UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CAMPUS DE CASCAVEL
CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS
NÍVEL DE MESTRADO PROFISSIONAL – PROFLETRAS
DONETE SIMONI ROSSO
DO RAP AOS "CONTOS CRESPOS", DE LUIZ SILVA (CUTI):
A VOZ DA RESISTÊNCIA EM SALA DE AULA
CASCAVEL – PR 2015
DONETE SIMONI ROSSO
DO RAP AOS "CONTOS CRESPOS", DE LUIZ SILVA (CUTI):
A VOZ DA RESISTÊNCIA EM SALA DE AULA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras – Nível de Mestrado Profissional (PROFLETRAS), área de concentração em Linguagem e Letramentos, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Campus de Cascavel, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de Pesquisa: Leitura e Produção Textual: Diversidade Social e Práticas Docentes. Orientadora: Profa. Dra. Valdeci de Melo Batista Oliveira.
CASCAVEL – PR 2016
À minha mãe, NATALINA (in memoriam), que, na simplicidade de sua fala
e de suas unhas sujas de terra, muito me ensinou sobre a
difícil travessia que é a VIDA.
AGRADECIMENTOS
A DEUS, meu socorro permanente, em quem acredito sem “conhecer” e que
acredita em mim, mesmo conhecendo-me.
Ao meu marido e ao meu filho, por compreenderem a importância da dedicação à
pesquisa e ao curso como um todo, apoiando-me e “sobrevivendo” à minha
ausência, para que eu pudesse concretizar esse sonho e “atravessar o Bojador”.
À professora Dra. Valdeci de Melo Batista Oliveira – minha orientadora, o suporte
desta pesquisa – pelos direcionamentos e conselhos que apontaram sempre o
melhor caminho.
Às professoras Dra. Denise Scolari Vieira e Dra. Wilma dos Santos Coqueiro, pelas
importantes contribuições na banca de qualificação; e aos professores da comissão
examinadora, Dr. Gilmei Francisco Fleck, Dr. Antônio Márcio Ataíde e, novamente,
Dra. Wilma dos Santos Coqueiro, por apontamentos valiosos que enriqueceram a
versão final.
À CAPES, pela concessão da bolsa durante o período de estudos, o que contribuiu
significativamente para a efetivação da pesquisa.
Ao PROFLETRAS, programa de pós-graduação que acreditou e acredita nos
profissionais de Letras e que me concedeu a oportunidade de retornar aos bancos
escolares para um salto de qualificação profissional.
À secretária do PROFLETRAS, Cris, sinônimo de boa vontade e amabilidade,
sempre à disposição.
Aos Professores de todas as disciplinas do Programa, que, com os direcionamentos
propostos, contribuíram imensamente para a efetivação deste trabalho.
À professora Dra. Greice da Silva Castela, coordenadora do PROFLETRAS na
UNIOESTE, campus de Cascavel.
Aos colegas, com quem muito aprendi, por meio de seus exemplos, de suas
práticas, de sua presença e com quem compartilhei dificuldades e busquei
alternativas.
Ao Grupo da Estrada, colegas que se tornaram amigos ao comigo percorrer
incontáveis quilômetros na BR 277, que enfrentaram perigos, mau tempo e cansaço
ao meu lado; pelas muitas conversas, apoio, ajuda e gargalhadas. Vocês tornaram a
caminhada mais leve.
Ao diretor do colégio em que trabalho e onde desenvolvi as atividades; e aos
colegas professores, pela abertura de espaço para as novas práticas e pelos votos
de confiança.
À colega e amiga Viviane Bordin, nossa representante de turma, por nos representar
tão bem nas reuniões do Colegiado.
Aos alunos, sujeitos da pesquisa, com quem muito aprendi e dividi lições
importantes.
Aos familiares em geral, pelo apoio e eternas palavras de incentivo, fazendo-me
renovar as forças a cada dia.
BRASIL COM P Pesquisa publicada prova:
Preferencialmente preto, pobre, prostituta
Pra polícia prender Pare, pense, por quê?
(GOG, 2000)
FERRO Primeiro o ferro marca a violência nas costas
Depois o ferro alisa a vergonha nos cabelos.
Na verdade o que se precisa é jogar o ferro fora
e quebrar todos os elos dessa corrente de desesperos.
Cuti (Luiz Silva)
ROSSO, Donete Simoni. Do rap aos "Contos Crespos", de Luiz Silva (Cuti): a voz da resistência em sala de aula. 2016 (199 páginas) Dissertação (Mestrado Profissional em Letras – Profletras) ‒ Universidade Estadual do Oeste do Paraná ‒ UNIOESTE, Cascavel. Orientadora: Profa. Dra. Valdeci de Melo Batista Oliveira.
RESUMO: Esta pesquisa consiste em um estudo voltado à literatura e ao ensino escolar, com interfaces na leitura, escrita e interculturalidade. Tem por objetivo analisar a pertinência de se trabalhar atividades de leitura e escrita com os alunos do 9º Ano do Ensino Fundamental a partir de letras de rap nacional e de contos de Luiz Silva (Cuti), especificamente no livro Contos Crespos (2008), com vistas a desenvolver ou fomentar a criticidade e a leitura emancipatória. Constitui-se de uma pesquisa bibliográfica juntamente com uma proposta prática de atividades em sala de aula. Quanto aos procedimentos técnicos, encaixa-se como pesquisa-ação, com abordagem qualitativa. Envolve o uso de técnicas padronizadas de coleta de dados: análise documental de atividades de interpretação e produções textuais – letras de rap e comentários crítico-reflexivos – conforme Unidade Didática elaborada no decorrer do mestrado especificamente para esse fim. Espera-se, com essa proposta, incentivar o debate intercultural em sala de aula com o suporte de formas estéticas elaboradas por sujeitos historicamente silenciados, como os rappers e os escritores negros, além de motivar professores – possíveis leitores desta dissertação – a experimentarem tal possibilidade de abordagem pedagógica e, com isso, aprofundarem o tema desta pesquisa em outros vieses. A abordagem teórica está voltada à concepção de língua e de literatura como práticas sociais, visto que estas nascem das necessidades de interação da vida social e da problematização – política, social, econômica – entre os falantes, amparada em Bakhtin (1997/2003/2010) e na leitura como letramento, defendida por Soares (2001/2006) e Kleiman (1995/2006). As estratégias de leitura, com base no método recepcional proposto por Aguiar e Bordini (1993) e Zilberman (1989), fundamentam-se na Estética da Recepção segundo Jauss (2002). As bases teóricas do processo de leitura e de formação de leitor contam com o aporte de Lajolo (1997/1999), Orlandi (1988), Silva (2005) e Zilberman (1982). Para as questões literárias, foi buscado respaldo em Bosi (1986), Candido (1972/2004), Cortázar (2006), Compagnon (2009), Rosenfeld (1976), Barthes (2007), Petit (2008), Gotlib (2006), Cuti (2010), Andrade (1999), Proença Filho (2004), Duarte (2014) e Bernd (1997/2011), entre outros. Palavras-chave: rap, contos, leitura emancipatória, resistência, ensino
ABSTRACT: This research consists of a study focused on literature and teaching, with interfaces in reading, writing and interculturality. We intend to analyze the relevance of working activities of reading and writing with students in a the ninth grade of elementary school, based upon national rap lyrics and tales from Luiz Silva (Cuti), specifically those ones in the book Contos Crespos (2008), with a view to develop or foster the criticality and the emancipatory reading. It consists of a bibliographical research; along with a practical propose of activities in the classroom. As for the technical procedures, it fits an action research with qualitative approach. It involves the use of standardized data collection techniques: it is a documentary analysis of interpretation activities and textual productions- rap lyrics and critical-reflective comments – according to Didactic Unit drafted during the master's degree specifically for this purpose. We waited, with this proposal, encourage the intercultural debate in the classroom with the support of aesthetic forms drawn up by subject historically silenced, such as rappers and afro-descendent writers, as well as motivate teachers – possible readers of this essay – to try the experience such a possibility of pedagogical approach and with this deepen, the theme of this research in other biases. The theoretical approach is focused on the design of language and literature as social practice, since these are born of the needs of social interaction and questioning – political, social, economic – among the speakers, supported by Bakhtin (1997/2003/2010) and in reading literacy, as advocated by Soares (2001/2006) Kleiman (1995/2006) and Rojo (2009). Reading strategies based on the recepcional method proposed by Aguiar and Bordini (1993) and Zilberman (1989) are based on Reader-Response Criticism, according to Jauss (2002). The theoretical bases of the process of reading and reader training count on the contribution of Lajolo (1997/1999), Orlandi (1988), Silva (2005) and Zilberman (1982). In literary issues, it was seek support in Bosi (1986), Candido (1972/2004), Cortázar (2006), Compagnon (2009), Rosenfeld (1976), Barthes (2007), Petit (2008), Abreu (2006), Gotlib (2006), Cuti (2010), Andrade (1999), Proença Filho (2004), Duarte (2014) and Bernd (1997/2011), among others. Keywords: rap, tales, emancipatory reading, resistance, teaching.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
1 LEITURA, ESCRITA E ESCOLA: UMA RELAÇÃO CONTRADITÓRIA ............... 20
1.1 LEITURA: ATO SINGULAR X CONSTRUCTO SOCIAL .............................. 28
1.2 A ESCRITA: ATO DE PODER E EMANCIPAÇÃO ....................................... 31
1.3 O CARÁTER SOCIAL E DIALÓGICO DA LINGUAGEM .............................. 35
1.4 LITERATURA: ALGUMAS DEFINIÇÕES E REFLEXÕES ........................... 41
1.5 LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA: NOVOS CAMINHOS ........................ 51
2 O RAP E O CONTO: A RESISTÊNCIA EM SALA DE AULA ............................... 56
2.1 O RAP: A VOZ DAS RUAS, O GRITO DO POVO ........................................ 58
2.2 O CONTO: UM GÊNERO ESQUIVO, DE DIFÍCIL DEFINIÇÃO ................... 67
3 ABORDAGENS METODOLÓGICAS .................................................................... 73
3.1 A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: VALORIZAÇÃO DO LEITOR ..................... 73
3.2 MÉTODO RECEPCIONAL: NOVOS HORIZONTES .................................... 77
3.3 PESQUISA-AÇÃO COM ABORDAGEM QUALITATIVA: INTERAÇÃO
ENTRE PESQUISADOR E PESQUISADO ........................................................ 79
3.4 O AMBIENTE ESCOLAR E OS SUJEITOS DA PESQUISA ........................ 82
4 ATIVIDADES PROPOSTAS E ANÁLISES DOS RESULTADOS ......................... 86
4.1 UNIDADE DIDÁTICA: PRIMEIRA PARTE - LETRAS DE RAP ................... 87
4.2 UNIDADE DIDÁTICA: SEGUNDA PARTE – CONTOS CRESPOS ............ 127
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 152
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 156
ANEXOS ................................................................................................................. 164
ANEXO 1 – CONTO “NAMORO” ....................................................................... 164
ANEXO 2 – COMENTÁRIOS REFLEXIVO-CRÍTICOS DOS ALUNOS SOBRE AS
AULAS COM LETRAS DE RAP .............................................................................. 174
ANEXO 3 – FOTOS DAS PRODUÇÕES DA RELEITURA DA BANDEIRA
BRASILEIRA E MURAL: ......................................................................................... 177
ANEXO 4 – LETRAS DE RAP PRODUZIDAS PELOS ALUNOS ........................ 180
ANEXO 5 – FOTOS DOS MURAIS COM LETRAS DE RAP .............................. 191
ANEXO 6 – FOTOS DA APRESENTAÇÃO DAS LETRAS DE RAP ................... 195
ANEXO 7 – FOTOS PESQUISA DE CAMPO: BONECAS NEGRAS À VENDA
NAS LOJAS DA CIDADE ........................................................................................ 197
ANEXO 8 - QUESTIONÁRIO..............................................................................199
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INTRODUÇÃO
Um dos maiores desafios pedagógicos atuais é lidar com os conflitos surgidos
quando os jovens oriundos da classe trabalhadora passaram a integrar a rede
pública de ensino – segundo dados do IBGE1, em 2012 o número aproximava-se
dos 40 milhões de alunos. A inclusão desses jovens no ambiente escolar – tomados
como suporte os estudos de José Carlos Gomes da Silva (1999) – afeta, de várias
maneiras, nossa prática docente em sala de aula, o que deveria ser premissa para
novas posturas e reflexões sobre o fazer pedagógico.
As escolas, contudo, permaneceram – e permanecem – as mesmas:
impermeáveis à realidade e à cultura2 dos excluídos que existem fora dos muros
escolares. Percebemos um silenciamento institucional no que diz respeito às formas
de produção e de reprodução da vida material, tais como trabalho, emprego,
moradia, alimentação e outras formas de inter-relações da vida sociocultural,
relativas à sexualidade, às drogas, à violência, ao preconceito – racial, religioso,
social e de orientação sexual –, à prostituição e a outros temas que raramente são
tomados como objeto de reflexão em sala de aula. E, se o são, predomina a visão
excludente e moralista, recoberta pelo verniz censor do status quo.
Para fortalecer e manter essa opacização da realidade dentro dos muros
escolares, os textos utilizados nas atividades pedagógicas de leitura e de
interpretação/compreensão são, normalmente, aqueles sugeridos pelo livro didático.
O texto literário, nas mais das vezes, é tomado como complemento, e não como
componente de fundamental importância para a consecução das aulas e nem
gerador de discussões e de atividades que poderiam levar o aluno a pensar sobre si,
sobre a realidade que o circunda, sobre a vida social que compartilha com familiares
e colegas, sobre o mundo e sobre os conflitos que vivencia.
1 Os dados apresentados referem-se à pesquisa do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – sobre Censo Escolar da Educação Básica no país. Disponível em: <http://down load.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/resumostecnicos/resumo_tecnico_censo_educacao_basica_2012.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2016.
2 Os sentidos da palavra cultura são abordados por Willians (2007): em decorrência do intrincado desenvolvimento histórico, os sentidos para essa palavra foram ampliados e usados na formulação de conceitos diferentes e, por vezes, até incompatíveis nas disciplinas intelectuais, dando para a palavra cultura complexas variações de uso. Além do sentido primeiro (cultivo ou cuidado), o autor aponta o sentido artístico, intelectual e antropológico da palavra em questão. Interessa-nos esclarecer que, nesta pesquisa, entendemos cultura como um modo particular de vida, de um povo, de um período, de um grupo ou da humanidade em geral, com base no mesmo autor.
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Com o respaldo de Ezequiel T. da Silva (2005) e em minha experiência de
dezenove anos como professora do Ensino Fundamental – anos finais – em relação
aos textos e/ou livros utilizados na escola, constato que há uma série de problemas.
Eles são fragmentados, muitas vezes artificiais e nada dizem às experiências, aos
desejos e à realidade dos estudantes. Parece que esses textos são inseridos nos
livros didáticos por meio de critérios questionáveis, tais como atender aos interesses
das editoras e de enfatizar a moralidade canhestra e a submissão ao establishment.
Por conseguinte, o modo de leitura patrocinado pela escola, como prática
pedagógica, é superficial, pois não chega à verdadeira compreensão do texto lido,
uma vez que o ato de compreender, segundo Eni P. Orlandi (1988, p. 116), “[...]
supõe uma relação com a cultura, com a história, com o social e com a linguagem,
que é atravessada pela reflexão e pela crítica”. Parece óbvio que, para atingir tal
nível de compreensão, precisamos muito mais do que atividades de leitura e escrita
esporádicas e dispersas.
Por tais motivos, é importante a utilização de práticas pedagógicas que levem
os alunos a se apossar da linguagem literária, que essa linguagem construa sentidos
para eles, e que, por meio do entrelaçamento dos significados de suas leituras
anteriores, possam elaborar outros, sempre novos e relativizados. E, sobretudo, que
essas práticas questionem as ideologias subjacentes nos textos literários e didáticos
utilizados, uma vez que a visada maior das aulas de Língua Portuguesa é
desenvolver a criticidade do aluno/leitor e tirá-lo da passividade, conforme defendem
as Diretrizes Curriculares da Rede Pública de Educação Básica do Estado do
Paraná de Língua Portuguesa (2008) – doravante DCEs.
No decorrer das explanações aqui apresentadas debateremos sobre a
pertinência de se tomar letras do rap nacional como forma estético-cultural rica em
possibilidades para se desenvolver atividades pedagógicas estimuladoras da
criticidade. Também será discutida a necessidade de ampliação do debate em sala
de aula no que respeita à abordagem da interculturalidade3 e, para isso, optamos
3 Optamos por usar o termo interculturalidade em detrimento aos termos multiculturalidade e transculturalidade por acreditamos que abarca a relação complexa entre sujeitos e culturas diferentes, problematiza aspectos conflituosos das relações intergrupais e intersubjetivas e também entre visões de mundo diferentes, o que pode resultar na mudança do horizonte de percepção da realidade. Segundo Fleuri (2005), a polissemia terminológica existente entre os termos multiculturalismo, transculturalismo e interculturalismo é um campo de debate complexo, rico em perspectivas, que, por isso, não podem ser reduzidas a um único modelo aceito universalmente. Segundo ele, “a intercultura vem se configurando como um objeto de estudo interdisciplinar e transversal, no sentido de tematizar e teorizar a complexidade (para além da pluralidade ou da
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por utilizar contos do escritor negro Luiz Silva – conhecido também como Cuti – mais
especificamente do livro Contos Crespos (2008).
Na atualidade, muitos jovens, principalmente os que habitam as periferias das
grandes cidades, mas também dos municípios do interior do país, fazem uso do rap
como uma forma de manifestar sua opinião e/ou de buscar possíveis saídas para os
seus conflitos e as suas necessidades existenciais, o que faz com que esse estilo
poético/musical se configure como porta-voz de suas inquietações, críticas e
denúncias, numa busca de (re)construção de sua identidade.
A identificação dos alunos com o rap é constatada diariamente no ambiente
escolar, seja por meio da sua vestimenta, seja pelos refrãos que repetem decorados
durantes os intervalos, seja em comentários ou conversas durante debates ou aulas.
E essa inegável aceitação/empatia pelos adolescentes e jovens de diferentes
regiões do país se dá por vários motivos: pela forte carga emocional que sustenta o
estilo ou pela figuração de características adolescentes e jovens e de seu entorno,
estabelecendo um périplo cultural em que as relações entre a vida, o conhecimento,
a cultura são possíveis; ou ainda pela bandeira de transgressão
político/social/econômica que muitas letras defendem, uma vez que tais aspectos
vão ao encontro das necessidades, dos conflitos ou dos anseios vividos por grande
parcela da juventude atual.
Contudo, esse gênero poético/musical precisa ser compreendido em toda sua
complexidade socioeducativa, pois é mais do que ritmo e som; é denúncia e crítica.
Segundo Geni Rosa Duarte (1999), tem muito a contribuir na formação do aluno.
Ganha importância por ser um movimento gestado entre os jovens, como expressão
de resistência, lutas, críticas e questionamentos advindos de grande parte da
diversidade) e a ambivalência ou o hibridismo (para além da reciprocidade ou da evolução) dos processos de elaboração de significados nas relações intergrupais e intersubjetivas, constitutivos de campos identitários em termos de etnias, de gerações, de gênero e de ação social” (FLEURI, 2005, p. 103). O mesmo autor (FLEURI, 1999) também afirma que na prática intercultural de educação deve-se considerar não somente o processo histórico de coexistência entre as diferentes culturas, mas também a proposta de mudança e a necessidade de um projeto de educação, além de que, na perspectiva intercultural, “os educadores e educandos não reduzem a outra cultura a um objeto de estudo a mais, mas a consideram como um modo próprio de um grupo social ver e interagir com a realidade” e, sobretudo, “a educação intercultural refere-se à ênfase nos sujeitos da relação". Neste sentido, a educação intercultural desenvolve-se como relação entre pessoas de culturas diferentes. Não simplesmente entre "culturas" entendidas de modo abstrato. Valorizam-se prioritariamente os sujeitos que são os criadores e sustentadores das culturas (FLEURI, 1999, p. 279/280). Logo adiante veremos que o termo interculturalidade é especificado de distintas formas por Catherine Walsh (2010), autora que amplia consideravelmente sua abrangência.
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população – que faz parte da camada produtora dos bens, mas que não tem acesso
a eles – chamada erroneamente de “minoria”4 no nosso o país.
Seguindo o mesmo viés de crítica e denúncia, os contos de Cuti, lutador
incansável da causa dos negros, são vanguardistas no sentido da temática e na
postura engajada do autor, todavia também – assim como letras de rap nacional –
ainda não constam nos livros didáticos e nem fazem parte dos acervos das
bibliotecas. Consequentemente, não estão ao alcance do aluno das escolas
públicas, que têm seu universo de leitura reduzido praticamente ao que a escola lhe
proporciona.
Por tais motivos, durante a pesquisa buscamos investigar as questões abaixo:
Colocar a prática da leitura e de escrita como foco nas aulas de Língua
Portuguesa, poderá isso tornar as aulas mais atrativas e dinâmicas e
estimular a participação efetiva do aluno nas atividades propostas de
leitura e escrita?
É o aluno do Ensino Fundamental (séries finais) capaz de compreender a
linguagem literário/figurativa dos contos de Cuti e dos raps e se expressar
por meio da escrita significativa, sobre temas pertinentes à sua realidade?
Utilizar em sala de aula letras do estilo poético/musical rap e contos do
escritor negro Luiz Silva (Cuti) levará o aluno a perceber e a valorizar
atividades de leitura e de escrita como forma eficaz de crítica, de
resistência, de denúncia e de autoafirmação, propiciando vivenciar e
debater a interculturalidade?
As respostas a essas questões nos dirão se a identificação do aluno com o
rap e com os contos de Cuti é escolha profícua e estratégica para levá-lo ao
aprimoramento da leitura e da escrita e, como consequência, colaborar para que
desenvolva a criticidade emancipatória5 e vivencie a educação intercultural.
4 O termo minoria, quando se refere à grande massa de excluídos de nossa sociedade, é equivocado em termos de estatística populacional, porém, em se tratando de distribuição de riquezas, essa grande massa realmente é minoria, pois detém ínfima parte da riqueza do país. Com base em dados do IRPF – Imposto de Renda de Pessoa Física – é possível estimar que, em 2012, os 50% dos brasileiros mais pobres detinham 2% da riqueza, 36,99% ficavam com 10,60% e 13,01% com 87,40%. Uma parcela menor entre os mais ricos, 0,21%, era dona de 40,81% do total. Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/denuncias/brasil-debate-absurda-concentracao-de-renda-09-dos-brasileiros-detem-60-da-riqueza.html>. Acesso em: 20 ago. 2015.
5 A leitura emancipatória é vista como a capacidade de questionamento, de discussão dos valores que nos circundam e da consequente postura crítica perante eles, contrapondo-se à leitura utilitária, controladora, unicamente parafrástica, voltada à submissão, ao conformismo ou à repressão. Esse conceito encontrou suporte nos escritos de Regina Zilberman e de Ligia Cademartori (1987).
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Mesmo tendo se tornado obrigatório, sabemos que, em diversas escolas
estaduais do Paraná, os conteúdos da Lei Federal nº 11.645/2008 ficam reduzidos a
atividades referentes ao dia 20 de novembro – dia da Consciência Negra ou para o
Dia do Índio – 19 de abril. Entretanto, esses conteúdos deveriam estar presentes na
Educação Básica, juntamente com outros conteúdos, com vistas a efetivar o diálogo
entre o ambiente escolar e o cotidiano de seus alunos, atendendo assim ao que
dispõe a Lei Federal nº 11.645, de 10 de março de 2008, que altera a Lei Federal nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei Federal nº 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e as bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, tornando obrigatório o ensino da História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e
Médio, oficiais e particulares. A mesma lei salienta ainda que os conteúdos
referentes à História e Cultura Afro-Brasileira devam ser ministrados no âmbito de
todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura
Brasileira e de História Brasileira.
Outro aspecto que justifica a pesquisa e o interesse nesta proposta é o fato
de que tanto o rap quanto os contos negros de Cuti e a possibilidade de sua
abordagem pedagógica com vistas a um debate intercultural carecem de mais
pesquisas, discussões e aprofundamentos. Em levantamento realizado no Banco de
Teses da Capes (2015) não foram encontradas pesquisas específicas sobre os
temas ora propostos.
A partir do exposto, evidenciamos que muito falta a ser feito sobre essas
questões e que não se esgotaram as abordagens possíveis que esses temas
oferecem e necessitam, e, sendo assim, podem e devem ser aprofundados em
outros vieses, ou seja, pensados em sua aplicabilidade em sala de aula, nas aulas
de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental, como ora se propõe.
Tais aspectos aqui elencados justificam a opção de tomar letras de rap como
ponto de partida para atividades pedagógicas que têm por objetivo proporcionar
espaços de debate da interculturalidade, indo além da perspectiva funcional,
buscando atingir o nível da crítica6.
6 Catherine Walsh, em Interculturalidad Crítica y Educación Intercultural (2010) expõe os múltiplos sentidos do termo Interculturalidade, especialmente no campo educativo. A autora considera
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O objetivo mais amplo desta pesquisa é, pois, investigar a pertinência de
atividades de leitura e escrita pautadas na concepção discursiva, em sala de aula de
9º ano do Ensino Fundamental, tendo como base letras do rap nacional e contos do
escritor negro Cuti, com vistas à criticidade e à leitura emancipatória.
Para isso, esquematizamos os objetivos específicos, constituindo-se em
direcionamentos mais restritos para se alcançar o objetivo geral, o que nos leva a
destacar:
• Verificar se o uso de atividades a partir de estéticas populares, como
letras de rap nacional e contos do escritor Cuti, tornam as aulas mais
atrativas e dinâmicas e se estimulam a participação efetiva do aluno nas
atividades propostas;
• Incentivar a pesquisa das origens (contexto histórico/social, finalidade,
expansão) do rap e suas peculiaridades composicionais;
• Ampliar e aprofundar o debate sobre a forma/necessidade de
resistência das classes populares por meio de leitura e atividades de contos
do escritor negro Luiz Silva (Cuti);
• Possibilitar e documentar a produção escrita do aluno com atividades
de produção de letras de rap e comentários reflexivo-críticos a partir de sua
realidade e de seus temas de interesse, para que se posicione e demarque
sua voz no contexto social;
funcional a perspectiva intercultural que reconhece a diversidade e as diferenças culturais, mas que procura incluí-las na estrutura social estabelecida, sem problematizar as causas, desigualdades e conflitos sociais e culturais gerados nessas relações, como também “não questiona as regras do jogo” (WALSH, 2010, p. 77, tradução nossa). Nesse sentido, essa perspectiva pode ser uma nova estratégia de dominação, pois inclui – ou reacomoda dentro dos desígnios da neoliberalização e das necessidades do mercado – grupos historicamente excluídos, sem, contudo, alterar a estrutura social hegemônica, capitalista e excludente que mantêm tais relações, visto ser algo implantado “de cima para baixo”. Contudo, a interculturalidade crítica é conceituada de forma mais ampla, como um projeto complexo, que ainda se faz necessário construir. “É estratégia, ação e processo de relação e negociação entre, em condições de respeito, legitimidade, simetria, equidade e igualdade”[...]. Para se efetivar, a interculturalidade crítica requer a “transformação das estruturas, instituições e sociais, das condições de estar, ser, pensar, conhecer, aprender, sentir e viver” (WALSH, 2010, p. 78, tradução nossa). Portanto, não basta tolerar ou incorporar o diferente dentro das estruturas e matrizes estabelecidas, mas reconceituar e refundar as estruturas sociais, epistêmicas e existenciais do cenário que coloca em relação práticas e modos culturais diversos. A mesma autora, em Educação Intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas (2009), relaciona o termo interculturalidade crítica com o termo de-colonialidade, este visto como o resgate da existência e humanização dos sujeitos. Tanto a interculturalidade crítica como a de-colonialidade “são projetos, processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamente, alentando forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular e construir” (WALSH, 2009, p. 25).
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• Analisar se tais letras/produções se constituem como forma de
autoafirmação, questionamentos ou críticas, propiciando a vivência e o
debate da interculturalidade crítica.
No que se refere à perspectiva metodológica, a proposta desta pesquisa
classifica-se como pesquisa-ação, método em que os pesquisadores em educação
encontram condições para produzir informações e conhecimentos de uso mais
efetivo, o que promove condições para ações e transformações de situações dentro
do próprio ambiente pesquisado. E é também qualitativa, pois constitui base para
uma análise da qualidade do processo efetivado pela pesquisadora por meio das
atividades.
Sobre esse formato de pesquisa, Teis e Teis (2013) afirmam que a expressão
qualitativa se contrapõe ao esquema quantitativista de pesquisa, que divide a
realidade em unidades passíveis de mensuração, estudando-as isoladamente. Em
contrapartida, a visão qualitativa de pesquisa defende que se levem em conta todos
os componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas. Com
suas raízes na fenomenologia7, a abordagem qualitativa possibilita metodologias que
permitem ao pesquisador descrever a visão de mundo dos sujeitos estudados.
Sobre esses aspectos nos aprofundaremos no capítulo três, ao tratar sobre os
encaminhamentos metodológicos.
O corpus desta pesquisa são as produções escritas – letras de rap produzidas
pelos alunos, anotações no diário de campo, atividades de interpretação, produções
de textos reflexivo-críticos – desenvolvidas no 9º ano do Ensino Fundamental de
escola da rede pública estadual de um município da região Oeste do Paraná,
durante a aplicação da Unidade Didática composta por atividades elaboradas para
esse fim.
Desse modo, a presente pesquisa é também aplicada, o que se justifica pelo
fato de que o Mestrado Profissional em Letras, do Programa Federal PROFLETRAS,
prevê a prática pedagógica das atividades elaboradas, pois o objetivo fundamental
7 O fundador do movimento fenomenológico foi Edmund Husserl (1859-1938), na Alemanha, que utilizou o termo imprimindo-lhe o significado de método de apreender os fenômenos que se referem à realidade, sendo que esta se manifesta por si mesma. Para Husserl, a fenomenologia seria "[...] uma ciência rigorosa, mas não exata, uma ciência eidética que procede por descrição e não por dedução. Ela se ocupa de fenômenos, mas com uma atitude diferente das ciências exatas e empíricas. Os seus fenômenos são os vividos da consciência, os atos e os correlatos dessa consciência" (CAPALBO, s.d, p. 14).
18
da especialização é a melhoria dos encaminhamentos efetivados na escola com
vistas à melhoria da Educação.
A abordagem teórica norteadora dos estudos considera por escopo a
concepção de língua como prática social, concepção essa amparada em Bakhtin
(1997/2003) e na leitura como "letramento", defendida por Soares (2001/2006) e
Kleiman (1995/2006). As estratégias de leitura têm base no método recepcional, a
partir de Aguiar e Bordini (1993) e de Zilberman (1989), que, por sua vez, se
ancoram na Estética da Recepção, de Jauss (2002). As fundamentações teóricas do
processo de leitura e de formação de leitor contam com o aporte teórico de Lajolo
(1997/1999), Orlandi (1988), Silva (2005) e Zilberman (1982/1994). Para as
questões literárias buscamos o amparo de Bosi (1986), Candido (1972/2004),
Cortázar (2006), Compagnon (2009), Rosenfeld (1976), Barthes (2007), Petit (2008),
Gotlib (2006), Cuti (2010), Andrade (1999), Proença Filho (2004), Duarte (2014) e
Bernd (1997/2011), entre outros.
Quanto à estrutura formal da dissertação, é composta por esta introdução e
por quatro capítulos. Assim, no primeiro capítulo apresentamos a revisão
bibliográfica necessária para fundamentar a pesquisa no que se refere à leitura e à
escrita – as contradições existentes desde o seu surgimento e suas relações
também contraditórias com a escola – e à literatura e seu papel na formação
humana e cidadã na educação básica. Também nesse capítulo propomos discussão
a respeito da literatura negro-brasileira, problematizando aspectos a ela atrelados.
Todos esses embasamentos fazem desse capítulo o mais longo da dissertação.
No segundo capítulo abordamos e discutimos as definições e especificidades
do rap – origem, temáticas, finalidades e especificidades de estilo – e, em seguida,
sobre o conto, uma vez que essas duas formas estéticas são eixo do trabalho que
ora propomos.
No terceiro capítulo tratamos dos encaminhamentos metodológicos da
pesquisa, ressaltando a abordagem literária pautada no método recepcional
defendido Aguiar e Bordini (1993) e por Zilberman (1989), que, por sua vez, se
ancoram nos estudos de Jauss (2002). Também apresentamos, nesse capítulo, a
realidade do ambiente em que se realizou a pesquisa, aspectos sobre os sujeitos
nela envolvidos e explanações sobre a pesquisa-ação com abordagem qualitativa, a
partir de Thiollent (1996), de Tripp (2005), de Denzin e Lincoln (2006), dentre outros.
19
No quarto capítulo apresentamos as atividades propostas na Unidade
Didática e as análises dos resultados da aplicação, fundamentadas nas teorias que
sustentaram a pesquisa, seguidas por considerações atinentes sobre todo o
processo.
20
1 LEITURA, ESCRITA E ESCOLA: UMA RELAÇÃO CONTRADITÓRIA
“...a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear
o acesso ao poder”. (GNERRE, 1994)
A habilidade de ler e escrever como condição para ascensão social foi
imposta ao trabalhador como verdadeira, mas, na verdade, isso o introduziu numa
ideologia que privilegia o modo de conhecimento consagrado pela burguesia. E esse
dilema é presenciado diariamente na escola pública. Regina Zilberman (1982) alerta
para o fato de que três quartos da humanidade estão impedidos de falar, estão
destituídos de seu próprio discurso enquanto leem livros produzidos pela burguesia,
livros que disseminam conceitos e valores da classe dominante. Dito de outro modo,
às classes populares é imposto que aprendam e considerem como legítimas e
superiores as formas da cultura hegemônica em detrimento dos saberes populares
dos grupos dos quais fazem parte, pois estes, como destacamos, são obnubilados
nas instituições escolares.
Orlandi (1988, p. 92) também chama a atenção para essa contradição: “As
classes populares estão na escola. No entanto, o direito que elas têm é o de
aprender as formas legítimas da cultura dominante [...]” como veículos de
conformação à ideologia, sem aprender a relacioná-las à sua história pessoal e a
usá-las para reflexão e questionamentos. A autora salienta também que “[...] é
preciso se criar condições para que as classes populares elaborem sua história de
leitura que a classe dominante desconhece, ou melhor, não reconhece” (ORLANDI,
1988, p. 93). E, para criar essas condições de elaboração de uma história de leitura
própria das classes populares, é imprescindível a colaboração da escola e dos
professores, como mediadores, por excelência, nessa tarefa.
Precursor das mais importantes reflexões sobre a Educação no Brasil, Paulo
Freire (2005) muito escreveu sobre a aquisição da escrita e da leitura e do papel
social e político que esse ato representa. Em seus estudos, considera fundamental
atrelar o ato de ler à construção de relações entre o texto lido e o contexto, unindo
“mundo e palavra”. Além disso, ele também nos ensina que a educação é uma forma
de intervenção no mundo, e que não é neutra, embora muitos discursos propaguem
21
e defendam uma pretensa neutralidade8, como algo a ser buscado9. Espaço
pedagógico neutro, esclarece o grande pedagogo, “[...] é aquele em que se treinam
os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo
fosse ou pudesse ser uma maneira neutra” (FREIRE, 1996, p. 110). Assim, portanto,
depreendemos que a neutralidade não é e nem pode ser um ideal da educação, pois
o próprio discurso que defende a educação neutra está embutido de escolhas
ideológicas específicas.
A perspectiva crítica, que compreende a prática educativa como uma ação
social e política, com vistas ao desenvolvimento de uma pedagogia decolonial10 é a
que pretendemos fomentar com as discussões e atividades propostas nesta
dissertação. É necessário, como nos ensinou Freire (2009), que criemos estruturas
socioeducativas para instrumentalizar os oprimidos, capacitando-os para desvelar as
raízes obscuras de sua opressão, uma vez que só de posse desse conhecimento
poderão questioná-las e atuar sobre elas.
Não há prática social mais política que a prática educativa. Com efeito, a educação pode ocultar a realidade da dominação e da alienação ou pode, pelo contrário, denunciá-las, anunciar outros caminhos, convertendo-se assim numa ferramenta emancipatória. O oposto de intervenção é adaptação, é acomodar-se, ou simplesmente adaptar-se a uma realidade sem questioná-la. (FREIRE, 2009, p. 34).
8 A neutralidade é questionada até mesmo na Ciência. Hilton Japiassu (1975), em O Mito da Neutralidade da Ciência, explica que as condições reais em que são produzidos os conhecimentos – objetivos e racionalizados – estão impregnadas de “inegável atmosfera sócio-político-cultural”. Como resultado desse enquadramento sócio-histórico, a ciência é “[...] um produto humano, nosso produto, que leva os conhecimentos objetivos a fazerem apelo, quer queiram, quer não, a pressupostos teóricos, filosóficos, ideológicos ou axiológicos nem sempre explicitados. Em outros termos, não há ciência "pura", "autônoma" e "neutra", como se fosse possível gozar do privilégio de não se sabe que "imaculada concepção”. Ou seja, não há objetividade absoluta, nem mesmo em se tratando de ciência, porque a “[...] produção científica se faz numa sociedade determinada que condiciona seus objetivos, seus agentes e seu modo de funcionamento. É profundamente marcada pela cultura em·que se insere. Carrega em si os traços da sociedade que a engendra, reflete suas contradições, tanto em sua organização interna quanto em suas aplicações”. (JAPIASSU, 1975, p. 10/11).
9 O projeto de lei, na Câmara Federal – n.º 867, de 2015 –, propõe “uma escola sem partido”, como se isso fosse possível. O próprio discurso de neutralidade política nas escolas é resultado de escolhas ideológicas que não são neutras, conforme já foi exposto. Esse projeto de lei, na íntegra, disponível em: <http://www.camara.gov.br/ sileg/integras/1317168.pdf >. Acesso em: 10 ago. 2016.
10 Walsh (2013) define “pedagogías decoloniales” como “metodologias produzidas em contextos de lutas, marginalização e resistência [...] que fraturam a modernidade/colonialidade e tornam possível outras maneiras de ser, estar, pensar, saber, sentir, existir e viver-com” (WALSH, 2013, p. 24/25, tradução nossa).
22
A prática de leitura, dessa forma, se configura em um instrumento para
conduzir o leitor ao conhecimento da dominação exercida pelos setores dominantes,
podendo resultar numa compreensão crítica do mundo e, com isso, colaborar na luta
pela igualdade e justiça social. Todavia, essa igualdade não será atingida com uma
educação “domesticadora”, pois, “[...] seria uma atitude ingênua esperar que as
classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse
às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica” (FREIRE,
1984, p. 89). Ou seja, aos próprios explorados cabe a difícil tarefa de tomar
consciência da situação exploratória que os envolve e buscar maneiras de romper
com os elos da corrente que os aprisiona na servidão ‒ tarefa essa que, com leitura
e Educação se faz árdua, mas sem elas tampouco ocorrerá.
Essa discussão inicial é relevante para que tenhamos a clareza de que, ao
incentivar a leitura, devemos ir além do discurso institucional que procura tornar
legítimas expressões como: “Quem tem o hábito da leitura apresenta bom
desempenho escolar” ou “o estudo garante um bom emprego, um futuro melhor”.
Essas são, geralmente, “meias verdades” – em meio a tantas contradições que se
enovelam e constituem a complexa base ideológica da globalização – sobre o que
alerta Freire (1996, p. 142): a ocultação dos valores hegemônicos busca “[...]
penumbrar ou obnubilar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna míopes”.
Refletir sobre esses aspectos contraditórios ligados à leitura e à escrita não
significa que a escola e nós, professores, devamos menosprezar/negligenciar a
importância de ambas na formação do aluno. Pelo contrário, é nesse espaço de
contradição que, segundo Magda Soares (2005, p. 28), “[...] germina a
transformação social”, uma vez que “[...] a leitura é, fundamentalmente, processo
político”. E todos os envolvidos nesse processo “[...] têm de ter consciência da força
de reprodução e de contradição presentes nas condições sociais da leitura, e com
isso apossar-se desta última como possibilidade de conscientização e
questionamento”.
Marisa Lajolo (1997) também aborda a importância da leitura como uma
necessidade não só escolar, mas social, para que o aluno possa exercer sua
cidadania sem ser excluído de relações e meios sociais a que tem direito:
Ler é essencial. Não só para quem almeja produzir textos científicos ou literários, mas para todos, já que a sociedade de consumo faz muitos de seus apelos por meio da linguagem escrita e chega por
23
vezes a transformar em consumo o ato de ler, os rituais de leitura e o acesso a ela. No contexto de um projeto de educação democrática vem à frente a habilidade de leitura, essencial para quem quer ou precisa ler jornais, assinar contratos de trabalho, procurar emprego através de anúncios, solicitar documentos, enfim, para todos aqueles que participam, mesmo que à revelia, dos circuitos da sociedade moderna, que faz da escrita seu código oficial. (LAJOLO, 1997, p. 106).
Com essa nova visão social da leitura e com os avanços dos estudos na área
da leitura e escrita, nas últimas décadas surgiu o termo letramento, cunhado por
Mary Kato (1986), ampliado por Ângela Kleiman (1995) e por Magda Soares (2001).
Esse novo termo é amplo e parece abarcar a conotação social ligada à leitura e
escrita, concepção que também defendemos, pois vai muito além da alfabetização
ou da mera decodificação.
É a forte conotação de interação social atrelada ao letramento que o
diferencia do antigo termo alfabetização. Roxane Rojo (2009, p. 98) explica a
distinção, salientando que “[...] alfabetismo tem um foco individual, bastante ditado
pelas capacidades e competências (cognitivas e linguísticas) escolares e valorizadas
de leitura e escrita [...], numa perspectiva psicológica [...]”, enquanto que o
letramento implica “[...] usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita
[...], locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos [...], numa perspectiva
sociológica, antropológica e sociocultural”.
A definição de Soares (2001), dentre outras para esse novo termo, mostra
sua amplitude e complexidade, configurando-se no patamar ao qual nosso aluno do
Ensino Fundamental deveria chegar:
O letramento consiste em um grande número de diferentes habilidades, competências cognitivas e metacognitivas, aplicadas a um vasto conjunto de materiais de leitura e gêneros da escrita, e refere-se a uma variedade de usos da leitura e da escrita, praticadas em contextos sociais diferentes. (SOARES, 2001, p. 107).
Ainda, para Soares (2001), o conceito de letramento apresenta distinções: a
versão fraca e a versão forte. A versão fraca está ligada às necessidades e
exigências sociais do uso da leitura e da escrita; tem semelhanças com o conceito
de alfabetismo funcional. A versão forte de letramento, por sua vez, encaminha-se
para a visão paulo-freireana de alfabetização, revolucionária, ideológica, crítica,
acima das meras exigências sociais, voltada para o resgate da autoestima, para a
24
construção de identidade, para a potencialização de poderes – empoderamento – do
leitor.
