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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
RACHEL GADELHA WEYNE
O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ:
CONFORMAÇÕES, CONFIGURAÇÕES E PARADOXOS.
FORTALEZA - CE
2013
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RACHEL GADELHA WEYNE
O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ:
CONFORMAÇÕES, CONFIGURAÇÕES E PARADOXOS.
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e
Sociedade, da Universidade Estadual do
Ceará, como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Políticas Públicas e
Sociedade.
Orientador: Alexandre Barbalho.
FORTALEZA - CE
2013
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4
Felipe
Que durante o período em que trabalhei nessa pesquisa, também empreendeu uma travessia
em busca de si mesmo. Para você, meu amor e o desejo que encontre sua estrela guia e a paz
de um porto seguro.
Aos jovens produtores
Por tudo que ainda está por vir.
Que vocês percorram um caminho mais claro, mais potente, mais produtivo e mais criativo.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Mestre
A força que move e nos mantêm eternamente aprendizes.
Rui e André
Pelo carinho e cuidado. Apoio incondicional e sensibilidade.
Por compreenderem minha ausência. E mais do que tudo, pelo amor diário.
A todos os produtores culturais entrevistados
Minha gratidão pela confiança, sinceridade e entusiasmo.
Por tudo o que vocês são, fazem e representam para a cultura do Ceará.
Alexandre Barbalho
Apoio e sensibilidade. Conhecimento e dedicação.
Presença amiga, competente e segura na orientação deste trabalho.
Minha família: Cecilia, Osvaldo, Gadelhas e cia.
Meu abrigo constante. Amor e apoio incondicional.
E por terem me ensinado a ir à busca dos próprios sonhos.
M. Silvio e amigos da União
Pela compreensão nas ausências, pela forte presença e por ter para onde voltar.
Ana Carla Fonseca, Ana Stela Câmara, Pedro Rogério e Sylvio Gadelha
Por terem acreditado e por terem me feito acreditar.
Maria Amélia Mamede, Lucas Benedecti, Ana Jouselini Santos e amigos da Via de
Comunicação
Por nossa história compartilhada. Pela compreensão, paciência e suporte.
João Domingues e Kadma Marques
Pelas observações precisas, sensíveis e construtivas que enriqueceram esse trabalho.
Jocastra Holanda, representando os colegas, servidores e professores do MAPPS
A boa companhia na viagem. Em nome da alegria que há no conhecimento.
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RESUMO
Este trabalho fornece elementos para uma melhor compreensão do campo da produção
cultural no Ceará e de sua relação com as políticas públicas de financiamento à Cultura do
Brasil. Objetiva refletir sobre o lugar do produtor cultural e a sua importância no sistema da
cultura e investigar como se configuram as relações entre os atores no interior do campo,
identificando suas tensões e especificidades. Para isso, analisará como o sistema de
financiamento à Cultura, especialmente às leis de incentivo, influenciaram (e continuam
influenciando) o campo da produção cultural no estado do Ceará. A pesquisa tem como base
teórica principal os estudos de Pierre Bourdieu, na sociologia da cultura, e a bibliografia
contemporânea produzida sobre o tema. Os depoimentos dos produtores culturais cearenses,
coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, são o fio condutor que permitirá a
inserção no campo e o fornecimento dos elementos necessários à compreensão e visibilidade
da atividade da produção cultural.
Palavras-Chave: Política Cultural. Financiamento à Cultura. Produção Cultural. Organização
da Cultura. Campo da Cultura.
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ABSTRACT
This paper provides elements for a better understanding of the field of cultural production, the
process of the activity's conformation in the state of Ceará and its relationship with public
funding policies to culture. It aims to reflect upon the place of the cultural producer and its
importance in the culture system and investigate how to set up the relations among actors
within the field, identifying tensions, specificities and paradoxes. In order to do that, it will
analyze how the system of culture financing, especially the incentive laws and tally sheets,
have influenced (and continue to influence) the field of cultural production in Ceará. The
research is primarily based on theoretical studies of Pierre Bourdieu's - sociology of culture -
and contemporary literature produced on the subject. The testimony of Ceará's cultural
producers collected through semi-structured interviews are the common thread that allows the
insertion in the field and the provision of the necessary elements to the understanding and
visibility of contemporary cultural production activity.
Keywords: Cultural Politics. Financing of Culture. Cultural Production. Organizational
Culture. Field of the Culture.
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LISTA DE SIGLAS
CEFIC - Certificado Fiscal de Incentivo à Cultura
CFC - Conselho Federal de Cultura
CNIC - Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
CONCINE - Conselho Nacional de Cinema
CONCLA - Comissão Nacional de Classificação
CPC- Centros Populares de Culturas
CPC - Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural
FEC – Fundo Estadual de Cultura
FGV - Fundação Getúlio Vargas
FICART - Fundo de Investimento Cultural e Artístico
FNC - Fundo Nacional de Cultura
FUNARTE – Fundação Nacional de Artes
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
ICMS - Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação
de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação
IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana
IR - Imposto de Renda
ISS - Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza
LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
LOA - Lei Orçamentária Anual
MAM – Museu de Arte Moderna
MASP – Museu de Arte de São Paulo
MEC – Ministério da Educação
MINC – Ministério da Cultura
ONU – Organização das Nações Unidas
PAC- Programa de Ação Cultural
PEC - Proposta de Emenda à Constituição
PNC – Plano Nacional de Cultura
PRONAC - Programa Nacional de Apoio à Cultura
SCDC - Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural
SECULT - Secretaria da Cultura do Estado do Ceará
SECULTFOR - Secretaria de Cultura de Fortaleza
SECULTFOR – Secretaria de Cultura de Fortaleza
SEFAZ - Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará
SEFIC - Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura
SID - Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural
SIEC - Sistema Estadual de Cultura.
SNC- Sistema Nacional de Cultura
UECE – Universidade Estadual do Ceará
UNE - União Nacional dos Estudantes
UNESCO - Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
UNIFOR - Universidade de Fortaleza
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 FINANCIAMENTO À CULTURA 24
2.1 Financiamento à Cultura na sociedade contemporânea: modelos
paradigmáticos.
29
2.2 Políticas de incentivo à Cultura no Brasil: leis e editais. 31
2.3 Políticas culturais e financiamento à Cultura no Ceará 43
2.4 Breves considerações sobre o sistema de financiamento à Cultura no
Brasil
50
3 O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL E AS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE FINANCIAMENTO À CULTURA
60
3.1 Compreendendo o lugar: percursos e nomeações 64
3.2 Produção cultural: uma atividade complexa e ainda em formação 71
3.3 As políticas públicas e a produção cultural no Brasil 82
4 O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ 99
4.1 Percursos e conformações 107
4.2 Configurações e paradoxos 132
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 149
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 154
11
1 INTRODUÇÃO
A percepção do potencial estratégico da Cultura para o desenvolvimento humano,
social e econômico marcou o campo cultural nos últimos anos. As políticas públicas passaram
a ser elaboradas a partir de uma visão transversal, abordando suas interfaces com demais
setores - Economia, Política, Turismo, Tecnologia, Comércio -, requerendo atores mais
qualificados e com visão multidisciplinar.
As diretrizes estabelecidas durante a gestão da cultura do governo Luís Inácio
Lula da Silva (2003-2010) possibilitaram a ampliação de um mercado cultural, com gradativo
deslocamento de estratégias e ações dos centros urbanos nacionais para outras regiões e
pequenos municípios no País. A possibilidade de dar vazão a essa imensa demanda represada,
impôs uma maior organização do sistema, tornando cada vez mais complexas as relações de
troca e de poder no campo social.
O Ceará viveu e absorveu, a seu modo, todas as políticas públicas direcionadas à
cultura no País nas últimas décadas. Sede da primeira Secretaria da Cultura do Brasil, criada
em 1966, o Estado possui um histórico de gestão pública da cultura que se funda no governo
militar, perpassa o período da democratização do País e a política neoliberal de Fernando
Henrique, até alcançar as diretrizes socioculturais do governo do Partido dos Trabalhadores de
Luís Inácio da Silva e de Dilma Rousseff.
Neste período, houve uma expressiva mudança no campo cultural no Estado. As
produções amadoras observadas no trato com as expressões artísticas, a ausência e/ou
fragilidade das políticas públicas e a dependência direta de recursos do Estado foram sendo
gradativamente alteradas com a criação dos mecanismos de incentivo à Cultura, que
introduziram novos agentes, procedimentos e práticas, o que contribuiu para a criação de
sistema cultural mais dinâmico. De uma fase onde a Arte e a Cultura tinham forte componente
ideológico de resistência, passou-se a um regime, sob a égide das leis de incentivo, onde se
valorizavam projetos com maior potencial de visibilidade e retorno para seus investidores,
destacadamente na gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).
Posteriormente, já no mandato do presidente Lula (2003-2011), propunha-se uma
nova concepção política onde cada cidadão era, em potencial, um produtor de cultura. Novos
valores eram atribuídos à cultura onde se exaltava seu poder de inclusão, acessibilidade,
geração de renda e desenvolvimento social. Para atender a essas diretrizes, as políticas
públicas investiram esforços no lançamento de editais, instrumentos públicos de seleção de
12
projetos culturais. Essa nova modalidade de financiamento também provocou mudanças no
campo, tanto pela sua capacidade de direcionar o apoio a segmentos específicos de interesse
do Estado, como também pela possibilidade de acesso a inúmeros agentes, que não
conseguiam viabilizar seus projetos por meio das leis de incentivo.
Atualmente, o sistema de financiamento à Cultura no Brasil e no Ceará tem como
base principal esses dois recursos, que sustentam não só os projetos propostos pela sociedade
civil, os produtores culturais e a classe artística, mas, muitas vezes, as próprias ações de
interesse público. Os dois mecanismos têm sido responsáveis por diversas iniciativas
importantes na área da Cultura, mas também por inúmeras distorções, problemas e
instabilidades no próprio campo, que a despeito de observar grandes mudanças, não
conseguiu produzir as alterações estruturais necessárias para consolidar suas conquistas.
Todas essas políticas repercutem, em maior ou menor grau, no sistema da Cultura
como um todo. Sistema aqui entendido tal qual proposto por Albino Rubim (2005, p.16), que
nomeia ações e atividades essenciais para o desenvolvimento da cultura, a saber: 1. Criação,
inovação e invenção; 2. Transmissão, difusão e divulgação; 3. Preservação e manutenção; 4.
Administração e gestão; 5. Organização; 6. Crítica, reflexão, estudo, pesquisa e investigação e
7. Recepção e consumo. Ou seja, um conjunto complexo, pulsante e interligado, que precisa
funcionar de maneira sistêmica, com a ativação de todas as suas instâncias. Conjunto que
forma o ambiente onde se dá a correlação de forças entre a produção cultural e as políticas
públicas de cultura, configurando-o como espaço de tensões, interatividade, transversalidade e
dinamismo.
Entre as inúmeras mudanças que se processaram, ao longo desse percurso
destacamos, na instância da organização da cultura, a criação de uma nova categoria de
trabalhadores: os produtores culturais. Atuando profissional e diretamente no aspecto da
administração da cultura, cabe a estes profissionais a responsabilidade de criar e/ou “tornar
exequível” uma ideia no campo das Artes ou da Cultura, cuidando de todas as etapas de que
esta necessita para se tornar realidade, desde o planejamento até a administração dos recursos
humanos, técnicos e financeiros. São inúmeras providências para projetos diversos que
demandam, de acordo com suas características singulares, reflexões e respostas imediatas
num ambiente de tensão e diálogo permanentes.
