nível de exercício,

seja em nível de uma produção independente, não se tratam de executores do

movimento, mas de criadores críticos e envolvidos na elaboração da ideia como um

todo. Vale ainda mencionar as pesquisas que cada um desenvolve a parte e que se

relacionam com o uso de vídeo ou fotografia, pois, de formas diferentes, estes

artistas estão envolvidos e pensando formas de tensionar a tecnologia, a dança e o

corpo. Nesse sentido, contar com participantes com uma formação tão múltipla e de

qualificação relevante contribuiu muito para o trabalho.

2.3.2 A Câmera

Em cada opção de câmera está contido um universo criativo possível,

propondo diferentes tipos de relacionamentos entre a arte e a tecnologia. Com isso,

a escolha da GoPro conferiu ao processo uma conjuntura de especificidades

singulares, sendo importante dar atenção a esse aspecto. Havia, inicialmente, o

interesse de se desenvolver diferentes experimentos a partir de diferentes câmeras.

Contudo, no momento da elaboração da estrutura dos experimentos, ficou claro que

cada equipamento traria um universo de possibilidades que dificultaria o

49

aprofundamento da pesquisa. Optou-se, desse modo, em utilizar apenas a GoPro,

pois demonstrava um vasto campo pouco explorado em relação a dança.

Um dos aspectos que mais me chamou atenção em relação à câmera é que,

desde a sua origem, está vinculada ao movimento corporal, pois foi criada para

facilitar e possibilitar melhores ângulos para fotografar os surfistas. São inúmeros os

vídeos disponíveis na internet que utilizam a GoPro para registrar esportes, objetos

e pessoas em movimento. Trata-se de um equipamento pequeno, relativamente fácil

de operar, que realiza automaticamente as regulagens necessárias para diferentes

condições luminosas, resistente, capaz de captar imagens em qualidade profissional

e muito estáveis (consegue estabilizar boa parte dos tremidos e solavancos naturais

do movimento do corpo humano e etc.). Todas essas características, aliadas à

estrutura metálica elaborada especialmente para este projeto, facilitaram a

apropriação do equipamento pelos bailarinos.

Na maioria das produções, a câmera é operada apenas pelo videasta, ou

cinegrafista, a escolha da GoPro deu à câmera mais mobilidade no papel de um

corpo videodançante. Tal aproximação talvez não fosse possível se a câmera

exigisse regulagens manuais durante a filmagem, ou fosse tão pesada e difícil de

carregar junto ao corpo. Ver a câmera como um corpo que videodança transformou

o uso da tecnologia não apenas em uma ferramenta ou meio, mas em motivo de

criação do movimento. Sendo assim, ela se tornou não somente um meio, um

instrumento, mas um potente corpo criativo.

Figura 11: Foto do processo, no encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014). Crédito da foto: Lícia Arosteguy.

50

O fato de a câmera não possuir um visor embutido não permitia a quem

estava manuseando ver em tempo real o que estava gravando, o enquadramento ou

a angulação. Esta característica que, a princípio, parecia ser um problema a ser

resolvido, tornou-se uma aliada no desenvolvimento de um vínculo mais profundo

entre o equipamento e os bailarinos. Não poder controlar a imagem visualmente

acabou liberando a atenção dos bailarinos, não para o produto final, mas para o

“entre”, tanto para quem manuseava o equipamento no momento, quanto para quem

dançava em relação a ele. Sendo assim, é possível pensar em consonância ao que

Machado (2007) propõe:

As técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem mediações inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderia substituir por quaisquer outras. Eles estão carregados de conceitos, eles têm uma história e derivam de condições produtivas bastante específicas. [...] o artista digno desse nome busca se apropriar das tecnologias mecânicas, audiovisuais, eletrônicas e digitais numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar em benefício de suas ideias estéticas (MACHADO, 2007, p. 16).

Indo de encontro com o pensamento de Machado acima citado, observou-se

em virtude dessa característica específica do equipamento, a falta de visor,

instaurou-se o procedimento denominado “estratégia base”, que será abordado mais

detalhadamente no subcapitulo “3.2 Procedimentos”. A GoPro viabiliza e fomenta a

estética e metodologicamente o processo criativo, mas os conceitos e história de

que está carregada potencializam a reflexão e a escrita desse trabalho. Primeiro,

aconteciam os momentos de experimentação e investigação corporal,

posteriormente, a visualização do material gravado e, então, o retorno à

experimentação, buscando novas resoluções e manutenção do que se mostrou

interessante. Essa maneira de trabalho tirou o foco apenas da percepção guiada

pela visão e pela forma, potencializando a cinestesia e a construção de um corpo

mais disponível e atento de modo global, como foi evidenciado no relato do Douglas,

na página 45-46. Assim como a experiência de cada bailarino interferiu diretamente

nos caminhos que construíram no processo, também o equipamento diz muito aos

rastros deste trabalho, principalmente dentro da proposta de exploração de corpos

que não somente dancem, mas videodancem.

51

Figura 12: Frame retirado do Making Of do processo (2014). Crédito: Lícia Aroteguy.

2.4 A ESTRUTURA DO PROCESSO CRIATIVO

A parte prática da pesquisa foi realizada ao longo do ano de 2014, de modo

intenso de janeiro a maio, e a gravação final em novembro, com ensaios distribuídos

nos meses de intervalo. Ao total, foram realizados 18 encontros, com duração de

aproximadamente 3 (três) horas cada. O espaço utilizado na maior parte do

processo de criação, onde foram desenvolvidos os experimentos e exercícios de

preparação corporal e criação, foi a sala 209 da Usina do Gasômetro, que é um local

de referência para a dança contemporânea de Porto Alegre e região desde 2005.

Ela faz parte do projeto Usina das Artes e é coordenada pelo Coletivo de Dança

Sala 209, encabeçada pelas companhias Eduardo Severino Cia. de Dança44 e

Ânima Cia. de Dança45.

44

A Eduardo Severino Cia de Dança, formada em 2000, por Eduardo Severino e Luciano Tavares, núcleo artístico da Cia, desenvolve uma trajetória em dança, com uma montagem a cada ano, composta por artistas convidados para cada projeto artístico. Receberam financiamento para algumas das montagens assim como algumas premiações locais e nacionais, participaram de eventos representativos na área pelo Brasil e no Exterior. 45

A Ânima Cia de Dança foi fundada no ano de 1991, no momento em que a coreógrafa Eva Schul retornou a Porto Alegre. São vinte e dois anos de trabalho no cenário das Artes Cênicas no RS, Brasil e exterior. A primeira apresentação se deu no ano de sua fundação, no teatro Cacilda Becker/RJ, dentro do projeto “Olhar Contemporâneo da Dança”. Desde então, mantém-se na cena contemporânea da dança.

52

A escolha da sala 209 se deve muito ao fato de que boa parte da minha

história como bailarina foi influenciada e propiciada por este espaço. Desde a

faculdade venho estreitando os laços com este lugar. Ao participar como bailarina na

Ânima Cia. de Dança em 2010, bem como no acolhimento de propostas

independentes, como a gravação da videodança Diálogo com a Luz46, realizada na

sala, tornou-se um lugar de referência acessível para mim. Além do vínculo artístico

e afetivo, a sala 209, bem como a Usina do Gasômetro, é ampla, com janelas

grandes, que permitem boa iluminação e espaço para o deslocamento, requesitos

indispensáveis para o vídeo, no caso desta prática. Nos experimentos, no entanto,

não foram utilizadas apenas a sala 209, mas os ambientes de circulação da Usina

do Gasômetro, como o Mezanino e o local de exposições, no primeiro andar. Outros

locais foram utilizados na parte final da prática e serão abordados com mais

detalhes adiante.

2.4.1 O organograma do processo criativo

Para expor, em um quadro geral, como o processo criativo foi estruturado e

construído ao longo deste período, foi elaborado um organograma das etapas, com

suas respectivas datas e locais.

46

A videodança Diálogo com a Luz foi um trabalho experimental em parceria com a bailarina Luiza Moraes e o videomaker Arion Engers, em 2011.

53

Figura 13: Organograma das etapas, com datas e locais, do processo criativo da videodança Experimento Looping.

Com exceção do “Experimento IV”, os encontros contaram com os dois

colaboradores. As etapas, acima demonstradas, podem ser agrupadas em quatro

momentos diferentes:

a) Experimentos: esta parte do processo tinha o objetivo de familiarizar os

bailarinos à proposta da pesquisa, bem como, às especificidades do

equipamento e, a partir dos exercícios e tarefas de criação, construir a

relação entre bailarinos e câmera, e principalmente, o papel do

bailarino/videasta. Tendo como base o material dos quatro primeiros

experimentos, realizou-se um encontro para assisti-los e discuti-los.

Observou-se, então, que dentro de cada experimento aconteceram diferentes

resultados estéticos da relação entre a GoPro e os bailarinos, com variadas

54

formas de configurar uma videodança. Percebeu-se, desse modo, a

necessidade de direcionar a criação do movimento, visando a produção final.

Em resposta a demanda identificada, elaborou-se o “Experimento Looping”,

que tinha como ponto de partida o fragmento criado no Experimento III – “Dos

pés a cabeça”.

b) Procedimentos de Criação: foram formuladas duas metodologias de

criação, a “Coreoedição” e a “Endoedição” para dar continuidade a

composição da coreografia dos corpos videodançantes. A Coreoedição se

propôs a editar coreografando e coreografar editando, em um paralelo com a

nomenclatura do audiovisual, de forma resumida, seria o referente ao

processo de montagem. Já a endoedição era responsável por editar o ritmo

da videodança, mas não através dos softwares de edição, e sim físicamente,

através do trabalho corporal de fraseamento de tempo, de espaço, de peso e

de fluxo. Destes procedimentos, formalizaram-se dois planos-sequência, que,

somado ao fragmento do Experimento III, constituíram o material da edição

final. Neste momento também foi testado um procedimento para inserir cortes

na coreografia, que simulassem corporalmente o fade out dos softwares de

edição, que consistia em bloquear a lente da câmera com alguma parte do

corpo do outro bailarino. Todavia, acabaram não sendo utilizados, por não

produzirem o efeito imaginado e pela falta de tempo para continuar

investigando tal possibilidade.

c) Lugares da Experiência: categorizei este momento como experimento

também, pois, em cada local ocupado, houve uma exploração das

possibilidades que o lugar oferecia. Por motivos práticos de locação, tivemos

acesso ao lugar escolhido para a gravação final somente um único dia. Por

esse motivo, os momentos de produção e locação se misturam, porque foi

preciso experimentar e adaptar às especificidades do ambiente em relação à

coreografia, além de gravar no mesmo dia.

d) Produção Final: esta fase abrange a captura das imagens, com figurino e

locação definitiva, bem como a edição do material, através do programa

Adobe Premiere CS6 para formalização da videodança Experimento Looping.

55

Este organograma é uma forma sistematizada de demonstrar a estrutura do

Experimento Looping. Entende-se que um processo criativo possui balizas e guias,

mas, como qualquer criação, gera caos, dificultando a exata divisão de categorias e

etapas. Entretanto, esses mapas, essas divisões e categorizações ajudam na busca

por uma compreensão dos caminhos e escolhas da pesquisa e na visualização geral

de algo tão complexo. Nos próximos capítulos estas etapas serão abordadas com

mais detalhes, acrescentando dimensões de análise à prática. No anexo E estão

armazenados vídeos editados para análise e como amostras de todo material

gravado durante os experimentos e procedimentos do processo, bem como

fotografias e o making of que podem ser visualizados como forma de potencializar a

leitura dos próximos capítulos.

56

3. ANÁLISES E REFLEXÕES

3.1 A RELAÇÃO COM A CÂMERA

Durante o processo de criação do Experimento Looping ocorreu a fusão de

duas ações antes distintas: coreografar e gravar. Isto se deve ao relacionamento

não convencional entre bailarinos e câmera. Como bem pontua o bailarino Douglas

Jung em entrevista, “[...] o fazer coreográfico tá muito conectado com o papel da

câmera e vice-versa” (JUNG, 2014, informação verbal). A percepção do bailarino

sobre o processo está alinhada com as ideias que balizaram este fazer artístico. Ao

se propor que a GoPro fosse não apenas operada pelos bailarinos, mas que a

criação de seu trajeto fosse coreografada, tendo como base as práticas e valores da

dança contemporânea, o papel e o entendimento desse equipamento foram

modificados, a começar pelo fato de suas técnicas de utilização não estarem mais

voltadas, diretamente, para o seu campo de origem, o audiovisual.

Na mesma medida, a presença da câmera no ateliê de criação desafia os

bailarinos à, também, adaptarem-se a ela, relacionando-se com suas

especificidades, o que gera novos saberes e maneiras de dançar. Em outras

palavras, transformou-se a ação convencional de gravar em um caminho possível

para a criação coreográfica. Desse modo, concebeu-se um entendimento não

tradicional do papel da câmera, como acrescenta o bailarino:

No trabalho com a GoPro, a relação com ela e com-de-para a câmera, ela já tá intrínseca no momento em que tu liga ela e que tu põe ela dentro da coreografia, ela já é parte da dança, é borrada essa margem de onde acaba o trabalho do vídeo e onde começa o trabalho da composição coreográfica. Acho que a via contrária é mais fácil de delimitar, mas pra gente, dentro do processo, dentro da execução daquela dança, é bem difícil de marcar esse limite, assim (JUNG, 2014, informação verbal).

Questiona-se, então, qual seria o papel da câmera nessa videodança? Qual

relação se estabeleceu entre os bailarinos e a GoPro a partir dessa nova

perspectiva? Seria puramente técnica? Seria essa relação horizontal ou vertical? Ela

pressupõe uma dominação de um pelo outro? Ao ouvir os relatos dos bailarinos

durante as entrevistas, foi possível destacar termos como: “parceira”, “entidade”,

“terceiro corpo”, conferindo uma presença à câmera que vai além de um

instrumento, para alcançar algo desejado, principalmente no que se refere à criação

57

coreográfica. Ao colocar a câmera no espaço coreográfico ela deixa de ser apenas

um equipamento, para se tornar um corpo, com qualidades, especificidades, um

peso e que em contato com os corpos do Douglas e da Fernanda, adquiriu fluxos e

trajetórias de movimento no espaço, assim como descreve a bailarina Fernanda:

Poderia comparar com, sei lá, com contato e improvisação, talvez, que às vezes tu... Às vezes não rola. Às vezes não rola, assim, quando começa a dançar com uma pessoa. Não dá, aquele corpo estranho, aquela coisa, parece que não encaixa, né, não faz muito sentido, tu não consegue, né, tudo meio trincado, assim. Mas depois, com o tempo, os dois começam a se entender um pouquinho melhor, as tarefas são bem importantes nesse sentido, né, ter tarefas pra serem cumpridas, tu consegue focar, né, mais em alguma coisa específica. Tipo, o foco é seguir uma parte do corpo e, nossa, eu acho que isso é crucial dentro da evolução dessa relação, assim. Porque senão é qualquer coisa, né, e aí como é que tu vai saber como é que tu tem que se relacionar com elas? Tem que ir aos poucos, então primeiro é só segurar, é só segurar, não tem muito mais o que fazer. Aí, aos poucos, tu vai começar a se mover junto, enfim (BOFF, 2014, informação verbal, grifo meu).

Contudo, não se trata apenas de um objeto ou corpo com o qual os bailarinos

têm que se relacionar pelo movimento dançado apenas no espaço compreendido no

ateliê. As descrições dos bailarinos quanto ao seu relacionamento com a GoPro e

sua estrutura metálica, no que tange as questões corporais cinestésicas, poderia

conduzir para o entendimento, proposto por Lepecki (2012), de devir-coisa,

colocando-os em um lugar de não possessão entre si e libertação de seu valor

enquanto mercadoria no processo de subjetivação. No entanto, não é possível

deixar de lado a importância e a influência da imagem capturada pela câmera no

decorrer do processo, guiando e direcionando a criação coreográfica. Nesse novo

espaço recortado por seus enquadramentos e pelas dinâmicas de sua condução, a

GoPro é, sim, um dispositivo e nunca houve o intuito ou o interesse de libertá-la de

sua funcionalidade, pois, a gravação de um videodança sempre esteve entre os

objetivos desse processo.

Para se pensar mais a fundo sobre este assunto, mostra-se necessário visitar

o conceito de Giorgio Agamben (2009), utilizado por Lepecki (2012) para descrever

um dispositivo. Segundo Agamben (2009, p. 38) dispositivo é “qualquer coisa que

tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar,

modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos

dos seres viventes”. Para desenvolver o tema, o autor traz as definições dos

dicionários populares franceses, a origem do termo e a concepção a partir de Michel

58

Foucault. Nos dicionários franceses, Agamben (2009, p. 34), deflagra três

significados, que, segundo ele, de algum modo estão presentes no uso

foucaultiano47. São eles:

a) Jurídico escrito: “Isto é, a parte da sentença (ou de uma lei) que decide ou

dispõe”. (AGAMBEN, 2009, p.38);

b) Tecnológico: modo de organização de uma máquina ou mecanismo, ou o

próprio mecanismo em si.

c) Militar: meios dispostos em conformidade com um plano.

Para este estudo, interessa pensar sobre o significado tecnológico, pois a

câmera é, antes de tudo, uma máquina e para Philippe Dubois (2004), uma

“máquina de imagem”. Conforme o autor:

Todas essas “máquinas de imagem” pressupõem (ao menos) um dispositivo que institua uma esfera “tecnológica” necessária a constituição da imagem: uma arte do fazer que necessita, ao mesmo tempo, de instrumentos (regras, procedimentos, materiais, construções, peças) e de um funcionamento (processo, dinâmica, ação, agenciamento, jogo) (DUBOIS, 2004, p.33).

Desse modo, tanto o processo de captura, que demanda uma organização de

suas peças, em detrimento de um mecanismo, quanto às dinâmicas e

agenciamentos para a operação do equipamento, que exige uma técnica, fazem da

câmera de vídeo um dispositivo tecnológico. No caso da GoPro, a operação técnica

desse maquinário para constituição da imagem, por parte do bailarino/videasta, é

simples, restringe-se a ligar e desligar, e mesmo esta tarefa pode ser feita por

controle remoto, por outra pessoa que não ele. A câmera não possui nenhum outro

tipo de regulagem como zoom ou necessidade de estabelecer o foco, pois tudo é

feito automaticamente pela GoPro no decorrer da dança. Assim que escolhida a

opção de vídeo e a qualidade da imagem, antes de iniciar a gravação, não há mais

nada para regular. Apesar disso, no que diz respeito à coreografia envolvida em sua

movimentação para obter as imagens nos enquadramentos desejados (com

dinâmicas de afastamento, aproximação e rotação para os loopings), o trabalho

técnico, poético e intuitivo exigido era muito grande.

47

Conforme Agamben (2009, p. 28-29), embora Foucault não tenha elaborado precisamente uma definição para dispositivo, há como apontar três aspectos para uma conceituação: o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta, inscrevendo relações de poder; ele é o resultado do cruzamento de relações de poder e saber e o dispositivo é um conjunto heterogêneo, linguístico e não linguístico, sendo a rede que se estabelece entre esses elementos.

59

Não são apenas seus mecanismos de captura e geração da imagem digital

que nos faz entender a GoPro como um dispositivo. Ela foi peça motriz para os

procedimentos de criação e direcionamento coreográfico do Experimento Looping.

Para desenvolver a ideia, é interessante voltar ao estudo de Lepecki (2012), que

considera a própria coreografia como um dispositivo, pois ela possui “capacidades

de capturar, modelar e controlar gestos e comportamento” (LEPECKI, 2012). Como

o próprio autor definiu:

Disciplina que pode ser entendida precisamente como um dispositivo (ou aparato) de captura de gestos, de mobilidade, de disposição e de tipos de corpos, de intenções e de inclinações corporais, com o intuito de os colocar a serviço de espetaculares exibições de corpos em presença (e de corpos como presenças, amarrados a todo um sistema de presentificação da presença) (LEPECKI, 2012, p. 96).

No caso desta pesquisa, as imagens gravadas eram produzidas alheias ao

visor em tempo real, o que permitia uma maior liberdade criativa aos bailarinos,

mesmo que já conduzidas, de certa forma, pela memória visual e corporal,

associando as imagens aos movimentos realizados para obtê-las. Posteriormente,

os movimentos eram remodelados e reconfigurados, a partir de feedbacks advindos

da visualização dos vídeos gravados. Este procedimento foi repetido até chegar ao

que se considerava “eficaz” para a coreografia, reverberando no trajeto e na

dinâmica da câmera, bem como, nos vídeos gravados. Esta estratégia será tratada

com mais detalhes na sequência. Ou seja, a própria imagem conduziu e influenciou

nitidamente os procedimentos coreográficos e a movimentação formalizada. Era a

partir do que a GoPro registrou durante as experimentações e improvisações que a

coreoedição foi estruturada. As qualidades e a expressividade da movimentação

foram sendo configuradas tendo como base as imagens obtidas a cada repetição

dos movimentos formalizados.

Todavia, tanto Agamben (2009), quanto Lepecki (2012), não veem a relação

entre os “seres viventes”48 e os dispositivos de forma positiva. Para o primeiro autor,

os dispositivos estão dominando, cada dia mais, os indivíduos, desencadeando um

processo de “dessubjetivação”49 do sujeito, nos restando somente profaná-los, “isto

48

O autor divide o “existente” em dois grandes grupos: dos seres viventes e dos dispositivos. Como resultado da relação “corpo a corpo” entre eles, surge o sujeito, criando, assim, múltiplos processos de subjetivação (AGAMBEN, 2009, p. 41). 49

Com o crescimento ilimitado dos dispositivos atuais e, consequentemente, a proliferação dos processos de subjetivação, Agamben denuncia um processo de “dessubjetivação”, em que não há a recomposição de um novo sujeito de forma real, apenas a atribuições de números de telefone pelo

60

é, da restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado nesses”

(AGAMBEN, 2009, p. 51). Enquanto o segundo autor afirma que tanto o sujeito

como os dispositivos (objetos), são aprisionados pelo seu valor de mercado e por

sua funcionalidade, tornando-se lixo quando desvalorizados e profaná-los, nesse

sentido, seria afirmar o poder dos sujeitos sobre as coisas, o que para ele é

inaceitável. Desse modo, o autor propõe uma liberdade dos objetos e dos sujeitos

por um processo de des-possessão50, intitulada coisidade51, ou seja, “sujeitos e

objetos podem se tornar menos sujeitos e menos objetos e mais coisas” (LEPECKI,

2012, p. 98). Nesse sentido, pode-se dizer que no Experimento Looping a câmera é

menos objeto e mais corpo, para se pensar, finalmente, em dois bailarinos e uma

câmera como três corpos videodançantes e, em determinados momentos do

processo, eu, também, como corpo videodançante.

Entendida, assim, a relação entre os dispositivos e os sujeitos por meio desse

trabalho criativo, não houve o interesse nem de destituir a funcionalidade do “objeto

câmera” enquanto dispositivo, nem se almejou uma possessão fetichista da

tecnologia envolvida. Vejo a relação constituída no triângulo formando entre os

bailarinos e câmera no Experimento Looping como uma dinâmica e contínua troca

de “poder”, assim como em um diálogo. Pois, primeiramente, o bailarino propõe o

movimento a ser gravado e em torno dele se cria o movimento para gravá-lo. Neste

instante, por mais que as memórias corporais e os treinamentos se conectem às

imagens digitais, há uma liberdade criativa dos bailarinos. Há um poder nas

escolhas dos gestos, que não dizem respeito, apenas, ao que a imagem

videográfica precisa, pois ainda há a subversão da experimentação e do improviso

na busca por algo reinventivo, por outras possibilidades de construção da imagem e

do corpo, as quais possam surpreender, afastando-se das gravações tradicionais de

videodança. Em um segundo momento, os vídeos retribuem informações quanto ao

qual podem ser controlados ou, inclusive, a participação no número de uma audiência televisiva, por exemplo (AGAMBEN, 2009, p. 42-48). 50

“Chamo essa força des-possessiva e deformadora que todo objeto exerce sobre o sujeito de „coisa‟” (LEPECKI, 2012, p. 98). 51

“A „coisa‟ nos lembra que os organismos vivos, o inorgânico, e aquele terceiro produzido pelo seu confronto chamado „subjetividade‟, todos necessitam ser libertados da força subjugadora chamada dispositivo-mercadoria – força que esmaga a todos num mundo da vida empobrecido, ou triste, ou dócil, ou limitado, ou utilitário. E uma coisa (ou seja, a „coisidade‟ em qualquer objeto e sujeito) pode realmente nos oferecer vetores e linhas de fuga longe da soberania imperialista de dispositivos colonizadores” (LEPECKI, 2012, p.99).

61

fluxo, espaço-tempo e dinâmicas da movimentação da trajetória, para o

bailarino/videasta e para o outro bailarino.

Apoia-se, então, nas ideias de Arlindo Machado (1996, p. 9-10), de que a

humanidade e a sua liberdade não são definidas em oposição às máquinas e sim

como parte de nossa reinvenção enquanto humanos. Pois é a partir da relação com

o mundo que as técnicas, as tecnologias e as máquinas são criadas. Dessa feita,

mostrou-se muito potente questionar a forma como utilizamos a câmera na

videodança tradicionalmente. Ao tensionar a interação entre ela e os bailarinos,

reconheceu-se as diferenças, e, por isso, fugiu-se de buscar hierarquias, entre a

GoPro e os corpos dançantes. Dessa forma, contribui Machado (1996):

O artista da era das máquinas é, como o homem de ciência, um inventor de formas e procedimentos; ele recoloca permanentemente em causa as formas fixas, as finalidades programadas, a utilização rotineira, para que o padrão esteja sempre em questionamento e as finalidades sob suspeita (MACHADO, 1996, p.15).

Acredito que o poder dado à câmera, enquanto objeto, máquina, tecnologia e

dispositivo, é o conhecimento de suas especificidades e dos saberes envolvidos nos

artifícios e técnicas de manuseio, fazendo disto o cerne da busca por possibilidades

criativas para além de seu valor e função enquanto mercadoria. Na mesma medida,

o poder dado ao sujeito, bailarino/videasta, vem da consciência de que esses

saberes são apreendidos ou criados apenas a partir da relação de experiência e

percepção subjetiva e objetiva entre o sujeito e a câmera. Contribuindo para essa

ideia, o bailarino Douglas conclui:

Então, eu acho que o lance da relação com a câmera é muito do experimentar e do se manter curioso, do deixar que a proposta e o resultado da proposta continuem mudando, continuem se alterando, continuem se retroalimentando, continuem se fazendo mútuas perguntas e diferentes perguntas todas as vezes (JUNG, 2014, informação verbal).

Sendo assim, foi a partir das minhas percepções e das percepções dos

bailarinos, em seus relatos e ações, no decorrer dos experimentos, que pude

observar alguns momentos nevrálgicos para o estabelecimento do relacionamento

de parceria, troca e de forma não hierárquica ou de distanciamento entre o

equipamento e os bailarinos. Nessas ocasiões, inclusive, questionou-se padrões e

se colocou em suspensão as finalidades do audiovisual e da dança na construção

da videodança. Tais momentos serão apontados e analisados a seguir.

62

3.1.1 A potência de deslizar

Em todo relacionamento com pretensões de se estabelecer laços mais

profundos e duradouros, há possibilidade de se prever um momento de namoro. Em

senso comum, esse estágio se caracteriza por uma diminuição progressiva da

“cegueira” causada pela paixão, que se mostra mais refém de ações hormonais do

que de uma construção racional. Trata-se de conhecer a outra pessoa, suas

características que nos agradam ou não. Em paralelo com os primeiros

experimentos, observo que se tratou exatamente de um namoro entre a GoPro, a

Fernanda, o Douglas e eu (tanto como parceira de ateliê, quanto como na

materialização da proposta da pesquisa). Pois como colocou a bailarina Fernanda,

“primeiro é só segurar, é só segurar, não tem muito mais o que fazer. Aí, aos

poucos, tu vai começar a se mover junto” (BOFF, 2014, informação verbal).

Sendo assim, para conduzir esse “namoro” optei, após apresentar a câmera e

suas possíveis regulagens, em propor tarefas simples e bem determinadas. Na

ocasião da elaboração dos experimentos, não tinha consciência da referência

teórica e artística dos procedimentos de tarefas, criado por Anna Halprin, mas

certamente eles já se encontravam presentes na minha prática enquanto artista,

repassados pela tradição verbal dos muitos professores que fizeram parte da minha

formação. Desse modo, para construção desta reflexão, retomo esses conceitos,

dando a devida importância às suas origens.

Anna Halprin foi uma dançarina e coreógrafa americana muito importante

para a história da dança e da performance da metade do século XX. Influenciou

muitos trabalhos e artistas da época e posteriores. Foi ela que trouxe o termo

“tarefa” em 195752, trazendo os movimentos cotidianos para o campo da dança A

respeito do procedimento proposto por Halprin, em sua fase inicial, Rossini (2011),

afirma que “as tarefas não implicando em criação de algo novo, desconhecido,

colaboravam para que o foco do trabalho estivesse, em muitas oportunidades,

voltado para a organização do movimento e do esforço empregado” (ROSSINI,

2011, p. 39). Foi exatamente com esse intuito que as primeiras tarefas como

caminhar, correr, pular e rolar, com e sem a câmera, por exemplo, foram realizadas.

Visto que era preciso segurar essa “estranha” parceira, sentir seu peso, observar e

52

Texto e informações retiradas da pesquisa de Elcio Gimenez Rossini, “Tarefas: uma estratégia para criação de performances”, 2011, p.37-56.

63

percepcionar o que e como ela vê e constrói o espaço dançado conjuntamente e

assim também perceber o seu próprio corpo, peso e visão e construção do espaço.

Laurence Louppe (2012) contribui pontuando que:

As práticas de observação do corpo em estúdio desenvolvem-se frequentemente a dois, e o corpo do outro, nos seus suportes, nos seus contatos ou mesmo na sua observação táctil ou visual, revela-me o meu próprio corpo. Essa busca raramente passará pela imagem ou pela figura anatómica, mas, sobretudo, pelas sensações e intensidades (LOUPPE, 2012, p. 71).

No caso deste trabalho, a investigação passa também pela imagem, tendo ela

grande importância, todavia, não a isolamos das outras fontes de percepção

corporal, espacial e temporal (se há a necessidade de separar tais fatores).

Principalmente, tendo em vista que os corpos videodançantes constituem a origem

de toda exploração e construção desta videodança. Essa ideia fica clara no relato

das percepções do bailarino Douglas, num primeiro momento:

Eu entendo que eu preciso antever o que a câmera vai ver, mas a câmera não tá perto do meu olho, então eu preciso desenvolver habilidades de foco, de observação, tanto com os meus olhos, quanto com outras áreas do meu corpo, pra poder manipular a câmera e fazer a tomada precisa que o trabalho tá pedindo (JUNG, 2014, informação verbal).

E, num segundo momento:

A distribuição do meu peso e a distribuição do meu peso segurando uma câmera, em movimento é outra, logo eu vou ter que me relacionar com essa câmera e com o meu próprio corpo ao mesmo tempo, de uma outra maneira. E se eu ainda colocar na roda o fato de que essa relação entre o meu peso e o peso da câmera vão gerar uma qualidade diferente de imagem, quão mais for refinado o meu saber corporal com relação a isso, aí tem um pano pra manga pra ficar trabalhando nisso por anos, né, porque eu sempre vou descobrir uma maneira diferente, uma maneira de saltar, me locomover sem que essa ação prejudique a qualidade da imagem que tá sendo captada, como é que eu posso fazer isso de diferentes maneiras? (JUNG, 2014, informação verbal).

Diante dessas falas, percebe-se o momento de busca por uma técnica,

enquanto “uma arte do fazer humano” (DUBOIS, 2004, p. 33), não como algo

recebido de fora, mas constituído a partir do próprio fazer. Não há o interesse de

moldar um treinamento específico, e, sim, buscar como cada corpo resolve e

constrói as equações dessas tarefas, que servem de pano de fundo para o

estabelecimento das relações. O “como”, “how” também se mostrou o mais potente

64

para a exploração e criação nos procedimentos de Anna Halprin, e a esse respeito

Rossini (2011) discorre:

A tarefa constitui uma estrutura, um esqueleto, funciona como um elemento de sustentação definido e sólido, mas, ao mesmo tempo, incompleto. A determinação exata de uma ou mais ações não impede que o performer crie variações relativas às qualidades do movimento, tais como ritmo, tonicidade, velocidade e duração, por exemplo. Em decorrência das decisões que ele deve tomar, no momento de executar a tarefa, essa estrutura se torna única. As tarefas não exigem um corpo capaz de realizar proezas que superem limites e, tampouco, exigem uma técnica corporal específica. As tarefas não moldam os corpos, são os corpos que as moldam, elas adaptam-se às condições físicas do sujeito que as realiza (ROSSINI, 2011, p. 44).