Devido a essas influências, o termo letramento pluralizou-se, especificando
saberes: Rojo (2009) assim os define:
multiletramentos ou letramentos múltiplos – letramentos de culturas locais e
de seus agentes em contato com letramentos valorizados, universais;
letramentos multissemióticos – letramento no campo das imagens, da música,
das outras semioses que não somente a escrita;
letramentos críticos e protagonistas – essenciais para o tratamento ético dos
discursos em uma sociedade repleta de textos que exigem reflexão e crítica.
Uma constatação da mesma autora em assunto que, por meio da minha
experiência em sala de aula posso avalizar, é que as atividades de letramento
escolar, tal como são encaminhadas, voltadas principalmente para as práticas de
leitura e escrita de textos em gêneros escolares e para alguns poucos gêneros
escolarizados provenientes de outros contextos – literário, jornalístico, publicitário –
não são suficientes para atingir os letramentos plurais enunciados acima. Para tal
resultado, complementa a escritora, “[...] será necessário ampliar e democratizar
tanto as práticas e os eventos de letramentos que têm lugar na escola como o
universo e a natureza dos textos que nela circulam” (ROJO, 2009, p. 108), pois a
padronização "pasteurizada" da cultura homogeneíza diferenças para construir e
reforçar um único modelo cultural do Ocidente: branco, masculino, heterossexual,
norte-americano e isso conduz ao fast food das mentalidades.
Contudo, ainda segundo ROJO (2009), cabe à escola contrapor-se à
"mcdonalização" cultural com práticas de letramentos críticos eficientes e
constantes, que capacitem os alunos a lidar, na escola e fora dela, com textos e
discursos ditos e tidos por neutros, de maneira que possam perceber a axiologia, a
visada, as estratégias e os efeitos de sentido por eles produzidos.
Essa necessidade de reflexão e desconstrução dos discursos “pasteurizados”
encontra escopo heurístico nos estudos de Mikhail Bakhtin (1992). A compreensão
de um discurso deve ir além da repetição, com vistas a atingir a interlocução, tanto
na réplica, quanto na tréplica, uma vez que não deve ser uma ação passiva e neutra:
O ensino das disciplinas verbais conhece duas modalidades básicas escolares de transmissão que assimila o discurso de outrem (do texto, das regras, dos exemplos): “de cor” e “com suas próprias
25
palavras”. […] O objetivo da assimilação da palavra de outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica do homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta não mais na qualidade de informações, indicações, regras, modelos etc., - ela procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a palavra internamente persuasiva. (BAKHTIN, 2003, p. 142 – ênfase adicionada).
Ademais, no que se refere a práticas de letramentos críticos ou protagonistas
na vida social, Ana Lúcia Silva Souza (2011) aprofunda os estudos dos letramentos
de (re)existência que ocorrem fora da escola, especificamente sobre as práticas
ligadas ao contexto do hip-hop11, visto por ela como uma "agência de letramento".
Essas práticas referem-se às ações que os ativistas realizam, de maneiras diversas,
no grafite, no rap, na dança de rua, expressas por meio da linguagem – verbal,
visual, gestual.
Uma das marcas do movimento12 hip-hop é a intimidade com que combina e
recombina, sem hierarquizar, os multiletramentos em produções que misturam
mídias orais, verbais, imagéticas, analógicas e digitais. Nas palavras da autora:
[...] o hip-hop recria, de maneira singular, práticas culturais e educacionais que marcam o movimento social negro nas diferentes épocas [...]. Eles abordam os letramentos como práticas sociais que, para além das habilidades individuais de uso da linguagem, se realizam em determinados contextos: social, político e cultural. (SOUZA, 2011, p. 43).
As atividades propostas pela cultura hip-hop, segundo os estudos de Souza
(2011), têm se constituído um espaço de produção cultural e política. Chamam a
atenção por aglutinar um número surpreendente de jovens em torno de atividades
como festivais, oficinas, palestras, encontros sobre técnicas de grafite, performances
de dança e música e ainda na produção e distribuição de materiais informativos
11
Souza (2011) explica que o universo hip-hop é marcado pela crítica e reflexão a respeito das desigualdades sociais por meio da poesia (rap), dos gestos, fala, leituras, escritas, imagens, concretizando as quatro figuras artísticas: o mestre de cerimônias (MC), o disc-jóquei (DJ), o dançarino (b.boy ou b.girl) e o grafiteiro.
12 O hip-hop ganha status de “movimento” porque seus integrantes têm uma clara consciência – atitude – de que são sujeitos de direitos civis, sociais e políticos no processo de construção da cidadania ativa. O termo hip-hop, por sua vez, é formado por dois termos ingleses cuja origem, presume-se, seja de meados de 1968, construído por um dos grandes organizadores do movimento nos Estados Unidos, o jamaicano Afrika Bambaata. Ele teria se inspirado nos movimentos de dança dos guetos americanos, daí o significado dos termos (hip) balançando os “quadris” e (hop) “saltar” (SILVA, 2006).
26
impressos – fanzines13 –, ou outros materiais via eletrônica ou digital. Essas práticas
ampliam as possibilidades dos envolvidos a se inserirem “[...] em um lugar de crítica,
contestação e de subversão, no qual, como sujeitos de direito e produtores de
conhecimentos, possam forjar espaços e atuar dentro e fora da comunidade em que
vivem” (SOUZA, 2011, p. 17).
O movimento hip-hop – nas diversas atividades que propõe – passa a ser um
locus privilegiado de circulação e de produção de conhecimento em que os usos da
linguagem escrita são valorizados. Esses usos ganham sentido nas práticas do
cotidiano, em certos sentidos superando a atuação das instituições organizadas,
como a escola, principalmente no que se refere à inserção dos jovens na cultura
letrada, ao fortalecimento de sua identidade e quanto ao engajamento com ações
solidárias e reivindicações junto ao poder público.
Michèle Petit (2008, p. 19) assinala que a leitura “[...] pode ajudar os jovens a
serem mais autônomos e não apenas objetos de discursos repressivos ou
paternalistas [...]” e ainda que a leitura “[...] pode representar uma espécie de atalho
que leva a uma intimidade um tanto rebelde à cidadania”. Tudo isso, segundo a
pesquisadora e antropóloga, contribui para que os jovens estejam mais preparados
para resistir aos processos de marginalização, construindo-se, imaginando outras
possibilidades, encontrando mobilidade no imenso “tabuleiro social”. Essas
afirmações corroboram a importância de que práticas semelhantes às citadas sejam
desenvolvidas nas escolas, onde, por excelência, deveria ser o local privilegiado de
tais aprendizagens.
Já vimos, contudo, que o modo pelo qual a escola tem direcionado o trabalho
com a leitura e literatura em sala de aula muitas vezes não leva ao letramento
proposto por Soares (2001) e Rojo (2009). Assim sendo, a escolarização da
literatura é um aspecto que merece atenção, uma vez que é o que fazemos quando
abordamos um texto literário com vistas a algum objetivo pedagógico.
Segundo Soares (2006) e Lajolo (1997), essa é uma prática inevitável. Ao
professor cabe a revisão crítica da forma como tal escolarização é feita. A
13
O fanzine é um material, geralmente impresso, composto de uma ou duas folhas de papel sulfite trabalhadas à mão. É bastante valorizado pelos ativistas do hip-hop e sua importância extrapola sua aparente simplicidade de confecção e distribuição. Sua elaboração multimodal envolve colagem de textos diversos, como matérias de jornais e revistas, letras de músicas, poemas e propagandas, gravuras e criação de slogans. Constitui-se num material de leitura muito difundido no meio cultural do hip-hop. O termo fanzine tem origem na língua inglesa, combinando fan – fã – e magazine – revista –, ou seja, é uma revista para fãs de determinado universo cultural.
27
fragmentação de textos, que deverão ser lidos e interpretados por meio de lista de
perguntas, objetivando, quase sempre, mera localização de respostas ou exercícios
de metalinguagem (gramática e ortografia) constitui-se, segundo essas autoras, na
forma de escolarização mais intensa e também mais inadequada, porque não
privilegia “aquilo que é literário” e não considera o que é ponderado no excerto
abaixo:
Os objetivos de leitura e estudo de um texto literário [...] devem privilegiar aqueles conhecimentos, habilidades e atitudes necessários à formação de um bom leitor de literatura. A análise do gênero do texto, dos recursos de expressão e recriação da realidade, das figuras autor-narrador, personagem, ponto-de-vista (no caso da narrativa), a interpretação de analogias, comparações, metáforas, identificação de recursos estilísticos, poéticos, enfim, o “estudo” daquilo que é textual e daquilo que é literário. (SOARES, 2006, p. 43 – ênfase adicionada).
Assim, portanto, atividades que privilegiam a literariedade do texto são os
exercícios indicados para estudo/análise do texto literário, sendo estas as
possibilidades a que o professor deveria dar prioridade ao propor atividades em sala
de aula. Sobre isso, Lajolo (1988) também considera:
É exatamente como espaço de resistência, como libertação de dogmatismos, que a presença dos textos pode ser fecunda numa prática escolar que não se queira autoritária. E para isso torna-se fundamental que o professor não dilua a ambiguidade e abertura do texto na obrigatoriedade de certas atitudes a serem manifestadas a propósito dele, texto. (LAJOLO, 1999, p. 54).
A leitura literária, consoante a afirmação anterior, pode tornar-se um meio de
resistência contra toda sorte de dogmatismos, travas, estereótipos sociais e
culturais. Daí a importância de o professor, como mediador, propor
encaminhamentos instigadores e provocativos aos alunos, num “modelo” de leitura
em que ocorra, de fato, a “alquimia de recepção” (PETIT, 2008) e não mera leitura
autoritária/parafrástica de páginas e páginas, seguidas de atividades como resumo
e/ou lista de perguntas.
Uma forma para se compreender os “modelos de leitura” atuais é investigar a
trajetória dessa ação, pois a leitura “não é uma invariante antropológica, sem
historicidade”, consoante o que nos mostram Guglielmo Cavallo & Roger Chartier
(1998). De acordo com esses estudiosos, as sociedades ocidentais foram
sociedades do escrito, do livro, da leitura, mas que não leram sempre do mesmo
28
modo. Cada sociedade compreendeu a leitura a partir de sua ideologia e de seus
propósitos. Assim, existiram vários “modelos” de leitura e várias “revoluções”
modificaram e marcaram essa prática em cada época.
Agora, na continuidade desta dissertação, abordamos a historicidade da
leitura, os “modelos” valorizados em algumas sociedades antigas até a
contemporaneidade. Essa revisão da trajetória da leitura na sociedade ocidental
pode nos levar a compreender algumas facetas contraditórias dos “modelos” atuais
desse ato – singular e social ao mesmo tempo.
1.1 LEITURA: ATO SINGULAR X CONSTRUCTO SOCIAL
O trabalho é fundamento da vida social, explica Sérgio Lessa (2007), ao
explanar os fundamentos defendidos por György Lukács sobre as bases ontológicas
do pensamento e da atividade humana. É na organização de atividades de
transformação da natureza que o ser social acaba por transformar a si mesmo,
reproduzindo as condições socioculturais das práticas que dão sentido e orientam a
vida social.
Todas as práticas culturais, atos humanos e suas linguagens são constituídos
a partir dessa organização material da vida social. O trabalho na escola – e todas as
relações nele implicadas – é uma prática social que se fundamenta e é expressão da
vida social. Dessa forma, aspectos como a linguagem, a cultura, o imaginário, a
percepção, a arte e a consciência de um indivíduo ou de uma sociedade têm como
base material o trabalho, os meios de produção de sua época e o conjunto
ideológico que sustenta tal prática. E estão permeadas de relações de poder.
Pensar sobre a trajetória da leitura na sociedade ocidental e sobre as
ideologias subjacentes ao acesso aos bens culturais em geral, especialmente do
código escrito, que, desde o princípio, tornou-se sinônimo de conhecimento e,
principalmente, de dominação, é essencial para que compreendamos as
contradições atuais que envolvem o ato de ler. Os apontamentos a seguir, de forma
sucinta, poderão sinalizar a “evolução” da leitura e a ambivalência dos valores a ela
atrelados.
Embora a transmissão oral ainda tivesse grande importância na antiguidade
ocidental, o livro desempenhou um papel fundamental na época helenística. A leitura
em voz alta era a modalidade mais difundida desse período. Somente no final do
29
século V a.C. apareceram as primeiras referências à leitura silenciosa, considerada
a primeira grande revolução na leitura. No parecer de Cavallo e Chartier (1998, p.
28), essa passagem marca o ato de ler como uma atitude livre, secreta, totalmente
interior.
O mundo grego transmitiu a Roma certas práticas de leitura. Em princípio, a
leitura mostrava-se uma prática exclusiva das classes elevadas e se fazia de
maneira privada. As bibliotecas dessa época (séculos III e II a.C.) eram “[...]
monumentos de celebração, com finalidade de conservar as memórias históricas e
de selecionar e codificar o patrimônio literário” (CAVALLO & CHARTIER, 1998, p.
18), todavia já se percebia certa seleção realizada pelas bibliotecas públicas, o que
podia, às vezes, configurar-se como verdadeira censura dos textos que
desagradavam ao poder. Também já havia diversos tipos de escritos: os cultos e
outros “facilitados”, criados ou adaptados para novas camadas de leitores menos
preparados.
A partir do século II d.C., o códex substituiu o rolo e colocou-se como
instrumento mediador entre a leitura na Antiguidade e as maneiras de ler da Idade
Média. Do final do século XI até o século XIV tem-se uma nova era da história da
leitura. A alfabetização se desenvolveu, a escrita progrediu em todos os níveis e os
usos do livro se diversificaram. Nessa época, o livro assumiu sua tipologia funcional:
abreviações, colunas, fragmentação com sequências, ou seja, é o livro como
instrumento de trabalho, fonte de onde se chega ao saber.
Como consequência disso, no século XIII nasceu o modelo de biblioteca
destinada à leitura e não mais ao acúmulo patrimonial e à conservação dos livros. E
surgiram, também, outros modelos de leitura: difundiu-se o livro em língua vulgar,
escrito, às vezes, pelo mesmo leitor-consumidor, com circulação entre a burguesia
de mercadores e artesãos que ignoravam o latim. Outro modelo de leitura era o da
corte, próprio da alta aristocracia. Lia-se por entretenimento e devoção. Os livros
eram sinal de cortesia, de civilização, de vida refinada. Ricamente encadernados,
constituíam-se em sinônimos de riqueza e ostentação.
Entre os séculos XVI e XIX, na Idade Moderna, as questões religiosas, as
relações com a cultura escrita em conjunturas de alfabetização e os ritmos de
industrialização afetaram grandemente as práticas de leitura. No que se refere
especialmente à Reforma e à concepção de que todo cristão podia ler as escrituras
sagradas, Cavalo & Chartier (1998) constatam que, nos lugares onde a ideia de
30
Reforma foi mais forte, o movimento de alfabetização também o foi, até no meio
plebeu e entre as meninas.
Foi, porém, no espírito de uma Contrarreforma que os jesuítas assumiram o
campo da educação católica. No século XVII, fundaram mais de 500 colégios. Seus
modelos de educação clássica herdados dos gregos chegaram até o século XX e se
espalharam pelo mundo.
A abertura de escolas públicas, com o intuito de levar as letras até o povo,
ocorreu durante a Revolução Francesa, no século XVIII. Entretanto, isso se revelou
mais um aparelho de dominação, surgido da iniciativa burguesa. Logo após a
instalação da obrigatoriedade do ensino, com a retirada do mercado da mão de obra
infantil, que começou a frequentar a escola para receber uma instrução que a
habilitaria às suas funções futuras, o mercado de trabalho estabilizou-se, ocupando
os trabalhadores excedentes que antes atrapalhavam a “ordem social”. Isso
consolidou certa noção de leitura objetiva e pragmática, o que, de certa forma,
persiste até nossos dias: leitura útil, informativa, sem fantasia ou devaneios.
Compreendidas essas sucintas explanações, retornemos à ambivalência do
subtítulo deste item da dissertação: a leitura, embora sendo uma prática singular,
específica de cada leitor e de sua subjetividade, é um constructo social e esse
aspecto é relevante uma vez que determina condições de acesso e de
compreensões. Soares (2005) alerta para o fato de que, ainda nos nossos dias,
ocorre uma diferenciação entre o valor da leitura para dominantes e dominados.
Para os dominados, o valor do ler-escrever bem é um valor de produtividade,
instrumento necessário à sobrevivência, ao acesso ao mundo do trabalho, enquanto
que, para a classe dominante, é momento de lazer, de fruição estética, de ampliação
de horizontes.
É possível, a partir do breve histórico do ato de ler que apresentamos,
concluir que cada época compreendeu e produziu a leitura – e literatura – a seu
modo e conhecer esse “modo”, repensar e refletir suas ideologias e as restrições ao
acesso aos bens materiais e culturais é conhecer as singularidades de cada
momento histórico, não para aceitá-las, mas para refletir sobre elas e questioná-las.
Sabemos que não é possível desvencilhar a leitura e a escrita, pois são
práticas complementares, embora cada uma tenha suas especificidades. As
ponderações a seguir, de forma breve, têm a escrita como foco, suas implicações
31
sociais e pedagógicas, visto que a proposta desta dissertação também apresenta
relação com o ato de escrever.
1.2 A ESCRITA: ATO DE PODER E EMANCIPAÇÃO
A palavra escrita, desde o seu surgimento14, provavelmente por motivos
econômicos, tornou-se sinônimo de conhecimento e, por isso mesmo, de
dominação, da mesma forma como o domínio da leitura, abordado no tópico
anterior. Para Maurizio Gnerre (1991, p. 45), “[...] a começar do nível mais elementar
de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para
bloquear o acesso ao poder [...]”, o que nos motiva a refletir sobre as relações
implícitas entre a linguagem escrita – e sua superioridade sobre as formas orais – e
poder.
E, se as práticas econômicas determinaram o surgimento da escrita, foram as
práticas religiosas, associadas às práticas jurídicas e literárias, que determinaram o
surgimento da escola, encarregada da difusão da escrita e da leitura, nessa época,
oferecidas para uma minoria de “escolhidos”, restritos a mosteiros. Dessa forma, em
seus primórdios, a escola, a escrita e a leitura revestiam-se de “ideais sagrados”,
assim como seus usuários, segundo Zilberman (2009, p. 18).
Desde então, a exclusão social daqueles que não têm condições de decifrar o
código escrito acontece. E, por ser mais eficiente para a fixação e conservação das
ideias, a escrita leva vantagem sobre a memória coletiva. Com isso, é importante
que questionemos os valores que lhe são atribuídos: sempre positivos, pois
oferecem benefícios indiscutíveis ao indivíduo e à sociedade. Nesse valor unilateral
está embutida a visão da minoria privilegiada, para a qual esses valores são
verdadeiros. Para a grande maioria, porém, as mesmas condições discriminativas de
produção, distribuição e consumo dos bens materiais se repetem na produção,
distribuição e consumo de bens culturais – como a leitura e a escrita.
14
O surgimento da escrita aconteceu devido a práticas econômicas. Na Suméria, no quarto século antes da era cristã, letras em formato de cunha fixadas em tabuletas de argila registravam o movimento de bens. Os acádios usavam a escrita nos milênios IV e III a.C. aplicada aos negócios, redação de contratos, contrato de compra e venda; depois foi usada no campo jurídico e somente mais tarde passou a ser utilizada no campo religioso e literário, segundo os estudos de Zilberman (2009).
32
A utilização do saber escrito como instrumento na luta de classes e de
dominação por parte dos que detinham o poder, como a História atesta, também é
assunto abordado por Soares (2005). Ela nos alerta para o fato de que a principal
função da produção escrita seria a de facilitar a servidão. De forma secundária,
ocorreu o emprego da escrita com fins estéticos ou desinteressados, com vistas a
alguma satisfação intelectual, muito embora, na maior parte das vezes, esse uso se
reduzisse e se reduza a um meio de justificar, reforçar ou ainda dissimular o objetivo
primeiro.
Corroborando as afirmações anteriores, as considerações de Michèle Petit
(2008, p. 38) também compreendem o uso da escrita como um ato que confere
prestígio e poder àqueles que o dominam: “[...] o domínio [...] começa pelo poder de
nomear, impor e legitimar as designações [...]”. E mais: “[...] o que determina a vida
dos seres humanos é, em grande medida, o peso das palavras ou o peso de sua
ausência. Quanto mais formos capazes de nomear o que vivemos, mais aptos
estaremos a vivê-lo e a transformá-lo” (PETIT, 2008, p. 78), porque, sobretudo, “[...]
ousar tomar a palavra, pegar na pena, são gestos próprios de uma cidadania ativa"
(PETIT, 2008, p. 75). Por isso, apesar das contradições apresentadas no que se
refere ao acesso, a condições, a valores e a usos sociais da leitura e escrita, como
educadores, devemos empreender esforços para evitar que o peso da ausência de
palavras continue a silenciar três quartos da humanidade, como nos alerta Zilberman
(1982).
Nessa perspectiva, é importante equacionar o uso das palavras e do discurso
dos rappers e dos escritores da literatura negro-brasileira ao tomarem para si o
direito à palavra, na busca de romper, ou pelo menos de enfraquecer os elos dessa
corrente de dominação e exclusão pautada no domínio dos bens culturais, quase tão
antiga quanto a própria humanidade. Assim como os escritores mencionados por
Petit (2008), no livro Os Jovens e a Leitura: uma nova perspectiva, os jovens rappers
também quebram estereótipos, renovam a linguagem, tornam-se “domadores de
palavras”, subvertendo a língua, falando de contradições e de ambivalências. No
estilo que lhes é próprio, recompõem sua identidade e demonstram “[...] o modo
como se pensam ou pensam o mundo” (PETIT, 2008, p. 62). Transgridem regras e
limites sociais na busca da autoafirmação e de dignidade que a sociedade insiste em
lhes retirar.
33
Assim, mesmo servindo como bloqueio ao acesso ao poder, conforme Gnerre
(1991) nos alerta, a linguagem – o código escrito, o livro, a leitura – também pode
contribuir para que esse bloqueio seja rompido. Escola, leitura e escrita, na sua
reunião secular, na visão de Zilberman (1982), podem conter significados opostos:
por um lado, tendem a representar a aquisição do saber como fiador do sucesso
profissional, mas, por outro lado, esse saber não deve ser negligenciado, uma vez
que pode desencadear um processo de democratização do saber e acesso maior
aos bens culturais.
A escola, como já apontamos, desde o início da civilização se constituiu num
instrumento necessário ao “funcionamento” da sociedade. A ela coube a função de
valer-se de mecanismos para facilitar aos alunos – inicialmente uma minoria
privilegiada e depois composta pela população que serviria de mão de obra barata –
o acesso à escrita e à leitura. Esse acesso serviria, principalmente, para ajustá-los
às demandas sociais.
À escola pública e democrática que se pretende atualmente – agora
frequentada por alunos das classes trabalhadoras – cabe função mais ampla: torná-
los capazes de interagir nas diversas práticas sociais em que a leitura e a escrita
são necessárias e também capacitá-los para que percebam os antagonismos de tais
práticas. Enfim, deve torná-los capazes de serem sujeitos “fazedores” de suas
histórias (FREIRE, 1996).
Luiz Antônio Marcuschi (2008), estudioso da linguagem e de seu
funcionamento, enfatiza que ter domínio da “máquina sociodiscursiva” é ter poder
social, coadunando-se esse entendimento com o de autores já mencionados:
Desde que nos constituímos como seres sociais nos achamos envolvidos em uma máquina sociodiscursiva [...] Todos nós sabemos que a língua não é apenas um sistema de comunicação nem um simples sistema simbólico para expressar ideias. Mas muito mais uma forma de vida e uma forma de ação [...]. (MARCUSCHI, 2008, p. 162).
Da forma exposta acima, percebemos a visão interacionista da linguagem,
que a compreende como resultado das ações/interações sociais. Nessa perspectiva,
a escrita tem papel social, se realiza no envolvimento entre sujeitos que interagem
nas práticas sociocomunicativas: escrevemos para alguém para o qual temos algo a
dizer, com alguma intenção, e com uma forma específica de enunciado/texto.
34
Por isso, a escrita só existe socialmente, não existe por si mesma, para não
ser ato de linguagem. Nenhum grupo social utiliza a escrita de palavras soltas, de
textos sem objetivo, sem uma razão de ser: “Toda escrita responde a um propósito
funcional [...], possibilita a realização de alguma atividade sociocomunicativa entre
as pessoas e está inevitavelmente em relação com os diversos contextos sociais em
que as pessoas atuam” (ANTUNES, 2003, p. 48).
A visada desta dissertação compreende a escrita15 em sala de aula como
formadora de subjetividade, atingindo um papel de resistência aos valores impostos
socialmente e de emancipação; ao assumir a autoria do que escreve, visto que é um
sujeito e tem o que dizer, o aluno demarca seu espaço, sua voz no contexto em que
vive e, principalmente, sua autoria na produção textual que assina.
As condições de produção da escrita diferem das condições de produção da
fala, em que os interlocutores estão em situação de (co)presença e alternam seus
papéis de falante e ouvinte. Antunes (2003, p. 51) pontua que a escrita corresponde
a uma modalidade de interação verbal “[...] em que a recepção é adiada, uma vez
que os sujeitos atuantes não ocupam, ao mesmo tempo, o mesmo espaço”. Esse
fato dá a quem escreve um tempo maior para a elaboração do seu texto, para revê-
lo e refazê-lo, se for o caso.
No ato da escrita, o possível leitor deve ser o parâmetro das decisões do
escrevente – a precisão, a relevância, as escolhas lexicais, o estilo, o que dizer e
quanto dizer. Embora não haja possibilidade de interação entre escritor/leitor no
momento do ato de escrever, ele precisa ser levado em conta, pois um texto só tem
razão de ser por causa dele, o leitor. Um dos grandes cuidados que o professor
deve ter ao propor atividades de produção escrita é que o texto tenha leitores, que
circule em alguma esfera, caso contrário não há sentido para escrevê-lo.
A elaboração de um texto escrito é tarefa complexa e, por isso, supõe várias
etapas. No parecer de Antunes (2003), essas etapas são: o planejamento, a escrita
propriamente dita e a revisão e reescrita16. A maturidade na habilidade de escrever é
15
Não é o objetivo desta dissertação o aprofundamento dos aspectos ligados à aquisição e ao aperfeiçoamento da escrita e produção textual, por isso serão explanados somente alguns pontos que, de alguma forma, apresentam relevância para o desenvolvimento de nossa proposta.
16 Vários estudiosos defendem a prática da reescrita do texto como parte primordial da produção escrita, momento de reflexão e de aprendizagem, mais do que mera correção. Não nos aprofundaremos nesses aspectos, mas, para saber mais, consulte Ruiz (2001); Jesus (1998); Riolfi et al. (2014), dentre outros.
35
uma conquista que não ocorre gratuitamente, não ocorre sem ensino e sem esforço.
Pelo contrário, exige orientação, exercícios, determinação e tentativas.
João Wanderley Geraldi (2013, p. 104) conceitua texto como “[...] uma
sequência verbal escrita coerente formando um todo acabado, definitivo e
publicado17”. Explica ainda que só o texto pode se constituir objeto relevante do
ensino da língua, seja pela devolução, às classes menos favorecidas, do direito à
palavra, ideologicamente falando, ou porque é no texto que a língua se revela em
sua totalidade – como conjunto de formas e como discurso: ele considera “[...] a
produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de chegada) de
todo o processo ensino-aprendizagem da língua” (GERALDI, 2013, p. 135).
Como condições para a produção de textos, Geraldi (2013) pontua que é
preciso ter o que dizer, assim como é preciso ter uma razão para fazê-lo, ter para
quem dizer, comprometer-se com o que diz, com as devidas escolhas de estratégias
para esse dizer. A produção textual em sala de aula será mais do que um exercício
linguístico se tais critérios forem observados: será verdadeiramente uma prática
social de interação verbal. E é essa prática de interação verbal que pretendemos
viabilizar com as atividades propostas para sala de aula, expostas no capítulo
quatro. Antes disso, porém, nos aprofundemos no caráter social e dialógico da
linguagem.
1.3 O CARÁTER SOCIAL E DIALÓGICO DA LINGUAGEM
As DCEs de Língua Portuguesa do Estado do Paraná (2008) fundamentam-se
nos estudos do Círculo de Bakhtin e tomam o Discurso como Prática Social como o
conteúdo estruturante da disciplina de Língua Portuguesa. Por ser assim, apontam
para o trabalho didático/pedagógico a partir da linguagem em uso, resultado das
relações sociais.
A essa forma discursiva de pensar o ensino da Língua Portuguesa é
imprescindível um professor que compreenda o caráter social e dialógico da
linguagem para consolidar as aulas de Língua Portuguesa como “oficinas de leitura
e escrita”, espaço de uso e de reflexão sobre nossa língua e de seu uso social, que
selecione e analise criticamente o conteúdo/textos a serem propostos aos alunos e,
17
Geraldi (2013) explica que publicado quer dizer “dado ao público”, para ser lido por alguém – o outro, o leitor – e não necessariamente significa ser publicado por uma editora.
36
que, sobretudo, tenha consciência de que suas escolhas também são escolhas
ideológicas.
As questões teóricas a respeito de alguns conceitos bakhtinianos,
considerados importantes para a compreensão discursiva da linguagem aqui
apresentada, são discutidas neste tópico, contudo, devido ao grande número desses
conceitos e à sua complexidade, algumas limitações são necessárias. Por isso são
priorizados os conceitos que mantêm relação mais imediata com o objeto desta
pesquisa, visto perpassarem todo e qualquer enunciado. A saber: linguagem,
discurso, dialogismo, enunciado, sujeito e ideologia.
A linguagem, vista como discurso, na sua integridade concreta e viva,
necessidade humana e resultado da interação verbal entre os sujeitos é a teoria
defendida por Bakhtin (1997) e também pelos outros teóricos a quem recorremos.
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1997, p. 123).
Entender a língua como discurso significa compreender que não há
possibilidade de desvinculá-la de seus falantes e de seus atos, das esferas sociais,
dos valores ideológicos que a norteiam. Por esses motivos, no conceito de língua
vista como objeto da linguística, não há e nem pode haver quaisquer relações
dialógicas, pois essas relações são impossíveis entre os elementos do sistema da
língua – entre os morfemas, as palavras, as orações, etc. – no seu enfoque
rigorosamente linguístico.
A noção de dialogismo, por sua vez, é apresentada como princípio fundador
da linguagem: toda linguagem é dialógica, isto é, todo enunciado é sempre um
enunciado de um locutor para seu interlocutor, logo, toda linguagem é fruto de um
acontecimento social.
A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1997, p. 123 - grifos do autor).
37
A relação entre os enunciados é outro eixo do dialogismo, uma vez que a
palavra está sempre relacionada com o que já foi dito e com o que ainda há de vir.
Ela não é um elemento aleatório, perdido no fluxo da comunicação verbal; pelo
contrário, ela estabelece um diálogo contínuo e ininterrupto com outras palavras que
circulam no meio social. Sobre essa abordagem, discorre Beth Brait (2014):
O conceito de linguagem que emana dos trabalhos desse pensador russo está comprometido não com uma tendência linguística de uma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justamente na busca de formas de construção e instauração do sentido, resvala pela abordagem linguístico/discursiva, pela teoria de literatura, pela filosofia, pela teologia, por uma semiótica da cultura, por um conjunto de dimensões entretecidas e ainda não inteiramente decifradas. A natureza dialógica da linguagem é um conceito que desempenha papel fundamental no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin, funcionando como célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e mantêm vivo o pensamento desse produtivo teórico (BRAIT, 2014, p. 92).
Como podemos constatar por meio do fragmento acima, o dialogismo está
presente nas esferas sociais discursivas. Depreendemos então que tanto o rap
como os contos de Cuti, bases do trabalho aqui proposto, são enunciados de
sujeitos historicamente situados, resultado de suas relações e vivências dialógicas,
perpassados pelas vozes ideológicas que os circundam, concretizados por meio da
língua. Não surgiram ao acaso e por acaso, têm um querer-dizer, para alguém, a
partir da escolha consciente de um estilo, de um tema e de uma construção
composicional.
É de Bakhtin (2003) também a teoria de que o uso da língua se efetua em
forma de enunciados – orais e escritos – concretos e únicos, proferidos pelos
participantes numa determinada esfera da atividade humana, sendo eles irrepetíveis
– um evento único – e que se constituem na unidade real da comunicação
discursiva, porque o discurso só tem possibilidade de existir na forma de
enunciados. Ele salienta também que os enunciados nascem na inter-relação
discursiva, não podendo, por isso, ser compreendidos dissociados das relações
sociais que os suscitaram, pois o “discurso”, como fenômeno de comunicação social,
é determinado por tais relações.
O que faz do texto um enunciado, na concepção bakhtiniana, é o fato de ele
poder ser analisado na sua “integridade concreta e viva”, considerando-se os seus
aspectos sociais, e não como objeto da linguística, desvinculado do contexto, das
38
vozes sociais que incorreram na sua produção. Segundo José Luiz Fiorin (2009, p.
45), o enunciado tem autor, “[...] enquanto as unidades da língua não pertencem a
ninguém”. Sendo assim, os enunciados revelam “posição de autoria” e é por isso
que as relações dialógicas “[...] não são relações lógicas e semânticas, mas relações
entre distintas posições” (FIORIN, 2009, p. 45).
O sujeito, tal como concebido por Bakhtin (2010), não é autônomo nem
criador de sua própria linguagem; ao contrário, ele se constitui na relação com
outros indivíduos; e essa relação é atravessada por diferentes usos da linguagem,
de acordo com a esfera social na qual está inserido. Tudo o que pertence à
consciência chega a ele por meio dos outros, das palavras dos outros. Na voz de
Bakhtin (2010, p. 317), “[...] nosso próprio pensamento [...] nasce e forma-se em
interação e em luta com o pensamento alheio, o que não pode deixar de refletir nas
formas de expressão verbal do nosso pensamento”.
Ainda segundo Bakhtin (2003, p. 113), “[...] a situação social mais imediata e
o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir de
seu próprio interior, a estrutura da enunciação”. Se, portanto, pensarmos nas letras
do rap nacional e nos contos de Cuti, constatamos que a situação social e as vozes
que neles coexistem realmente determinam o modo de enunciação.
No rap, “[...] o discurso [...] é também, e, sobretudo, um produtor da cena”
(DIAS, 1995, p. 70). O querer-dizer do rapper poderia ser outro se a sua relação com
o meio fosse outra e se seus interlocutores fossem diferentes, pois “[...] toda palavra
comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém,
como pelo fato de que se dirige para alguém [...]”, e, acima de tudo, “[...] a palavra é
o fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, 2003), porque as palavras são
tecidas por infinitos fios ideológicos que perpassam todos os campos das relações
sociais. Diversas vozes coexistem nessas relações, nem sempre amistosas,
parafraseando Bakhtin (2003).
Valdemir Miotelo (2014, p. 172) explica que “[...] dentro das palavras, em uma
sociedade de classes, se dá discursivamente a luta de classes”. A palavra “justiça”,
por exemplo, numa letra de rap ou num conto de Cuti, carrega ideologicamente
marcas de diversas vozes e de conflitos sociais, significado totalmente diverso da
mesma palavra escrita na bíblia, escrita numa música pop ou escrita numa
reportagem sobre a “invasão” de terras por indígenas no Mato Grosso do Sul. Isso
assim é porque “[...] vozes diversas ecoam nos signos e neles coexistem
39
contradições ideológico-sociais entre o passado e o presente, entre as várias épocas
do passado, entre os vários grupos do presente, entre os futuros possíveis
contraditórios” (MIOTELO, 2014, p. 172).
Outro conceito importante nos estudos de Bakhtin e significativo para esta
pesquisa é o de ideologia. Ao discorrer sobre esse tema, o grande teórico da
linguagem inicialmente toma por escopo a visão materialista do sentido de ideologia,
compreendida como “falsa consciência”, um disfarce ou ocultamento da realidade
social, que não leva em conta as contradições das classes sociais, posto ser
legitimada pelo poder político e pelas forças dominantes. Ele, porém, revê e
complementa esse conceito, acrescentando, ao lado da ideologia oficial –
dominante, com uma visão única do mundo –, a ideologia do cotidiano. Essa é a que
brota nos encontros casuais e fortuitos, nas diversas relações sociais ligadas às
condições de produção. Ambas complementando-se, constituindo uma à outra e
constituindo o sujeito como ser social:
De um lado, a ideologia oficial, como estrutura ou conteúdo, relativamente estável; de outro, a ideologia do cotidiano, como acontecimento, relativamente instável; e ambas formando o contexto ideológico completo e único, em relação recíproca, sem perder de vista o processo global de produção e reprodução social. (MIOTELO, 2014, p. 169).
A ideologia do cotidiano pode assumir um caráter imediatamente superior às
relações casuais e ínfimas, sem padrão fixo, quando em interações mais definidas e
estáveis, como, por exemplo, com os grupos organizados não governamentais ou os
sindicatos. Nesse caso, pode começar certa relação mais efetiva com a ideologia
oficial – leis, religião, literatura – e esse “infiltramento” acaba por resultar numa
renovação das instituições ideológicas oficiais, mas, ao mesmo tempo, a ideologia
do cotidiano também poderá ser modificada nesse contato.
Nessa perspectiva, concebemos o hip-hop, enquanto um movimento
organizado e o rap, como uma de suas expressões, ou também os contos de Cuti,
como resultado de uma postura engajada socialmente, como elementos superiores
de ideologia do cotidiano, que, aos poucos, infiltram-se na ideologia oficial do
cânone musical, literário e social, modificando-a, mas também sendo modificados,
numa reação de reflexo e refração.
Mesmo assim, porém, com essas pequenas intervenções, os grupos
legitimados exercem grande influência no jogo social e dão o tom hegemônico nas
40
relações sociais e na luta de classes. Esse tom pode, contudo, ser abalado
cotidianamente por meio das contradições sociais e pelas intervenções delas
advindas, uma vez que “[...] a durabilidade da ideologia oficial não é maior que o
tempo de duração da ideologia do cotidiano” (MIOTELO, 2014, p. 174).
É possível, portanto, que consideremos o conjunto ideológico de uma
sociedade, embora fortemente estruturado e duradouro, como algo mutável: está em
constante movimento, reage às transformações, numa cadeia de reações entre
indivíduos socialmente organizados. Não é, contudo, algo frouxo, pois também tem
estruturas rígidas e profundas, visto que resiste às fortes investidas de resistência de
movimentos ideológicos contrários.
O movimento hip-hop e o rap – como uma de suas vertentes, assim como a
literatura negro-brasileira politicamente engajada – são formas de resistência e,
dessa maneira, constituem-se como reações sociais. O surgimento dessas reações
sinaliza que o pensamento ideológico de uma sociedade pode e deve ser
questionado, “sacudido” em suas estruturas e, talvez, com isso, possa livrar-se do
velho pó moralista e excludente que o encobre.
Uma das principais características da leitura, nessa linha contestatória de
pensamento, é a responsividade, que contraria a receptividade passiva “daquilo que
o autor quis dizer”. Parafraseando Fiorin (2009), a responsividade depende da
consciência18 do leitor, e esta se constrói nas atividades sociais – onde convivem
diversas vozes, em concordância ou em discordância – e por relações dialógicas,
que passam por constantes modificações, alterando também o conteúdo discursivo
da consciência.
E essas diferentes vozes são incorporadas pelos sujeitos de maneiras
distintas. As vozes de autoridade – igreja, família, grupo ao qual pertencemos –, por
terem mais peso social, são aquelas às quais aderimos de forma menos dialógica,
pois são mais resistentes a críticas e a mudanças. Outras vozes são mais dialógicas,
permeáveis, questionáveis. Fiorin (2009, p. 56) afirma que “[...] quanto mais a
consciência for formada de vozes de autoridade, mais ela será monológica. Quanto
mais for constituída de vozes internamente persuasivas, mais será dialógica”.
18
Percebemos o uso de diferentes termos entre Fiorin (2009), que denomina consciência ao que Bakhtin (2003) designa ideologia.
41
Ainda segundo Fiorin (2009), um leitor com a consciência fortemente marcada
por vozes do discurso autoritário tenderá a fazer monopólio interpretativo do
discurso, negar a interlocução e rejeitar discursos diferentes daqueles que já
incorporou como verdadeiros. Estará, enfim, fechado para vozes diversas daquelas
das quais está impregnado. Já um leitor constituído por vozes do discurso lúdico ou
polêmico, este estará aberto ao diálogo com variadas vozes, constituindo-se a partir
delas e constituindo seus pares.
Ao fazer a relação entre esses apontamentos com a prática em sala de aula,
não podemos ignorar que esta tem sido um espaço em que as vozes do discurso
autoritário hegemônico circulam praticamente sem barreiras ou sem
questionamentos, seja por meio dos textos e das atividades propostos pelos livros
didáticos, seja nas entrelinhas da organização curricular, que seleciona conteúdos
considerados relevantes em detrimento de outros, vistos como “complementares”.
Discursos moralizantes e, por vezes, excludentes são passados adiante sem crítica
ou com abordagem superficial, sem debates. Por meio das atividades a partir das
letras de rap nacional e dos contos de Cuti – exemplos da palavra como forma de
resistência – possibilitaremos o contato dos alunos com vozes sociais diversas e
muitas vezes silenciadas em sala de aula. Poderemos, com isso, minimizar as
leituras monológicas e ampliar o diálogo, a reflexão e a responsividade de nosso
aluno/leitor.
Conceitos literários são expostos no tópico seguinte, porém o viés ideológico
e social continua aberto, uma vez que perpassa todas as produções sociais e
culturais.
1.4 LITERATURA: ALGUMAS DEFINIÇÕES E REFLEXÕES
A literatura se constitui numa modalidade de leitura privilegiada dentre as
inúmeras outras modalidades de leitura. Lajolo (1997, p. 100) assinala que “o viver
vidas alheias” é a promessa irresistível e sedutora da leitura de ficção. E ressalta
que essa vivência deve fazer parte da formação escolar do aluno:
É à Literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias. Por isso a literatura é importante no currículo escolar: o cidadão, para
42
exercer plenamente sua cidadania, precisa apossar-se da linguagem literária, alfabetizar-se nela, tornar-se seu usuário competente, mesmo que nunca vá escrever um livro: mas porque precisa ler muitos. (LAJOLO, 1997, p. 106).
A importância da literatura, citada acima, também é reafirmada por Nelly
Novaes Coelho (1991, p. 25) quando menciona que, no encontro com a literatura,
“[...] os homens têm a oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua
própria experiência de vida em um grau de intensidade não igualada por nenhuma
outra atividade”. Daí a necessidade de trabalharmos com a literatura na escola,
desde as séries iniciais.
Enumerar os poderes da literatura e discorrer sobre eles é uma tarefa que
Antoine Compagnon (2009) empreendeu com êxito. Como primeiro poder, ele cita a
definição clássica, a partir da experiência e do exemplo, em que, a partir do conceito
de Aristóteles de “mimese”, a literatura deleita e instrui: utile et dulce – útil/didática e
doce/lúdica.
O segundo poder, ideia surgida no Século das Luzes, a vê como um remédio
– contraditório talvez – que liberta o indivíduo de sua sujeição às autoridades, sendo
um instrumento de justiça, “experiência de autonomia”, que contribui para a
“liberdade e para a responsabilidade do indivíduo” (COMPAGNON, 2009, p. 34).