Mesmo que essa função já estivesse presente no campo da cultura, não era
considerada uma atividade profissional em si, mas um meio necessário à efetivação dos
projetos artísticos idealizados, realizada, portanto, de maneira informal, amadora e precária.
As próprias mudanças na concepção de cultura, a instauração de políticas públicas e a criação
13
dos mecanismos de financiamento são alguns dos responsáveis pelas alterações que vem se
dando no campo da produção cultural.
O prestígio e a distinção social que a Cultura adquiriu nesse processo, categorias
utilizadas por Pierre Bourdieu, geraram o interesse de novos agentes que, em sua maioria,
ingressaram no mercado sem formação adequada, impelidos por aptidões, qualidades
empreendedoras e afinidades pessoais. São diversos percursos individuais que se configuram
como disposições incorporadas, que sugerem e induzem escolhas e se traduzem no conceito
de habitus, de Bourdieu, entendido como “conjunto de disposições incorporadas e princípio
gerador de práticas”. (BOURDIEU, 2005, p.87). Conceito fundamental para nortear as
reflexões acerca da formação dos agentes, que atuam no interior do campo da produção
cultural, no sentido de suas disposições internas e construção de práticas coletivas.
É importante lembrar que o exercício da produção cultural apresenta
características complexas, inerentes à função de dar forma e administrar bens materiais e
imateriais, subjetividades, talentos individuais, processos criativos e recursos escassos. Assim,
é imprescindível que, ao analisarmos a organização da Cultura, seja considerada a sua própria
natureza que se traduz num campo mutável, plural e multifacetado.
Esse agente, denominado aqui de produtor cultural, tem um papel central no
sistema da cultura, uma vez que cabe a ele agir como intermediário, conector e elemento que
viabiliza e da materialidade e efetividade a diversos projetos e iniciativas culturais. É aquele
que põe em movimento os anseios culturais da sociedade e da classe artística e cede
materialidade às políticas culturais.
Apesar de sua relevância, observamos que não há ainda uma percepção social e
política de sua função no sistema, o que repercute diretamente na pouca visibilidade da
atividade, nas condições precárias em que esta é realizada e também na formação insuficiente
e ainda sem um campo de conhecimento consolidado.
Mas, tão grave quanto à ausência de formação específica para o exercício desta
atividade, é a escassa bibliografia sobre o tema e a pouca compreensão do papel do produtor
cultural e de sua importância do momento organizativo no sistema da Cultura. Torna-se, pois,
importante aprofundar o estudo sobre esse lugar, suas possibilidades de contribuição efetiva
no sistema cultural vigente e como essa instância tem sido conformada pelas políticas
públicas em nosso País.
Segundo Bourdieu (2005), a história da vida intelectual e artística de uma
sociedade pode ser contada por meio da transformação de seus bens simbólicos e da crescente
autonomização do seu sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens
14
simbólicos. Esse processo é construído por agentes num contexto localizado social e
politicamente, conforme descreve o autor:
[...] as funções que cabem aos diferentes grupos de intelectuais e artistas, em função
da posição que ocupam no sistema relativamente autônomo das relações de
produção intelectual ou artística, tendem cada vez mais a se tornar o princípio
unificador e gerador (e, portanto, explicativo) dos diferentes sistemas de tomadas de
posições culturais e, também, o princípio de suas transformações no curso do tempo.
(BOURDIEU, 2005, p.99).
Trabalhamos numa perspectiva de que essas construções implicaram na busca por
legitimação cultural, com hierarquia entre áreas, obras e competências e que essa estrutura
afetou e é afetada pelas relações objetivas entre os produtores de bens simbólicos, as relações
entre os produtores e as instâncias de legitimação, e as relações objetivas entre as diferentes
instâncias de legitimação (BOURDIEU, 2005). Relações que repercutiram na crescente
exigência de profissionalismo e na necessidade de absorção de novos conhecimentos,
perceptíveis no delineamento de linhas de atuação profissional e na feição dos projetos
realizados que, muitas vezes acompanham, moldam-se e atendem às políticas culturais
vigentes.
Compreendemos que, ao mesmo tempo em que os produtores culturais tiveram
sua atuação moldadas pelas respectivas políticas públicas, também trouxeram novas
conformações ao campo da Cultura, criando projetos culturais e demandando respostas e
posicionamentos do poder público. Assim, um importante fluxo de forças se estabeleceu no
período recente do Brasil, em uma intensa relação de troca e interdependência, nem sempre
harmoniosa e convergente. Segundo Maria Helena Cunha:
Existe uma relação muito próxima entre as transformações sociopolíticas e históricas
das sociedades com o fortalecimento do mercado cultural e com a expansão da
capacidade de produção artística. Associa-se a esse cenário as transformações econômicas de âmbito global, que criaram as condições para o surgimento de novos
agentes que compõem as categorias profissionais do campo da cultura – nesse caso o
gestor cultural -, o que, consequentemente, altera a estrutura desse campo
profissional. (CUNHA, 2007, p.182).
Todas essas configurações implicam na produção de diferentes saberes, rotinas e
percepções sobre o próprio campo da produção cultural, o que repercute também na
impossibilidade de uma classificação única da categoria. Agentes que, na sua diversidade
natural, com seus distintos habitus influenciaram e foram também influenciados pelas
políticas públicas e diferentes contextos sociais e políticos.
15
Influências que geram tensões em um processo de interação entre múltiplos
agentes em relações de poder e busca de espaço em um campo social. Nesse espaço
relacional, diferentes saberes se incorporam e interagem dentro de um campo de forças, onde
atuam vários atores em disputas por espaço, reconhecimento e posições, com interesses
convergentes ou não, em constante mutação. Debatem-se no cotidiano do campo da produção
cultural disputas por verbas, crescentes exigências de conhecimento, produção de novos
discursos, tensão e luta permanente por prestígio, reconhecimento e apoio.
A complexidade do campo pode ser também observada: na atuação dos
produtores culturais em diferentes áreas das linguagens artísticas, o que reflete na
heterogeneidade de contextos e percepções; nas diferentes posições que os produtores ocupam
em um mesmo campo que abriga autônomos, prestadores de serviços, proprietários de
empresas culturais e gestores de organizações não governamentais que atuam na área cultural,
todos com demandas específicas e diferenciadas; e ainda outra variedade que se configura na
própria forma de inserção no setor da cultura, que abriga produtores terceirizados por
projetos, produtores/gestores que se concentram na produção de seus próprios projetos e uma
terceira categoria, que realiza projetos para diversos clientes como forma de manter as
empresas em atividade enquanto viabilizam suas próprias iniciativas.
Mesmo os que atuam nas áreas afins, além de compartilharem afinidades e
práticas, disputam com os mesmos agentes políticos e econômicos a aprovação de seus
projetos, a viabilização de sua atividade profissional e o reconhecimento e distinção de suas
realizações e iniciativas culturais.
Na maioria dos casos essas posições são cambiantes, sobrepostas e se agrupam,
conforme os fluxos de trabalho e as diferentes solicitações e contextos. Cada uma dessas
subáreas, apesar de compartilharem entre si processos semelhantes, demanda conhecimentos
específicos. Segundo Nádia Gonçalves e Sandro Gonçalves:
Cada elemento do campo é um agente, e os agentes de um determinado campo
partilham um conjunto de interesses e capital comuns, mais fortes que os
antagonismos que possam ter, ao mesmo tempo em que se trava uma luta concorrencial decorrente de relações de poder internas ao campo. Todos os campos
caracterizam-se por possuírem características próprias, com dinâmicas, regras,
capitais específicos e por um polo dominante e outro dominado, com possíveis
gradações intermediárias e conflitos constantes, e definidos de acordo com seus
valores internos. (GONÇALVES, Nádia; GONÇALVES, Sandro, 2011, p.48).
Cientes da complexidade e amplitude da trama, que tece o campo da produção
cultural, utilizamos as teorias de Pierre Bourdieu para nortear esta reflexão e subsidiar nossos
16
questionamentos com base na sociologia da cultura. Alguns de seus conceitos são de
fundamental importância para a elaboração teórica desta pesquisa, destacando-se dentre eles
as noções de campo e subcampo, entendidos como espaço social onde se desenham as
trajetórias dos produtores. O autor assim define espaço:
[...] é de fato diferença, separação, traço distintivo, resumindo, propriedade
relacional que só existe em relação a outras propriedades. Essa ideia de diferença, de separação, está no fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições
distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às
outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou
de distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre
[...] (BOURDIEU, 2001, p.18).
Nesse trabalho, investigaremos esse espaço por meio de uma perspectiva que
posiciona o produtor cultural como elemento central no campo, uma vez que consideramos
que este impulsiona e cede materialidade as demais instâncias. A escolha se justifica porque,
apesar de sua centralidade, o produtor cultural ainda é um elo pouco percebido neste sistema.
Tanto pelo caráter recente da atividade, como pela escassez de instituições formativas e até
pela pouca de compreensão dos processos e singularidades da própria atividade.
Procuramos, então, compreender como as distintas políticas culturais,
destacadamente aquelas relacionadas ao financiamento da Cultura, influenciaram as
conformações do campo da produção cultural no Ceará. O que nos instiga é o desejo de
investigar como estas políticas impactaram e ainda impactam na produção cultural, não só no
aspecto do desenvolvimento da atividade e ampliação do campo, mas também na indução de
discursos, valores e fazeres.
Interessa-nos identificar e revelar a multiplicidade e complexidade de relações que
se estabelecem, especialmente nos aspectos que dizem respeito às tensões e disputas no
âmbito do financiamento à Cultura, como se configuram e o que podem revelar sobre a
própria categoria e o campo da produção cultural, pois acreditamos - como assegura Bourdieu
- que:
Não é demais afirmar que a história do campo é a história da luta pelo monopólio da
imposição das categorias de percepção e apreciação legítimas; é a própria luta que
faz a história do campo; é pela luta que essa se temporaliza. (BOURDIEU, 2008,
p.88).
É, pois, essa luta e essa trajetória que nos propomos a conhecer. Como o Ceará
tem experiências relevantes na gestão pública da cultura, bem como projetos culturais
reconhecidos nacionalmente, acreditamos que se faz necessária e pertinente uma reflexão
17
acerca do processo de criação deste segmento profissional e da experiência acumulada por
meio de tentativas, acertos e falhas nos caminhos percorridos.
Neste sentido, consideramos extremamente importante aprofundar o
conhecimento acerca dos frágeis mecanismos em que esta profissão se sustenta, bem como
sua complexa relação de interdependência com as políticas públicas de financiamento à
Cultura. Assim, esta pesquisa busca trazer novos olhares sobre essa realidade profissional,
focando mais diretamente em seus elementos constitutivos e suas interfaces com as políticas
públicas vigentes, colaborando para a compreensão e visibilidade do sistema cultural em seu
aspecto organizativo.
É este cenário sobre o qual nos debruçamos em busca de resposta para relevantes
indagações: qual a influência das políticas públicas de financiamento à Cultura no campo da
produção cultural no Ceará? Quais os elementos constitutivos desse novo campo e de que
forma se estabelecem essas relações de poder e (inter)dependência entre seus agentes, no
caso, os produtores e o poder público? Quais as disputas e tensões que ocorrem no interior do
campo? Estas são indagações que ganham maior premência na medida em que nos
consideramos intrinsicamente necessitados destas respostas, não só como pesquisadora, mas,
também, como produtora cultural e partícipe de todo esse processo estudado.