Com base nos experimentos I, II e III, com suas respectivas tarefas descritas

no Anexo A, chegaram-se a alguns saberes a partir dos corpos videodançantes e os

desejos coreográficos envolvidos. “Segurar” (se segurar), como afirmou a bailarina

Fernanda53, é o primeiro passo do relacionamento entre bailarinos e a GoPro, nada

mais justo do que expor as formas encontradas de fazê-lo. Chegaram-se as

seguintes possibilidades destacadas:

a) Mão em gancho: mais utilizado para movimentações onde a câmera

percorreria trajetórias no nível baixo, sem precisar que o bailarino/videasta

também estivesse deitado no solo, facilitando os deslocamentos em

velocidade;

Figura 14: Foto ilustrativa da posição “Mão em gancho”. Crédito da foto: Julia Lüdke.

53

“Primeiro é só segurar, é só segurar, não tem muito mais o que fazer. Aí, aos poucos, tu vai começar a se mover junto” (BOFF, 2014, p. informação verbal).

65

b) Com duas mãos: permitia uma maior estabilidade da câmera e consequentemente

da imagem. Também possibilitava uma precisão maior para as dinâmicas e os fluxos

de movimento contidos. Manipulava-se a GoPro e sua estrutura semelhante a um

volante;

Figura 15: Foto ilustrativa da posição “Com duas mãos”. Crédito da foto: Julia Lüdke.

c) Com uma mão na haste: utilizada mais em momentos de transferência da

câmera de um bailarino para o outro, possibilitava a distância do equipamento

em relação ao centro do corpo e liberava outras partes da estrutura para o

outro bailarino, porém significava maior instabilidade da imagem;

Figura 16: Foto ilustrativa da posição “com uma mão na haste”. Crédito da foto: Julia Lüdke.

d) Com uma mão na base: permitia o afastamento da câmera em relação ao

centro do corpo do bailarino, além de liberar a outra mão para possíveis

66

apoios e idas ao chão, mantendo, no entanto, uma maior estabilidade em

comparação com a opção anterior.

Figura 17: Foto ilustrativa da posição “Com uma mão na base”. Crédito da foto: Julia Lüdke.

É claro que estas são as maneiras mais marcantes e usadas, havendo

variações conforme as necessidades de execução. Ainda se tentou um contato dos

pés entre as hastes em alguns rolamentos, mas a estrutura não possibilitava garras

eficazes para os dedos dos pés, sendo assim, essa posição foi descartada para este

processo. Outra característica observada foi o formato ovalado da estrutura de metal

que impossibilitava um ponto de apoio estável da GoPro no chão ou sobre qualquer

superfície plana. Em virtude dessa característica, não houve em nenhum momento o

afastamento entre câmera e bailarino/videasta, sem que o outro bailarino assumisse

o papel. Para futuras experimentações, seria interessante desenvolver diferentes

designs de estruturas que possam promover ainda mais formas de relacionamento e

de criação.

Outro aspecto importante observado foi a importância entre o movimento das

articulações do pulso, cotovelos e ombros na angulação da lente e nos níveis de

enquadramento. Podendo, com isso, comparar-se às diversas possibilidades de

observação do espaço que se obtém a partir do movimento do globo ocular, do

pescoço, da coluna e das dobras da perna. Portanto, investiu-se em uma cuidadosa

busca e um refinamento de como compor a trajetória da câmera, desde os micro até

os macro movimentos e de como eles reverberaram na imagem e vice-versa.

A relação entre os corpos videodançantes, no que diz respeito ao peso, se

baseou em um fluxo contido, isto é, “em tensilidade acrescida, o peso terá um

67

aspecto de fluído contínuo. Na sucessão de acções do effort-shape54, Laban

personifica-o pela acção de <<deslizar>>.” (LOUPPE, 2012, p.107). A “tensilidade

acrescida” demonstra um aumento do tônus muscular, produzindo movimentos

conduzidos. Em momento algum a câmera realizou uma queda livre ou o próprio

bailarino/videasta cedeu seu peso à ação da gravidade, abandonando-se ao solo, a

uma parede ou ao outro bailarino. Segundo o próprio Laban (1978):

Deslizar é, essencialmente, um movimento sustentado e direto, com um toque leve. Ao deslizarem, o homem e sua divindade envolvem-se na experiência da infinitude do tempo e da cessação do peso da gravidade, embora estejam ambos atentos para a clareza dimensional de seus movimentos (LABAN, 1978, p. 44).

Pelo deslizamento se imprimiu uma dinâmica de recorte do espaço com

“cortes cirúrgicos”, limpos e bem demarcados. Na continuidade de sua ideia, Laban

(1978, p. 44), remete o movimento de deslizar à forma encontrada pelos homens de

representar os deuses, os poderes sobre-humanos. Não se configura nesta

pesquisa, porém, o intuito de remeter a câmera e a tecnologia ao poder de realizar

ações não humanas, pois é através do movimento dos bailarinos que esta dinâmica

se estabelece. O ato de deslizar é uma resultante das diferentes técnicas de

manuseio e de contato com a câmera, explicitadas anteriormente, que apontam para

a criação de uma geografia de espaço, tempo, peso e fluxo do movimento em íntima

relação com a mesma.

Entretanto, tal ação, como descreve Laban (1978), pode conferir ao

movimento e ao espectador certa sensação de “onipresença” e “onisciência”, que, a

princípio, é atribuída aos deuses, que deslizam sobre o universo, e esta era uma

sensação que o Experimento Looping desejava para o público. Ao longo das tarefas,

improvisações, criações e composições, a escolha das sequências coreográficas, os

trajetos da GoPro e suas dinâmicas, foram realizadas, principalmente, para alcançar

a sensação de participação ao espectador da coreografia. Reforço que não se

pretendia criar um simbolismo divino para a câmera e para a videodança em geral,

mas que se constituiu uma investigação de movimento que se interessou por uma

54

Sistema effort/shape é um método de descrição das mudanças das qualidades do movimento em termos de modos de manifestação e em termos de modos de adaptação do corpo no espaço. Este sistema permite a análise e a anotação da dinâmica expressiva do movimento. Esta anotação é realizada a partir de diagramas que permitem especificar: 1 - a qualidade do movimento = e o esforço/effort; 2 - a configuração que o movimento toma no espaço tridimensional = forma/shape (RENGEL, 2001, p. 115).

68

presença ativa de quem assiste, e que se mostrou potencializada pela ação de

deslizar.

3.1.2 O duplo controle

O Experimento II, intitulado “Duplo Controle”, seguiu a mesma estrutura de

tarefas abordada anteriormente, com ações bem claras e definidas a serem

exploradas e que estão descritas com maior importância de detalhes no Anexo A.

Descrevendo de forma sucinta, foi pedido a um dos bailarinos que guiasse seu

parceiro pelo espaço do ateliê (sala 209, Usina do Gasômetro). O outro bailarino

estava inicialmente de olhos fechados e só os abria ao comando de seu guia; na

ocasião, o sinal de comando, tanto para abrir como para fechar, era um aperto no

ombro, braço ou mão. A Fernanda foi a primeira a guiar e o Douglas a ser

conduzido. O que se observou é que a bailarina conduzia seu parceiro, caminhando

pela sala, da mesma forma que o faria se estivesse carregando uma câmera. Após

encontrar a local exato do ateliê, posicionava o colega, com perícia, ajustando sua

altura (nível) e regulando, minunciosamente, o ângulo de inclinação da cabeça, bem

como sua direção. Depois de construído o quadro de gravação, dava o sinal para

que o Douglas abrisse os olhos. Ao finalizar seu tempo de “gravação” daquele

plano55, dava o sinal para que ele os fechasse novamente, seguia para o próximo

lugar escolhido e repetia o processo.

Em um drástico oposto, Douglas, ao conduzi-la, estando ela de olhos

fechados, o fez de forma contínua e dinâmica. Eles dançavam juntos, explorando

níveis, velocidades, corridas, enquanto, simultaneamente, fornecia os sinais para

que abrisse e fechasse os olhos. Enquanto a Fernanda demonstrou grande

preocupação em compor os quadros, escolhendo seu local e ângulo com cuidado e

planejamento para formar uma linha de imagens na memória visual de seu colega, o

Douglas se preocupou mais com o movimento em si, criando uma linha de memórias

que priorizavam, também, outras fontes sensoriais que não apenas a visão do

espaço e sua arquitetura. Deste modo, surgiram questões sobre o papel do bailarino

em relação com a câmera e vice-versa. O bailarino/videasta estaria dançando ou

55

“[...] um plano é qualquer segmento de filme compreendido entre duas mudanças de plano” (AUMONT & MARIE, 2012, p. 230).

69

gravando? O que se queria era dançar gravando ou gravar dançando? Mas o que

significa gravar? Gravar é dar importância ao enquadramento, ao foco, ao

posicionamento visual como fez a Fernanda. E dançar? Dançar, como o fez o

Douglas, trata-se de fluir em diferentes dimensionalidades planas, dando ênfase ao

corpo em movimento. E o desafio está em balancear todos estes elementos em uma

mesma ação, a de videodançar.

Mais do que uma busca por criar ou explorar formas e procedimentos, este

experimento trouxe à luz o discurso envolvido na pesquisa sobre a câmera. No

relato da Fernanda está explicitada a importância deste momento para a

continuidade da pesquisa e para a forma com que os próximos experimentos seriam

encarados:

Depois também de entender, de estar nos dois espaços, do bailarino e do videomaker

56 e depois de entender a câmera em si como um parceiro, né,

de dança, foram alguns processos que foram aos poucos se fazendo entender, né. De cara o que eu vi foi isso: “tá, é, eu vou dançar e filmar, as duas coisas” e aí depois que a gente começou a trabalhar que eu comecei a entender essa ideia de “tá, não, mas a câmera também dança, ela também tá junto”(BOFF, 2014, informação verbal).

E eu fui bem quadradinha, assim, no exercício, tipo... Foi nesse exercício, assim, que eu entendi “ah, tá, não é só isso, é muito mais do que isso”, e aí aos poucos que eu me senti, foi me dando um pouquinho mais de liberdade e vendo, né, que é uma característica bastante da GoPro também, né (BOFF, 2014, informação verbal).

Houve uma dependência relacional entre os corpos videodançantes quanto à

criação e execução da coreografia, mas, ao mesmo tempo, um descolamento, um

entendimento de que a GoPro não era um equipamento subjugado ao bailarino

enquanto um instrumento. Pelo contrário, ela era instrumento e fonte de troca de

conhecimentos técnicos, intuições e sensações, tanto quanto eles próprios. Porque,

ao pensar a câmera subserviente aos desejos e regulagens de seu operador,

pensasse, igualmente, em seu operador submisso a fornecer os controles que a

máquina precisasse. Sendo assim, não se tratou de um único controle, mas sim de

um duplo controle em relação dinâmica de esforços entre a câmera e o

bailarino/videasta.

Com este discurso reconhecido, houve um grande desafio advindo do novo

papel de bailarino/videasta: o de não priorizar apenas o trajeto e a dinâmica da

56

O termo videomaker foi substituído, posteriormente à entrevista, por videasta, por questões conceituais.

70

câmera na construção da imagem em detrimento do próprio corpo, com sua

organização e seu caminho do movimento cênico, que também é dançado e não

apenas como operação do equipamento. Quanto a essa dificuldade a bailarina

Fernanda relata:

Porque, quando tu tá com a câmera, tu dá muito mais atenção a ela do que ao teu próprio corpo, então acho que uma das minhas maiores dificuldades foi isso, assim, que eu acho que foi uma coisa que eu tentei trabalhar mais, não perder o olhar da câmera que seria o melhor, o melhor ângulo, o melhor olhar dela, né. [...]Mas como que eu vou dar foco nisso, mas pensando no meu corpo ao mesmo tempo? Aí que eu acho que foi esse foi esse o maior problema: de eu não encontrar onde tava o meu corpo no melhor ângulo da câmera, ou eu estar com o melhor ângulo da câmera, mas eu bater com meu joelho no chão, porque não tô cuidando, ou estar meio torta assim, ou virar a mão e daí daqui a pouco não consigo mais virar a câmera (BOFF, 2014, informação verbal).

Por mais que a movimentação criada e realizada pelo bailarino/videasta não

tivesse como proposta a investigação de movimentos virtuosos e de estilos

específicos, mas sim de qualidades de caminhadas e corridas nos níveis alto, médio

e baixo, rolamentos e saltos, foi preciso uma reorganização corporal. Isto se deu,

principalmente, em virtude da indisponibilidade de um ou dos dois braços, por esse

ou aquele estar carregando a câmera, o que influenciou no equilíbrio, nos apoios e

nas alavancas. Sendo assim, tomou-se consciência de que, tão importante quanto o

refinamento da imagem da videodança, é o trabalho corporal e estético não só de

quem dança frente à câmera, mas de quem a conduz; levando, então, à busca pela

equalização dos dois ambientes construídos na coreografia, o físico, onde se veem

bailarinos e GoPro em ação e o ambiente digital, o qual é visto e construído pela

lente da câmera.

3.1.3 Um desvio para reafirmar o caminho da criação

Por mais que se tenha optado por não dar continuidade ao Experimento IV,

Corpo Cyborg, ele trouxe uma forma completamente diferente de relação entre o

bailarino e a GoPro, que não se pode deixar de expor. Uma de suas propostas

consistia em acoplar a câmera ao peito da Fernanda, através de um colete,

representado na figura abaixo e, assim, explorar movimentações de autogravação.

Estando o equipamento acoplado ao corpo, a relação se torna tão íntima e

71

simbiótica, que não há um “entre”, isto é, não há uma diferenciação, um

reconhecimento de seus corpos e características como coisas distintas. Ao invés,

tem-se uma interferência direta no corpo dançante, constituindo um novo corpo,

tanto no espaço físico, como no digital.

Figura 18: Foto ilustrativa do colete usado para acoplar a câmera ao peito da bailarina no

Experimento IV.

Um caminho para se entender essa outra relação possível é o conceito de

prótese. Segundo Clarke (2004, p. 208, tradução minha), no início do século XVIII, o

termo “prosthesis” surgiu para conceituar partes artificiais do corpo. Ainda conforme

a autora, etimologicamente a palavra deriva do grego “prosthesis” (adição), que, por

sua vez, vem de “prostihenai” (adicionar a), que é composto por pros (antes,

adjunto) e tithenai (colocar)57. A prótese, principalmente nas áreas médicas, é

sugerida como substituição para um membro ou uma válvula, por exemplo. Isto não

condiz, necessariamente, ao seu uso nas artes. Nesse sentido, a ideia de “revestir-

se de tecnologia” (CLARKE, 2004, p. 208, tradução minha)58, advinda da origem do

termo, usado por Clarke para estudar o uso de próteses nas performances de

57

“At the beginning of the eighteenth century the word „prosthesis‟ came to mean na artificial body part. The term derived from the Greek, prosthesis („addition‟), from prostithenai („add to‟), which was composite of pros- („to‟) and tithenai („to put, or place‟)” (CLARK, 2004, p. 208). 58

“This literal putting on of technology [...]” (CLARK, 2004, p. 208).

72

Stelarc59, contribui para o entendimento do tipo de inter-relação entre a tecnologia do

vídeo e o corpo dançante neste experimento, por mais que esta pesquisa se

diferencie em muitos aspectos do trabalho do artista em referência. Pois, “a

fisicalidade e a imperiosa presença da adição protética traz a ênfase de volta à

experiência corporal e o design do corpo, e às questões que se relacionam com a

proximidade de si e do „outro‟” 60 (CLARKE, 2004, p. 208)

Nesse ensejo, observou-se a deformação da estrutura anatômica da bailarina,

com seus membros desproporcionalmente longos e a possiblidade de reinventar,

recriar o corpo que dança, assim como percebê-lo e acessá-lo de forma diferente.

Na mesma linha de pensamento, Miranda (2000, p. 138) chama esse processo de

ampliação da “linguagem dos ossos, músculos, órgãos, fluxos e dinâmicas”

(MIRANDA, 2000), em termos coreográficos, de “corpos impossíveis”, afirmando

que:

A excitação do antinatural é reafirmada aqui, de uma maneira bastante semelhante ao prazer e estímulo estético derivado das técnicas virtuosísticas do balé clássico. Este corpo antigravitacional, multifacetado, expandido, hipersensível, desaparecido, do avesso, nos convida a uma nova definição do “artificial” e do “extra/ordinário” e nos convida também a novos desejos em relação ao corpo performático (MIRANDA, 2000, p. 138).

Muitos seriam os procedimentos e as possibilidades criativas a surgir dessa

linha de relação entre o artista e a tecnologia, no caso a GoPro, que favorecem por

seu formato e por seus acessórios. Ainda que esta “excitação”, citada pela autora,

tenha circulado pelos interesses desta pesquisa, em uma decisão coletiva com os

bailarinos, decidiu-se que não era por este viés que se queria buscar estes corpos

antigravitacionais, expandidos, desaparecidos. Ao invés de servir como um caminho

para investigação, o Experimento IV, serviu como um desvio para reafirmar a

escolha poética de criação e relação com a câmera. Tão importante quanto os

caminhos escolhidos, para entender e refletir sobre um fazer criativo, são os

caminhos abandonados. Pois “diante de cada obra de arte importante, lembre-se de

59

“Stelarc is a performance artist who has visually probed and acoustically amplified his body. He has made three films of the inside of his body. Between 1976-1988 he completed 25 body suspension performances with hooks into the skin. He has used medical instruments, prosthetics, robotics, Virtual Reality systems, the Internet and biotechnology to explore alternate, intimate and involuntary interfaces with the body.” Disponível em: < http://stelarc.org/?catID=20239> Último acesso em: 11 de junho de 2015. 60

“However, the physicality and overriding presence of the prosthetic addition bring the emphasis back to bodly experience and to body design, and to questions that relate to the proximity of self and „other‟” (CLARKE, 2004, p. 208).

73

que talvez outra, mais importante ainda, tenha tido que ser abandonada” (KLEE,

1990, p. 190 apud SALLES, 2014, p. 35).

3.2 PROCEDIMENTOS

Dando seguimento à pesquisa, começa-se a voltar às atenções para a análise

das escolhas dos procedimentos de criação e de formalização do trabalho artístico

Experimento Looping. Até então, os experimentos e suas tarefas giravam em torno

da exploração e construção de possibilidades para o relacionamento entre os corpos

videodançantes. Não havia, a priori, o compromisso de criar e produzir tendo em

vista a obra. Mesmo porque, utilizando as palavras de Laurence Louppe (2012)

sobre o início de uma obra coreográfica:

Dir-me-ão: o movimento é o meio, o corpo é o instrumento. Que movimento? Que corpo? Vimos que nem o movimento nem o corpo existem a priori, antes das cinesias que as fundam. O trabalho do coreógrafo é inventar o corpo (ou, no mínimo, eleger nos corpos já trabalhados e conscientes uma corporeidade em ressonância com o seu projeto) (LOUPPE, 2012, p. 257-258).

Sendo assim, o que se almejou, intensamente, nos primeiros experimentos,

através das tarefas, foi buscar esta corporeidade ressonante com o projeto. Não que

esta busca não tenha sido contínua no decorrer de todo o processo. Todavia, a

amplitude de sua exploração foi sendo restringida e direcionada, cada vez mais, à

medida que as escolhas dos procedimentos foram sendo tomadas. E é sobre as

escolhas poéticas que recaem as atenções neste momento, tendo como base a

definição de Louppe (2012, p. 27), que afirma que a poética “revela-nos o caminho

seguido pelo artista para chegar ao limiar onde o acto artístico se oferece à

percepção, o ponto onde a nossa consciência a descobre e começa a vibrar com

ela”.

Nesse sentido, torna-se compreensível que se formulem as perguntas: de que

trata este trabalho artístico? Qual o tema por trás da criação? E, para respondê-las,

cito Doris Humphrey (1991, apud LOUPPE, 2012, p. 257): “pouco importa o tema; a

primeira coisa a ter em consideração resume-se numa só palavra: acto.” Portanto,

foram ao longo das ações, no próprio movimento que se acessaram as chaves as

quais guiaram os procedimentos, ou seja, que se revelaram os desejos e as

importâncias dos elementos envolvidos na criação e concretização da videodança.

74

Na mesma linha de pensamento de Louppe (2012), o filósofo José Gil (2002,

p. 63) conceitua coreografia como “um conjunto de movimentos que possui um nexo

próprio”. O nexo, por sua vez, “não é ditado nem pela sua finalidade nem pela sua

expressividade” (Id. Ibid.). Isto é, não é preciso, necessariamente, buscar sentido

para a dança (para a coreografia) externamente à própria ação de dançar. Para

pontuar a ideia, o autor cita a bela fala de Cunningham (1998) a esse respeito:

Se um bailarino dança ─ o que não é a mesma coisa que ter teorias sobre a dança ou sobre o desejo de dançar ou sobre os ensaios que se fazem para dançar ou sobre as recordações deixadas no corpo pela dança de algum outro ─, mas se um bailarino dança, tudo já está presente. O sentido presente, se é isso que queremos. É como este apartamento onde vivo; olho em toda a minha volta, de manhã, e pergunto-me, o que é que tudo isto significa? Significa: isto é onde eu vivo. Quando danço, significa: isto é o que estou fazendo. Uma coisa que é justamente a coisa que aqui está (CUNNINGHAM in HARRIS & VAUGHAN, 1998, p. 97, apud GIL, 2002, p. 63).

Consequentemente, conforme Gil (2002) seria vão pensar que o nexo de uma

criação em dança pudesse ser “traduzido” completamente para linguagem e

pensamentos expressos em palavras. Ou seja, por mais que a linguagem verbal e

escrita tenha permeado todo processo, inclusive fazendo parte de sua construção, a

própria criação, foco desta analise, bem como o nexo, se constitui em outro suporte:

no movimento, na estruturação corporal dos bailarinos. Sendo assim, torna-se mais

potente tentar criar na escrita uma forma de absorver, de aproximar e de

compreender a experiência, criando pontes entre esses dois fazeres, o dançar e o

escrever. Não se trata, no entanto de diminuir a linguagem verbal ou escrita em

detrimento da arte da dança ou vice-versa, ou ainda desacreditar e afastar as pontes

já construídas entre esses fazeres, mas apenas entender de que se trata de

caminhos diferentes, onde não há correlativos absolutos entre palavras e

movimentos, por exemplo. Assim, resta a quem se dedica a estudar e refletir sobre o

fazer artístico da dança duas possibilidades, conforme o autor:

[...] não pretendermos dizer tudo desse nexo ─ não porque ele encerre algum núcleo de sentido inefável, mas porque se diz de modo diferente da linguagem; ou fazer da constatação cunninghamiana (o sentido da dança é o próprio ato de dançar), o ponto de partida de uma aproximação da dança o mais próximo possível dos restos concretos do bailarino. Não procurando extrair-lhe o sentido, mas desposando o mais estreitamente possível o movimento do gesto corporal (GIL, 2002, p. 63-64).

É em conformidade com estes teóricos e artistas, os quais prepararam esse

“terreno” de entendimentos, que estabeleço esta reflexão. Na tentativa de aproximar-

75

se do ato da dança, da videodança, o mais estreito possível com os “restos

concretos dos bailarinos” (Ibid.), inclusive para observar a estruturação desse nexo

que integra este processo em uma obra.

Entende-se que não há como traduzir a ação de videodançar, mas há como

“dizer diferente”. Primeiramente, é preciso reafirmar que não existe “uma narrativa

que <<organiza do exterior>> as componentes internas de um movimento dançado”

(LOUPPE, 2012, 257)61, deste modo, será por meio da descrição e da

argumentação dos procedimentos criados e adotados que pretende-se abordar o

processo de criação do trabalho Experimento Looping.

Surge, então, um importante termo, que se torna guia e aliado desta análise:

o procedimento. Segundo o Dicionário Priberam62, tanto o termo “processo”, como

“procedimento”, vem do latim “procedere” que significa “avançar, ir para frente”,

pode-se dizer então que o processo é a ação de seguir avante e o procedimento

estaria voltado para o “como” se avança, ou seja, os métodos, as maneiras e os

modos. Este “avançar” pressupõe a construção de um caminho, ao qual se pretende

acessar por meio de uma escrita crítica-reflexiva. Conforme Salles (2014, p. 66), na

criação, o método deve ser observado de uma perspectiva diferente, como

procedimentos lógicos de investigação, responsáveis pelo desenvolvimento da obra.

Entender o método por este viés, segundo a autora, é certamente mais

enriquecedor para as descobertas quanto ao ato criador. Para ela, os procedimentos

são elaborados e realizados durante todo o processo, no entanto, não é uma busca,

necessariamente consciente. Tendo sido a videodança, Experimento Looping,

realizada em um contexto acadêmico de pesquisa, é de interesse que os

procedimentos envolvidos em seu desenvolvimento sejam explicitados, que se

tornem conscientes, gerando saberes e novas questões. Para tal, irei descrever os

“procedimentos lógicos de investigação” (SALLES, 2014, p. 66), aproximando as

falas dos bailarinos em entrevista a respeito dessa experiência, as minhas próprias

percepções do processo, juntamente com a compreensão de técnicas e qualidades

61

“[...] seguramente, não existe um <<argumento>>, como no ballet clássico, nem, como afirma Michèle Febvre, uma narrativa que <<organiza do exterior>> as componentes internas de um movimento dançado” (LOUPPE, 2012, p. 257). 62

Disponível em: < http://www.priberam.pt/dlpo/procedimento> Último acesso em: 11 de junho de 2015.

76

de movimento e as produções acadêmicas que contribuem para o entendimento

desses procedimentos.

3.2.1 Experimento III – Dos pés à cabeça

Este experimento foi o único em que atuei, também, como bailarina/criadora,

além de proponente e condutora da tarefa. Portanto, as memórias acessadas

passam também pelo meu corpo enquanto corpo videodançante. Ou seja, não

apenas por sua observação, mas pela vivência. Desse modo, utilizando o termo

criado pela antropóloga Eunice Durham (1986), pode-se caracterizar por uma

“participação observante63”, pois faço parte do grupo pesquisado e neste momento

participo da ação, mesmo assim, com o esforço consciente de um pesquisador.

Justifico minha escolha pela necessidade de vivenciar em meu próprio corpo o que

vinha propondo aos bailarinos, pois a memória corporal da experiência enriquece

meu entendimento desta prática, além de me empoderar de minhas próprias

propostas e desejos artísticos.

O experimento III se dividiu em dois momentos diferentes. O primeiro é

constituído pela tarefa elaborada previamente e proposta aos bailarinos. O segundo

momento se trata do improviso semiestruturado, que se utilizou do material criado no

decorrer da tarefa como referência, sendo, desse modo, uma continuidade do

primeiro momento.

3.2.1.1 A tarefa

A tarefa pode ser descrita em três ações diferentes:

a) Ação 1: Criar uma sequência de cinco movimentos, com a tarefa de sair do

nível alto (em pé) e ir para o nível baixo (deitado). O número de movimentos é

uma média para o tamanho da sequência, pois, compreende-se que não há

63

Termo proposto pela antropóloga Eunice R. Durham, para descrever análises nas quais o próprio pesquisador está inserido como sujeito do um grupo pesquisado. A observação participante favorece e valoriza a subjetividade do observado, privilegiada pela participação, sem, no entanto, ser parte do grupo estudado. No caso da participação observante, o próprio observador é parte de seu objeto de estudo, que na antropologia vem munido de uma forte carga política. Para mais informações, consultar “A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspectivas” (DURHAM, 1986, p.17-37).

77

uma unidade de movimento definível, não sendo, inclusive, a intensão obtê-la,

apenas balizar a extensão da célula coreográfica. Cada bailarino, individual e

simultaneamente, desenvolveu sua sequência;

b) Ação 2: Em duplas, o bailarino/videasta deveria criar uma sequência

coreográfica (uma trajetória) para e com a câmera a partir do fragmento

criado pelo outro colega anteriormente, com a tarefa de enquadrar/focar

partes do corpo escolhidas. A ação foi elaborada em três etapas: a trajetória 1

(envolvendo a escolha de parte do corpo), a trajetória 2 (envolvendo a

escolha de outra parte do corpo diferente da primeira) e a trajetória final

(envolvendo a mescla das duas trajetórias criadas em uma);

c) Ação 3: Criadas e formalizadas as sequências coreográficas pelos pares

bailarino + bailarino/videasta, a proposta era encadeá-las em uma única

coreografia, compondo um plano-sequência64. Ou seja, coreografar o trânsito

da câmera entre os bailarinos/videasta, que na ocasião ficaram organizados

nas seguintes duplas e ordem: 1º - Fernanda (bailarina) e Douglas

(bailarino/videasta), 2º - Douglas (bailarino) e Julia (bailarina/videasta), 3º -

Julia (bailarina) e Fernanda (bailarina/videasta).

Retomando a bibliografia de Rossini (2011, p. 45) a respeito de Anna Halprin

e seus procedimentos de tarefas, acrescenta-se que “podemos entender as tarefas

de Halprin como limite e, em concomitância, como abertura. Limite que determina a

ação ou ações a serem realizadas e abertura pela qual cada corpo a realizará de

forma particular, integrando a elas suas características próprias.” Dessa feita, os

limites eram claros, ir da posição em pé para a posição deitada em uma média de

cinco movimentos. Não obstante, o “entre”, constituído do ponto inicial ao ponto final,

revela uma infinidade de possibilidades de como realizá-lo. Por exemplo, enquanto a

movimentação do Douglas era mais contínua, acelerada e com um peso-fluxo

contido, apresentando uma tensilidade muscular65 menor, a movimentação da

Fernanda era mais desacelerada, segmentada, com acentuações no fraseamento,

com um peso-fluxo contido e com uma tensilidade muscular maior. Já minhas

64

“Como o termo indica, trata-se de um plano bastante longo e articulado para representar o equivalente de uma sequência” (AUMONT & MARIR, 2012, p. 231). 65

Ver página 35, tópico letra “b”.

78

escolhas buscaram movimentos pendulares66, repetições, como um acomodar-se no

chão, com um tempo desacelerado, com peso fluxo, também contido, e com uma

tensilidade muscular menor.

Esta ênfase no “como”, tanto no que diz respeito à escolha da trajetória do

movimento, quanto no fraseamento envolvido na sua execução, que é característica

da utilização da tarefa como estratégia de criação, também é, claramente

identificada na ação 2. Ou seja, surgem as questões: qual parte do corpo dar foco?

Como acompanhar? E as respostas se tornam um meio de analisar como se

estrutura a relação criativa entre bailarinos e câmera.

Observo que as escolhas não foram aleatórias, por mais que não tivesse um

critério instituído pela tarefa. Percebe-se que o foco era dado às partes que

“comandavam” ou “direcionavam” o caminho de descida do corpo do bailarino da

posição em pé para a posição deitada. Tomo como exemplo o experimento quando

realizado pela Fernanda como bailarina e o Douglas como bailarino/videasta. O

primeiro movimento feito pela Fernanda foi uma mudança brusca de olhar, com a

rotação da cabeça no eixo longitudinal, do centro para o lado esquerdo, seguido de

um arqueamento lento e contínuo do tronco lateralmente, que foi iniciado por uma

circundução do ombro direito. Em um movimento rápido e direto, suspende a perna

direita esticada no ar, afastando-a da perna de base esquerda. A partir desse

momento, o pé conduz a torção de todo o corpo, desenhando um círculo no solo, ao

redor do próprio corpo, formando um espiral até a posição sentada no chão,

passando, respectivamente, pelo apoio dos joelhos, coxas e quadril. Para levar o

tronco à posição deitada, o caminho da ação é comandado pela cabeça e pelos

braços, que desenham um semicírculo no chão, acomodando o corpo.

Fica clara a importância dada à cabeça e ao pé na condução do trajeto

“esculpido67” pelo corpo da Fernanda no espaço, do nível alto ao nível baixo. Não

sendo por acaso a escolha do Douglas em utilizá-los como referência para

desenvolver a sua movimentação e a da câmera. Portanto, neste experimento, a

construção da trajetória da câmera está diretamente ligada à “energia” que circula

66

Os movimentos pendulares se caracterizam por usar a articulação como ponto fixo, central, e através do peso da parte do corpo em questão, impulsionado por uma força, realiza um movimento oscilatório em torno do ponto fixo. 67

“Trata-se de um espaço que o corpo encara como um outro corpo, um espaço como parceiro, onde o corpo, se souber dominar os seus estados tensionais, pode inventar consistências e <<esculpi-las>> (o <<carving space>> de Laban, que se inicia com a modelagem do espaço de proximidade)” (LOUPPE, 2012, p. 189).