Vemos, nesse entendimento, o aspecto político/ideológico ligado à literatura.
A correção dos defeitos da linguagem que a literatura pode propiciar é vista
como seu terceiro poder: “A literatura fala a todo mundo. Recorre à língua comum,
mas ela faz desta uma língua particular – poética ou literária”. É vista como um
remédio, não para os males da sociedade, mas para a inadequação da língua: “O
poeta e o romancista nos divulgam o que estava em nós, mas que ignorávamos
porque nos faltavam palavras” (COMPAGNON, 2009, p. 37/38).
O quarto e último poder da literatura assinalado pelo escritor nega qualquer
poder além do exercício dela mesma. Seria a área do “impoder sagrado”, do
“despoder”, a literatura sem qualquer engajamento. Mesmo assim, o próprio autor
questiona essa neutralidade: “A leitura pode divertir, mas como um jogo perigoso,
não um lazer anódino” (COMPAGNON, 2009, p. 42).
Questões sobre a linguagem literária também são abordadas por Anatol
Rosenfeld (1976). Ele considera que as palavras não devem tornar-se “conchas
esvaziadas de vida”, elas precisam se libertar de clichês e de mistificações, precisam
43
romper com as travas do “familiar e gasto”, propondo novas experiências estéticas.
Nas palavras do autor:
O familiar e gasto – e isso é o princípio de toda arte – deve ser rompido através do insólito e estranho, a fim de que uma nova experiência nos atinja intensamente e se torne nova experiência nossa verdadeira "informação estética". (ROSENFELD, 1976, p. 53).
Ainda sobre a linguagem literária, Roland Barthes (2007) a define como “[...]
objeto em que se inscreve o poder, desde a eternidade humana [...]”, considerando-
a “[...] uma legislação, a língua seu código”. E enfatiza também que “[...] o poder – a
libido dominandi – aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando
este parte de um lugar fora do poder” (BARTHES, 2007, p. 12). Muito
provavelmente, por essa forma específica de representar a vida e suas
complexidades, fala aos nossos sentidos de forma tão intensa e rica.
A literatura, segundo o mesmo autor, “[...] encena a linguagem, em vez de
simplesmente utilizá-la [...]”, pois “[...] engendra o saber no rolamento da
reflexividade incessante sobre o saber, segundo um discurso que não é mais
epistemológico, mas dramático”. Ainda, na concepção barthesiana, na literatura “[...]
as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são
lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura19
faz do saber uma festa” (BARTHES, 2007, p. 19/20).
Uma reflexão de Compagnon (2009) que merece destaque se refere ao
ensino: “A recusa de qualquer outro poder da literatura além da recreação pode ter
motivado o conceito degradado da leitura como simples prazer lúdico que se
difundiu na escola [...]” (COMPAGNON, 2009, p. 43). Essa mesma problemática em
relação à leitura/literatura/escola também é abordada por Edmir Perroti (1999). Para
ele, utilizar dramatizações, jogos, brincadeiras, representações musicais e outros
artifícios, na busca de instaurar um clima prazeroso exterior ao livro, acreditando que
tal clima se transferirá para o seu interior, é não acreditar na capacidade do texto
literário: ele, por si só, é capaz de seduzir e encantar o leitor.
Essa constatação é pertinente, uma vez que é comum, nas escolas, a
utilização de textos literários unicamente como entretenimento, principalmente em
19
Na concepção barthesiana, as palavras escritura, literatura e texto são vistas como sinônimas. Designam “todos os discursos em que as palavras não são usadas como instrumentos, mas postas em evidência (encenadas, teatralizadas) como significantes” (PERRONE-MOISÉS em posfácio de BARTHES, 2007, p. 78).
44
datas comemorativas, e/ou serem deturpados em adaptações artísticas, sem nunca
se analisar, como lembra Soares (2006), numa citação anterior, “aquilo que é
literário”. É evidente que tais atividades podem ter seu mérito, mas são insuficientes
como única maneira de se abordar tais produções literárias.
Podemos depreender, com base nesses apontamentos, que a ludicidade é
apenas um dos aspectos da literatura: ela pode oferecer muito, muito mais. E cabe-
nos, como mediadores de atividades de leitura literária, ponderar sobre o trabalho
com a literatura nas nossas escolas: como o realizamos e como poderíamos realizá-
lo, como nas palavras de Compagnon (2009):
A literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os discursos filosófico, sociológico ou psicológico, porque ela faz apelo às emoções e à empatia. Assim, ela percorre regiões da experiência que os outros discursos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes. (COMPAGNON, 2009, p. 50).
Além de a literatura nos falar mais do que outros discursos – filosófico,
sociológico ou psicológico, conforme o excerto acima –, o mesmo autor ressalta que,
para sair de nós mesmos e ver o mundo por meio de outros olhares, para dialogar
com o mundo e com as maneiras subjetivas de encará-lo, precisamos ter acesso à
literatura. E ela deve ser estudada nas escolas:
A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio – alguns dirão o único – de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos. (COMPAGNON, 2009, p. 47).
Ao abordar a questão do ensino e da literatura, Barthes (2007) propõe um
discurso sem imposições. Para ele, também professor no Collège de France, “[...] o
que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele
veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto” (BARTHES,
2007, p. 41). Em outras palavras, adequadas a esta pesquisa, falar de preconceito e
de diferenças sociais e do uso da palavra como forma de resistência e, para isso,
lançar mão de textos ou de letras de músicas em que o lugar de enunciação do
autor seja, por si só, uma quebra de paradigmas – sociais, culturais e discursivos –
parece o ponto de partida ideal para o objetivo aqui proposto.
45
Antônio Candido (2004), por sua vez, considera a literatura uma manifestação
universal dos homens de todos os tempos: “Não há povo e não há homem que
possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma
espécie de fabulação" (CANDIDO, 2004, p. 174). De fato, ninguém é capaz de
passar um dia sequer sem algum tipo de entrega ao universo fabulado, mesmo que
seja em sonho, durante o sono.
O papel formador da literatura, suas abrangências e profundidades, eis
aspectos também abordados por Candido (1972). Ele identifica, na literatura, três
funções, as quais, em seu conjunto, são responsáveis pela humanização do leitor:
Humanização é o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (CANDIDO, 2004, p. 180).
E, para que ocorra esse processo de humanização, a função psicológica é a
primeira função da literatura por ele especificada. Essa função relaciona-se à
capacidade e à necessidade do ser humano de fantasiar, de ter contato com alguma
espécie de fabulação, como já mencionamos. Candido explica que, dentre todas as
modalidades de fantasia, a literatura é, talvez, a mais completa e intensa. Contudo,
as fantasias apresentadas pela literatura possuem sempre base na realidade, não se
constituem em efabulação plena e está aí, imbricada, por meio dessa ligação com o
real, a segunda função da literatura, a função humanizadora.
Nessa função humanizadora, a literatura vai além do atendimento à
necessidade de fantasia: atua como meio de formação do homem, pois exprime
aspectos da realidade que a ideologia dominante tenta escamotear:
A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...]. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...], ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. [...]. Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem frequentemente aquilo que as convenções desejariam banir. [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe. (CANDIDO, 1972, p. 805).
46
Em consonância com as palavras de Candido citadas acima, inferimos que,
ora sutil, ora declarado, o poder da literatura é capaz de intervir na formação do
indivíduo que lê, pois este, por meio da arte literária, pode ter suas ideias ampliadas,
colocadas em contraste com outras, talvez mais sensíveis ou mais aguçadas,
provenientes de realidades e de contextos históricos também diferentes. É esse
embate – acatamento ou refutação de ideias – o responsável por causar reflexões e
reformulação de conceitos, e esses, por sua vez, poderão resultar em novas
posturas, quiçá redimensionadas por valores mais dialógicos e responsivos.
A terceira e última função da literatura abordada por Antônio Candido (1972),
denominada de função social, relaciona-se à identificação do leitor e de seu universo
vivencial com os universos ficcionais representados na obra literária. Essa função é
responsável por possibilitar ao leitor a relação da sua realidade circundante com as
realidades transpostas para o mundo ficcional. Esse reconhecimento pode causar a
integração do leitor ao universo vivencial das personagens representadas, assim
como possibilitar a integração entre ele e as personagens, provocando uma catarse,
uma identificação com uma realidade que não lhe é familiar, mas que faz parte de
uma cultura própria, diferente daquela que vivencia. Essa integração faz com que o
leitor compreenda e incorpore a realidade da obra às suas próprias vivências
pessoais, multiplicando suas experiências.
É fundamental, como defende Candido (2004), empreender esforços para que
o direito à fruição da arte literária – visto como elemento responsável pela
consolidação do universo de conhecimento afetivo, intelectual e social – seja um
direito de todos, inclusive dos menos privilegiados pela sociedade, apartados dos
bens culturais pelas dificuldades de acesso. Donde, novamente, reiteramos a
relevância de oferecer a literatura, à mão cheia, aos alunos, assim como
consideramos a necessidade do trabalho organizado e sistemático voltado à
literatura nas escolas, em todas as séries, desde a mais tenra idade.
A literatura, como fonte de enriquecimento pessoal e modo de ampliar a visão
da realidade de uma maneira específica, é também fundamento defendido por
Rosenfeld (1976, p. 53), pois “[...] permite ao leitor a vivência intensa e, ao mesmo
tempo, a contemplação crítica das condições e possibilidades da existência
humana”. Mesmo sem a exatidão de um conhecimento preciso, toca nossa
sensibilidade:
47
A literatura é o lugar privilegiado em que a experiência “vivida” e a contemplação crítica coincidem num conhecimento singular, cujo critério não é exatamente a "verdade" e sim a "validade" de uma interpretação profunda da realidade tornada experiência. [...] Embora não transmitindo nenhum conhecimento preciso, capaz de ser reduzido a conceitos exatos, a obra suscita uma poderosa animação da nossa sensibilidade, da nossa imaginação e do nosso entendimento que resulta prazenteira, como toda fruição estética. (ROSENFELD, 1976, p. 53).
A fruição estética citada acima, incapaz de ser quantificada ou medida de
forma exata, mas com poderes de ativar a sensibilidade e a imaginação do leitor,
tornando-se prazenteira, dada a força da literatura, é o logro maior que deveríamos
oferecer ou desenvolver nos nossos alunos. Sobre essa força, a força própria da
literatura, Barthes (2007) lança um olhar aprofundado e enumera três, a partir de
conceitos gregos: Mathesis, Mimesis, Semiosis.
Mathesis é a força categoricamente realista: “[...] todas as ciências estão
presentes no monumento literário [...]”, porque ela “[...] faz girar os saberes, não fixa,
não fetichiza nenhum deles”. Mimesis é sua força de representação, a função
utópica, e, por fim, Semiosis, a força semiótica, o jogo com os símbolos: “[...] jogar
com os símbolos [...] colocá-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e
travas de segurança arrebentaram, em suma, instituir no próprio seio da linguagem
servil uma verdadeira heteronímia das coisas” (BARTHES, 2007, p. 18, 21, 27).
Por ser assim, a linguagem literária, quando “desfrutada” pelo leitor, é capaz
de despertar-lhe sensações com intensidades singulares, subjetivas. Sobre a
singularidade das apropriações das obras literárias discorre Annie Rouxel (2013) ao
apontar que a “[...] leitura das obras é, antes de tudo, uma leitura para si da qual o
sujeito tira o que lhe é necessário para formar seu pensamento e sua personalidade”
(ROUXEL, 2013, p. 177). Especificamente em sala de aula, local em que as
expectativas de leitura se relacionam com significações coletivas e consensuais, o
mais importante, segundo a autora, não é o consenso quanto a uma interpretação,
pois “[...] o que importa, de fato, para o leitor, é o modo como o texto lhe fala e age
sobre ele”. Disso se depreende que acolher a subjetividade das leituras dos alunos,
sem obrigação de interpretações únicas e igualitárias, é a atitude mais coerente para
que a experiência literária se efetive como uma prática enriquecedora e não apenas
como tarefa escolar.
48
Quanto à importância da literatura nas causas sociais, Candido (2004)
assegura que ela tem um forte papel na luta pelos direitos humanos, porque “[...]
pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as
situações de restrição dos direitos, ou da negação deles, como a miséria, a servidão,
a mutilação espiritual” (CANDIDO, 2004, p. 186). Ou seja, a literatura pode colaborar
para que deixemos de ser míopes quanto à realidade que nos cerca, para que
ativemos nossa criticidade e possamos redimensionar nossos pontos de vista.
Nos Contos Crespos, de Cuti, a temática da exclusão, da criminalidade e do
preconceito é retratada e podemos perceber doses do desmascaramento citado por
Candido (2004). Mesmo assim, contudo, a literatura empenhada, com posições
éticas, políticas, religiosas ou simplesmente humanísticas não pode prescindir do
estético, que é o decisivo. A literatura não se justifica somente pela finalidade, pois
“[...] só tem eficiência quando reduzida à estrutura literária, à forma ordenadora”
(CANDIDO, 2004, p. 181).
Rosenfeld (1976), ao tratar desse assunto, corrobora a visão de Candido.
Afirma que os valores ideológicos não devem ser os únicos e os mais importantes
de uma obra literária, bem como não se pode cometer o absurdo de reduzir uma
obra somente a eles. Também destaca que “[...] o valor estético de uma obra não
pode ser explicado à base de outros fatores [...]” e que uma obra literária somente
sobreviverá ao tempo se “[...] o todo da obra, visando retratar a essência, impõe à
multiplicidade dos elementos coerentemente integrados, uma unidade e força”
(ROSENFELD, 1976, p. 55).
Em se tratando de literatura e ideologia, Rosenfeld (1976) enfatiza que,
quando se afirma o poder revelador da obra literária, já se atribui a ela uma função
“ideológica”, no sentido de ela ser manifestação de ideias, de concepções do mundo
ou da sociedade, de se exprimir ou de se engajar em defesa de valores políticos,
morais ou vitais – embora tal empenho nunca deva ser exigido ou imposto.
É inevitável [...] que à obra se associem valores e ideias. A presença deles, a preponderância de uns sobre os outros e a maneira como são organizados, decorre da determinada visão de mundo, também do mundo social (visão religiosa, burguesa, marxista, etc.) e, em última análise, de determinada poção prévia, de determinada atitude valorativa em face do mundo, atitude não necessariamente raciocinada e que, na obra, certamente não se reveste de dogmatismo. (ROSENFELD, 1976, p. 56).
49
O mesmo autor ressalta ainda que os valores ideológicos se destacam numa
obra de formas diversas, não só na temática, mas também na escolha de palavras,
na sintaxe, no sentido gerado pelas metáforas utilizadas, no estilo, no jogo
imaginativo, no impulso rítmico, em toda a sua estrutura da obra, como um todo.
Ao relacionar a teoria de Rosenfeld (1976) sobre os aspectos ideológicos e a
literatura – já mencionados – com as letras de rap nacional e com os contos de Cuti,
percebemos que as escolhas lexicais do rapper – palavras agressivas/palavrões –, a
falta de concordância verbal e nominal, as metáforas “cruas” e o estilo mais ou
menos ácido não são escolhas aleatórias e ingênuas: são expressão de valores e
escolhas ideológicas, assim como os temas dos contos de Cuti também o são. E,
devido a isso – como também a outros fatores ideológicos e sociais –, essas
produções estéticas populares provocam reações como o estigma social e a sua
hierarquização como uma produção estética “inferior”.
Nesse sentido, Terry Eagleton (2006) faz considerações dignas de nota: os
juízos de valor que constituem a literatura – constructo modelado por determinadas
pessoas, por motivos particulares e num determinado momento – são variáveis
historicamente, tendo relação estreita com as ideologias sociais, pois se referem aos
“[...] pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder
sobre outro” (EAGLETON, 2006, p. 24). Isto é, imbricado ao rótulo de “não canônico”
está a ideologia dominante, preocupada em propagar e legitimar “seus” valores, e
não os valores das classes populares, daí o fato de não carimbar tais produções.
Consoantes a essas ponderações, os estudos de Márcia Abreu (2006) vêm
colaborar no debate. A autora se empenha em quebrar certos paradigmas do que,
historicamente, tem sido considerado como “literatura canônica” ou “Grande
Literatura”. Ela considera que os critérios que fazem tal julgamento – Literatura com
L maiúsculo versus outras literaturas – mudam historicamente: um livro apreciado
em uma época pode ser esquecido em outra. Assim como também os gêneros que
são considerados literários mudam com o tempo: “Não há uma literariedade
intrínseca aos textos nem critérios de avaliação atemporais” (ABREU, 2006, p. 107).
Um exemplo disso é o conto. Somente a partir do século XIX passou a ser visto
como forma estética “nobre”, conforme veremos no capítulo a seguir. Em épocas
anteriores, o conto era desprestigiado socialmente, assim como as letras de rap e os
contos negros o são na atualidade.
50
A definição de Abreu (2006) trata a literatura como “algo cultural e histórico” e
não “algo objetivo e universal”. Da mesma maneira, também são culturais e
históricas as “[...] instâncias de legitimação que selecionam o que deve ser
considerado Literatura, definindo, por conseguinte, o que deve ser apresentado nas
escolas como a produção nacional [...]” (ABREU, 2006, p. 109, grifo da autora).
Mesmo assim, contudo, a Grande Literatura, valorizada socialmente,
ensinada nas escolas e muitas vezes não apreciada pelos aprendizes, convive com
outras literaturas, de menor prestígio, mas que “agradam” grande parte dos leitores,
certamente porque satisfazem alguma necessidade intrínseca a eles. Sem refletir
sobre essa dicotomia, “[...] a escola tende a aproximar-se da opinião dos intelectuais
e esquecer – ou pior, estigmatizar – o gosto das pessoas comuns” (ABREU, 2006, p.
110). Isso ocorre, no parecer da escritora, porque são usados os mesmos “juízos de
valor” para categorizar e julgar obras de natureza diversa: “Tomando o gosto e o
modo de ler da elite intelectual como padrão de apreciação estética e de leitura
excluem-se, das preocupações escolares, objetos e formas de ler distintos, embora
majoritários” (ABREU 2006, p. 110).
A mesma autora lembra que sempre haverá julgamento e hierarquização das
produções culturais dos povos, pois algumas são mais bem elaboradas e
respondem melhor às aspirações de seu momento histórico do que outras. Todavia,
o que ela considera inadequado é avaliar todas elas com pauta nos mesmos
critérios da criação erudita. Nessa perspectiva, salienta que
[...] a literatura erudita será entendida como um conjunto de produções realizadas por um determinado grupo cultural e não a Literatura, assim como a visão do crítico literário expressará uma leitura e não a leitura correta de um determinado texto ou a única autorizada. (ABREU, 2006, p. 111, grifos da autora).
A literatura negro-brasileira, ainda estigmatizada e sem o carimbo do cânone
literário para lhe atestar o aval, por motivos vários, que já discutimos, se constitui, a
cada dia, num caminho repleto de novas possibilidades pelo qual alguns escritores
têm enveredado, com objetivos estéticos e ideológicos específicos. Esse é o assunto
tratado a seguir.
51
1.5 LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA: NOVOS CAMINHOS
O silenciamento quanto à realidade das chamadas minorias – étnicas e
sexuais – caracteriza nosso universo literário. Esse assunto é problematizado por
Célia Regina dos Santos & Vera Helena Gomes Wielewicki (2009). As autoras
pontuam que esse silenciamento, em específico o do negro, o do índio e o do
homossexual, ainda não foi superado, pois os textos produzidos por esses grupos
dificilmente são agregados ao nosso conjunto de bens simbólicos, mesmo com
tantos discursos de igualdade de condições panfletados como verdadeiros. Nesse
ponto, relembremos que os critérios – vistos anteriormente – para avalizar as
produções estéticas, conferindo-lhes o distintivo de pertencerem ou não ao restrito
universo canônico, são específicos de certos grupos sociais e, por isso, excludentes,
com o objetivo de manter e exercer poder sobre outros grupos.
Especificamente no que se refere à literatura brasileira na luta e no resgate
dos direitos humanos, nos quatro primeiros séculos, segundo Cuti (2010), os
escritores brasileiros ficaram à mercê das letras lusas. No século XIX, porém,
ocorreram algumas manifestações em que os descendentes de escravizados foram
utilizados como temática, mas era forte o viés do preconceito e da comiseração. Já
no século XX, o Modernismo, na busca da Nacionalidade, novamente tomou o índio,
o negro e o pobre como inspiração, contudo focalizou suas manifestações folclóricas
e enfatizou experimentações com a linguagem, não abordando profundamente seus
conflitos.
Ao abordar a trajetória do negro na nossa literatura, Domício Proença Filho
(2004) explica que, por séculos, foi tratado como objeto, contudo recentemente tem
assumido papel de sujeito, ou seja, a fala/visão do próprio negro é resgatada, na
busca de vencer estereótipos e de eliminar o preconceito, explícito ou velado, em
defesa de sua identidade cultural. Ou seja, de um lado tem-se a literatura sobre o
negro e, de outro, a literatura do negro. E, segundo o autor, essa dicotomia se
comprova a partir de dois posicionamentos que marcaram essa trajetória: a condição
do negro como objeto, numa visão distanciada, e como sujeito, agora numa atitude
compromissada.
Para esclarecer melhor, a visão distanciada ocorre em textos/obras em que o
negro ou o descendente de negro é o personagem ou então quando aspectos
52
ligados à sua vivência são abordados, todavia tal abordagem se dá a partir de
ideologias, de atitudes e de estereótipos ligados à estética branca dominante.
São inúmeros os exemplos dessa visão distanciada citados por Proença Filho
(2004), que vão desde versos de autores consagrados, como Gregório de Matos, no
século XVII, passando por Castro Alves, José de Alencar, Aluízio de Azevedo,
Adolfo Caminha, Fagundes Varella, até os modernistas Raul Bopp, Mário de
Andrade, Vinícius de Moraes e Jorge Amado, só para citar alguns exemplos.
Sem negar a importância desses autores, a princípio nas causas
abolicionistas e, mais tarde, nas causas sociais, a visão que veiculam é simpática
aos negros, mas distanciada, pois não foge das armadilhas dos estereótipos ou da
tendência do branqueamento, mesmo tendo valor notável para sua época.
Sendo assim, o negro é visto ora como vítima, ora como pervertido, violento,
animalizado, ou ainda erotizado, ou como objeto sexual. E não faltam visões de
infantilização, submissão e até mesmo como personagem folclórico. Em muitos
casos, buscou-se encaixar tais obras nos padrões da “sensibilidade branca”, como
salienta Proença Filho (2004).
A respeito das obras que buscaram adequar-se a essa “sensibilidade branca”,
tal autor aponta uma contradição:
Essa poetização da figura do negro, mais configurada nas manifestações literárias do século XIX, culminou por tornar-se, segundo penso, uma faca de dois gumes: se, como quer ainda o mesmo Antônio Candido, conseguiu impor a dignidade humana do negro, por outro lado passou a ser uma via de saída confortável para o preconceito presente na realidade brasileira, na medida em que acabou escoando na aceitação do negro e do mestiço de negro reconhecido como tal enquanto emocionalmente e socialmente bem comportados, dóceis, resignados e que, como Isaura, sabem reconhecer o lugar que socialmente lhes foi imposto. (PROENÇA FILHO, 2004, p. 175).
Em outras palavras, essas obras não se empenham na luta pela afirmação
cultural e pela legítima e já tardia integração do negro à sociedade brasileira, sem
estereótipos e sem distorções. Ademais, contudo, desde o final do século XIX, com
Luís Gama e com Lima Barreto, já se percebe uma visão mais compromissada,
porque trazem o negro como sujeito.
Esse posicionamento compromissado ganha força a partir dos anos 1980,
quando grupos de escritores, assumidos como negros ou como descendentes de
53
negros, marcam sua afirmação cultural na realidade brasileira. Essa é uma época de
grandes movimentos de conscientização dos negros brasileiros, conscientização
cada vez mais ascendente. E, pouco a pouco, manifestam, em seus escritos, a
afirmação étnica e a identidade cultural. Sobre esses escritos comprometidos “[...]
predomina uma posição de resistência e luta pela afirmação e pelo reconhecimento
social” (PROENÇA FILHO, 2004, p. 176).
Na busca da autorreferenciação desses escritos, ainda não há consenso
quanto à denominação de tal literatura. Alguns escritores e estudiosos a denominam
de literatura negra, outros de literatura afro-brasileira ou afrodescendente.
Zilá Bernd, com a tese Vozes Negras na Poesia Brasileira (1987), iniciou o
debate sobre a denominação da literatura marcada pelo eu enunciador
assumidamente negro, que busca preservar a sua cultura e problematizar os
conflitos advindos das relações de preconceito e desigualdade, no resgate de sua
dignidade. Na época, ela optou pelo termo literatura negra, contudo, em 2011, a
mesma autora considera as denominações literatura negra e literatura afro-brasileira
como sinônimas, “[...] cabendo ao autor, seja teórico, poeta ou ficcionista, a escolha
da expressão que melhor corresponda a seu posicionamento” (BERND, 2011, p. 33).
Já Proença Filho (2004, p. 185) considera o termo literatura negra totalmente
equivocado quanto ao adjetivo negra, pois pode fazer o “jogo do preconceito
velado”, provocando “[...] novas e sutis armadilhas marginalizantes”. Segundo ele, o
sintagma admite duas interpretações:
Em sentido restrito, considera-se negra uma literatura feita por negros ou por descendentes assumidos de negros e, como tal, reveladora de visões de mundo, de ideologias e de modos de realização que, por força de condições atávicas, sociais, e históricas condicionadoras, caracteriza-se por certa especificidade, ligada a um intuito claro de singularidade cultural. Lato sensu, será negra a arte literária feita por quem quer que seja, desde que centrada em dimensões peculiares aos negros ou aos descendentes de negros. (PROENÇA FILHO, 2004, p. 185).
Ainda segundo Proença filho (2004), “[...] é muito mais pertinente e
apropriado, por força mesmo do propósito de afirmação da etnia, que, em lugar de
literatura negra se defenda a referência à presença do negro ou da condição negra
na literatura brasileira [...]”, pois tal atitude estaria “acima de qualquer jogo
preconceituoso”. Ele conclui não optando por nenhuma adjetivação: “Importa
prosseguir na busca de uma plena e insofismável representatividade, até que se
54
torne inteiramente dispensável a presença como marca de uma diferença redutora.
Afinal, literatura não tem cor" (PROENÇA FILHO, 2004. p. 188 – grifos do autor).
Eduardo de Assis Duarte (2014, p. 264) toma uma posição mais incisiva e o
adjetivo por ele usado e defendido sobre a literatura em questão é afro-brasileira,
pois explica que esse termo, “[...] por sua própria configuração semântica, remete ao
tenso processo de mescla cultural em curso no Brasil desde a chegada dos
primeiros africanos. Processo de hibridação étnica e linguística, religiosa e cultural”.
Na concepção do mesmo escritor, o termo literatura negra é limitado e vem
atrelado à marca predominante do protesto contra o racismo, na linha militante
vinculada ao Movimento Negro, o que acaba por afastar escritores de uma linha
menos empenhada em termos de militância:
Nesse contexto, vejo no conceito de literatura afro-brasileira uma formulação mais elástica (e mais produtiva), a abarcar tanto a assunção explícita de um sujeito étnico [...], quanto o dissimulado lugar de enunciação [...]. Por isto mesmo, inscreve-se como um operador capacitado a abarcar melhor, por sua amplitude necessariamente compósita, as várias tendências existentes na demarcação discursiva do campo identitário afrodescendente em sua expressão literária. (DUARTE, 2014, p. 265/6, grifos do autor).
Cuti (2010) tem uma visão diferenciada da questão. Ele entende que “[...]
nomear é atribuir sentidos e veicular ou esconder intenções”. Sendo assim,
denominar negro-brasileira a literatura dos que se assumem como negros e falam de
seus conflitos em desobediência à ideologia do silêncio, e não literatura afro-
brasileira ou afrodescendente, é uma forma de caracterização nacional, baseada na
noção territorial geográfica e nas particularidades sociais, econômicas e históricas
do negro brasileiro. Ele defende avidamente a primeira denominação:
Atrelar a literatura negro-brasileira à literatura africana teria um efeito de referendar o não questionamento da realidade brasileira [...]. A literatura africana não combate o racismo brasileiro. E não se assume como negra. Ainda, a continentalização africana da literatura é um processo desigual se compararmos com outros continentes. Países com a sua singularidade estético-literária são colocados sob um mesmo rótulo [...]. Essa negação das singularidades nacionais enfatiza ainda a dominação global, com roupagem de um novo tráfico, agora de livros. (CUTI, 2010, p. 36).
Sem dúvidas, a palavra “negro” é uma das mais polissêmicas da nossa língua
e, sobre a denominação literatura negro-brasileira, o escritor ressalta que “negro”
55
nos remete à reivindicação diante da existência do racismo, ao passo que “afro-
brasileiro” remete, em sua semântica, ao continente africano, onde, não
necessariamente, nem todas as 54 nações são de maioria de pele escura. Por isso
optamos, no decorrer da dissertação, por utilizar a denominação de literatura negro-
brasileira, por concordarmos com a visão de Cuti, uma vez que seus contos são um
dos eixos norteadores da parte prática desta pesquisa e porque sua postura frente à
temática em questão é coerente com os objetivos da nossa proposta.
Parafraseando Cuti (2010), numa sociedade multirracial como a nossa, não
há como negar: todos estão envolvidos de alguma forma nos processos
discriminatórios, como vítima ou como algoz, ou ainda por omissão. Nesse contexto,
surge a literatura negro-brasileira como oportunidade singular de reflexão no que se
refere às convicções e à fantasia dos leitores, que nela podem encontrar
personagens que vão além da caricatura, temas que vão além do folclore, conflitos
profundos que vão além da aparência, atingindo a real busca ou o resgate da
identidade negra.
Como o rap e o conto são tomados como eixos norteadores das atividades
em sala de aula aqui propostas, são então o foco das abordagens do capítulo
seguinte.
56
2 O RAP E O CONTO: A RESISTÊNCIA EM SALA DE AULA
“Nada incomoda tanto quanto a manipulação da palavra pelo
negro como simbologia de um sujeito em ação, seja na música, no palco ou na página”.
(CUTI, 2010).
A necessidade de reflexão e de desconstrução de certos discursos
“enlatados” para se superar a educação bancária/domesticadora e atingir uma
educação libertadora (FREIRE, 2009) é evidente. Para isso, contudo, é
imprescindível proporcionar aos alunos oportunidades pedagógicas para que
percebam que a compreensão de um discurso deve ir além da repetição, deve
atingir a ação de réplica, no parecer de Bakhtin (1997). Dito de outro modo, para
conduzir o leitor ao conhecimento da dominação e da manipulação exercida pelos
setores dominantes – e possivelmente resultar numa compreensão crítica do mundo,
colaborando na luta por justiça social – é preciso muito mais do que proporcionar
atividades que privilegiam a assimilação passiva do discurso de outrem: é
necessário penetrar nos discursos de forma “internamente persuasiva”,
redimensionando-os a partir de novos pontos de vista, de novas ideologias, onde o
preconceito não encontre maneiras de prosperar. E foi com esse patamar de
compreensão em mente e com o objetivo de desenvolver atividades para que nosso
aluno possa atingi-la que empreendemos esta pesquisa.
A definição de preconceito, tal qual a temos hoje, é datada do século XVIII,
com o advento do pensamento iluminista, segundo o qual, para haver dignidade em
um julgamento era preciso ter uma base, uma justificativa metodológica. Bhetânia
Mariani (2008) explica que preconceito, até então, significava – na terminologia
jurídica alemã – um julgamento formulado antes que todos os elementos
determinantes de uma situação tivessem sido analisados, podendo ter valor positivo
ou negativo.
Os iluministas – a partir do século XVIII – passaram a compreender o
preconceito como ação atrelada à autoridade ou ao excesso de pressa. A autoridade
é responsável pelo uso da razão autoritária alheia, e não da própria, pois desloca o
57
julgamento pessoal; e a pressa é fonte de erros quando se parte apenas da própria
razão.
No século XIX, o pensamento romântico, retomando os iluministas,
compreende o preconceito ligado à tradição; seria o oposto da liberdade de
pensamento, uma vez que apaga a história e impõe um modo de pensar como
único, óbvio, correto, que adquire status de autoridade, inquestionável.
Historicamente ativo, como vimos, o termo preconceito atualmente “[...] pode
ser definido como um pré-julgamento, em geral ingênuo, ligado ao senso comum, a
crenças que dão suporte a certezas injustificadas” (MARIANI, 2008, p. 31), o que
corrobora o seu caráter pejorativo, pois designa uma ação irrefletida e dogmática
dessas crenças.
São as diferentes demandas da vida social – demandas desiguais na
sociedade marcada pelo acúmulo de capital – responsáveis pelas relações
preconceituosas de exclusão, de marginalização, de afastamento, dentre outras que
percebemos atualmente. Para Renata de Almeida Vieira (2008), o preconceito é
uma produção social, humana, situada histórica e temporalmente, produzida no
interior das relações sociais. Nas palavras da autora:
[...] para além das diferenças, os homens sob relações classistas não são somente diferentes, são, sobretudo, seres desiguais e, em muitos casos, parecem pertencentes a espécies distintas, tamanha a desigualdade de condições, de desenvolvimento, de riquezas objetivadas e apropriadas. (VIEIRA, 2008, p. 50).
Como o preconceito não é produto das diferenças por elas mesmas, mas
consequência das questões de desigualdade, concluímos que, se não houver
modificação nas relações de produção, não haverá ruptura na produção e
disseminação do preconceito. A forte relação entre a criação de preconceitos para a
manutenção do status quo está explicitada a seguir:
[...] a objetivação preconceito, resguardada as características diferenciadas e próprias a cada tempo e local, sempre foi um componente ineliminável das sociedades classistas tanto em épocas remotas quanto na atual, tendo servido para manter os indivíduos no lugar que lhe é reservado no interior das relações sociais e, desse modo, ajudado a garantir a produção e reprodução dessas sociedades. (VIEIRA, 2008, p. 78).
58
Coadunando-se com o excerto acima, o ponto de vista de Orlandi (2002)
também alerta sobre o entrelaçamento existente entre as relações de poder e as
relações preconceituosas:
[...] o preconceito é de natureza histórico-social, e se rege por relações de poder, simbolizadas. O preconceito se realiza individualmente, mas não se constitui no indivíduo em si, mas nas relações sociais, pela maneira como se significam e são significados. (ORLANDI, 2002, p. 197).
Assim, portanto, ideologicamente marcado, resultado de relações sociais
desiguais, situado histórica e temporalmente, o preconceito não é resultado do
acaso e sua propagação não é ingênua: ele “serve” à sociedade que o criou e que o
mantém, pois garante a produção e a reprodução dessa mesma sociedade, com
todos os seus antagonismos ideológicos.
Passamos, neste capítulo, a tratar sobre as origens, transformações,
definições e possibilidades literárias e pedagógicas do rap e do conto,
especificamente Contos Crespos, de Cuti (2008), tomados como formas estéticas
populares de resistência, visto serem produzidas por sujeitos historicamente
silenciados pelas condições de poder e pelos preconceitos resultantes dessas
relações.
2.1 O RAP: A VOZ DAS RUAS, O GRITO DO POVO20
O termo rap é formado pelas letras iniciais de rhythm and poetry – traduzido
como ritmo e poesia. Estilo poético/musical nascido na periferia, é muito apreciado
pela juventude contemporânea e tem sido visto como expressão genuína dos
segmentos juvenis, atualmente. É compreendido, juntamente com outros elementos,
como o break e o grafite21, como um movimento – movimento hip-hop22 – valorizado
20
De forma adaptada, o texto desse subitem da dissertação foi publicado pela revista Temática (ISSN1807-8931) em julho de 2016, no artigo Rap: A voz da resistência em sala de aula, em coautoria com a orientadora professora Dra. Valdeci de Melo Batista Oliveira. Disponível em: <http://perio dicos.ufpb.br/index.php/tematica/article/viewFile/29803/15775>.
21 Para Silvana Carolina Trevizan (2012), há estudiosos que alegam que o hip-hop é formado por quatro elementos: o rap (desdobrado em MC e DJ), o break e o grafite. Outros defendem a existência de cinco elementos, sendo este último a sabedoria, que perpassa todos os outros e serve de base para as suas manifestações.
22 No decorrer desta pesquisa, ainda que em contexto amplo, façamos referência ao hip-hop, a relevância será dada ao rap, como a vertente principal sobre a qual nos debruçamos.
59
pela forma estética que lhe é característica, mas também pelo engajamento
político/social:
O hip-hop é um movimento integrado por práticas juvenis construídas no espaço das ruas. E, aos olhos dos jovens, não se resume a uma proposta exclusivamente estética envolvendo a dança break, o grafite e o rap, mas, sobretudo, é a fusão desses elementos como arte engajada. (SILVA, 1999, p. 23).
Elaine Nunes Andrade (1999) salienta que o hip-hop, sendo um movimento
social, permite aos jovens desenvolver uma educação política e, consequentemente,
o exercício do direito à cidadania, pois garante o fortalecimento da identidade étnica
de seus produtores: “[...] cultivar o rap é investir na sua auto-estima, pois o rap é
uma música de origem negra, o que não significa que o conteúdo da música deva
ser unicamente nessa temática; o ritmo de estilo musical por si só expressa sua
origem” (ANDRADE, 1999, p. 90).
Quanto às suas origens, o rap é um dos pilares da cultura hip-hop. Surgiu por
volta de 1960, nos guetos jamaicanos. Os MCs – mestres de cerimônia –
comentavam, ao microfone, em bailes improvisados nas ruas, assuntos pertinentes
à sua comunidade, como a violência, a situação política do país e as drogas. Na
década de 1970, muitos jovens jamaicanos migraram para os Estados Unidos,
fugindo da fome causada pela crise que consternava o país, levando na bagagem,
além da esperança, o estilo musical que espalhariam na pátria madrasta. Kool Herc
e Afrika Bambaata, ambos jamaicanos, são considerados os precursores do
movimento hip-hop nos guetos nova-iorquinos, principalmente no Bronx. Dali o
movimento se propagou por muitos países, chegando ao Brasil por volta de 1980.
No Brasil, inicialmente em São Paulo, o rap revestiu-se de características
próprias, embora nessa fase a influência norte-americana ainda fosse muito
acentuada. Na década de 1990 ocorreu a eclosão do movimento, tendo como
principais expressões Thaíde e DJ Hum, Racionais MC’s, MC Jack, Código 13 e
Credo. As letras dessa época eram marcadas pelo tom agressivo, pois era a fase da
autoafirmação do rap como estilo musical; os temas giravam em torno da negritude
e da difusão do movimento.
Já salientamos que o rap é mais do que ritmo e som; é denúncia e crítica.
Segundo Geni Rosa Duarte (1999), as letras de rap têm muito a contribuir na
formação do aluno. Ganha importância por ser um movimento gestado entre os
60
jovens: “Fugindo dos modelos externos, fugindo do circuito massificador dos meios
de comunicação, ele consegue resgatar, de forma muito significativa, as questões
sociais geradoras de exclusão” – defende a mesma estudiosa. E mais:
O rap discute, questiona, denuncia. Enfim, retoma uma das funções que a Literatura tem nas sociedades letradas, e o faz sem demarcar espaços de separação entre produtor “autorizado” do texto literário e o consumidor deste. Em outras palavras, o rapper torna-se o literato, no exato sentido da palavra, conquistando o direito de exprimir pela palavra. (DUARTE, 1999, p. 19).
Por causa dessa força socioeducativa, o rap tem sido entendido como uma
forma de expressão do jovem da periferia das grandes cidades, como música de
contestação que expressa a reivindicação de uma parcela do povo com dificuldade
de acesso ao emprego e ao consumo, buscando a definição de seus territórios e de
seu pertencimento à sociedade.
O fato de que o rap tem um papel social é apontado também por Arnaldo
Contier (2005). Ele salienta que o viés da denúncia é marcante, pois “[...]
caracteriza-se pela reinvenção do cotidiano através da oralidade de pessoas
comuns que denunciam em suas canções problemas graves vivenciados nas
situações sociais extremamente adversas”. É um grito de resistência dos jovens que
solicitam perspectivas para seu futuro, isso em meio ao esvaziamento
contemporâneo imposto pela sociedade de mercado.
O termo resistência, segundo Alfredo Bosi (1996, p. 11), remete a “[...] um
conceito originariamente ético, e não estético. O seu sentido mais profundo apela
para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor
a força própria à força alheia”.
Com efeito, o rap opõe a força própria à força alheia. A força própria,
entendemos que ela seja o seu ritmo dialogal, o seu discurso ácido e direto, o seu
lugar de enunciação, a sua justa e merecida reivindicação de direitos historicamente
negados. Quanto à força alheia, com a qual o rap trava o embate, compreendemos
que seja o discurso hegemônico, arquitetado para silenciar qualquer levante ou
insubmissão das chamadas “minorias”.
E, como defende Bosi em sua teoria sobre narrativa e resistência (1996), mas
aqui aplicada também ao rap, essa oposição/resistência se dá de duas maneiras:
como tema e como processo inerente à escrita:
61
Deve-se aprofundar o campo de visão. E detectar em certas obras, escritas, independentemente de qualquer cultura política militante, uma tensão interna que as faz resistentes, enquanto escrita, e não só, ou não principalmente enquanto tema [...]. A escrita resistente (aquela opção que escolherá afinal temas, situações, personagens) decorre de um a priori ético, um sentimento do bem e do mal, uma intuição do verdadeiro e do falso, que já se pôs em tensão com o estilo e a mentalidade dominantes. (BOSI, 1996, p. 22).
O tema e os processos inerentes à escrita – as duas formas de resistência
defendidas por Bosi (1996) – são identificáveis na maioria das letras do rap nacional.
Os temas demonstram resistência porque criticam, denunciam, fazem refletir sobre
as reivindicações dos direitos das minorias, dos seus conflitos diários de exclusão e
preconceito, da violência na periferia, das dificuldades de acesso aos bens culturais
e econômicos. E os processos referentes à escrita evidenciam a resistência por
trazerem à tona – por meio da voz do rapper – a fala/dialeto das periferias: informal,
estigmatizada por aqueles que defendem como única variedade linguística aceitável
a linguagem de prestígio, a norma culta, própria da elite.
Stela Maris Bortoni-Ricardo (2005, p. 23) assinala que a força padronizadora
da língua-padrão é representada por um vetor que ela denomina de assimilação.
Explica, contudo, a autora, que as variedades linguísticas de “certas minorias”
sociais e étnicas nas comunidades urbanas são marcadas por “[...] alguns traços
que atuam como uma peça de resistência à assimilação [...]” e seus falantes usam
tais recursos de variação da língua como forma de enfatizar sua identidade. Esse
aspecto é percebido na variedade linguística utilizada nas letras de rap. Certas
escolhas lexicais, de concordância e de estilo do rapper, enfatizam o lugar de
enunciação, fortalecendo a sua identidade e o seu pertencimento ao grupo.