Ao observarmos o campo da produção cultural no Ceará, desde meados da década
de 80, temos acompanhado as distintas etapas descritas na pesquisa e vivenciado, no exercício
desta respectiva atividade as novas e crescentes demandas do mercado. Nesse cenário cultural
temos sofrido um processo de “profissionalização” e sentimos os reflexos causados no
exercício dessa atividade diante das diferentes políticas culturais, assim como os principais
momentos e desafios do campo da produção cultural hoje.
Estivemos à frente e/ou participamos de relevantes projetos culturais realizados no
Ceará nesse período e pudemos perceber, em seu próprio interior, o processo de
complexificação do campo, as disputas e tensões, as crescentes exigências de aperfeiçoamento
técnico e a escassez de conhecimento teórico, que nos impeliu na busca de novos espaços de
conhecimento e atuação política para fazer frente aos crescentes desafios do campo cultural.
Desta forma, essa pesquisa surge como uma necessidade de gerar conhecimento e reflexão
sobre uma ampla experiência empírica e vivencial. A nossa experiência em produção cultural
facilita o processo de imersão e a própria navegação no campo.
É importante destacar alguns fatores que se apresentam como as maiores
dificuldades para a realização deste trabalho: a contemporaneidade dos acontecimentos
estudados, o que torna mais difícil uma compreensão retrospectiva e objetivada; e a ausência
18
de instituições consolidadas na área, principalmente no âmbito da produção de conhecimento
científico do setor, o que repercute na escassez de produção teórica sobre o tema. Porém,
nenhuma delas é tão relevante como o caráter amplo, multiforme e complexo, inerente ao
campo da produção cultural, nosso objeto de estudo.
Fizemos escolhas para configurar o campo estudado em um universo de
possibilidades e priorizamos recortes que atendessem ao nosso objeto de interesse. Adentrar
no campo da produção cultural nos envolveu tal qual uma investida no fundo do mar, envolto
em seres desconhecidos, diversos, com uma variedade incomensurável de formas e cores. Em
qualquer lugar que se penetre nas profundezas do oceano, a possibilidade de descoberta será
diferenciada, condicionada ao instante, a profundidade, a localização, as correntes, ao clima e
a outros aspectos que nos fogem ao comando. Será sempre uma aventura misteriosa e
enigmática essa expedição marítima e, a cada investida, novos cenários e seres se
descortinarão, bem como diferentes descobertas sobre o que pulsa e vive no fundo do mar e,
em nenhuma, a possibilidade do conhecimento pleno e definitivo. Essa analogia traduz nossa
percepção e posicionamento sobre a dificuldade metodológica que se impõe, quando nos
propomos a compreender e identificar os processos que se dão no campo da produção
cultural. Para isso, se faz necessário um recorte, limitado, mas nem por isso menos revelador.
Nosso recorte será a investigação do campo tendo como referência o trabalho de
profissionais que lidam com a cultura, propondo e realizando seus projetos no Ceará, ou seja,
atuam no campo criando e desenvolvendo iniciativas culturais, o que requer não só
competência operacional, mas também capital cultural. Estes produtores necessitam de
recursos financeiros para viabilizar seus projetos, colocando-os em interface permanente com
as políticas públicas de financiamento à Cultura.
Para a seleção destes agentes, como já foi dito, utilizamos a definição já
apresentada de produtor cultural, priorizando aqueles que criam, viabilizam e administram
seus próprios projetos, estando, portanto, envolvido nas múltiplas dinâmicas do campo. Visão
esta que vem somar-se à definição de José Marcio Barros, ao trazer uma denominação
ampliada de gestão para a atividade:
O gestor cultural é um mediador entre a dimensão subjetiva e sensível da cultura e
os seus desdobramentos e interfaces com os outros campos da experiência humana
[...] é uma espécie de roteador de informações alternativas e possibilidades
dinâmicas de construção de cenários prováveis, mas também de cenários utópicos.
[...] é um profissional da complexidade da cultura. E isso significa habilidades,
grandes habilidades do ponto de vista da análise conceitual, metodológica e também
tática. (BARROS, 2008, p.111).
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Os entrevistados são agentes que se reconhecem como produtores e/ou gestores
culturais e que se encontrem no exercício da profissão. Residem em Fortaleza, apesar de
atuarem em diferenciados municípios do Estado. Dirigem empresas ou instituições culturais e
se responsabilizam pela proposição e/ou realização de projetos culturais próprios, estando
sujeitos às correlações de força do campo cultural e que tem a atividade cultural como fonte
de renda prioritária, ou seja, encarada como categoria profissional.
Propusemo-nos a penetrar nessa temática, tendo como referencial teórico os
conceitos de Pierre Bourdieu sobre o campo da produção artística, que se mostram
importantes instrumentos para iluminar os temas abordados. Como a pesquisa tem estreito
diálogo com acontecimentos sociais contemporâneos, trabalhamos também com autores que
têm se debruçado sobre as recentes transformações culturais no Brasil e no mundo por meio
de estudos que retratam a produção de conhecimento contemporâneo nas áreas de políticas
culturais, sistema de financiamento à Cultura, mercado cultural e gestão da cultura.
Utilizamos ainda pesquisas e produções literárias recentes, que tratam do tema da
produção cultural no Brasil contemporâneo. São documentos que continuam a dar ênfase ao
caráter pragmático da produção, mas que tem o mérito de registrar aspectos da atividade e
depoimentos desses atores, contribuindo para a compreensão do assunto abordado na
pesquisa, uma vez que compõem os documentos mais atualizados sobre o campo da produção
cultural no Brasil.
As políticas culturais, aqui entendidas segundo definição de Lia Calabre (2010,
p.11) como o “planejamento e a execução de um conjunto ordenado e coerente de preceitos e
objetivos que orientam linhas de ações públicas mais imediatas no campo da cultura”,
também foram importantes na elaboração da pesquisa por meio de documentos oficiais, como
plano de ações e seus programas, folders promocionais, apresentações públicas, publicações e
home page institucional, que se somaram à bibliografia aqui apontada. Utilizamos ainda
registros em jornais e revistas, que tratavam do tema de estudo, durante os dois anos de
realização da pesquisa. No entanto, o fio condutor da investigação é o conteúdo da própria
narrativa dos produtores culturais do Ceará, que ao expor suas trajetórias, reflexões e
inquietações sobre o campo, contribuíram decisivamente para assegurar a possibilidade de
acesso ao conhecimento que nos propomos.
Buscamos, pois, revelar as percepções e aspectos da trajetória dos agentes, que
faziam produção cultural no final da década de 60 e por toda a década de 70; dos que
iniciaram a atividade com a criação das políticas de financiamento à Cultura - federais e
estaduais – nas décadas de 80 e 90; e daqueles que ingressaram na área já na vigência das
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novas diretrizes políticas do século XXI, que propõem a visão da Cultura em um espectro
mais ampliado, no sentido antropológico do termo.
Para tanto, foram selecionados 20 produtores culturais que estão em relação
permanente com as políticas públicas estudadas, a fim de relatar seus depoimentos e reflexões
sobre o próprio campo. Apesar de se identificarem com a produção cultural, estes
entrevistados ocupam lugares distintos no campo, o que confere aos depoimentos visões
diferenciadas e complementares, que possibilitam a recomposição da riqueza e da diversidade
dos fluxos e redes estabelecidas no âmbito da cultura, recordando, sempre, que o conteúdo por
hora apresentado será somente uma parte do campo e em determinado momento apreendido.
Ao assumirmos o desafio desta incursão, organizamos os produtores entrevistados
em três grupos diferenciados, denominados segundo características que destacamos.
Grupo 1 - Produtores/Artistas
Produtores que atuavam no campo da cultura antes do período de criação das leis
de incentivo (décadas de 60, 70 e meados de 80), quando a produção ainda era exercida como
uma atividade meio, consequência da necessidade do artista de viabilizar sua própria
expressão artística.
A inserção desse grupo de entrevistados possibilita a compreensão de como se
dava a produção cultural no Ceará antes do surgimento das leis de incentivo e captar a
percepção desses produtores sobre as principais mudanças ocorridas, assim como seu
entendimento sobre o processo de profissionalização da categoria, as novas exigências do
mercado e do advento de outros atores no campo da produção cultural. Investiga ainda como
esses primeiros produtores reagiram a todas essas mudanças e como percebem sua inserção no
campo da cultura nos dias de hoje.
Grupo 2 - Produtores/Empreendedores
Grupo formado por produtores que tiveram seu ingresso na atividade da produção
cultural impulsionada pela criação das leis de incentivo à Cultura, segunda metade dos anos
80 e toda a década de 90.
Esses produtores já se inseriram no campo, posicionados como produtores
culturais e participaram, atuando na atividade, de um processo de transição de uma política
pautada na visão neoliberal na gestão FHC para outra de promoção de novas diretrizes
21
culturais na gestão de Lula. Eles têm um perfil empreendedor, pois aprenderam na prática o
exercício da produção cultural, onde desbravaram caminhos e forjaram um mercado. Neste,
formaram suas empresas e atuam profissionalmente com a atividade da organização da
cultura. São personagens de uma história recente, relevante e ainda não narrada.
Grupo 3 - Produtores/Gestores
Produtores que iniciaram sua atividade no século XXI, ingressando em um
mercado já em desenvolvimento, com a existência de políticas de financiamento à Cultura e
de programas e diretrizes culturais públicas em processo de implementação, seja no âmbito
federal, estadual ou municipal, pelas instituições culturais.
Em geral são produtores jovens, com uma formação diversificada e uma
percepção social mais ampla. Se por um lado não tiveram que “desbravar” terrenos, por outro
se deparam com mais possibilidades de trajetórias e caminhos diferenciados. Ingressaram em
um campo onde as políticas públicas estavam sendo construídas e com mais oportunidades de
atuação profissional e formação, o que lhes propicia uma familiaridade com a gestão, reflexão
e participação social no âmbito da Cultura.
Por meio destas entrevistas, buscamos também perceber se o posicionamento
temporal ocasiona diferenças de atitudes e percepções e, identificar quais são e como
ocorrem. Procuramos na fala dos entrevistados, identificar, sob o seu ponto de vista, como o
processo de criação de um novo campo cultural ocorreu, quais foram os fatores que
influenciaram sua profissionalização e sua ampliação e como os valores culturais apregoados
nos diferentes contextos interferiram na conformação dos projetos realizados. Intentamos
captar a percepção dos entrevistados sobre os processos vividos, as principais mudanças e seu
olhar sobre o cenário atual. Por fim, por meio dos depoimentos, registramos a visão dos
entrevistados sobre o lugar e a importância do produtor no campo da Cultura.
Essa a dissertação contém três capítulos distribuídos de forma a possibilitar uma
compreensão ampla do tema e a percepção das especificidades do campo. Inicia com uma
abordagem do sistema de financiamento à Cultura no Brasil, passando pelas repercussões das
políticas públicas no campo da produção cultural, até chegar ao estudo do campo no Ceará,
com suas conformações, configurações e paradoxos.