79

pelo corpo do bailarino gravado na realização do movimento, ou seja, a forma como

o bailarino em questão gerencia e elabora em seu corpo o peso, fluxo e tempo na

construção de um espaço singular, pelo movimento. É esse fraseamento que o

bailarino/videasta assimila para sua própria movimentação com a câmera, a partir

das dinâmicas contidas na ação do outro bailarino. Por exemplo, para acompanhar o

pé direito da Fernanda se afastar do pé esquerdo de base, em um movimento que

podemos indicar como: acelerado, direto e contido; o Douglas movimenta a câmera

do enquadramento da cabeça para o pé com a mesma dinâmica.

Dessa feita, a trajetória68 e o fraseamento caracterizam dois pilares

importantes. Eles serão observados durante todo o processo de criação, pois na

trajetória se entrelaçam o caminho do bailarino/videasta, com suas orientações,

níveis, planos e distâncias69, com o caminho da câmera, com seus

enquadramentos70, ângulos71 e planos72. Ambos estão intimamente ligados e

dependem, reciprocamente, um do outro. Já o fraseamento, e seus fatores

perceptíveis, tornaram-se as chaves para fazer emergir o “ser do trajeto”73, que

esculpe este espaço poético no ambiente que denominamos, anteriormente, de

físico e reverbera no ambiente digital, dando ritmo às imagens, no que será

chamado mais adiante de “endoedição”. E o gerenciamento de todos estes

elementos dão a ver a coreografia que surge da relação entre GoPro,

bailarino/videasta e bailarino.

68 “É a união dos pontos por onde se desloca o movimento. A trajetória define o ponto exato de início

do movimento, para onde é conduzido e aonde chega” (RENGEL, 2001, p. 129). 69

“É certo que, no seu processo de investigação ou de clarificação dos dados espaciais, o bailarino deve confrontar-se com os conceitos de nível (alto, intermédio, baixo), orientação (lateral, perpendicular, oblíquo, entre outros), planos (vertical, horizontal, lateral, sagital – que Laban converteu, aliás, em termos de experiência para relativizar o seu carácter abstrato: a mesa horizontal, a entrada vertical, a roda sagital) e distâncias, etc.” (LOUPPE, 2012, p. 188). 70

“Mas as palavras “enquadrar” ou “enquadramento” apareceram com o cinema, para designar o conjunto do processo, mental e material, pelo qual se chega a uma imagem que contém um certo campo visto de um certo ângulo” (AUMONT & MARIE, 2012, p. 98). 71

“O ângulo da câmera determina tanto o ponto de vista do público quanto a área abrangida pelo plano” (MASCELLI, 2010, p. 17). 72

“Plano define uma visão contínua filmada por uma câmera sem interrupção. Cada plano é uma tomada. [...] Se, de alguma forma, a configuração é alternada – por meio do movimento da câmera, da troca de lente ou da filmagem de uma ação diferente -, trata-se de um novo plano, e não de uma tomada repetida” (MASCELLI, 2010, p. 19). 73

Termo cunhado pelo arquiteto, urbanista e filósofo, Paul Virilio. Que reclama por uma “trajetividade”. “... Entre o subjetivo e o objetivo parece não haver lugar para o “trajetivo”, este ser do movimento do aqui até o além, de um até o outro, sem o qual jamais teremos acesso a uma compreensão profunda dos diversos regimes de percepção do mundo que se sucederam ao longo dos século, regimes de visibilidade das aparências ligados à história das técnicas e das modalidades de deslocamento [...]” (VIRILIO, 2014, p. 126).

80

Ao sair do papel de proponente e coreógrafa, para me aproximar à ação de

videodançar, ainda no papel de bailarina, percebi que minha dança era outra frente a

uma câmera tão próxima. A GoPro era, ao mesmo tempo, parceira na criação,

juntamente com o bailarino/videasta (no caso a Fernanda), e a presença do

espectador. Era muito clara a mudança da minha presença74 corporal (muscular) dos

momentos em que explorava, relembrava minha movimentação sem a câmera e

após a expressão “gravando”, era a mesma sensação das luzes do palco serem

acessas ou as cortinas se abrirem para o público. Há alguém vendo, ou irá ver por

meio daquele olho que lhe acompanha.

Sentia como se mostrasse algo muito íntimo de mim para este olho, não

apenas físico, mas dotado de um olhar subjetivo. Os alarmes emitidos pela câmera

antes de sua luz vermelha se acender, para indicar que a gravação havia iniciado,

me lembraram do terceiro sinal antes do espetáculo começar. É claro que a

possibilidade de parar e fazer novamente existia, e inclusive foi o caminho

encontrado durante todo o processo. Mas a cada novo sinal a expectativa de dar o

máximo para aquela gravação se renovava.

Agora compreendo o porquê dos improvisos como procedimentos tão ricos

para a criação com a câmera, pois, até mesmo, esta possibilidade de gravar

novamente se exclui, colocando os bailarinos intensamente naquele momento,

característica tão marcante da dança, sua efemeridade. Nesse sentido, Louppe

(2012), elabora um texto fundamental sobre o bailarino e o instante: “O bailarino

trabalha no instante. A presença total no instante, sem prazo ou antecipação

estipulada, é tudo o que constitui a qualidade de um acto de dança. É um elemento

igualmente essencial de elaboração da <<presença>> do bailarino” (LOUPPE, 2012,

p. 163).

Enquanto bailarina/videasta existem outras demandas para se tomar

consciência, elaborar e integrar, e que competem com a minha presença corporal,

pois é preciso estar presente enquanto bailarino e videasta, no mesmo instante. Sou

74

“A <<presença>> pode ser lida como a qualidade de <<estar lá>> (o que decorreria de uma compreensão topológica do ser), assim como uma pessoa se expressa em termos relacionais pela força comunicativa do <<eu>> e da aura tensional e espacial que o corpo, ao mesmo tempo, ressuma e organiza. Contudo, para o bailarino, este aspecto também tem a ver com a urgência de estar presente no presente (conceito de tempo). Sem a <<presença>>, nada passa de instantaneidade do acto, da correspondência profunda entre o movimento e a natureza do instante que se ilumina (e que é iluminado)” (LOUPPE, 2012, p. 163-164).

81

outro corpo, com um novo peso, um novo centro, que se movimenta com novos

apoios e não possui dois, mas três olhos. Trabalho estes olhos em e para dois

ambientes diferentes. Simultaneamente em que a dança emerge da minha relação

com a câmera, a videodança emerge da minha relação com a câmera e com a

Fernanda. Sem o outro bailarino a preocupação com o caminho da câmera, de seus

enquadramentos e da imagem que obterá, enfraquece, restando apenas dois corpos

dançando, ou seja, eu e a GoPro. Ao inserir o outro bailarino, nos tornamos todos

corpos videodançantes, criando uma nova maneira de nos mover entre o ambiente

físico (onde criamos, principalmente um espaço dinâmico e singular) e o digital (no

qual o espaço elaborado e o lugar geram a imagem).

Juntamente com todas estas exigências advindas do papel do

bailarino/videasta, havia as regras envolvidas na tarefa proposta pelo experimento.

Como pesquisadora, minhas observações prévias do processo me auxiliaram a, de

antemão, perceber a importância da cabeça, dos braços e das pernas, ou seja, das

extremidades, no movimento do Douglas. Reparei que as torções e os lançamentos

das extremidades reverberavam na reorganização do centro do bailarino. Entretanto,

estes starts oferecidos pelos membros e a cabeça não surgiam como acentuações,

o fluxo era mantido, com a mesma tensilidade. Em determinados momentos, havia

movimentos iniciados pelos pés e as pernas, ao mesmo tempo, pelas mãos e os

braços, esculpindo linhas, até mesmo de oposição. Portando, escolhi acompanhar

as mãos e os pés, imprimindo uma dinâmica próxima ao fluxo do Douglas, sem

acentuações, apenas pausas. Lembro-me de manter os joelhos flexionados para

evitar qualquer impacto brusco ao movimento da GoPro. Outra escolha foi a de levar

a câmera ao mesmo nível do bailarino quando ele alcança a posição deitado,

deslizando a câmera pela superfície do chão para acompanhar o movimento.

Desse modo, o bailarino/videasta deve, em um primeiro instante, observar a

movimentação do outro com o desejo de perceber sua dinâmica, tomando

consciência de seu fraseamento, para obter informações que possibilitem a escolha

das partes do corpo que a câmera irá acompanhar. Trata-se de um trabalho delicado

e sensível, que exige uma “escuta” apurada do outro.

Cabe, nesse momento, tratar da “estratégia base” estabelecida para

desenvolver e refinar estes pilares dentro dos próprios procedimentos. A estratégia

já vinha acontecendo durante os outros experimentos, mas se estabeleceu, com

82

maior clareza neste experimento, como base para a realização de, praticamente,

todos os procedimentos. Este “procedimento lógico de investigação”, utilizando as

palavras de Salles (2014, p. 66), configurou-se nos primeiros experimentos para a

exploração, o conhecimento e o autoconhecimento dos corpos videondançantes e, a

partir do Experimento III, para a criação e o direcionamento da videodança. Trata-se

da troca contínua de poder entre bailarinos e câmera, remontando um diálogo, esse

que foi abordada no capítulo anterior75. Para criar o caminho do movimento, tanto

quanto para imprimir uma dinâmica a ele, instituiu-se a prática demonstrada na

figura abaixo:

Figura 19: Esquema ilustrativo da “estratégia base” utilizada no decorrer do processo.

Inicialmente, tanto o bailarino, quanto o bailarino/videasta apresentam uma

movimentação conforme seus desejos, memórias corporais e repertórios de

movimento (a maneira de acessar e criar estas propostas de movimento varia a cada

experimento). Logo após, o material gravado pela GoPro é visualizado através do

preview fornecido por um aplicativo instalado em meu aparelho celular. Este

aplicativo funciona por meio de sinal Wi-Fi, que permite ver os vídeos que acabaram

de ser capturados e até mesmo enquanto está sendo gravado na tela do celular.

Neste momento, eram observadas as questões de trajetória e fraseamento.

Considero essa etapa crucial para o desenvolvimento dos corpos dançantes em

75

Ver página 60.

83

corpos videodançantes, pois como afirma Spanghero (2003, p. 35) “a câmera muda

o olhar do coreógrafo, o corpo do cinegrafista, o olhar do cineasta, o corpo que

dança e a sua reprodução”. Seguindo essa ideia, observa-se que a partir da

percepção do espaço do movimento, também através do “olhar da câmera”76, que

essas modificações nos corpos e, consequentemente, nos próprios movimentos

aconteceram. Porém, não se configura em uma relação na qual os bailarinos se

tornam funcionários da câmera, mas através de soluções criativas para a harmonia

entre as necessidades do equipamento e dos bailarinos.

E isso é super sedutor, assim, é bem instigante e suscita toda uma curiosidade, tanto imediata quanto depois que a coisa já aconteceu, porque enquanto tu tá fazendo, tu quer tentar entender e otimizar e refinar o teu trabalho de captador de imagem, enquanto tu continua sendo performer de dança. E aí depois que tu vê o resultado daquilo gravado em vídeo, tu consegue assistir, tu vai fazer o trabalho mental de reconstruir aquele padrão de movimento e dalí tu pode tirar mais refinamento pra próxima tomada, entende. Ao mesmo tempo que tu te vê dentro da cena, tu consegue te enxergar fora dela, na frente e atrás da câmera, por dentro e por fora,o elemento gerador e o elemento captado pelo olho da câmera. É bem bonito, é bem cheio de coisa pra cavocar (JUNG, 2014, informação verbal).

Como se vê na imagem acima e se confirma na fala do bailarino, após a

visualização do vídeo, houve uma reformulação do caminho do movimento do

Douglas, para alcançar uma dinâmica pretendida para a videodança. Na primeira

imagem, o bailarino saía do enquadramento da cabeça para o pé da Fernanda, indo

da posição ereta com o peso distribuído nos dois pés, para a posição de ajoelhado,

com apenas um joelho no chão. Após observar o resultado na imagem, chegou-se a

conclusão que para obter uma troca de quadro mais direta e rápida, seria mais

eficiente afastar os pés de base e realizar uma grande flexão dos dois joelhos, como

se vê na segunda imagem. Esse sistema se desenvolve por meio de um forte

trabalho perceptivo dos participantes, como descreve Ostrower (1987):

Enquanto identificamos algo, algo também se esclarece em nós e em nós; algo se estrutura. Ganhamos um conhecimento ativo e de e de auto-cognição, uma noção que, ao identificar as coisas, ultrapassa a mera identificação. Em qualquer situação em que nos encontremos, por exemplo, haverão de surgir inúmeros dados, dos quais alguns talvez já sejam familiares, outros novos, alguns talvez desconexos e outros até mesmo

76

“A psicologia cognitiva define o olhar como um ato sensório-informativo consciente e voluntário, entrando na estratégia de conhecimento e de comportamento do sujeito em seu ambiente. Essa abordagem torna parcialmente fácil a comparação entre o olhar do espectador e „olhar‟ da câmera, já que este último, manifestado por um ponto de vista, uma distância, um enquadramento, eventualmente um movimento, uma profundidade de campo e etc., é calculado, voluntário, deliberado” (AUMONT & MARIE, 2012, p. 215).

84

insólitos. No entanto, de modo aparentemente misterioso, de pronto os unimos. Os dados serão vistos em conjunto, pertencentes à situação à qual também nos percebemos. E, em conjunto, serão interligados e avaliados: os dados, as várias ligações conosco, bem como as ligações entre ligações. Serão percebidos como a trama de um evento em cuja ordenação interior compreendemos consistir o conteúdo da situação (OSTROWER, 1987, p.57).

Pode-se afirmar que o maior desafio foi, no caso, estabelecer as ligações

entre o que se enxergava pela câmera e o movimento realizado. Foi esta

investigação de como integrar os detalhes observados na imagem para a execução

dos caminhos, gestos e dinâmicas, que possibilitou em grande parte aos bailarinos

conhecer e criar uma relação íntima, singular e dinâmica com a GoPro. O bailarino

Douglas expõe sobre esse agenciamento para encontrar um denominador comum

entre todos os elementos, inclusive com relação aos interesses poéticos do

processo:

Eu entendo que eu preciso antever o que a câmera vai ver, mas a câmera não tá perto do meu olho, então eu preciso desenvolver habilidades de foco, de observação, tanto com os meus olhos, quanto com outras áreas do meu corpo, pra poder manipular a câmera e fazer a tomada precisa que o trabalho tá pedindo. Então é como se essa mecânica da visão e da posição do olho, do enquadramento das coisas, do meu ponto de vista com relação ao corpo do outro, que no caso é a Fernanda, tivesse que ser apurada e refinada de dois pontos de vista, e não de um só. Do ponto de vista do meu olho, pra prender a cena global e enxergá-la de fora, pra então escolher o quê que eu vou captar mais de perto, ou o que eu vou seguir, que dinâmica vou dar pro movimento do olho da câmera; e também com as minhas mãos, né, pra eu saber e ter uma noção exata de que se o olho da câmera tá na posição que vai captar aquilo que eu antevi (JUNG, 2014, informação verbal).

Portanto, não é por acaso que esta “estratégia base” tenha se instituído no

decorrer de todo o processo, pois foi através desse sistema que se conseguiu

aproximar os corpos videodançantes e direcionar as escolhas de criação da

videodança. Ela permitiu essa ação de “antever”, citada pelo Douglas, sem, no

entanto, escravizar a percepção dos bailarinos/videastas a um visor ao longo da

coreografia com a GoPro. E a partir desta experiência, observou-se que os

colaboradores, enquanto estavam no papel de bailarinos/videasta, demonstraram

dificuldade em distribuir a atenção não apenas para equipamento, mas para o seu

próprio corpo em relação à expressividade, enquanto corpo dançante.

Neste sentido, a inclusão das passagens de câmera entre os

bailarinos/videasta de forma coreografada, na ação 3, reforçou a ideia de que a ação

de dançar e a de gravar estavam fusionadas. Isso significa que o artista não se

85

destitui do papel de bailarino para assumir o de videasta, mudando seu “estado

corporal” para tal, eles são trabalhados conjuntamente, desse modo, emergindo os

corpos videodançantes. Antes da criação das ligações das sequências, era possível

observar que a atenção com relação ao corpo e ao gesto expressivo do

bailarino/videasta era deixada um pouco de lado. O que importava mais, naquele

momento, era descobrir a trajetória e o fraseamento da câmera. Com o desafio

envolvido em realizar a sequência com a câmera, passá-la ao colega e continuar

executando a coreografia, os corpos videodançantes passaram a dançar

conjuntamente. Parecia ficar cada vez mais claro, desde o Experimento II, que não

se tratava de apenas conduzir a GoPro, mas dançar com ela, em contato direto ou

não.

No início da pesquisa existiam questões, curiosidades, desejo por

compreender determinados aspectos da criação de uma videodança. Todavia foram

realmente tomando forma e força no decorrer dos experimentos e procedimentos.

Foi a partir das percepções da prática e do outro, tanto da pesquisadora, como dos

bailarinos, que as ideologias que impulsionaram o processo criativo foram sendo

formuladas. Esse amadurecimento da ideia por trás da pesquisa e da criação é

possível de ser identificado na percepção descrita pela Fernanda em entrevista,

sobre a respectiva tarefa. Em sua fala, ela explicita seu incômodo e faz uma crítica

pessoal sobre a sequência que criou para a Ação 1 da tarefa. Ela afirma que se a

sequência coreográfica criada na Ação 1 fosse vista, separadamente, da Ação 2, ela

deveria ser revista, refinada, aprofundada. Não obstante, a artista entende que a

sequência em questão é realmente estabelecida, inclusive, recriada, em relação com

a câmera e o bailarino/videasta, de forma digital e física.

Foi uma tarefa super simples e rápida, né, tipo quatro ou cinco movimentos, que mude de nível, que vá de pé até o chão. E, tá, daí eu fiz ali, rapidinho alguma coisa, e aí a gente gravou e foi o que ficou. Se depois, né, pudesse escolher, eu acho que eu mudaria, mas pensando na sequência de movimento. Só que, se eu for pensar na sequência de movimento em diálogo com a câmera e com o Doug, eu acho que eu não mudaria. Porque... Porque é outra coisa, não é só sequência de movimento, né, eu acho a sequência de movimento, tipo, ai, como eu fui simplória nisso que eu fiz, sabe, mas o resultado dela, junto com a câmera e com o olhar do Doug disso, né, eu acho que eu não mudaria (BOFF, 2014, informação verbal).

86

3.2.1.2 O Improviso

A proposta consistia em uma improvisação semiestruturada para a exploração

de novas possibilidades de composição, criação e trânsito da câmera entre os

bailarinos, tendo como ponto de partida as sequências de movimentos criadas e

encadeadas em um plano-sequência na tarefa anterior, entretanto, com liberdade

para novas experimentações.

Iniciamos o improviso, realizando a coreografia do plano-sequência de

referência, assim como havia sido formalizada. O que se viu, em seguida, foi um

resgate de trechos isolados da coreografia que havia sido recém-realizada. Os

trechos surgiam em ordem aleatória, em fragmentos pequenos ou mais extensos. E

não eram apenas os criados por nós, mas as células coreográficas dos colegas

também. Considero que esta dinâmica foi possível devido à “estratégia base” tratada

anteriormente. Tendo em vista que para a criação da trajetória da GoPro, na Ação 2

da tarefa “Da cabeça aos pés”, foi necessário certo número de repetições,

intercaladas pelas visualizações das imagens capturadas, sendo possível que todos

os bailarinos entendessem as suas movimentações e as dos outros também.

Os trechos escolhidos pelos bailarinos podiam até ser “o mesmo” que eles

executavam no experimento anterior, contudo, não se podia ter certeza que seriam

gravados pelo mesmo bailarino/videasta, o que fomentava um novo universo de

escolhas e perspectivas para a movimentação da câmera e novos pontos de vista

para o movimento dançado. A configuração do grupo era de dois bailarinos, um

bailarino/videasta e a GoPro, sendo que os papéis se alternavam conforme a

câmera transitava. Tal estrutura permitia, embora momentaneamente, que duas

pessoas fossem enquadradas ao mesmo tempo, devido ao movimento do

equipamento. Ao assistir o material capturado pela GoPro, o trânsito da câmera

entre os bailarinos era tão intenso que, em determinado instante, não havia como

saber ao certo com quem ela estava, ela simplesmente estava. Parecia “pairar”,

“deslizar”, entre e com os corpos videodançantes. Aos poucos, os fragmentos do

plano-sequência de referência foram se transformando nas repetições e abrindo

espaço para novas movimentações, novas propostas.

Antes de discutir sobre os insights e escolhas poéticas provenientes deste

improviso, faz-se necessário discorrer sobre a escolha dos procedimentos em si. Há

87

uma forte diferença, para o processo criativo, entre a improvisação presente na

tarefa do primeiro momento e desta desenvolvida aqui. Ainda com base na visão de

Rossini (2011, p. 47), “as Tarefas são uma modalidade de improvisação, ou

podemos dizer, também, que são estratégias para improvisação”. Para ele, “a

improvisação é um campo aberto e vasto; e a tarefa é uma restrição específica

desse campo, sem obstruí-lo por completo” (ROSSINI, 2011, p. 47), ou seja, são

modalidades ou estratégias de improvisação.

O que se percebe, no caso da tarefa do “Dos pés a Cabeça”, em comparação

com este improviso é, justamente, as restrições e a forma ou método utilizado para

lidar com ela. Na primeira proposta, o objetivo e o desafio criativo estavam em se

manter dentro das regras que designavam o que deveria ser feito e a “liberdade” de

improvisação se encontrava em como fazê-lo; no segundo caso, havia abertura tanto

para “o quê”, quanto para “como”. Havia uma tarefa envolvida neste improviso,

todavia, as “regras” que a estruturavam serviam mais como balizas, dando ao

bailarino a possibilidade de extrapolá-las quando achasse potente. Desse modo,

intentava-se manter a abordagem dos procedimentos e conceitos investigados pela

pesquisa até então, sem, no entanto, retirar-lhes o frescor envolvido em transgredi-

los. A esse respeito, o bailarino Douglas relata:

“Dos pés à cabeça” foi super importante pra entender mais e melhor da relação com a câmera e do tipo de imagem que eu gero, né, do meu colega e do espaço. E aí, talvez não tanto pra formação, pra formatar material, eu acho que ele serviu muito justamente por isso, por dar noções de ritmo, de mecânica, de peso, de ponto de vista pra informar o que aconteceu depois. Porque eu acho que, se a gente tivesse continuado fechando e coreografando estritamente, marcando coisas, o frescor teria se perdido. E ele sempre voltou, no momento em que a gente abria, deixava coisas novas aparecerem e essas coisas novas já apareciam informadas pela prática “Dos pés à cabeça”, né (JUNG, 2014, informação verbal).

A diferença entre as duas abordagens criativas se mostra, inclusive, na

posição tomada pelos colaboradores para a execução das propostas. Na tarefa, no

primeiro procedimento, cada bailarino escolheu um lugar na sala e, isoladamente,

exploraram maneiras para realizar o que lhe havia sido solicitado. Testavam

possibilidades, ao mesmo tempo em que às avaliavam criticamente. Eles paravam

para pensar, elaborar, perceber, entender, escolher e tornavam a tentar e praticar.

Depois, em dupla com o bailarino/videasta, o mesmo formato de trabalho foi

estabelecido. O foco não estava em toda a movimentação executada na exploração,

ou seja, no presente efêmero, mas no ideal de movimento buscado para suprir as

88

especificidades propostas pela tarefa. Já no improviso, existiam as balizas que

nutriam o movimento, mas o foco estava na experiência em si, no presente, em estar

disponível e atento para perceber o espaço externo e interno, para a realização do

movimento.

Como pontua Larrosa (2002, p.21) “a experiência é o que nos passa, o que

nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, o que toca”.

Ou seja, está no poder da presença do “sujeito da experiência”, que conforme o

autor, “[...] é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos.” (LARROSA,

2002, p. 24). Não havia espaço para parar e reelaborar a resposta, era preciso estar

sensível às mudanças das dinâmicas, para escolher e, dessa forma, abandonar

todas as outras possibilidades coreográficas que foram negadas com a escolha,

simultânea e initerruptamente.

O improviso semiestruturado como estratégia criativa promove a abertura

para maior valorização da intuição. Não que na realização da tarefa a intuição não

estivesse presente, tendo em vista a afirmação de Ostrower (1987, p. 56) de que “a

intuição está na base dos processos de criação”, sendo “dos mais importantes

modos cognitivos do homem” (OSTROWER, 1987, p. 56). Todavia, vejo que o

improviso favorece a ação mais espontânea, com um equilíbrio maior entre a técnica

e a afetividade com o trabalho criativo realizado. E sobre a ação espontânea

intuitiva, Ostrower (1987) complementa:

A ação espontânea intuitiva não é um ato reflexo ante um acontecimento, embora eventualmente inclua atos reflexos. Cabe ver, nessa ação intuitiva, mais do que a reação de dum organismo humano: ela é reação de uma personalidade humana; e mais do que uma reação, ela é sempre uma ação. A ação humana encerra formas comunicativas que são pessoais e ao mesmo tempo são referidas à cultura (OSTROWER, 1987, p.56).

Nesse sentido, os ganhos para a construção da obra foram expressivos. Pois,

dentro das ações propostas, estava contido todo o vocabulário e as questões

investigadas até então, sejam técnicas ou ideológicas, misturadas à personalidade e

afetividade com que cada bailarino percebeu o processo até aquela etapa. O que

observo e entendo dessa prática é que no improviso os bailarinos encontraram um

espaço mais sensível e receptivo para reagir, ou melhor, agir, a partir de suas

personalidades e vontades.

Após a vivência dos quatro experimentos, nos reunimos em minha casa para

assistir a todos os vídeos gravados pela GoPro e discutir sobre o rumo e as

89

escolhas a serem feitas, objetivando a elaboração da videodança. Por meio dos

experimentos, muitas possibilidades criativas foram exploradas de forma rudimentar

e que, se aprofundadas, dariam origem a diferentes obras. Apenas nas imagens do

improviso, pode-se ver elementos como auto-filmagem (que foi brevemente

explorada no Experimento IV) e a investigação de movimento a partir do contato

corporal entre bailarino/videasta, bailarino e câmera, que levariam a pesquisa para

outra direção.

Figura 20: Frames retirados do vídeo gravado pela GoPro no improviso semiestruturado realizado no Experimento III, no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014).

No entanto, em um contexto de pesquisa acadêmica, delimitar o foco do que

se quer conhecer e ainda cumprir prazos, juntamente com a necessidade de

agenciar a disponibilidade de tempo dos artistas envolvidos e dos espaços

utilizados, foi preciso abandonar alguns caminhos para se manter e aprofundar

outros. Por conseguinte, o que mais chamou atenção do material capturado no

improviso e ao qual se resolveu, coletivamente, dar continuidade como objeto central

de nossa criação foram as rotações da GoPro, invertendo o teto e o chão.

90

Figura 21: Frames retirados do vídeo gravado pela GoPro no improviso semiestruturado realizados no Experimento III, no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014).

Como se pode ver na figura 21, as imagens traziam uma nova perspectiva

para o movimento dos bailarinos. É evidente que outros elementos explorados no

decorrer do processo continuaram a aparecer até a gravação final, contudo, o cerne

da pesquisa de movimento e dos procedimentos envolvidos eram estes giros, aos

quais chamei de Loopings, e o modo com que os corpos videodançantes se

relacionam a partir disso.

3.2.2 O Experimento Looping

No Experimento Looping, voltei a vivenciar a pesquisa enquanto proponente e

observadora do processo. Senti a necessidade de me afastar da ação, isto é, do

trabalho envolvido em estar na frente ou com a GoPro, para poder observar o

quadro geral, em uma perspectiva externa à própria prática. As minhas percepções

vieram tanto da observação das explorações e do improviso fisicamente, quanto da

visualização do preview do aplicativo instalado no meu celular, exibindo o que

estava sendo gravado com 4 (quatro) segundos de atraso (delay). Portanto, eu podia

ter acesso ao um panorama mais completo do desenvolvimento do experimento.

Segundo o Dicionário Oxford Escolar (1999, p.542), o termo em inglês

“loop” pode ser traduzido como “volta”, “curva”. Para Aline Couri (2005, p. 2), “em

geral, refere-se a algo que se fecha em si mesmo, seu fim é um reinício”. A autora

traz o conceito para tratar dos loopings de som, imagem, programação, dispositivos

ou processos. Mesmo que o termo represente para o audiovisual um recurso de

repetição criativa ou apenas como uma forma de reprodução da imagem, não foi por

este viés que escolhi o looping como nome para o experimento. Foi ao assistir os

vídeos do improviso que tive a sensação de estar dentro de um avião, realizando

manobras, voltas e giros no ar. Dessa forma, a primeira palavra que me veio à

memória foi “looping”.

Se aprofundasse a busca nos tipos de acrobacia aérea, talvez a mais

adequada em comparação com o movimento realizado pela câmera fosse o

91

tounneau (roll)77 Contudo, criou-se uma afetividade pela expressão “looping”, e todo

o processo e a própria videodança sofreriam uma perda de identidade, se, nesse

momento da pesquisa, se optasse pela troca do nome em virtude de uma fidelidade

conceitual. Usa-se, desse modo, muito mais o significado atribuído à sua tradução

para o português, ou seja, o movimento de voltas e curvas, do que os conceitos

audiovisuais ou da acrobacia aérea, que são, fortemente, associados a essa

expressão.

Outro looping que não foi levado em consideração para a escolha do nome,

mas que, no entanto, no decorrer do processo foi sendo observado é o presente na

estratégia base. O circuito realizado entre a execução do movimento e o vídeo

gravado e o retorno ao movimento, remonta uma dinâmica circular, mas que não

reinicia do ponto pelo qual partiu, mas de um ponto que só existe a partir do inicial,

trazendo a ideia de um espiral.

Este loop se aproxima mais da noção de repetição proposta por Couri (2005),

no início desse subcapítulo. A própria autora traz a ideia de “loop espiral” que

mesmo se referindo a um recurso criativo e poético no tratamento da imagem, no

contexto do audiovisual e no ambiente digital ou fílmico, pode servir como um

caminho para entender este movimento que não é circular e sim espiral, o qual

funda a estratégia base do processo de criação coreográfica do Experimento

Looping, pois como a autora afirma:

Façamos, portanto, uma distinção entre o que chamaremos de “loop circular” do “loop espiral”. A imagem de um círculo sugere um retorno ao mesmo estado ou condição que havia no seu inicio; ao contrário, numa espiral, o loop está na razão ou fórmula da espiral, e não no próprio movimento: o fim da espiral não é seu inicio, mas sim um ponto com características semelhantes ao inicio da curva, porém já desenvolvido em um outro aspecto, seja no tempo, em certa interação ou evolução. São como guias cíclicas de certo processo contínuo ou evolutivo (COURI, 2005, p. 3).

Isso posto, o movimento de looping da câmera se caracterizava por um

movimento de giro de 180o ou de até 360o no plano frontal, ao redor do eixo sagital,

se considerar a GoPro da seguinte forma:

77

“Tounneau (roll): rotação ao redor do eixo longitudinal.” Disponível em: < http://aeromagia.net/2012/12/07/acrobacia-aerea-campeonato/> Último acesso: 11 de junho de 2015. O eixo longitudinal do avião corresponde ao eixo sagital do piloto, sendo os eixos da GoPro os mesmos do piloto, pois são considerados a partir da posição dos olhos humanos e da lente da câmera, se aproxima desta manobra em relação ao piloto e não ao avião.

92

Figura 22: Esquema ilustrativo para demonstrar o giro realizado pela GoPro no eixo sagital, que constitui o movimento de looping.

Ao rotar 180o, a câmera invertia a posição do piso e do teto em relação à linha

do horizonte no frame da imagem. Ao realizar essa inversão, a GoPro ofereceu aos

corpos videodançantes um novo espaço de criação, onde se pode dançar com os

pés no “teto” e também ao processo o desafio de investigar em nosso espaço físico

cotidiano o tipo de movimentação potente para esse espaço digital particular. Como

os corpos do bailarino, bailarino/videasta e da câmera se relacionam e videodançam

nesse ambiente invertido? É possível realizar estas inversões no corpo do bailarino

que dança para e com a câmera? Baseado nessas questões, o Experimento

Looping foi elaborado e proposto.