O sentimento de etnicidade, a ética da solidariedade como estratégia de
sobrevivência, a coesão de grupo e a consequente resistência consciente aos
valores da cultura dominante são fatores que justificam os traços de não padrão
como marcadores de registro de identidade. E essa marca ocorre mesmo nas letras
compostas por rappers com maior escolaridade e/ou conhecimento e acesso à
variedade formal da língua.
A língua, sendo uma atividade social, é “historicamente situada e
heterogênea” (GORSKI, 2009), um organismo vivo, diretamente influenciado pelos
falantes. Por causa dessa heterogeneidade – da mistura de muitos falares, antigos,
atuais, baseados na norma culta ou não, de diferentes culturas, regiões e segmentos
62
sociais, atendendo às exigências de diversos contextos –, a língua é o “ponto de
encontro” de um povo, forma de adesão, de pertencimento a um grupo, na visão de
Irandé Antunes (2003):
A língua é, assim, um grande ponto de encontro; de cada um de nós com nossos antepassados, com aqueles que, de qualquer forma, fizeram e fazem a nossa história. Nossa língua está embutida na trajetória de nossa memória coletiva. Daí o apego que sentimos à nossa língua, ao jeito de falar de nosso grupo. Esse apego é uma forma de selarmos nossa adesão ao grupo. (ANTUNES, 2003, p. 23).
Essa vinculação da língua com situações em que é usada socialmente torna a
voz de cada um de nós o eco das vozes de nossos antecedentes e daqueles com
quem convivemos em nossos dias. São vozes que emitem concepções, verdades,
crenças, ideologias – vozes que interagem e pensam o mundo de forma diferente,
criando novas formas de pensar: o outro me constitui assim como eu o constituo23.
Pela língua nos afirmamos como pessoa e como grupo, vivenciando o sentimento de
pertença: “As ideias, se dizem de nós, só vêm depois do que já disseram nosso
sotaque, nossas entonações, nossas escolhas lexicais e opções sintáticas”
(ANTUNES, 2009, p. 24).
Além das escolhas lexicais, o aspecto figurativo/metafórico também marca o
estilo ácido das letras de rap. O microfone tomado como arma e a palavra como
munição são metáforas muito presentes nas letras. Os versos de Mó H (2008), ao
afirmarem que “[...] minha arma é o microfone, agora eu vou guerrear [...]”, mostram
que os rappers estão conscientes do poder da palavra, “do verbo cru” que tomam
para si e do espaço de enunciação que forjam a cada nova produção. Os versos
abaixo comprovam essa compreensão:
Enquanto o mundo muda pela música/ Preparo poesia de aço na minha siderúrgica/ Um hábito noturno inspirado em Saturno/ E seus anéis em torno, não há retorno/ Eu sempre estive aqui, no verbo cru que nem sashimi/ A verdade virá à tona/ pelo parto, infarto no miocárdio/ Revolução não será televisionada nem virá pelo rádio. (BLACK ALIEN, 2004).
Dessa forma, os rappers vão à luta por seus direitos, com escolhas lexicais
próprias, com opções sintáticas informais, com um estilo inconfundível e com
23
Os conceitos de Bakhtin sobre dialogismo e polifonia já foram abordados no tópico sobre o caráter social e dialógico da linguagem. Para saber mais sobre o assunto, consultar Bakhtin (2010) e, de modo complementar, Bezzerra (2008).
63
propósitos firmes, numa linguagem direta e ácida. Nos versos do grupo Racionais
MC’s (1997) também é marcante o uso das metáforas ao definir o próprio estilo e a
força que a palavra pode assumir: “Eu tenho uma missão e não vou parar/ Meu
estilo é pesado e faz tremer o chão/ Minha palavra vale um tiro e eu tenho muito
munição/ Na queda ou na ascensão minha atitude vai além" (RACIONAIS MC’s,
1997).
Sobre a linguagem dos raps, Ana Sílvia Andreu da Fonseca (2011) enfatiza
que a influência da oralidade não gera “pobreza”, pelo contrário, é um recurso que
pode ser surpreendentemente sofisticado ou inovador em termos poético-
linguísticos. E pontua que os professores devem compreender tais questões para
que o rap passe a fazer parte dos gêneros analisados em sala de aula:
Para que os professores se disponham a utilizar o rap em sala de aula é preciso ir, no entanto, além de uma discussão sobre o porquê da escolha lexical de alguns rappers em suas letras. É preciso que também sejam convencidos de que a (por vezes, falta de) concordância nominal ou verbal adotada configura, não evidência de pobreza de linguagem, mas o resultado de uma forte e constante influência da oralidade, constituindo, assim, o que eu ironicamente chamaria – riqueza das rimas pobres. É preciso que consigam perceber quão sofisticadas em termos poético-linguísticos podem ser essas letras, e quão surpreendente pode ser o modo como as metáforas, por exemplo, são nelas utilizadas. (FONSECA, 2011, p. 36/7).
Trata-se, acima de tudo, de abandonar os padrões alheios, que nada dizem
de sua história, e tomar “para si” o direito da palavra, forjar a própria literatura, numa
linguagem que lhe é própria, na “riqueza das rimas pobres”. Nesse contexto, a
língua tem papel essencial, pois, segundo Bakhtin (1992), ela age “[...] como
expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito dessa luta,
servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e de material” (BAKHTIN, 1992, p. 18).
Numa visão freireana, podemos inferir que o rapper faz uma leitura do mundo a
partir de sua realidade, mas atinge a universalidade; seus problemas e conflitos são
de toda uma coletividade, daí o forte caráter dialógico das letras.
Por outro lado, a valorização da experiência de vida é um dos aspectos
legitimadores dos rappers e das letras que compõem. Ter passado por processos de
exclusão relacionados à etnia ou à classe social garante-lhes a legitimidade artística,
a valorização do seu pertencimento e proporciona matéria-prima para as suas
composições musicais, pois, no rap, a mensagem é sempre pessoal, imersa na
64
localidade – em geral, a periferia – mas, ao mesmo tempo, universal: “A mesma
experiência individual que é relegada a segundo plano nos bancos escolares
transforma-se em tema de reflexão e construção da narrativa poética” (SILVA, 1999,
p. 31).
Quanto à transposição das fronteiras do rap entre periferia e o centro, Maria
Eduarda Guimarães (1999) afirma que não ocorre de modo fácil para nenhum dos
lados. Sobretudo, isso não garante a diminuição da discriminação sofrida pelo seu
grupo produtor, os excluídos, negros ou não. E mesmo quando ganha uma
dimensão nacional/internacional, continua orgulhosamente local. E, quando
absorvido pela indústria cultural, o rap também dela se apropria para garantir um
maior espaço de suas denúncias.
E assim, para Guimarães (1999), o rap “toma de assalto” os lares
brancos/classe média e a preferência dos jovens. Esse “fenômeno” explica-se
porque ser jovem, muitas vezes, é ser incompreendido, é ser excluído, dependente,
incapaz de gerir sua própria vida. Isso identifica o jovem da classe média com o
jovem pobre, com o negro, com o universo do rap. E a ideia de transgressão,
inerente aos jovens, é latente nas letras de rap, atraindo-os e levando-os a apreciar
tal estilo.
Nos estudos de Antônio Leandro da Silva (2006), o rap é compreendido como
uma forma de narrativa contemporânea: “Salvando a palavra e resgatando o poder
da fala, no sentido benjaminiano, os rappers contam, tanto as suas experiências
cotidianas quanto as dos outros” (SILVA, 2006, p. 87). Os rappers seriam os
“griots24” contemporâneos, nas concepções do autor. Contudo, não são velhos
contadores de histórias como entre os povos africanos, mas jovens e adolescentes,
negros, de classe pobre, que “[...] constroem suas mensagens a partir das
representações que têm do seu locus e as comunicam por meio de ritmo e poesia”,
alertando, aconselhando e “educando” a juventude socialmente excluída através da
“poética da exclusão”.
Quanto ao uso didático de letras de rap nacional, os estudos de Ana Sílvia
Andreu da Fonseca (2011) são pioneiros aqui no Brasil. Ela defende a didatização
do rap e sua inserção no currículo escolar no Ensino Médio na área de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias. Questiona, em sua tese, os argumentos pelos quais as
24
Griots eram antigos contadores de histórias africanos, que tinham como objetivo narrar os acontecimentos passados e presentes das comunidades.
65
letras de rap nacional não estão incluídas nos gêneros textuais explorados na
escola, como, por exemplo, a alegação de fazer apologia à violência e às drogas e
de ter linguagem pobre.
Para demonstrar seu ponto de vista, a pesquisadora analisa um corpus
composto de letras de rap nacional e comprova que tais apologias não ocorrem,
muito pelo contrário; as letras, em sua maioria, trazem questionamentos e críticas à
“justiça social” da suposta “democracia racial” em que vivemos, buscam a
conscientização dos jovens quanto à identidade cultural e às drogas e ainda
analisam as causas e os efeitos da violência urbana. Tudo isso, essas letras o
fazem, muitas vezes, de forma contundente, com linguagem informal, mas com
riqueza poética e rítmica, de acordo com as discussões já apresentadas.
Há um segmento do rap, contudo, chamado de gangsta25, em que
observamos um estilo mais contundente e agressivo. São desse segmento as letras
mais apologéticas no que se refere às drogas e à violência. Esse segmento, porém,
não será foco das nossas discussões, visto que o nosso interesse é justamente o
contrário.
Ressaltamos, contudo, que a proposta que apresentamos nesta dissertação
refere-se à ideia de ampliar a abordagem de Fonseca (2011), quando defende a
didatização do rap no Ensino Médio: nós propomos tomar letras de rap como fonte
de análises e de atividades no Ensino Fundamental, especificamente em turmas de
9º ano. Justificamos que, nessa fase, tais alunos já possuem compreensão e
maturidade para aprofundar-se nos aspectos por elas apontados e que, desde as
séries iniciais, estão imersos em inúmeras e diversificadas informações,
principalmente as populares. Então não faz sentido rechaçar oportunidades de
utilizá-las em sala de aula, de modo crítico e aprofundado, como objeto de estudo e
de análise.
Nessa perspectiva, os estudos de Rojo (2009, p. 115) defendem a relevância
da potencialização do debate intercultural na escola. Ela aponta a necessidade de
“[...] trazer para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada, dominante,
canônica, mas também as culturas locais e populares e a cultura de massa, para
torná-las vozes de um diálogo, objeto de estudo e de crítica”. Tal direcionamento
25
A palavra gangsta, um derivativo de gangster, é um termo criado pela mídia para descrever certo segmento do rap que tem por característica a descrição do dia a dia violento dos jovens de grandes cidades, o que pode incitar, segundo alguns, à violência e ao consumo de drogas.
66
encontra consonância também em Fonseca (2011, p. 27), quando afirma que “[...]
não se pode mais conceber um currículo escolar que não considere de modo radical
a diversidade presente em nossa sociedade”. Em outras palavras, só abordando
essa diversidade, refletindo sobre ela e debatendo as suas causas e os seus efeitos
a escola estará cumprindo uma de suas principais funções, conforme defendem as
DCEs de Língua Portuguesa (2008), que é desenvolver a criticidade do aluno-leitor e
torná-lo capaz de interagir eficazmente nas diversas práticas sociais que vivencia.
Ainda segundo Fonseca (2011, p. 28), “[...] o rap nacional pode, em sala de
aula, promover, não apenas alguma catarse pela possibilidade de privilegiar
identidades negadas, silenciadas na escola, mas também a politização dessas
mesmas identidades [...]”, bem como pode favorecer o diálogo com obras
consideradas canônicas, aguçando a compreensão de textos em geral:
As letras, além de poderem dialogar com obras literárias consideradas canônicas, mobilizando o aluno para temas nelas contemplados, contribuiriam no questionamento acerca do papel de dados mecanismos poéticos e estilísticos na construção de tais obras. [...]. Há, sobremaneira, o indicativo de que o rap mobilizaria os alunos para lerem outros textos [...]. Os mecanismos poéticos, de linguagem, presentes no rap podem, igualmente, servir para que o aluno desenvolva noções de interpretação de textos escritos e orais, e possivelmente contribua com a produção de textos. (FONSECA, 2011, p. 34/35).
Em seus estudos, a mesma autora delimitou três fases distintas no rap
nacional. A primeira caracteriza-se pela autoafirmação da negritude e difusão inicial
do movimento hip-hop no Brasil, nos anos 1980; a segunda, já mais solidificada, dá
prioridade às denúncias sociais e é responsável pela consolidação identitária do rap,
nos anos 1990; e a terceira fase, dos anos 2000 em diante, é marcada pela ironia
poética e pela diversificação temática e musical. Todavia, os períodos que marcam
cada fase não são estanques e um artista pode apresentar elementos comuns em
mais de uma fase, simultaneamente.
Por algumas décadas, principalmente nos anos 1980 e 1990, as letras de rap
não tiveram espaço na grande mídia. Atualmente a indústria fonográfica parece ter
se “apoderado” de alguns grupos, pelo fato de eles serem lucrativos. Isso, porém,
contraria os princípios da maioria dos rappers, principalmente os mais engajados
política e socialmente, que não aceitam que suas músicas se tornem “mercadoria” e
67
que se rendam ao capitalismo, estrutura que tanto questionam e criticam. Por esse
motivo, as produções com recursos próprios ainda são comuns nesse meio.
Devido à inexistência de produtores e de interesse das gravadoras, as
músicas eram gravadas em estúdios caseiros, de maneira alternativa, o que ainda
acontece com grupos menores, sem condições de pagar por gravações
especializadas. Paralelamente, contudo, o alcance cada vez maior da informática
colaborou para a difusão do rap. A internet, por meio do Youtube e do Facebook, foi
e ainda é o seu grande meio de circulação, principalmente dos grupos iniciantes.
Além disso, há os shows, onde os rappers se apresentam ao público, expondo suas
canções. E como as temáticas muitas vezes são locais e objetivam abranger sua
localidade, cumprem, assim, a função de alcançar seu público-alvo.
Abordados esses aspectos referentes ao rap, passemos ao conto e às suas
especificidades.
2.2 O CONTO: UM GÊNERO ESQUIVO, DE DIFÍCIL DEFINIÇÃO
Júlio Cortázar (2006, p. 150), em um de seus ensaios, utilizando-se de uma
linguagem essencialmente poética, expõe uma tentativa de “definição” do que para
ele vem a ser o conto, “[...] esse gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus
múltiplos e antagônicos aspectos”. Isso já antecipa a complexidade das definições
que apresentamos:
É preciso chegarmos a ter uma ideia viva do que é o conto, e isso é sempre difícil na medida em que as ideias tendem para o abstrato, para a desvitalização de seu conteúdo, enquanto que, por sua vez, a vida rejeita esse laço que a conceitualização lhe quer atirar para fixá-la e encerrá-la numa categoria. Mas se não tivermos a idéia viva do que é um conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência. (CORTÁZAR, 2006, p. 150).
O conto, como poeticamente Cortázar (2006) definiu acima, é criação recente,
embora tenha raízes longínquas, pois está ligado ao antigo ato de “contar estórias”.
Nádia Battela Gotlib (2006), ao abordar as suas origens, remonta às baladas, na
pré-história, de transmissão oral, depois inseridas nas épicas, passando por
68
coletâneas como as do Decameron, de Boccaccio, já com registro por escrito, por
volta dos anos 1350.
Da forma que o conhecemos hoje, no entanto, o conto é produto do século
XIX. Para Massaud Moisés (1997), nesse século o conto conhece sua época de
maior esplendor, torna-se forma literária “nobre” e passa a ser largamente cultivado.
Abandona seu estágio empírico ou folclórico para tornar-se tipicamente literário, com
características e estruturas próprias: “Instala-se em definitivo o reinado do conto
[...]”, com “[...] contistas de primeira categoria” (MOISÉS, 1997, p. 18).
O mesmo autor trata-o como uma narrativa unívoca, constituída por uma
unidade dramática, com espaço e tempo restrito, que não se detém em pormenores
secundários. A isso se junta a unidade de tom, ou seja, “[...] todas as partes da
narrativa devem obedecer a uma estruturação harmoniosa, com o mesmo e único
objetivo” (MOISÉS, 1997, p. 23). Isso, segundo Cortázar (2013), se evidencia pela
“tensão interna da trama narrativa”.
Cortázar (2006, p. 152) assinala também, como elemento importante do
conto, a sua brevidade: “[...] o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o
conto deve ganhar por knock-out”, ou seja, precisa ser “[...] incisivo, mordente, sem
trégua desde as primeiras frases”. E sobre a importância do tema do conto, o grande
escritor afirma que deve ser um tema significativo. Isso, porém, de nada vale se não
houver um “tratamento literário”, a forma especial pela qual o contista, frente ao
tema, “[...] o ataca e o situa verbal e estilisticamente, estrutura-o em forma de conto,
projetando-o, em último termo, em direção a algo que excede o próprio conto”
(CORTÁZAR, 2006, p. 154).
Mario de Andrade (2002, p. 9) também considera que a definição do conto
não é simples ou mecânica, e que a tarefa de defini-lo acaba sendo, segundo ele,
um “inábil problema da estética literária”. Tanto que chega a afirmar: “[...] em
verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto [...]”,
furtando-se, com isso, de pormenorizar suas características.
Edgar A. Poe (apud GOTLIB, 2006), contista e crítico literário do século XIX,
analisa o conto sob dois aspectos: a extensão e o efeito. Para ele, o conto longo
demais, ou breve demais, não dá conta de manter o estado de “excitação” ou
“exaltação da alma” que a obra literária deve despertar. É, portanto, preciso saber
“dosar” a obra, para que esses efeitos sejam sustentados durante toda a leitura. Daí
a sua famosa afirmação de que a leitura do conto deva ser “de uma só assentada”.
69
E explica a fascinação que acontece no momento da leitura de um conto ao
conseguir despertar no leitor o “efeito único”:
No conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora de leitura atenta, a alma do leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção. (POE apud GOTLIB, 2006, p. 34).
O conto, resultado de um trabalho minucioso e consciente por parte do
escritor, que deve saber manejar com maestria seus materiais narrativos em função
da intenção, na conquista do efeito único também é ideia defendida por Poe:
“Concebido, com cuidado deliberado, um certo efeito único e singular a ser
elaborado, ele [o contista] inventa tais incidentes e combina tais acontecimentos de
forma a melhor ajudá-lo a estabelecer esse efeito preconcebido” (POE apud
GOTLIB, 2006, p. 35).
Cortázar (2006) acredita, porém, que um conto só é excepcional, inesquecível
para quem o lê, pelo engenho artístico do escritor, o que vai além da técnica. Mais
do que o trabalho minucioso e calculado defendido por Poe, é imprescindível,
segundo ele, “[...] uma outra ordem, mais profunda e incompreensível [...]”, uma
“alquimia secreta”, ao que ele denomina “ofício do escritor”. Tal “ofício” trata de criar
um clima característico aos grandes contos, conferindo fascínio e o isolamento ao
leitor, capaz de desprendê-lo da realidade, “[...] para depois, terminado o conto,
voltar a pô-lo em contato com o ambiente de uma maneira nova, enriquecida, mais
profunda e bela" (CORTÁZAR, 2006, p. 157).
O mesmo autor afirma que “[...] um conto é uma verdadeira máquina literária
de criar interesse [...]” e “[...] que a eficácia de um conto depende da sua intensidade
como acontecimento puro, isto é, todo comentário ao acontecimento em si [...] deve
ser radicalmente suprimido”. E que para que “a coisa” ocorra, cada palavra deve
confluir para esse acontecimento: “A intensidade do conto é esse palpitar da sua
substância, que só se explica pela substância, assim como esta só é o que é pela
palpitação” (CORTÁZAR, 2006, p. 122/123, grifos do autor).
Segundo Gotlib (2006), o contista Tchekhov corrobora os aspectos
primordiais do conto defendidos por Cortázar e Poe: a brevidade e um efeito ou
impressão total, mas acrescenta a novidade, a força, a clareza e compactação. De
Tchekhov, contudo, a maior contribuição, segundo a escritora, não é como teórico,
70
mas como contista, ao “[...] libertar o conto de um dos seus fundamentos mais
sólidos; o do acontecimento” (GOTLIB, 2006, p. 46). Seus contos não têm grandes
ações, rompendo, assim, uma antiga tradição e abrindo caminho para o conto
moderno, em que às vezes nada parece acontecer, embora muita coisa aconteça.
Gotlib (2006, p. 83) admite ainda outros desdobramentos e outras definições
para o conto, e, de forma criativa e irreverente, acaba por afirmar – sem colocar um
ponto final na discussão, mas deixando-a aberta para futuros estudos – que a
complexidade das definições faz “de cada conto, um caso... teórico”.
Os contos do escritor, poeta e ensaísta negro Cuti, por sua vez, compõem
uma das bases da pesquisa aqui exposta. Ele é um dos mais engajados militantes
da literatura negro-brasileira atual. Usando a palavra como forma de resistência,
criou uma produção vasta, com nuances específicas, baseadas nos elementos
culturais de origem negra e no resgate da sua dignidade. Assim como muitos
rappers, cria seu próprio estilo, dispensando padrões alheios, que nada dizem da
vivência negra e forja a própria literatura, numa linguagem que lhe é própria. Com
metáforas abundantes, muitas vezes tomando como mote aspectos ligados à
negritude, cria enredos ora simples, ora complexos, com doses de certa ironia
amarga, podendo ser comparada à ironia machadiana.
Escritor ativo e grande pesquisador, Cuti se destaca entre os precursores da
geração de escritores negros, que alcançou um patamar de destaque com os trinta
anos de edição ininterrupta dos Cadernos Negros26, sendo criador e mantenedor da
série de 1978 a 1993. Foi também um dos fundadores e membro do Quilombhoje-
Literatura27, de 1983 a 1994. Autor de poemas, contos, peças de teatro, novelas
26
O primeiro volume da série Cadernos Negros foi publicado em 1978, contendo oito poetas que dividiam os custos do livro, publicado em formato de bolso com 52 páginas. A publicação, vendida principalmente em um grande lançamento, circulou posteriormente de mão em mão, sendo distribuída para poucas livrarias, mas obteve um expressivo retorno dos que tiveram acesso a ela. Desde então, e ininterruptamente, foram lançados outros volumes – um por ano – alternando poemas e contos de estilos diversos. A distribuição aperfeiçoou-se, procurando chegar a um público mais amplo e diversificado. Escritores de vários Estados do Brasil vêm publicando nos Cadernos. É preciso assinalar que não existem outras antologias publicadas regularmente com textos de autores afro-brasileiros, em grande parte devido às dificuldades financeiras inerentes às publicações desse tipo. Sendo assim, os Cadernos têm sido um importante veículo para dar visibilidade à literatura negra nos últimos anos, contribuindo grandemente para sua divulgação. Disponível em: <http://www.quilombhoje.com.br/cadernosnegros/historicocadernosnegros.htm>. Acesso em: 23 fev. 2016.
27 O Quilombhoje Literatura é um grupo paulistano de escritores. Foi fundado em 1980, por Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e outros, com objetivo de discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura. O grupo tem como proposta incentivar o hábito da leitura e promover a difusão de conhecimentos e informações, bem como desenvolver e incentivar estudos, pesquisas e diagnósticos sobre literatura e cultura negra. O trabalho
71
juvenis, além de outras obras em coautoria, publicadas em antologias no Brasil e no
exterior.
Seus contos são uma forma de resistência, de denúncia e de debate na luta
pelos direitos dos excluídos, principalmente do negro. Consideramos que são
exemplos do que Candido (2004) denominou "literatura social", pois, segundo ele, a
literatura tem um forte papel na luta pelos direitos humanos, porque “[...] pode ser
um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações
de restrição dos direitos, ou da negação deles, como a miséria, a servidão, a
mutilação espiritual” (CANDIDO, 2004, p. 186). Ou seja, os contos de Cuti, ao
representarem conflitos e situações de exclusão e de preconceito, podem levar seus
leitores à percepção mais crítica da realidade, desnudando certas “verdades” e
certos estereótipos, rompendo códigos consagrados e adquirindo caráter
emancipatório, de acordo com o que veremos mais adiante.
O livro Contos Crespos (2008) é composto de 37 contos em que as diferentes
facetas da vida cotidiana, com ênfase ao cotidiano do negro em nossa sociedade,
estão presentes. Isso tudo se corporifica com uma linguagem despojada e simples,
mas, ao mesmo tempo, rica em imagens metafóricas. Trata-se de uma obra em que
o leitor se depara com situações inusitadas, mas possíveis, que podem provocar o
riso não declarado, a dor e a reflexão mais profunda sobre a existência humana,
levando-o a uma possível catarse, pois fala à sensibilidade de forma intensa.
Contos Crespos (CUTI, 2008) efabula, de forma atual, por vezes irônica ou
direta, por vezes metaforicamente sutil, a situação do negro na sociedade atual, seja
na sua exaltação, seja no resgate de temas históricos, ou valorizando e elevando
sua autoestima, despertando seu amor-próprio, na erotização dos traços físicos e
compleição ou ainda mostrando as contradições da nossa sociedade, que rebaixa
cotidianamente o pobre e o negro. Nesse sentido, com uma leitura crítica e
atividades direcionadas para a reflexão, julgamos que eles podem contribuir na
“humanização” defendida por Candido (2004) e podem dar vez e voz aos alunos, por
meio dos debates e das atividades propostos.
desenvolvido pelo Quilombhoje, sem receber ajuda financeira de ONGs ou do Estado, tem colaborado para provocar o surgimento de outras atividades. Cursos, seminários e debates sobre literatura negra têm sido organizados por faculdades de Letras e entidades interessadas nas questões literárias e raciais em vários lugares do Brasil. Disponível em: <http://www.quilombhoje.com.br/quilombhoje/historicoquilombhoje.htm>. Acesso em: 13 jan. 2016.
72
Passemos ao terceiro capítulo. Nele são realizadas as explanações sobre a
abordagem metodológica da parte prática desta pesquisa: a Estética da Recepção e
o método recepcional e também sobre a pesquisa-ação com abordagem qualitativa.
73
3 ABORDAGENS METODOLÓGICAS
“Todo ponto de vista é a vista de um ponto”.
(BOFF, 1997)
As DCEs de Língua Portuguesa (2008) destacam o método recepcional como
procedimento de trabalho para o enfoque da literatura no Ensino Médio. Não
sugerem um método específico nem uma abordagem direcionada para o mesmo
trabalho no Ensino Fundamental, o que se constitui numa lacuna na documentação
oficial norteadora do ensino de Língua Portuguesa no nosso Estado, segundo nossa
análise e que, de forma simples, porém direcionada, essa pesquisa pretende
minimizar.
Assim sendo, pensando em preencher tal lacuna, propomos a aplicação do
método recepcional – embasado na Estética da Recepção, defendida por Hans
Robert Jauss (1921-1997) – para nortear também os encaminhamentos do trabalho
com a Literatura nos anos finais do Ensino Fundamental, mais especificamente no 9º
ano, ao qual se dirigem as atividades aqui apresentadas.
3.1 A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: VALORIZAÇÃO DO LEITOR
A Estética da Recepção é a teoria de ensino da literatura defendida por Hans
Robert Jauss, professor da escola da Constança. Em 1975, em uma exposição
durante o congresso bienal dos romancistas alemães, ele criticou a metodologia
então utilizada no trabalho com a literatura no país. Afirmou que “[...] a história da
literatura, em sua forma tradicional, vive tão somente uma existência nada mais que
miserável, tendo se preservado apenas na qualidade de uma exigência caduca do
regulamento dos exames oficiais” (JAUSS, 1994, p. 5). E propôs uma nova teoria da
literatura na busca de reabilitar a historicidade e a importância do leitor, este último
até então menosprezado nos estudos literários tanto formalistas quanto marxistas28.
28
Jauss (1994) condena as teorias formalistas e marxistas ao afirmar que “[...] compreendem o fato literário encerrado num círculo fechado de uma estética da produção e representação [...]” e, com isso, “[...] privam a literatura de uma dimensão que é componente imprescindível tanto de seu caráter estético quanto de sua função social: a dimensão de sua recepção e de seu efeito” (JAUSS, 1994, p. 22). Resumidamente, a escola marxista percebe o valor estético de uma obra no seu poder de reprodução da realidade e do processo social, ao passo que a teoria formalista desconsidera as condicionantes históricas, entendendo a obra como uma estrutura autônoma.
74
A Estética da Recepção é assim denominada por perceber a recepção de
uma obra como uma concretização referente à sua estrutura, tanto no momento da
sua produção como no da sua leitura, podendo ser estudada esteticamente. Essa
foi, inicialmente, a proposta do polonês Roman Ingarden, professor de Jauss, ainda
em 1930, e de Felix Vodicka, teórico tcheco, nos anos 1940, segundo apontam os
estudos de Bordini e Aguiar (1993) e de Zilberman (1989).
Nessa proposta inicial, o leitor é visto como o concretizador de um texto, pois
preenche e atualiza os pontos de indeterminação da obra e os esquemas de
impressões sensoriais, sendo a obra entendida como “uma estrutura linguístico-
imaginária”. Cabe ao leitor transformar o que era trabalho artístico do criador em
objeto estético (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 82).
Essa interação do leitor com o texto é, contudo, reformulada por teóricos
posteriores, principalmente por Hans Robert Jauss, mas também com colaborações
de Wolfang Iser, com a Teoria do Efeito. Agora a relação leitor-texto é de interação,
há um diálogo de igual para igual, um ato legítimo de comunicação.
A historicidade da literatura não repousa numa conexão post festum, mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte dos seus leitores [...]. A obra literária não é um objeto que exista, por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual. (JAUSS, 1994, p. 24/25).
Para que essa atitude de interação citada acima ocorra, é imprescindível que
os horizontes históricos e ideológicos em que texto e leitor estão mergulhados
venham a se fundir, ao que Jauss (1979) denomina horizonte de expectativas. Dito
de outro modo, as expectativas do leitor são transferidas ao texto, onde as
expectativas do autor estão traduzidas. Assim, portanto, obrigatoriamente, se dá
uma fusão de horizontes de expectativas, que podem identificar-se ou não. O
horizonte de expectativas abrange todas as convenções que interferem na
produção/recepção de um texto: os aspectos social, intelectual, ideológico,
Ambos os métodos, segundo Jauss, “[...] ignoram o leitor em seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o histórico: o papel do destinatário a que, primordialmente, a obra literária visa” (JAUSS, 1994, p. 23).
75
linguístico e literário, apresentados por Zilberman (1989) são acrescidos pelo
aspecto afetivo, defendido pelas autoras Bordini e Aguiar (1993).
O projeto de reformulação da história da literatura é dividido em sete teses
pelo próprio Jauss (1994). As quatro primeiras são as linhas mestras da
metodologia, que são explicitadas nas três últimas. Vejamos:
A primeira tese aborda a historicidade da obra e a possibilidade de ser
atualizada como resultado da leitura é a prova de que está viva: “A história da
literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na
atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se
faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete" (JAUSS, 1994, p. 25). O
leitor é, pois, quem aparece como agente capaz de efetivá-la, num processo
claramente dialógico.
A experiência literária do leitor, ou seja, o “saber prévio” é considerado na
segunda tese e denominado de “horizonte de expectativas”, pois “[...] a obra que
surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas por
intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares [...]" (JAUSS, 1994,
p. 28) e, com isso, predispõe seus leitores a recebê-la de uma maneira bastante
específica. Ou seja, cada leitor reage de forma individual a uma obra, a partir de
suas experiências ou do seu horizonte de expectativas, contudo essa recepção está
condicionada ao fator social: “[...] uma medida comum localizada entre as ações
particulares” (ZILBERMAN, 1989, p. 34).
A terceira tese aborda a reconstituição – ou mudança – do horizonte de
expectativa. Então, distância estética é aquilo que ocorre entre o horizonte de
expectativa preexistente e a aparição de uma nova obra, o que advém da percepção
estética que a obra é capaz de suscitar. Nesse ponto, Jauss (1994) considera “boa”
a criação que contraria a normalidade, que contraria a percepção usual do leitor e
que, por isso, o faz reestruturar e reconstituir o seu horizonte de expectativas
interno. E denomina arte culinária ou ligeira a obra que não causa nenhuma
mudança no horizonte de expectativa do leitor, senão que simplesmente atende ao
gosto, satisfaz a “[...] demanda pela reprodução do belo usual, confirma sentimentos
familiares, sanciona as fantasias do desejo, torna palatáveis [...] as experiências não
corriqueiras [...] (JAUSS, 1994, p. 32).
As relações da obra com a época do seu aparecimento constituem a
abordagem da quarta tese. É importante ao leitor questionar sobre o contexto de
76
produção, como tal obra foi recebida em sua época e a que questões ela respondeu,
o que contradisse ou questionou, contrapondo com o modo como é vista e recebida
em sua época, se for o caso de uma obra antiga.
A frase citada por Jauss, de R. G. Collingwood (JAUSS, 1994, p. 37), de que
“[...] só se pode entender um texto quando se compreendeu a pergunta para a qual
ele constitui resposta [...]”, explicita e parece encerrar essa questão. E essa obra só
terá valor no tempo presente se o leitor conseguir recuperar nela perguntas e
respostas, sem imitar a perspectiva do passado, mas suscitando questões
interessantes à sua realidade presente.
A história da literatura está em constante movimento e transformação. A partir
dessa constatação, as três últimas teses da Estética da Recepção tratam dessa
historicidade da literatura. A quinta tese, portanto, analisa o processo diacrônico da
obra literária, ou seja, a relação das obras ao longo do tempo. Uma obra não perde
seu poder de ação ao transpor o período em que surgiu, pelo contrário, ao ser
revisitada em outro período, pode ter seu valor aumentado, ser redescoberta a partir
de novos olhares e essa nova recepção pode desencadear uma percepção
diferenciada, que levará à reformulação de sua compreensão.
E aí já está embutida a sexta tese, que analisa a sincronia dos sistemas de
relações da literatura numa dada época e a relação com o leitor em época diversa.
Ou seja, o público de determinada época pode considerar de sua atualidade uma
obra antiga, relacionando-a com outras, simultaneamente.
A sétima e última tese refere-se às relações da literatura com a sociedade e o
papel formador da mesma. Problematiza que a arte existe para contrariar
expectativas e não para confirmar o conhecido e gasto, bem como pode repercutir
numa mudança de comportamento social por parte do leitor: “A relação dentre
literatura e leitor pode atualizar-se no terreno sensorial como estímulo à percepção
estética como também no terreno ético enquanto exortação à reflexão moral”
(JAUSS, 1994, p. 53).
Ainda referindo-se à sétima tese, sua premissa é de que a arte cumpre sua
função quando “[...] a experiência literária do leitor adentra o horizonte de
expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento de mundo e, assim,
retroagindo sobre seu comportamento social" (JAUSS, 1994, p. 50).
A arte pode, nesse sentido, influenciar o destinatário, pois veicula e cria
normas. Pode reproduzir os padrões vigentes, como é o caso da literatura de massa,
77
mas pode também se antecipar à sociedade, como acontece com a produção
contemporânea de vanguarda, rompendo códigos consagrados e adquirindo caráter
emancipatório, “[...] apresentando não o que é, mas o que poderia ser ou ter sido”
(ZILBERMAN, 1989, p. 51).
Segundo Jauss (1979), conforme já mencionamos, a literatura existe para
contrariar expectativas e levar o leitor a uma nova percepção e compreensão de seu
universo. E esse processo de transformação ou de experiência estética ocorre em
três etapas: a poiesis, referente à consciência produtora; a aisthesis, que se refere à
consciência receptora; e a katharsis, o prazer catártico, que pode levar o leitor à
transformação de suas convicções, libertando sua psique, ou libertando-o dos
interesses práticos, culminando com a liberdade estética. O autor salienta, todavia,
que essas três categorias não devem ser vistas numa “hierarquia de camadas”, mas
como uma relação autônoma, pois não se subordinam uma à outra, embora
estabeleçam relações de sequência.
Iser (1979), por sua vez, concentra-se no efeito que a obra estética causa no
leitor e pondera sobre os “vazios” e as “indeterminações” do texto literário,
causadores do “horizonte aberto”. Segundo ele, “[...] são os vazios, a assimetria
fundamental entre texto e leitor, que originam a comunicação no processo da leitura”
(ISER, 1979, p. 88). Ao preencher os “vazios” que um texto apresenta, cada leitor o
faz à sua maneira, a partir de suas experiências, de seu conhecimento de mundo. E
é esse preenchimento que garante o sentido do texto e estabelece relações de
interação texto-leitor.
3.2 MÉTODO RECEPCIONAL: NOVOS HORIZONTES
Ancoradas nos estudos sobre a Estética da Recepção e da Teoria do Efeito,
Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira Aguiar (1993) elaboraram o método
recepcional com vistas a direcionar o trabalho pedagógico voltado à literatura, ao
qual nos referimos anteriormente. Nesse método, as autoras elencam cinco etapas
para que se efetive a recepção da obra literária no aluno/leitor. São elas:
• determinação do horizonte de expectativas do leitor;
• atendimento do horizonte de expectativas;
• ruptura desse horizonte de expectativas;
78
• questionamento do horizonte de expectativas;
• ampliação do horizonte de expectativas.
Sucintamente, o método recepcional prevê que, inicialmente, em sala de aula,
o professor deve detectar o interesse literário dos alunos, realizando essa etapa por
meio de observação direta ou por meio de discussões, de debates, de questionários
ou de outros meios apropriados. Essa será a determinação do horizonte de
expectativas.
Em seguida deve ocorrer o atendimento do horizonte de expectativas, quando
serão proporcionadas ao aluno a leitura e atividades de textos que atendam aos
seus interesses, dentro de suas expectativas iniciais.
O passo seguinte é a ruptura do horizonte de expectativas, com a introdução
de leituras e de atividades diferenciadas das anteriores, com um grau de exigência
maior, mas com algum ponto em comum com a etapa anterior.
A quarta etapa é de questionamento do horizonte de expectativas e envolve
a análise das etapas anteriores, reflexão sobre as dificuldades, aprendizagens e
registro das mesmas dificuldades.
A última etapa é a de ampliação do horizonte de expectativas e prevê um
amadurecimento quanto à experiência com a literatura por parte dos alunos, que,
nessa fase, deverão estar prontos para buscar novos textos, mais complexos e
profundos, evoluindo numa espiral de buscas, de leituras e de aprendizagens.
A participação do leitor é determinante na aplicação do método recepcional.
Sendo assim, em sala de aula, a atitude participativa do aluno em contato com os
diferentes textos trabalhados é imprescindível, pois deverá realizar leituras críticas,
ser receptivo a novos textos, questionar sobre as leituras realizadas e, por último,
modificar os próprios horizontes de expectativas. Dessa maneira, o caráter social é
parte integrante do método, pois prevê a constante interação do aluno com seus
pares e com o professor, assim como o debate, a reflexão, o questionamento de sua
leitura e a dos colegas.
As atividades da Unidade Didática, apresentadas e analisadas no capítulo
seguinte, metodologicamente, além de atenderem às etapas do método recepcional,
já apresentadas, pretendem também envolver o foco de leitura no
autor/leitor/texto/discurso, compreendendo essa aliança metodológica como algo
coerente.
79
A leitura, na concepção de linguagem interacionista, tem como base a
interação autor/leitor/texto. Ingedore Vilaça Koch & Vanda Maria Elias (2010)
explicam que os leitores, nessa concepção, são sujeitos ativos, responsivos: ao
mesmo tempo em que constroem o texto, são por ele construídos, na interação
texto-sujeitos. O significado do texto é obtido por meio das informações da página
impressa – o texto propriamente dito –, isso aliado à mobilização de uma gama de
conhecimentos de mundo do leitor. Desse tipo de leitura espera-se que o leitor
compare, reflita, concorde, discorde, complemente e amplie os significados do texto.
A concepção discursiva apresentada por Rojo (2002) amplia a perspectiva
anterior e toma o texto como um discurso dialógico, pois imbricados a ele estão
outros discursos anteriores, assim como surgirão outros posteriores. A leitura, nessa
concepção, provoca respostas críticas, influencia o leitor, desenvolve-lhe a
autonomia, determina posicionamentos, possibilita-lhe questionar o texto/discurso e
o mundo, mostrando-se transformadora, sendo esse o patamar de leitura que os
alunos de nossas escolas deveriam alcançar e pelo qual deveríamos empreender
nossos esforços.
Levando em conta a proximidade dos objetivos, acreditamos que ampliar o
foco das atividades direcionadas pelo método recepcional para o foco não só no
leitor, mas no autor/leitor/texto/discurso, pode apresentar-se como uma metodologia
mais ampla, uma vez que a concepção discursiva de linguagem é o eixo dos nossos
estudos.
Metodologicamente, a pesquisa-ação com abordagem qualitativa
fundamentou o direcionamento prático da coleta de dados da presente pesquisa e é
o próximo assunto a ser abordado.
3.3 PESQUISA-AÇÃO COM ABORDAGEM QUALITATIVA: INTERAÇÃO ENTRE
PESQUISADOR E PESQUISADO
Relembremos que o objetivo que norteia esta pesquisa é investigar a
pertinência de atividades de leitura e escrita pautadas na concepção discursiva,
tendo como base letras do rap nacional e contos do escritor negro Cuti, com vistas à
criticidade e à leitura emancipatória. Para atingi-lo, os objetivos específicos abaixo
citados constituem etapas restritas e direcionadas, pormenorizando as ações a
serem realizadas:
80
Verificar se as atividades a partir de letras de rap nacional e contos do
escrito Cuti são capazes de tornar as aulas mais atrativas e dinâmicas e
de estimular a participação efetiva do aluno nas atividades propostas;
Incentivar a pesquisa das origens (contexto histórico/social, finalidade,
expansão) do rap e suas peculiaridades composicionais;
Ampliar e aprofundar o debate sobre a forma/necessidade de resistência
das classes populares por meio de leitura e de atividades de contos do
escritor negro Luiz Silva (Cuti);
Possibilitar e documentar a produção escrita do aluno com atividades de
produção de letras de rap a partir de sua realidade e de seus temas de
interesse, para que se posicione e demarque sua voz no contexto social;
Analisar se tais letras/produções se constituem como forma de
autoafirmação, questionamentos ou críticas, propiciando a vivência e o
debate da interculturalidade.
A pesquisa no contexto educacional, ao longo do tempo, sofreu forte
influência do modelo positivista, que compreendia a realidade como algo mensurável
e quantificável, ou seja, uma abordagem quantitativa dos fatos, modelo ao qual,
conforme vimos na parte introdutória, a fenomenologia veio se contrapor, no início
do século XX. É nesse cenário que surge a abordagem qualitativa, a qual defende
que a pesquisa desenvolvida no âmbito educacional precisa considerar a dinâmica
das relações sociais permeadas pelas interações entre os sujeitos no espaço
pesquisado.
Tal abordagem, consoante Marli André (2008), tem contribuído para que um
novo olhar seja lançado sobre a educação, o que visa ampliar o debate acerca das
possibilidades de descoberta e análise das práticas escolares. Nas palavras da
autora:
Esse tipo de pesquisa permite, pois, que se chegue bem perto da escola para tentar entender como operam no seu dia-a-dia os mecanismos de dominação e de resistência, de opressão e de contestação ao mesmo tempo em que são veiculados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores, crenças, modos de ver e de sentir a realidade e o mundo. (ANDRÉ, 2008, p. 41).