O capítulo intitulado Financiamento à Cultura apresenta como se estabelecem
as relações que se dão entre os detentores dos recursos financeiros e o campo da Cultura no
País, questão fundamental para compreensão das dinâmicas e relações processadas no campo
22
da produção cultural. Introduz como essas relações se davam nos governos autoritários,
apresenta a criação das leis de incentivos e editais, seus distintos contextos sociais e políticos
e a repercussão desses diferentes momentos na gestão da cultura no Brasil. Esse capítulo se
mostra relevante devido à intensa relação (de dependência e tensão) que existe entre a
necessidade de financiamento e o desenvolvimento do campo da produção cultural. A
perspectiva ampliada do sistema de financiamento à Cultura faz-se necessária para o posterior
entendimento de como essas políticas afetaram os modos de ser e fazer da produção cultural
em suas distintas diretrizes e contextos. Para isso, dividiremos o capítulo em três tópicos.
O primeiro, denominado Financiamento à Cultura na sociedade
contemporânea: modelos paradigmáticos traz uma breve apresentação de dois modelos de
políticas públicas no que tange à questão do financiamento à Cultura, no caso dos Estados
Unidos da América e França, que exerceram influências no sistema implantado no Brasil. O
segundo, intitulado Políticas de incentivo à Cultura no Brasil: leis e editais trata dos
distintos momentos históricos do financiamento à Cultura em nosso País e se aprofunda da
criação das leis de incentivo no Brasil e os ideais que animaram a formulação desses
mecanismos. Aborda também a criação dos editais públicos de apoio a projetos culturais
como reflexos dos novos contextos políticos e diretrizes para a cultura. O terceiro tópico,
intitulado Políticas culturais e financiamento à Cultura no Ceará traz uma visão de como
o processo de criação dos mecanismos de incentivo à cultura se deu no Estado, não só como
reflexo das políticas nacionais, mas também com características e peculiaridades locais. Por
fim, no último tópico intitulado Breves considerações sobre o sistema de financiamento à
Cultura no Brasil, diferentemente dos anteriores, que retratam o processo de criação e
funcionamento das leis e editais, propõe a realização de uma análise das principais conquistas
obtidas pelo sistema de financiamento à Cultura do Brasil, assim como a identificação de suas
contradições, distorções e fragilidades. Todas essas questões são relevantes para a
compreensão de como esses mecanismos atua na conformação do campo da produção cultural
no Brasil e, particularmente no Ceará, objeto dessa pesquisa.
O capítulo seguinte tem como tema O campo da produção cultural e as
políticas públicas de financiamento à Cultura e aborda mais diretamente as questões
centrais para a pesquisa, uma vez que é aqui que começa a se delinear a compreensão do
campo da produção cultural e as formas como este foi e continua sendo afetado pelo sistema
de financiamento à Cultura no Brasil. Dedica especial atenção à busca da compreensão da
atividade da produção cultural, sua função e relevância para o sistema da cultura e do registro
de suas práticas e processos. Traz, também, reflexões que fornecem elementos para a
23
percepção das ocorrências e fluxos que se estabeleceram nos últimos anos no campo da
produção cultural no Brasil, apresentando a multiplicidade de atores, suas dinâmicas internas
e as principais rotinas e atividades realizadas por esses profissionais no exercício de sua
atividade. São elencadas ainda as diversas demandas e áreas de conhecimento exigidas de um
produtor, que refletem a complexidade do campo da produção cultural no Brasil
contemporâneo.
Organizado em três tópicos, onde o primeiro tem como título Compreendendo o
lugar: percursos e nomeações e reflete sobre o processo de construção da atividade e sobre o
“lugar” conferido a esses agentes no campo cultural, além de apresentar suas inserções em
distintos contextos e nomeações. O segundo tópico, intitulado Produção cultural: uma
atividade complexa e ainda em formação trata da difícil classificação da atividade, suas
diversas formas de atuação e suas práticas. Aborda as precárias condições de trabalho e a
incipiente regulamentação dessa categoria profissional no Brasil. As políticas públicas e a
produção cultural no Brasil é o último tópico e identifica os fatores que impulsionaram a
profissionalização da produção no Brasil, relacionando-os com as diversas políticas públicas e
criação dos mecanismos de financiamento à Cultura.
O capítulo final, intitulado O campo da produção cultural no Ceará apresenta a
pesquisa propriamente dita e tem fundamental importância, uma vez que traz a percepção dos
próprios produtores que, por meio dos depoimentos, expõem suas trajetórias e narrativas em
torno de temas como o ingresso na atividade, a percepção da produção cultural e do campo da
cultura no Ceará, as conformações que as políticas públicas de financiamento à Cultura têm
sobre a sua atividade e as formas de reinvenção e resistência, que encontram para lidar com
estas.
Organizado em dois tópicos, traz no primeiro intitulado Percursos e
conformações uma breve reconstituição histórica de como se organizou o campo da produção
desde o período que antecede a criação das leis de incentivo até os dias atuais. O tópico
confronta percursos individuais e coletivos e busca identificar como as distintas políticas
agiram na conformação do campo da produção cultural no Ceará. O segundo tópico,
Configurações e paradoxos, elucidam as diferentes configurações no campo da produção
cultural hoje, apresentando suas relações de disputas, tensões e paradoxos. Nossa intenção,
não é só reproduzir os conteúdos da fala dos produtores, mas refletir sobre eles, fazendo
correlações com as disposições do campo e inserindo-as no contexto das políticas públicas, do
campo da produção cultural no Brasil e da sociologia da cultura.
24
2 FINANCIAMENTO À CULTURA
Esse capítulo abordará algumas questões relacionadas ao âmbito do financiamento
à Cultura, mais precisamente, as complexas relações que se dão entre aqueles que detêm os
capitais econômicos e sociais e artistas e produtores da cultura.
Uns dos primeiros aspectos a serem considerados nessa relação são os diversos
papeis que as artes assumiram na sociedade ocidental, trazendo, de acordo com cada contexto
histórico, diferentes justificativas de apoio e utilização. Na forma de festividades e eventos, a
Arte já foi utilizada pelos governantes como estratégia de entretenimento e recurso de
demonstração de prestígio, além de afabilidade e sensibilidade para com a cultura de seu
povo. Na forma de apoio direto aos criadores, pode ser observada como uma manifestação
explícita e concreta de poder pessoal e simbólica conferida aos patronos da Arte, que, ao
terem sob seu domínio e em relação de dependência direta, artistas das mais diversas
linguagens e talentos, projetam em si uma imagem de poder, identificação com a beleza e
enobrecimento cultural.
Durante séculos essas relações se manifestam de diversas formas, acompanhadas
de sentimentos ambíguos de necessidade, gratidão e ressentimento. Se por um lado, puderam
gerar interferências indesejadas e direcionamentos explícitos na criação artística, por outro,
foram também responsáveis pela produção de obras de arte da melhor qualidade estética que
fazem parte da história da humanidade e permanecem vivas e pulsantes até hoje.
Nos dias atuais, em maior ou menor escala, esses aspectos continuam presentes
nas relações que se travam no campo do financiamento à Cultura e à Arte. São questões de
difícil abordagem, que não permitem classificações simplistas e das quais nem mesmo os
grandes artistas puderam escapar, como podemos observar nos exemplos a seguir.
Michelangelo (1475-1564), ao pintar a Capela Sistina, produziu uma das obras de
arte mais importantes da humanidade. No entanto, a beleza deste trabalho não apaga o fato de
que a obra foi feita inicialmente sob desagrado do artista, que achava que não dominava a
técnica da pintura e estava mais interessado em trabalhar com esculturas na construção do
túmulo do Papa. No entanto, como dependia de seu patrono, teve que atender a encomenda do
seu mantenedor, o Papa Júlio II. Certa ocasião, ao refutar o pedido de fazer uma escultura em
bronze, alegando que não era sua especialidade, o artista ouviu de seu patrono a seguinte
frase: “Comece a trabalhar... E repita várias vezes até conseguir.” (KING, 2004, p.48). A
25
produção artística não cabia exclusivamente ao artista e a relação se pautava em interesses
mútuos, porém, nem sempre convergentes.
Michelangelo era um artista sensível que necessitava de “carinho e estímulo”, mas
também precisava de recursos para viver e criar, o que o fez trabalhar durante vários anos sob
a proteção e apoio de seu mecenas, em relação de subordinação, consentimento e, em alguns
momentos, litígio. Naquele período, segundo King:
Era algo comum o cliente definir o tema que seria abordado em um trabalho.
Pintores e escultores eram vistos como artesãos que trabalhavam a partir de
instruções claras de quem estivesse pagando a conta... Assim, o artista na época de
Michelangelo tinha pouca semelhança com o ideal romântico do gênio solitário que
conjurava obras de arte originais das profundezas de sua imaginação, sem ser
perturbado pelas exigências do mercado de arte ou de um patrono. (KING, 2004,
p.65-66).
Shakespeare (1564-1616), por sua vez, teve a felicidade de viver em uma época
onde o teatro era valorizado pela própria regente, Rainha Elisabeth, que além de apreciadora
das Artes Cênicas, sabia reconhecer os lucros advindos com as práticas artísticas e
festividades locais. No entanto, outros aspectos interferiam no processo de criação artística,
pois havia uma forte regulamentação para os espetáculos, de forma a garantir que as
companhias se apresentassem de maneira “respeitosa e ordeira”. Bryson relata que, com medo
de serem associados a vagabundos, que mereciam açoitamentos, trupes de atores se ligavam
aos patrocinadores da aristocracia:
O patrocinador fornecia aos atores certo grau de proteção e eles, em troca, levavam seu nome país afora, dando-lhe publicidade e prestígio. Durante algum tempo,
patrocinadores colecionaram trupes de atores, do mesmo jeito que pessoas ricas de
uma época posterior colecionaram cavalos de corrida ou iates. (BRYSON, 2008,
p.77).
Quase 200 anos depois, período em que viveu Mozart (1756-1791), essas questões
ainda faziam parte da vida dos artistas, que continuavam a depender das benesses de um
patrono para criar e subsistir financeiramente com suas famílias, encontrando-se geralmente
empregados na “rede de instituições da corte ou em suas ramificações”. Segundo Elias, “os
músicos eram tão indispensáveis nestes palácios quanto os pasteleiros, os cozinheiros e os
criados, e normalmente tinham os mesmos status na hierarquia da corte”. (ELIAS, 1995,
p.18).
Nesse tipo de estrutura social, alguns músicos se destacavam artisticamente, o que
possibilitava uma maior visibilidade, prestígio e ampliação do campo de atuação, permitindo-
26
se sonhar com uma autonomia criativa. No entanto, Elias lembra que a Música era tratada
como um ofício, se guardando uma enorme desigualdade social entre os produtores de arte e
os patronos.
No caso de Mozart não era diferente. Cabia ao seu empregador, o príncipe-bispo
de Salzburgo, a decisão de onde e quando tocar e, muitas vezes, o que compor. Situação que
não era bem aceita pelo músico, que teve sua vida e sua obra profundamente marcadas por
essa ambiguidade: necessidade básica de subsistência; rancor por quem lhe garantia emprego
e trabalho; desejo de se tornar um artista autônomo e a necessidade de reconhecimento e
aceitação de sua arte pelo establishment. Segundo o autor:
Mozart viveu a ambivalência fundamental do artista burguês na sociedade de corte,
que pode ser resumida na seguinte dicotomia: identificação com a nobreza da corte e
seu gosto, ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha... Lutou com uma
coragem espantosa para se libertar dos aristocratas, seus patronos e senhores. Fez
isso com seus próprios recursos, em prol de sua dignidade pessoal e de sua obra
musical. E perdeu a batalha. (ELIAS, 1995, p.24-16).