Voltando um pouco no tempo, em 1951, no filme Royal Wedding78 na

coreografia da música You're All The World to Me, Fred Astaire79 literalmente

dançava pelas paredes e pelo teto, quebrando com a força da gravidade. A cena foi

gravada em tomada única. Para criar a ilusão de que Astaire era capaz de vencer a

força da gravidade, o cenário foi construído dentro de uma enorme gaiola de aço

78

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=z0GgQKEQchA>. Último acesso em: 21 de maio de 2014. 79

Considerado um dos melhores bailarinos de sapateado, Fred Astaire, além de bailarino foi um dos coreógrafos pioneiro dos grandes musicais americanos. Entre 1933 e 1957, criou 150 números de dança.

93

com engrenagens que o possibilitava girar 360°80. A câmera estava acoplada a essa

gaiola, que rotava junto com o cenário. Portanto, a câmera não mudava seu ângulo

ou perspectiva em relação ao cenário, mas ambos giravam conjuntamente, na

mesma direção e eixo. Havia uma grande responsabilidade sobre o bailarino para

desenvolver a técnica e preparo corporal necessário para dançar num espaço em

movimento.

Figura 23: Frame retirado do vídeo explicativo do mecanismo utilizado na filmagem da coreografia You're All The World to Me do musical Royal Wedding (1951)

81.

Na figura acima, a gaiola na qual estavam fixados o cenário e a câmera está

representada pelo círculo e este, por sua vez, fazia rotar toda estrutura enquanto o

bailarino dançava gerenciando, com seu preciosismo técnico, o chão que se movia,

girando sob seus pés. Tanto a coreografia de Astaire como o Experimento Looping

propõe uma rotação da câmera, inclusive no mesmo eixo. Entretanto, diferente da

intenção de dar a sensação de não estar sobre o efeito da gravidade, esta pesquisa

interessa-se em investigar, justamente esta cena, onde, visivelmente, o chão passa

a ser o teto e vice-versa. Não há uma alteração real na orientação do espaço físico,

como no cenário de Astaire, apenas na orientação da GoPro, consequentemente, na

sua imagem. No musical, tanto o cenário, quanto a câmera, giram juntas e no

mesmo sentido, já no Experimento Looping, o lugar é fixo e quem gira é a câmera.

80

A descrição e explicação de como foi realizada a cena, que apesar de não ter sido registrada, foi remontada pelo próprio diretor do filme, Stanley Donen, para o clip da música de Lionel Richie, Dancing on the Ceiling, em 1986. Disponível em: <http://www.bigfott.com/Astaire_Unwound.html>. Último acesso em: 21 de maio de 2014. 81

Fonte: <http://youtu.be/i0g3g6AvLtM> Último acesso: 23 de julho 2014.

94

Sendo assim, o trabalho corporal de Fred Astaire era para não evidenciar a rotação

do cenário, por outro lado, a pesquisa corporal do Douglas e da Fernanda era para

explorar as potencialidades dos encontros e desencontros entre as voltas do

equipamento, e, por conseguinte, do espaço digital e as inversões dos corpos dos

bailarinos.

A pesquisa de movimento dos bailarinos tinha como proposta explorar as

possibilidades de inversões da relação do alinhamento entre a cabeça e o cóccix. Ao

contrário da GoPro, estas inversões não precisavam acontecer apenas no eixo

sagital, mas em todos os eixos e planos, dinamicamente. Buscava-se, desse modo,

diferentes pontos de apoio no solo, não apenas pés, pernas e quadris, mas mãos,

antebraços, cabeça, ombros e etc.

Figura 24: Frame retirado vídeo da coreoedição gravado com a GoPro no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014) (à esquerda) em comparação com a imagem da coluna no

mesmo movimento de parada de mãos (à direita), demonstrando a inversão de relação entre cabeça e cóccix.

82

O procedimento utilizado para este experimento seguiu a mesma linha do

anterior, “Dos pés a cabeça”. Começou com uma investigação individual de

movimento, separadamente da câmera. Em seguida, buscou-se estabelecer uma

relação entre os loopings da câmera e as inversões do corpo dos bailarinos, através

da estratégia base83 referida anteriormente, isto é, realizar células de movimento

isoladas, assistir as imagens gravadas, refinar o movimento. Todavia, observou-se

que as inversões dos bailarinos e os giros da GoPro, realizados pelo

82

Fonte da imagem à direita: <olavosaldanha.wordpress.com>. Disponível em: <https://olavosaldanha.wordpress.com/atraves-do-corpo-humano/> Último acesso em: 11 de junho de 2015. 83

Ver página 81-82.

95

bailarino/videasta, estavam “desconectados”, não aguçava quem estava assistindo a

tentar acompanhar o movimento. O efeito alcançado em alguns momentos do

improviso anterior não estava acontecendo.

Dessa forma, decidiu-se por voltar ao improviso semiestruturado, que tinha

como baliza todos os conceitos mencionados acima, porém com a liberdade para

extrapolá-los. A partir das imagens obtidas, notou-se que os loopings realizados

bruscamente, sem a preocupação de procurar uma sintonia com o fraseamento do

movimento do bailarino que estava sendo gravado, bem como o distanciamento

espacial entre bailarino/videasta e o bailarino, não favoreciam o efeito buscado.

Mostrou-se muito mais interessante para este processo, tanto em termos visuais, ou

seja, a imagem gravada, quanto corporais, a aproximação dos corpos

videodançantes e o cuidado com a harmonia entre as dinâmicas do movimento dos

bailarinos e da câmera. Optou-se em buscar os elos entre o movimento do corpo

humano e o da máquina, principalmente quanto ao tempo e o caminho do

movimento, e não evidenciar o que o equipamento podia fazer e que o corpo

humano não tinha como acompanhar e vice-versa.

Figura 25: Frames retirados do vídeo da coreoedição, gravada com a câmera GoPro no Mezanino da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (2014), demonstrando as inversões no alinhamento cabeça-

cóccix em relação aos loopings realizados pela câmera.

96

O trabalho corporal desenvolvido pelo bailarino/videasta consistia na criação

da trajetória da câmera em conjunto com a consciência do seu próprio corpo e gesto

ao dançar com o equipamento, elaborando e conectando, simultânea e

coreograficamente, o espaço físico e o digital, além de estar atento para

percepcionar o movimento e a dinâmica das inversões proposta pelo outro bailarino.

A técnica corporal mais presente na realização deste experimento, bem como para a

formalização da videodança, no que se refere à coreografia do bailarino, foi a

circense, possível de ser observada nos equilíbrios, nas paradas de mão e de

cabeça. A dança contemporânea, de forma geral, mostrou-se presente em seus

valores e ferramentas com as alavancas, os pontos de apoio e expirais. Ambos já

possuíam experiência formativa nesta área, como se evidenciou.

Novamente, foi possível destacar a tendência da Fernanda em movimentos

mais angulares, com equilíbrios, pausas e mudanças repentinas de dinâmicas. Ao

mesmo tempo, viu-se a tendência do Douglas por movimentos mais ininterruptos,

fluídos, com espirais e ondulações. Ao final do experimento, os materiais gravados

escolhidos, para dar continuidade à criação, foram os dois planos-sequência do

improviso semiestruturado: um do Douglas como bailarino/videasta e da Fernanda

como bailarina e o outro da Fernanda como bailarina/videasta e o Douglas como

bailarino.

3.2.3 Coreografar editando, editar coreografando

Como foi apontada no decorrer deste memorial, a chave principal desta

pesquisa e experimentação foi fazer da ação de dançar e de gravar algo

significativamente novo, singular e emergente para os participantes: o ato de

videodançar. Reverberando a partir da escolha de colocar o bailarino também no

papel de videasta, surgiu o desejo de diminuir o máximo possível a utilização dos

softwares de edição de imagem, na montagem da coreografia a ser exibida na

videodança. O intuito era fazer, também, com que a ação de coreografar, com base

nos saberes e nas vivências advindas da dança, se relacionasse com a ação de

editar, igualmente carregada dos conhecimentos e das experiências do audiovisual,

dando vazão a novas possibilidades de criação, que se solidificam no “entre”. Desta

97

empreitada, surgiram dois procedimentos que nomeei de “coreoedição” e

“endoedição”.

A coreoedição consistiu na primeira etapa desta fusão. A partir dos dois planos-

sequência gravados no improviso do experimento anterior, eu, enquanto coreógrafa

e, mesmo que não profissionalmente, editora de vídeo, selecionei trechos e os

organizei em duas sequências de imagem, recortando e colando-as. A primeira

sequência tratava-se do Douglas como bailarino/videasta e da Fernanda como

bailarina; já a segunda era a Fernanda como bailarina/videasta e o Douglas como

bailarino. Ou seja, trata-se do que o audiovisual caracteriza como montagem e o que

a dança entende como composição coreográfica.

A montagem em termos técnicos do audiovisual “trata-se de colar uns após os

outros, em uma ordem determinada, fragmentos de filme, os planos, cujo

comprimento foi igualmente determinado de antemão” (AUMONT & MARIE, 2012, p.

195). Estes segmentos recortados e colados devem ser arranjados conforme um

ritmo, e este, por sua vez, advêm de uma narrativa, das sensações e dos efeitos

buscados e expostos no roteiro, no caso do cinema. Na composição coreográfica

algo similar ocorre, principalmente, no que diz respeito à dança contemporânea.

Frases de movimento, a princípio, desconectadas e até mesmo divergentes, são

integradas no corpo dançante por um nexo84, que como já foi abordado

anteriormente, não precisa ter um significado além do próprio movimento. Karen

Pearlman (2012) se propõe em seu artigo, “A edição como coreografia”, a traçar um

paralelo entre a coreografia e a edição, utilizando as definições de “composição”,

“arranjo” e “regência”, trazidas da música. Em sua escrita, a autora aproxima o

trabalho do editor, sobretudo para o que se entende como arranjar do que compor:

O compositor cria a música e seus ritmos, ao passo que um editor não inventa exatamente alguma coisa. Ele arranja os ritmos da mesma maneira que alguém monta um arranjo de flores: sem criar as flores ou, nesse caso, as sequências, mas escolhendo as seleções, a ordem e a duração delas (PEARLMAN, 2012, p. 220).

Pode se compreender a coreoedição, também como um arranjo, pois a

“matéria-prima”, os vídeos, foram criados e gravados pelos bailarinos. Eu, enquanto

coreoeditora, apenas os escolhi e os arranjei em determinada ordem. Entretanto, a

seleção das partes que comporiam o plano, bem como a ordem com que foram

84

Ver página 72-73.

98

organizadas seguia um nexo. Tinha-se como critério de escolha o potencial que o

movimento da câmera e, por conseguinte, da imagem de apreender a minha

atenção, como espectadora, fazendo-me acompanhar com meu próprio corpo o

movimento de looping da câmera. Inclusive a vertigem era uma das sensações,

estesias, que se queria alcançar para a videodança. Esta ideia encontra-se,

também, na fala do bailarino Douglas, até mesmo como algo que contamina outros

trabalhos do artista, como expõe: “Então esse jogo de pontos de vista, por mais que

a plateia não vá se mover, a gente tá pensando a peça e os espaços e os motivos

coreográficos e a maneira de executá-los, já jogando com esse elemento foco, né”

(JUNG, 2014, informação verbal).

Figura 26: Frame retirado do vídeo do Making Of, demonstrando o trabalho de endoedição realizado a partir das imagens visualizadas no preview fornecido pelo aplicativo da GoPro instalado em meu

celular (2014). Crédito: Lícia Arosteguy.

No entanto, isto não era o suficiente para que estes vídeos tivessem um ritmo

singular e se tornassem uma videodança harmônica e coerente. Os cortes entre um

segmento do vídeo e outro para coreoedição eram secos, ou seja, “[...] a passagem

de um plano para outro era feita por uma simples colagem, sem que fosse marcado

por um efeito de ritmo ou por uma trucagem” (AUMONT & MARIE, 2012, p. 66). Era

preciso coreografar o fraseamento envolvido na criação do movimento para que a

qualidade de deslizar da câmera em loopings vertiginosos surgisse. Mas decidiu-se

que os elementos de tempo, fluxo e espaço do movimento presentes no frame

seriam editados no corpo dos bailarinos, em um procedimento que se nomeou

99

“endoedição”. Nesse sentido, a escolha da ordem dos segmentos selecionados para

montagem na coreoedição foi o mais aleatório possível, pois o interesse era

justamente estimular e desafiar os integrantes a resolverem os cortes secos,

corporalmente.

A expressão “endoedição”85 foi elaborada utilizando o prefixo “endo”, que vem

do grego “éndon” e que exprime a noção de “dentro”, pois a intenção era pontuar

que o trabalho realizado pela edição seria feito dentro da matriz de onde se criou o

vídeo em primeiro lugar: os corpos do bailarino/videasta e do bailarino, em relação

com a GoPro. Para tanto, o procedimento se estruturou da seguinte maneira: os

bailarinos retomaram a movimentação criada durante o improviso do Experimento

looping e que foi coreoeditada em dois vídeos separados. Isto foi feito olhando o

material e “reproduzindo-o”, tanto a movimentação do bailarino/videasta, como a

movimentação do bailarino.

É importante lembrar que este trabalho de resgatar as movimentações

geradas por improviso e que, inclusive, não são mais as mesmas, pois já sofreram

transformações na coreoedição, foram realizadas pelos corpos videodançantes

através do olhar da câmera, que possui um enquadramento e uma dinâmica própria,

a qual não é a mesma do espaço físico. Nesse sentido, foi desafiador para os

bailarinos, que tinha uma memória videográfica, mas não de um olhar externo à

ação, mas imerso no movimento e em movimento. Não se tratava de um vídeo de

registro, mas uma resultante da própria coreografia em si. E para acessar os

movimentos, foi preciso que a Fernanda e o Douglas acessassem, também, à

memória corporal desenvolvida durante todo o processo, no aprendizado das

distâncias, dos tempos, na forma de segurar e manipular o equipamento, na

construção dos enquadramentos e trajetórias da GoPro.

Mesmo assim, algumas coisas não foram possíveis de ser retomadas, como

relata Fernanda:

Por exemplo, aquela hora que o Doug faz a vela, né, que nunca mais consegui encontrar aquele melhor ângulo. Mas como que eu vou dar foco nisso, mas pensando no meu corpo ao mesmo tempo? Aí que eu acho que foi esse foi esse o maior problema: de eu não encontrar onde tava o meu corpo no melhor ângulo da câmera, ou eu estar com o melhor ângulo da câmera, mas eu bater com meu joelho no chão, porque não tô cuidando, ou

85

De certa forma, a escolha do termo “endoedição”, principalmente a referência do prefixo “endo”, vem da minha vivência como aluna de graduação do curso de ciências biológicas da UFRGS, onde tal termo era amplamente utilizado.

100

estar meio torta assim, ou virar a mão e daí daqui a pouco não consigo mais virar a câmera (BOFF, 2014, informação verbal).

Os cortes secos foram “editados” corporalmente também. Cada

bailarino/videasta e bailarino criaram movimentos de ligação que integrassem os

segmentos soltos em um plano-sequência coerente e dinâmico. Através da

“estratégia base” (realizar o movimento, assistir ao preview da imagem gravada,

refinar e propor modificações ao movimento) criou-se o fraseamento. Foi muito mais

a dinâmica construída durante este “loop espiral”, da estratégia base, integrando os

trechos cortados em uma só coreografia, do que a forma dos movimentos escolhidos

para unir cada segmento da coreoedição. Pois como aponta Gil (2013),

experimentar ou ensaiar se trata muito mais de encontrar um fluxo de movimento do

que de formas ou figuras:

O que é experimentar, “ensaiar”? É chegar a um ponto de “coordenação física” tais que “a energia” passa “naturalmente”. Trata-se de fluxos de movimentos mais que de formas ou de figuras (como no ballet). Ensaiando uma sequência de movimento e verificando que a energia passa, o bailarino encontra-se diante de múltiplas possibilidades de outros movimentos. Ensaia de novo, e escolhe, e assim sucessivamente, criando, criando um fluxo de energia. As formas compõem-se pouco a pouco, e pesam sem dúvida na escolha das sequências; mas não são determinantes, pelo contrário, dependem do destino que o bailarino quer dar à energia, criando núcleos intensivos ou atenuando o seu impulso, acelerando a velocidade, modulando a força do movimento (GIL, 2013, p.64).

Na entrevista da Fernanda reincide a sua preocupação em ter tido mais

tempo para pensar, elaborar o movimento, agora na ligação entre os cortes:

[...] e daí fiquei pensando: “ah, mas eu podia ter mudado tem umas coisas ali que tão truncadas, que eu não consigo. Por quê? Porque não tive tempo de pensar mais, porque eu fiz as costuras entre um movimento e outro, né, da coreoedição, eu fiz de forma simples, quem sabe eu não poderia, nanana”, mas que, com a relação com a câmera, eu não sei se eu mudaria (BOFF, 2014, informação verbal).

Mais tempo de processo, certamente, teria colaborado para um número maior

de possibilidades a serem escolhidas. No entanto, é a preocupação pela criação “de

forma simples” que me chama atenção. Noto que este questionamento se aplica

muito enquanto bailarina, ao corpo dançante, do que em relação com a câmera, ao

corpo videodançante. Acredito que se justifique no fato de que a GoPro muda o

movimento dançado, através do fraseamento dado para a sua trajetória, pois como

afirma Brown (1968, p. 22 apud LOUPPE, 2012, p. 116), “mudem o tempo e o

101

espaço, e o próprio movimento mudará”. Somado ao entendimento lançado por Gil

(2013, p. 64), anteriormente, de que as formas pensam na escolha da sequência,

mas dependem diretamente do destino que o bailarino deseja dar a energia.

Foi a partir destes dois procedimentos que se chegou a um plano-sequência,

em que se coreografou, inclusive, a transferência da câmera da Fernanda para o

Douglas. Este material, somado ao plano-sequência criado a partir do Experimento

III, constituem a base da videodança gravada oficialmente, no dia 16 de novembro

de 2014, no Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF) .

3.2.4 A gravação final

A produção final e a própria videodança não caracterizam o centro desta

análise. Mesmo assim, apontam para questões discutidas e levadas em

consideração no e do processo. É um resultado que demonstra conquistas e novas

demandas, possibilidades, ou até mesmo falhas que poderiam e podem continuar a

serem trabalhadas, nesta retroalimentação contínua e constante. É nesse sentido

que serão abordadas as etapas envolvidas na gravação e na montagem da

videodança como produto final.

3.2.4.1 A decupagem

A palavra “decupagem” é um termo original do audiovisual e que se refere aos

primeiro estágio de elaboração do filme no papel, baseado no roteiro, servindo de

referência para a equipe técnica (AUMONT & MARIE, 2012, p. 71). Como descreve

o Dicionário Teórico e Crítico de Cinema (Ibid., p. 71), “ela designa, então, de

modo mais metafórico, a estrutura do filme como seguimento de planos e de

sequências, tal como o espectador atento pode perceber”. Todo o processo de

criação desta videodança foi conduzido com o intuito de reduzir ao máximo a

utilização de recurso de edição, para que se tentasse resolver tudo que fosse

possível corporalmente. Por esta razão, e também pelo fato de não se tratar de um

roteiro, com uma narrativa ou trama a ser contada, a decupagem do Experimento

102

Looping se ateve a organizar os planos-sequência já coreografados e formalizados e

elaborar os planos de ligação entre eles. Desse modo, criou-se um fio condutor que

reuniu os fragmentos soltos, todavia, não desconexos, em uma obra.

O material formalizado foram os planos-sequência criados no decorrer do

processo: no Experimento III, “Dos pés a cabeça”, no qual a minha partitura de

movimento foi apreendida e reformulada pelos bailarinos e no Experimento Looping,

pelos procedimentos de coreoedição e endoedição. A concepção das emendas para

esses segmentos foram idealizadas antecipadamente e improvisadas no dia da

gravação final, na locação escolhida. Foi a partir dessa decupagem que

desenvolvemos a gravação final:

NOMES DOS PLANOS DESCRIÇÃO DOS PLANOS

Introdução Douglas Douglas, com a GoPro acoplada à

cabeça, apresenta o lugar a partir da sua

perspectiva. Bases para improvisação:

auto-filmagem, sombra, exploração do

lugar e do próprio corpo, caminhadas e

corridas.

Finalizar com giros contínuos com a

aceleração gradual no eixo longitudinal.

Plano-sequência 1 – Experimento III Douglas com a câmera na mão e

Fernanda posicionada e parada para

iniciar a coreografia.

Iniciar com giros contínuos com

desaceleração gradual até parar de

frente para Fernanda para iniciar a

coreografia.

Coreografia do plano-sequência 1.

Introdução Fernanda Fernanda, com a GoPro acoplada à

cabeça, apresenta o lugar a partir da sua

perspectiva. Bases para improvisação:

103

sombra, exploração do lugar e do próprio

corpo, caminhadas e corridas.

Finalizar com giros contínuos com a

aceleração gradual no eixo longitudinal.

Plano-sequência 2 –

Experimento Looping

Fernanda com a câmera na mão e

Douglas posicionado e parado para

iniciar a coreografia.

Fernanda inicia com giros contínuos com

desaceleração gradual até parar de

frente para o Douglas para iniciar a

coreografia.

Coreografia do Plano-sequência 2.

Fechamento Julia com a câmera na mão.

Câmera se afasta e enquadrar os dois

bailarinos e desliza para além deles.

Figura 27: Tabela da decupagem que serviu como guia para o dia da gravação final.

3.2.4.2 Os Lugares da experiência

Como foi pontuado no início deste memorial, há que se diferenciar lugar de

espaço. O espaço foi abordado de forma intensa até o presente momento, pois se

trata da construção do movimento em si, de cada bailarino e em consonância com a

proposta da pesquisa. No decorrer dos experimentos foi se observando, também, a

importância do lugar, da arquitetura, na criação da videodança. Mais do que apenas

em função puramente visual, como uma moldura para a dança, o lugar potencializou

os efeitos buscados pelos looping, ou seja, a vertigem, a oposição entre terra e céu.

Houve um entrelaçamento e contaminação entre a topologia do lugar e o espaço

construído pelos corpos videodançantes, como aponta Douglas:

Teve uma vez que eu lembro, que a gente comentou que a dança que tava aparecendo e as imagens tava aparecendo eram super arquitetônicas, lá na Usina. Eu acho que, isso aconteceu, e aí eu acho que foi naquele mesmo ensaio que a gente resolveu abrir a estrutura e improvisar e prestar mais

104

atenção no espaço. E daí, dalí foi uma avalanche de ideias novas que escorreram pra dentro do trabalho (JUNG, 2014, informação verbal).

O momento relatado pelo bailarino diz respeito ao primeiro improviso

realizado no Mezanino da Usina do Gasômetro, durante o Experimento III. Devido à

amplitude de sua estrutura, com o teto muito alto e suas estruturas metálicas e

geométricas, a diferença entre o chão e o teto ficaram bem demarcadas no

movimento de looping. A partir de então, começou-se uma pesquisa por possíveis

lugares que fossem altos e amplos, da mesma forma que o Mezanino.

Figura 28: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro durante o improviso semiestruturado do Experimento III (2014).

Com isso, ao invés de teto, surgiu a ideia de céu. Tratava-se de um lugar

aberto de fato. A primeira possibilidade pensada foi o próprio terraço da Usina do

Gasômetro, pois havia um laço forte e afetivo da pesquisa com a Usina, já que tudo

havia sido construído neste ambiente até aquela etapa. No entanto, por questões de

reforma que o terraço estava passando na época, não foi possível a utilização deste

local.

Foi então que se cogitou o Parque da Farroupilha (Redenção). A visão do

contraste entre o verde do gramado e o azul do céu parecia cooperar para as

imagens e os efeitos desejados pelo trabalho. Entretanto, dois aspectos que não

conversavam com a proposta foram levantados: o chão e o excesso de informação

no entorno. O chão é um aspecto muitas vezes esquecido no decorrer de um

105

processo. Contudo, para o espaço e a sua organização dinâmica, criados pelos

corpos videodançante em relação à estrutura oferecida pela Sala 209 e o Mezanino

da Usina, o solo se tornou mais que apenas a superfície, mas, sim, afetivo,

convidativo a outras possibilidades criativas, conforme aponta Louppe (2012):

O solo não é somente uma superfície de deslocamento funcional. Na dança moderna e contemporânea, o solo tem um papel ao memso tempo orgânico e filosófico; tem o papel afectivo já mencionado. Como diz Iréne Hultman, o solo <<é o nosso primeiro aliado contra a gravidade... Contudo, exerce também uma função cognitiva, inclusive como interface entre a força da gravidade e a experiência do corpo. Por seu turno, Kajo Tsuboi afirma nas suas aulas que é possível <<dançar, ou seja, dialogar com o centro da terra>>. A dança contemporânea não dança no solo, dança com ele (LOUPPE, 2012, p. 203).

Nesse sentido, o solo pode modificar a relação desenvolvida com a gravidade

e, consequentemente, na organização corporal de peso, fluxo, espaço e tempo. A

irregularidade, a sujeira, a umidade da grama impossibilitaram muitos fraseamentos

e conquistas do processo, das quais não se queria abrir mão.

Outro aspecto importante ressaltado são as informações capturadas pela

câmera ao redor da ação coreográfica. Preocupou-se em não incorporar para a

videodança tantas simbolizações e significações presentes tanto no lugar, quanto

em cada transeunte capturado pela GoPro, pois se trata de um dos parques mais

tradicionais e frequentados de Porto Alegre. Entendeu-se, desse modo, que o

trabalho pedia por locais mais “limpos”, geométricos, arquitetônicos, retomando as

informações que, em primeiro lugar, haviam chamado a atenção no Mezanino.

106

Figura 29: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no Parque Farroupilha, em Porto Alegre (2014).

Dessa maneira, iniciou-se uma busca por terraços, para que o contraste entre

a arquitetura da cidade e o céu limpo e azul ficasse bem evidente. A busca por um

terraço alto o suficiente para o efeito desejado e que fosse acessível foi muito difícil.

Foi perguntando entre os conhecidos que descobrimos o terraço da Juliana Werner,

uma amiga do círculo da dança, que morava em um prédio de vinte andares na

Avenida Cristóvão Colombo. Começamos o encontro às 9h30min e terminamos às

11h30min. Foram combinadas, previamente, que as roupas deveriam ser de cores

neutras, entretanto, observou-se que a composição de cores da imagem acabou

fincada com os tons muito similares.

Figura 30: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial da Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).

107

Acredito que nesta locação criamos uma variação do material construído até

então, uma videodança independente enquanto obra, mas que para este contexto é

parte de um projeto maior, pois, ao final do encontro, ainda restavam desejos das

sensações não alcançadas tanto na imagem como no corpo. Neste momento do

processo eu ainda ensaiava a coreografia referente ao Experimento III, do qual

participei da exploração como corpo videodançante. Foi após este dia que resolvi

passar a minha parte para o Douglas e a Fernanda e ficar apenas como proponente

da pesquisa.

Devido ao entendimento conquistado pelas vivências no Mezanino e no

Parque Farroupilha, de que o lugar é uma importante fonte de exploração e

reelaboração coreográfica e que deve ser absorvido e utilizado pela pesquisa, optou-

se por iniciar o encontro com uma improvisação nos mesmos moldes da realizada no

Mezanino, como forma de reconhecer este novo território e suas potencialidades. Os

bailarinos podiam ou não resgatar trechos das coreografias formalizadas até então.

De fato, a partir disso houve “uma avalanche de ideias novas que escorreram pra

dentro do trabalho” (JUNG, 2014, informação verbal). Após o improviso, os planos-

sequências já estruturados começaram a ser desmembrados e os jogos de

composição, ou seja, novos arranjos começaram a ser experimentados.

No decorrer da manhã, o sol foi mudando de posição. A sombra, não apenas

do bailarino/videasta, mas da própria câmera, começou a ser projetada no chão.

Este elemento foi incorporado ao trabalho, pois era muito interessante para a obra

que o corpo videodançante emergente da relação entre a GoPro e o

bailarino/videasta obtivesse seu momento de protagonismo na própria imagem

gravada. Esta mesma referência será vista na gravação final da videodança.

108

Figura 31: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial da Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).

O que não estava sendo levado em consideração eram os parapeitos altos

dos terraços de prédios residenciais. Todas as movimentações realizadas no chão

perdiam completamente o efeito, pois se tratava de uma caixa de concreto onde o

céu aparecia com dificuldade. Mesmo assim, os recortes que a caixa cinza do

terraço fazia no céu eram muito interessantes, porém em um dos lados havia uma

parede e um varal de roupas que impedia que a câmera desse um giro completo no

eixo longitudinal, percorrendo 360º de céu aberto. Para que a videodança

caminhasse na direção pretendida para o trabalho, evidenciando céu e terra,

naquele local, seria necessário o uso de edições e cortes mais elaborados, pois a

execução da gravação em plano-sequência deixaria evidentes estas informações do

próprio lugar e para isso. As possibilidades era ricas, todavia a ideia da imagem

perseguida nos direcionava para outro lugar.

109

Figura 32: Frames retirados do vídeo gravado com a GoPro no decorrer do encontro realizado no terraço residencial da Juliana Werner, em Porto Alegre (2014).

A partir deste dia, decidi retornar ao trabalho elaborado em dois planos-

sequências, e, mesmo apreciando todas as conquistas de composição e criação

realizadas no terraço da Juliana Werner, dar prioridade para o objetivo estabelecido

no início da pesquisa, de utilizar o mínimo possível os softwares de edição de vídeo

e todas as suas poderosas ferramentas de manipulação da imagem. Não saberia

dizer se para a videodança (enquanto produto) tenha sido a escolha mais rica, mas

enquanto pesquisa, pareceu ser a mais coerente.

Foi pelo incômodo gerado pelos parapeitos do terraço que se chegou a ideia

de utilizar um heliporto. Após muitas dificuldades em encontrar um heliporto que

estivesse disponível para este tipo de utilização, o projeto foi muito bem acolhido

pelo Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF). Este prédio, além de estar

localizado entre o centro histórico de Porto Alegre e o lago Guaíba, é um cartão

postal de referência da cidade. Se o processo se interessava pela arquitetura e

pelos recortes urbanos, sem que houvesse um parapeito bloqueando as

movimentações de solo, este era o lugar.

110

Figura 33: Foto do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), em Porto alegre.86

Todavia, tínhamos um limite de tempo cedido para a utilização do heliporto,

das 14h às 17h e a Fernanda teria que sair às 16h, somando 2h de gravação. A

decupagem foi executada com rigor no dia e os momentos de improviso foram

pontuais e curtos. Não foi possível repetir muitas vezes as coreografias dos planos-

sequência. Foram realizadas duas gravações de cada segmento. Junto com a

questão tempo, surgiram outros obstáculos a serem superados e que influenciaram

sobremaneira no material gravado.

O clima. Para a gravação, o dia não poderia estar mais adequado:

Céu azul e sem nuvens: as nuvens fazem com que o sensor

automático da câmera se confunda quanto à quantidade de luz

ofertada. Se uma nuvem obstrui a luminosidade solar, isto pode

causar momentos de frames escuros ou excessivamente claros

quando desobstruído, prejudicando a imagem capturada. Além

disso, o céu azul era o que se procurava para dar contraste com a

cidade.

Sol ainda alto, porém não acima da cabeça dos bailarinos: o sol do

meio-dia, que se posiciona bem acima das cabeças, acaba

86

Fonte da imagem: site oficial da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Regional do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.seplag.rs.gov.br/conteudo/1938/governo-altera-horario-dos-servicos-publicos-nesta-4%EF%BF%BD-feira-para-desafogar-transito-> Último acesso em: 11 de junho de 2015.

111

formando sombras no rosto dos bailarinos, abaixo dos olhos e

cabeça, dando um aspecto sombrio às pessoas.

Figura 34: Frame retirado do vídeo gravado com a GoPro durante a gravação final, realizada no heliporto do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), em Porto Alegre (2014).

No entanto, para os bailarinos o clima não era o mais adequado. Por não

haver nuvens, o sol os atingia de forma intensa e ininterrupta. Sendo ainda

necessário ressaltar que o topo do prédio de mais de vinte andares, já havia

recebido todo o sol da manhã. Foi providenciado protetor solar e água, além de

pausas fundamentais, o que diminuiu ainda mais o tempo de exploração do lugar.