A pesquisa qualitativa envolve uma abordagem interpretativa do mundo, uma
vez que os pesquisadores estudam os fenômenos em seus cenários naturais e
81
buscam compreendê-los ou interpretá-los de acordo com os significados que as
pessoas a eles conferem. Por isso, vai além da análise de dados quantitativos, pois
utiliza uma variedade de técnicas com a finalidade de apreender e interpretar os
significados existentes no ambiente da investigação. Sobre a coleta de dados,
Denzin e Lincoln (2006) explicam que
[...] a pesquisa qualitativa envolve o estudo do uso e a coleta de uma variedade de matérias empíricas – estudo de caso; experiência pessoal; introspecção; história de vida; entrevista; artefatos; textos e produção culturais; textos observacionais, históricos, interativos e visuais [...]. Entende-se, contudo, que cada prática garante uma visibilidade diferente ao mundo. Logo, geralmente existe um compromisso no sentido do emprego de mais de uma prática interpretativa em qualquer estudo. (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 17).
Nessa abordagem metodológica, tanto observador quanto observado
constroem representações e significados a partir da realidade vivenciada, pois
ambos são considerados sujeitos da ação investigativa. Por isso, a pesquisa-ação é
reconhecida como uma das principais formas de pesquisa qualitativa, pelo seu
caráter participativo e porque promove interação entre o pesquisador e os sujeitos
investigados.
A pesquisa-ação é definida por Thiollent (1996) como um tipo de investigação
social que possui base empírica, e que, essencialmente, consiste em relacionar
pesquisa e ação em um processo no qual ocorre envolvimento entre os atores –
sujeitos da pesquisa – e pesquisadores. Ambos participam de modo cooperativo na
elucidação da realidade em que estão inseridos, identificam os problemas coletivos,
buscam e experimentam soluções. A dimensão ativa do método manifesta-se no
planejamento de ações e na avaliação de seus resultados.
Por meio da pesquisa-ação, ao mesmo tempo em que o pesquisador efetiva
um trabalho orientado pelo projeto devidamente fundamentado, colhe os dados
gerados, possibilitando-lhe participar do processo a ser analisado. Tripp (2005)
elenca quatro fases do ciclo básico gerador de dados que completa o processo de
ação/investigação: planejar, agir, descrever e avaliar. O autor explica sobre esses
passos:
É importante que se reconheça a pesquisa-ação como um dos inúmeros tipos de investigação-ação, que é um termo genérico para qualquer processo que siga um ciclo no qual se aprimora a prática pela oscilação sistemática entre agir no campo da prática e investigar a respeito dela. Planeja-se, implementa-se, descreve-se e avalia-se
82
uma mudança para a melhora de sua prática, aprendendo mais, no correr do processo, tanto a respeito da prática quanto da própria investigação. (TRIPP, 2005, p. 446).
Compreendidas essas nuances metodológicas, passemos aos
encaminhamentos específicos de nossa pesquisa. A coleta dos dados que formaram
o corpus dessa pesquisa – produções escritas como letras de rap, produções de
textos reflexivo-críticos produzidos pelos alunos, comentários anotados no diário de
campo – realizou-se durante a aplicação da Unidade Didática direcionada aos
alunos do 9º ano do Ensino Fundamental de escola da rede pública estadual de um
município da região Oeste do Paraná, sendo esses alunos os sujeitos da mesma
pesquisa. A aplicação das atividades aconteceu nos meses de abril, maio e junho de
2016, em duas etapas de 12 aulas, totalizando 24 aulas.
Na parte seguinte, apresentamos a contextualização da realidade da escola
em que o projeto foi desenvolvido e também apontamentos gerais sobre os alunos,
pois esses aspectos têm relevância na aplicação e nos resultados dos
encaminhamentos e atividades.
3.4 O AMBIENTE ESCOLAR E OS SUJEITOS DA PESQUISA
A escola estadual em que as atividades da pesquisa foram realizadas localiza-
se em um bairro central de um município do Oeste paranaense. Quanto à
modalidade de ensino, atende ao Ensino Fundamental – regular anual e Educação
Especial – Área de Deficiência Intelectual e Transtornos Funcionais Específicos e
Transtornos Globais de Desenvolvimento.
Segundo o Projeto Político-Pedagógico da escola (2015), ela tem por
finalidade, atendendo ao disposto na Constituição Federal e Estadual e na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ministrar o Ensino Fundamental – 6° a 9°
anos – e a Educação Especial – Área de Deficiência Intelectual – observadas, em
cada caso, a legislação especificamente aplicável.
A estrutura física da escola é antiga – parte dela foi construída em 1966.
Passou por reforma recente, mas esta não deu conta de sanar todas as
necessidades do prédio, embora, em alguns aspectos, tenha melhorado
consideravelmente. Ainda no que se refere à infraestrutura, são inúmeras as
dificuldades, como ausência de laboratório de ciências, ausência de uma sala
83
equipada para as aulas de Arte e, sobretudo, ausência de uma sala para os
pedagogos atenderem aos pais e alunos. Esses espaços são necessários para o
desenvolvimento prático das aulas e parte pedagógica e demandam investimentos
por parte da mantenedora.
A sala para biblioteca e a sala de reuniões foram construídas com recurso
próprio, obtido com promoções organizadas pela APMF – Associação de Pais,
Mestres e Funcionários –, assim como a parte de acabamento do miniginásio de
esportes – banheiros, piso – para a prática de Educação Física. O laboratório de
informática funciona numa sala de aula, adaptada para esse fim. Possui 16
computadores e, desses, somente 13 estão em plenas condições de uso. O
funcionário específico para o atendimento nessa área trabalha somente no período
da tarde, o que praticamente inviabiliza a utilização do laboratório de informática
durante as aulas do período da manhã.
Quanto ao diagnóstico da realidade socioeconômica dos alunos que
frequentam a escola – 440 no total, o que faz com que seja considerada de pequeno
porte – a maioria provém de famílias de classe baixa, moradores de bairros
próximos, filhos de pais trabalhadores. Localiza-se num bairro central e de fácil
acesso. Os pais que formam a comunidade escolar são trabalhadores de
diversificadas áreas, mas a grande maioria trabalha na linha de produção de uma
grande empresa frigorífica da cidade. Por causa disso, ausentam-se o dia todo e o
acompanhamento dos estudos dos filhos ocorre de forma pouco participativa. Esses
pais, contudo, comparecem à escola quando a presença é solicitada e isso
acontece, geralmente, quando há problemas indisciplinares ou relativos à
aprendizagem.
Quanto ao desempenho no processo de ensino-aprendizagem, se se for
utilizar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB –, com o indicador
calculado com base no desempenho do estudante em avaliações do Instituto
Nacional de Ensino e Pesquisas – INEP e em taxas de aprovação, o resultado, em
2013, foi de 3,9, sendo que a meta projetada para esse ano era de 4,6. Sem
adentrar no mérito desse tipo de avaliação, constatamos que o desempenho escolar
está muito aquém do desejado.
As altas taxas de evasão e repetência influenciam no resultado negativo
citado acima, mas, sobretudo, são sinalizadores da problemática que a educação e,
84
em específico, a escola, enfrenta atualmente. Em 2014, a escola apresentou 19,2%
de reprovação e 5,3% de abandono, somando 24,5% de insucesso escolar.
As atividades da Unidade Didática que compõem a etapa de aplicação prática
dessa pesquisa foram desenvolvidas em turma de 9º ano do Ensino Fundamental da
escola descrita, totalizando a participação de 24 alunos. Destes, 15 alunos têm 14
anos, a idade regular para a série. Os demais têm de 15 a 18 anos, ou seja,
apresentam defasagem idade/série.
Por iniciativa da Equipe Multidisciplinar da escola29, no ato da matrícula é
realizada uma pesquisa com os pais dos alunos envolvendo a declaração referente
a cor/raça30 dos filhos matriculados. Essa pesquisa tem o objetivo de problematizar a
questão com a comunidade escolar e, também, após as devidas ponderações por
parte dos membros da Equipe Multidisciplinar e demais professores, empreender
atividades afirmativas em sala de aula.
Uma análise dos resultados dessa pesquisa pode sinalizar certos aspectos
contraditórios quanto à questão da identidade étnico-racial, pois somente dois
alunos, dos 440 do total, foram declarados, pelos pais, como negros – preto31 é o
termo da pesquisa – fato que, mesmo sem uma profunda investigação, mas
tomando como base a observação dos fenótipos característicos dos alunos,
constatamos que não condiz com a realidade. Por outro lado, o número de alunos
29
Equipes Multidisciplinares são instâncias do trabalho escolar oficialmente legitimadas pelo artigo 26A da LDB (Lei Federal nº 9394/1996), pela Deliberação nº 04/2006-CEE/PR, pela Instrução nº 017/2006-Sued/Seed, pela Resolução nº 3399/2010-Sued/Seed e pela Instrução nº 010/2010- Sued/Seed. São espaços de debates, de estratégias e de ações pedagógicas que fortaleçam a implementação da Lei Federal nº 10.639/2003 e da Lei Federal nº 11.645/2008, bem como das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena no currículo escolar das instituições de ensino da rede pública estadual e escolas conveniadas do Paraná. Devem atuar na perspectiva da construção de uma educação de qualidade, da consolidação da política educacional e da construção de uma cultura escolar que conhece, reconhece, valoriza e respeita a diversidade étnico-racial, tendo como prerrogativa articular os segmentos profissionais da educação, instâncias colegiadas e comunidade escolar. Fica a cargo de cada escola formar sua Equipe Multidisciplinar e elaborar o projeto de atuação a partir das peculiaridades da realidade local. Disponível em: <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=560>. Acesso em: 25 jul. 2016.
30 A pesquisa de declaração étnico-racial da escola usa a mesma nomenclatura do IBGE para categorizar os cinco grupos de “cor ou raça” que compõem a comunidade escolar: branca, preta, amarela, parda e indígena. Embora haja muitas discussões sobre os aspectos errôneos, pejorativos e/ou preconceituosos imbricados a esses termos, a escola em questão optou por mantê-los dada à complexidade da questão e por não ter ainda elaborado outros mais adequados e/ou abrangentes e com a devida fundamentação teórica, justificou a coordenadora da Equipe Multidisciplinar da escola.
31 Um dos fatores do baixo número de declarações de alunos como negros pode ser devido ao termo utilizado na pesquisa, bem como isso poderia ser uma das justificativas para o número tão superior de alunos declarados como pardos – termo menos carregado de estigma e de marcas negativas.
85
que foram declarados como pardos soma 95. Quanto à turma em que as atividades
aqui propostas foram desenvolvidas, a mesma realidade se repete: dos 24 alunos,
18 foram declarados, pelos pais, como sendo/tendo cor/raça branca, 5 de cor/raça
parda e um não respondeu à pesquisa. Ou seja, nenhum pai declarou seu filho como
preto/negro, fato repleto de significados, todos ligados ao estigma, preconceito e
exclusão, e não condizente com a realidade, como já foi mencionado. A partir
desses resultados, mais uma vez percebemos a relevância de se problematizar
questões ligadas à valorização da identidade negra e indígena em sala de aula e
debater profundamente sobre as causas e consequências do preconceito e do
racismo.
Após essa descrição do ambiente escolar e dos alunos sujeitos da pesquisa,
avancemos na descrição interpretativa e análise das atividades propostas e das
práticas educativas atreladas à sua realização, bem como do corpus coletado.
86
4 ATIVIDADES PROPOSTAS E ANÁLISES DOS RESULTADOS
“... não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho,
na ação-reflexão”. (FREIRE, 2009)
Neste capítulo busco32 retratar, de forma criteriosa e detalhada33, o comportamento,
interações, comentários, receptividades, questionamentos, enfim, fatores que
possam ser significantes para a compreensão da situação pesquisada.
Sabemos que não há discurso neutro, como atesta a concepção bakhtiniana,
todavia nos pautamos nas bases teóricas pesquisadas a fim de tornar as análises as
mais fidedignas possíveis.
Com o objetivo de simplificar a leitura e a compreensão do texto desta
dissertação, a apresentação das atividades propostas na Unidade Didática acontece
paralelamente às análises dos resultados. As respostas/comentários dos alunos são
transcritas em diversos momentos para reiterar a análise das questões em foco, num
número de duas a três por assunto, visto que essa amostragem pode dar a
dimensão da discussão. Nessas transcrições, erros ortográficos e/ou de
concordância34, se existentes no corpus original, foram corrigidos com o intuito de
facilitar a leitura e compreensão do texto, uma vez que o objetivo é a análise do seu
conteúdo.
32
Nessa parte da pesquisa, volto a escrever em primeira pessoa, como fiz em determinados pontos anteriores ao abordar minha experiência e prática profissional. Tomo essa decisão salientando que tal forma de registro não desmerece o trabalho realizado, nem desqualifica a pesquisa, mas, pelo contrário, intensifica meu envolvimento com o assunto pesquisado.
33 A descrição interpretativa dos dados e das situações ocorridos na implementação das atividades é ampla, mas não abrange sua totalidade, pois, em determinados momentos, dado o envolvimento com o encaminhamento das atividades, alguns pontos podem ter passado despercebidos, principalmente no que se refere aos comentários orais. Mesmo assim, contudo, dentro do possível, foram anotados os dados significativos no diário de campo. Quanto ao corpus registrado por escrito – letras de rap e textos reflexivo-críticos – possibilitou análise mais detalhada.
34 Nas transcrições, erros ortográficos ou de concordância, quando existentes, foram corrigidos, exceto nas letras de rap produzidas pelos alunos, onde as infrações de concordância nominal e verbal foram mantidas, por serem características do estilo; há correção somente de erros ortográficos, quando existentes no corpus original.
87
Compreendidas as explanações acima, propomos as atividades a seguir com
a visada no método recepcional e na concepção dialógica e discursiva da
linguagem, de acordo com explanações anteriores.
4.1 UNIDADE DIDÁTICA: PRIMEIRA PARTE - LETRAS DE RAP
Duração – 12 aulas
TEMA:
RAP - A VOZ DO POVO,
O GRITO DAS RUAS
Figura 1: O rap
Esta primeira parte da Unidade Didática é composta por atividades que
tomam três letras do rap nacional como base para as atividades direcionadas ao 9º
ano do Ensino Fundamental, da escola já descrita. São elas:
• "A cor que faltava na bandeira brasileira", do grupo Z’África Brasil
(2002);
• "Us guerreiro", de Rappin Hood (2005);
• "Brasil com P", de GOG (2000).
Essas letras de rap pertencem a duas fases distintas da produção nacional,
de acordo com a classificação de Fonseca (2011): a segunda e a terceira fase. "A
cor que faltava na bandeira brasileira", do grupo Z’África Brasil, de 2002, pode ser
classificada como pertencente à segunda fase, assim como "Us guerreiro", de
Rappin’ Hood, de 2005. Ambas abordam a temática da luta contra o preconceito e
do resgate identitário do negro e dos excluídos, concretizando-as como verdadeiras
denúncias sociais, muito embora a data de lançamento as coloque como
pertencentes à terceira fase.
Sobre isso, Fonseca (2011) explica que as datas do lançamento das letras de
rap dentro da sua classificação não são estanques, pois uma mesma música pode
apresentar características de uma ou outra fase, simultaneamente. "Brasil com P",
88
de GOG, por sua vez, aborda temas variados, com certa ironia poética, o que pode
classificá-la como pertencente à terceira fase.
Quanto aos objetivos previstos para essa etapa, citamos os seguintes:
• Atender ao horizonte de expectativas dos alunos;
• Verificar se o uso de atividades a partir de letras de rap torna as aulas mais
atrativas e dinâmicas e se estimula a participação efetiva do aluno nas
atividades de leitura e escrita propostas;
• Promover a pesquisa das origens (contexto histórico/social, finalidade,
expansão) do rap e suas peculiaridades quanto ao estilo;
• Favorecer o debate crítico sobre questões socioculturais em que estão
envolvidos, sobre a interculturalidade e sobre o uso da palavra como forma
de resistência e conscientização;
• Romper com o horizonte de expectativa do aluno propondo um rap com
estilo diferente dos demais;
• Estimular a produção escrita dos alunos por meio de produções de letras
de rap.
4.1.1 Determinação e atendimento do horizonte de expectativas
Por meio de diálogo informal com os alunos, o rap foi apontado como foco
dos interesses, o que foi delimitado como seu horizonte de expectativa. Para atendê-
lo, selecionamos a música "A cor que faltava na bandeira brasileira", do grupo
Z’África Brasil e "Us guerreiro", de Rappin’ Hood.
4.1.2 Rap "A cor que faltava na bandeira brasileira", do grupo Z’África Brasil
Lançado em 2002, esse rap traz características que o definem como
pertencente à segunda fase, consoante às explanações anteriores. Essa letra traz à
tona questões embaraçosas da história do Brasil, o preconceito, injustiças sociais,
violência, má distribuição de renda e outros temas igualmente importantes.
O grupo Z'África Brasil foi criado em 1995. O nome do grupo é sugestivo. A
letra “Z” inicial faz alusão a Zumbi, herói dos Palmares, referenciado em muitas
letras dessa fase, num resgate da antiga luta pela liberdade e pela luta atual contra o
preconceito.
89
A letra da música relembra os quinhentos anos de História sangrenta do
Brasil. Nessa História, o vermelho do sangue é a cor que falta à bandeira de um país
que dizimou sua população indígena e promoveu violência física e moral contra a
população negra. Também questiona e critica a “Ordem e Progresso” do país de
forma incisiva. E, ao fazer clara intertextualidade com o Hino Nacional brasileiro
como símbolo da nossa nação, critica-o e propõe indiretamente uma releitura – da
Bandeira e do Hino como “símbolos nacionais” – para, então, realmente,
representarem o Brasil.
O tom de revolta é bastante visível na letra, mas ela também tematiza o
protesto e a luta. É a demonstração da consciência dos fatos por parte dos que
tiveram sua liberdade roubada, sua vida, sua força e seu trabalho explorados, que
foram historicamente silenciados, mas que lutam por mudanças e pela afirmação de
sua identidade como povo digno, merecedor e feliz.
Na primeira estrofe, escrita em terceira pessoa, o rapper mantém certo
distanciamento ao abordar os fatos universalmente, como “verdades” a serem
contestadas, todavia, da segunda estrofe em diante assume-se como alguém que
sente na pele todo drama que relata e marca seu pertencimento, sem lamentações,
ao dizer: Porque sou índio/porque sou negro/porque sou feliz.
4.1.3 Atividades: "A cor que faltava na bandeira brasileira" e análises
Duração - 4 aulas
ATIVIDADE 1 – Apresentação da letra do rap
1- Apresentar a letra "A cor que faltava na bandeira brasileira", do grupo
Z’África Brasil. Posteriormente, apresentar o vídeo sobre a mesma música
(produção da própria pesquisadora35).
35
Esta atividade envolve outras semioses que não somente a escrita. Mesmo sem aprofundamento nesse aspecto, que mereceria um estudo à parte, devido à intenção de atender ao horizonte de expectativas do aluno, a atividade foi proposta de forma ilustrativa, o que também acontece com vídeos relacionados às outras letras de rap mais adiante. Vale lembrar que letra de música e vídeo são duas produções diferentes, cada qual com suas especificidades. Para maiores aprofundamentos sobre semiótica, ver Santaella (2007).
90
LETRA 1:
"A cor que faltava na bandeira brasileira"
(Z’África Brasil, 2002)
E ali estava ela, hasteada,
para que todos pudessem ver
as suas cores radiantes,
Simbolizando ordem e progresso
E aos redores grandes quilombos periféricos
Um lugar de guerreiros, cujo olhar vermelho
É pela liberdade entre terras e mares
Oh, pátria amada e idolatrada, salves e salve
E do passado que restou, é rubro terror
Como o vermelho de xangô, a cor do amor
Que pulsa no coração com passos de ódio e paixão
Esparramando sangue ao chão
Na eterna contradição de uma nação.
Verde, amarelo, azul, branca e vermelha
São as cores que compõem a bandeira brasileira
Só que o vermelho não quiseram botar
É cor de sangue, é cor de morte, é cor de farsa
É todo o sangue derramado nesses 500 anos
É toda a história maquiavélica,
tramada nos nossos mocambos
A dominação de um fogo por ouro
Fora o sofrimento de um povo
Que foram se acabando aos poucos
Meus antepassados indígenas celebravam os deuses
Hoje me lembro que os índios são poucos
E só aparecem às vezes
Quando são queimados vivos em praça pública
Por uma raça sádica que faz um mal a sua cultura.
91
Luta, resistência, traçar a vida são batalhas
A morte, o salvamento.
Deus guiará suas almas
Era um das matas, era um dos cantos
Hoje os índios são poucos, mas significam tanto
Isso é para quem sabe, para quem tem raiz
Por que sou índio, por que sou negro
Por isso sou feliz.
Por ter esse sangue correndo nas veias
Por ter nascido de três raças formada brasileira
Habitada por índios, construída por negros
Administrada por brancos, era nobreza, herdeiro.
Era, era nada, era uma bandeira de gangues
Falta o vermelho derramado por eles
O vermelho do sangue.
Eu não me esqueço, eu não me rendo
Foram muitos erros, foram muitos lamentos
Que não há fortaleza de bagueador do passado
Que não há receita que cura a dor da alma, além da vida
A dor do laço, de quem foi amarrado nos açoites dos arames farpados
Na triste dor da luta como na triste dor do parto
Inevitável além da selva
O sangue das crianças nascidas na senzala
A dor da época.
Se existiu
O julgamento final não foi divulgado
É como sempre nesse país estar certo ou errado
E se os assassinos serão julgados por Deus, na mesma maneira
Eles afogarão nesse sangue,
A cor que falta na bandeira brasileira.
92
Comentário/análise:
Em 18 de abril de 2016 comecei a desenvolver as atividades da Unidade
Didática com os alunos. Ao saberem que iríamos trabalhar com letras de rap
ficaram eufóricos, mas, ao mesmo tempo, ansiosos. Um aluno perguntou se
seria música “do tipo páia” (aluno G36), ou seja, se seriam letras chatas e
enfadonhas. Nessa pergunta pode estar imbricada a ideia de que, quando se
trabalha letra de música na escola, de outros estilos, porque o rap é
praticamente inexistente em sala de aula, ela não é do repertório do aluno,
pouco diz à sua realidade e a seu gosto, geralmente servindo meramente de
pretexto para atividades de metalinguagem. Não fiz comentários críticos nem
elogiosos referentes à letra a ser trabalhada, buscando deixá-los livres para
manifestarem suas opiniões. Apenas a apresentei. Alguns comentários iniciais:
ALUNO M: “Eu nunca vi professor usar rap pra dar aula. Isso pode?”
ALUNO E: “E nós não vamos usar o livro didático? E se não der tempo de
terminar o livro?”
ALUNO H: “Você curte rap, professora?”
Após a leitura da letra, assistimos ao vídeo. A utilização dessa semiose
mostrou-se relevante porque aliar a letra da música às imagens e ao som
despertou o interesse e a atenção maior dos alunos pela atividade. Algumas de
suas receptividades são transcritas a seguir:
ALUNO C: “A gente pode ouvir mais uma vez?”
ALUNO P: “Essa letra faz a gente pensar um monte de coisas sobre o Brasil”.
ALUNO J: “Quanta coisa errada já aconteceu na nossa História!”
Dentre os muitos comentários – a grande maioria de surpresa e de
aprovação –, chama a atenção o estranhamento quanto ao uso do rap em sala
de aula. Isso, contudo, se justifica porque o estigma quanto ao estilo está
presente também nos alunos adolescentes. Mesmo apreciando esse estilo,
eles repetem o discurso que ouvem dos adultos, de que rap é coisa de
marginal, de “preto”, portanto não “merece” ser levado para dentro da sala de
aula, pois não se pode aprender nada com ele.
36
Os alunos sujeitos da pesquisa não são identificados. A letra que os denomina refere-se à ordem alfabética com que as atividades foram cadastradas, não correspondendo à letra inicial dos nomes dos alunos.
93
A preocupação em “vencer” o conteúdo do livro didático evidenciada
pelo comentário do Aluno "E" também merece reflexão, por sinalizar que esse
é um fazer escolar já arraigado nos próprios alunos. Eles consideram como
parâmetro de mérito/competência do professor o fato de “terminar” os
conteúdos do livro didático, independentemente da forma – por vezes acrítica e
superficial – com que é trabalhado.
O vídeo com a letra do rap e imagens relacionadas foi assistido
novamente, atendendo às solicitações dos alunos. Alguns, que decoraram o
refrão, acompanhavam, cantando, a batida da música. Passamos, logo em
seguida, à próxima atividade.
ATIVIDADE 2 – Sobre contexto de produção
2- Investigar o conhecimento prévio que os alunos possuem sobre as origens
do rap, sobre o rapper (autor), temas, possíveis intenções. Propor uma
pesquisa no laboratório de informática37 sobre o assunto:
a) O que significa o termo RAP? Quando surgiu? Como? Por quê? Quem
foram seus precursores? Quando chegou ao Brasil? Como foi aceito
inicialmente e como é na atualidade?
b) Você conhece o grupo Z’África Brasil? Pesquise o sentido desse nome e
como foi formado: Quando surgiu? Quais são seus componentes? O grupo
ainda existe?
Comentário/análise:
De todos os alunos envolvidos na pesquisa, apenas dois alegaram não
gostar de rap. Um argumentou que é “música muito pesada” e o outro, que a
mãe proíbe de ouvir por causa da religião, ou seja, a maioria aprecia e convive
com o estilo poético/musical. Todavia, ao serem questionados sobre sua
origem, possíveis intenções e significado da sigla que denomina o estilo,
nenhum deles soube responder com clareza. Um aluno arriscou: “Deve ter
37
Contrariando o senso comum, de que acesso à internet atinge grande parte da população atualmente, nove alunos da turma não conseguiriam fazer essa atividade em casa devido à falta de acesso à rede mundial de computadores. Daí a necessidade de essa atividade ser realizada na escola.
94
vindo da África, porque é coisa de preto”. Então a pesquisa das origens,
intenções e temas de maior destaque foi lançada. O laboratório de informática
não dispõe de computadores em bom funcionamento para atender à turma
toda, por isso essa atividade foi um tanto tumultuada, devido à ociosidade de
alguns alunos, causada pela falta de aparelhos, mas atendeu ao objetivo
mesmo assim: pesquisar as origens, causas, temas de maior interesse e
expansão do rap.
O comentário de um aluno resume a compreensão de que o
“nascimento” do rap se deu por motivos de resistência e crítica por parte da
população negra:
ALUNO C: “Agora entendi porque o rap não é música nhe nhe nhém. Eles [os
rappers] querem cutucar mesmo, mostrar seu descontentamento, a realidade
nua e crua de sua localidade”.
Dois aspectos importantes devem ser ressaltados, após o
desenvolvimento dessa aula:
i) Condições físicas/tecnológicas precárias comprometem o andamento
das aulas, como foi o caso aqui vivenciado. Teoricamente, nas propagandas e
nos discursos públicos, as escolas do Estado possuem laboratórios de
informática bem equipados, em boas condições para atender aos alunos,
entretanto, na prática, o uso dos laboratórios de informática deixa muito a
desejar: falta de funcionário específico e falta de manutenção dos aparelhos, o
que resulta em incontáveis problemas.
ii) Embora de origem negra, o rap não é proveniente da África, como o
comentário do aluno. Teve sua origem na Jamaica, de acordo com o que já foi
visto, contudo, atrelado ao comentário “coisa de preto”, está o preconceito
ligado a tudo o que diz respeito à África e, por consequência, ao que possui
origem negra: mesmo quem gosta do estilo, mesmo esse o vê como algo
subalterno ou inferior e que nada tem a nos ensinar.
Outro fator a ser destacado é que, já nos primeiros dias de aplicação das
atividades, constatei que o uso de letras de rap como recurso pedagógico
extrapolou as quatro paredes da sala de aula. Isso me foi relatado por alguns
professores, numa reunião pedagógica. Muitos deles, por meio de comentários
dos alunos, ficaram sabendo das atividades e, devido ao pouco
contato/conhecimento do estilo, reconheceram ter conceito negativo e de certa
95
forma preconceituoso em relação ao rap. Demonstraram surpresa ao vê-lo
sendo usado como recurso pedagógico, todavia se interessaram em saber
sobre sua origem, temas, possíveis objetivos e intenções de resistência, crítica
e denúncia por parte de seus precursores, como fiz questão de explicar-lhes.
ATIVIDADE 3 – Sobre a finalidade, contexto de produção, veiculação:
a) Em que assuntos/questões sociais esse rap fez você pensar? Como é a
abordagem? Passiva, crítica, de denúncia, de reflexão, de lamento, etc.?
(Oralmente, verificar se houve compreensão da crítica social presente na letra.
Levantar questionamentos sobre isso).
b) Essa música teve pouca circulação na mídia (rádio/TV). Qual é a
justificativa que se pode dar ao fato de ser pouco veiculada?
c) Qual é a finalidade dessa música? Ela atingiu seu propósito? Sabendo que
a letra do rap foi composta em 2002, como é possível relacioná-la com o
momento histórico de sua produção?
Comentário/análise:
Essas atividades foram desenvolvidas em 19 de abril, Dia do Índio, o
que direcionou as conversações sobre os problemas atuais vivenciados pelas
populações indígenas do país, como os conflitos por demarcação de terra38 no
Mato Grosso do Sul. Após conversação, foi retomada a letra de rap da aula
anterior. Algumas respostas da questão “A” demonstram a compreensão que
tiveram:
ALUNO A: “Esse rap faz pensar sobre a exploração que os índios sofreram no
início do Brasil. Por isso hoje tem tão pouco índio. Ele (o rappper) está
criticando o que aconteceu antigamente e ainda acontece, porque no Mato
Grosso a luta pela terra continua causando mortes”.
ALUNO B: “Retrata nossa história, as injustiças contra os índios e negros. É
como se fosse uma denúncia dos crimes praticados durante a História do
Brasil".
38
Reportagem disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/questao-indigena-um-barril-de-polvora-no-mato-grosso-do-sul-479.html> . Acesso em: 12 mar. 2016.
96
A questão “B”, que questiona a baixa repercussão da música na mídia,
gerou um debate coletivo e houve justificativas diversas para o fato: Algumas
respostas:
ALUNO C: “Esse tipo de rap não faz sucesso porque faz crítica, daí as rádios
não tocam”.
ALUNO J: “Não foi cantada por um cantor famoso. Se fosse, teria feito
sucesso”.
ALUNO F: “Os cantores são pobres e negros. E estão criticando, mostrando
revolta. Claro que não ia 'bombar' nas rádios e na TV. Lá só tem mauricinho”.
A questão “C”, por relacionar-se com o contexto histórico do ano 2000 e
às comemorações dos 500 anos do Brasil, precisou de explanações. Tal fato
histórico – o aniversário de 500 anos do nosso país – não foi vivenciado pelos
alunos. A maioria nasceu depois disso, fato que foi lembrado por eles. Ao final
da conversação, perceberam que a música faz uma revisão crítica dos 500
anos de História do país, criticando e denunciando os crimes do passado.
Relacionar a música com seu contexto de produção, conforme fizemos,
remete à quarta tese da Estética da Recepção. Já mencionamos que Jauss
(2002) considera importante ao leitor – neste caso, ouvinte – questionar sobre
o contexto de produção, como a obra foi construída e recebida em sua época e
a que questões ela respondeu, o que contradisse ou questionou, contrapondo
com o modo como é vista e recebida em sua época, se for o caso de uma obra
antiga. Embora somente 14 anos separem o lançamento da música do tempo
atual, essas questões devem ser levadas em conta. Uma obra só tem valor no
tempo presente se o leitor conseguir recuperar nela perguntas e respostas,
sem imitar a perspectiva do passado, mas suscitando questões interessantes à
sua realidade atual. E conseguimos alcançar esse intento com a realização
dessa atividade.
Quanto ao fato de analisar se a música atingiu seus propósitos,
interrogação apontada na questão “C”, houve divergências de ideias, pois a
falta de sucesso na grande mídia foi encarada, por grande parte dos alunos,
como algo negativo. Se, contudo, o propósito original do rap for levado em
conta – abranger sua localidade, abordando situações locais – a interpretação
torna-se outra. Esse fato foi debatido com os alunos, ao que ponderaram, de
modo a relativizar suas conclusões:
97
ALUNO C: “A música consegue fazer a gente pensar, refletir sobre os fatos do
Brasil, mas não teve sucesso na mídia. Então, depende do ponto de vista. Se o
objetivo era fazer sucesso, não alcançou todos os seus propósitos. Se era
fazer as pessoas pararem pra pensar, deu certo”.
ALUNO A: “A letra pretende fazer as pessoas pensarem sobre a exploração
dos índios e negros e conseguiu fazer isso. Eu, pelo menos, pensei nisso. Acho
que era isso que eles (os rappers) queriam quando fizeram ela”.
ATIVIDADE 4 – Sobre efeitos de sentido
a) Há versos irônicos? Quais? Quais efeitos de sentido provocam?
b) O que o rapper denomina de “grandes quilombos periféricos”? Essa
metáfora faz sentido? Explique:
Comentário/análise:
A aula envolvendo essas questões aconteceu no dia 20 de abril. A
questão “A” requer a identificação e explicação dos versos em que há ironia e
essa questão necessitou de debate coletivo. Os alunos conseguiram identificar
os versos, mas tiveram dificuldades para explicar o efeito de sentido provocado
no leitor/ouvinte. Isso, possivelmente, se deve ao fato de que, nas atividades
dos livros didáticos ou outras, corriqueiras em sala de aula, não lhes é
solicitado que expliquem o sentido de expressões figuradas, apenas que as
identifiquem e classifiquem. Ou seja, o conteúdo – figuras de linguagem ou de
estilo – nas mais das vezes é repassado sem reflexão a respeito de seus
efeitos na trama social e linguística do texto em que se efetiva.
Sobre a questão “B”, a metáfora “grandes quilombos periféricos” não foi
associada à periferia/favela de imediato. Após explicações, os alunos
conseguiram relacionar a realidade atual dos excluídos socialmente que
habitam as periferias/favelas à dos negros escravos que se refugiavam nos
quilombos, em ambas as situações, vivendo situações extremas devido à
exploração e buscando alternativas de sobrevivência.
Neste ponto das análises é válido ressaltar que, sobre os aspectos
tomados como base das atividades propostas, levamos em conta os estudos
de Soares (2001), Lajolo (1988) e Rojo (2010) sobre a escolarização da leitura
98
e da literatura. Conforme já vimos na fundamentação teórica, essa prática é
algo inevitável, no entanto ao professor cabe repensar as maneiras como tal
escolarização é feita. Passar a valorizar a literariedade do texto, propondo
atividades instigadoras, muito além da leitura parafrástica e das atividades de
metalinguagem, com foco unicamente no texto ou no autor, isso parece ser a
postura mais coerente. Dessa forma, mediada pelo professor, a escolarização
da leitura e da literatura pode levar os alunos a experimentarem a “alquimia da
recepção” (PETIT, 2008), tornando-se uma experiência verdadeiramente
estética/literária.
Com esses aspectos em mente, propomos atividades em que a
singularidade das leituras (ROUXEL, 2013) fosse considerada, além de levar
em conta a linguagem metafórica dos textos trabalhados e os efeitos de sentido
provocados no leitor, a intertextualidade, o contexto de produção, as escolhas
lexicais, dentre outros, aliando a proposta do método recepcional (BORDINI &
AGUIAR, 1993) à concepção discursiva da linguagem, em consonância com o
aporte teórico já explanado.
ATIVIDADE 5 – Sobre intertextualidade
5- A letra da música faz referência a outros textos que você conhece? Em
que versos? Qual/quais texto/s? A visão é a mesma? Explique:
Comentário/análise:
A relação de intertextualidade existente entre versos da letra de rap com
o Hino Nacional brasileiro foi percebida por nove alunos, sem auxílio de
explicação. Os demais precisaram ser incentivados a retornarem ao texto e,
com esse objetivo em mente, procurarem pistas que associassem os versos a
outros textos. Feito isso, quanto à diferença de sentido entre os versos do rap e
os versos do Hino, foram unânimes em perceber: os versos do Hino Nacional
tecem elogios à Pátria; os da letra de rap criticam-na.
ATIVIDADE 6 – Extrapolação do texto:
“Hoje me lembro que os índios são poucos
99
E só aparecem às vezes
Quando são queimados vivos em praça pública
Por uma raça sádica que faz um mal a sua cultura.”
Os versos acima fazem menção a um fato ocorrido há alguns anos39, em que
atearam fogo em um índio em praça pública. Pesquise sobre isso:
Comentário/análise:
Devido aos problemas enfrentados anteriormente com os computadores
do laboratório de informática, procurei dar agilidade à aula: em vez de realizar a
pesquisa, conforme o planejamento inicial, preparei as informações
necessárias para a compreensão da questão em slides, no PowerPoint. Deu
resultado. A questão foi compreendida e respondida. Os alunos tomaram
conhecimento do acontecido com o índio Galdino, queimado vivo, em 1997, por
cinco jovens, sobre as repercussões do fato e a punição dos envolvidos. A
atitude dos jovens, que alegaram que “era só uma brincadeira”, sensibilizou os
alunos. Todavia, uma das intenções da atividade era fomentar a pesquisa e a
autonomia por parte do aluno, o que não ocorreu devido à mudança de
estratégia. Fica evidente, mais uma vez, a interferência de fatores externos no
desenvolvimento das atividades preparadas pelo professor.
ATIVIDADE 7 – Sobre os sentidos dos versos do rap:
7- Destaque, na letra da música, os seguintes aspectos, sublinhando, de
acordo com a legenda:
a) de vermelho: os versos que falam de violência, dor, exploração;
b) de verde: os que falam de esperança, futuro;
39
Galdino Jesus dos Santos, um líder indígena brasileiro, foi queimado vivo enquanto dormia em um abrigo de um ponto de ônibus em Brasília, após participar de manifestações do Dia do Índio, na sede da FUNAI, em 1997. O crime chocou o Brasil, foi praticado na madrugada de 20 de abril, por cinco jovens da alta classe de Brasília, incluindo um que era menor de idade à época. Galdino morreu horas depois em consequência das queimaduras. Mais Informações sobre o caso, inclusive sobre o julgamento dos envolvidos, estão disponíveis em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u40033.shtml>. Acesso em: 20 jan. 2016.
100
c) de azul: os que demonstram a identidade do rapper;
d) de branco: os que falam de igualdade, paz, equilíbrio.
Qual cor predominou após seguir a legenda da atividade anterior e o que isso
representa? A que conclusão se pode chegar quanto ao tom/sentido da letra
do rap?
Comentário/análise:
Geralmente, os livros didáticos solicitam a cópia de trechos como
resposta às questões desse tipo. Fugindo disso, mas objetivando levar os
alunos a rever o texto para melhor compreendê-lo, encaminhei a proposta do
sublinhado. Essa prática teve ótima aceitação, foi mais rápida e mostrou-se tão
ou mais eficaz que a cópia. Os alunos demonstraram grande disposição para
realizá-la. Antes de sublinhar, trocavam ideias entre si, interrogavam-se,
ponderando sobre o sentido/tom dos versos. Enfim, possibilitou reflexões sobre
a linguagem e seus efeitos de sentido, o que, afinal, era o objetivo da atividade.
O Aluno "R" comentou, ao término da atividade: “Nossa História é quase
totalmente vermelha!”, ao relacionar a cor predominante no sublinhado com
dor, violência e exploração.
ATIVIDADE 8 – Sobre linguagem/léxico
8- Observe novamente os versos sublinhados e destaque 3 palavras que o
rapper usou e que denotam (são do mesmo campo lexical):
a) violência/dor/exploração:
b) esperança/futuro:
c) identidade do rapper:
d) igualdade, paz, equilíbrio:
Comentário/análise:
O objetivo dessa atividade foi levar os alunos a perceber e refletir sobre
o campo semântico das palavras, os sentidos subjacentes a elas, aspecto
101
importante nas letras de rap. Eles tiveram de retornar ao texto e buscar
palavras compatíveis com o campo semântico. Foi um exercício de reflexão
interessante sobre significados. Por exemplo, do mesmo campo semântico de
violência/dor/exploração, eles identificaram: morte, terror, sangue, tristeza,
assassino, dominação, sofrimento, mal, lamento, farsa, dentre outras – todas
as palavras que contêm forte carga semântica, o que dá à música o tom
profundo de revolta e de denúncia.
ATIVIDADE 9 – Sobre diferentes linguagens40
A música sugere que o vermelho deve fazer parte da bandeira brasileira,
simbolizando o sangue derramado pelos índios no decorrer da História do
país. Redesenhe a bandeira brasileira, fazendo-lhe uma releitura, a partir dos
versos do rap. Depois de pronto, seu trabalho será exposto no mural da
escola: (Solicitar antecipadamente o material necessário para essa atividade:
papel, tinta, lápis de cor, canetinhas, etc.).
Comentário/análise:
Em 26 de abril de 2016 essa atividade – a última sobre a primeira letra
de rap – foi proposta aos alunos. Demoraram mais do que o previsto para
realizá-la, portanto não finalizaram durante a aula. Por tal motivo combinamos
que terminariam em casa. Apenas um aluno não retornou com o trabalho
concluído. Mesmo assim, o resultado foi excelente, pois as produções dos
alunos demonstraram que houve empenho em realizar tal atividade e que
foram criativos e originais nas suas ilustrações, cada qual com sua
subjetividade de representação. O mural com as releituras da bandeira foi feito,
para socializar o trabalho. Fotos dos resultados dessa atividade encontram-se
anexas (Anexo 3, p. 178-179).
40
Essa atividade, assim como o vídeo, já citado na Atividade 1, envolve letramento multissemiótico – letramento no campo das imagens, da música e de outras semioses que não somente a escrita. Mais uma vez reitero que não há aprofundamento nesse aspecto, visto que o objetivo da pesquisa tem foco na leitura e escrita. Mesmo assim, no entanto, devido à relação imediata com o conteúdo da letra de rap em questão, a atividade foi proposta.
102
4.1.4 Rap "Us Guerreiro", de Rappin’ Hood
Antônio Luiz Júnior, nascido na periferia de São Paulo, com o nome
artístico de Rappin’ Hood, é rapper, apresentador e compositor. Sofre de
vitiligo, uma doença não contagiosa em que ocorre a perda da pigmentação
natural da pele. Em 1992, formou o conjunto Posse Mente Zulu, contudo,
atualmente, segue carreira solo. Durante 2008 apresentou o programa Manos e
Minas, na TV Cultura de São Paulo.
O rap "Us Guerreiro" faz parte do álbum Sujeito Homem 2, lançado em
2005. O nome artístico Rappin’ Hood é uma referência ao personagem Robin
Hood – herói mítico inglês, que roubava da nobreza para ajudar os pobres – e
também está associado ao rap, formando um trocadilho abundante de
significados.
Nessa letra, o rapper aborda a questão do preconceito atual e a
necessidade de resistência por parte dos negros para serem valorizados.
Relembra a saga de guerreiros como Zumbi e sua esposa Dandara, que
fizeram sua história, assim como “Us guerreiro”, seus descendentes de hoje,
que precisam resistir, pois “não acabou a guerra”.