O músico quis escapar dessa relação de submissão explícita e, acreditando na sua
superioridade musical, aventurou-se a trilhar uma trajetória incerta longe de seu patrono,
morrendo prematuramente aos 35 anos de idade, cheio de dívidas, derrotado e decepcionado,
“levando consigo para a sepultura inimagináveis criações musicais ainda por compor”.
(ELIAS, 1995, p.9).
Esses exemplos retratam de maneira inequívoca a complexidade que envolve o
tema do financiamento à Cultura. Relações pautadas por ameaças de domínio,
constrangimento e dirigismo, mas também pela necessidade e troca de interesses mútuos,
responsáveis por proporcionar as condições de criação e produção de obras artísticas
essenciais para a percepção do potencial simbólico e artístico do ser humano.
Na figura de um mecenas, seja ele uma autoridade instituída ou não, pode-se
encontrar tanto o apoio necessário e entusiasmado de uma alma sensível às artes, como a
busca de obtenção de prestígio e demonstração de poder. No entanto, independente da
motivação, os apoios dispensados à Arte em diversos tempos, foram fundamentais para a
existência de obras de inegável valor artístico e cultural que, ou teriam se perdido, ou até
mesmo deixado de se realizar. Isso sem falar da importância do mecenas para assegurar, além
da possibilidade de criação, a condição de vida e subsistência pessoal dos artistas e suas
famílias.
27
Segundo relato de Reis, o mecenato é a primeira forma de associação entre capital
e cultura. No campo privado se traduzia em demonstração de poder e prestígio para aqueles
que cultivavam artes, uma forma de ostentar riqueza e afirmar um bom posicionamento social.
Perpassam diversos extratos de poder e períodos históricos distintos e continuam a se
manifestar na sociedade contemporânea.
Presentes desde o império romano, por meio das ações “benfeitoras” de Gaius
Maecenas, o mecenato, como ficou conhecido o apoio às artes, sofreu mudanças em torno da
História que retratam o próprio entendimento da Arte nos diversos contextos sociais. Teve
grande prestígio no Renascimento, onde a Arte desempenhava importante papel funcional e
estético; e no Iluminismo, onde o mecenato passa a assumir uma função socioeconômica, de
difusão de ideias transformadoras e atração de artistas, novos mercados e símbolos culturais.
A prática aportou no século XX por meio de grandes milionários emergentes, especialmente
nos Estados Unidos. (REIS, 2006).
Na verdade, apesar de todas essas diferentes trajetórias, observa-se ainda um
desconforto em associar as práticas culturais aos interesses econômicos, o que seria, segundo
Durand, “[...] uma expressão inconsciente de uma antiga e aristocrática reivindicação de
prestígio baseada na crença de que o mundo das artes seria, em sua essência mais íntima, o
reino do completo desinteresse”. (DURAND, 2007, p.12).
Relutância que merece ser adequada e aprofundada, pois permanece encoberta,
imprecisa e presente no imaginário daqueles que atuam na área cultural e artística, como se a
junção do dinheiro com a Arte fosse sempre um estranho e necessário incômodo, ainda a ser
administrado na sociedade contemporânea.
Ainda sem ter encontrado respostas mais confortáveis para essas antigas
problemáticas, a questão do financiamento assume gradativamente na sociedade
contemporânea novas configurações, na medida em que a Arte e a Cultura saem do patamar
das Belas Artes e assumem o lugar de um tema transversal em uma esfera ampla, marcada por
perspectivas sociais, políticas, econômicas e estéticas.
As formas do mecenato mudaram. Outros atores ingressaram nesse sistema,
tornando as relações ainda mais complexas. Às tensões ainda não conciliadas, se somaram
novos atores e cenários. A questão do financiamento à Cultura e Arte se dá hoje em uma
sociedade globalizada e em um mercado ancorado em uma forte indústria cultural, que
coexiste em meio a enormes desigualdades culturais, sociais e econômicas, que precisam ser
contempladas e inseridas. Todas essas demandas exigem novas respostas e pressionam o
28
Estado e os demais agentes por respostas que passam desde convenções internacionais,
políticas públicas para a cultura e participação da sociedade civil, dentre outras.
Esse capítulo procurará discorrer sobre como tem se dado a questão do
financiamento à Cultura na contemporaneidade e busca identificar quais as repercussões e
problemáticas que a adoção de um sistema, ancorado em leis de incentivo fiscal e editais
públicos têm trazido para o campo da Cultura em nosso País.
Faremos, de maneira sintética, a apresentação de dois modelos paradigmáticos de
tratamento da questão do financiamento à Cultura nos Estados Unidos e na França para
auxiliar na compreensão das possibilidades de intervenção das políticas públicas e como estas
podem inspirar o modelo adotado no Brasil.
Em seguida faremos um histórico sobre o sistema de financiamento à Cultura no
Brasil, onde nos deteremos principalmente nas leis de incentivo à cultura e na política de
editais. Como o objeto dessa pesquisa tem como base o campo da produção cultural no Ceará,
daremos também atenção sobre como tem se configurado, no âmbito das políticas públicas, o
trato com as questões do financiamento à Cultura no Estado.
Por fim, apresentaremos algumas questões que se colocam como resultantes do
sistema de financiamento à Cultura no País e no Ceará, procurando identificar, além de suas
conformações e contradições, os principais problemas que estão postos e tem forte
repercussão no campo da produção cultural do Ceará e do Brasil.
Acreditamos que a questão do financiamento à Cultura assume uma posição de
centralidade no campo da cultura contemporâneo e que não seria possível efetuar a presente
pesquisa sem compreender a forma como a produção cultural é atravessada pela necessidade
de recursos financeiros e pelas disputas e tensões que se dão nessa correlação de forças.
Dessa forma, a escolha por iniciar a pesquisa apresentando um panorama do
financiamento à Cultura no Brasil, servirá como base para compreensão do campo da cultura
e início do percurso que faremos para compreender, no final do trabalho, as particularidades e
sutilezas que compõem a atividade da produção cultural.
Acreditamos que só a partir da visão ampliada do campo, que tem o tema do
financiamento com um aspecto central para seu desenvolvimento, é que poderemos
compreender as configurações que a produção cultural assumiu no Brasil nas últimas décadas.
Interessa-nos, a partir da análise do sistema de financiamento à Cultura no Brasil,
identificar quais os agentes que atuam no campo, seus aspectos relacionais com suas disputas
e tensões, e como essas políticas de financiamento e seus diferentes instrumentos têm
conformado o campo da produção cultural.
29
2.1 FINANCIAMENTO À CULTURA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA:
MODELOS PARADIGMÁTICOS
Nos anos recentes, as políticas públicas vêm tentando, de diferentes formas, dar
conta da questão do financiamento à Cultura. O tema, ainda complexo e inconcluso, passou a
ocupar a atenção do poder público e da sociedade em diversos países na contemporaneidade e
demandado novas respostas para velhas questões.
Bolán, ao refletir sobre uma política cultural, destaca a questão complexa que
versa sobre a autonomia da criação artística, frente à necessidade de subvenção e estímulo por
parte do Estado. Esse aspecto talvez se configure como uma das questões mais complexas das
políticas que tratam da Cultura, diretamente relacionado com o que o autor aponta como
tensões entre a Cultura e o Estado, que surge na necessidade de encontrar alternativas que
minimizem o direcionismo e ampliem a autonomia dos agentes culturais. (BOLÁN, 2006).
As principais referências de políticas de financiamento à Cultura no mundo
ocidental têm como base as experiências utilizadas pela sociedade americana e francesa, que
serão apresentadas sucintamente a seguir como modelos paradigmáticos que, de alguma
maneira, influenciam e repercutem nas políticas adotadas por diversas outras nações, dentre
elas o Brasil.
O moderno mecenato americano está profundamente associado às características
culturais e religiosas daquela sociedade por meio da filantropia e das boas práticas
comunitárias, como forma de angariar prestígio e reconhecimento social. Carnegie,
Rockfeller, Getty e Ford ilustram de maneira contundente a participação dos empresários
americanos na vida cultural e social dos Estados Unidos que, por meio de investimento com
recursos próprios em fundações destinadas à Cultura e a Educação, foram responsáveis por
inúmeras iniciativas de alto valor artístico que marcaram definitivamente a vida cultural no
País. Seus legados se confundem com a própria história da cultura americana, repercutindo na
formação dos gostos, valores e mercados. (MÁRTEL, 2006).
Ao nos ocuparmos da história das políticas culturais norte-americanas e seus
processos de construção social, podemos observar traços distintivos daquela sociedade. Seja
pelas características marcantes de separação entre Estado e sociedade - que estão presentes na
própria essência de sua vida comunal, como percebido por Tocqueville (1998) no século XIX
-; seja nos traços morais e espirituais relacionados ao espírito protestante, destacado por
Weber (2001), que favoreceu o surgimento de uma sociedade formada por homens proativos,
30
voluntaristas e propensos à participação social ativa, além da valorização da prática da
caridade e da beneficência social.
Todos esses fatores, de alguma forma, estão presentes na política cultural
americana. Podem ser perceptíveis na cultura do mecenato, na filantropia e no voluntariado,
sinônimos de prestígio social. Não basta ser bom e valoroso: é preciso mostrar-se como tal. O
apoio à Cultura configura-se como símbolo de poder, compartilhada entre pares, por homens
de bem que constroem uma sociedade melhor, pautada naquilo que são valores essenciais para
os norte-americanos: a liberdade e o empreendedorismo.
Toda essa política de mecenato é amparada por mecanismos de financiamento
com base na renúncia fiscal e uma cultura de reconhecimento e valorização pública da ação
em prol do benefício social. A eles soma-se uma vigorosa indústria cultural, que mobiliza um
potente mercado onde interessa a consagração de artistas renomados, como o apoio à
criatividade e o estímulo à descoberta de novos valores.
Observa-se nos Estados Unidos um intrincado processo de ativação da Cultura,
que se anima no seio da própria sociedade, por meio de inúmeras associações não vinculadas
aos governos e que atendem a uma diversidade de linguagens e interesses. Mantidas por
financiamentos privados e públicos, são responsáveis pela riqueza do campo da cultura norte-
americana que, segundo Martel, funciona concomitantemente ao mercado e ao governo.
Um dos aspectos que merece ser destacado no sistema de financiamento à cultura
americana é a coexistência de inúmeros recursos e diferentes agentes, o que pode significar
sinal de vitalidade e de relativo grau de autonomia, pois ao contar com fontes variadas de
sustentação minimiza a possibilidade de dependência acentuada de um ou outro setor.
O estudo das políticas culturais francesas, apresentado por Philippe Urfalino
(2004) e Jean-Michel Dijan (2005), aponta para outros caminhos na questão do papel do
Estado e sua responsabilidade quanto ao financiamento à Cultura. A experiência interessa não
só por sua relevância cultural, mas também por se reconhecer na França o que se pode chamar
de invenção da política cultural, uma vez que foi naquele país, sob a inspiração do governo de
André Malraux (1959-1969), que se deu a criação do Ministério de Assuntos Culturais. Sob
um forte cunho ideológico e com significativa influência da tradição cultural e das ideias da
Revolução Francesa, a política pública se configurou com um acento na questão do acesso e
da democratização cultural, sob um viés de desenvolvimento social.