O solo. Novamente a questão do solo, que está ligada diretamente em como

o lugar pode influenciar uma obra, aparece. Como a coreografia havia sido criada e

ensaiada em locais com piso liso e próprio para deslizamentos, configurou-se uma

grande disponibilidade para movimentações no solo. Mais que isso, durante o

Experimento Looping, incentivaram-se diferentes tipos de apoios no chão (braços,

cabeça, ombros e etc.), pelas investigações de inversões da relação entre a cabeça

e o cóccix. Com isso, os lugares que mais informam sobre o processo seriam a sala

209 e o Mezanino da Usina das Artes, como pontua o Douglas:

Eu acho que uma coisa que faz diferença é pensar que, como a gente trabalhou mais tempo na Usina do Gasômetro, na 209, e também mais tempo no mezanino da Usina, talvez o trabalho tenha sido informado muito mais por esses dois lugares de uma permanência, do que pela Redenção e pelo terraço da Ju (JUNG, 2014, informação verbal).

112

Para que o heliporto do CAFF informasse tanto quanto a Usina, seria preciso

tempo de trabalho, reconhecimento, apropriação e incorporação. Em vista da

impossibilidade desta opção, restou reconhecer a necessidade de mais vivência no

heliporto e se dar uma última tarefa:

Aí, pra concluir, eu acho que, no espaço de gravação, na locação final, a gente também começou a descobrir coisas diferentes e maneiras diferentes de dar, ver o trabalho e de fazer ele se apresentar no espaço, que talvez valesse a pena ter experienciado mais de uma vez. Pra que essa informação do espaço aparecesse de uma maneira talvez mais potente, tanto pro corpo, quanto pra câmera, mas também foi legal passar pela experiência de chegar com o trabalho, que tem já as suas particularidades, e se dar a tarefa de adaptar ele imediatamente pra um espaço diferente, com outra altura, com toda uma noção diferente de segurança, de espaço, de atmosfera, de temperatura, de ponto de vista lá de cima, a vista que se tem lá de cima, a relação que se tem lá de cima com o entorno é bem diferente de fazer a mesma coreografia fechada numa sala de ensaio. Então, como é que tu projeta foco e presença num lugar que não tem parede e a próxima coisa que tu vê tá a quilômetros de distância de ti, é totalmente diferente (JUNG, 2014, informação verbal).

O lugar pode afetar emocional e corporalmente os corpos videodançante. No

primeiro momento que subimos no terraço, a Fernanda se deparou com um desafio,

o medo de dançar e um lugar tão alto e, aparentemente, sem proteção. Ainda mais,

em se tratando de movimentos de inversão, que, facilmente, desestabilizam o ponto

de referência do bailarino. Sobre esta experiência a bailarina relata:

Não é com relação ao processo, em relação ao processo, pra mim, foi totalmente positivo. Com relação à minha pessoa, foi negativa a questão da altura, porque eu tenho medo e eu me vi numa situação até constrangedora, tipo: “Julia, eu não tô conseguindo fazer”, sabe, tipo: “não tô conseguindo, e agora? E agora?”. Mas aí tu já me veio com uma solução: “fecha o olho”, aí já melhorou. E aí depois também, eu percebi que quando eu enxergava o Doug, a primeira vez que eu tentei fazer a parada de cabeça, o Doug não tava comigo, me filmando, eu olhei pro nada, assim, não consegui. Daí, depois que ele tava me filmando, eu tinha ele como referência, então conseguia ficar com o olho aberto (BOFF, 2014, informação verbal).

Juntamente com a influência emocional da altura, a colaboradora ainda falou

sobre sua fragilidade física em relação ao solo quente e áspero. O medo de se

machucar tornou o solo um elemento não convidativo e de difícil “vínculo afetivo”

para a movimentação e isto modificou as durações (tempo), a receptividade do peso

nos apoios no solo e, consequentemente, o fluxo e o espaço. No entanto, o que a

Fernanda não considera parte do processo, eu, no papel de pesquisadora e

proponente, vejo como “o processo”, pois o movimento aparece contaminado pelo

sujeito, de seus medos, desejos, desinteresses e interesses. Decidi oferecer opções

113

para verificar se seria possível, se o medo da altura se tratava de uma questão de

tempo e adaptação ou se realmente seria o caso de cancelar a gravação. Contudo,

em nenhum momento tive a intenção de ir além dos limites de cada um deles. Como

a Fernanda foi se mostrando cada vez mais confortável em se movimentar,

colocando o Douglas como um ponto de referência em meio ao vasto horizonte, dei

continuidade a gravação, com as pausas necessárias.

Em outra parte da entrevista, a bailarina apontou que se sentiu decepcionada

por não conseguir bloquear o medo. Enquanto observadora, vejo que ela conseguiu,

sim, ultrapassar seus medos, pois a gravação ocorreu dentro das possibilidades de

todo o contexto e circunstâncias, ao ponto de não ter percebido que esta questão

tinha abalado-a de forma mais contundente, pois todos estavam muito interessados

e curiosos para ver o resultado do trabalho naquele espaço.

Sendo assim, a videodança é o resultado de toda vivência individual e

coletiva. De forma geral, na opinião dos dois bailarinos a “peregrinação” pelas

locações contribuiu e nutriu o trabalho, pois todo grupo estava atento, disponível e

sensível às influências externas e como elas transformam os corpos e o movimento,

como demonstra a fala de ambos os participantes:

Eu acho que modificou e enriqueceu, né. Porque daí, de novo, se a câmera e o corpo geram uma especificidade juntos, em cada um dos espaços essa especificidade vai se apresentar de uma maneira diferente. Então eu acho que o produto final foi informado por cada um desses lugares (JUNG, 2014, informação verbal).

Eu vejo... Eu não vejo de forma negativa essa peregrinação, acho que até a gente podia ter experimentado outros lugares, se a gente conseguisse, né. Tinha uma ideia de fazer na areia, na praia e tal. Eu acho que isso enriqueceu o trabalho, poder ver como é que a coisa toda funciona e com mais uma influência, né, que é a influência do espaço, né, a influência do ambiente, do tamanho, da temperatura, da... Da relação com as outras pessoas que tão passando ou não, sei lá, de tu ter uma grade, de tu não ter uma grade, de tu ter uma parede, antes não ter uma parede, enfim. E de perceber o tanto, no momento da experimentação, né, de como que isso influencia e como que influencia no resultado depois da... Pensando na gravação em si, né, eu acho que isso enriqueceu, tipo, bah, tá, isso aqui tem que ter um espaço amplo, espaço amplo funciona muito (BOFF, 2014, informação verbal).

Outro consenso foi a necessidade de fazer este novo lugar do heliporto fluir.

Descobrir os horários, as posições, os apoios ideais, dentre muitos outros elementos

que interferem nas especificidades da câmera e dos bailarinos e deixá-los “respirar”

junto com a coreografia. O que foi impossível de abarcar dentro das limitações das

114

agendas do CAFF, dos bailarinos e da própria pesquisa. Apenas este elemento do

processo já daria uma investigação diferente e complexa.

3.2.4.3 A montagem

Como foi proposta desde o início do processo, a montagem tratou de unir os

planos-sequência e suas emendas, na ordem estabelecida na decupagem, e utilizar

o mínimo possível os efeitos de edição, como recortar, sobrepor, retroceder a

imagem, dentre tantos outros. Os giros realizados pelo bailarino/videasta, no eixo

longitudinal, foram a solução corporal encontrada para que os cortes entre os planos

não fossem secos e as emendas não ficassem tão evidentes. A montagem resultou

na seguinte estrutura:

Figura 35: Esquema demonstando a organização das sequências gravadas em uma montagem, especificando o tempo de cada inserção.

Como não havia o intuito de utilizar a edição através dos softwares de

imagem como ferramenta declarada de criação coreográfica, como acontece

tradicionalmente, as ferramentas de edição utilizadas foram:

a) O efeito de transição de vídeo chamado Dip to White, que faz com que a

imagem fique progressivamente branca. O primeiro foi aplicado na

115

introdução da Fernanda (00;02;57;04) e o outro no final do fechamento

(00;08;13;20), como pode ser visto na videodança presente no anexo E.

Para mim, o fio condutor do Experimento Looping se tornou uma metáfora da

própria relação entre câmera e bailarinos/videasta explorada no decorrer dos

experimentos e procedimentos. Nos planos introdutórios, os bailarinos estão com a

GoPro acoplada ao seu próprio corpo, na cabeça e na altura dos olhos, o que

retoma, de certo modo, as possibilidades vivenciadas no Experimento IV, “Corpo

Cyborg”. Desse modo, a câmera se encontrava sujeita à subjetividade de cada

bailarino. Em seguida, passando para as mãos, em um descolamento pelos giros,

atingindo uma relação de troca e não de adição entre o bailarino/videasta e a

câmera. Este caminho foi trilhado tanto pelo Douglas, como pela Fernanda. E no

momento final, há um descolamento entre GoPro e bailarinos, assim, deslizando, ela

se projeta para além dos dois. A apresentação do heliporto pelo ponto de vista de

cada bailarino, enquanto a câmera se encontra acoplada ao corpo, também remonta

como o lugar era visto, e, de certa forma, sentido por cada um. Fator que foi

deflagrado ao longo do processo como valioso. Estas foram algumas ideias que me

motivaram a estruturar o trabalho da forma como está. Não há com isso o interesse

de que se torne um enredo ou história a ser vinculada à videodança, pois como já foi

dito anteriormente, a ação de videodançar é a essência desta obra, sem temas ou

significações externas ao ato. Todavia, o “apetite semiotizante” (FÈBVRE, 1995

apud DANTAS, 2014, p.1) que se carrega, me fez elucubrar sobre tais associações

e significações como poesia, não como roteiro ou tradução do movimento.

116

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi potente observar, no decorrer de todo o processo, a assimilação e as

contribuições dos bailarinos tanto frente às técnicas criadas e aprendidas, quanto às

ideias e recortes envolvidos pesquisa, dentro deste transito livre e intenso de ações,

reações e relações entre os corpos videodançantes. O conhecimento incorporado

pelos participantes se deu na vivência, nas experimentações, nas repetições que se

mostravam carregadas de apelativo para percepção visual. Todavia, no ir e vir entre

a imagem do vídeo e a ação de videodançar, os bailarinos souberam como criar

uma ponte entre suas percepções cinestesicas, valiosas para o universo da dança, e

os feedbacks fornecidos pelo preview das imagens do vídeo. Ao editar

coreografando e coreografar editando, através dos procedimentos de coreoedição e

endoedição, os participantes incorporaram na sua forma de dançar, tanto em termos

de trajetória e forma, quanto em expressividade e fraseamento, especificidades do

universo do audiovisual, o que demandou um refinamento de sua percepção e

execução do movimento no que diz respeito ao espaço, tempo, fluxo e peso em

relação ao manuseio da GoPro, durante a coreografia.

Neste sentido, considero finalmente que o looping no desenvolver da

pesquisa acabou por desempenhar um papel central, não apenas porque diz

respeito às voltas que a câmera dá e que compõem o trabalho, mas pela dinâmica

de “loop espiral” que o próprio processo assumiu. Ou seja, a “fórmula” encontrada

para desvendar o trabalho e potencializar a relação entre os corpos videodançantes

se estruturou durante as ações cíclicas de fazer, assistir e fazer novamente, em um

movimento de constante transformação e elaboração; pois, conforme Couri (2005, p.

3), “o fim da espiral não é seu início, mas sim um ponto com características

semelhantes ao início da curva, porém já desenvolvido em outro aspecto, seja no

tempo, em certa interação ou evolução”.

Nesse sentido, a gravação final se tornou algo representativo, como um

marco que aponta para a demarcação de um limite estabelecido por esta pesquisa,

com suas possibilidades de tempo, recursos e escolha do seu recorte de análise.

Pois o espiral formado pelo processo poderia e pode continuar sendo percorrido

infinitamente, a partir das imagens gravadas no heliporto do CAFF. E como

popularmente se diz, “um trabalho de mestrado não se termina, e sim se abandona”,

117

porque se reconhece que a prática artística, bem como uma investigação acadêmica

é inesgotável se em cada volta desse espiral se propuser um novo ponto de vista

para o olhar observador ou criador.

Este memorial demonstrou uma possibilidade criativa para a relação entre

bailarinos e câmera, fundindo as ações de gravar e coreografar, através de

diferentes procedimentos, com suas tarefas e estratégias. Com isto, fica latente a

consciência das inúmeras potencialidades que foram, inevitavelmente, sendo

abandonadas no caminho. Ao mesmo tempo, insurgem desejos de continuidades,

que extrapolam os limites temporais desta pesquisa, como: os cortes feitos, a partir

da obstrução da lente da câmera com alguma parte do corpo, levando a um

“blackout corporal”, que não foram aprofundados; a exploração da câmera acoplada

como parte/extensão do corpo dos bailarinos; o contato corporal entre bailarino,

bailarino/videasta e câmera, indo para uma investigação no campo do contato

improvisação, talvez; a exploração do peso livre, com quedas dos corpos e da

câmera; a criação de uma nova estrutura metálica para o equipamento que possa

permitir o afastamento entre o bailarino/videasta e a câmera; dirigir-se para o

caminho da performance, com as videoinstalações; analisar o processo a partir da

recepção dos espectadores, quanto às percepções corporais das imagens

visualizadas; dentre muitas outras ideias que surgiram, também, por parte dos

bailarinos colaboradores. E, porventura, estas ideias seminais tenham continuidade

em outros contextos de investigação, tanto na minha trajetória, como no caminho

trilhado pelo Douglas e pela Fernanda, uma vez que as incorporações desta

pesquisa partem com eles, para se multiplicarem em outros corpos e estudos.

Outra questão importante foi a escolha de não utilizar a edição de imagem, no

ambiente digital, como forma de manipulação e transformação das imagens para a

criação da videodança. A manipulação das imagens nos softwares de edição é uma

característica marcante nos trabalhos de videoarte. No entanto, no Experimento

Looping, optou-se por abrir mão desta possibilidade para que se pudesse observar

mais atentamente o quanto seria possível alterar e dar dinâmica à imagem no

ambiente digital apenas pelo trabalho corporal dos bailarinos em relação com a

câmera, pelo trabalho de elaboração dos fatores de peso, fluxo, tempo e espaço. Se

considerarmos as imagens de todo o processo, principalmente nas gravações no

Mezanino, poderíamos afirmar que é possível imprimir uma dinâmica na imagem

118

apenas pelo trabalho corporal do bailarino, do bailarino/videasta e da câmera.

Todavia, a gravação final, no heliporto do CAFF, não constitui a melhor versão,

quanto ao fraseamento, mas visualmente demonstrou se aproximar mais da ideia

desejada, pelos motivos anteriormente abordados. Nesse sentido, a utilização das

ferramentas de edição poderia contribuir para alcançar as sensações intentadas,

mas seria coerente?

Isso nos leva a colocar em questionamento até que ponto a gravação final

constitui o resultado de todo processo do Experimento Looping. Fica o sentimento

de que se trata, sobretudo, de um início do que de um final. Pois é apresentado aos

corpos videodançantes um novo fator de influência, desconhecido até então, que é o

heliporto do CAFF, com todo um universo de elementos para contribuir. Observo que

em cada local percorrido, o Mezanino, o Parque Farroupilha, o terraço e o heliporto,

são variações dessa formalização coreográfica criada na sala 209. Não se trata de

uma trajetória linear de construção, como blocos colocados uns após os outros. Se

mostra mais como emergências que podem ser vistas isoladamente, mas que fazem

parte de algo maior e que tem ligação nos corpos videodançantes. Contudo,

entende-se a gravação e a edição final como “emoldurar um fragmento de caos”,

como escreveram Gilles Deleuze e Félix Guattari (1991 apud, LOUPPE, 2012, p.

221): “A arte emoldura um fragmento de caos para formar um caos composto que se

torna então sensível.”

119

5. REFERÊNCIAS

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Entrevistas – Fontes de informação verbal

BOFF, Fernanda Bertoncello. Informação verbal. Porto Alegre, 2014.

Entrevista realizada em 27/11/2014, na Casa Cultural Tony Petzhold. JUNG, Douglas. Informação verbal. Porto Alegre, 2014. Entrevista realizada em 27/11/2014, na Casa Cultural Tony Petzhold.

124

ANEXO A – DIÁRIO DE PROCESSO

Experimento I - Deriva

28 de janeiro de 2014

Local: Sala 209 da Usina do Gasômetro

Mesmo que os bailarinos e eu já tivéssemos uma relação próxima fora do

contexto da pesquisa, para iniciar o trabalho foi preciso promover o envolvimento e o

entrosamento com a proposta, para assim começar a explorar a movimentação

pretendida. As vivências prévias dos bailarinos na área da videodança e seu

entrosamento de outros trabalhos contribuíram muito para iniciarmos em um

contexto mais maduro e sólido. Em uma conversa inicial, esclareci como seria

conduzido o processo, abordando tanto os elementos práticos (calendário, horário e

local), quanto conceitual, explanando sobre minhas referências e questões voltadas

aos corpos videodançantes e a GoPro.

A prática deste experimento dividiu-se em quatro momentos:

a) Caminhar | Correr | Saltar

Para Dominique Dupuy (1990, p. 31-33 apud LOUPPE, 2012, p. 70) “o corpo

se sujeita a uma situação próxima do vazio; ele é previamente construído e colocado

no seu lugar. Encontra-se uma espécie de ausência, de silêncio de onde tudo pode

surgir”. Laurence Louppe (2012, p. 70-71) dá continuidade a ideia afirmando que

“toda investigação sobre o corpo requer esse silêncio meditativo e concentrado, em

que o sujeito do corpo parte à procura de si – do outro em si ou de si no outro”. Em

concordância com estas concepções, iniciei todo o trabalho de investigação e

criação do movimento em busca deste “silêncio de onde tudo pode surgir” e para

mim o silêncio nada tem a ver com a imobilidade. Portanto, foi através das ações de

correr, saltar e correr que escolhi começar a trabalhar a percepção cinestésica do

corpo, colocando atenção nas transferências de peso, que é tão elementar para

qualquer movimento, na relação com a gravidade, que se mostra no peso e fluxo, ou

seja, na intensidade de musculatura envolvida para oferecer resistência ou não à

gravidade, os pontos de apoio dos pés, o mais frequente contato do corpo com o

125

solo. Pois, conforme Rudolf Laban (1978, p. 48-49), um dos grandes responsável

por estudar e estruturar um sistema de análise do movimento (no qual me baseei

para o exercício), para além do movimento observado, existe um labirinto de

combinações que demonstram sua complexidade:

Cada fase do movimento, cada mínima transferência de peso, cada simples gesto de qualquer parte do corpo revela uma aspecto de nossa vida interior. Cada um dos movimentos se origina de uma excitação interna dos nervos, provocada tanto por uma impressão sensorial imediata quanto por uma complexa cadeia de impressões sensoriais previamente experimentadas e arquivadas na memória. Essa excitação tem por resultado o esforço interno, voluntário ou involuntário, ou impulso para o movimento (LABAN, 1978, p. 48-49).

É claro que a proposta, aqui, não tinha o intuito de mergulhar em um exame

sistemático das ações envolvidas no caminhar, correr e pular, mas de fornecer

parâmetros aos bailarinos para a construção de uma consciência do próprio corpo e

do outro antes de entrar em contato com a câmera, para que eles possam

acompanhar, atentamente, as transformações que emergem dos diferentes estados

corporais.

b) Stop | Play | Acelera | Desacelera | Retrocede

Após a sensibilização promovida pelas ações de caminhar, correr e saltar

propôs-se dar continuidade com um exercício que consistia em um dos bailarinos

improvisava sua movimentação livremente, enquanto os outros participantes,

incluindo eu, poderiam orienta-lo através das ordens: play (sempre que quiser dar

início ao improviso livre), pause (para que o bailarino busque a imobilidade), acelera

e desacelera (para que o movimento seja realizado em velocidade rápida ou lenta) e

retrocede (o bailarino terá que executar o movimento que acabou de improvisar ao

reverso, até onde sua memória permitir ou o mais próximo do trajeto anterior). Foi

interessante poder ver as características do improviso de cada um. O Douglas tinha

tendência a trazer movimentos espiralados, com um encadeamento mais continuo

entre as partes do corpo, como reverberações, já a Fernanda demonstrava uma

movimentação mais segmentada, com angulações das articulações e com um tempo

mais acelerado.

Para buscar um primeiro contato e diálogo entre câmera (GoPro) e bailarinos,

propus um experimento, ao qual dei o nome de Deriva. Inicialmente, realizamos um

jogo para aquecimento, já buscando referências da linguagem do vídeo e do

equipamento. O jogo consistia em um dos bailarinos dançar livremente, porém

126

atento aos comandos que os que estavam de fora iam fornecendo. Os comandos

eram: play, pause, rebobina, acelerado e câmera lenta. Através desses comandos

era possível "editar" corporalmente o movimento.

O experimento em específico consistia na seguinte tarefa: um dos bailarinos

percorreu um trajeto, à sua escolha, pela Usina do Gasômetro, enquanto o outro o

seguia, registrando a seu modo com a câmera. Foram levantadas possibilidades

antes da realização do exercício de formas possíveis para o registro, como: simular

a caminhada do colega em primeira pessoa, selecionar partes específicas do corpo

para seguir durante o trajeto, correr, circundar e etc. O intuito principal deste

experimento era explorar o funcionamento da câmera e do seu suporte, seu peso, o

centro de gravidade do corpo que porta a câmera, como o meu movimento reverbera

na qualidade da imagem produzida pela câmera, a distância focal que a lente da

GoPro grava e ainda, explorar as possibilidades de criação que podem surgir,

mesmo que em uma simples caminhada.

Como a GoPro não possui visor para que se possa ver em tempo real o que

está sendo gravado, após a realização da tarefa cada bailarino descreveu através da

escrita de um roteiro, o que acreditava ter gravado com o "olho" da câmera enquanto

a guiava. Mesmo sem ver de fato, através de uma memória corporal muscular e

ocular, os bailarinos tinham a noção de como alcançar os enquadramentos

desejados. As únicas dificuldades ao comparar os escritos e os vídeos foi o fato do

ângulo de visão da câmera ser ultra-amplo, isto é, enquadrava praticamente todo

espaço. Para os bailarinos gravarem um detalhe fechado da mão era preciso

aproximar muito o aparelho do membro em questão, sendo assim, em alguns

momentos se pensava estar focando apenas uma parte quando na realidade o

enquadramento era bem mais amplo.

Descrição feita pela bailarina Fernanda Boff a partir do registro do trajeto

percorrido pelo bailarino Douglas Jung:

1. Descendo as escadas: tentativa de movimentar a câmera para cima e para

baixo no mesmo ritmo dos passos.

2. Moldura: afastado, perto e em outro ângulo; mover a câmera rapidamente.

127

3. Labirinto pique-esconde: entre as paredes e portas, jogo de “perseguir”,

perder e procurar.

4. Deitado no banco: tempo desacelerado, filmando no nível do banco, depois

foco na mão.

5. Janela/porta de vidro: troca de lugar.

No geral: pausas, deixar o Doug87 passar e depois buscá-lo, virar a câmera de

cabeça para baixo; mudanças de velocidade tentando deixar a câmera estável ou

instável.

Descrição feita pelo Douglas a partir do registro do trajeto percorrido pela

Fernanda:

1- início no labirinto. Atrás da Fê88, porém não muito aberto.

2 - Entrada no saguão. Muito aberto e foi fechando conforme avançou e parou na

coluna de concreto.

3 - Jogo de espaços ao redor da segunda coluna, corpo inteiro (com pequenos

cortes?).

4 - Entrada atrás dos fornos. Meio corpo de novo.

5 - Corrida plano aberto e distante dela.

6 - Câmera entra no próximo espaço com outra luz. Fê chega e entra na "chaminé".

Câmera de baixo para cima.

7 - Fê sai primeiro, desaparece ao redor das escadas.

8 - Câmera enquadra ela pela grade. Pausa.

9 - Câmera vai até ela.

10 - Passa dela bem de perto.

11 - Obstrui o caminho mais perto ainda.

87

Abreviação do nome do bailarino Doulgas Jung, dado pela bailarina Fernanda Boff. 88

Abreviação do nome da bailarina Fernanda Boff, dado pelo bailarino Douglas Jung.

128

12 - Entra no mezanino 360º. Corrida plano aberto.

13 - Dedo, rosto, ombro - fechado.

14 - Elevador todo corpo.

Experimento II – Duplo Controle

30 de janeiro de 2014

Sala 209 da Usina do Gasômetro

Depois de concretizado este primeiro contato com o equipamento em

movimento, senti a necessidade de desenvolver um trabalho que permitisse

triangular o relacionamento entre os próprios bailarinos e a câmera. Observei que

assim, a presença do equipamento dentro dos exercícios de improvisação se

tornava mais fluido. Para isso elaborei o segundo experimento, o qual chamei de

Duplo Controle. Este experimento teve como referência o exercício um exercício que

realizei ainda no curso tecnólogo em dança, que foi proposto pelo coreógrafo Diego

Mac.

Iniciamos o trabalho com uma tarefa de manipulação, que consistiu em um

bailarino conduzir o outro pela sala, explorando níveis e dinâmicas diferentes de

movimento. Através de um sinal, no caso um aperto no ombro, dava-se o comando

para que o bailarino conduzido abrisse e fechasse os olhos. Sendo assim, o

condutor manipulava a movimentação e o conduzido "gravava" com os seus olhos.

Após os dois bailarinos experimentarem as tarefas de conduzir e ser conduzido, foi

inserido a câmera. O bailarino no papel de conduzido portava a Gopro e tinha a

liberdade de direcioná-la, porém não tinha o controle de sua movimentação corporal

e começava com os olhos fechados, abrindo-os apenas nos últimos momentos do

exercício; o bailarino condutor tinha o controle remoto da câmera que o permitia

escolher quais momentos seriam gravados, ao mesmo tempo em que manipulava o

colega, mas não tinha o controle direto do direcionamento da câmera.

129

Ao dividir os comandos da câmera entre os dois bailarinos, meu intuito era de

explorar as resoluções e diálogos possíveis no relacionamento complexo entre o

meu movimento, o da câmera e o do outro bailarino, e como reverbera e interfere na

imagem capturada, além da seleção, de certa forma, aleatória do que registrar. O

fato de a câmera ser operada pelos dois ao mesmo tempo exigia dos bailarinos uma

trabalho conjunto, envolvimento e atenção.

O resultado das imagens como um todo não apresentaram um valor estético

muito grande. Os olhos fechados do condutor da câmera acabaram fazendo com

que houvesse muito registro de espaços vazios. Sendo assim levanto a importância

da relação entre o "olho" da câmera e o olho do bailarino, podemos dizer que

passamos a visualizar o espaço e criar o movimento, a partir do que o equipamento

é capaz de gravar?

Durante a primeira tarefa, tratamos o olho do bailarino como a estrutura de

uma câmera, com seu diafragma89 regulável por onde a luz entra e as pálpebras

como a “cortina” do obturador90, que abre e fecha, foi possível explorar as diferentes

possibilidades do olho. Em um momento específico, enquanto o Douglas estava no

comando e a Fernanda ocupava o papel de câmera, ele dava o sinal de play e

pause repetidas vezes de forma acelerada, fazendo com que ela começasse a

piscar. Após o exercício tentamos traçar um paralelo com o equipamento e

entendemos que o piscar traz a ideia da fotografia, que possui um disparo, para

abertura e fechamento do obturador e que o vídeo nada mais é que uma sequência

de fotos, os frames, no caso da GoPro, 30 frames por segundo, sendo que o olho

humano consegue piscar apenas 5 vezes em um segundo.

Outro aspecto importante levantado após a tarefa foram as distâncias focais

que o olho humano consegue percorrer instantânea e automaticamente. No caso da

câmera, a cada foto é possível selecionar um foco específico e leva-se tempo para

esses ajustes. O olho percorre o espaço mudando as distâncias focais rapidamente,

o que torna difícil a tarefa de escolher o foco e realizar um "zoom".

Mesmo que as imagens deste experimento não cheguem a contribuir

efetivamente na produção da videodança, foi de extrema importância traçar estes

89

Diafragma fotográfico é o dispositivo que regula o tamanho da abertura do orifício por onde a luz entra na câmera, portanto é um dos reguladores da oferta luminosa que compõe a imagem. 90

Dispositivo das câmeras que abre e fecha mecanicamente permitindo ou não a entrada da luz. Funciona como uma cortina.

130

paralelos entre a câmera e o olho humano. Assim, caminhamos e afinamos nosso

relacionamento com o equipamento, vendo onde nos aproximamos, nos

reconhecemos e onde nos afastamos, nos estranhamos.

Além destas tarefas, experimentamos possibilidades de rolamentos,

caminhadas, corridas e saltos na busca por repertório de movimentos e acomodação

do equipamento ao corpo.

Experimento III – Dos pés a Cabeça

04 de fevereiro de 2014

Sala 209 da Usina do Gasômetro

Visando mais a composição de movimento para a câmera e bailarinos, surgiu

o experimento que chamei de Dos pés à cabeça. Ele se desenvolveu em dois

encontros.

A tarefa realizada neste experimento consistia em cada um dos bailarinos

criarem cinco movimentos para ir do nível alto para o baixo, inicialmente sem a

câmera. Posteriormente, o bailarino com a câmera, que irei chamar de

bailarino/videasta para melhorar o entendimento da proposta, tinha que criar uma

movimentação para seguir e registrar duas partes do corpo do outro bailarino

durante a realização dos cinco movimentos dele. Era possível escolher duas partes

do corpo e criar a movimentação separadamente e depois juntá-las em uma só,

escolhendo o que mais funcionou ou escolher as duas partes do corpo e criar a

sequência, alternando de uma vez só. Neste primeiro encontro foram criadas as

sequências de movimento das seguintes duplas: Douglas (bailarino/videasta) e

Fernanda (bailarina), Julia (bailarino/videasta) e Douglas (bailarino), Fernanda

(bailarino/videasta) e Julia (bailarina). Todos experimentaram todos os papéis.

A exploração e criação seguiram a seguinte dinâmica: cada bailarino/videasta

experimentava a movimentação, assistíamos ao vídeo, reelaborávamos ângulos e

enquadramentos e repetíamos, até atingir alguma proposta satisfatória. Neste

laboratório ficaram mais claras ainda as dificuldades e benefícios da GoPro não ter

visor. A memória para realização dos enquadramentos acontece por relações

131

espaciais e sensoriais do corpo, dois elementos fundamentais para a dança. Ou

seja, a memorização do caminho da câmera para alcançar a imagem desejada se dá

pelo movimento e pela relação espacial entre os dois bailarinos e a câmera. Talvez

prejudique no sentido de tornar mais trabalhosa a composição dos quadros e a

exploração das possibilidades, mas torna a relação entre corpo e máquina mais

íntima, pautada tanto em princípios vindos da dança, bem como do vídeo.

06 de fevereiro de 2014

Sala 209 e Mezanino da Usina do Gasômetro

No início do segundo encontro do experimento Dos pés a cabeça surgiu uma

questão durante a conversa inicial, a respeito do desejo de continuar desenvolvendo

algumas ideias que haviam surgido desde o início dos experimentos e que se

mostravam potentes questões de pesquisa de movimento e o desejo de uma

liberdade maior para experimentação das questões propostas, não tão codificadas

como os exercícios a serem cumpridos. Eu fui a primeira a demonstrar, como

proponente do projeto, meu desejo por seguir minha intuição quanto à mudança na

metodologia e tive um reforço positivo dos bailarinos.

Começamos pegando as sequências isoladas e conectamos uma na outra,

pensando no transito da câmera da mão de um bailarino para o outro. Exploramos

diferentes formas e escolhemos a seguinte ordem de bailarino/videastas: Douglas,

que está gravando a movimentação da Fernanda, passa a GoPro para mim, que

gravo a movimentação do Douglas, e posteriormente passa o equipamento para

Fernanda, que agora irá gravar a minha movimentação. Como se trata de uma

sequência gravada sem cortes, resolvemos a presença do terceiro bailarino que não

está envolvido na movimentação gravada a cada dupla, com corridas e a

possibilidade de desaparecer do quadro se colocando atrás do bailarino/videasta da

vez.

Após todo esse trabalho de conexão das cenas, na tentativa de realizar uma

transição de um processo mais metódico para algo com um grau maior de liberdade,

mas ainda sem muita reflexão ou elaboração, realizamos um improviso. Este

132

improviso não foi livre, mas semiestruturado e tinha a seguinte proposta: iniciar com

a sequência, sem cortes, dos cinco movimentos criados anteriormente, ao terminá-la

começar um improviso onde era possível modificar a ordem das sequências e das

duplas, pegar emprestado a movimentação de outro bailarino, brincar com as

corridas propostas como resolução para o terceiro bailarino e etc. Esta parte foi

realizada no espaço do mezanino também da Usina do Gasômetro, por ser mais alto

e ter mais espaço.