O título “Us Guerreiro” pode ser polissêmico e adquirir uma rica
conotação se tomarmos “us” não como registro da forma oral do artigo definido
plural “os” da nossa língua, mas como pronome “us” em inglês – neste caso,
uma infração à norma culta, usado como pronome pessoal (nós) e não como
pronome do objeto – resultando na tradução “nós guerreiros”, uso recorrente na
oralidade dos jovens negros dos bairros/distritos nova-iorquinos. E essa
possibilidade de compreensão amplia ainda mais o sentido do refrão: Rapin’
Hood declara-se guerreiro, assim como todos os negros e descendentes, num
grito de empoderamento: “Nós, negros, guerreiros, estamos conscientes de
nossos direitos!”
No tom dialogal, característico dos raps, a letra faz uma revisão crítica
da trajetória do negro, numa conotação de luta e resistência, mas também de
esperança. Rappin’ Hood dedica essa música ao seu filho, Martim. É um pai
contando fatos da história de sua gente para seu filho, aconselhando-o,
103
conscientizando-o de seu valor, mas é também um homem sofrido, alertando-o,
e a todos os jovens negros e pobres, para a difícil travessia que é a vida.
4.1.5 Atividades sobre o rap "Us Guerreiro"41e análises
Duração – 4 aulas
ATIVIDADE 1
1- Apresentar a letra de rap aos alunos; apresentar videoclipe42 da música em
seguida:
LETRA 2:
"Us Guerreiro"
(Rappin’ Hood, 2005)
Dedicado a Martim
Os herdeiros, os novos guerreiros
Novos descendentes, afro-brasileiros
Da periferia, lutam noite e dia
Tão na correria como vive a maioria
Guardam na memória, uma bela história
De um povo guerreiro, então, cheio de glórias
Zumbi, o líder desse povo tão sofrido
E sem liberdade, pro quilombo eles surgiram
Palmares, o local da nossa redenção
Pra viver sem corrente, sem escravidão
41 Essa letra rap e algumas das questões aqui sugeridas, embora adaptadas, constam no livro
didático "Jornadas.Port", do 9º ano, de autoria de Dileta Delmanto & Laiz B. de Carvalho (2012), um dos poucos que trazem letras de rap no rol de textos trabalhados. Ressalto a importância de os livros didáticos inserirem esse estilo poético/musical entre os gêneros abordados,.dada a importância desse recurso didático em sala de aula e pelas ricas possibilidades pedagógicas que as letras de rap possibilitam, além de ser uma maneira de dar voz aos negros e pobres, grupos historicamente silenciados dentro da escola.
42 Informação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=60SM732TopE>. Acesso em: 18 set. 2015.
104
Dandara, que beleza negra, joia rara
A linda guerreira comandava a mulherada
Faz tempo, hoje em dia é outro movimento
A luta dos mais velhos amenizou o sofrimento
Escuta, acorda, pois não acabou a guerra
Você infelizmente nasceu no meio dela.
Já era, o nosso povo vive na favela
Enquanto o colonizador só usufrui da terra
Vitória é o que eu desejo pra minha criança
Tenha sua herança, você é nossa esperança.
Só os favelado, só os maloqueiro
Us guerreiro, us guerreiro
Na África de antes, os príncipes herdeiros
Us guerreiro, us guerreiro
Só os aliado, só os companheiro
Us guerreiro, us guerreiro
Eu mando aqui um salve pras parceira e pros parceiro
Us guerreiro, us guerreiro
Palmares era assim, um lugar bem sossegado
Os preto lado a lado, tudo aliado
A mística, o sonho de rever nossa mãe África
Angola, Nigéria, Zimbábue, Arábia,
Tudo acorrentado dentro de um navio
Tomando chibatada até chegar no Brasil
Mais de 500 anos depois pouco mudou
Ligou? na verdade só o tempo passou
Naquele tempo tinha o capitão do mato
Que era o mó traíra, tremendo atrasa lado
Ficava na espreita, pra ver quem fugia
Muito parecido com quem hoje é a polícia
Se liga, muitos morreram pra você viver
105
Orgulho tem que ter, responsa e proceder
Vai vendo, curte, pois você ainda é pequeno
Ainda é criança e não sabe do veneno
Menino, você é o futuro desse jogo
Pra resgatar de novo, a honra desse povo
Quando fizer 18, você vai se alistar
E vai se preparar para guerra enfrentar
Então se liga.
Só os favelado, só os maloqueiro
Us guerreiro, us guerreiro
Na África de antes, os príncipes herdeiros
Us guerreiro, us guerreiro
Só os aliado, só os companheiro
Us guerreiro, us guerreiro
Eu mando aqui um salve pras parceira e pros parceiro
Us guerreiro, us guerreiro
Persiste, pra entrar pro pelotão de elite
Um grande guerreiro é aquele que resiste
Que não desiste mesmo na diversidade
Que bate de frente pela sua liberdade
Axé, Jesus com nós pro que der e vier
Pois é, tem gente que não bota uma fé
Não acredita que somos todos irmãos
Não acreditam que o sangue é igual
É nesse mundo que você irá viver
Você tem de aprender a se defender
Tem de saber, que não há nada errado
Com seu tom de pele, seu cabelo enrolado
Fica ligado que eles querem te arrastar
Com drogas, dinheiro, bebida, mulher
Querem fazer uma lavagem em sua mente
106
Querem que você seja um cara inconsciente
Tipo um demente, uma marionete
É isso que o sistema quer do negro quando cresce
A escravidão não acabou, é apenas um sonho
Tem alguns brancos controlando o dinheiro do mundo
Tem alguns negros guerreando contra todos e tudo
E alguns manos nas ruas querendo roubar um banco
Não seja um tolo, amante do dinheiro
Batalhe dia a dia, pois você é um guerreiro!
Só os favelado, só os maloqueiro
Us guerreiro, us guerreiro
Na África de antes, os príncipes herdeiros
Us guerreiro, us guerreiro
Só os aliado, só os companheiro
Us guerreiro, us guerreiro
Eu mando aqui um salve pras parceira e pros parceiro
Us guerreiro, us guerreiro
Sabe Martim, o mundo não é como você pensava, meu neguinho.
Papai Noel?! É seu pai, negô
Então vai, se cobre aí, se cobre aí
Dorme, dorme, dorme.
Comentário/análise:
Em 27 de abril de 2016 iniciei as atividades referentes à segunda letra
de rap. Os alunos já haviam perguntado se iríamos continuar trabalhando
música e gostaram de saber que o trabalho teria prosseguimento. Um
professor de outra turma da escola relatou que seus alunos o questionaram:
queriam saber por que também não usava letras de rap durante as aulas. Esse
relato demonstra que houve comentários extraclasse sobre o conteúdo das
aulas. E comentários positivos, causando o interesse dos alunos das outras
turmas.
107
A segunda letra de rap foi lida e, por meio do videoclipe, os alunos
puderam ouvi-la. Demonstraram interesse maior do que pela primeira, talvez
por terem já superado a fase da surpresa pelo uso do rap em sala de aula ou
porque sabiam que seria significativa e serviria de ponto de partida para
debates e atividades futuras.
ATIVIDADE 2 E 3 – Extrapolação da letra de rap e efeitos de sentido
2- Agora, vamos pensar sobre a letra:
a) Observe o título e identifique quem o rapper chama de “us guerreiro” e
depois explique o sentido (figurado/conotativo) que essa palavra assume na
música.
b) A música traz uma dedicatória. Quem poderia ser o Martim? Como você
justifica sua hipótese?
c) Com quem o rapper compara o capitão do mato (da época da escravidão)?
Essa comparação faz sentido? Explique:
d) Observe as ideias contidas no refrão. A repetição provoca algum sentido?
Qual ou quais?
3- Reveja a última parte da música (falada):
“Sabe Martim, o mundo não é como você pensava, meu neguinho.
Papai Noel?! É seu pai, negô
Então vai, se cobre aí, se cobre aí
Dorme, dorme, dorme”.
Levando em conta o conteúdo geral da música, como pode ser entendido o
fato de que o rapper (pai) alerta o filho sobre o fato de que Papai Noel não
existe?
Comentário/análise:
A questão “A” foi respondida sem dificuldades. Os alunos
compreenderam e relacionaram “us guerreiro” com os negros, descendentes
de escravos, e também perceberam o tom figurativo: são guerreiros porque não
108
desistem da batalha diária que é a luta para vencer os obstáculos do
preconceito e da exclusão.
Quanto à questão “B”, inicialmente ela causou divergências de opiniões.
Sete alunos compreenderam que Martin seria referência a Martin Luther King
(1929-1968), pois relacionaram o tema da letra com a luta contra o preconceito,
defendida pelo líder do Movimento dos Direitos Civis dos Negros nos Estados
Unidos. Os outros alunos, contudo, entenderam que seria uma dedicatória ao
filho do rapper. E essa ideia encontra fundamentação na letra, conforme
conseguiram comprovar.
A questão “C” compara o antigo capitão do mato com a polícia. Foi
preciso uma conversação para que relembrassem as aulas de História e
percebessem que o capitão do mato – muitas vezes um negro, pago para
perseguir e capturar negros – tinha a função de defender os interesses do
patrão. Compreendida essa parte, a relação com a polícia foi imediata:
ALUNO G: “Se é negão, não dá outra, o polícia revista na hora. Se é
mauricinho, deixa passar”.
ALUNO H: “A cor da pessoa e a classe social influenciam em tudo, até na hora
de uma batida policial”.
ALUNO R: “Ficar do lado do patrão, dos ricos, e condenar o pobre, às vezes,
ainda é o que a justiça faz, como o capitão do mato fazia”.
A repetição das ideias do refrão “Só os favelado, só os maloqueiro/ Us
guerreiro, us guerreiro/ Na África de antes, os príncipes herdeiros/ Us guerreiro,
us guerreiro/ Só os aliado, só os companheiro/ Us guerreiro, us guerreiro”
(RAPIN’HOOD, 2005) foi compreendida pelos alunos como tendo a intenção de
enfatizar que os negros, favelados, maloqueiros, são, na verdade, guerreiros,
pelos motivos já citados. A ideia de que o refrão tende a frisar algo importante
era de conhecimento geral dos alunos e facilitou a compreensão.
Quanto à questão três, que indaga como pode ser entendido o fato de
que o rapper (pai) alerta o filho sobre a não existência do Papai Noel, foi
compreendida com o significado de um alerta/conselho de um pai ao filho sobre
os perigos e problemas da vida:
ALUNO D: “Quer dizer que ele não deve ficar acreditando em fantasia, porque
lá fora é luta, guerra, competição, dureza”.
109
ALUNO K: “Nem tudo que nos falam que é verdade, realmente é. A vida é difícil
e não existem só coisas boas".
ALUNO I: “Nem tudo na vida é fácil, na realidade ninguém vai dar nada pra ele,
ele vai ter de lutar pra ser valorizado”.
ATIVIDADE 4 E 5– Sobre a letra do rap e extrapolação da letra
4- Sublinhe na música:
a) de verde os versos que fazem uma crítica social;
b) de azul os versos que pretendem aconselhar, conscientizar, alertar;
c) de amarelo os versos que valorizam a identidade negra:
d) de vermelho os versos em que o rapper se coloca em 1ª pessoa:
5- Observando as marcações de cores, reflita: De forma implícita (não
declarada abertamente), o discurso geral da música pode ser entendido como:
Marque X na opção que você considera correta:
( ) um triste lamento;
( ) um desabafo revoltado;
( ) um aconselhamento crítico;
( ) uma simples constatação de fatos.
Procure justificar a opção que você assinalou:
Comentário/análise:
Em 2 de maio realizamos essas atividades. Assim como foi constatado
na atividade com a letra de rap anterior, a estratégia de usar o sublinhado com
cores diversas para demarcar as ideias/significados dos versos obteve bom
resultado. A atividade de número cinco, em que o aluno precisou fazer
inferências sobre o sentido geral da música, devido ao fato de ter sido
elaborada em forma de alternativas, direcionou as respostas, o que, talvez,
tenha colaborado no número de acertos: todos responderam se tratar de um
aconselhamento crítico, justificando com coerência a opção assinalada.
110
ATIVIDADE 6 E 7 – Sobre a linguagem do rap e efeitos de sentido
6- Que justificativa se pode dar para a grafia do título?
Como podemos explicar o uso da linguagem informal, a infração a algumas
regras de concordância, gírias, etc., na letra dos raps?
7- A letra apresenta uso da linguagem figurada/conotativa por meio de
metáforas. Se fôssemos usar a linguagem denotativa, por quais palavras ou
expressões as metáforas dos trechos abaixo poderiam ser substituídas? Teria
o mesmo efeito de sentido?
a) “Vai vendo, curte, pois você ainda é pequeno
Ainda é criança e não sabe do veneno”.
b) “Escuta, acorda, pois não acabou a guerra
Você infelizmente nasceu no meio dela”.
c) “Menino, você é o futuro desse jogo
Pra resgatar de novo, a honra desse povo”.
Comentário/análise:
A questão seis envolve reflexões sobre a linguagem do rap. Quanto à
infração das regras gramaticais, os alunos compreenderam o uso de linguagem
informal, gírias e falta de concordância como características do estilo, pois
reflete a fala simples, em situações informais, das ruas:
ALUNO G: “É assim que se fala por aí, com essa pronúncia. O rap valoriza
isso, o jeito simples e as gírias do povo”.
ALUNO K: “Não é linguagem caprichada, difícil. É como nós falamos quando
estamos com os amigos. A gente não pensa em regra de gramática”.
ALUNO M: “A linguagem é simples, mas tem uns versos muito bem feitos. Tem
umas rimas que eu admiro”.
Atribuir sentidos aos versos com linguagem figurada é a proposta da
questão sete. Os alunos responderam a ela com coerência, levando a letra do
rap em conta. A provocação para refletirem sobre o efeito de sentido causado
pelo uso da linguagem demonstrou-se uma tarefa importante para que
111
percebessem como o uso estético da linguagem faz a diferença no
leitor/ouvinte e possibilita diferentes sentidos, associações e compreensões.
ATIVIDADE 8 – Sobre o autor, finalidade, contexto de produção
a) Como vimos, Rappin’ Hood é o nome artístico de Antônio Luiz Júnior,
rapper, apresentador e compositor. Converse com os colegas e procure
explicar a composição do nome artístico e as possíveis conotações
(interpretações) que o nome adquire:
b) Esse rap foi lançado em 2005. Os assuntos abordados na música ainda são
atuais? Comente:
Comentário/análise:
Sobre a composição do nome Rappin’ Hood, os alunos relacionaram a
referência ao lendário personagem Robin Hood com o trocadilho Rappin
(referência ao rap) no lugar de Robin. Quanto às possíveis conotações a ele
atreladas, somente um aluno inferiu que, assim como Robbin Hood defendia e
ajudava os necessitados, o rapper pretende fazer o mesmo, só que por meio
de suas músicas, alertando e aconselhando.
Quanto à atualidade dos fatos abordados na música, todos responderam
afirmativamente. Alguns comentários:
ALUNO J: “São atuais, pois o preconceito não acabou de 2005 pra 2016, as
coisas estão quase iguais estavam em 2005”.
ALUNO B: “O preconceito e a exclusão social ainda existem, não se muda isso
em 10 anos”.
Essa contextualização da obra com o momento presente, conforme
abordado em análises anteriores, é fato importante para recuperar nela
perguntas e respostas, sem imitar a perspectiva do passado, pelo contrário,
para ressignificá-la.
4.1.6 Ruptura do horizonte de expectativas
De acordo com a sétima tese da Estética da Recepção (JAUSS, 2002), a
arte existe para contrariar expectativas e não para confirmar o conhecido e
112
gasto. Sendo assim, nessa etapa da Unidade Didática buscamos favorecer a
ruptura do horizonte de expectativas, com introdução de leituras e de
atividades diferenciadas das anteriores, com um grau de exigência maior, mas
com algum ponto em comum com a etapa anterior. Por isso optamos pela letra
de rap "Brasil com P", de GOG. O gênero poético/musical continua o mesmo,
mudam apenas questões referentes ao tema e à estrutura formal da música.
4.1.7 Rap: "Brasil com P", do rapper GOG
"Brasil com P" é um rap que faz parte do álbum de 2000, CPI na Favela,
de Genival Oliveira Gonçalves, conhecido pelo nome artístico de GOG,
formado pelas iniciais de seu nome. Ele é rapper, cantor e escritor brasileiro,
pioneiro do movimento rap no Distrito Federal. Desde o início da carreira, foi
chamado de Poeta. Sempre foi muito engajado nos movimentos educacionais
ligados ao hip-hop, na periferia. Recebeu os prêmios Hutúz43 (quatro
categorias) pelo CD "Aviso às Gerações" (2006) e "Dom Quixote de la Perifa"
(2007).
Em "Brasil com P", de forma poética, GOG constrói uma crítica social
com começo, meio e fim, utilizando somente palavras iniciadas com a letra P.
Essa ideia, não muito original, poderia estar fadada ao fracasso, resultando em
um texto forçado, artificial; todavia o rapper/Poeta conseguiu um resultado
único. As ideias se ligam naturalmente e as cenas vão se formando diante de
nossos olhos. E então vários conflitos que afetam o jovem da periferia são
abordados, sem nenhum verniz para obnubilar a realidade: o abuso de poder
da polícia, a “perseguição” aos pobres e negros, o descaso das políticas
públicas, a “necessidade” de produção a qualquer preço e outros.
4.1.8 Atividades sobre o rap "Brasil com P" e análises
43
Prêmio Hutúz foi a principal premiação do hip-hop brasileiro. Ocorreu de 2000 a 2009. Fez parte do Festival Hutúz, criado pela Central Única das Favelas (CUFA), organização que surgiu por meio de reuniões de jovens de várias comunidades do Rio de Janeiro. Foi idealizado pelo produtor Celso Athayde. Depois da interrupção de cinco anos, voltou a acontecer em 2015. Disponível em: <http://www.rapnacionaldownload.com.br/18098/premio-hutuz-a-mais-importante-premiacao-de-hip-hop-no-brasil-volta-em-2015/>. Acesso em: 20 jun. 2015.
113
Duração - 4 aulas
ATIVIDADES 1 E 2
1- Apresentar a letra do rap para os alunos e videoclipe44 correspondente.
2- Que sensação/sentido causou o fato de ser composta somente com
palavras iniciadas com P? Esse estilo é comum em letras de rap? O que
acharam do resultado? Perdeu as características do rap ou não? Por quê?
LETRA 3:
"Brasil com P"
(GOG, 2000)
Pesquisa publicada prova:
Preferencialmente preto, pobre, prostituta
Pra polícia prender
Pare, pense, por quê?
Prossigo:
Pelas periferia praticam perversidades: PMs!
Pelos palanques políticos prometem, prometem,
Pura palhaçada. Proveito próprio?
Praias, programas, piscinas, palmas...
Pra periferia? Pânico, pólvora, pápápá!
Primeira página.
Preço pago?
Pescoço, peito, pulmões perfurados.
Parece pouco?
Pedro Paulo,
Profissão: pedreiro,
Passa-tempo predileto: pandeiro,
44
Videoclipe disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6v0oXz499xg>. Acesso em: 12 fev. 2016.
114
Preso portando pó,
Passou pelos piores pesadelos.
Presídios, porões, problemas pessoais, psicológicos...
Perdeu parceiros, passado, presente,
Pais, parentes, principais pertences.
PC: político privilegiado
Preso, parecia piada.
Pagou propina pro plantão policial,
Passou pela porta principal.
Posso parecer psicopata,
Pivô pra perseguição,
Prevejo populares portando pistolas,
Pronunciando palavrões,
Promotores públicos pedindo prisões...
Pecado, pena,
Prisão perpétua!
Palavras pronunciadas pelo Poeta periferia.
Pelo presente pronunciamento,
pedimos punição para peixes pequenos, poderosos, pesos pesados.
Pedimos principalmente paixão pela pátria
prostituída pelos portugueses.
Prevenimos: posição parcial poderá provocar
protestos, paralisações, piquetes, pressão popular.
Preocupados?
Promovemos passeatas pacíficas, palestras, panfletamos.
Passamos perseguições, perigos por praça, palcos...
Protestávamos porque privatizaram portos,
pedágios... proibidos.
Policiais petulantes, pressionavam, pancadas,
pauladas, pontapés.
Pangarés pisoteando, postulavam prêmios, pura pilantragem.
115
Padres, pastores, promoveram procissões
pedindo piedade, paciência para população.
Parábolas, profecias, prometiam pétalas,
paraíso, predominou predador.
Paramos, pensamos profundamente:
Por que pobre pesa plástico, papel, papelão,
pelo pingado, pela passagem, pelo pão?
Por que proliferam pragas, pestes pelo país?
Por que Presidente? Por quê?
Predominou o predador
Por quê? Por quê?
Comentário/análise:
Em 4 de maio apresentei a letra "Brasil com P" aos alunos. Romper com
o horizonte de expectativas foi a causa da escolha desse rap. E foi uma
escolha acertada. O fato de ter linguagem mais ácida e de ser composta
somente com palavras iniciadas com a letra P causou impacto nos alunos.
Ficaram impressionados com a capacidade de o Poeta GOG ter composto uma
música inteira dessa maneira. Quanto aos resultados, relataram:
ALUNO A: “Fazer uma música já é difícil, com palavras só com P deve ter sido
muito mais difícil”.
ALUNO P: “O interessante é que não são palavras soltas, elas estão ligadas,
fazem sentido”.
Aluno B: “Achei um rap diferente, mas continua sendo rap. Faz críticas, expõe
fatos que querem esconder e faz a gente abrir o olho”.
ATIVIDADES 3, 4 E 5 – Extrapolação da letra
3- Que críticas o rapper traça no decorrer da letra? Enumere-as:
a) Ele se coloca como porta-voz de quem? Para quê? A parcela da população
que ele representa tem tido voz (espaços para expor seus problemas, suas
116
reivindicações)?
4- Segundo a manchete de uma notícia no site Geledés45, Negros são 77%
dos mortos pela polícia do Rio em 2015. Destaque de vermelho os versos em
que o rapper aborda esse fato:
a) O fato exposto na manchete é revelador quanto a algumas contradições
sociais. Comente sobre isso:
b) A crítica/denúncia presente na letra do rap pode contribuir para que esse
desequilíbrio social seja resolvido ou minimizado? De que forma?
5- Observe o uso da palavra “predador”. Explique o sentido que assume no
contexto da música:
Comentário/análise:
Essas atividades foram respondidas em grupo em 9 de maio. Essa
estratégia, assim como os debates e as conversações constantes, atendem ao
caráter social do método recepcional, que prevê a interação do aluno com seus
pares e com o professor, assim como o debate, a reflexão, o questionamento
de sua leitura e a dos colegas.
Cada grupo discutiu as questões e os alunos registraram suas
conclusões. As críticas expostas na letra do rap quanto à política, à corrupção,
aos privilégios de uns e à exclusão de outros, às falhas do poder judiciário e ao
preconceito foram enumeradas como respostas à questão três. O rapper foi
considerado como porta-voz dos pobres, dos negros, dos excluídos, usando a
palavra como arma para fazer denúncias da realidade desigual que vivencia.
O silenciamento que gira em torno da voz das chamadas minorias, sem
espaços para expor suas reivindicações e críticas, referente à alternativa “A” da
questão três foi expresso da seguinte forma:
ALUNO C: “O rapper representa os negros que sofrem dia por dia a
discriminação e só aparecem em notícia ruim, nunca são ouvidos por
ninguém”.
45
Disponível em: <http://www.geledes.org.br/negros-sao-77-dos-mortos-pela-policia-do-rio-em-2015/>. Acesso em: 7 fev. 2016.
117
ALUNO K: “Existem poucos negros famosos, que defendem e falam dos
problemas dos negros. Ele [o rapper] faz isso com o rap, um dos poucos jeitos
que eles têm de ser ouvidos".
ALUNO L: “Acho que nunca li um livro de autor negro e agora entendo o
porquê disso”.
A questão quatro, sobre a notícia de que os negros são maioria dos
mortos pela polícia, causou conversações acirradas. Registro alguns
comentários:
ALUNO A: “Essa manchete mostra que as condições não são iguais, como
sempre dizem. E resolver isso é difícil, mas fazer as pessoas refletirem sobre o
assunto em vez de fingir que não existe problema já é o começo”.
ALUNO P: “Tem muita coisa envolvida nesse número. O preconceito, as
condições difíceis da vida dos negros causadas pela desigualdade. E falar
disso, debater, pode conscientizar a pessoas e fazer com que comecem a
exigir mudanças”.
ALUNO G: “A voz do rapper é sua arma contra o preconceito e a discriminação.
Ele denuncia coisas que querem esconder, fingindo que o Brasil é um país de
'democracia racial'”.
O debate dessas questões na sala de aula e os comentários dos alunos
comprovam que eles são capazes de refletir e ir além do senso comum quando
instigados a isso. Demonstraram compreensão sobre o secular silenciamento
dos pobres e negros e sobre as contradições de nossa sociedade, onde o
discurso difere da realidade. Isso também sinaliza que “[...] o rap nacional pode
promover, não apenas alguma catarse pela possibilidade de privilegiar
identidades negadas, silenciadas na escola, mas também a politização dessas
mesmas identidades” – citando novamente Fonseca (2011, p. 28).
Na atividade cinco voltamos a refletir sobre a linguagem figurada. O
sentido da palavra “predador” foi uma escolha léxico/semântica por parte do
rapper, assumindo significados amplos e ricos na letra. Colocada na
“maquinaria da linguagem” (BARTHES, 2007, p. 20), a palavra “predador”,
envolvida no jogo semântico, traz uma conotação nova. Levar o aluno a
perceber a riqueza das possibilidades que a língua nos oferece é trabalhar com
a literariedade do texto, como defende Soares (2001) ao tratar da
escolarização da leitura e da literatura, fato já analisado.
118
Questionados sobre os sentidos que tal palavra assume na música, ao
que os alunos pontuaram:
ALUNO R: “Predador quer dizer aqueles que se beneficiam dos outros pra
sobreviver: os políticos, grandes empresários, latifundiários, banqueiros”.
ALUNO S: “Representa todos os que exploram os mais pobres, aqueles que se
aproveitam dos que são menores em termos de dinheiro”.
ALUNO V: “Se refere àqueles que estão no topo, não da cadeia alimentar, no
topo da pirâmide social, os que estão na classe de cima e vivem à custa de
quem está abaixo”.
ATIVIDADES 6 – Sobre contexto de produção, linguagem, circulação
6- Após a análise dos três raps estudados, responda:
a) Em que contextos de produção são produzidos a maioria dos raps? Que
temas abordam? Por quê? Quanto ao eu-enunciador dos três raps, o que se
constata?
b) Onde circulam e qual é o público-alvo possível?
c) Comente sobre o estilo: a linguagem, escolha lexical, etc.
d) Comente as características formais dos raps analisados:
Comentário/análise:
O contexto de produção dos raps foi um aspecto que os alunos
compreenderam, mesmo porque já sabiam, pelo contato extraclasse, que se
tratava de música que tem a periferia e os problemas sociais como tema e que,
por isso, sofre o estigma de música “marginal”, uma vez que não pertence aos
estilos considerados canônicos. Quanto à circulação, mencionaram como
principal veículo a internet, que é, de fato, o principal meio de divulgação dos
grupos de rap; os jovens em geral foram citados como público-alvo. Quanto à
linguagem, a presença de linguagem coloquial, o uso de gírias, infração às
regras gramaticais de concordância e, às vezes, linguagem agressiva, esses
foram aspectos destacados, além das letras longas, rimas, e constantes
referências ao interlocutor. Para evidenciar tal compreensão, cito a constatação
de um aluno:
119
ALUNO A: “O assunto que eles (os rapppers) falam nas músicas não é
delicado nem meigo. É pesado, agressivo. A linguagem também é. Não faria
sentido usarem palavras meigas pra falar do que falam”.
ATIVIDADE 7 – Produção textual
7- É hora de compor uma letra de rap. Em duplas, escolham um tema sobre o
qual pretendem refletir, criticar ou denunciar. A letra será apresentada à turma
para socialização das ideias e também exposta nos murais da escola.
Comentário/análise:
Essa atividade foi realizada em 10 de maio. A produção da letra de um
rap foi aceita com alvoroço por grande parte dos alunos, que, inclusive, já
tinham o tema escolhido, com direcionamentos sobre o assunto que iriam
abordar. Mesmo assim, inicialmente, a proposta “amedrontou” alguns (duas
duplas, em específico). O fato de ter de fazer rimas foi o motivo dessa recusa
inicial, superada com palavras de incentivo e oferta de ajuda, caso
necessitassem. Depois do alvoroço inicial, as duplas, já formadas por
afinidades, começaram a trabalhar. Não foi uma aula silenciosa. Houve risos,
discussões, troca de ideias empolgadas. Precisei intervir em alguns momentos,
redirecionando-os para a atividade. Como uma produção textual demanda
tempo, pois envolve escrita e reescrita, não foi possível concluir a atividade no
dia programado. Combinamos que terminaríamos na aula seguinte, o que se
concretizou. Houve desentendimentos entre os alunos de uma dupla, que não
apresentou a versão final, mesmo tendo iniciado o rascunho na aula anterior.
Foi necessária uma mediação entre ambos e, após o diálogo, estabeleci o
prazo de mais um dia para que cumprissem a atividade, mas, mesmo assim,
não a realizaram. Os demais cumpriram o combinado.
De acordo com o aporte teórico utilizado, principalmente Andrade
(1999), o rap é uma música de origem negra e garante o fortalecimento da
identidade étnica de seus produtores. Isso, contudo, não significa que o
conteúdo da música deva ser voltado unicamente a essa temática, pois o ritmo
do estilo musical por si só expressa sua origem. Levando esse aspecto em
consideração, os temas para a composição dos raps não foram delimitados. Os
120
alunos fizeram as opções livremente, segundo seus anseios. E optaram por
temas variados. As questões atuais referentes à política46, machismo e
estupro47 – assuntos amplamente divulgados pela mídia na época da
realização das atividades – e também questões de saúde pública, como
epidemia de dengue48, além do preconceito e situações de exclusão foram
eleitas pelos alunos na composição das letras:
a) Machismo e luta das mulheres por direitos/respeito: duas duplas.
b) Situação política do Brasil/corrupção/desigualdade: cinco duplas.
c) Preconceito/discriminação: três duplas.
d) Saúde pública/conscientização: uma dupla.
Na fundamentação teórica, ao fazermos a abordagem sobre a escrita,
mencionamos que a visada desta dissertação compreende-a como formadora
de subjetividade, podendo atingir um papel de resistência aos valores impostos
socialmente e de emancipação. Ao assumir a autoria do que escreve, o aluno
torna-se um sujeito do seu dizer, demarca seu espaço, sua voz no contexto em
que vive e, principalmente, sua autoria na produção textual que assina. As
letras por ele produzidas, em geral, comprovam a voz do aluno como autor,
sujeito do seu dizer, que, ao seu modo, expõe suas ideias.
Os apontamentos de Geraldi (2013, p. 104) foram tomados como norte
na questão da produção textual, no caso, a letra de rap. Já vimos que ele
considera o texto “[...] uma sequência verbal escrita coerente formando um
todo acabado, definitivo e publicado”. Pela escrita, “[...] acontece a devolução,
às classes menos favorecidas, do direito à palavra, ideologicamente falando, e
também é no texto que a língua se revela em sua totalidade – como conjunto
de formas e como discurso” (GERALDI, 2013, p. 135). Dessa forma, para
tornar a produção dos raps mais do que um exercício linguístico, mas uma
46
Referência à crise política e os pedidos de impeachment da presidente Dilma Roussef, o que culmina com seu polêmico afastamento em 11 de maio de 2016. Informações disponíveis em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1770139-senado-afasta-dilma-da-presiden cia-e-michel-temer-assume-nesta-quinta.shtml>. Acesso em: 26 jul. 2016.
47 Mais informações disponíveis em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-cultura-do-estupro> e em <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/05/a-india-e-aqui-impunidade-fez-estupro-coletivo-virar-motivo-de-ostentacao-diz-promotora.html>. Acesso em: 12 jun. 2016.
48 O fato de a dengue estar entre os temas escolhidos se deve ao impacto do aumento do número de casos da doença no município, inclusive causando óbitos à época da realização das atividades. Informações disponíveis em: <http://catve.com/noticia/6/146108/segunda-mor te-por-dengue-e-confirmada-em-medianeira>. Acesso em: 23 jun. 2016.
121
prática social de interação verbal, procuramos seguir os critérios por ele
elencados para que tal prática se efetivasse: a importância que o aluno tenha o
que dizer, uma razão para dizer, para quem dizer, comprometa-se com o que
diz, com as devidas escolhas de estratégias para seu dizer.
Esses aspectos se comprovaram nas produções dos alunos, em maior
ou menor grau. Eles demonstraram ter o que dizer: atentos aos fatos
contraditórios e problemáticos da realidade, marcaram sua subjetividade nas
produções por meio de questionamentos, indignações e críticas, com razões
para isso, pois pretendiam criticar ou denunciar determinada situação ou ainda
reivindicar algo considerado justo; e também tiveram para quem dizer, pois
suas produções seriam socializadas e apreciadas pelos colegas e demais
alunos da escola.
A seguir, os trechos dessas produções são transcritos e reiteram essas
afirmações. As versões das letras de rap, na íntegra49, encontram-se em anexo
(Anexo 4, p. 180-190).
1) O Brasil correto (DUPLA A)
Eu agora vou falar bem alto
Do sangue que corre em mim e em vocês
É sangue explorado pelos burguês
Que tomou o país dos índios
Destruindo uma longa história.
O que vai sobrar pros nossos filhos?
Só rios de sangue e de dor
E tristeza na memória. [...]
Agora tá na hora de compor o protesto
Que será o nosso manifesto.
Aqui não tem “migué” e sim papo reto.
Eu quero um Brasil mais justo e mais correto!
O Brasil que eu sonho
49
As letras de rap, na íntegra, mantêm a escrita dos alunos, sem correções, porém não são identificadas, preservando a identidade dos sujeitos da pesquisa.
122
Pra vocês, pra mim, pros meus netos
Tem mais justiça e mais afeto
Não vai ter tanta exclusão
Nem discriminação, meu irmão! [...]
2) As mulheres estão podendo (DUPLA B)
Lugar de mulher é na cozinha?”
Isso não cola mais
É do tempo das antigas, dos nossos ancestrais.
Lugar de mulher é onde ela quiser
Seja na rua ou em qualquer lugar.
Homem não pode nem deve nos rotular
Acha que só sabemos cozinhar?
Qual é? Isso já passou!
Lutamos, batalhamos
E olha tudo o que a gente conquistou.
Menos sofrimento, menos discriminação.
Mas ainda faltam conquistas, meu irmão.
Qual é a sua desculpa? Qual é seu argumento?
Qual é? Vai querer fugir desse momento? [...]
3) Chega de machismo (DUPLA C)
Democracia e igualdade?
Isso não é verdade
Não na nossa sociedade.
“Shortinho curto?
Tá pedindo pra ser estuprada!”
Não vem com esse papo
De machista sem noção.
Nada do que eu faça
Te dá o direito de passar a mão. [...]
123
4) Política no Brasil (DUPLA D)
[...] Os impostos só aumentam
os pobres não se alimentam
enquanto lá em cima os políticos ostentam [...]
A vida do povão é uma desgraça
Afinal de contas “Somos uma ameaça”
Mas nós se manifesta, irmão.
Porque um bando de formiga
bota medo no grandão. [...]
5) Preconceito (DUPLA E)
Eu já não aguento mais esse papo de igualdade
quando o que pega de verdade
é o desrespeito e a maldade. [...]
Mas “basta acreditar que um sonho é imbatível
que o céu é o limite e todos são iguais.
Aqui somos todos irmãos
e filhos de um mesmo pai”. [...]
Ninguém nasce com o preconceito
Ele é fruto da sociedade desigual.
E se ele se cria na sociedade
Então ele não é imortal. [...]
6) Que mundo vou herdar? (DUPLA F)
Eu nem tenho dezoito,
Nem ainda dezesseis.
Que mundo vou herdar
quando chegar a minha vez?
A vida não é fantasia
São poucos que vivem na mordomia
A vida é dureza para a grande maioria. [...]
7) Brasil, Século XXI (DUPLA G)
Século XXI, o que a gente vê?
124
Muita maldade e guerras na TV.[...]
O tempo passa, o progresso aumenta
Mas então quero saber por que a
Desigualdade continua?
De um lado evoluímos
E por outro nos destruímos
Onde isso vai parar?
O progresso que eu quero
Não é só tecnologia
É de respeito, igualdade e alegria,
pra todo o povo
E não pra uma minoria. [...]
8) Ganância e poder (DUPLA H)
Esse mundo me parece
Um shopping para poucos.
Tudo está à venda
E só é preciso ter dinheiro
Pra ser o cara mais maneiro
O melhor da parada. [...]
Ter dinheiro é bom, parceiro.
Mas também é uma perdição.
Quantas mortes, preconceitos e guerras
Foram causadas pela ambição?
Supera isso, meu irmão.
Busque a igualdade,
Pois somos todos irmãos.
9) O preconceito tá aí (DUPLA I)
[...]
Dizem o contrário
Mas eu não sou otário
O papo de igualdade
É pura falsidade
125
Pra nos amaciar, nos amolecer
A discriminação rola solta na cidade
É por isso meu rap, que fala a verdade
Fico feliz se mexeu contigo
Se te fez pensar, por isso eu digo
Se quiser andar comigo
Não discrimine meus amigos. [...]
10) O Brasil transborda de caos (DUPLA J)
[...]
O Brasil transborda de caos
É um recipiente de loucuras
Que se torna arrogante
Que desde o início de sua história
Foi conturbado e ganancioso
Que não se importou com seus índios
Explorou os negros
Pra se tornar poderoso. [...]
Então meu irmão, vê se vigia
Por que tem muito traíra
Não se perca na correria [...].
11) Um caso social ( DUPLA K)
[...]
Estou fazendo a minha parte
E você vai me ajudar
Mas sem investimento
Do que vai adiantar?
Se o governo está cagando
Para a população
Nosso esforço não adianta, não.
É isso aí, meu irmão. [...]
A dengue não é mais um problema pessoal
Ela já virou uma causa social.
126
E se você ficar doente
E precisar de hospital...
Cai na real, parceiro,
Você não tem dinheiro... e isso é fatal.
As escolhas do modo de dizer, já direcionadas pelo estilo composicional
do rap, foram adequadas segundo as preferências de estilo de cada dupla.
Possivelmente pelo fato de ter sido proposta como atividade escolar, os alunos
regraram a questão da linguagem: optaram por escolhas lexicais menos ácidas
e menos agressivas. Somente uma dupla (dupla K) fez escolhas lexicais mais
contundentes e, mesmo assim, não muito agressivas. O uso de gírias e da
linguagem informal, forte característica do estilo, foi unânime. Quanto às regras
de concordância, somente duas duplas apresentaram infrações (dupla A e D)
e, por serem marcas do estilo, não foram corrigidas na transcrição. O uso de
rimas, mesmo que sem muita originalidade, com rimas “fáceis”, aconteceu nas
diversas composições.
Um aspecto que vale ser apontado é que em considerável número de
produções – cinco, especificamente, a saber: A, E, G, H e J – a atitude pessoal
de conscientização e de algum tipo de ação individual foi apontada como
solução para resolver o problema abordado (preconceito/exclusão/corrupção),
o que podemos compreender como uma visão superficial/ingênua dos fatos,
visto que atitudes individuais ou isoladas podem minimizar os efeitos, mas não
eliminam as causas do problema.
Entretanto, outras produções, ou até as mesmas – pois a letra pode
apresentar ambivalências, com visões ora mais aprofundadas, ora menos –
mostram certo aprofundamento e/ou desvelamento e crítica a discursos
ideológicos instaurados como verdadeiros. Como exemplo podemos citar o
questionamento ao discurso da igualdade (letra E e letra I), a cobrança de
investimento público (letra K), o questionamento do progresso que não traz
igualdade (letra G).
A socialização das letras de rap se deu de duas maneiras: apresentação
oral em sala de aula e exposição em mural. A apresentação oral das letras foi
tímida, pois apenas duas duplas realmente cantaram seu rap. As demais
fizeram a leitura jogralizada ou individual da letra que haviam produzido. A
127
inibição para apresentações públicas, na adolescência, é atitude
compreensível, por isso os argumentos foram aceitos, uma vez que objetivo
maior já fora alcançado. E encerramos a primeira parte da Unidade Didática. A
segunda parte, ainda com o mesmo viés de discussão, toma o conto como eixo
norteador das atividades. Fotos dos murais com trechos das letras de rap
produzidas pelos alunos encontram-se em anexo (Anexo 5, p.191-194), bem
como das apresentações orais (Anexo 6, p. 195-196).
4.2 UNIDADE DIDÁTICA: SEGUNDA PARTE – CONTOS CRESPOS
Duração: 12 aulas
TEMA:
DO RAP AOS CONTOS CRESPOS:
O DEBATE CONTINUA
Figura 2: Contos Crespos
O conto é a base desta parte da Unidade Didática, especificamente três
contos do escritor negro Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, do livro Contos
Crespos (2008). Dos 37 contos do livro, selecionamos três para direcionar as
atividades: "Boneca", "Incidente na raiz" e "Namoro". A escolha desses três
contos levou em conta a relação com os temas sobre a exclusão e o
preconceito, já debatidos por meio das letras de rap.
Como já foi exposto no tópico sobre o conto, o livro Contos Crespos
(CUTI, 2008) aborda a situação do negro na sociedade atual. De forma ora
sutil, ora direta, Cuti traz à tona situações corriqueiras em que os conflitos
gerados pelo preconceito étnico-racial afetam a vida dos envolvidos. Mas não é
só isso: também se empenha no resgate de temas históricos, valoriza e eleva
sua autoestima, desperta seu amor-próprio, ou ainda mostra as contradições
da nossa sociedade, que é “democrática e igualitária” no discurso, mas que
exclui e discrimina as pessoas diariamente nas relações sociais.
128
Em 12 aulas previstas, buscamos continuar as reflexões sobre o
preconceito e sobre as relações sociais conflituosas que afetam os pobres e
negros da nossa sociedade. Dessa forma, com as atividades propostas,
objetivamos:
• Favorecer o contato do aluno com o conto e incentivar a leitura;
• Promover o questionamento do horizonte de expectativas do aluno
ao propor o conto para continuidade do debate intercultural, já
iniciado com os raps;
• Estimular a ampliação do horizonte de expectativas com um conto
mais complexo quanto à linearidade e à linguagem metafórica;
• Propiciar momentos de debate e de reflexão quanto ao uso da
palavra como forma de resistência e de luta das classes
trabalhadoras;
• Incentivar a produção escrita.
4.2.1 Questionamento do horizonte de expectativas
A quarta etapa deste processo é de questionamento do horizonte de
expectativas do leitor; envolve a análise das etapas anteriores, reflexão e
registro sobre as dificuldades e aprendizagens, além de avançar no
aprofundamento das questões trabalhadas.
A proposta da atividade seguinte pretendeu enveredar os alunos nos
caminhos da reflexão e da análise das etapas do trabalho até o momento,
assim como sobre as aprendizagens adquiridas.