De acordo com essa concepção, o Ministério tinha como missão: tornar acessível
a um grande número de pessoas as obras capitais da humanidade; colaborar com a melhoria
da condição de vida das populações francesas; e estimular a criação, sustentando estruturas
31
que assegurassem a produção artística. Uma vez estabelecidas essas diretrizes, houve um
esforço continuado e marcado por diferentes contextos políticos e sociais, de construir uma
política cultural na França amparada por todo um suporte de instituições, planos, orçamentos,
recursos humanos e materiais, legislações e disputas políticas, dentre outros. Todo esse
complexo formou a base do que se conhece como o modelo de política cultural pública mais
consolidada na sociedade contemporânea ocidental.
Mais recentemente, durante a gestão do governo de Jack Lang à frente do
Ministério da Cultura (1988-1992), marcada por novos ambientes sociais próprios de um
mundo globalizado, observou-se uma maior associação da Cultura à Economia e a
aproximação do Estado com as chamadas indústrias culturais, agregando a essa visão
desenvolvimentista e inclusiva de cultura outras perspectivas: as políticas e a econômica, tão
importantes e simbólicas quanto à primeira.
Cabe ainda observar que, ao longo desses 60 anos de política cultural na França, o
Ministério passou por distintos contextos políticos e sociais, que deixaram marcas não só no
campo das ideias, mas também no âmbito material e organizacional, traduzidas na forma de
inúmeras experiências de gestão da cultura como as casas de cultura, criação de legislações
próprias, políticas transversais e integrativas com outros ministérios, mecanismos de
financiamento e de estímulo à participação social, dispositivos de renúncia fiscal, etc.
2.2 POLÍTICAS DE INCENTIVO À CULTURA NO BRASIL: LEIS E EDITAIS
A despeito das inúmeras diferenças culturais, podemos perceber nas políticas
públicas de cultura brasileiras releituras, sínteses, interpretações e adaptações de experiências
já realizadas na América do Norte e na França como: a presença das leis de incentivo; a
valorização dos ideais de uma democracia cultural; a utilização da cultura como recurso de
inclusão e desenvolvimento social; a junção da economia como mercado; a tentativa de
criação de um sistema nacional de cultura; os esforços na elaboração de legislação adequada
ao segmento, dentre outros.
O estudo das políticas culturais norte-americanas e francesas suscita diversas
reflexões sobre as políticas voltadas ao financiamento à Cultura no Brasil. Um dos primeiros
pontos a se considerar é o questionamento sobre até que ponto se pode falar na consolidação
de políticas públicas de Cultura em nosso País, entendendo o termo como representativo de
uma visão sistêmica e articulada do poder público, que corresponda a um esforço concreto,
32
contínuo e articulado, no sentido de alcançar os resultados esperados, disponibilizando para
isso recursos materiais, financeiros e humanos. Ou, na concepção de Calabre, “o
planejamento e execução de um conjunto ordenado e coerente de preceitos e objetivos que
orientam linhas de ações públicas”. (CALABRE, 2010, p.11).
Destacamos algumas características que uma política cultural deve conter, como a
priorização de um tipo de intervenção que atenda a coletividade; a disposição efetiva para
percorrer os caminhos para se chegar ao objetivo proposto; a disponibilização de recursos
para esses objetivos e tempo para sua maturação. Sob esse ponto de vista, podemos identificar
em diversos momentos da História da gestão da cultura no Brasil, alguns desses elementos,
mas raramente encontramos todos juntos. Esse aspecto de nossa gestão pública da cultura se
traduz na ausência de maturidade e em uma política precária que, segundo Rubim, padece de
três tristes tradições: ausência, autoritarismo e instabilidade. (RUBIM, 2007).
Para que possamos compreender um pouco mais como essas tradições se
formaram e como repercutem na sociedade contemporânea, principalmente no que diz
respeito ao trato com o financiamento à Cultura, retrataremos alguns aspectos da política
cultural em nosso País.
O Brasil teve sua referência inicial de um benfeitor das artes na figura de D. João
VI que, ao residir aqui, implantou as primeiras instituições culturais e educacionais em nossas
terras, tarefa que seria posteriormente reforçada por D. Pedro II, homem culto e afeito às
questões educacionais e artísticas. Segundo Barbalho, apesar da sua contribuição se
concentrar em uma arte considerada erudita e culta, “deve-se ressaltar a proteção,
materializada em apoio financeiro e distinções honoríficas, que D. João dispensou a artistas e
intelectuais”. (BARBALHO, 2009).
Posteriormente, o País viria a ter já no século XX sua versão de mecenato privado
por intermédio de personalidades como Olegário Maciel, apoiador de Candido Portinari; ou
ainda Assis Chateubriand e Francisco Matarazzo, apreciadores das artes plásticas, que foram
fundamentais para a criação do Museu de Arte de São Paulo – MASP e Museu de Arte
Moderna de São Paulo – MAM, respectivamente. Segundo Nussbaumer, estes dois
empresários são exemplos da compatibilidade existente entre o mundo dos negócios e cultura,
ou ainda de como a Arte pode ser usada como “fonte de rentabilidade simbólica valiosa para
homens e empresas”. (NUSSBAUMER, 2000, p.28).
No âmbito público, durante o governo de Getúlio Vargas (1934-1945), o Brasil
vivenciou uma mudança social e econômica com a decadência das oligarquias, a crescente
industrialização e surgimento das classes médias urbanas. Foi nesse período que o Estado
33
adotou, pela primeira vez no País, um modelo de administração racional-legal. Surgia uma
nova classe média disposta a consumir sua cultura e a assumir um papel político
administrativo central na construção de uma moderna sociedade industrial urbana. Investia-se
na criação de espaços, físicos e simbólicos, constituindo-se em uma primeira tentativa de
estruturação de uma política pública de cultura e de construção de uma identidade nacional.
(CALABRE, 2009; BARBALHO, 2007).
No entanto, as contradições do próprio governo de Getúlio se manifestavam no
campo cultural. Conforme descrito por Rubim (2007), essa foi a primeira vez que o Estado
nacional realizava um conjunto de intervenções na área da Cultura, articulando uma atuação
negativa de opressão, repressão e censuras, com outras afirmativas por meio de formulações,
práticas, legislações e novas organizações da Cultura.
É nesse período que se forma também o embrião de uma indústria cultural no
País, com base na música que girava em torno dos programas radiofônicos. No entanto, a
produção artística brasileira apresentava forte vinculação com o poder vigente, seja nas
veiculações de mensagens que valorizam uma pretensa cultura nacional de interesse do
Estado; seja na formação de um mercado de trabalho crescente, porém, ainda bastante
dependente e bastante suscetível aos seus humores. Segundo Castro, a conhecida “Lei
Vargas1” de 1935, que obrigava os cassinos brasileiros a contratarem artistas nacionais para
compor a programação dos cassinos (juntamente com os americanos, franceses e argentinos
de costume), foi decisiva para a formação de um mercado para os músicos locais que
“adoravam Getúlio”. No entanto, em 1946, milhares deles
[...] perderam o emprego de uma canetada – bastou o novo presidente, Eurico
Gaspar Dutra, eleito para suceder Getúlio, assinar um hipócrita decreto-lei proibindo
o jogo no Brasil... Deu-se o pânico. Muitos profissionais se desesperaram – alguns se mataram – e houve manifestações em frente ao Palácio das Laranjeiras para
suplicar que Dutra voltasse atrás. De nada adiantou. (CASTRO, 2005, p.417).
Esse exemplo ilustra uma das características apontadas por Albino de nossa
tradição cultural, que é a instabilidade, e que ainda hoje paira sob o campo da Cultura.
Convivemos com alternâncias de governo que representam, em sua grande maioria, mudanças
de diretrizes e muitas vezes, desmobilização do que vinha sendo construído. Essa é uma
história que se repetirá muitas vezes no Brasil, em âmbito federal, estadual e municipal.
1 Lei sancionada por Getúlio Vargas, que prevê a regulamentação da profissão do artista, transformando-o
legalmente em trabalhador e instituindo diversos benefícios para a categoria.
34
Assim, o fim da Era Vargas, representa também um arrefecimento no interesse
público pelas questões da Cultura. Os governos que se sucederam demonstraram indiferença
na construção de um projeto cultural consistente. No entanto, apesar da ausência de políticas
estruturadas para a Cultura, inúmeras iniciativas surgiram no próprio seio da sociedade, na
forma de uma cultura mais engajada, como era o caso dos Centros Populares de Culturas -
CPCs da União Nacional dos Estudantes, dos cinemas de vanguarda e até mesmo da Bossa
Nova, que encantava o Brasil e o mundo com promessas de um país pleno de futuro.
O governo dos militares (1964-1985) implantou uma reforma empresarial no
Estado, por meio de uma administração descentralizada e, ao investir na instalação de uma
infraestrutura de telecomunicações, favoreceu a implantação de uma indústria cultural no
Brasil e na formação de um mercado de trabalho para artistas e produtores.
Cabe aos militares à tentativa de integrar simbolicamente o País, de acordo com a
política de segurança nacional, o que se deu também com a criação de importantes instituições
culturais como a Funarte, Radiobrás, Conselho Nacional de Cinema, dentre outros. Segundo
Calabre, “o governo que se instaurou com o golpe de 1964 demonstrou desde os primeiros
tempos uma preocupação com o campo da cultura” (CALABRE, 2009, p.68), tendo sido
responsável por estabelecer esforços para a criação mecanismos que possibilitassem uma ação
sistemática de atuação com abrangência nacional, como a implantação de um Conselho
Federal de Cultura em 1967 e a elaboração de uma Política Nacional de Cultura em 1975.
As relações com a sociedade, porém, eram tensas e precárias e, devido ao forte
componente ideológico, havia um afastamento de importantes segmentos de artistas e
intelectuais do Estado, impelindo este a aumentar os investimentos na área, em um esforço de
aproximação. (MICELI, 1984). Com um papel relevante para os setores que orbitavam em
torno da Arte e da Cultura, o Estado assumia uma posição central, ora como núcleo a ser
evitado e contestado, ora como apoiador necessário, onde se questionava sua ideologia, mas
se precisava de seus recursos. Aqui se observa outra característica de nossa política cultural,
que é a ambivalência e a convivência com paradoxos.
Ambiguidades que se observavam no próprio seio do governo, conforme retrata
Isaura Botelho, ao relatar a experiência da FUNARTE, vinculada ao Governo Federal. A
instituição, que tinha entre suas finalidades apoiar a produção cultural brasileira, atravessou
diversas fases, sofrendo processos de descontinuidade, com ciclos de apogeu e esvaziamento
de suas funções e com a dupla missão de ser financiadora e produtora de projetos ao mesmo
tempo. No entanto, a despeito de suas dificuldades, a história da FUNARTE durante o
35
período militar representa o esforço de instituição de uma política cultural para o País, com
planejamento e verbas, que criou algumas iniciativas bem sucedidas.
Durante um período do governo militar a cultura contou com maior volume de
verbas, mais prestígio e poder de atuação, conforme descreve Botelho ao falar do período de
atuação do PAC - Programa de Ação Cultural, vinculado ao Ministério da Educação, na
década de 70:
Tendo de priorizar a promoção de eventos para evitar a rota de coalização com
outros órgãos do MEC, o PAC acabou por transformar o ministério em um poderoso
e moderno empresário de espetáculos, abrindo novas frentes de trabalho no mercado
cultural. (BOTELHO, 2000, p.62).