A partir deste improviso, várias ideias brotaram, dentre elas evidencio como

promissoras: as inversões de câmera de cabeça pra baixo, em relação aos

bailarinos que também invertiam a relação cabeça – cóccix; as corridas em relação

aos giros com a câmera – a GoPro gira em uma direção enquanto o bailarino corre

em um círculo no sentido inverso; passagens de câmera da mão de um bailarino

para o outro fazendo com que o público perca a referência de quem está com o

equipamento.

Experimento IV – Corpo Cyborg

11 de fevereiro de 2014

Sala 209 da Usina do Gasômetro

Este experimento propôs três tarefas: pesquisar movimentos de auto

filmagem, ainda utilizando a estrutura de suporte da Gopro e as possibilidades com

a câmera acoplada no peito e no ombro. Neste encontro trabalhei apenas com a

Fernanda, por questões de disponibilidade de horários. No decorrer da

experimentação, o que mais chamou atenção foi a criação de um novo corpo,

"alienígena". As deformações anatômicas, devido ao acoplamento da câmera,

causou estranhamento na bailarina, que se mostrou desconfortável de se ver no

vídeo, eram os braços desconectados, pernas muito prolongadas e os contornos do

rosto desproporcionais que apontavam que no vídeo não se tratava mais da

Fernanda, mas dela em simbiose com a câmera.

133

A partir dessa reflexão, começamos a tentar agregar a esse corpo alienígena

outro corpo, o meu. Tentamos trabalhar no sentido de construir um Frankentein91,

mas que em determinado momento abrisse ao publico a independência das partes

que o compõe, instigando o espectador a tentar desvendar suas partes.

Reunião

14 de fevereiro de 2014

Minha casa

Essa reunião foi marcada para que pudéssemos assistir a todo o material

gravado com mais calma e qualidade de imagem, expor questionamentos e

percepções do trabalho e discutir sobre como conduzir o processo a partir disso. Vi a

necessidade desta conversa principalmente pela questão metodológica levantada no

último encontro.

Começamos o encontro assistindo aos vídeos e a partir deles reconhecemos

que cada experimento era uma célula de criação em si. Na Deriva, podíamos

continuar trabalhando para substituir a caminhada simples pelo movimento dançado,

mas manter o motivo criativo percorrendo um trajeto pela cidade; no Duplo controle,

foi levantada a necessidade de repensar os olhos fechados, deixar a gravação sem

cortes e trabalhar o contato entre os bailarinos e câmera, propondo espaços

pequenos, claustrofóbicos; a partir do Dos pés à cabeça, surgiu a ideia de trabalhar

com a inversão da orientação da câmera, brincando com o espaço, onde em um

momento chão e teto invertem as posições, bem como os bailarinos podem brincar

com a relação cabeça – cóccix, jogando e dialogando com o espaço contido na

moldura de cada frame da gravação e ao mesmo tempo trabalhar as transições de

câmera entre os bailarinos em diferentes espaços; e mesmo que embrionariamente,

o experimento IV trouxe a possibilidade de um motivo de pesquisa de movimento a

partir do corpo “deformado”, alienígena, onde mãos e braços de indivíduos

91

"O temor a este corpo oco podendo ser causado pelo desenvolvimento da tecnologia e da ciência, condição que levaria à criação de um Ser-monstro, tem como ícone maior a obra de Frankenstein, de Mary Shelley" (SATANA, 2006, p. 17).

134

diferentes compõe um novo corpo que videodança, causando confusão para o

espectador.

Não havendo tempo hábil para possibilitar um aprofundamento do processo e

da reflexão, foi preciso fazer escolhas, dentre tantas possibilidades de criação e de

temas para discussão, principalmente por se tratar de uma área ainda tão fértil de

possibilidade e ainda pouco explorada. Para dar continuidade ao processo foi

escolhido o experimento III - Dos pés a cabeça como o motivo criativo que mais

dialoga com os interesses e referências mais presente no momento, pois é o que

mais instiga uma correlação entre os bailarinos e a câmera.

Experimento V – Experimento Looping

21 de fevereiro de 2014

Mezanino da Usina do Gasômetro

Como resolvido na reunião, começamos a aprofundar o Experimento III como

metodologia para continuar a pesquisa. Optamos pelo improviso semiestruturado,

isto é, trabalhamos com improviso, tendo como base para a exploração as inversões

de orientação da câmera dialogando com as inversões de orientação na relação

cabeça - cóccix do corpo dos bailarinos, o que chamamos de Experimento Looping.

A improvisação se mostrou interessante por "obrigar" o contato e a relação direta

entre os bailarinos e entre os mesmos e a GoPro.

Começamos brincando especificamente com as paradas de mão

dessincronizadas com a inversão da câmera, testamos planos fechados e abertos.

Depois deixei livre para que os bailarinos experimentassem diferentes formas de

inversões de apoios, por exemplo, apoio dos pés para as mãos, dos joelhos para

cabeça, dos quadris para os ombros e etc., enquanto eu manipulava a câmera,

experimentando diferentes qualidades para o movimento de inversão, por exemplo,

de forma brusca, turbulenta, sugerindo o mesmo balanço dos corpos dos bailarinos,

de forma lenta e continua, no sentido contrário à inversão dos bailarinos e etc.

Após assistir o material, surgiu a questão sobre o porquê algumas inversões

nos faziam acompanhar corporalmente o movimento contido na imagem que

135

assistíamos, nos deixando até mesmo nauseado, enquanto outras causavam um

distanciamento, uma desconexão com o movimento. Dentre as questões levantadas

estava o tempo e o caminho do movimento da câmera ser possível ao corpo

humano, como se deixasse o espectador em uma espécie de “primeira pessoa”.

Sendo assim, pedi para que os dois bailarinos tentassem encontrar esse tempo e

caminhos para a câmera, pois senti necessidade de parar para observar as imagens

e os corpos em movimento.

Ficou claro ao assistir que além do tempo e do caminho, outro elemento muito

importante para o looping era a proximidade entre câmera e bailarino. De certa

forma, nas primeiras explorações a câmera e os bailarinos se mostravam frios ao

diálogo, cada um tinha sua tarefa e podiam executá-la sem necessariamente ter que

se relacionar, neste primeiro momento a câmera se mostrava mais dominadora e

impositiva no jogo com as inversões e os bailarinos mais exibicionista em relação a

ela. No momento em que há essa aproximação, quando não se isola as tarefas de

cada um, começa a haver uma troca pra construção do looping, tanto bailarino

quanto câmera, cedem tempo e espaço para a criação do caminho do looping.

A partir dos vídeos desse encontro irei editar um novo vídeo com um plano-

sequência composto a partir dos momentos e movimentos interessantes e que mais

contribuem para o trabalho, colocando-os em uma ordem coreográfica. A esse

procedimento dei o nome de Coreoedição. Esse vídeo servirá de material para o

trabalho dos outros encontros e assim progressivamente.

Procedimento de composição I & II

Coreoedição & Endoedição

07, 21 e 28 de março de 2014

Sala 209 da Usina do Gasômetro

Casa dos Estudantes Universitários da UFRGS

No decorrer destes três encontros se trabalhou a partir da coreoedição feita a

partir dos vídeos do Experimento Looping. A coreoedição foi feita da seguinte forma:

136

assisti aos vídeos e fiz uma seleção, tendo como critério a sintonia do

relacionamento bailarino - câmera e os loopings que mais proporcionaram esta visão

em primeira pessoa para o espectador. Após escolher os fragmentos, organizei-os

em uma sequência coreográfica, porém fiz questão de não trabalhar a transição de

um fragmento para outro através dos efeitos de edição no computador, deixei os

cortes secos para que as transições fossem trabalhadas no corpo. Por se tratar de

uma edição feita dentro da “matriz”, ou seja, a partir dos corpos videodançantes,

nomeei esse processo de Endoedição.

O processo de resgatar as relações traçadas entre bailarino - câmera -

espaço foi muito rico para levantar questões. Dentre elas evidencio: o acúmulo de

papéis que a câmera passou a ter, como bailarina, aparato tecnológico audiovisual e

potencializador da presença do espectador. A câmera emoldura o espaço em

frames, o que a princípio pode trazer a sensação de engessamento, porém acredito

que mais do que delimitar o frame, nesse trabalho, a GoPro dinamiza esse espaço,

o preenche com movimento. A câmera, a máquina, desenvolve e provoca uma

sinestesia, o espectador não apenas assiste aos looping, como também se envolve

corporalmente com eles, perseguimos com a cabeça o movimento realizado pelo

bailarino-câmera. Resgatar tanto da memória visual, quanto da muscular, tátil, o

movimento e sua relação com o espaço foi trabalhoso, cansativo e demandou tempo

e reflexão. A Fernanda relatou que na maioria das vezes era mais fácil remontar a

sequência e acessar a movimentação pensando nas imagens do vídeo do que na

movimentação corporal dançada em si. A afirmação nos levou a questionar até que

ponto estava-se de fato pensando no movimento enquanto bailarinos e videastas,

simultaneamente, ou ainda há uma grande dominação do visual em detrimento da

vivência corporal como um todo. É visto que imprimimos uma movimentação em

diálogo com a câmera, mas quais as qualidades que damos à movimentação do

nosso corpo quando estamos no comando da GoPro? Esquecemos o corpo

videodançante e apenas nos tornamos videastas?

137

Procedimento de composição III

Endoedição - Cortes

14 e 16 de abril de 2014

Casa Cultural Tony Petzhold

Após os encontros para remontar a coreodição, iniciamos o trabalho de

construir cortes dentro da própria movimentação. Os cortes consistiam em tampar

com alguma parte do corpo a lente da câmera. A tentativa era de reproduzir o corte

dos programas editores de vídeo de forma mecânica, para que a utilização dos

programas de computador se resuma a apenas para a escolha da ordem das

sequências e efeitos de cor. As primeiras tentativas acabaram não bloqueando

totalmente a entrada de luz, devido às partes do corpo escolhidas não terem boa

aderência da superfície da lente. Após observarmos as gravações, escolhemos

novamente os pontos de corte, levando em conta também os movimentos que

sucediam a abertura do quadro, o desbloqueio da lente. Percebemos que a

sensação de continuidade era maior e mais agradável se o movimento que vinha

após a desobstrução da câmera tinha mais deslocamento espacial. Movimentos

pequenos, mais internos, não passavam a sensação de continuidade, quebravam o

fluxo da coreografia. Decidiu-se então, retornar o foco para o estabelecimento de um

fraseamento em planos-sequência e não fragmentá-los mais.

Experimento VI - Espaços

03 de maio de 2014

Parque da Redenção

A primeira tentativa de locação para a gravação final foi o Parque da

Redenção, onde repassamos tudo que já havia sido montado. Verificamos que este

espaço não contribuía muito para a ideia de looping do trabalho, a oposição céu e

terra não ficava tão demarcada, além do gramado não oferecer um solo regular para

os trabalhos de equilíbrio e inversão cabeça - cóccix dos bailarinos. Outro importante

138

aspecto observado, foi a grande quantidade de informações que a Redenção tem,

poluindo a videodança com informações que não necessariamente dialogavam.

Neste dia a Lícia Arosteguy (apoio audiovisual), tirou algumas fotos do processo.

17 de maio de 2014

Terraço do prédio residencial da Juliana Werner

Com essa ideia bem marcada da inversão e a oposição de céu e terra, veio a

ideia de buscarmos lugares elevados, como terraços para experimentar ter a cidade

e o céu para jogar. Conseguimos um terraço no 22º andar, na região central da

cidade para explorar. As imagens registradas atingiram nossas expectativas.

Começamos com um improviso, pensando nas caminhadas e nas passagens de

câmera de um bailarino para outro e quando sentisse vontade retomar partes da

videodança que já estava montada. No início da manhã o céu estava nublado,

ficando difícil ver a cidade, mas no meio da manhã o céu se abriu e as sombras

formadas com o sol, colocavam o bailarino que conduzia a câmera no

enquadramento da imagem. Então exploramos essa possibilidade, jogando

espacialmente com o que já havíamos formalizado da videodança e para esse

momento, no contexto deste estudo, finalizamos o trabalho artístico. Fica a

sensação de que muito mais poderia vir e futuramente tenho certeza que

continuaremos aprofundando, em outros contextos de pesquisa e criação.

Neste momento estamos investigando possibilidades de outros terraços e

possivelmente um heliporto para gravação final da videodança, bem como os

figurinos. Ou seja, o momento é de produção da filmagem para a finalização e

refinamento do exercício como um trabalho artístico formalizado.

139

Ensaios

05 de maio de 2014

08 de maio de 2014

18 de setembro de 2014

Casa Cultural Tony Petzhold

Para que o trabalho não se perdesse entre a pausa que ocorreu do dia do

experimento no Parque Farroupilha, o Terraço do prédio residencial e o heliporto do

CAFF foram realizados ensaios. Nestes encontros foram repassados todos os

materiais já formalizados, dando foco não apenas a trajetória da câmera, mas

principalmente na manutenção do fraseamento, dinâmica, incorporada.

Foi no ensaio do dia 05, que passei minha parte no plano-sequência criando

no Experimento III – Dos pés a cabeça. A minha parte enquanto bailarina, foi

aprendida e adaptada para o corpo do bailarino Douglas, minha parte como

bailarina/videasta foi aprendida e adaptada para o corpo da bailarina/videasta

Fernanda. Assim, fechou o circuito de transito da câmera entre os dois em um plano-

sequência.

Produção Final – Gravação

16 de novembro de 2014

Mezanino da Usina do Gasômetro

Heliporto do Prédio Administrativo Fernando Ferrari (CAFF)

O dia amanheceu nublado, mas com o passar da manhã foi firmando um dia

de céu limpo, azul, sem nuvens. Na parte da manhã retomaram-se os planos-

sequências que constituíam a base da videodança. Ensaiou-se até retomar a

dinâmica proposta ao decorrer do processo, relembrando as trajetórias e fazendo os

últimos ajustes antes da gravação. Todos almoçaram e se dirigiram ao heliporto do

CAFF juntos. Lá mesmo os bailarinos se trocaram e maquiaram. Ao chegar no topo

do prédio, a primeira coisa percebida foi o chão áspero e quente, tornando-se difícil

140

o deslizamento e a intensidade da incidência solar sobre os bailarinos. Infelizmente,

o horário disponibilizado para a gravação era das 14h até as 17h, sendo que a

Fernanda teria que sair entre 16h e 16h30min. Foi o único horário em que se

conseguiu conciliar o horário dos bailarinos e do prédio. Então, resolveu-se enfrentar

o desafio. Fez-se um rápido reconhecimento do lugar, adaptaram-se os movimentos

de deslizamento, para caminhadas e rolamentos, assim como, se diminui o tempo

de permanência nas paradas e equilíbrios em apoios nas mãos, cabeça, e ombros.

Com esse contexto de tempo e características do lugar, perdeu-se muito dos

frasemantos ensaiados até então. Não que o resultado das imagens gravadas não

tenha sido bom, potente, todavia, aparece mais como o início de algo novo, a partir

do que já tínhamos estabelecido, do que uma consagração de tudo que havia sido

composto até então. Sendo assim, assume-se como obra final? Utilizam-se os

softwares de edição para tentar se aproximar da dinâmica, até então estabelecida?

Como ouvi muitas vezes da coreógrafa Bia Diamante, atuante em Porto Alegre e a

quem admiro, “o processo é soberano” (informação verbal). Nesse sentido, há que

se observar entender e assumir, cada devolução do processo a sua proposta, como

uma possibilidade de looping infinito, enquanto houver desejo de transformação e

isso não se acaba com o fim desta pesquisa.

141

ANEXO B - O equipamento

Para que seja possível dançar com a câmera é necessário uma câmera que

permita uma maior mobilidade, que não seja excessivamente pesada e que seja

resistente a impactos, para que o bailarino possa se movimentar confortavelmente,

sem ter que se preocupar em não danificar o equipamento. Pensando nestes

fatores, decidi por trabalhar com a GoPro. Tive meu primeiro contato com ela no

Laboratório de Videodança da Faculdade de Artes do Paraná (FAP).

A GoPro é uma câmera digital voltada originalmente para registrar esportes e

possui a qualidade de uma câmera profissional, com a vantagem de ser versátil. Foi

criada por Nick Woodman em 2005, através de sua empresa Woodman Labs, que

teve a ideia a partir de sua frustração por não conseguir fotos de qualidade enquanto

surfava. Inicialmente se tratava de uma câmera analógica, com filme de 35mm,

equipada com uma lente grande angular, um case para utilizar embaixo d'água, um

cabo disparador e uma alça para acoplar ao pulso.

Figura 36: Primeiro modelo GoPro Hero 35mm e seus acessórios92

Posteriormente evoluiu para o formato digital, onde começou a gravar 10

frames por segundo, de 3 Megapixel. Sua configuração atual de lente fixa com um

92

Disponível em: < http://zona55biketeam.blogspot.com.br/2012/12/reportagem-lancamento-gopro-hero3.html> Último acesso em 23 de julho de 2014.

142

ângulo de 170 graus de largura em vídeo de alta definição de 1080p. O modelo da

GoPro utilizada nesta pesquisa é a Hero 3+, Black edition, que possui qualidade de

vídeo e captura de imagem profissional, tem Wi-Fi integrado, o que permite a

visualização do que está sendo gravado e das fotos em uma aplicativo no celular e o

operar a câmera tanto pelo aplicativo, quanto pelo controle remoto que acompanha a

câmera.

Figura 37: GoPro Hero 3+ Black edition e seus acessórios93

Para a realização do Experimento IV - Corpo Cyborg foi necessário apenas as

alças que permitem acoplar a máquina ao corpo, acessórios que a própria GoPro já

produz e comercializa, porem para viabilizar o manuseio e trânsito da câmera entre

os bailarinos de forma eficiente e que favorecesse a mobilidade foi preciso construir

um suporte. A estrutura construída é circular, sem arestas para não machucar os

bailarinos e para o contato com o chão ser mais suave. Possui três alças acopladas

a uma chapa pequena de metal, onde a câmera é fixada - o acessório fixado à

chapa já veio com o kit - sendo que as alças estão direcionadas atrás da câmera,

respeitando o angulo de 170 graus de abertura da lente, para as mesmas não

invadirem o quadro da imagem captada. O material utilizado foi o metal soldado com

9mm, para garantir um certo peso e assim maior estabilidade para o deslocamento,

93

Disponível em: < http://www.preciolandia.com/br/go-pro-hero-3-black-edition-nf-na-caixa-8ridla-a.html > Último acesso em 23 de julho de 2014.

143

bem como resistência. Esse suporte e caixa de proteção da GoPro permitem

inúmeras possibilidades: ela pode ser lançada, sofrer impactos, que o bailarino

grave a si mesmo, mudanças rápidas de angulação, perspectiva, mais de um

bailarino segurá-la ao mesmo tempo e tudo isso amplia e tudo isso interfere e amplia

a mobilidade na busca desses corpos que videodançam.

Figura 38: Foto do suporte metálico projetado exclusivamente para o projeto. Crédito da foto: Julia Lüdke.

Os encontros foram registrados em vídeo, por uma segunda câmera, e as

conversas foram gravadas em arquivo de áudio, para que detalhes não se

perdessem, auxiliando na reflexão e escrita da dissertação, bem como para

acompanhar a evolução do trabalho. Para esse registro foi utilizada uma câmera

Cannon EOS T2i e a uma lente 18-55mm.

144

ANEXO C - Roteiro da entrevista semiestruturada utilizado com os bailarinos

colaboradores Fernanda Boff e Douglas Jung, após o término do processo.

Histórico dos Bailarinos

1. Quando é como sua relação com a dança teve início?

2. Quais técnicas, de forma geral, gênero de dança e professores na sua formação

corporal como bailarino você considera indispensável citar? E qual delas te

ajudaram no desenvolvimento desta pesquisa?

3. Qual sua experiência com videodança? Já havia trabalhado antes? Em que

contexto? Se sim, quais ou quem são suas referências?

4. Desenvolveu ou está desenvolvendo algum outro trabalho de criação que se

relacione/ converse com esta pesquisa?

5. Já havia tido contato com a câmera GoPro antes?! Se sim, em que contexto?

Processo Criativo

6. O que mais lhe interessou/motivou a participar desta pesquisa?

7. Como você descreveria sua relação com a câmera no decorrer do processo até o

dia da gravação final? Principalmente quanto a adaptação e refinamento da inserção

da câmera na sua movimentação, se ajudou, atrapalhou, ou seja, as dificuldades e

as facilidades de execução e de criação.

8. Como se sentiu assumindo a posição de videomaker, além do seu papel de

bailarino?

9. Quais foram suas percepções a respeito da criação do movimento em interação

com a câmera, a partir da proposta do ateliê "Dos pés à cabeça", com tarefas

definidas, em contraponto com o improviso semiestruturado do procedimento de

coreoedição?

10. Como você vê o procedimento de coreoedição em comparação com o método

de muitos coreógrafos de compor a partir da improvisação dos bailarinos?

11. Como você pensa essa transferência de lugares/locais e suas diferenças

influenciaram no trabalho, no decorrer do processo, primeiramente na Sala 209 e

mezanino da Usina das Artes (Usina do Gasômetro), depois no Parque Farroupilha

(Redenção), o terraço de um prédio residencial e para a locação final, no terraço do

Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF)?

145

ANEXO D – Áudio transcrição da entrevista semiestruturada, realizada com os

colaboradores Fernanda Bertoncello Boff e Douglas Jung após a gravação

final processo criativo.

Entrevistado: Douglas Jung

Entrevistador: Julia Lüdke

Data: 26/11/2014 – 19h35

Local: Casa Cultural Tony Petzhold - Avenida Cristóvão Colombo, 400 - Porto

Alegre, Rio Grande do Sul

Julia Lüdke – A primeira pergunta que eu queria fazer pra você é: quando e como

começou a sua relação com a dança?

Douglas Jung – Eu era bem, bem pequeno, e desde sempre, né, a família do meu

pai era mais festeira e eu via sempre todo mundo dançando, e meu pai dançava

com a minha mãe em casa, e a gente aprendia a dançar com a minha irmã. Aí, uns

anos mais tarde, ela, minha irmã, começou a fazer ballet, e a escola de ballet onde

ela fazia aula era do lado do escritório onde os meus pais trabalhavam, né. Então,

quando ela ia pra aula, eu ficava fora da escola, espiando pela janela e vendo ela

fazer aquilo, e aí, quando a gente chegava em casa, eu pedia pra ela me ensinar

aquilo que ela tinha aprendido na aula de ballet. E a gente usava uma bicicleta como

barra, varão da bicicleta como barra, e aí ela me ensinava as coisas mais básicas,

assim. Então eu devia ter o que? Uns sete, oito anos. Aí depois teve todo um

período que eu não podia fazer, que meu pai é professor de futebol, né, e eu tinha

que jogar futebol, não podia fazer ballet. Então, na adolescência, teve um período

também que a escola da minha irmã me chamou pra fazer umas coisas, e daí a

situação meio que piorou, porque né, eu já não tava mesmo mais na idade de não

entender que aquilo não era pra mim, supostamente. Então rolou toda uma proibição

e aí, com 19 anos, eu fui atrás da dança sozinho. Começou bem cedo, mas o

envolvimento mesmo com a dança foi bem tardio, já tinha 19 anos, 18 pra 19.

Julia Lüdke – Depois desse período, né, quando você começa a sua formação em

dança, quais as técnicas, de forma geral, modalidade de dança, professores,

pessoas que você considera indispensável citar na sua formação como bailarino? E

quais delas te ajudaram mais especificamente pra desenvolver esse trabalho?

146

Douglas Jung – Essa pesquisa contigo?

Julia Lüdke – Isso. De forma geral, quais que você acha que são indispensáveis

citar, pra tua composição corporal como bailarino, e qual dessas você acha que te

ajudou mais pra desenvolver essa pesquisa comigo?

Douglas Jung – Que difícil essa pergunta, porque eu passei pela mão de tanta

gente, né. Mas enfim. Eu acho que a primeira professora sempre é muito importante,

porque também depende dela a coisa de... Esse primeiro contato é muito precioso,

eu acho, né, e eu dei a sorte de cair na mão de uma pessoa muito fantástica, que é

Neusa Martinotto o nome dela. Lá em Canela, eu fazia jazz com ela, e tinha uma

outra professora, que já tinha sido formada por ela, que é a Maria Lina, que me dava

aula de tecido e circo acrobático. Então começou aí, né, essa coisa do envolvimento

mesmo começou com o jazz, com a Neusa, e com a Maria Lina, com os aéreos. Aí

depois, eu acho que a próxima revolução foi com a Lu Paludo e a Tati Rosa. Na

época do experimental, bastante coisa aconteceu, e ali que eu vi que alguma coisa

começou a ser direcionada pro lugar onde eu tô hoje, assim de entendimento de

dança, de entendimento de corpo. Aí, fora do Brasil, acho que tem dois nomes que

são bem especiais, que é a Libby Farr, que é uma professora de ballet, e também

mudou muita coisa no meu entendimento de corpo, de dança e de ballet, sobretudo.

E o Matej, que é um professor e parceiro de trabalho, que a gente compartilha

bastante coisa, assim, da visão, dos desejos e das vontades, tanto como criador,

como quanto praticante de dança, pesquisador de estúdio, pião de estúdio, como eu

gosto de chamar. Então acho que são esses, assim, essas seis pessoas, de dois em

dois.

Julia Lüdke – E pra esse trabalho tem algum desses que você citaria mais, que

mais te ajudou, mais te deu recurso, ou você acha que todos eles...

Douglas Jung – Eu acho que todos eles tão juntos, em progressão, mas os dois

últimos são, acho que, os que mais afetam esse trabalho. Tem outras coisas, né,

uma outra parte da minha pesquisa, que eu acho que informa muito mais o que eu tô

fazendo contigo do que especificamente o trabalho desse professores, mas eu

consigo ver essa relação muito, muito próxima entre uma coisa e outra, porque eu

comecei a me interessar pelo o que eu me interesso hoje muito pelo contato com

147

essas pessoas, então não dá pra isolar assim. Que é a questão dos olhos, do ponto

de vista, é... Sobre as coisas, que eu acho que interferem bastante quando a gente

tá falando do trabalho com câmera, né, com um ponto de vista externo ao corpo,

mas aí eu preciso... Pelo menos pra dentro dessa pesquisa, eu acho que eu entendi

que é: pra que certas coisas funcionem, eu como performer preciso antever o que a

câmera vai ver, então esse também requer um treinamento, uma certa prática, que

eu comecei a usar e acessar com o Matej e com a Libby, e que depois veio pra

dentro da minha prática como performer, como coreografo, como pesquisador e etc.

e tal.

Julia Lüdke – E com a videodança, qual é a sua experiência? Você já teve

experiências anteriores, trabalhos anteriores com a videodança?

Douglas Jung – Já, eu fiz dois trabalhos com o Diego Mac, um foi o “Por Baixo da

Mesa” em 2006, eu acho, no Casa Bild. Depois ele fez o “Colecionador de

Movimentos”, e aí eu doei alguns movimentos pra ele. Teve um trabalho com o

Airton Tomazzoni, que chamava “Bem Passado”, que também era videodança. Aí eu

fiz um projeto na escola, de videodança, na escola em Salzburg, em que eu fiz

roteiro, fiz direção coreográfica e fiz edição, tipo, todo o processo, do início ao fim

era com a gente, e o teu agora.

Julia Lüdke – E os que você fez aqui, antes de fazer direção e roteiro, você fez

sempre como bailarino ou participou da concepção?

Douglas Jung – Sempre como performer. Teve um, é engraçado até, porque essa

foi o único contato com o conceito e com a concepção da coisa, que também foi com

o Diego, que ele fez o videodança com pipocas, chama “Pas de Corn”. Então, o

envolvimento com isso, foi que isso eu dei a ideia de brincadeira, que na época ele

tinha comprado uma placa de vídeo nova e eu disse: “bah, agora vai fazer até

pipoca” e ele pegou essa sacada e fez um ballet com pipocas. Então esse, talvez de

todos, tenha sido o primeiro que eu me envolvi por acaso com o conceito, com a

imagem da coisa, enfim. Mas foi muito por acaso, os outros todos foram como

performer, à parte desse que eu fiz sozinho.

Julia Lüdke – Quais são as tuas referências nessa área de videodança?

148

Douglas Jung – Ah, não, peraí, teve mais um projeto. Eu fiz uma assistência

coreográfica no terceiro ano e a coreógrafa que tava trabalhando resolveu formalizar

o processo dela com o vídeo, que aí é o “Camilith”. Ela já tem bastante produção em

videodança, e aí eu fiz assistência coreográfica, limpeza do material e a assistência,

enfim, nas gravações e toda essa coisa. Não cheguei a me envolver na edição, mas

na gestão do movimento, dos planos e espaços onde a gente gravou, nesse

processo todo eu tava bem envolvido. Então, mais um.

Julia Lüdke – E quais são as tuas referências, nessa área de videodança, assim, de

trabalhos, artistas...

Douglas Jung – Não tem muitas, na verdade. Mas tem coisas que eu gosto

bastante, que são: o Philippe Decouflé, que é o DV8, os trabalhos mais antigos

principalmente. Tem coisas do La La La Human Steps, que são fantásticos pra

videodança. E, honestamente, de produção nova e de coisa, de material mais fresco

assim, que não seja referência histórica de videodança, coisas que são muito é...

Como é que eu posso dizer? Relevantes historicamente ou esteticamente não tem,

não tem muita referência assim, de coisas novas. Eu acho que por isso até que o

projeto me seduz bastante assim, porque é uma das primeiras coisas que eu vejo

em muitos anos que não é baseada numa mecânica de narrativa, de filmagem, de

edição, de concepção, que seja inovadora de verdade, é uma das primeiras coisas

que eu vejo que me atrai por isso, também.

Julia Lüdke – Você desenvolveu, isso você já meio que respondeu antes, ou está

desenvolvendo trabalhos que você acha que se correlacionam diretamente com o

que você tá fazendo nessa pesquisa? Seus trabalhos de criação de alguma forma

tem um link muito forte com essa pesquisa que você esta desenvolvendo?

Douglas Jung – Sim. Quer dizer, eu não sei também se importa, se é o meu

trabalho que se relaciona com a pesquisa ou vice versa, né. Porque, na verdade,

todas as coisas que eu tô fazendo hoje, de uma certa forma começaram antes do

meu envolvimento com a pesquisa. Logo, o material que eu ofereço dentro da

pesquisa vai refletir essas coisas que eu vejo fora, mas sim, tem uma conexão

bem... Na verdade, não importa, né, primeiro o ovo ou a galinha nesse caso, a não

149

ser que a gente fosse fazer uma análise bem precisa. Mas sim, tem, tem toda uma

relação e uma retroalimentação de coisas.

Julia Lüdke – Tem algum que você gostaria de citar?

Douglas Jung – Por exemplo, o trabalho do coletivo, um trabalho novo agora, que a

gente vai mostrar no sábado, o “Ìgbà”, a gente enxerga ele como um exercício de

contemplação, como uma música pros olhos. Então é o dirigir movimento pra que

ele seja lido pelo olho do espectador, com uma ordem e com o recorte preciso,

“agora a gente quer que vocês vejam isso, agora a gente quer que vocês vejam

aquilo”, é muito semelhante de dirigir câmera, né. Então eu tenho que pensar do

ponto de vista do espectador e eu tenho que pensar do ponto de vista de performer,

como eu dou a ver o detalhe que eu tô querendo mostrar, é como é que funciona a

mecânica de apreensão do olho, né. Eu foco o objeto e aí eu abro ele, dou zoom no

objeto e apago um pouco do horizonte do que tá acontecendo ao redor. Quando eu

volto pro horizonte, eu fecho o objeto e abro o horizonte de novo. E essa é uma

mecânica que é muito parecida com o olho da câmera, né. Então esse jogo de

pontos de vista, por mais que a plateia não vá se mover, a gente tá pensando a peça

e os espaços e os motivos coreográficos e a maneira de executá-los, já jogando com

esse elemento foco, né. Então eu acho que isso já é uma informação bem

substancial, assim. Nas áreas que eu dou e nas outras coisas que eu faço, o foco

também é bem importante, eu gosto de já associar isso, né, de puxar as pessoas e

dar pra elas, trazer pra perto delas, a noção de que a gente não dança no vácuo e

de que a gente precisa continuar vendo, pra continuar sendo visto no espaço de

performance de dança. Que isso também é parte da generosidade, que isso

aumenta o tamanho do movimento, que isso aumenta e refina as qualidades de

performance, então acho que o foco tem... O foco e a minha posição no espaço tem

bastante a ver, o que eu dou a ver através do movimento e aonde eu ponho o foco e

todas as questões, eu acho que elas atravessam a tua pesquisa e a tua pesquisa

atravessa essas questões. Ah, tem mais uma coisa que eu lembrei agora: por

exemplo, no nosso trabalho com a GoPro, eu mencionei antes que é como se... Eu

entendo que eu preciso antever o que a câmera vai ver, mas a câmera não tá perto

do meu olho, então eu preciso desenvolver habilidades de foco, de observação,

tanto com os meus olhos, quanto com outras áreas do meu corpo, pra poder

150

manipular a câmera e fazer a tomada precisa que o trabalho tá pedindo. Então é

como se essa mecânica da visão e da posição do olho, do enquadramento das

coisas, do meu ponto de vista com relação ao corpo do outro, que no caso é a

Fernanda, tivesse que ser apurada e refinada de dois pontos de vista, e não de um

só. Do ponto de vista do meu olho, pra prender a cena global e enxergá-la de fora,

pra então escolher o quê que eu vou captar mais de perto, ou o que eu vou seguir,

que dinâmica vou dar pro movimento do olho da câmera; e também com as minhas

mãos, né, pra eu saber e ter uma noção exata de que se o olho da câmera tá na

posição que vai captar aquilo que eu antevi. Faz sentido?