ATIVIDADE 1
1- Faça um comentário crítico abordando os seguintes aspectos sobre as
aulas que tiveram por base as letras de rap:
a) O que foi interessante?
b) O que aprendeu?
c) Motivou alguma reflexão? Sobre quais assuntos?
d) É importante trabalhar as formas populares de expressão (como o rap) na
129
escola? Por quê?
e) Os assuntos abordados nas músicas podem ser tratados de outras
formas? Quais?
Comentário/análise:
A produção do texto de comentário crítico-reflexivo nos deu a noção da
receptividade das atividades pelos alunos ao mesmo tempo em que mostrou
suas expectativas e aprendizagens. Eles demonstraram não ter familiaridade
com esse tipo de atividade, pois foram necessárias repetidas explicações para
que compreendessem que deveria ser uma produção pessoal, de autoanálise e
que abordasse toda a trajetória das atividades até o momento. Essa dificuldade
inicial pode estar ligada ao fato de que não é corriqueiro propor esse tipo de
autorreflexão. Mesmo assim, contudo, superada a dificuldade inicial, as
produções foram realizadas. Alguns dos resultados:
ALUNO G: “Achei interessante aprendermos sobre o rap, pois não é um estilo
de música abordado na escola. Aprender sobre a origem e a história do rap me
fez ter outra visão sobre esse tipo de música. O rap tem muito a ensinar. As
letras nos fizeram refletir sobre o preconceito, a desigualdade social, a política
e ver que esses problemas precisam ser discutidos [...]. Esses assuntos
deviam ser mais discutidos em livros e filmes [...].”
ALUNO J: “Nas aulas de Português eu aprendi sobre a origem do rap. O que
eu mais gostei foi das músicas e dos cantores. Gostei muito desse jeito de aula
[...] porque saiu da rotina de texto, atividade e matéria no quadro. Me fez refletir
sobre a sociedade, de como um político pagando propina sai pela porta
principal da delegacia, sobre a escravidão [...]. Esses assuntos podem ser
tratados em filmes, mensagens, textos, poesias, livros.”
ALUNO S: “No dia 18 de abril de 2016, os alunos do 9º ano chegaram à escola
e tiveram uma surpresa: Aulas com letra de rap. Os alunos se empolgaram,
tinham muito a esperar. O tempo passou e eles gostaram, por exemplo, o (cita
o próprio nome) gostou muito do assunto em si, mas o que mais gostou foi a
criação de um rap, teria a oportunidade de moldar o conteúdo. Ele aprendeu
também sobre a história e a situação do Brasil, mas não gostou de um rap (que
130
parecia música clássica). Mas em sua opinião, só rap não basta, ele queria
fazer teatro, poema e mais algumas coisas [...].”
Vemos que o último comentário – do aluno S – tem formato de relato,
escrito em terceira pessoa, o que confirma a ponderação anterior sobre a
inabilidade quanto a esse tipo de atividade. Não obstante, conseguiu balizar
vários aspectos importantes, também abordados nos demais comentários. É
válido perceber que a discussão desses temas é considerada importante pelos
alunos, que se mostram abertos às discussões. E esperam mais da escola,
como vimos no texto do Aluno S. Assim, portanto, se nos esquivarmos dessa
responsabilidade subtraímos do aluno a chance de minimizar as leituras
monológicas e a possibilidade de ver a valorização das manifestações estéticas
populares na escola.
Dando prosseguimento às atividades e para avançar de modo mais
amplo nas questões abordadas, selecionamos os contos "Boneca" e "Incidente
na raiz", de Cuti.
4.2.2 Conto "Boneca"
O conto "Boneca" é curto, mas intenso. Um pai está à procura de um
presente de Natal para a sua filha, porém esse presente não é facilmente
encontrado. O pai mantém-se firme na “missão”, procurando em várias lojas.
Até que, depois de uma verdadeira peregrinação, encontra o que procura: uma
boneca negra para a sua filha.
Escrito em terceira pessoa, com um narrador onisciente, esse conto
consegue transmitir a angústia do pai na sua peregrinação até encontrar o
objeto do desejo e ainda criar a expectativa no leitor ao construir um clima de
suspense em relação ao objeto procurado, sendo este revelado apenas no
clímax da narrativa.
A linguagem simples, os diálogos em ordem direta e a narrativa linear
favorecem a compreensão. Sem críticas ou denúncias diretas, mas vários
indícios, ora sutis, ora declarados, o conto induz à reflexão sobre a realidade
de um pai negro que precisa empreender uma “missão” para não presentear a
filha com uma boneca branca, que nada lhe diria de si mesma, de sua história
131
e de sua aparência, porém amplamente ofertada no mercado. Ao contrário, a
boneca negra, objeto da procura exaustiva, que, sem propaganda, sem
glamour, está guardada “na prateleira de baixo”.
Observa-se, nesse conto, a interferência velada de valores do branco no
mundo do negro. Desde crianças, os indivíduos são forçados a aceitar uma
cultura em detrimento de outra, considerada inferior. A superioridade
europeia/branca passa a ser uma norma de aceitação inconsciente. E difícil de
reverter, mesmo por aqueles que dela têm consciência.
4.2.3 Atividades sobre o conto "Boneca" e análises
Duração – 4 aulas
ATIVIDADE 1
a) Antes da leitura do conto, retomar as discussões com a turma sobre a
interculturalidade com base no que foi visto por meio das letras de rap:
b) Ainda antes da leitura do conto, levá-los a formular hipóteses50 sobre o
enredo a partir do título:
c) Propor a leitura do conto "Boneca" (CUTI, 2008):
Comentário/análise:
Devido a questões burocráticas de avaliações e fechamento das notas
do primeiro trimestre, interrompi as atividades da Unidade Didática e só as
retomei em 14 de junho. A interrupção de um mês, que inicialmente considerei
negativa, por acreditar que os alunos perderiam o interesse pelo assunto,
demonstrou-se positiva, pois eles mostraram-se ansiosos e receptivos ao
voltarmos aos trabalhos.
A formulação de hipóteses sobre o enredo a partir do título foi realizada
com o objetivo de motivação. Sete alunos inferiram que a história trataria sobre
uma boneca negra, o que de fato acontece. Um desses alunos alegou que foi
50
A estratégia de formulação de hipóteses para o enredo do conto a partir do título, utilizada como motivação para leitura, foi inspirada no livro Estratégias de Leitura, de Isabel Solè (1998).
132
fácil chegar a essa conclusão, pois tinha “tudo a ver” com o que estávamos
discutindo. Feita essa atividade preliminar, que apresentou resultados positivos
para despertar o interesse pela leitura, lemos o conto:
CONTO 1: "Boneca" (CUTI)
Nenhuma! Cansou de tanto andar. Perguntara muito. Ouvira respostas de todo
tipo. Algumas vezes, reagira à escassa delicadeza de certos balconistas e
mesmo às ironias finas. Em outros momentos fora levado à autocomiseração,
depois de ouvir, por exemplo:
Sinto muito!...
Ou:
Queira nos desculpar... A fábrica não fornece, sabe...
Desanimar? Não. Não havia por que desistir de encontrar o presente de Natal
para a filha. Com os seus 33 anos, estava em plena forma física. Além disso,
era como se a pequena o conduzisse pelas ruas do centro comercial.
Continuar a procura, mesmo pisoteando o cansaço, era uma missão.
Com entusiasmo, entrou na loja seguinte. Cheia! Aguardou pacientemente.
Uma mocinha branca, de ar meigo e aspecto subnutrido, indagou:
O senhor já foi atendido?
Não. Por gentileza, eu estou procurando uma boneca...
Temos várias. Olha aqui a Barbie, a Xuxinha... – e a loirinha foi apanhando
diversas bonecas. Colocava-as sobre o balcão, como se escolhesse para si.
Olha que gracinha esta aqui de olhos azuis! É novidade. Chegou ontem e já
vendeu quase tudo. Chora, tem chupeta, faz pipi... E essa outra aqui? Não é
uma graça? – e levou ao colo a ruivinha de tom amarelado, bem clarinha.
Mexeu-lhe os bracinhos e as perninhas e indagou: Não gostou de nenhuma?
É que estou procurando uma boneca negra...
Meia hora de espera.
Tem sim! – o dono da loja dirigiu-se à empregada. Procura melhor, na
prateleira de baixo, lá em cima mesmo, perto da pia.
A moça subiu de novo a escada, depois de sorrir um submisso
constrangimento.
Desceu mais uma vez, recebeu novas instruções e tornou a sorrir. Em
seguida, do alto do mezanino, mostrou o rostinho gorducho, marrom-escuro,
133
de uma boneca. Radiante, a balconista empunhava-a como um troféu. Assim
desceu a escada. Mas, descuidando-se nos degraus, despencou-se. Todos se
apavoraram. As colegas de trabalho foram em socorro.
Nenhuma fratura. Apenas um susto. O patrão exasperou-se, mas logo
conseguiu se controlar, vermelho como pimenta-malagueta. A loja estava
cheia. Foi atender o cliente:
Peço desculpa pela demora e pelo transtorno. Espero que o senhor não tenha
se chateado. O importante é que encontramos o produto. Está em falta, sabe...
Eles não entregam. Eu mesmo encomendei a semana passada. Mas o
representante disse que a firma está exportando para a África. Está certo, mas
aqui também tem freguês que procura, não é? O senhor é brasileiro?
Sim.
Então... – o homem engoliu a frase e preparou a nota.
...
Já na rua, o pai, entre tantos pensamentos, alguns desagradáveis, lembrou-se
da descontração a que fazia jus, depois de suar expectativas naquela manhã
de dezembro. Respirou fundo. Contemplou o lindo embrulho de motivações
natalinas, em que se destacavam o Papai Noel, crianças louras e muita neve.
Seguiu, passos lentos, em direção a uma lanchonete.
Vai uma loura gelada aí, chefe? – pronunciou o balconista ao vê-lo sentar-se
junto do balcão.
Sorriu, confirmando com um gesto de polegar.
Ao primeiro gole de cerveja, sentiu-se profundamente aliviado e feliz.
Análise/comentário: A leitura, primeiramente realizou-se de forma
silenciosa. Como houve algumas alegações de dificuldade de compreensão,
fizemos a segunda leitura em voz alta, para favorecer a compreensão por parte
de todos.
ATIVIDADE 2 – Extrapolação do texto
2- No laboratório de informática:
a) Solicitar aos alunos para digitar a palavra BONECA na barra de
ferramentas do Google, depois clicar em imagens. Feito isto, observar: Das
134
imagens que aparecem, quantas são negras ou de outra etnia que não a
branca? O que esse fato pode denotar?
b) Propor pesquisa sobre o autor Luiz Silva, Cuti: Após realizar a pesquisa,
responda: Quais pontos em comum há entre Cuti e os rappers?
Comentário/análise:
Mesmo tendo ciência das limitações técnicas – já comentadas – do
laboratório de informática, mantive a ideia inicial de pesquisa no laboratório
devido à sua relevância. Levar o conteúdo pronto, em slides, não teria o
mesmo efeito da pesquisa por conta própria. A atividade sobre as imagens de
bonecas no Google teve grande atenção dos alunos. Como foi uma pesquisa
rápida, transcorreu sem tumulto, com dois alunos usando o mesmo
computador. Por meio da pesquisa, eles constataram que, das 378 imagens de
bonecas na página do Google51, cinco bonecas eram negras e duas tinham
características orientais. As demais, todas brancas. Desse fato, fizeram as
seguintes ponderações:
ALUNO I: “As pessoas falam que tem igualdade racial no Brasil, mas na
verdade não tem. Se tivesse, o número de imagens de bonecas negras seria
parecido com o das bonecas brancas”.
ALUNO F: “Esse fato mostra que existe preconceito e desigualdade, embora
digam o contrário”.
Sobre os pontos em comum entre Cuti e os rappers, a primeira
semelhança a ser identificada foi a cor da pele. Depois fizeram outras
associações:
ALUNO M: “Ele fala do preconceito e dos problemas dos pobres e negros,
como os cantores de rap fazem”.
ALUNO A: “Ele também se preocupa em fazer as pessoas refletir sobre o
racismo, sobre a discriminação, como os rappers que a gente estudou”.
ATIVIDADE 3 E 4 – Sobre singularidade da leitura e extrapolação do texto
3- Esse conto levou você a pensar em que temas/assuntos? Que
51
Pesquisa na página de imagens do Google realizada em 14 de junho de 2016.
135
sensações/sentimentos a leitura despertou em você?
4- O fato de praticamente não haver bonecas negras no mercado num país de
“democracia racial” reflete algumas contradições.
a) Investigar com os alunos quais deles tiveram/brincaram com bonecas
negras na infância:
b) Incentivar a pesquisa de campo: nas lojas da cidade, há bonecas negras à
venda?
c) Se o nosso país vive numa “democracia racial” conforme os discursos
ideológicos e políticos, por que as bonecas negras estão praticamente
ausentes no mercado? O que isso reflete? Escreva sobre a discussão
realizada, apontando suas conclusões sobre o assunto:
Comentário/análise:
Quanto aos temas relacionados ao conto – questão três –, os alunos
elencaram a desigualdade racial, o preconceito e a discriminação. As
sensações, citadas por eles, despertadas pela leitura, foram ambivalentes:
dó/compaixão, curiosidade, simpatia, raiva, tristeza, surpresa, compreensão.
Essas diferenças de sensações, de apropriações subjetivas do texto
literário, levam-nos a retomar os apontamentos de Rouxel (2013, p. 177): em
sala de aula, mais do que o consenso quanto à interpretação de um texto, para
o nosso aluno/leitor, “[...] o que importa é a maneira como o texto lhe fala e age
sobre ele”. Então, acolher as reações pessoais dos alunos como traços de sua
apropriação do texto lido é o primeiro passo para respeitar sua subjetividade,
sem a qual, no parecer da mesma autora, “[...] não existe experiência literária”
(ROUXEL, 2013, p. 187). Dito de outra forma, a apropriação das obras literárias
é uma ação singular, mesmo que condicionada por fatores sociais e culturais.
Tentar homogeneizar as apropriações de leitura, unificar os sentidos
produzidos no aluno/leitor, isso pode achatar e arruinar sua unicidade.
A questão quatro provocou relatos interessantes. Dos 24 alunos da
turma, somente quatro deles relataram que na infância tiveram bonecas
negras. Esse fato, somado à quase total ausência de bonecas negras no
mercado – conforme o conto representa e conforme constataram na pesquisa
136
de campo52 – levou-os a concluir que a “democracia racial” propagandeada nos
discursos ideológicos é, na realidade, uma falácia, com o objetivo de
obscurecer realidade, para nos tornar míopes, como nos ensinou Freire (1996).
Três registros das conclusões dos alunos sobre esse aspecto apontam para
esse desvelamento:
ALUNO G: “Na prática, o racismo existe, manda até no mercado”.
ALUNO L: “Em uma sociedade com tantos discursos de igualdade, ainda tem
muita discriminação. Se até na venda de brinquedos se vê isso, imagina em
outras situações”.
ALUNO B: “Se existisse igualdade como dizem, não precisaria de lei para
exercer isso!”
Encerradas as atividades com o conto "Boneca", mas ainda com o
objetivo de questionar o horizonte de expectativas, passamos ao conto
"Incidente na raiz".
4.2.4 Conto "Incidente na raiz"
O conto "Incidente na raiz" já no título traz uma polissemia que provoca
o leitor mais atento: De que raiz se trata? Raiz cultural? Raiz de cabelo?
Numa estrutura linear, o conto narra a luta de Jussara, uma jovem
negra, para disfarçar o nariz largo – “já não havia nenhuma esperança da
eficácia no método de prendê-lo com pregador de roupa durante horas por dia”
– os lábios carnudos, a cor da pele – “muito creme e pó para clarear” – e
principalmente “domar” seus cabelos crespos. Até que um dia ela descobre o
“alisamento definitivo”, que atingiria “a raiz”. Depois de muitas economias, a ele
se submete. Com queimaduras na cabeça, é internada, com espasmos e
desmaios. Ao acordar, no hospital, o enfermeiro, “crioulo”, pergunta-lhe: "–Tá
melhor, nêga? Ela desmaia outra vez".
Nilma Lino Gomes (2002) aponta a escola como um espaço tanto de
reprodução como de ressignificação de símbolos culturais historicamente
marcados. Em seus estudos, ela constata que, em grande parte, a escola 52
Pesquisa de campo realizada pelos alunos em quatro lojas da cidade para inventariar a presença de bonecas negras à venda obteve a seguinte constatação: Loja A: Não havia bonecas negras à venda: Loja B: uma boneca; Lojas C e D: respectivamente apresentaram três e cinco bonecas negras à venda. Fotos sobre essa pesquisa no Anexo 7, p, 197.
137
colabora para propagar as representações negativas dos padrões/estilos de
estética corporal dos negros no Brasil. Também considera, no entanto, que o
espaço pedagógico pode ser um espaço para a superação dessas
representações negativas:
Cortar o cabelo, alisar o cabelo, raspar o cabelo, mudar o cabelo pode significar não só uma mudança de estado dentro de um grupo, mas também a maneira como as pessoas se vêem e são vistas pelo outro, um estilo político, de moda e de vida. Em suma, o cabelo é um veículo capaz de transmitir diferentes mensagens, por isso possibilita as mais diferentes leituras e interpretações. (...). Na escola, não só aprendemos a reproduzir as representações negativas sobre o cabelo crespo e o corpo negro. Podemos também aprender a superá-las. (GOMES, 2002: 50).
É importante termos clareza de que as representações negativas dos
padrões da estética negra não são gratuitas, aleatórias ou neutras, pois se
constituem em fortes elos da triste e antiga corrente de preconceito e
discriminação que aprisiona corpos e mentes dos negros e de seus
descendentes no nosso país. Sem dúvida, a dimensão simbólica negativa
construída historicamente sobre os aspectos visíveis do corpo negro – o cabelo
e a pele – serviu para justificar a colonização e encobrir intencionalidades
políticas e econômicas, consolidando um padrão de beleza – e de feiura – que
até hoje estigmatiza os negros.
A abordagem dessa temática em sala de aula, suscitada pela leitura do
conto, pretende problematizar aspectos ligados ao padrão de beleza negra –
silenciado e menosprezado pela colonialidade – buscando ressignificá-lo sob
uma ótica de reflexão e crítica. Em menos de duas páginas, por meio do drama
de Jussara, Cuti aborda essa questão delicada: os traços do fenótipo negro,
em especial “o cabelo pixaim, ruim” e a “necessidade” de disfarçá-lo para
adequar-se à ditadura da estética do cabelo liso e, assim, ao mundo da
supremacia branca. Isso tudo é abordado a partir das atividades sobre o conto
a seguir.
4.2.5 Atividades sobre o conto "Incidente na raiz" e análises
Duração – 4 aulas
138
ATIVIDADE 1 – Levantamento de hipóteses, leitura, singularidade da leitura
1- Propor o levantamento de hipóteses sobre o enredo a partir do título, como
foi realizado na atividade anterior:
a) Leitura do conto "Incidente na raiz".
b) O título do conto é polissêmico, ou seja, pode assumir diferentes sentidos.
Quais? Explique:
c) Que sensações a leitura do conto despertou em você?
Comentário/análise:
As atividades referentes a esse conto foram desenvolvidas em 21 e 22
de junho. O levantamento de hipóteses para o enredo a partir do título do conto
demonstrou-se um recurso estratégico fácil e adequado para a motivação à
leitura, conforme previsto. A polissemia do título foi percebida pelos alunos.
Doze deles lançaram hipóteses sobre a possibilidade de o conto tratar de
problemas na raiz dos cabelos e os outros sobre a raiz “das origens” de um
personagem, o que, de certa forma, antecipa a questão “C”. Na verdade, as
duas hipóteses podem ser consideradas coerentes.
Feito isso, encaminhei a leitura do conto:
CONTO 2: "Incidente na raiz" (CUTI)
Jussara pensa que é branca. Nunca lhe disseram o contrário. Nem o cartório.
No cabelo crespo deu um jeito. Produto químico e fim! Ficou esvoaçante e
submetido diariamente a uma drástica auditoria no couro cabeludo para evitar
que as raízes pusessem as manguinhas de fora. Qualquer indício, munia-se
de pasta alisante, ferro e outros que tais e....
O nariz, já não havia nenhuma esperança de eficácia no método de prendê-lo
com pregador de roupa durante horas por dia. A prática materna não dera
certo em sua infância. Pelo contrário, tinha-lhe provocado algumas contusões
de vasos sanguíneos. Agora, já moça, suas narinas voavam mais livremente
ao impulso da respiração. Detestava tirar fotografias frontais. Preferia de perfil,
uma forma paliativa, enquanto sonhava e fazia economias para realizar
operação plástica.
E os lábios? Na tentativa de esconder-lhes a carnosidade, adquirira um
cacoete – já apontado por amigos e namorados (sempre brancos) – de mantê-
139
los dentro da boca.
Sobre a pele, naturalmente bronzeada, muito creme e pó para clarear.
Um dia, veio alguém com a notícia de “alisamento permanente”. Era passar o
produto nos cabelos uma só vez e pronto, livrava-se de ficar de olho nas
raízes. Um gringo qualquer inventara a tal fórmula. Cobrava caro, mas
garantia o serviço. Segundo diziam, a substância alisava a nascente dos
pêlos. Jussara deixou-se influenciar. Fez um sacrifício nas economias,
protelou o sonho da plástica e submeteu-se.
Com as queimaduras químicas na cabeça, foi internada às pressas, depois de
alguns espasmos e desmaios.
Na manhã seguinte, ao abrir com dificuldade os olhos, no leito de hospital, um
enfermeiro crioulo perguntou-lhe:
Tá melhor, nêga?
Ela desmaiou de novo.
Comentário/Análise:
A reação dos alunos à leitura desse conto foi mais intensa do que a do
conto anterior. Isso pode ter diversas justificativas: talvez pelo tema, ou pelo
final inusitado e carregado de ironia, ou ainda pela empatia com a personagem
Jussara, jovem, vaidosa, com um dilema próximo ao deles, que também tentam
adequar-se aos padrões estéticos para serem aceitos e incluídos nas esferas
sociais, notadamente excludentes e consumistas. Os alunos fizeram tais
relatos após a leitura do conto:
ALUNO P: “A Jussara parece minha irmã. Só reclama do cabelo crespo e fica
horas alisando...”.
ALUNO H: “Adorei esse conto. Ele fala de um jeito humorado sobre coisas
importantes: a não aceitação da cor da pele e do cabelo crespo, e como as
pessoas querem mudar isso por causa do medo do preconceito”.
ATIVIDADE 2, 3 E 4 – Extrapolação do texto
2- O conto aborda um assunto atual e delicado: Os traços do fenótipo negro,
em especial o cabelo crespo e a “necessidade” de disfarçá-lo para adequar-se
à ditadura da estética do cabelo liso e, assim, ao mundo da supremacia
branca. Essa atitude é causada somente por vaidade ou por questões
140
históricas de discriminação e preconceito? Debata com a professora e colegas
e anote as conclusões:
3- Observe o início do conto: Jussara pensa que é branca. Nunca lhe disseram
o contrário. Nem o cartório.
Assim como muitos brasileiros, Jussara era negra, mas em seu registro de
nascimento, provavelmente, constava ser BRANCA. Esse fato era comum:
registrar os filhos negros – ou pardos53 – como brancos. Qual seria a
justificativa para isso?
4- Veja alguns dados estatísticos54. Esses dados são reveladores. O que
revelam?
Em comparação com o Censo realizado em 2000, em 2014 o
percentual de pardos cresceu de 38,5% para 43,1% (82 milhões de
pessoas) em 2010. A proporção de pretos também subiu de 6,2%
para 7,6% (15 milhões) no mesmo período. Esse resultado também
aponta que a população que se autodeclara branca caiu de 53,7%
para 47,7% (91 milhões de brasileiros).
Comentário/análise:
Após conversação sobre os assuntos acima, da qual a participação foi
intensa, com relatos, questionamentos, opiniões e críticas, os alunos
responderam sobre a questão dois – as causas da não aceitação das
características do fenótipo negro:
ALUNO F: “É por vaidade, mas também por questões de discriminação, de
exclusão social. A moda é cabelo liso, daí todo mundo quer ter cabelo liso. Se
tiver cabelo crespo, sofre 'bullying'”.
ALUNO B: “É por questões históricas de discriminação, isso leva a personagem
a não se aceitar. Pra ser bonita, tem que se parecer com as pessoas brancas”.
53
O termo pardo é usado pelo IBGE para categorizar um dos cinco grupos de “cor ou raça” que compõem a população do país, junto com as categorias branco, preto, amarelo e indígena. Refere-se à ideia de pessoa com ascendência étnico-racial branca e negra. Informação disponível em: <http:// www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/caracteristicas_raciais/ notas_tecnicas.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2016.
54 Informação disponível em: <http://www.brasil.gov.br/educacao/2012/07/censo-2010-mostra-as-diferencas-entre-características-gerais-da-população-brasileira>. Acesso em: 8 ago. 2015.
141
A questão três aborda o fato de que muitos pais registravam os filhos
negros ou pardos como sendo brancos. Cito duas ponderações dos alunos
sobre isso:
ALUNO B: “É uma espécie de defesa para o filho. Se todo mundo acha que ser
branco é melhor, eles [os pais] querem que o filho seja considerado branco, pra
evitar discriminação”.
ALUNO L: “O medo de que o filho sofra preconceito faz os pais negarem sua
origem e tentarem ser brancos”.
Quanto à questão quatro, a análise dos dados estatísticos do IBGE
levou os alunos à constatação do aumento de pessoas que se autodeclararam
como negros ou descendentes – "preto" é o termo usado na pesquisa. Esse
fato foi considerado revelador na medida em que retrata, de certa forma, uma
sensível mudança no que se refere ao resgate da identidade negra.
A abordagem de Candido (2004) quanto à relevância da literatura nas
causas sociais, exposta na fundamentação teórica, confirma-se com a
realização dessas atividades. Candido assegura que a literatura tem um forte
papel na luta pelos direitos humanos, podendo se configurar em um
instrumento de desmascaramento, pois focaliza as situações de restrição dos
direitos, ou a sua negação. Constatamos tal importância no decorrer das
discussões. Por meio da literatura e do debate suscitado a partir do conto foi
possível oferecer ao aluno condições para “desmascarar” certas situações ou,
pelo menos, refletir sobre elas e questioná-las.
A sétima e última tese da Estética da Recepção (JAUSS, 1994) também
se coaduna às relações da literatura com a sociedade e o papel formador que
ela possui. Essa tese problematiza que a arte existe para contrariar
expectativas e não para confirmar o conhecido e o gasto, bem como pode
repercutir numa mudança de comportamento social por parte do leitor. O
conflito narrado no conto, por apresentar um desfecho inesperado – Jussara
não consegue mudar suas “raízes” – causou impacto nos alunos porque
contrariou as expectativas de um final feliz e, nesse caso, de uma completa
concretização da estética do branqueamento.
Esse fato levou os alunos a refletir sobre a “ditadura da estética branca”
e a ponderar sobre o assunto. Seria leviano afirmar que as discussões
142
realizadas causaram mudanças concretas de atitudes no que se refere às
concepções de beleza, de valorização das características do fenótipo negro e
de autoaceitação – porque não era nosso objetivo “medir” tais posicionamentos
– contudo, romper o silenciamento institucional que envolve esse assunto, isso
pôde ser visto como fator positivo.
4.2.6 Ampliação do horizonte de expectativas
A última etapa do método recepcional é a de ampliação do horizonte de
expectativas e prevê um amadurecimento quanto à experiência com a literatura
por parte dos alunos. Nessa fase, eles devem estar prontos para buscar novos
textos, mais complexos e profundos, abertos para novas aprendizagens.
O terceiro e último conto aqui proposto é mais longo e apresenta uma
estrutura mais complexa. Não segue a linearidade dos fatos, apresenta
flashbacks que podem confundir um leitor em construção ou pouco atento.
Também apresenta uma linguagem mais metafórica, rica em possibilidades,
por isso foi escolhido para ampliar o horizonte de expectativa do aluno,
instigando-o para leituras mais aprofundadas.
Outro motivo da escolha desse conto é o fato de trazer personagens
adolescentes e seus conflitos amorosos, perpassados pelos conflitos sociais, o
que, acreditamos, pode falar à sensibilidade dos alunos, podendo provocar
uma catarse, uma identificação com a obra literária.
4.2.7 Conto "Namoro"
Resumidamente, o conto "Namoro"55 narra a história de Maurício, um
garoto “branquinho”, apaixonado por uma Bárbara, uma garota negra. Como o
namoro entre os dois está “firme”, ele decide apresentá-la aos pais. E é nesse
encontro que a narrativa toma ares conflituosos. O pai não aceita “sujar” a
família com “aquele tipo de gente”. Brigam, agridem-se. Maurício, atônito, não
tem coragem para defender a namorada das ofensas. E, depois que ela sai,
chorando, de sua casa ele também sai, desesperado, e vai jogar fliperama no
55
Devido à sua extensão, optamos por colocar este conto nos anexos (Anexo 1, p. 164-173).
143
shopping, enquanto um redemoinho de dúvidas e angústias tomam conta de
seus pensamentos.
O conflito – um namoro proibido – não é um tema novo na literatura, mas
assume originalidade pela forma como o autor trabalha as causas veladas
dessa proibição: as causas sociais, as relações ideológicas de poder
interferindo nas escolhas amorosas pessoais.
4.2.8 Atividades sobre o conto "Namoro" e análises
Duração – 4 aulas
ATIVIDADE 1 e 2 – Levantamento de hipóteses, leitura e singularidade da
leitura
a) Levantamento de hipóteses sobre o enredo a partir do título.
b) Leitura do conto.
2- Que sensações a leitura do conto despertou em você?
Comentário/análise:
Essa atividade foi realizada em 27 de junho de 2016. O levantamento de
hipótese sobre o enredo do conto a partir do título, pelos motivos citados na
análise anterior, foi realizado novamente. Grande parte dos alunos fez
inferências corretas sobre o enredo, o que despertou interesse para a
realização da leitura. Mesmo as hipóteses que não se confirmaram foram
válidas, pois criaram expectativas nos alunos e a disposição por buscar sua
confirmação ou não por meio da leitura.
Conforme a previsão, por envolver personagens jovens e pela temática
de conflito amoroso, o conto “mexeu” com os alunos. Varias sensações foram
relatadas: compreensão, compaixão, raiva, desprezo, revolta, dor, pessimismo,
melancolia.
ATIVIDADE 3,4, 5, 6 E 7– Extrapolação do texto e da estrutura narrativa
3- O pai de Maurício apresenta uma personalidade peculiar/contraditória.
144
Explique essa contradição:
4- Quanto à sequência dos fatos, esse conto segue uma estrutura linear, como
a dos outros contos analisados – começo, meio e fim – ou apresenta
flashbacks – voltas no tempo para explicar fatos passados? Em caso positivo,
pinte os trechos de vermelho no texto:
5- Em vários momentos do texto, o narrador cria expectativa no leitor,
deixando que preencha certos “espaços vazios”. Por exemplo:
“[Maurício] Achava que os pais, convivendo com a namorada, iam também
adorá-la. Bárbara era..., mas...”. Como esses espaços poderiam ser
preenchidos, de acordo com o enredo?
6- O desfecho do conto não apresenta um “E foram felizes para sempre”.
Quais as possíveis intenções do autor ao terminar o conto da maneira como o
fez?
7- Os personagens dos três contos lidos apresentam alguns aspectos em
comum. Quais aspectos?
Comentário/análise:
A questão três propõe análise da personalidade do pai do Maurício. Por
ser um personagem contraditório, suas atitudes causaram indignação nos
alunos, justamente devido à contradição com sua ardente fé religiosa. Vejamos
alguns registros dessa questão:
ALUNO D: “O pai de Maurício era devoto de uma santa negra, a padroeira do
Brasil, tinha até um oratório pra ela, mas era preconceituoso e não aceitou a
namorada negra do filho. Uma coisa não combina com a outra”.
ALUNO F: “Ele é o tipo de pessoa que fala uma coisa e faz outra. Se fazia de
religioso, mas era preconceituoso”.
O recurso narrativo de flashback da questão quatro – utilizado
abundantemente no texto ‒ foi percebido pelos alunos, contudo alguns tiveram
dificuldades para diferenciar os fatos que ocorreram no momento da narrativa
dos fatos narrados em flashback, por isso o conto foi relido e, de forma coletiva,
realizamos a atividade. Pode-se atribuir essa dificuldade à densidade do conto,
145
mas também pelo fato de que analisar esse aspecto praticamente se constituiu
numa novidade para eles.
Retomando Iser (1979), o leitor preenche os espaços “vazios” no texto
fazendo inferências de sentidos. Ao preencher os “vazios” que um texto
apresenta, cada leitor o faz à sua maneira, a partir de suas experiências, de
seu conhecimento de mundo. E é esse preenchimento que garante o sentido
do texto e estabelece relações de interação texto-leitor. No conto "Namoro",
Cuti deixa essa tarefa para o leitor, literalmente, pois as reticências sinalizam,
mas não dizem. Quem dá o sentido é o leitor. Os alunos foram capazes de
preencher esses espaços, da oração “Bárbara era..., mas...”, da questão cinco,
da seguinte forma:
16 ALUNOS: “Bárbara era negra, mas bonita”.
05 ALUNOS: “Bárbara era negra, mas simpática”.
02 ALUNOS: “Bárbara era bonita, mas negra”.
01 ALUNO: Não respondeu a questão.
Nenhuma das questões propostas envolve diretamente a relação de
efeito sentido dado à oração “Bárbara era..., mas...” pelo uso da conjunção
“mas”, no entanto esse aspecto foi comentado por um aluno. Ele observou que,
para evitar a veiculação de preconceito, teria de se usar uma conjunção aditiva
no lugar da adversativa, logo, a conjunção “e” seria mais apropriada. De fato, o
uso da conjunção “mas”, por si só, dá a ideia de compensação. Essa
compreensão do aluno foi riquíssima, inesperada e coerente. Sobre esse
aspecto, é importante ressaltar a imprevisibilidade e o dinamismo como marcas
do trabalho em sala de aula. Às vezes não alcançamos o almejado, no entanto
há ocasiões em que os resultados ultrapassam o esperado. Cabe-nos, então,
aproveitar essas oportunidades e ampliar ainda mais as discussões,
enveredando-as para caminhos além do planejado.
Quanto à análise do desfecho do conto, proposta na questão seis, as
possíveis intenções do autor em terminá-lo de forma “triste” foram entendidas
como uma maneira de mostrar a seriedade das questões que envolvem
preconceito:
ALUNO I: “O autor mostra que casos de preconceito são sérios, causam
infelicidade”.
146
ALUNO A: “Para fazer refletir que os problemas existem, que nem tudo termina
bem. E que o preconceito pode acabar com a vida das pessoas”.
A questão sete propõe uma comparação entre os personagens dos três
contos analisados – o pai à procura de uma boneca negra para a filha, no conto
"Boneca"; Jussara com seus conflitos de autoaceitação no conto "Incidente na
raiz" e Maurício e Bárbara, com seu namoro proibido, no conto "Namoro". Os
alunos concluíram que eles têm em comum o fato de enfrentarem conflitos
devido ao preconceito étnico-racial, fazendo as devidas relações entre os três
contos trabalhados.
ATIVIDADE 8, 9 e 10 – Sobre recursos de linguagem e efeitos de sentido
8- O uso de expressões figuradas é recorrente no conto. Explique o sentido
dos trechos abaixo:
a) Naquele momento, Maurício, o coração em tiras, caminhava sem rumo
pelos braços da noite.
b) Os pensamentos foram vestindo o uniforme da realidade.
c) Crispim atravessou a sala, chicoteado por um de seus acessos.
d) A imagem de Bárbara estendeu-se toda no pensamento, envolta em uma
névoa de mágoa profunda.
e) Maurício engoliu a costumeira pedrinha de inveja.
9- A linguagem figurada, própria de textos literários, pode provocar
sensações/sentidos diversos no leitor? Por quê?
10- Sublinhe de amarelo, no texto, outros trechos em que a linguagem
figurada foi usada para dar maior expressividade ao texto:
Comentário/análise:
Essas atividades foram realizadas em 28 de junho de 2016. A atividade
oito, que envolve a explicação dos sentidos das expressões figuradas,
apresentou certa dificuldade, porém menor do que quando realizada pela
primeira vez, com as letras de rap, de acordo com o comentário realizado
naquele momento. Os diversos sentidos e as diversas sensações que o uso de
147
expressões figuradas pode provocar no leitor foram atribuídos ao “modo
especial de dizer as coisas, de forma poética”, segundo comentário de um
aluno.
O uso figurado/literário da linguagem foi abordado tanto nos raps quanto
nos contos. Não tivemos o objetivo de mera identificação e classificação das
figuras de linguagem ou de estilo, como se faz costumeiramente. Objetivamos
levar o aluno a refletir e a perceber os efeitos de sentido que seu uso provoca
no leitor, objetivo esse voltado à literariedade e não à metalinguagem.
Nesse ponto, podemos retomar Barthes (2007), ao mencionar a força
semiótica da linguagem, um verdadeiro jogo com os símbolos, que os coloca
vivamente na maquinaria da linguagem, porque, na literatura “[...] as palavras
não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são
lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores”
(BARTHES, 2007, p. 19/20). E valorizar esse “jogo” com as palavras, propiciar
oportunidades para que o aluno adentre ao universo da linguagem literária, isso
parece ser a forma adequada de escolarizar o texto literário, conforme Soares
(2006) e Lajolo (1997), citadas na fundamentação teórica.
O sublinhado no texto, de outras expressões figuradas, transcorreu
normalmente, pelos motivos também já mencionados em comentários
anteriores.
ATIVIDADE 11 – Produção de texto: comentário crítico-reflexivo
PARA FINALIZAR: Registre as conclusões sobre as questões debatidas por
meio dos raps e dos contos para depois socializar com os colegas. Procure
abordar os seguintes aspectos:
a) Os rappers e o autor Cuti representam que parcela da população brasileira?
Tem essa parcela tido o mesmo espaço para expor suas críticas, denúncias,
reivindicações que a parcela privilegiada? Qual é a causa disso?
b) São os temas abordados relevantes? Para quem? Por quê?
c) Pode o uso da palavra, por meio do rap e dos contos, contribuir para formar
um ser humano mais crítico, menos passivo e também resgatar e valorizar sua
148
identidade?
d) Qual é a contribuição das atividades e leituras desse projeto para você, nos
seus conceitos/preconceitos, na sua visão de mundo?
Comentário/análise:
A produção de um texto reflexivo/crítico sobre as discussões e
atividades foi a atividade de encerramento da Unidade Didática, isso ocorrido
em 29 de junho de 2016. Nessa produção, os alunos registraram suas
aprendizagens sobre o assunto e suas opiniões pessoais sobre os debates.
Três desses textos são transcritos a seguir, sinalizando as conclusões dos
alunos. Outros textos encontram-se no Anexo 2 (p. 174-176).
ALUNO S: “Os negros e os pobres ficaram desde o tempo da escravidão até os
dias de hoje sofrendo preconceito, mesmo sendo boa parcela da população,
porque o poder está nas mãos dos ricos, mas nesses últimos tempos existe
gente lutando contra o preconceito, formando raps, textos e usando a internet e
a TV. Assim, os negros, aos poucos estão conseguindo o seu espaço, afinal,
de grão em grão a galinha enche o papo e nesse mundo que gira eternamente,
vamos torcer para que um dia, finalmente, o preconceito e todos os males que
assolam e destroem o interior humano cheguem ao fim”.
ALUNO G: “Os rappers e o autor Cuti representam uma grande parcela da
população de negros e de pobres. Essa parcela, por muito tempo, não teve
oportunidades de trabalho, estudo, nem espaço para expor suas críticas e
denúncias como a parcela privilegiada. Hoje em dia algumas coisas mudaram,
porém o racismo continua a existir. E por isso é de extrema relevância esse
tema ser abordado. O racismo e a discriminação continuam a afetar a vida dos
negros, apesar de, na teoria, o Brasil ser um país de democracia racial. Os
raps e os contos podem contribuir para o fim desse preconceito, ajudando a
formar um ser humano mais crítico, menos passivo e resgatar o valor da cultura
negra. As atividades e leituras me fizeram refletir, assim como a meus colegas,
149
sobre como o preconceito ainda afeta a vida das pessoas e como falar desses
assuntos é de extrema importância".
ALUNO F: “Os rappers e o Cuti representam uma grande parte da população
negra que nunca teve as mesmas oportunidades e nem espaço na sociedade
por causa do preconceito racial. Porém, nos últimos anos eles estão tentando
mudar isso, fazendo contos, raps, poemas com crítica para a sociedade, com
temas importantes para todos, não um, nem outro, TODOS, e com isso as
pessoas estão se tornando mais críticas e começando a enxergar a realidade e
tendo uma visão diferente do mundo. Essa atividade, para mim, foi muito boa
para ver as coisas de modo diferente, porque, mesmo nos dias de hoje, eu não
imaginava que ainda havia tanta discriminação, racismo e preconceito”.
Diferentemente do que ocorreu na proposta da produção do tópico sobre
o questionamento do horizonte de expectativas, já descrita e analisada, desta
vez os alunos mostraram-se mais dispostos quanto à proposta de registrar
suas impressões pessoais de autorreflexão. Essa disposição maior em
escrever pode ser devida ao fato de que tal atividade não se constituiu em
novidade, uma vez que já haviam realizado atividade similar anteriormente e,
por tal motivo, tinham conhecimento dos procedimentos. Por outro lado, pode
ser devido ao fato de que a produção textual foi resultado do trabalho
sistemático das atividades anteriores, o que os muniu de conhecimentos e de
argumentos, de “ter o que dizer” e um “motivo para dizer”, parafraseando
Geraldi (2013).
Essas produções levam-nos a perceber que é possível realizar a leitura
crítica e emancipatória na escola, fato reiterado pelo que constatamos nos
textos. Eles evidenciam certo grau de desvelamento das ideologias
dominantes, como no caso da percepção de que há um discurso de
democracia racial no nosso país que não condiz com a realidade.
Em consonância às ponderações de Bakhtin (1997), esse patamar de
leitura assume o nível de réplica, pois sinaliza mais do que assimilação passiva
do discurso alheio; os alunos foram capazes de adentrar nos discursos de
forma “internamente persuasiva”, redimensionando-os a partir de novos pontos
de vista, refazendo-os, enfim, numa rede de novos sentidos.
150
Como parte final do trabalho, aliado ao interesse da Equipe
Multidisciplinar da escola56, e por considerar pertinente apurar posturas
ideológicas dos alunos quanto à sua autodeclaração étnica – mesmo que
informalmente – bem como outras questões relacionadas ao processo de
ensino-aprendizagem, aplicamos um questionário57 em sala de aula. Das
diversas questões, interessam-nos as respostas da pergunta referente à
cor/raça dos alunos. As categorias apresentadas como opção para cor/raça
foram as mesmas utilizadas pelo IBGE – branco, preto, pardo, amarelo,
indígena – por motivos já mencionados anteriormente. Dos 21 alunos que
responderam ao questionário58, um declarou-se como preto, 8 alunos como
pardos e 12 como brancos.