O Brasil vivia um período onde o Estado era ao mesmo tempo o impulsionador do
mercado e seu principal financiador, como descreve Botelho (2000, p.172) ao a mencionar a
figura do “estado-empresário, aquele que emprega diretamente artistas com o fito de alimentar
seu mercado de trabalho”.
A centralidade da posição do Estado no sistema de financiamento à Cultura, a
ausência de tradição na participação de outros agentes e instituições, aliados a políticas
culturais ainda precárias, colaboraram para que nesse período ainda vigorasse amplamente o
que ficou conhecido como “política de balcão”, ou seja, um tipo de apoio fortemente
condicionado a contatos sociais e favorecimentos pessoais, onde o financiador se coloca em
um papel de “dadivoso” e o receptor de “devedor”. Essa cultura política também revela traços
culturais fundantes de nossa sociedade que, em maior ou menor grau, permanecem presentes
no imaginário do povo brasileiro.
Essa dependência se estendia também aos governos estaduais e municipais que
contavam com poucos recursos e buscavam apoio nas verbas federais. Observa-se nesse
período também uma maior articulação da região sudeste para a obtenção do imprescindível
financiamento. A escassez de recursos e a disputa nacional por verbas geravam outros efeitos
colaterais, danosos ao sistema como um todo:
Na verdade, a tendência das secretarias estaduais sempre foi, com raras e honrosas
exceções, a de concorrer, principalmente no caso dos eventos, com suas homólogas
em nível municipal nas capitais, ao invés de estruturar seu trabalho na forma de
atender às demandas do conjunto do estado. (BOTELHO, 2000, p.217).
Com o fim do regime militar e início da redemocratização ocorreram importantes
mudanças nas políticas sociais como o pacto federativo, que priorizou o município como
36
campo de implantação e espaço das deliberações democráticas e o surgimento das leis de
incentivo, que viriam a influenciar decisivamente a produção cultural no Brasil nas próximas
décadas. A transição para um regime político democrático trazia o anseio de maior
participação popular que, no campo da cultura, representava também a “renovação da função
do próprio estado ao lado de sua presença junto à sociedade, no estímulo à produção cultural”
(BOTELHO, 2000, p.222).
Essa expectativa de maior participação social e de diminuição da dependência
direta do Estado é a chave para se compreender o contexto em que foi forjado o novo modelo
de financiamento à Cultura no País, com base no incentivo fiscal, que viria a pautar as
décadas posteriores e deixar reflexos em todo o campo cultural brasileiro.
José Sarney enquanto parlamentar acalentou durante 14 anos2 o sonho de criar
uma lei de incentivo à cultura, o que foi concretizado quando assumiu a presidência do novo
governo democrático do Brasil (1985-1990). A Lei 7.505/86 que viria a ser conhecida como
“Lei Sarney” foi promulgada na gestão de Celso Furtado (1986-1988), seu ministro da
cultura. O mecanismo permitia a dedução de 10% do Imposto de Renda de pessoas físicas e
2% de pessoas jurídicas para utilização em projetos culturais e se configurava numa tentativa
de minimizar a dependência do Estado como fonte quase exclusiva de recursos para a imensa
demanda represada em todo o Brasil e a consequente atração de novos “investidores” para a
cultura.
Para serem beneficiadas, as instituições culturais precisavam se inscrever em um
Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural (CPC), comprovando em ter em
seu contrato social, objetivos compatíveis com as atividades cobertas pela lei e receber um
atestado, emitido por alguns órgãos públicos específicos, afirmando sua aptidão para as
atividades pretendidas. O governo não mantinha controle das atividades realizadas, uma vez
que não fazia avaliação prévia dos projetos. (GOMES, 2012).
Em um país recém-saído do regime militar, que perseguiu, torturou e exilou várias
pessoas ligadas ao segmento cultural, bem como cerceou o direito à livre expressão
de opinião e manifestação artística, era de se esperar o apoio a um projeto que garantisse a liberdade de artistas e produtores de realizarem seus projetos sem
intervenção governamental. Dominava a opinião de que não cabia ao Estado ditar
regras do jogo. Agora, seria a sociedade civil que livremente escolheria o que seria
realizado no campo da cultura... (GOMES, 2012).
2 O projeto de Lei foi apresentada pela primeira vez em 1972, quando José Sarney era presidente do Senado
Federal.
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Interessa destacar que essa visão é de alguma forma compactuada pelo ministro
que, ao abordar a lei, se referia constantemente a importância da mudança nas relações entre
sociedade e Estado, convidando que esta primeira assuma a realização e fiscalização dos
projetos e se liberte das limitações do paternalismo estatal. Celso Furtado ressaltava em seus
pronunciamentos o “potencial criativo do povo brasileiro” como um grande foco de atenção
do poder público e “a condição essencial” para a remoção definitiva dessa herança que nos
aprisionava. (FURTADO, 2012, p.88).
No entanto, a despeito de suas boas intenções, a nova lei enfrentou algumas
dificuldades que a fragilizaram como o desconhecimento do mecanismo por parte do
empresariado, produtores e classe artística e, principalmente, a ausência de mecanismos de
controle, o que fez que em quatro anos fosse extinta a imagem de ser um instrumento
facilitador de mal uso de recursos públicos, que, de alguma forma, ainda reverbera até hoje.
A utilização desse tipo de mecanismo apresenta aspectos que merecem ser
destacados: em primeiro lugar, trata-se de uma lei de incentivo, portanto, instrumento de
política econômica, comumente utilizados na estratégia geral de promoção de indústrias
nascentes, como forma de influenciar e/ou modificar a conduta de agentes econômicos.
(CORREIA, 2010). Outro aspecto relevante, destacado por Silva, é a lembrança de que a
escolha da adoção de incentivos fiscais se deu em um contexto onde o “orçamento com a
cultura era um dos menores da República”, revelando uma fragilidade central, uma vez que “o
financiamento é um dos mais poderosos mecanismos para se viabilizar uma política pública”.
Segundo o autor:
O entusiasmo com o aumento de recursos incentivados esconde um problema grave:
as instituições federais de cultura foram penalizadas com a falta de investimentos e
de recursos orçamentários que lhes permitissem a ampliação de suas capacidades de ação cultural. (SILVA, 2007, p.184).
A ausência de outras fontes orçamentárias, a pouca expressividade de grandes
indústrias instaladas fora da região Sudeste e o desconhecimento da utilização com o
mecanismo, fez com que a Lei Sarney não tivesse grande repercussão fora daquela região.
Mesmo assim, a possibilidade de utilização de novos recursos deixou marcas na gestão
pública e no imaginário dos que trabalhavam com arte no País. A Lei Sarney, serviu de
inspiração para um modelo de financiamento à Cultura, que permanece até hoje no Brasil,
onde a obtenção de recursos por meio da renúncia fiscal se configuraria posteriormente no
38
principal instrumento de financiamento a projetos culturais no País e peça estrutural no
orçamento da Cultura.
Diante da persistência da fragilidade orçamentária, o presidente Collor de Mello
(1990-1992) continuou apostando na reativação do mecanismo de renúncia fiscal e, no final
de 1991, criou a Lei 8.313 que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura - Pronac. A
lei tinha a finalidade de captar e canalizar recursos para a cultura no Brasil, suprindo a lacuna
deixada pela extinta Lei Sarney. Para isso, trouxe novas exigências, processos e instrumentos
de fiscalização.
O Pronac tem objetivos ambiciosos como: possibilitar os meios para o livre acesso
às fontes da cultura; permitir o pleno exercício dos direitos culturais; estimular a
regionalização da produção cultural e artística brasileira, dentre outros. Para atender esses
objetivos, conta com três tipos de mecanismos. O Fundo Nacional de Cultura – FNC,
administrado pelo próprio Ministério da Cultura, e que se destina a projetos artísticos e
culturais que atendam aos interesses da coletividade, priorizando aqueles que tenham pouco
atrativo mercadológico e, portanto, menos possibilidades de desenvolvimento com recursos
próprios.
O segundo mecanismo previsto é o Fundo de Investimento Cultural e Artístico –
FICART, que se destina a projetos com um potencial de lucratividade, que possam atrair
possíveis investidores na forma de condomínio, sem personalidade jurídica, caracterizando
comunhão de recursos destinados à aplicação em projetos culturais e artísticos.
O terceiro mecanismo trata do Incentivo a Projetos Culturais, que passou a ser
popularmente conhecido por Mecenato ou Lei Rouanet, em alusão ao intelectual e diplomata
Paulo Sérgio Rouanet, à época Ministro da Cultura e criador da Lei. Tem como princípio a
renúncia fiscal por parte do Governo e foi concebido sob os preceitos da visão neoliberal do
Estado, como um instrumento de estímulo à participação da iniciativa privada no apoio a
projetos culturais, previamente aprovados pelo Ministério. Por intermédio dele, pessoas
físicas, pagadoras de imposto de renda (IR), que podem repassar até 6% do imposto devido
para o projeto, ou empresas tributadas com base no lucro real, que podem repassar até 4% do
seu imposto para o projeto que lhe convier.
Dos três mecanismos previstos na Lei 8.313, o que teve mais adesão social foi o
Incentivo a Projetos Culturais. A pequena oferta e procura por projetos de interesse de retorno
comercial fizeram que o FICART não conseguisse se tornar uma realidade de fato e o Fundo
Nacional de Cultura - FNC encontrou dificuldades de operar devido ao seu baixo orçamento.
39
A criação da Lei Rouanet foi um marco para a cultura no Brasil; no entanto,
conviveu logo após sua criação com pouco prestígio e investimentos na pasta, políticas
públicas em formação, instituições culturais frágeis e baixo orçamento. Apesar da utilização
do mecanismo ainda ser incipiente, inspirou a criação de um recurso similar diretamente
relacionado ao audiovisual, um setor mais organizado, com maior prestígio e mais
identificado à indústria cultural.
Em 1993, pressionado pelos produtores de cinema, o presidente Itamar Franco
(1992-1995) promulgou a Lei 8.685 - conhecida como “Lei do Audiovisual” - onde além de
deduzir integralmente o apoio oferecido a um projeto audiovisual, o patrocinador ainda
poderia lançar esse recurso como despesa, ampliando ainda mais seu benefício. A iniciativa
movimentou o mercado do audiovisual, mas segundo Ikeda a lei que buscava interromper um
espiral crescente de definhamento da indústria cinematográfica no Brasil, na verdade, “ao
invés de uma política industrial de ocupação do mercado audiovisual, existiu, simplesmente,
uma política de produção de longas metragens cinematográficos.” (IKEDA, 2012, p.15).
Durante o mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) o
Brasil vivia o ápice de um contexto de política econômica neoliberal, no qual o mercado
representava uma “nova utopia”, extrapolando sua função econômica e ganhando foro de
“mito organizador de um novo mundo” onde só sobreviviam os mais competentes. (ROSA,
2010).
Nesse período, foi feito um trabalho de aproximação do empresariado brasileiro
com os mecanismos de renúncia fiscal em prol da Cultura. Com o apoio do presidente, o
Ministro da Cultura Francisco Weffort empreendeu esforços para dar consistência, agilidade e
aumentar o volume de recursos e projetos incentivados. Para tanto foi efetuada uma reforma3
na Lei em 1995, com o objetivo de ampliar o limite de desconto para as empresas
patrocinadoras, desburocratizar os procedimentos para agilizar a obtenção dos recursos e
estimular a formação de um mercado de captação, reconhecendo a atividade de
“intermediação” para o profissional empenhado na captação dos recursos, o que será
aprofundado posteriormente. Além disso, por determinação do presidente as estatais passaram
a se utilizar do mecanismo, aumentando os recursos investidos em projetos culturais. Diversos
encontros foram realizados com empresários em todo o País, onde eram apresentados os
benefícios da Lei e distribuídas publicações demonstrando que o investimento em cultura "é
um grande negócio". (MOISÉS, 1998, p.4).