Julia Lüdke – Todo o sentido.

Douglas Jung – Tá, é isso.

Julia Lüdke – Agora, você já tinha desenvolvido ou tido contato com a câmera

GoPro?

Douglas Jung – Não.

Julia Lüdke – Nunca tinha manipulado nem pra outros fins?

Douglas Jung – Não.

Julia Lüdke – O que mais te interessou e te motivou a participar dessa pesquisa?

Douglas Jung – Eu acho que foi o fato de ela ser, primeiro, de videodança, que é

uma coisa que se formaliza e se pensa de uma maneira bem diferente daquilo que

eu tô acostumado a pensar e formalizar, né, envolvido com outras questões

também. O corpo é super importante, super presente, mas tem uma outra mecânica

por trás da composição, tem uma outra mecânica por trás da finalização e de toda a

coisa da pré e pós-produção que me interessa muito. E o fato de ser com uma

câmera diferente que tá envolvida no processo de coreografia, de feitura da

coreografia, o fazer coreográfico tá muito conectado com o papel da câmera e vice

versa. Tipo, a coisa de ela estar dentro da coreografia, de ela ser um terceiro corpo,

ou um terceiro olho, ou nenhuma dessas coisas, mas ela ser uma entidade dentro

do espaço que a gente cria, faz toda a diferença, né, não é um ponto de vista fixo

ou, como é o de uma câmera normal, né, convencional, que vai estar captando uma

151

coisa que eu tô fazendo, não necessariamente em relação a ela. No trabalho com a

GoPro, a relação com ela e com-de-para a câmera, ela já tá intrínseca no momento

em que tu liga ela e que tu põe ela dentro da coreografia, ela já é parte da dança, é

borrada essa margem de onde acaba o trabalho do vídeo e onde começa o trabalho

da composição coreográfica. Acho que a via contrária é mais fácil de delimitar, mas

pra gente, dentro do processo, dentro da execução daquela dança, é bem difícil de

marcar esse limite, assim. E isso é super sedutor, assim, é bem instigante e suscita

toda uma curiosidade, tanto imediata quanto depois que a coisa já aconteceu,

porque enquanto tu tá fazendo, tu quer tentar entender e otimizar e refinar o teu

trabalho de captador de imagem, enquanto tu continua sendo performer de dança. E

aí depois que tu vê o resultado daquilo gravado em vídeo, tu consegue assistir, tu

vai fazer o trabalho mental de reconstruir aquele padrão de movimento e dalí tu pode

tirar mais refinamento pra próxima tomada, entende. Ao mesmo tempo que tu te vê

dentro da cena, tu consegue te enxergar fora dela, na frente e atrás da câmera, por

dentro e por fora,o elemento gerador e o elemento captado pelo olho da câmera. É

bem bonito, é bem cheio de coisa pra cavocar.

Julia Lüdke – Como é que você descreveria sua relação com a câmera no decorrer

no processo, até o dia da gravação final? Pessoalmente, quanto às adequações, os

refinamentos, a inserção da câmera na movimentação, se ajudou, atrapalhou, quais

foram as dificuldades e facilidades de execução e de criação?

Douglas Jung – Eu falei bastante agora sobre isso, mas eu acho que tem uma

coisa que tem que acrescentar, que é: eu acho que nesse caso não existe ajuda ou

atrapalha, é só diferente. É uma lógica diferente que se cria, tanto pro corpo, quanto

pra câmera. Então, quando a gente fala de linguagens, a gente fala de linguagem da

dança, linguagem da videodança, dançar com uma câmera na mão produz uma

outra coisa, né, que daí eu não sei se é dança, se é videodança, se é o quê ou o que

eu tô falando também, mas que uma coisa interfere e modifica a outra e que eu não

colocaria como “ajuda” ou “atrapalha”, mas diferencia, né, fomenta o aparecimento

de outras coisas. A distribuição do meu peso e a distribuição do meu peso

segurando uma câmera, em movimento é outra, logo eu vou ter que me relacionar

com essa câmera e com o meu próprio corpo ao mesmo tempo, de uma outra

maneira. E se eu ainda colocar na roda o fato de que essa relação entre o meu peso

152

e o peso da câmera vão gerar uma qualidade diferente de imagem, quão mais for

refinado o meu saber corporal com relação a isso, aí tem um pano pra manga pra

ficar trabalhando nisso por anos, né, porque eu sempre vou descobrir uma maneira

diferente, uma maneira de saltar, me locomover sem que essa ação prejudique a

qualidade da imagem que tá sendo captada, como é que eu posso fazer isso de

diferentes maneiras? E mesmo do ponto de vista de produção: como é que eu posso

criar um outro suporte que vai otimizar essa captação? Como é que eu posso, a

minha relação com o espaço onde essa dança tá acontecendo, ela precisa de um

piso específico ou não precisa de um piso especifico? Ela precisa de um manejo da

cor e da luz especifico e manipulado praquele lugar, ou como a gente fez no terraço

com a luz do sol funciona? Mas aí que cores eu vou botar nisso? O movimento

funciona naquele piso do mesmo jeito que ele funcionava no estúdio? Não, não

funciona. Que compensações vão acontecer? Como é que o corpo resolve isso?

Como é que o coreógrafo resolve isso? Como é que o diretor de cena e de vídeo

resolve isso? Então, eu acho que o lance da relação com a câmera é muito do

experimentar e do se manter curioso, do deixar que a proposta e o resultado da

proposta continuem mudando, continuem se alterando, continuem se

retroalimentando, continuem se fazendo mútuas perguntas e diferentes perguntas

todas as vezes. E daí, em cima daquela resposta, é que vai aparecer a próxima, a

gente meio que... Eu tenho a impressão de que, quanto mais se tenta fechar ou

quanto mais a gente, durante o processo, tentou fechar coisas, à principio menos

interessante era o produto, ou a resposta poética que a gente tinha. Quanto mais

aberto e mais experimental e mais livre de parâmetros, mentira, com parâmetros,

mas livre dentro dos parâmetros, ou pra combinar parâmetros, mais interessante ia

ficando o resultado das coisas. Teve uma vez que eu lembro, que a gente comentou

que a dança que tava aparecendo e as imagens tava aparecendo eram super

arquitetônicas, lá na Usina. Eu acho que, isso aconteceu, e aí eu acho que foi

naquele mesmo ensaio que a gente resolveu abrir a estrutura e improvisar e prestar

mais atenção no espaço. E daí, dalí foi uma avalanche de ideias novas que

escorreram pra dentro do trabalho. E, na gravação, já lá no heliponto, o espaço que

a gente tava, que era muito mais limpo, e no nosso entorno, né, vazio e muito limpo,

mas tinha muita coisa ao redor que a câmera captava, precisava captar, talvez

pudesse captar ainda mais e que informava uma certa qualidade daquilo que a

153

gente tava dançando lá em cima, né. E coisas novas apareceram também nesse dia,

porque eu acho que a gente conseguiu se manter com o olho vivo e aberto, e o

coração aberto também, pro trabalho, pra deixar o espaço também nos informar

outras coisas, de continuar exercitando o papel de observador, dentro e fora do

trabalho, pra dentro do trabalho, pras mecânicas e dinâmicas que ele tem dentro

dele e quando pra fora, no lugar que a gente vai fazer ,o quê que a gente vai gravar,

o quê que a gente tá informando com isso, o quê que é possível fazer com essas

coisas. Enfim, é isso aí.

Julia Lüdke – Como você se sentiu assumindo a posição de videomaker, além do

papel de bailarino?

Douglas Jung – Ah, é tri bom (risos). É bem bom. Eu não sei se eu preciso falar

muito mais do que isso, porque eu acho que é super pessoal. Se tem uma coisa que

me deixa curioso, porque eu não sei como funciona no corpo, no espaço, ou o

conceito daquilo, mas aquilo tá envolvido no trabalho em que eu tô participando, eu

vou tentar fazer as duas coisas renderem o máximo possível. Eu acho que esse

projeto tinha essa característica muito forte, de te dar na mão uma coisa que tu não

sabe como funciona, e o material que tu vai gerar com esse elemento tu também

não sabe como é que ele vai funcionar, a priori. Então tu vai ter que te manter

curioso do início ao fim do processo pra poder entender e gerar um produto

interessante, quanto o projeto, fisicamente, do ponto de vista da câmera e o jeito que

a tomada, o ritmo da tomada, o ponto de vista, a observação do corpo do outro,

todas essas coisas que eu já falei antes fazem com que, fizeram na verdade, com

que eu me mantivesse curioso durante todo, todo o processo. E envolvido com essa

tarefa de ser videomaker e bailarino ao mesmo tempo, que é bem diferente. Eu acho

que, é, foi uma experiência bem boa.

Julia Lüdke – Quais foram suas percepções a respeito da criação do movimento e

interação com a câmera, a partir da proposta do atelier “Dos pés à cabeça”, que

tinha tarefas definidas, em contraponto com o improviso semiestruturado do

procedimento de coreoedição, que virou procedimento de coreoedição depois? Mais

especificamente sobre esse contraponto das duas estruturas.

154

Douglas Jung – Ah, eu acho que funcionou, pra mim, pelo menos, funcionou,

porque o lance “Dos pés à cabeça” foi super importante pra entender mais e melhor

da relação com a câmera e do tipo de imagem que eu gero, né, do meu colega e do

espaço. E aí, talvez não tanto pra formação, pra formatar material, eu acho que ele

serviu muito justamente por isso, por dar noções de ritmo, de mecânica, de peso, de

ponto de vista pra informar o que aconteceu depois. Porque eu acho que, se a gente

tivesse continuado fechando e coreografando estritamente, marcando coisas, o

frescor teria se perdido. E ele sempre voltou, no momento em que a gente abria,

deixava coisas novas aparecerem e essas coisas novas já apareciam informadas

pela prática “Dos pés à cabeça”, né. A coisa do feedback também, de ter um ponto

de retorno do vídeo e a gente poder assistir, e repetir aquele mesmo motivo de

improvisação, ou mesmo motivo coreográfico, poder voltar nesses lugares e fazer de

novo, isso foi muito bom. Mas eu acho que, pela prática bem fechada, com a

proposta super bem desenhada e mais restrita, pra depois abrir, foi o que funcionou

mais pra mim. Não sei se eu respondi a pergunta.

Julia Lüdke – Respondeu. Como você vê o procedimento de coreoedição em

comparação com o método de muitos coreógrafos, de compor a partir da

improvisação dos bailarinos? Colocando essas duas estruturas em comparação.

Douglas Jung – Peraí, repete a pergunta, por favor?

Julia Lüdke – Como você vê esse procedimento de coreoedição, de improviso, de

selecionar, cortar, depois a gente fazer as conexões, em comparação com esse

método muito usado por muitos coreógrafos, que é usar o improviso dos bailarinos

pra compor, isso pra uma cena e não pra um vídeo. Em comparação, como é que

você vê as duas coisas?

Douglas Jung – Mas tu coloca o vídeo nos dois casos?

Julia Lüdke – Não, um sem o vídeo e um com o vídeo.

Douglas Jung – Eu acho que é muito diferente, porque se o bailarino tá

improvisando e não tem nada que registre, e ele vai ter que recuperar aquele

material, a maneira de acessar é totalmente diferente, muda tudo, resignifica tudo.

Porque tu não vai aprender de novo o mesmo material, que foi o que a gente fez

155

com a câmera, ela te dá essa possibilidade de recuperar exatamente aquele

material, cortar, picotar, amassar, virar ele do avesso e conectar com outra coisa,

mas tu tem essa possibilidade de aprender de novo aquilo que tu já fez uma vez.

Com a improvisação sem registro, eu acho que o registro tá dentro do aparelho

gerador da coisa, então tu vai ter que acessar a memória daquilo e talvez já não seja

mais tão preciso, e tu vai ter que recuperar. E eu acho que daí, sim, nesse sentido

tem uma semelhança, que é: todas as vezes que eu tive que recuperar material de

improvisação e eu quis ficar estritamente com o que eu lembrava, não tinha lógica

nenhuma. A partir do momento em que eu deixava ele aberto e deixava ele mudar e

coisas novas aparecerem de dentro, apesar de ser a mesma raiz de memória, aí a

coisa começava a andar de novo. E daí nisso sim, eu acho que dá pra comparar, é

só a maneira de acessar a memória, o registro e a maneira de manipular o material

são totalmente diferentes pra mim.

Julia Lüdke – E tu acha que tem mais precisão com o material gravado ter acesso a

esse material e recuperar, mas tu acha que perde muito nessa mobilidade do

improviso do que você recupera numa memória corporal, e a que você recupera

numa memória imagética, né, digital, pra pegar...

Douglas Jung – Perde, eu acho que perde. Porque daí a gente tá falando de

produção e reprodução, que é uma coisa diferente de gerar ou de aprender, de

executar ou copiar, acho que daí a gente tá falando de coisas bem, bem, bem

diferentes.

Julia Lüdke – E tu acha que no processo de coreoedição a gente se exilou só no

ato de copiar, resgatar, ou você acha que teve respiro, ou não?

Douglas Jung – Teve, teve sim, teve sim. Porque teve coisas que a gente teve que

mudar, né, em função do espaço, em função do ritmo, em função de “ah, essa

tomada fica melhor daqui, então vou ter que mudar o espaço do teu movimento”,

depois que a coreografia já tava fechada, aí também eu não vou continuar fazendo

ela e ela não vai aparecer de novo com a mesma intenção que apareceu na

improvisação, ela vai ter outros signos mecânicos, outros signos imagéticos, outros

signos espaciais que vão resignificar ela. Então, na verdade não tá nunca fechado,

eu posso continuar dando respiro pra ela de outras maneiras, é só a maneira de

156

colocar as pecinhas do quebra cabeça de volta que é mais durinha, assim. E tem

como objetivo fixar e construir uma coisa que possa ser repetida, né. Que, no fim

das contas, coreografando com a memória de uma improvisação, também vai

acontecer mais ou menos a mesma coisa, mas aí eu acho que a maneira de acessar

a memória e o registro é que fazem toda a diferença, que deixou mais ou menos

duro, mais ou menos poroso, mais ou menos aberto.

Julia Lüdke – Tu também já deu uma tocada no assunto, mas se você tem alguma

coisa que você queira resgatar dessa pergunta pra acrescentar: que é a questão do

espaço final, como é que você pensa essa diferença de toda a criação dentro da

sala da Usina do Gasômetro, em primeiro lugar, depois no mezanino, aí a gente

chegou a usar a Redenção, o terraço da Juliana e, no final, a gente passou pro lugar

final e escolhido como locação de filmagem foi a CAFF, que a gente só teve contato

uma vez, pra filmar. Como você pensa essa transição de lugares, você acha que, de

alguma forma, prejudicou ou modificou?

Douglas Jung – Eu acho que modificou e enriqueceu, né. Porque daí, de novo, se a

câmera e o corpo geram uma especificidade juntos, em cada um dos espaços essa

especificidade vai se apresentar de uma maneira diferente. Então eu acho que o

produto final foi informado por cada um desses lugares. Eu acho que uma coisa que

faz diferença é pensar que, como a gente trabalhou mais tempo na Usina do

Gasômetro, na 209, e também mais tempo no mezanino da Usina, talvez o trabalho

tenha sido informado muito mais por esses dois lugares de uma permanência, do

que pela Redenção e pelo terraço da Ju. A gente chegou a trabalhar aqui algumas

vezes também, na Tony Petzhold, mas eu acho que esses lugares informaram

menos o trabalho do que os lugares que a gente permaneceu mais. Aí, pra concluir,

eu acho que, no espaço de gravação, na locação final, a gente também começou a

descobrir coisas diferentes e maneiras diferentes de dar, ver o trabalho e de fazer

ele se apresentar no espaço, que talvez valesse a pena ter experienciado mais de

uma vez. Pra que essa informação do espaço aparecesse de uma maneira talvez

mais potente, tanto pro corpo, quanto pra câmera, mas também foi legal passar pela

experiência de chegar com o trabalho, que tem já as suas particularidades, e se dar

a tarefa de adaptar ele imediatamente pra um espaço diferente, com outra altura,

com toda uma noção diferente de segurança, de espaço, de atmosfera, de

157

temperatura, de ponto de vista lá de cima, a vista que se tem lá de cima, a relação

que se tem lá de cima com o entorno é bem diferente de fazer a mesma coreografia

fechada numa sala de ensaio. Então, como é que tu projeta foco e presença num

lugar que não tem parede e a próxima coisa que tu vê tá a quilômetros de distância

de ti, é totalmente diferente. Eu acho que a câmera capta esse tipo de

particularidade, então, se alguma coisa, eu diria que a gente precisava ter feito mais

de uma vez em cima, lá na locação final.

Julia Lüdke – Teria mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar que seja

importante sobre o processo ou acha que já falou tudo?

Douglas Jung – Acho que já tá bom, só quero agradecer bastante, bastante,

bastante pelo crédito, as ideias e pela oportunidade de participar e pela felicidade de

ter participado. Obrigado.

158

Entrevistado: Fernanda Bertoncello Boff

Entrevistador: Julia Lüdke

Data: 27/11/2014 – 13h06

Local: Casa Cultural Tony Petzhold - Avenida Cristóvão Colombo, 400 - Porto

Alegre, Rio Grande do Sul

Julia Lüdke – Então, pra gente começar, eu queria saber: quando e como a sua

relação com a dança começou, teve início?

Fernanda Boff – Ahm, que começou, começou, começou acho que começou como

começa pra quase a grande maioria, que é lá de pequenininha, fazendo aula de

ballet e sapateado. Daí eu fiz, sei lá, eu comecei desde que tava na escolinha, na

creche, devia ter três anos, eu acho. Daí fiz, daí eu era super envolvida assim, até

hoje, quando eu encontro a minha profe de ballet da escolinha, ela lembra. Eu tava

contando essa história esses dias até, que a gente dançava a música do Pimpão, do

Ursinho Pimpão, e que eu chorava dançando assim, que era muito emocionante e

tal, e ela lembra até hoje, que marcou muito ela. E pra mim, eu sempre fiquei muito

envolvida com essa parte da dança, né. Daí eu fiz ballet e sapateado na Vera

Bublitz, aí depois eu fui pra Vera Guerra, que é dança moderna. Mas tipo dança

moderna, não a dança moderna que depois a gente aprende na faculdade o que é

dança moderna, é uma dança moderna assim, meio que fazer o que a música fala

sabe? Uma dança criativa, eu acho até mais do que... Também não, porque dança

criativa tem um outro olhar, enfim, tá então nesse não-lugar aí. Mas é, acho que ela

colocou esse nome pra ter essa liberdade de não ter uma técnica muito específica,

né. Daí, nessa época, eu fiquei com um problema na coluna, uma hiperlordose bem

forte assim, e aí o médico, por ingenuidade, disse que eu tinha que parar de dançar,

que era a dança que tava me dando problema. E eu acreditei, minha mãe acreditou

e eu parei de dançar. Eu fiquei um tempo sem dançar e aí, claro, hoje eu vejo que foi

bastante ingenuidade do médico, mesmo porque tudo bem, até podia ser as aulas

que eu tava tendo, mas não era a dança o problema e sim o professor ou professora

que não tava cuidando disso, né, dessa parte, não era a dança, né. Mas eu nunca

deixei de dançar, mesmo não fazendo aula, tipo, sei lá, ficava dançando sozinha em

casa direto, no quarto, enlouquecendo. E aí depois que eu fui de fato, daí que eu

considero mesmo um envolvimento com a dança, seria esse, não sei, se primeiro,

159

tipo, conhecer a dança? Mas acho que, né, estamos falando de envolvimento

mesmo, pensar a dança como uma profissão, quando eu escolhi fazer faculdade

assim, que também foi bem por acaso. Que eu pensei tipo: “ah, eu parei de dançar,

não faço mais aula há um tempão, será que eu sou capaz, né, não tenho formação

técnica nenhuma...” Naquela época eu tinha essa visão também bem fechada, né,

de dança, tipo: “ah, tem que ser formada em ballet, ou tenho que pelo menos ter,

estar numa escola de dança há oito anos, né, no mínimo, fazendo... Como é que eu

vou ser professora? Como vou entrar na faculdade?” Mas aí, como não tinha mais

nada que me interessasse, daí eu resolvi arriscar e aí, bom, aí que eu virei, eu

considero realmente um envolvimento. Eu mergulhei de cabeça, assim, nessa

história de “tá, então isso vai ser minha profissão, é isso que eu quero, então eu vou

correr atrás todo tempo perdido, todo esse tempo que eu não... Que eu não fiz aula,

que, né, que eu deixei de saber coisas sobre dança, nesse tempo que eu vou estar

aqui”. Isso foi daí em 2009, quando eu passei no vestibular.

Julia Lüdke – Então, desde esse início até agora, quais técnicas, de forma geral,

modalidade de dança e professores, é indispensável citar? E qual dessas que você

citou você acha que mais te ajudou a desenvolver essa pesquisa comigo?

Fernanda Boff – Que legal essa pergunta. Deixa eu pensar... Tá, eu comecei assim,

também, de fato a fazer aula no grupo experimental. Então eu acho que seria

indispensável falar dos primeiros professores, assim, nessa fase mais focada, né,

em dança. Então eu acho que a Eva, Eva Schul, né, falando dos primeiros

professores, o Airton Tomazzoni, o Alexandre Rittmann e o Carlos Nunes, que é do

hip hop. Mas não acredito que esses foram os que mais me ajudaram, digamos, pra

desenvolver o trabalho contigo. Eu acho que eles são emblemáticos por isso, porque

foram os primeiros que, como... O Airton principalmente, assim, porque foi com o

Airton, e eu até falo isso no meu TCC, que eu pude me libertar um pouco dessa

ideia de dança como algo mais formal assim, né. Ele, né, foi com ele que eu, pra

mim eu tive a dança contemporânea, tipo a Eva dá dança contemporânea, mas ela

tem uma técnica bem específica e o Airton dava os laboratórios de criação, né, no

grupo experimental. E aí foi ali que eu vi, nossa, tipo, eu sempre me achei uma

pessoa super criativa assim, e eu pensei: “eu posso usar minha criatividade aqui

também”, não é repetir uma coreografia que alguém vai fazer, né, eu posso e, enfim.

160

Então eu acho que o Airton, sim, seria uma... Uma influência, assim, desde esse

início até hoje. Daí depois continuei no grupo experimental por mais dois anos,

continuei fazendo, daí tinha aula de ballet, de educação somática com a Bia... Dança

contemporânea, daí tinha a Didi, o André Spolaor, depois teve a Karenina, depois...

É bom ir pensando, tá, então eu acho que de influências específicas pro teu trabalho

eu diria, bem forte: o Airton, a Karenina, a Didi e o Doug. Pra mim eu acho que o

Doug é uma influência mais recente, mais inspiradora, digamos assim, é tanto

tecnicamente quanto esteticamente, se é que eu posso fazer essa... De uma busca,

tanto é que agora eu tô fazendo aula com ele e, tipo, depois que eu decidi sair do

grupo experimental também, eu pensei: “agora eu quero focar em algum trabalho

corporal que...” Daí, fora do grupo experimental, né, que eu acho que foi onde tive

mais aulas, eu diria o Diego, que é da parte circense, Diego Esteves. Porque, que

também daí é o que eu tenho agora de treinamento corporal. São as artes circenses

e a dança contemporânea do Douglas Jung. Tá, então esses dois seriam os mais

importantes, né, de técnica, técnicas circenses, equilíbrios acrobáticos, mais

especificamente, daí o Doug e daí de influência mais geral, assim, que eu acho que

me acompanha como algo que impregnou assim, corporalmente, o Airton, a

Karenina e a Didi. E aí tem a Mônica também, que me influenciou muito, mas mais

na parte acadêmica, de certa forma ela tá em mim assim, eu acho né, não como

técnica corporal, mas como perspectivas talvez. Acho que é isso.

Julia Lüdke – Qual a sua experiência, daí agora com videodança? Já havia

trabalhado antes? Em que contexto? E, se sim, quem são suas referências na

videodança?

Fernanda Boff – Deixa eu tentar me lembrar como é que eu conheci o videodança,

acho que foi no grupo experimental também, com algum dos laboratórios do Airton,

acho que a gente ia na P.F. Gastal, lá na que é a sala de cinema lá da Usina do

Gasômetro, assistir coisas. Aí eu fiz uma oficina de videodança no Festival Dança

em Foco, com o Marcos Moraes, então acho que ele seria a minha primeira

referência, assim, e aí... Tu era do meu grupo! Agora eu me lembrei, verdade! Quem

era? Era eu, tu, a Clarissa...

Julia Lüdke – Não lembro bem, eu só lembro de ti, pra falar bem a verdade.

161

Fernanda Boff – (Risos) Eu acho que aquele foi meu primeiro contato assim com

videodança, assim, tipo, tá, fazendo e pensando videodança. E aí já ali eu pensei:

“nossa, isso é muito legal, eu quero fazer isso!”, Mas né, daí foi ficando, ficando. Aí

no outro ano teve outra oficina do Dança em Foco, que foi de projeção. Daí essa tu

não fez, mas a Luisa fez, a Luisa era do meu grupo. Mas eu nem lembro o nome da

guria da oficina, porque a oficina não foi muito boa, então... Mas o trabalho dela era

bem legal, ela trabalhava com... Ela projetava coisas nas coisas, a Karenina também

tem um trabalho assim, tipo, tu filma um sofá contigo e daí tu projeta no sofá e tu tá

no sofá, né, essas brincadeiras assim. Mas a guria era uma professora péssima

assim. O trabalho dela era ótimo, mas ela era uma péssima professora, eu não me

lembro o nome dela. Tu vê, assim, não marcou, a oficina não me marcou. Aí, nesse

ano... Não, no ano anterior, que a gente fez o “Faz de conta que” no grupo

experimental, a gente gravou um vídeo de divulgação pro “Faz de conta que”.

Pensando um pouco, assim, mas foi uma coisa bem rápida, o Marcelo fez, não dá

pra chamar de videodança, eu acho. Depois disso teve o projeto do Diego, de

videocirco, e daí eu participei, tipo filmando e dando ideias, assim. Então videocirco

e videodança, né. Ganhou o Açorianos de dois mil e... Sem ser ano passado, o

outro, 2012, de Novas Mídias, que é... Daí também acho que foi a minha primeira

experiência profissional, digamos assim, com vídeo. Teve apoio, teve financiamento

do Catarse, isso em 2012. Aí 2013, já ano passado, com o Desdobramentos, né,

que é essa ideia de cada um pegar o seu projeto artístico, né, a sua ideia e botar em

prática, eu pensei: “bah, eu acho que é esse o momento de eu começar a focar no

vídeo mesmo”, assim, porque é uma coisa que eu tenho interesse e não... Enfim,

acabei não investindo, porque às vezes precisa de alguém puxando e eu pensei: “tá,

então é agora”. Daí eu fiz esse projeto, que virou o Experimento Portabilidade, e

também, aquela coisa, né, nunca, nunca é como tu imagina, mas rolou, fez, foi

indicado pro Prêmio Açorianos e agora passou numa mostra lá de São Carlos, uma

mostra de videodança. Aí ok, esse ok, daí eu participei do curta Ao Teatro, que a

parte que é da Nicole... Fischer, Nicole Fischer e o Marcelo Andrighetti, que é a

parte de dança ali que a gente fez, enfim, é a história sobre um espetáculo e aí o

elenco desse espetáculo, né, que eram duas pessoas, o cara tá de cadeira de rodas

e a mulher adoeceu também, e aí eu e o Diego seríamos o outro elenco, e ela vai

assistir, né, isso. Só que eu achei que a parte que a gente faz, que é a parte de

162

dança, ficou um videodança dentro do curta, assim, ficou muito legal. E acho que

também eu citaria como uma experiência de vídeo dentro disso. E aí, né, agora eu tô

com esse outro projeto do “Tudo que vai, volta”, que eu acho que tem a ver também

porque é isso, isso que eu te falei na tua entrevista: eu tenho a tendência de pensar

muito com o vídeo, não necessariamente fazer o vídeo, mas o vídeo como

ferramenta pra criação, assim, de alguma forma ele tá comigo ou... Eu não sei

explicar muito bem, eu penso isso, eu penso nas possibilidades de vídeo, assim, na

possibilidade que ele tem a mais que o corpo não tem, e que junto com o corpo

potencializa muito, né, uma criação artística. E me interessa muito isso, me interessa

muito. E aí, bom, aí o que eu fiz contigo, agora, acho que não me esqueci de nada.

Ah, agora no... Ontem, quarta-feira, a Paola também fez, se apresentou na Reitoria,

ela fez a performance dela e ela me chamou pra acompanhar, e eu disse: “ah,

Paola, posso te filmar? Posso experimentar umas coisas?”, e daí eu fiquei filmando

ela e foi tão legal, tão legal! Que eu gosto disso também, eu gosto de filmar, não só

de estar no vídeo como bailarina ou videomaker... Qual é o conceito de videomaker?

Julia Lüdke – É a pessoa que manipula a câmera.

Fernanda Boff – A câmera. Tá, então não só como bailarina, mas como videomaker

também me interessa bastante. E eu acho que também isso é uma das coisas que

mais me encantou no teu trabalho é isso: eu poder ser as duas coisas. Ou tu é um

ou tu é outro, não tem como ser os dois, e poder ser os dois, estar pensando nos

dois ao mesmo tempo é muito, bah, muito legal.

Julia Lüdke – Tu teria mais alguma referência na videodança?

Fernanda Boff – Ah, de referências de... Sim. Ah, eu acho que a primeira delas é

impossível não falar de Philippe Decouflé, né, que não tem um videodança que não

seja maravilhoso daquela criatura. Além do Marcos, né. Não sei se dá pra dizer que

o DV8 faz videodança, dá?

Julia Lüdke – Dá.

Fernanda Boff – Então eu acho que sim, referências de vídeo.

Julia Lüdke – Tem que ser o que tu acha, se tu acha...

163

Fernanda Boff – Eu acho que sim. É porque teatro físico né, eles se dizem como

um grupo de teatro físico, mas pra mim os vídeos deles são videodanças... Me vem

vários vídeos na cabeça, mas eu não necessariamente sei o nome dos artistas. Tem

um muito bom de Israel, eu não sei o nome deles. E tem um grupo de meninas que

dançam hip hop, que também que faz uns videos muito legais. Eu poderia pesquisar

esses nomes e te passar depois, pode ser? Porque não vou me lembrar agora. E

daqui, de Porto Alegre, tem a Nicole, que faz um trabalho bem legal de vídeo, a

Karenina faz videodança também, mas ela parou um pouco.

Julia Lüdke – Mas eles são referências pra ti?

Fernanda Boff – Eles são referências, são referências. São poucas pessoas aqui

que trabalham com isso. Mas são, são referências sim.

Julia Lüdke – Você já... Agora essa você já meio que deixou respondida, se tiver

alguma coisa a mais a acrescentar, é que se você já desenvolveu ou está

desenvolvendo algum outro trabalho de criação que se relacione e converse com

essa pesquisa que a gente tá fazendo?