Retomando os dados citados anteriormente – do capítulo três, quando
descrevemos os alunos/sujeitos da pesquisa – constatamos divergências entre
a declaração dos pais, no ato da matrícula, sobre o mesmo aspecto: a cor/raça
dos filhos: dos 24 alunos, 18 foram declarados, pelos pais, como sendo/tendo
cor/raça branca, 5 de cor/raça parda e um não respondeu à pesquisa. Ou seja,
nenhum pai declarou seu filho como preto/negro, fatos esses modificados nas
respostas dos filhos à mesma questão.
Essa divergência de resultados à pesquisa idêntica pode ser analisada
sob prismas diversos. Por um lado, o aumento do número de alunos que se
autodeclararam como pardos e pretos pode estar ligado ao fato de que o
assunto foi debatido amplamente em sala de aula, no decorrer da aplicação da
Unidade Didática, o que pode ter influenciado na (des)construção de
preconceitos e ter suscitado reflexões sobre a valorização da identidade étnica.
Por outro lado, a divergência de respostas entre pais e filhos também
aponta para o fato de que os filhos estão mais abertos a discursos dialógicos
do que os pais; os jovens e adolescentes redimensionaram conhecimentos e
reformularam conceitos, ou seja, compreenderam a questão étnico-racial de
modo diferente dos pais e, certamente, de modo menos “fechado” do que a
geração anterior, esta marcada por discursos monológicos, rígidos e de difícil
56
Particularidades e objetivos das equipes multidisciplinares já foram expostos anteriormente, especificamente na p. 75.
57 O questionário completo consta no Anexo 8, p. 199. Dentre as questões, analisamos somente a de número 7, sobre raça/cor dos alunos sujeitos da pesquisa.
58 Somente 21 alunos responderam ao questionário, pois três faltaram neste dia.
151
alteração. Além disso, outro fator que pode resultar como interferência na
resposta dos pais é o contexto da pesquisa. No ato da matrícula, numa
situação formal, rápida e, muitas vezes, pública, os pais podem sentir-se
constrangidos com a pergunta sobre cor/raça dos filhos e respondê-la da forma
menos pessoal possível, sem a devida reflexão. Assim, contudo, esse
constrangimento, se ocorrer nessas situações, sinaliza para questões
arraigadas de discriminação e de preconceito com as quais eles têm
dificuldade de lidar e que, em seu tempo de escola, dificilmente foram
analisadas e debatidas, como estamos possibilitando aos seus filhos.
Retomando os apontamentos de Fiorin (2009), confirmamos que abrir
espaço em sala de aula para vozes diversas – não somente vozes de
autoridade, monológicas, fixas e resistentes – pode romper o monopólio
interpretativo e levar o aluno a questionar discursos já incorporados como
verdadeiros. Um leitor constituído por vozes do discurso lúdico ou polêmico
está aberto ao diálogo, constituindo-se a partir delas e constituindo seus pares,
de maneira dialógica e persuasiva. E acreditamos que atividades como as que
propomos na Unidade Didática, ou similares, podem, em pequena parcela,
colaborar para que a escola se torne o lugar de vozes de diversos tons, tão
diversos quanto é diversidade de nossa sociedade e que também a escola
seja, por excelência, um espaço de reflexão.
Concluídos os comentários e as análises das atividades e produções
textuais dos alunos, passemos às considerações finais.
152
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Potencializar o debate intercultural, levando para dentro dos muros
escolares não somente a cultura valorizada, dominante, mas também a cultura
popular por meio das estéticas populares como letras de rap e textos de Cuti –
um escritor negro, não pertencente ao cânone da literatura – para torná-las
vozes de um diálogo e objeto de pesquisa foi nosso objetivo ao propor esta
pesquisa. Isso pode ser considerado algo inovador, entretanto é apenas a
obrigação social da escola: ensinar e aprender com seus pares e valorizar as
manifestações culturais populares.
Assim sendo, com o objetivo de investigar a pertinência de atividades de
leitura e escrita em sala de aula, tendo como base letras do rap nacional e
contos do escritor negro Cuti, com vistas à criticidade e à leitura emancipatória,
elaboramos e aplicamos atividades pautadas na concepção discursiva e no
método recepcional. Antes disso, contudo, realizamos a pesquisa bibliográfica
necessária para a compreensão e aprofundamentos dos temas afins. O
conhecimento adquirido no decorrer das leituras fundamentou a elaboração
das atividades e das estratégias que direcionaram para o alcance dos objetivos
específicos, etapas restritas voltadas ao objetivo maior, já mencionado.
Expressar em palavras escritas a totalidade da trajetória da elaboração e
aplicação das atividades no decorrer desta pesquisa é tarefa árdua, contudo
relatamos, no capítulo de análises, o que nos pareceu mais relevante, com o
objetivo de delinear o caminho percorrido na proposta aqui defendida. Da
mesma forma, a partir de nossa observação pessoal, buscamos registrar o
envolvimento dos educandos com a proposta e realizar as análises do corpus à
luz das teorias que embasaram todo o percurso.
É importante mencionar que, no decorrer da implementação da Unidade
Didática, houve contratempos e necessidade de adaptações, geralmente
contornados na medida em que as atividades se desenvolviam, pois o trabalho
em sala de aula, conforme a experiência profissional e a teoria nos ensinam,
apresenta-se dinâmico, sempre sujeito a interferências. Daí a importância da
dinamicidade do professor, que deve estar atento aos percalços, mas também
às oportunidades e às maneiras de contorná-los. À medida que a proposta era
153
aplicada, muitos ajustes foram implementados, sempre com vistas a manter os
objetivos norteadores da pesquisa.
As diversas ações realizadas e as análises registradas nos dão o
arcabouço de respaldos para atestar que as atividades a partir de letras de rap
nacional e contos do escritor Cuti tornam as aulas mais atrativas e dinâmicas e
estimulam a participação efetiva do aluno nas atividades propostas. Entretanto,
ressaltamos que essa participação e esse empenho dos alunos, embora muito
positivos e válidos, não assumem patamar miraculoso e epifânico, ou seja, deu
resultado, provocou reflexões e participação, contudo, dentro das
possibilidades reais de uma escola pública, locus de nossa pesquisa, repleto
de ambivalências e de contradições.
O debate da interculturalidade foi constante e se efetivou no decorrer
das aulas. Teve como foco, especificamente, a possibilidade de respeitar as
diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anulasse. Ficou
evidente que esse assunto, considerado tabu em sala de aula por muitos
professores, com a alegação de se tratar de um tema “delicado” e/ou
“constrangedor”, pode e deve ser abordado sem rodeios, mas de forma
aprofundada e crítica.
Por meio das letras de rap, leituras dos contos, pesquisas, discussões,
realização das atividades e comentários, levamos os alunos à reflexão sobre o
preconceito, a discriminação, suas causas e consequências. Não podemos
afirmar que as atividades implementadas os destituíram do referido
preconceito, mas possibilitaram o debate e problematizaram questões pouco
discutidas/silenciadas em sala de aula, o que pode ser considerado um fator
positivo.
A documentação da produção escrita do aluno – como atividades de
produção de letras de rap a partir de sua realidade e de seus temas de
interesse – também aconteceu, conforme objetivo específico, e sinalizou que
houve posicionamento crítico e demarcação da autoria do aluno, de sua voz no
contexto social. Tais letras se constituem, em maior ou menor grau, como
forma de autoafirmação, questionamentos ou críticas. Por meio dessas
atividades, os alunos também perceberam e valorizaram a escrita como forma
eficaz de resistência, tanto deles – sujeitos de seu dizer – como dos rappers e
escritores pertencentes a grupos silenciados historicamente.
154
Não podemos, contudo, deixar de assinalar que nem todas as produções
alcançaram o patamar de desvelamento das ideologias dominantes e de
percepção das contradições sociais causadas pela (des)ordem capitalista.
Algumas, como vimos, apresentaram abordagens superficiais dos fatos ou
repetiram “meias verdades”, próprias dos discursos dominantes, tão “batidos”.
Mesmo assim o discurso monológico foi questionado – por meio do trabalho
com as estéticas populares, vozes silenciadas no trabalho pedagógico – e a
oportunidade de aprofundamento e de posicionamento crítico foi oferecida ao
aluno. Acreditamos que, se oportunidades envolvendo a problematização
desses temas acontecerem reiteradas vezes, de diferentes formas,
aprofundamento maior poderá ocorrer e, desse modo, as vozes que compõem
a “orquestra” da escola poderão tornar-se tão variadas e heterogêneas quanto
é a sociedade que a compõe.
Isso nos leva à constatação de que atividades esporádicas logram
resultado, mas seria ingênuo acreditar que são suficientes para efetivar
transformações realmente profundas e duradouras na história de vida e de
leitura dos alunos e de abalar o tom hegemônico nas relações sociais. Para tal
alcance, atividades contínuas, organizadas sistematicamente, de larga
abrangência, deveriam ser implementadas. Daí a nossa esperança de que esta
pesquisa sirva de incentivo para outras, em vieses diferenciados, talvez mais
amplos e aprofundados, buscando o objetivo maior, que é colaborar na luta
pela justiça social, como nos ensinou Freire (1984).
Quanto à utilização do método recepcional para direcionar as atividades
de leitura, mostrou-se uma escolha acertada tanto no que se refere à sua
aplicação no Ensino Fundamental – aspecto não apontado nas DCEs – quanto
à utilização para organizar a relação entre as letras de rap e os contos. O
caráter social do método recepcional foi evidenciado por meio de constante
interação do aluno com seus pares e com o professor, pelas oportunidades de
reflexão e de questionamento, aspectos esses que se harmonizam com os
objetivos desta pesquisa.
Também consideramos válida a aliança das etapas do método
recepcional com as atividades atreladas à concepção discursiva de linguagem,
com foco não somente no leitor, mas na interação autor/leitor/texto/discurso, o
que, no nosso parecer, constitui alternativa coerente ao trabalho com Literatura
155
no Ensino Fundamental, visto que são possibilidades que se completam, uma
vez que almejam provocar respostas críticas no leitor, desenvolver sua
autonomia, determinar posicionamentos, possibilitar condições no aluno/leitor
para questionar o texto/discurso e o mundo.
É, no entanto, necessário retomar as ponderações que nos alertam para
o fato de que o leitor proposto por Jauss (2002), na Estética da Recepção, não
é um leitor passivo; pelo contrário, é um leitor específico, com refinadas
habilidades de leitura e que possui como conhecimento prévio todo um sistema
de referência. Por causa disso, o caráter social e a historicidade da Estética da
Recepção ficam balizados pelo conjunto dos leitores que possuem o horizonte
de expectativas por ele pressuposto.
Essa percepção é pertinente, pois em sala de aula, durante a aplicação
das atividades, deparamo-nos com leitores de diversos níveis, dificuldades e
interesses, o que interferiu na aplicação do método. Várias atividades só foram
realizadas pelos alunos após direcionamentos e explicações detalhadas. Os
leitores “imaturos”, com conhecimento prévio restrito, nem sempre conseguiram
fazer as inferências e as associações necessárias à plena realização e
compreensão das leituras e atividades, precisando de auxílio para concretizá-
las. Isso não quer dizer que almejamos uma classe homogênea, pois a
aprendizagem acontece na socialização das diferenças, nem que nos eximimos
da função de mediadores, contudo há certos parâmetros que, se não
respeitados, comprometem a aprendizagem do aluno.
Por fim, as atividades realizadas também foram capazes de ampliar e
aprofundar o debate sobre a forma/necessidade de resistência das classes
populares. O silenciamento institucional a respeito de temas como o
preconceito e a exclusão foi rompido ou, pelo menos, questionado, ainda que
de forma mínima. Esperamos, sinceramente, que essa singular, e talvez ínfima
experiência, possa servir de incentivo e de parâmetro para outras que virão,
para ajudar a fazer da escola um lugar de diálogo, em que todas as vozes são
ouvidas.
156
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164
ANEXOS
ANEXO 1 – CONTO “NAMORO”
Comprou mais fichas e voltou para fazer pontos com as mulatas. Soltava
o botão impulsionador com força e olhava a bolinha metálica rolando e sendo
barrada pelos obstáculos. Manobrava duas baquetas de ataque sobre o painel,
por meio de botões laterais. O som da mola planetária parecia rir dele.
Tentava amansar com atividades a cena dos bofetões. Agitava-se. O
empregado do fliperama advertiu:
Mais devagar, garoto. Esta máquina aí custa caro.
Falou...
Depois de resmungar, passou a arquitetar diversas formas de vingança
contra o pai. Mas não parava de jogar intensamente.
Não se havia preparado para a atitude paterna. Não a imaginava mesmo
possível naquele fim de tarde, quando saíra de casa.
Tênis novinho nos pés, camisa de malha com inscrição “Cambridge
University”, cabelos bem penteados cobrindo as orelhas, Maurício desligou o
som pop da FM, foi até a cozinha, deu tchau para a mãe, piscou um olho
selando cumplicidade e se foi. Peito estufado, ele caminhava decidido a mudar
sua vida, assumir responsabilidades maiores, romper barreiras e adentrar de
forma definitiva no mundo adulto.
Para dar ênfase aos bons pensamentos, havia comprado um bilhete da
Loteria Federal. A possibilidade do prêmio despertou-lhe fantasias. O
casamento surgia a seus olhos com toda a bijuteria de felicidade.
Mas por que fora tão covarde? Deixar a namorada sair da cozinha,
esfolada pelos berros. E ficar ali parado, pregado no chão, vendo tudo... e
depois dizer aquela bobagem!
Parou de jogar por um instante. A imagem de Bárbara estendeu-se toda
no pensamento, envolta em uma névoa de mágoa profunda. Havia ódio
naquela expressão? Não era possível. Ela teria de perdoá-lo pela covardia.
Afinal... Afinal, ele enfrentara inclusive obstáculos difíceis. Voltou a jogar.
165
Lembrou-se da pelada no campo de barro molhado, escorregadio. João Carlos,
irmão de Bárbara, que sempre atuava como médio-volante, estranhamente,
naquela disputa domingueira, ocupava a posição de lateral direito. Era
perseguição. Ia marcar Maurício. Já havia prometido mesmo acertá-lo. Mas era
mentira, tudo mentira o que haviam inventado: que ele queria Bárbara só para
tirar sarro e depois deixar de lado. Nada daquilo. “Ela ocupa um lugar todo
especial!” ecoou de si para si. A partida começou. A torcida, na arquibancada
do barranco que desce da Rua dos Quilombolas, agitava-se. Era uma final de
campeonato de várzea. Bola que rola, gente escorrega, chute pra fora, grito na
boca, vai que vai, lateral. Bola na grande área, Maurício mata no peito, desce
no barro, prepara, vai chutar (vem alguém de carrinho e joga-o longe em
contorções de dores, no meio de uma poça d’água). Foi carregado pra fora.
Fratura no tornozelo.
À noite, mesmo com o pé engessado, apoiando-se em uma bengala, foi
ver a namorada que, na época, morava a um quarteirão de sua casa. O irmão
dela já não o tratou com rispidez. Passou por ele e disse: “Oba!”, com um ar
vitorioso e, depois daquilo, arrefeceu. O casalzinho até podia se sentar na sala
para assistir a programas de televisão. O irmão não permanecia, contudo. Mas
já não prometia “arrepiar aquele bunda-mole”. Pacificamente, Maurício vencera
aquela etapa, embora não imaginasse outras tantas no cotidiano e a que o
fazia disputar sozinho no fliperama.
Se é pra continuar jogando desse jeito, eu não vendo mais ficha! –
argumentou de novo o empregado.
Falou Zé... fica frio, eu vou maneirar.
Senão, daqui a pouco, você quebra essa porra, meu! – emendou irritado,
mas cedeu as fichas a Maurício, jogando o dinheiro na gaveta.
Maurício voltou ao seu brinquedo de ir contra o fogaréu de imagens que
lhe rodopiavam as emoções. Por fim, tinha nas mãos o pescoço daquele
homem careca. Batia-lhe a cabeça contra o chão. Ia arrebentar até que
escorresse toda a raiva de dentro. Era o pai a sua presa. A careca do pai,
brilhando. O próprio, babando a irritação corrosiva sobre o coração de Maurício
em ebulição de ódio. A presa, contudo, ria do filho. Ria? Era o pai? O rapaz
sacudiu-se a cabeça e reparou que focalizava a figura de Sargentelli presa ao
painel da máquina de jogo, como sempre, rodeado de mulatas.
166
Os pensamentos foram vestindo o uniforme da realidade. Maurício
passou a pensar na vida daquele homem que teve tantas mulatas à sua
disposição, até que recebeu um tapa nas costas... Era Benedito, o primo, que
adorava jogar futebol e vinha pra fazer gozação.
Ah, rapaz, o teu Palmeiras num deu nem pro cheiro! Mais um pouco e o
Coringão dava de goleada. E com dez dentro de campo, hein! Porque o juiz, ó,
meteu a mão pra vocês. Mas não adiantou. O timão tava com a macaca ligada.
Claro, tudo cheio de fumo... Teu time entra em campo tudo ligado! –
Maurício reagiu.
Quê isso! É que o “porco” só serve pra comer goleada e o Corinthians
botou só três na rede.
Ah, que nada! Dois pênaltis que o juiz pôs no bolso de vocês, sem
contar um bocado de bola na trave. Faltou sorte. E aquele gol anulado no
segundo tempo?
Que nada!...
Roubo! Roubo no duro, meu. Teu time só metendo a mão mesmo.
Ah, ah, ah... o “porquera” não dá, Maurício. Cê tem que virar corintiano.
Gente fina. Se quiser, eu até arrumo pra você sair o ano que vem na Gaviões
da Fiel, campeã, a maior escola de samba de São Paulo, meu chapa. É
mentira?
Falando Alto, Benedito foi saindo, com seu cacoete de jogar os loiros
cabelos pra trás. Saiu vitorioso. Havia conseguido irritar ainda mais Maurício,
que ficou enlameado pelo escárnio do outro e voltou à sua angústia maior, um
pouco mais sem defesa.
Outra puxada violenta no detonador, a bolinha niquelada correu, as
luzes acenderam-se, o som retorceu-se, os empecilhos entraram em ação, o
Sargentelli riu, Maurício caceteou com as baquetas, a bolinha voltou e os
pontos coloridos foram sendo auferidos no painel vertical. Tudo foi voltando...
Quando havia saído, naquela tarde, o pai estava debruçado sobre o
portão, ali, olhando o tempo, com os dedos acariciando a careca. “Devia estar
mergulhado na frustração – pensou o filho – de ter se tornado um homem
inválido.” Contudo, parecia estar em conluio com a resignação.
Crispim, o pai, depois de trabalhar em oficina de automóvel, quando
jovem, foi um bom motorista de ônibus de longos percursos. Ele conhecia
167
inúmeros estados e quase nunca parava em casa. Por esse tempo, sempre
chegava sorrindo saudades e reencontrava-se com o filho, cheio de satisfação
e amor. Era um homem variado de mulheres. Nenhuma dificuldade contra. Seu
constante trânsito favorecia uma situação equilibrada. Maurício contava com
dezesseis anos quando a notícia agrediu a porta da sala.
Dona Cecília, uma filha de espanhóis, um tanto estabanada, levantou-se
da cama pensando ladrões e passou a mão no revólver que o marido deixara,
esquecida um pouco das recomendações. As pancadas se renovaram violando
o silêncio. Aproximou-se da porta, e, com a arma apontada, ouviu:
Dona Cecília?
Quem é? Quem é? Quem é? – foi o que pôde responder, com seu medo
saltitante.
É do Rápido São Geraldo. É o Jarbas. Só vim avisar que o seu Crispim
tá no hospital. Um acidente...
A vizinhança toda ouviu o disparo. Maurício gritou na cama, em
sobressalto, o empregado de empresa saiu feito louco. Ao chegar gente,
Cecília, mesmo depois de abrir a porta, mantinha nas mãos o revólver calibre
22. Um furo bem acima da fechadura.
Desse dia em diante, Crispim viu desmoronar sua vida de viagens e
aventuras. Cadeira de rodas durante um ano, depois muletas, até que se
tornou coxo, sem resistência para ir muito longe. A idéia de suicídio foi virando
obsessão. Só à custa de insistentes orações ele conseguiu certo controle, sem,
entretanto, se livrar de súbitas impulsões. Quando era instigado a cair nos
braços daquelas investidas, prendia um pouco a respiração, cerrando os
dentes. Minhocas de pulsação agitavam suas frontes. Carregava, até chegar
aos pés da santa, uma enorme tensão e, rezando fervorosamente, ia dela se
livrando aos poucos. Desenvolvera atitudes de verdadeiro devoto, mantendo
sempre uma vela acesa e um copo d’água no oratoriozinho construído em um
canto da sala.
Transformara-se em um homem seco de risadas. Apenas uma nesga de
alegria atingia-o. Era quando dona Matilde passava: “Bom dia seu Crispim!” e
ele respondia: “Bom dia dona Matilde!”, esticando os olhos naquele remelexo
de bunda. Um calor aveludado massageava-lhe o peito. Alguns belos
momentos do passado cafuneavam a memória. Era só. Nessas ocasiões não
168
corria aos pés da padroeira. E estava nesse enlevo – olho vidrado no traseiro
da dona Matilde Matsuda – quando Maurício passou e disse: “Tchau pai!”
Crispim comprimiu-se, disfarçou, e respondeu: “Até logo!” Mas imediatamente
relaxou, voltando àquele prazer tão passageiro.
O distanciamento tornara-se a forma do relacionamento entre pai e filho.
Maurício acomodara-se ao jeito ríspido de ser tratado. Dava o devido desconto
ao genitor, pela fatalidade do destino. Mesmo que respostas a seus
cumprimentos não viessem, o perdãozinho estava garantido. “É a frustração”,
desculpava-o, pensando. Apesar disso, tinha medo da verbosidade violenta do
pai, quando nervoso. Passou por ele naquela tarde, como quem passa por um
cão faminto, segurando um bife. Era o seu futuro. Nele enfeixados os
pensamentos, Maurício tomou o ônibus até a estação Bresser do metrô.
Tentava organizar as idéias. Achava que os pais, convivendo com a namorada,
iam também adorá-la. Barbara era..., mas... Havia, a partir de certa intimidade
com a jovem, tinha adquirido esse tique interior, de interromper um
pensamento desagradável. Olhou pela janela do trem. Uma estria de luz
adornava os prédios ao longe com a nostalgia da tarde. Maurício pensou no
serviço militar cumprido no ano anterior. O trem mergulhou em um túnel
torpedeando infinitos cavalos. Suas dificuldades de emprego sido superada.
Insistira com tenacidade nos inúmeros testes. Depois de longas filas,
conseguira: era meio-oficial de soldador, registrado em carteira.
Por fim, após baldear na Sé, atingiu a Estação Tiradentes. O trem já
deixara o subterrâneo para trás. A noite pintava os lábios com batom
multicolorido e começou a fazer tranças estelares na carapinha escura. O trem
deslizava...
Maurício chegou ao portão. Bárbara aguardava-o. Estava linda. O rapaz
perdeu-se na expansividade dos lábios cheios e úmidos. Depois, acariciou-a no
rosto, sentindo que a luta travada consigo mesmo e os outros não era em vão.
Bárbara valia. “É uma..., mas...” e de novo interrompeu o pensamento, puxando
assunto.
Como é que tá o pessoal da tua casa?
Tudo bem! Pensei que você não viesse.
É, você mudou pra muito longe. Não me acostumei ainda. Mas, tá tudo
bem? E o irmãozinho, tá numa boa comigo?
169
Ah, não liga muito pro João Carlos, não. Ele, até outro dia, falou comigo
– imitou o irmão, engrossando a voz – “Vai pra avenida, Bá”, e me deu carona
na moto dele.
É... – Maurício engoliu a costumeira pedrinha de inveja ao ouvir a
namorada falar na motocicleta do irmão. Mudou o caminho do diálogo.
Vamos, então?
Vamos. Eu só vou pegar minha bolsa e um dinheiro com meu pai.
Não precisa.
Ah, Maurício... Você não é machista, é?
Não... Tudo bem. Vai lá. Eu espero aqui.
Alguns minutos depois, saíram. Bárbara, um pouco preocupada. O pai,
com aquela mania de não levantar os olhos da prancheta sobre a qual
trabalhava, havia dito, estendendo-lhe algumas notas:
Toma. Espero que você não tenha decepção, filha.
Ela se retirara com aquelas palavras penduleando dúvidas. O pai
continuou na sua labuta. Era daqueles que sabiam das dificuldades para subir
na vida. Daqueles que sabiam dos inúmeros obstáculos. Era um que sempre
repetia aos amigos e parentes: “Nós temos de ser não duas vezes, mas três
vezes mais do que eles. Só assim a gente chega lá.” E levava na vida real o
seu princípio. Trabalhava como desenhista publicitário, em média doze horas
por dia: oito na firma, onde havia conseguido o respeito pela competência, e o
restante em casa, pois não lhe faltava trabalho. Tinha as economias na ponta
do lápis, às vezes até provocando atrito com a esposa, por causa do exagero.
Era um duro, centrado em si mesmo e na família, projetando sempre adiante
de si o sucesso financeiro e o respeito profissional. Pouco tempo sobrava para
se ocupar das inquietações dos filhos. Queria-os bem alimentados, bem
vestidos e triunfando nos estudos. O além daquilo, sabia-o pela boca da
companheira à hora em que esta lhe servia o jantar. E foi até um tanto distraído
que, em uma noite qualquer, ouvira a mulher dizer:
Bárbara tá namorando...
Hum?...
Ir bem na escola ela não vai. Mas já anda enrabichada atrás daquele
coisinha que vem aqui.
Precisa cuidar disso.
170
Cuidar disso, cuidar disso... Juvenal, você é que precisa falar com ela!
Ah, Lucinda. Isso é contigo, minha santa. Além do mais, é melhor deixar.
Desde que seja em casa...
O branquelinho inda hoje esteve aqui. O João Carlos anda dizendo que
vai dar uma sova nele.
A palavra “branquelinho” foi responsável por ligeiras rugas na testa de
Juvenal, que arrematou a conversa, dizendo:
Espero que ela não tenha decepção – e acocorou preocupações íntimas
em uma caverna de silêncio, desligando os ouvidos.
Aquela mesma palavra – decepção – imprimiu uma sombra estranha no
otimismo de Bárbara. Nos seus 17 anos, era uma jovem cheia de vida. Mesmo
com a timidez de fundo, sempre acobertada por brincadeiras, sabia conviver
consigo mesma. Sabia? Era uma exímia dribladora da tristeza, da angústia e
de qualquer adversário interior que vestisse a camisa da reflexão, da
introspecção. Bonita era. Admirada muito. Na escola, o que não tinha de notas,
conseguia de amigos. Poucos namorados, pela idade. Maurício era o segundo.
Adorava-o, tinham afinidades; mesmas músicas, anseios e, sobretudo,
coragem para enfrentar as pessoas.
O retorno à sua casa foi, para o rapaz, muito mais longo. Um mal-estar
lutava contra o amor, soltando fagulhas interrogativas. Bárbara percebeu.
Você está legal? – perguntou.
Tudo bem, Bá. Vamos lá conhecer meus velhos. Numa boa... – disse,
sem muita convicção, apesar do esforçado entusiasmo aparente.
Já haviam descido do ônibus e caminhavam em direção à casa do
rapaz. Bárbara parou, o olhar perdido. Afagou-se com as mãos sobre os
cabelos. Soltou o prendedor elástico. Sacudiu a cabeça, desfazendo o coque
lateral. Pensou, de novo, precisava mudar de produto para o alisamento.
Alterou a expressão do rosto. Algum sentimento fisgava-a. era a mesma coisa,
sempre ameaçadora. Lembrou-se de que era a “Chica” na escola – uma alusão
ao filme Chica da Silva. Não se achava em nada parecida com a atriz Zezé
Mota, que vivera a personagem da história. Aceitara o apelido com certo
espinho flutuante. Esteve assim pensando, mas antes que o namorado abrisse
a boca, acionou seus dribles entusiásticos, dizendo a ele:
171
Meu querido, amado, futuro esposo: avante! Os coroas hão de conhecer
a nora mais punk do mundo. Bilu, bilu, bilu... – arregalou os olhos, deu um beijo
em Maurício, fez trejeitos de dança e puxou-o pelo braço. Entraram.
Na sala vazia, Bárbara sentou-se em uma poltrona, cruzando as pernas.
Brincava com as emoções, fazendo caretas, esticando sorrisos. O namorado
foi em direção à cozinha, chamando:
“Mãe!” ...
Bárbara descobriu o oratoriozinho a um canto. A chama da vela bailava.
O passado de novo foi chegando com seu redemoinho de recordações. Um
amontoado de imagens cristalizando-se em um baile ocorrido no Ginásio do
Palmeiras. Era uma promoção da Equipe Chic Show, tendo como astro da
noite a cantora Sandra de Sá. O jovem casal, mais duas amigas de Bárbara, lá
foram. Maurício se entrosou tão bem que, mesmo sem muito jeito, tentou imitar
os passos dos dançarinos, criadores anônimos de uma arte popular da
juventude paulistana. Bárbara, com as lições recebidas do irmão, ajudava o
namorado desajeitado. E veio o momento do show lá pelas 3 horas da
madrugada. A cantora fazia sucesso. Milhares de pessoas acompanharam-na
em sua música de parada; “...Você ri da minha pele/ Você ri do meu sorriso /
Sarará crioulo... / sarará crioulo... / Sarará crioulo ... / sarará crioulo ...”.
Maurício, um pouco avermelhado, disse à namorada:
Vamos lá fora, Bárbara?
Ela, sem entender, foi. Abriu-se compreensiva, por ser a primeira vez
que ele enfrentava o ambiente. Mas, depois que o viu tragar o cigarro percebeu
o incômodo mais profundo. O calor excessivo foi a argumentação vinda com
atraso, e de muleta.
E ali, naquela sala fria, a voz da cantora retornava em ritmo de memória,
instaurando incertezas.
Boa noite! Está pensando na vida? – era dona Cecília.
Boa noite! É... como vai a senhora? Tudo bem?
É... o Maurício falou que você vinha conhecer a gente hoje...
Uma insegurança havia se espalhado repentina pelo ar. As duas se
entreolharam. Portas e janelas do sentimento ao sabor de um vento
inesperado.
172
Aí eu disse a ele: “Traz logo mesmo. Você precisa ir tomando jeito na
vida”. Ah! ... vem aqui pra cozinha. Estou fazendo um bolo pra vocês.
O casal deu-se as mãos e seguiu aquela senhora excitada de
amabilidades súbitas.
Depois de alguns minutos, em que os três cortejavam o cheiro de
chocolate vindo do forno e garimpavam algumas conversas, Crispim
atravessou a sala, chicoteado por um de seus acessos. Ajoelhou-se contrito e,
em fortes sussurros, rezou Ave-Marias entrecortadas de: “Dai-me Paz!” e assim
chegou ao soluço molhado.
A mãe de Maurício tentou acalmar a namorada do filho, desculpando o
“seu velho”. Fechou a porta da cozinha e, em rápidas palavras, justificou a
atitude do marido. Maurício sentiu um tremor. Logo em seguida, o silêncio se
fez na sala. Dona Cecília se foi.
Tá melhor, Crispim? – ao que o marido respondeu apenas suspirando
aliviado, ela continuou com leves afagos: Ah, então vem cá, vem... A namorada
de Maurício tai. Vem conhecer ela. É uma uvinha de graciosa!
Crispim, depois de sentar e tomar um copo d’água que ficava cheio ao
lado da santa, aceitou o convite sem muito atinar. Era mais uma forma de se
distanciar de seus pensamentos suicidas, já um tanto derrotados pelas
orações. Fechou a porta de entrada, que deixara aberta ao passar, e
caminhou, seguindo Cecília.
Bárbara levantou-se e tentou sorrir para aquele homem careca e de
olhos injetados. Foi correspondida ao inverso. Recebeu um olhar engordurado
de menosprezo. Mauricio engasgou-se com um imenso vazio. Depois vieram
as palavras ríspidas, seguidas de uma salivação pastosa que se foi formando
em Crispim no canto da boca:
Você tá louco, rapaz! Meu único filho e já vai querer sujar a família?!
Idiota! Não quero saber desse tipo de gente aqui em casa! Não admito preto na
família! Não admito! – e deu um forte murro na mesa.
Bárbara saiu desesperada. Maurício ficou atônito, até conseguir dizer:
O senhor... O senhor é um frustrado!
E recebeu um bofetão. Depois outro.
173
O que é isso, rapaz?! – gritou o empregado do fliperama, ao ver
Maurício esmurrando o painel da máquina de diversão. E correu para lhe
segurar os punhos. O rapaz deu por si e o vidro quebrado. Assustado,
desvencilhou-se e saiu correndo.
Bárbara, em um canto de seu quarto, envolta no translúcido das
lágrimas, enxergava-se menina, escondida no porão da casa, esfregando
cândida nas pernas pra ver se a cor saía. Carregando seus 90 anos coroados
de lucidez, a avó surpreendeu-a:
Que é que você tá passando aí, menina? Tá ficando doida, tá?
Ahn?! – assustou-se com a porta abrindo A lembrança evaporou-se.
O que foi, Bárbara, minha filha?! Você está chorando...? – era a mãe
que entrara no quarto. Abraçaram-se.
Naquele momento, Maurício, o coração em tiras, caminhava sem rumo
pelos braços da noite. Dona Cecília raspava o carvão da forma, enquanto o
marido, tentando se curar de um outro acesso, ajoelhado, rezava aos pés de
nossa Senhora Aparecida.
(CUTI, Contos Crespos. São Paulo: Mazza Edições, 2008)
174
ANEXO 2 – COMENTÁRIOS REFLEXIVO-CRÍTICOS DOS ALUNOS SOBRE
AS AULAS COM LETRAS DE RAP
COMENTÁRIO – ALUNO N
“A professora trabalhou com a gente três letras de rap. O que eu mais gostei foi
que eles falam a verdade, mostram como as pessoas são e os problemas do
mundo.Aprendi que o rap fala da vida, ensina as pessoas a pensar e a não ter
preconceito, me fez pensar sobre a dificuldade do Brasil, sobre o preconceito e
sobre os problemas sociais”.
COMENTÁRIO – ALUNO E
“Aprendi, com as letras de rap que a professora trabalhou, que devemos
respeitar os negros e indígenas. O rap é um jeito de as pessoas pobres e
negras se manifestarem. Elas fazem críticas sobre como a vida delas é difícil e
como passam por dificuldades na família, sofrem discriminação em vários
lugares por causa da sua cor e das sua origens. Achei importante trabalhar isso
na escola, assim podemos levar pra nossas casas,ensinar nossos familiares e
os irmãos, jovens do futuro.”
COMENTÁRIO – ALUNO C
“Achei interessante abordar os assuntos da realidade das ruas e a professora
usou o rap para demonsrar isso, porque é uma música que expressa o
pensamento do povo que mora nas periferias, porque o povo (a sociedade) tem
preconceito de quem vem de classe baixa. As pessoas não aprendem só com
livros “formais”, mas também com letras de música de pessoas que passaram
por dificuldades.”
COMENTÁRIO – ALUNO D
“Durante as aulas sobre o rap vimos a realidade das ruas. O racismo, o
preconceito são sérios problemas no Brasile e com os raps vi que não é fácil
passar por esses problemas. E nós, como sociedade, deveríamos aprender
que nenhuma pessoa é superior à outra, não importa a cor, vida financeira ou
cultura. O que mais me chamou a atenção foi a parte que li sobre o índio
Galdino, dele ter sido queimado vivo. Como pode existir pessoas desse tipo?
175
Só porque ele era um índio, não tinha aparência muito boa? Enfim... Isso não
dá o direito dessas pessoas fazerem isso com o pobre inocente. Isso foi um
absurdo! Em minha opinião, acho que há tempo de mudar isso, não é difícil, se
todos fizessem sua parte, sem prejudicar ninguém, ajudando uns aos outros e
assim formar um Brasil melhor.”
COMENTÁRIO – ALUNO A
“Durante as aulas que trabalhamos com letras de rap , o que eu mais gostei foi
que em vez de falarem sobre drogas, armas e outras coisas, incentivaram a
lutar contra o peconceito, contra o racismo e cada vez dão mais conselhos pra
sobreviver nesse mundo. Eu aprendi que o rap nasceu como forma de protesto,
luta, guerra contra o preconceito, é o jeito dos excluídos se manifestarem. Eu
acho que deve se trabalhar com a cultura do povo na escola, porque é um jeito
de valorizar a cultura e o jeito das pessoas serem.”
COMENTÁRIO – ALUNO B
“Nas aulas que trabalhamos a cultura do rap, achei interessante que nos três
raps que estudamos trazia uma crítica direta, que fazia a gente pensar e
debater sobre ele. Aprendemos como fazer rap, sua origem, como descobrir e
seu significado. Aprendi que no rap podemos descobrir coisas da cultura dos
outros, sem ser só coisa teórica e também como o rap é importante para nossa
cultura. Refleti muito sobre muita coisa da sociedade, sobre os defeitos que
compõem o nosso país e como devemos agir. Eu achei bastente interessante
ter trabalhado isso na sala de aula, porque saímos da mesma de sempre, que
é nos livros didáticos e debatemos sobre a sociedade de um modo diferente.”
COMENTÁRIO – ALUNO K
“Eu gostei das letras de rap, pois elas mostram outra verdade, uma verdade até
sombria do descobrimento do Brasil e mostram o que aconteceu com os
escravos, entre outras coisas, o que rendeu uma aprendizagem a mais.
Aprendi muito, principalmente sobre o rap, que era coisa que eu não sabia
quase nada e não me interessava, agora, além de saber, comecei a ouvir
alguns raps. Me motivou reflexão sim, mas apesar de não ouvir muito rap, na
verdade, já tinha discutido esses assuntos antes, só que de outra forma. Os
176
assuntos abordados nas letras poderiam ser tratados em filme, novela, jornais,
histórias, livros, séries, revistas, víedeos, história em quadrinhos, charge , até
mesmo contando uma história, em fotos e conversando com os amigos, em
sala de aula, professores, pais e familiares.”
COMENTÁRIO – ALUNO O:
“ O mais interessante [sobre as aulas com letra de rap] é que sabemos o que
aconteceu com os negros. Aprendi que o preconceito não faz você melhor que
ninguém, que cor de pele não quer dizer se você é rico ou ladrão, a cor não
define o que você é. Refleti que não devemos julgar as pessoas sem conhecê-
las, que não devemos chingar as pessoas de “macacos” ou “preto”. É
importante falar disso na escola porque descobrimos o que os índios e os
negros passaram e aprendemos sobre.a cultura deles, os rituais, tudo, até
algumas brincadeiras deles podemos aprender”.
COMENTÁRIO –ALUNO T
“Durante as aulas a professora de português, ao invés de trabalhar textos,
passou letras de rap para a gente refletir um pouco. O que eu achei mais
interessante nas letras de rap é que eles [os rappers] contam a relidade do que
está acontecendo no Brasil e também aprendi que é uma forma dos negros
criticarem as coisas. Com as letras eles demonstram que estão sofrendo, são
julgados pela cor e não pelo caráter. As pessoas deveriam ver eles pelo seu
caráter e não pela aparência ou pela cor. É importante trabalhar com a cultura
do povo (o rap) na escola porque é um jeito de dar valor ao que eles fazem.”
COMENTÁRIO – ALUNO U
“No começo eu achei que não ia ser legal, depois, no decorrer das aulas acabei
mudando de ideia. Várias letras interessantes, na nossa linguagem, gírias
novas. Achei importante trabalhar com o rap nas aulas, pra gente pensar sobre
o preconceito e refletir sobre a desigualdade.”
177
ANEXO 3 – FOTOS59 DAS PRODUÇÕES DA RELEITURA DA BANDEIRA BRASILEIRA E MURAL:
FOTO 1
FOTO 2
FOTO 3
59
Acervo da pesquisadora
178
FOTO 4
FOTO 5
FOTO 6
179
FOTO 7
FOTO 8
FOTO 9
180
ANEXO 4 – LETRAS DE RAP PRODUZIDAS PELOS ALUNOS
Letra 1 – Dupla A
181
Letra 2 – Dupla B
182
Letra 3 - Dupla C
183
Letra 4 – Dupla D
184
Letra 5 - Dupla E
185
Letra 6 - Dupla F
186
Letra 7 – Dupla G
187
Letra 8 – Dupla H
188
Letra 9 – Dupla I
189
Letra 10 - Dupla J
190
Letra 11 – Dupla K
191
ANEXO 5 – FOTOS DOS MURAIS COM LETRAS DE RAP
FOTO 10
FOTO 11
192
FOTO 12
FOTO 13
193
FOTO 14
FOTO 15
194
FOTO 16
FOTO 17
195
ANEXO 6 – FOTOS DA APRESENTAÇÃO DAS LETRAS DE RAP
FOTO 18
FOTO 19
196
FOTO 20
FOTO 21
197
ANEXO 7 – FOTOS PESQUISA DE CAMPO: BONECAS NEGRAS À VENDA NAS LOJAS DA CIDADE
FOTO 22
FOTO 23
198
FOTO 24
199
ANEXO 8 – QUESTIONÁRIO APLICADO AOS ALUNOS
MINICENSO DA ESCOLA
Nome: __________________________________. Ano: ____ Turma:____.
1) Sexo: ( ) masculino ( ) feminino Ano de nascimento: ___ ___.
2) Número de irmãos: ( ) nenhum ( ) 1 ( ) de 2 a 4 ( ) mais de 4
3) Com quem você mora? ( ) pais ( ) mãe ( ) pai ( ) parentes
( ) avós ( ) responsável
4) Como você vem à escola? ( ) de carro ( ) de ônibus ( ) de bicicleta ( ) a pé ( ) outras formas
5) Fora do horário das aulas, a que atividades você dedica mais tempo?
( ) brincar ( ) estudar ( ) trabalhar em casa
( ) esporte ( ) trabalhar fora de casa ( ) outra atividade
6) Fora do horário das aulas, quanto tempo por dia você dedica aos estudos e à leitura?
( ) menos de 1 hora ( ) 1 hora ( ) 2 horas ( ) 3 horas ( ) mais horas
7) Qual a sua cor/raça? ( ) branco ( ) preto ( ) pardo ( ) amarelo ( ) indígena
8) Qual é sua descendência? ( ) indígena ( ) Afro ( ) Italiana
( ) Alemã ( ) Polonesa ( ) Japonesa ( ) Outras – Qual? ___________________.
9) Já fez uso de drogas? ( ) sim ( ) não
Já ingeriu bebida alcoólica? ( ) sim ( ) não Se sim, desde que idade? ______.
10) Que assuntos você considera importantes para serem trabalhados na escola?
( ) drogas ( ) bullying ( ) sexualidade ( ) profissões
( ) outros – Quais? ________________________________________________________.
11) O que você acha que falta na escola? ( ) professores ( ) salas de aula
( ) equipamentos de áudio e vídeo ( ) lugar para brincadeiras e esportes
( ) material escolar ( ) atividades culturais e esportivas
( ) outra resposta
13-O que influencia negativamente a sua aprendizagem e poderia melhorar?
____________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
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