Fernanda Boff – De vídeo, agora... Tá, ó, o que eu vou apresentar agora nos

Desdobramentos, do “Tudo o que vai, volta”, vai ser uma ideia que surgiu do

processo do “Corpos que videodançam”, que foi aquele exercício que a gente fez de

play e pause, acelera e desacelera. Então a minha ideia é pegar a coreografia que já

tá pronta, só que ao invés de eu botar o ritmo, o vai e volta que eu quiser, de onde

eu quiser, a ideia é que outras pessoas me digam. Daí, mas aí seriam tarefas, tipo

vai e volta, acelera e desacelera e pausa e finaliza. Seriam seis e eu pensei ou três

pessoas, cada uma com duas tarefas, ou duas pessoas, cada uma com três tarefas,

e elas iriam falando. Não sei se vai dar certo, vamos ver, mas é pra experimentar,

pra ver o que acontece. E é isso, essa ideia surgiu do processo, porque eu fiquei

pensando: “ah, o que eu vou fazer, o que eu vou fazer nessa edição?”, né, não

queria apresentar coreografia de novo. E daí eu tava, eu continuei... Daí sim, daí o

vídeo faz parte da minha metodologia lá, né, a senhorita era, como é, era minha

consultora de vídeos e...

Julia Lüdke – Se você quiser me falar um pouco desse trabalho de vai e volta

também...

164

Fernanda Boff – Tá, então, essa ideia, esse projeto “Tudo o que vai, volta” é a ideia

de constituir uma sequência de movimentos e explorando as possibilidades de

retrocesso do movimento, a partir do vídeo. Então, como é que foi o processo: eu fiz

um laboratório de improvisação, me gravei, coloquei no editor de vídeo e retrocedi. A

partir desse retrocesso, eu recortei as partes que mais me chamaram atenção e aí,

desse recorte, eu tentei captar, fazer a junção desses recortes, o que foi quase

impossível. Eu não conseguia me copiar, nem copiar a ida, nem a volta, eu não

conseguia, assim, foi super difícil. Então serviu muito mais de referência do que de

algo bem concreto, né, esse movimento, depois esse, depois esse. Daí eu fechei

uma coreografia pra ser apresentada na quinta edição do Desdobramentos, como

tipo, ó, até aqui que eu cheguei com esse projeto, com essa ideia. Então o vídeo

serviu dentro do procedimento metodológico. Daí a ideia a seguir disso era: filmar a

coreografia, né, essa sequência de movimentos fechada, filmar ela indo e ela

voltando, eu fazendo, né, ela indo e ela voltando; retroceder as duas filmagens e

comparar: como que é a qualidade do vídeo e como que é a qualidade minha

fazendo e tentar me aproximar cada vez mais da qualidade de vídeo, né, desse

corpo retrocedendo como vídeo, que tem toda a questão da gravidade, da

preparação do movimento, né, aquele movimento, aquele início de movimento que

às vezes a gente esquece que tem antes de voltar, né, aquela idinha que acontece

antes de voltar, todos esses detalhes. Só que essa parte eu não consegui fazer. E aí

eu consegui, sim, fazer outros laboratórios, com outras tarefas, né, eu fiz, tipo, um só

gestual, só de gestos, né, que é como começa, com a coisa do cabelo, que outros

gestos seriam interessantes. E outro com deslocamentos. Ah, foram três na

verdade: deslocamento pelo espaço, caminhadas e gestos e a terceira era direções,

e eu não podia ir mais de três movimentos sem conseguir voltar eles, que também

foi super difícil. Só que eu não consegui fazer nada com esse material, e daí eu não

queria apresentar de novo a mesma coisa nesse Desdobramentos. Foi aí que me

lembrei do nosso processo e pensei que poderia ser uma ideia bacana de pensar no

meu, tipo, como se eu fosse o vídeo e as pessoas dando essas tarefas.

Julia Lüdke – Só pra esclarecer: o “Tudo o que vai, volta” começou antes do

processo ou durante o nosso processo? O início desse trabalho começou antes ou...

Fernanda Boff – Começou... Quando é que a gente começou?

165

Julia Lüdke – A gente começou, de fato, lá em fevereiro.

Fernanda Boff – Fevereiro... Começou depois, eu acho, então. Começou depois. É,

começou depois, talvez tenha até um outro tipo de inspiração, então, aí, que eu nem

tenha percebido, né. Não... Sim, não, mas é legal, o que me inspirou muito pra esse

projeto, que, né, teve, acho que tem alguma coisa aí no nosso processo que pode

ter inspirado mais, mas eram alguns vídeos que eu via de pessoas. Só que não uma

coreografia, dentro da coreografia tinha um momento em que o bailarino fazia um

movimento e voltava, assim, normalmente um movimento absurdo de se voltar,

assim, tipo: como ele voltou dali? E aí aquilo, pra mim, sempre era o pico da

coreografia, quando aconteciam essas coisas, e daí eu pensei: “bah, imagina toda

uma coreografia que faça isso”, enfim. Uma das coisas que me inspirou foi isso, foi

ver outras pessoas fazendo.

Julia Lüdke – Você já havia tido contato com a GoPro? Se sim, que contexto, né,

pra fazer outras coisas também...

Fernanda Boff – Contato direto, ao vivo, não. Só de saber que existia, de ver vídeos

com GoPro, não contato direto, direto.

Julia Lüdke – O quê que mais te interessou e te motivou a fazer parte dessa

pesquisa?

Fernanda Boff – Eu acho que foi a proposta. É muito diferente de tudo o que eu já

tinha feito ou pensado sobre vídeo, assim, porque é uma coisa... Sabe aquela coisa

assim: “nossa, nunca pensaria nisso”. Isso, pra mim, eu acho que mais me encanta

é quando alguém pensa em alguma coisa que tu não pensou, e eu admiro muito

isso, né, não é uma coisa tipo: “ah, porque eu não pensei nisso”, né, tipo assim: “ah,

que droga”, não, eu me empolgo e eu quero ter outras ideias a partir disso, porque

isso me motiva também a, enfim, a estar trabalhando, né, acho que se eu não vejo

outras coisas interessantes no mundo e na vida, eu não... Tanto é que eu sinto

quando eu saio menos, quando eu assisto menos espetáculos e quando eu vejo...

Eu também, no meu trabalho artístico, me empobreço, assim. Por mais que, às

vezes, a gente assista umas coisas assim, às vezes até isso: umas coisas meio

“hã?”, dá ideia pra outras, ou pelo menos “ tá, eu sei que isso eu não quero fazer”,

né. Mas enfim, eu acho que isso foi o que mais me motivou: essa ideia original e

166

impensável por mim. E aí é isso, esse meu, além desse meu interesse pelo vídeo e

de estar nesses dois espaços, eu acho que é o da... Depois também de entender, de

estar nos dois espaços, do bailarino e do videomaker e depois de entender a câmera

em si como um parceiro, né, de dança, foram alguns processos que foram aos

poucos se fazendo entender, né. De cara o que eu vi foi isso: “tá, é, eu vou dançar e

filmar, as duas coisas” e aí depois que a gente começou a trabalhar que eu comecei

a entender essa ideia de “tá, não, mas a câmera também dança, ela também tá

junto”. Tanto é que um dos primeiros exercícios que a gente fez eu fui super direta e

reta, né, tipo, não... Era um de parar né? Aí a gente levava um olho para onde... Tu

abre o olho, agora não me lembro como é que era esse exercício, não vou te deixar

confusa nessa entrevista (risos).

Julia Lüdke – É o duplo controle, né, que você tinha que guiar um colega, aí a

câmera e você poderia dar as coordenadas de pausa e play...

Fernanda Boff – Isso! E eu fui bem quadradinha, assim, no exercício, tipo... Foi

nesse exercício, assim, que eu entendi “ah, tá, não é só isso, é muito mais do que

isso”, e aí aos poucos que eu me senti, foi me dando um pouquinho mais de

liberdade e vendo, né, que é uma característica bastante da GoPro também, né. Eu

respondi a pergunta?

Julia Lüdke – Respondeu sim, senhora. E como você descreveria a sua relação

com a câmera no decorrer do processo até o dia da gravação final? Principalmente

quanto a adaptação, refinamento da inserção da câmera na sua movimentação, se

ajudou, atrapalhou, ou seja, as dificuldades e facilidades de execução e de criação,

principalmente a respeito dessa dinâmica.

Fernanda Boff – Eu acho que foi bem difícil se adaptar com a câmera. É, como eu

vou dizer isso? Porque, quando tu tá com a câmera, tu dá muito mais atenção a ela

do que ao teu próprio corpo, então acho que uma das minhas maiores dificuldades

foi isso, assim, que eu acho que foi uma coisa que eu tentei trabalhar mais, não

perder o olhar da câmera que seria o melhor, o melhor ângulo, o melhor olhar dela,

né. Por exemplo, aquela hora que o Doug faz a vela, né, que nunca mais consegui

encontrar aquele melhor ângulo. Mas como que eu vou dar foco nisso, mas

pensando no meu corpo ao mesmo tempo? Aí que eu acho que foi esse foi esse o

167

maior problema: de eu não encontrar onde tava o meu corpo no melhor ângulo da

câmera, ou eu estar com o melhor ângulo da câmera, mas eu bater com meu joelho

no chão, porque não tô cuidando, ou estar meio torta assim, ou virar a mão e daí

daqui a pouco não consigo mais virar a câmera. Teve um dia lá, quando a gente

tava gravando, também que eu comecei a virar a câmera pro lado errado e eu não

conseguia mais fazer, porque aquilo já tava mais orgânico, virando, sei lá, pra

direita, quando eu comecei a virar pra esquerda, eu fiquei toda torta e eu não

conseguia mais. Só que eu tava pensando na câmera, tipo: “tá, eu preciso que a

câmera funcione, preciso que a câmera funcione, mas o meu corpo tá todo errado

aqui”. Então essa relação foi bem difícil, mas eu acho que ali, quando a gente deu

aquele gás inicial de processo, no final, eu tava bem mais a vontade de saber como

segurar, como não, como deixar o meu corpo estável pra câmera não mexer, abrir a

base, por quais os caminhos do meu corpo e o caminho da câmera, juntos, né, que

é essa conversa, esse diálogo entre meu corpo, corpo da câmera e o teu corpo e o

corpo do Doug. E eu acho que ali, mais pro final, a coisa tava ficando mais tranquila

de ser feita, não era uma briga, né, a câmera já tava mais amiga. Essa coisa de

entender também a distância, né, tem o ângulo muito aberto, então se eu ficar muito

longe não vai ficar legal; qual é a distância correta, se eu chegar muito perto, pode

bater, né, o Doug pode bater em mim, enfim. Só que aí, tipo, com esse tempo sem

trabalhar, e eu acho que eu perdi um pouco isso, no fim das contas, eu tive uma

insegurança, assim. Eu até tava falando pro Fernando, eu não sei nem se cabe na

entrevista, mas eu fiquei triste, assim, eu achei que eu não fui bem no dia que a

gente gravou sabe. Tá, tudo bem que eu também fiquei com medo, né, o medo,

digamos, não me ajudou muito, mas corporalmente, assim, eu achei que eu não tava

no meu... Não foi a melhor performance, digamos assim, que eu tive, de toda essa

relação, assim mesmo. Mas, quando a gente tava ensaiando, eu não senti isso,

então talvez tenha sido uma coisa do ambiente, não sei, mas eu acho que eu podia

ter ido melhor, eu fiquei meio... Mas o Fernando me disse que ficaram legais as

gravações, ele ficou me consolando: “não, mas ficou legal”, e eu “ah” (risos). Enfim,

então eu acho que, sim, que no início foi bem difícil, e aí depois melhorou e depois

ficou um pouquinho difícil de novo, mas não tão difícil quanto no início, né, não é

aquela coisa, assim, primeira vez segurando. Não, tem, tinha essa memória corporal

de relação com a câmera. Esqueci de alguma coisa?

168

Julia Lüdke – Não. E, do relacionamento, como tu vê tu te relacionar com a câmera,

tu mencionaste antes que é como uma parceira, né?

Fernanda Boff – Uhum. Sim, é como, sei lá, que exemplo que eu poderia dar?

Poderia comparar com, sei lá, com contato e improvisação, talvez, que às vezes tu...

Às vezes não rola. Às vezes não rola, assim, quando começa a dançar com uma

pessoa. Não dá, aquele corpo estranho, aquela coisa, parece que não encaixa, né,

não faz muito sentido, tu não consegue, né, tudo meio trincado, assim. Mas depois,

com o tempo, os dois começam a se entender um pouquinho melhor, as tarefas são

bem importantes nesse sentido, né, ter tarefas pra serem cumpridas, tu consegue

focar, né, mais em alguma coisa específica. Tipo, o foco é seguir uma parte do corpo

e, nossa, eu acho que isso é crucial dentro da evolução dessa relação, assim.

Porque senão é qualquer coisa, né, e aí como é que tu vai saber como é que tu tem

que se relacionar com elas? Tem que ir aos poucos, então primeiro é só segurar, é

só segurar, não tem muito mais o que fazer. Aí, aos poucos, tu vai começar a se

mover junto, enfim.

Julia Lüdke – Como você se sentiu assumindo a posição de videomaker além do

seu papel de bailarina?

Fernanda Boff – Como que eu me senti? Nossa, me senti muito feliz (risos). Não,

sério, eu gostei muito, porque às vezes eu acho que eu sou melhor sendo

videomaker do que sendo bailarina (risos). Tipo, não sei, ontem, por exemplo,

gravando a Paola, assim, eu encontrava uns ângulos, umas coisas, assim, que eu

ficava: “uau, isso é muito legal!”. Então os lugares de filmagem, assim, não eram

nem ângulos, não sei se eu posso chamar ângulo, não sei nada dessa linguagem do

vídeo, o quê que significam essas coisas, mas... E eu gosto de dessa transferência

de olhar, né, não é bem uma transferência, mas... É quase como eu gostaria de

estar olhando pra uma coisa, mas quem tá fazendo isso é a câmera e nisso ela é

minha cúmplice, né, ela é a minha... Minha parceira, porque ela tá fazendo uma

coisa que eu não poderia fazer sozinha, só com ela, né. É ela que vai, tipo, eu não

posso te ver dançando, né, porque não posso. Ou posso, mas não é o caso. Então

isso, não sei se é transferência essa ideia de algo que é uma extensão do teu corpo,

né, poderia pensar assim também, mas ela faz, ela tem um outro papel, ela não tem

o papel da minha mão, ela tá na minha mão, mas ela não é uma outra mão. Ela é

169

um outro olho e ela tem todas as características dela, específicas, que é dela, não

tem nada a ver com o meu olho. Mas é a possibilidade de eu enxergar de outra

forma alguma coisa. E às vezes eu acho que ela tá vendo de um jeito, porque eu tô

segurando ela de um jeito que eu quero, mas não, ela não, pode ser que ela não

queira do mesmo jeito que eu quero, ela vai ver do jeito dela, que ela tem as

características e especificidades dela, que eu vou dar o exemplo de novo daquela

porcaria daquele ângulo, que eu não consigo descobrir, que eu seguro ela e eu

acho: “ah, agora sim, é aqui, ela tá vendo do jeito que eu gostaria de estar vendo

isso daqui”, e aí eu vou olhar depois a gravação e não, ela não quer ver daquele

jeito, não era isso. Então eu acho que tem a ver com essa relação também, que aos

poucos foi evoluindo, né, com ela. Então eu me senti... Como me sinto como

videomaker dentro do... Me sinto com muito mais possibilidades, me sinto desafiada,

é uma... É algo bem desafiador, me sinto com uma responsabilidade maior, né,

dentro da... Dentro da pesquisa, né, uma responsabilidade... Não dá pra nem dizer

que é em dobro, porque o produto final é o olhar dela, né, então às vezes, se eu

caguei lá com o bailarino, a gente pode só cortar, não mostra que eu caí, não mostra

que... Mas a câmera não tem o que fazer, eu acho. Dá pra tirar também, se a

filmagem não ficou boa, tá, dá pra cortar, mas se filmar tudo mal, até as partes que o

Doug fez e se saiu super bem, não, é uma responsabilidade muito maior se eu não

tiver conectada com a câmera ali. Então tem esse tem esse nervosismo também, um

pouco desse... Desse desafio e dessa responsabilidade, principalmente porque lá,

onde a gente gravou a última vez, a gente não podia repetir muitas vezes por causa

do tempo, por causa do sol, por causa do chão então foi quase um tudo ou nada, né.

Que mais, que mais, que mais, que mais? Acho que é isso...

Julia Lüdke – Quais foram as suas percepções a respeito da criação do movimento

e interação com a câmera, a partir da proposta do atelier “Dos pés à cabeça”, com

tarefas bem definidas, em contraponto com o improviso e sendo estruturado com o

procedimento de coreoedição, que depois gerou o procedimento de coreoedição?

Quais são as suas percepções a respeito disso?

Fernanda Boff – Quando... Vou dividir, então, os dois. Quando a gente, eu lembro,

na verdade, da gente conversar bastante sobre isso na época lá e de como é difícil,

porque vai... Começou a surgir ideia, né, surgir ideia, surgir ideia de tanta... Disso,

170

de tanta possibilidade que a câmera proporciona e aí a gente disse não, tu

principalmente: “não, tem que focar, porque senão a gente não vai dar conta de

tudo”. Então eu acho que foi bem importante esse... Esse teu olhar de... Especificar,

né, as coisas. Então a questão da tarefa, lá, do primeiro, eu acho que eu mudaria a

minha sequência, por exemplo. Porque aquele dia foi... Foi uma tarefa super simples

e rápida, né, tipo quatro ou cinco movimentos, que mude de nível, que vá de pé até

o chão. E, tá, daí eu fiz ali, rapidinho alguma coisa, e aí a gente gravou e foi o que

ficou. Se depois, né, pudesse escolher, eu acho que eu mudaria, mas pensando na

sequência de movimento. Só que, se eu for pensar na sequência de movimento em

diálogo com a câmera e com o Doug, eu acho que eu não mudaria. Porque... Porque

é outra coisa, não é só sequência de movimento, né, eu acho a sequência de

movimento, tipo, ai, como eu fui simplória nisso que eu fiz, sabe, mas o resultado

dela, junto com a câmera e com o olhar do Doug disso, né, eu acho que eu não

mudaria. Então, por um lado, eu acho que a gente foi rápida na escolha ali dessa...

Dessa sequência, por outro, eu acho ótimo esse teu... Essa tua especificidade, sabe,

tipo: “não, a gente vai estruturar assim, assim, assim, não sei o quê, não sei o quê”.

Essa minha percepção desse, né. E depois eu te filmei, né? Então, isso é muito

louco: lembra que eu até comentei que foi muito estranho pra mim ver tu ensinando

a tua sequência pro Doug? Foi, eu nunca tinha visto algo assim (risos). Eu nunca

tinha visto essa sequência e eu: “tu faz isso?”, sabe, “como assim tu faz isso? Não

sabia que tu fazia isso”, porque daonde eu tô, como eu tô segurando a câmera... É

outra sequência também, é outra sequência, e eu achei, nossa, eu achei muito

esquisito, muito esquisito ver, mudou muito. Então... Então acho que é isso, tá,

dessa coisa de escolher uma coisa de primeira, mas que faz sentido, sabe, que por

um lado eu fico pensando: “ah, eu podia ter feito algo melhor”, sabe, alguma coisa

assim, mas por outro lado eu penso que foi a melhor escolha a ser feita. E daí, lá,

essa, o que resultou depois do experimento looping, que foi a que... A gente fez dos

pés à cabeça e, tipo, “vamos continuar até cansar”, né, “fazendo coisas pra ver o

que acontece”, foi isso, né?

Julia Lüdke – A gente começou a improvisar.

Fernanda Boff – Isso, em cima da... Repetindo as sequências, né, e depois também

mais livremente, fazendo outras coisas, se passando a câmera e tal. Aquilo lá pra

171

mim foi genial. Foi... Não sei, foi um momento muito, eu acho, de imersão mesmo e

de doação também, eu acho, porque tava muito quente aquele dia. E a gente insistia

e querer fazer outro, fazer outras coisas pra ver o quê que ia dar, né. Pra mim, eu

acho que a gente ganhou muito com aquilo ali, teve um ganho de dentro, de

entendimento da tua pesquisa e do processo, e um ganho de escolhas também

depois, né, de possibilidades e depois de escolhas, de abrir um leque, entender

melhor o quê que tava acontecendo, quê que é aquilo, o quê que é essa pesquisa,

começa, né, a coisa começa a fazer mais sentido. E de ter esse diálogo entre os

quatro elementos também, né: eu, tu, o Doug e a câmera, foi bem legal. E aí depois

o resgate que tu fez, né, lá no... Que foi o segundo momento de improviso, que, pra

mim, foi bem importante também, que a gente tentou meio que direcionado no início,

né, eu me lembro de tu direcionar, daí começou e não fechava, não fechava, mas

não é isso, não é isso, não é isso. E tu falou: “tá, vamos, vamos fazer mais uma vez,

assim meio a la loca, só que não com uma tarefa bem específica e aí vamos ver o

que acontece”. Ali também, acho que a gente teve um ganho bem forte, porque daí

tá, lá a gente abriu um leque de possibilidades, daí, que eu me lembro da gente

conversando e o Doug muito empolgado: “porque não, porque daí a gente pode

fazer, vamos ficar experimentando muito”, e tu falou: “não adianta a gente fazer um

monte de laboratório, ficar improvisando enlouquecidamente e depois não conseguir

reproduzir essas coisas, né”, que eu acho que é o mais difícil, principalmente porque

a gente tá lidando com um elemento tão específico. E aí a gente se reuniu na tua

casa e daí tu listou naquelas possibilidades, que a gente viu que eram interessantes,

e escolheu. E aí fomos pro looping, e ali também, eu acho que a gente teve um

ganho de especificidade, de direcionamento e aprofundamento que eu acho que foi

legal. E tão, tão, tão, tão da GoPro, sabe, só ela, assim, eu acho não teria outra

câmera pra fazer isso a não ser que... Tá, existe agora umas pequenininhas, mas

essa, esse efeito que ela tem de... Porque ela não... Quando tu vira a câmera, né, tá,

ela tá na direção normal, quando tu vira, o filme fica comprido, né, e os lados pretos,

os dois lados. E a GoPro não faz isso, eu não sei se outras câmeras pequenas

fazem, não sei, por isso que pra mim também é tão dela, não só pelo tamanho, pela

abrangência de lente e pela possibilidade de movimentação dela, mas por essa

característica de ela sempre preencher toda a tela, né. Então, pra mim, o looping é

tão da GoPro, assim, tipo, é dela, assim. E aí por isso que eu acho que esse ganho

172

de especificidade e aprofundamento foi muito bacana, dentro da... E é também uma

coisa que... Que a gente, como pessoa, não conseguiria fazer. Pensar, pensar,

pensar, pensar, eu tava numa linha lógica, daí eu me atravessei, agora eu ia falar

outra coisa... Ah, sim, e que daí veio a coreoedição, que também foi uma escolha

muito inteligente da sua parte. Sim, e aí muito inteligente, muito perspicaz e focada,

assim, que também é bem importante. Que também, se a gente for ver, a gente tirou

toda a sequência de um experimento, a gente tirou a escolha, mas isso, né, e daí

também fiquei pensando: “ah, mas eu podia ter mudado tem umas coisas ali que tão

truncadas, que eu não consigo. Por quê? Porque não tive tempo de pensar mais,

porque eu fiz as costuras entre um movimento e outro, né, da coreoedição, eu fiz de

forma simples, quem sabe eu não poderia, nanana”, mas que, com a relação com a

câmera, eu não sei se eu mudaria. Porque é isso, a gente vai ficar experimentando,

experimentando, experimentando, experimentando, e aí, e aí, e aí, sabe... Acho que

é isso.

Julia Lüdke – Como você vê o procedimento de coreoedição em comparação com o

método que muitos coreógrafos têm, de compor a partir da improvisação dos

bailarinos? Como é que você vê esses dois em comparação: coreoedição, com ir lá,

fazer o improviso, filmar, cortar, depois trazer, fazer os recortes, né, em comparação

com esse método que muitos coreógrafos usam, de, a partir da improvisação dos

bailarinos, compor?

Fernanda Boff – Sim... Que difícil, essa foi difícil. Tá, primeiro que eu vejo que se

tem em comum é isso, mas é diferente. Porque... Por quê? Tá, quando a gente...

Deixa eu me lembrar como é que a gente fez: tu trouxe o vídeo, com a coreoedição,

daí a gente olhou, daí a gente retomou a movimentação, depois retomou os lugares

do videomaker/bailarino e o olhar da câmera a partir disso. E a gente teve que fazer

as costuras, né, entre uma coisa e outra. Teve que criar esse... Essa continuidade

dentro de alguma coisa que foi editada no corte, né, no bruto assim. Como é que

eu... Como é que eu vejo essas duas coisas? É que eu também tenho pouca, eu não

tenho muita experiência nesse tipo de processo, tipo, a gente fazia muito com a Eva,

mas era uma coisa muito mais “criem diretamente, a partir desse improviso”, né, do

que “experimentem, pra depois a gente tirar material, pra depois a gente criar de

fato”, né. Eu acho que teve, dentro do nosso processo, teve isso, né, essa

173

experimentação, pra depois uma coreoedição, pra depois uma criação, só que, né,

isso, isso, isso são três coisas diferentes, pra mim. E aí do que eu já participei,

desses processos de criação de improviso, é muito mais tipo: “vai improvisando, mas

já vai criando”. Eu busco pra mim diferente, eu busco né, que nem eu falei, vamos

tentar experimentar, experimenta, vê o que acontece, pra depois... Mas é meio

inaceitável pros coreógrafos que eu já trabalhei com esse tipo de coisa, meio

inaceitável tu não conseguir fechar alguma coisa com o que tu ta fazendo, ou não

lembrar do que tu improvisou, não... Não, tu já tem que ir fazendo e tipo, isso vai

ficar, isso também e já junta com isso... As três coisas que, pra mim, foram bem

distintas nesse processo, eu vejo meio juntas quando é pra criar uma sequência de

movimentos dentro desse tipo de procedimento, é, tipo, é mais consciente, talvez, é

mais racional, mais... Com mais julgamento, com menos liberdade do que a gente

teve, assim.

Julia Lüdke – Do que a gente teve na pesquisa?

Fernanda Boff – Na pesquisa. Acho que é o que eu compararia dessas duas fases.

Se ficar confuso quando tu ouvir, ou tu não entender, pede que eu te escrevo, que

às vezes eu tô muito, fica passando muita coisa na minha cabeça.

Julia Lüdke – É pra registrar, mesmo, o teu processo mental, é pra ser assim...

Fernanda Boff – (risos)

Julia Lüdke – E aí a ultima pergunta, que tu também já deu uma pincelada lá em

cima: com relação aos espaços, que primeiro a gente utilizou a sala 209, depois o

mezanino, e depois do mezanino a gente deu uma passada na Redenção, foi pro

terraço da Juliana e, no final, a gente foi pra locação escolhida pra gravação final,

que é, na CAFF, lá, no heliponto. Como é que você acha que essa alteração dos

lugares e essa pouca permanência lá no CAFF influenciou o trabalho e no

processo? Como é que você vê essa influência, positiva, negativa, ou então, como

tu acha que influenciou?

Fernanda Boff – Eu vejo... Eu não vejo de forma negativa essa peregrinação, acho

que até a gente podia ter experimentado outros lugares, se a gente conseguisse, né.

Tinha uma ideia de fazer na areia, na praia e tal. Eu acho que isso enriqueceu o

174

trabalho, poder ver como é que a coisa toda funciona e com mais uma influência, né,

que é a influência do espaço, né, a influência do ambiente, do tamanho, da

temperatura, da... Da relação com as outras pessoas que tão passando ou não, sei

lá, de tu ter uma grade, de tu não ter uma grade, de tu ter uma parede, antes não ter

uma parede, enfim. E de perceber o tanto, no momento da experimentação, né, de

como que isso influencia e como que influencia no resultado depois da... Pensando

na gravação em si, né, eu acho que isso enriqueceu, tipo, bah, tá, isso aqui tem que

ter um espaço amplo, espaço amplo funciona muito. Os vídeos ganharam uma outra

qualidade estando no mezanino do que estando na 209, né. Pra mim, era uma coisa

tu fazer o looping ali na 209 e tu fazer no mezanino, já era muito diferente. E aí tá, aí

depois no terraço também tipo, uau, um outro efeito. Acho que é isso. E das tuas

sacadas também, né, desse... De como o espaço influencia, né, eu vejo como um

ponto positivo nesse sentido, de pensar nas influências e se deixar tomar por elas. O

ponto negativo que eu vejo, mas aí é bem pessoal e é meu, não é... Não é com

relação ao processo, em relação ao processo, pra mim, foi totalmente positivo. Com

relação à minha pessoa, foi negativa a questão da altura, porque eu tenho medo e

eu me vi numa situação até constrangedora, tipo: “Julia, eu não tô conseguindo

fazer”, sabe, tipo: “não tô conseguindo, e agora? E agora?”. Mas aí tu já me veio

com uma solução: “fecha o olho”, aí já melhorou. E aí depois também, eu percebi

que quando eu enxergava o Doug, a primeira vez que eu tentei fazer a parada de

cabeça, o Doug não tava comigo, me filmando, eu olhei pro nada, assim, não

consegui. Daí, depois que ele tava me filmando, eu tinha ele como referência, então

conseguia ficar com o olho aberto. E aí... Ah, e aí a minha fragilidade, né, eu sou

muito fragilzinha, é um saco, eu não crio cascão no pé, eu não crio, minha mão é

um... Ai, é muito fina, minha pele é muito fina, então eu fiquei toda cheia de não-me-

toques, assim, no chão, assim, com medo de me machucar. Não medo, medo é

foda, mas toda cagada (risos). Então eu fiquei com medo de altura e com medo de

me machucar, e aí por isso, também, eu fiquei um pouco decepcionada de não

conseguir bloquear isso, assim, de não conseguir dar conta desse medo do... Do

medo de altura, eu acho que eu até me sai bem, eu acho que me sai, “tá, vamos lá,

tu não tem outra opção, tu vai ter que fazer isso, tu não vai cair”, tive esse processo.

Mas a coisa de me machucar, até porque, realmente, tava muito quente o chão, e aí

é uma coisa mais sensitiva, né, assim, de sentir o calor e sentir as pedrinhas. O

175

medo de altura é mais psicológico, mais possível; o outro é mais sensorial, assim.

Então eu fiquei, fiquei com medo, mas esse é o único ponto negativo que eu vejo e

só aconteceu na última vez que a gente filmou, e é bem pessoal, assim, é bem meu,

é uma coisa que eu vou ter que tratar (risos). Na terapia.

Julia Lüdke – Tu teria mais alguma coisa que tu gostaria de acrescentar, que não

foi perguntado ou que tu acha importante pontuar ou comentar?

Fernanda Boff – Eu acho que... Eu poderia falar mais alguma coisa, mas não sei o

quê, deixa eu ver...

Julia Lüdke – Não, só se tu tiver alguma coisa pra...

Fernanda Boff – Acho que sim, acho que sim. Eu queria reafirmar, talvez, de insistir

na qualidade do teu trabalho, sabe, de tanto tu, como uma profissional, como uma

artista, como uma professora, como uma mestranda, como uma coreógrafa, como

uma videomaker, como uma pensadora da área; da relevância, da importância e da

qualidade desse trabalho. Porque, de todo o jeito que tu conduziu ele, de como tu

pensou ele, de como tu tem propriedade sobre ele. Que eu me sinto como uma

colaboradora, uma admiradora e uma envolvedora, mas, tipo, todo o mérito é teu,

assim, de toda a constituição da coisa em si e da potência disso, de como ele pode

pra muitos outros lugares e que taí, tá latente, tá pulsando. E sim, e reafirmar isso e

acreditar nisso, sabe, não... Independente do mestrado, independente de qualquer

outra coisa que às vezes nos trava, acreditar que é, porque é, sabe, é (risos). E que

eu me sinto realmente lisonjeada de fazer parte disso, assim, que como, pra mim,

pro meu crescimento como artista, da tua confiança e do teu direcionamento pra

coisa, me fizeram muito, me influenciaram muito, né. Acho que é isso. Parabéns!

176

ANEXO E – Arquivos videográficos, fotográfico do processo e a videodança

Experimento Looping.

Pode ser visualizado, também, através do canal no youtube “Julia Lüdke”, playlist

“Corpos que videodançam: um convite ao looping (Anexo E)”94.

94

Disponível em: <https://youtu.be/IwPvnE2tuSY?list=PLSCWj5okZBegPOOcxcO--eni4HKpUyp8D> Último acesso em: 16 de setembro de 2015.

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ANEXO F – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos artistas

colaboradores.

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179

180