3Lei n 9.065, de 20 de junho de 1995.
40
Em 1997, uma Medida Provisória4 trouxe para a Lei Rouanet a possibilidade de
dedução integral do patrocínio para algumas linguagens artísticas, atendendo a pressão de
setores mais organizados e também como forma de favorecer expressões artísticas de menor
atratividade mercadológica. A Lei, que ainda viria a sofrer inúmeras alterações, ao incluir
novas categorias entre os beneficiados com 100% de isenção fiscal, gerou uma cultura de
dependência e acomodação da iniciativa privada, que passou a optar pelo apoio a projetos que
permitem a dedução integral do imposto de renda. Assim, estabeleceu-se um círculo vicioso,
que terminou por minar a intenção original de injetar novos recursos para a Cultura e que
permanece até hoje como um problema a ser enfrentado.
Gradativa e progressivamente a Lei Rouanet passou a fazer parte do cotidiano de
artistas e produtores culturais, favorecendo a formação de um mercado cultural e de projetos
financiados sob o prisma do marketing cultural, onde se sobressaíam aquelas iniciativas
culturais com maior poder de visibilidade e retorno para a imagem da empresa.
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso a utilização da Lei Rouanet
ganhou força como referência de captação de recursos, principalmente na região Sudeste do
País. Sua utilização privilegiou um modelo de gestão da cultura com base em uma valorização
de projetos com maiores atrativos mercadológicos, uma cultura de ações pontuais e pouco
sistêmicas com base em “projetos” e uma acirrada disputa por verbas, que agora além de
depender do aval do Estado passava a depender também da aprovação das empresas.
Em 2003, Luís Inácio Lula da Silva assume a presidência do Brasil, com a
pretensão de introduzir novos valores sociais e políticas sociais redistributivas, que
repercutem nas políticas culturais. Foi nessa gestão que se assistiu o ingresso de outro
mecanismo de incentivo à cultura: os editais, instrumentos de seleção para escolha de projetos
a serem financiados pelo poder público, direcionados a segmentos culturais e sociais
estabelecidos como prioritários pelo Estado.
Financiados diretamente com recursos do Fundo Nacional de Cultura, os editais
tem duas características fundamentais que os distinguem do mecanismo das leis de incentivo:
elimina a necessidade da intermediação da iniciativa privada, uma vez que a aprovação em
um edital se propõe a assegurar o repasse direto de verbas segundo o projeto proposto, e o
direcionamento por parte do poder público, que enuncia e explicita as áreas de interesse e
configurações dos projetos que devem ser incentivados.
4Medida Provisória no 1.589, de 24 de setembro de 1997.
41
A política de editais pode também ser um recurso a ser utilizado como auxiliar de
políticas afirmativas, induzindo a promoção de setores culturais de interesse para as políticas
públicas vigentes ou setores em que o Estado considera necessária uma atuação mais diretiva.
Enquadram-se nessa categoria: projetos na área da cultura afro-brasileira, culturas tradicionais
e populares; comunidades indígenas; cultura LGBT, e revelam a necessidade de diálogo do
Ministério da Cultura com os movimentos sociais, sendo direcionados a entidades sem fins
lucrativos.
Os editais ganharam força na gestão do governo Lula, apresentando-se como um
contraponto à Lei Rouanet, com o objetivo de contemplar outros atores que não conseguiam
viabilizar seus projetos no mercado cultural. O mecanismo geralmente disponibiliza um
volume menor de recursos para um número maior de contemplados e atende a demanda de
acesso e produção da cultura de artistas independentes, grupos populares, associações
culturais, dentre outros.
O edital também é justificado sob a alegação de ser “universalista”, ou seja, pelo
seu caráter de possibilitar um acesso universal, democrático e igualitário. No entanto, esse
aspecto apesar de coerente na teoria, nem sempre ocorre na realidade, uma vez que para
participar de editais faz-se necessário o aporte de conhecimentos básicos prévios, que
assegurem o mínimo de um domínio na produção de textos e regularidade fiscal e social.
A política de editais, juntamente com as leis de incentivo, tornaram-se os
principais mecanismos de financiamento à Cultura no País na última década. Nesse período
também foram tomadas iniciativas no sentido de corrigir distorções no PRONAC, com
debates públicos nacionais, visando à construção de outro recurso que dê conta das novas
demandas, conhecido como Procultura5, projeto de lei nº 6722/2010, atualmente em
tramitação na Câmara dos Deputados.
Após inúmeros debates e polêmicas nacionais, o substitutivo da Lei-Procultura foi
elaborado, prevendo uma série de medidas com o objetivo de aperfeiçoar distorções da Lei
Rouanet e ampliar a participação pública na gestão, avaliação e promoção de projetos de
interesse coletivo. Está contemplada na nova proposta uma maior atratividade para o aporte
de investimentos no FNC; novas fontes de recursos para o segmento cultural; critérios de
pontuação diferenciados, que repercutirão em diferentes faixas de renúncia; criação de fundos
setoriais e maior autonomia da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC.
5 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=730738&filename=
PL+6722/2010>.
42
A medida, no entanto, não se propõe a alterar um aspecto essencial para a
conquista de novos investidores e a ampliação efetiva de mais recursos para a Cultura: o
acesso à participação de contribuintes pagantes de imposto de renda por lucro presumido. Ao
permitir o ingresso desses contribuintes no sistema de financiamento pela renúncia fiscal,
estaria se abrindo uma possibilidade de participação de novos patrocinadores para a Cultura,
distribuídos em todo o País e mais acessíveis aos produtores culturais.
A concentração de patrocínio em grandes empresas também apresenta um caráter
de fragilidade institucional, uma vez que coloca na mão de poucos patrocinadores um grande
volume de recursos, favorecendo a formação de um poder paralelo do mercado, que atua
tendo sua base em recursos públicos. Esse caráter também não favorece a consolidação de um
sistema autônomo de financiamento, pois mantém o campo dependente de poucos
investidores, reféns de seu ânimo, bom desempenho comercial e das oscilações de mercado.
Atualmente o campo da cultura convive com a expectativa da mudança, diante do
iminente esgotamento do modelo de financiamento à Cultura no Brasil. Seja pela
desigualdade de acesso aos recursos e a exclusão de inúmeras iniciativas relevantes por meio
da Lei Rouanet, seja pela morosidade do repasse de verbas para as iniciativas contempladas
nos editais ou, ainda, pelo dirigismo e burocracia na formulação de projetos em ambos os
mecanismos.
De 2011 até 2014, ano da posse da presidente Dilma Rousseff, o MinC mantém
grande parte dos programas iniciados na gestão anterior, tendo como uma das "heranças" o
desafio de aperfeiçoar o mecanismo de financiamento da Cultura, em uma complexa e
delicada tessitura de (re)construção e diálogo com a sociedade.
Faz-se necessário superar a vulnerabilidade e a inconstância nos aportes de
recursos e isso só será possível se forem feitas alterações profundas no sistema de
financiamento à Cultura no Brasil, que é basicamente ancorado em incentivos fiscais. Dois
projetos tramitam atualmente no Congresso Brasileiro que, sendo aprovados, ampliará em
pelo menos 50% o investimento atual, provocando significativas alterações nesse quadro. São
as Emendas Constitucionais – nº 310/2004 e nº 150/2003 – que estabelecem patamares
obrigatórios de investimento do poder público na área cultural, prevendo a destinação de no
mínimo 2% do orçamento anual do Governo Federal, 1,5% dos Estados e do Distrito Federal
e 1% dos Municípios.
Apesar dos recursos para a cultura terem sua mobilização por meio de leis e
editais, é importante destacar que existem outras fontes que podem ser acessadas: premiações
artísticas; doações de pequeno porte com empresas locais; ações beneficentes de cunho
43
cultural; apoios de agências ou organismos internacionais; linhas de créditos e emendas
parlamentares. Nos últimos anos tem se assistido ao surgimento de uma nova modalidade de
incentivo, com base em redes colaborativas, conhecido como crowdfunding, onde diversos
indivíduos se associam, disponibilizando recursos em prol de um projeto em comum. No
entanto o volume de recursos dispendidos nessas modalidades, ainda é insuficiente para suprir
as necessidades do campo.
A questão do financiamento continua a ser um problema de primeira ordem e a se
fazer presente nos debates que tratam da Cultura. Na III Conferência Nacional de Cultura,
realizada em novembro de 2013, diversas propostas6 que tratam do tema foram selecionadas
como demandas prioritárias como a solicitação da aprovação da PEC 1507; a garantia de
repasse de 10% do Fundo Social do Pré-Sal para a Cultura; a aprovação e regulamentação do
Projeto de Lei 1.139/2007 – Procultura; o fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura,
como principal mecanismo de financiamento público da Cultura, e o repasse de recursos do
FNC para os fundos estaduais, distrital e municipais, dentre outras.
2.3 POLÍTICAS CULTURAIS E FINANCIAMENTO À CULTURA NO CEARÁ
O Ceará tem o mérito de abrigar a primeira Secretaria da Cultura criada no Brasil,
o que ocorreu em 1966, no governo do coronel Virgílio Távora, em pleno Regime Militar.
Essa vantagem, no entanto, não repercute de maneira direta em avanço nas políticas públicas
culturais.
Segundo Barbalho, a criação de um órgão para a cultura no Estado se deve, em
grande parte, ao “intimismo” da intelectualidade cearense Pós-64 com o poder. Relações de
sempre estiveram presentes, em menor ou maior intensidade, marcando uma ambiguidade e
tensão presentes há muito tempo na agenda da cultura no Ceará.
A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, especificamente, surge em 1966 de uma
articulação autônoma do campo cultural cearense, sem o apoio ou incentivo federal.
Utilizando seu capital simbólico, setores ilustrados da intelectualidade cearense, com relações de proximidade com o campo político, procuram dar vazão aos seus
anseios de controle cultural através da imposição oficial, concedida pelo poder
6 Documento disponibilizado no site: <http://www.cultura.gov.br/3cnc>. 7Proposta de Emenda à Constituição 150 que prevê que a União aplicará, anualmente, nunca menos do que 2%
da receita tributária na preservação do patrimônio cultural brasileiro e na produção e difusão da cultura nacional.
A aplicação orçamentária para os estados e o Distrito Federal será de 1,5% e para os municípios de 1%. A União
terá ainda que dividir 50% de sua cota da Cultura com as outras unidades da Federação - 25% com os estados e
25% com os municípios, de acordo com o texto.
44
estatal, detentor do monopólio da violência simbólica legítima.” (BARBALHO,
1998, p. 212).
De início, principalmente na gestão de Ernando Uchoa (1971-1977), esforços
foram feitos para justificar e legitimar a necessidade da criação da Secretaria, uma vez que a
cultura era fortemente associada a um bem de luxo, supérfluo e desnecessário, em um Estado
com tantas carências sociais concretas. Nas primeiras gestões, as metas se direcionavam a
uma política de interiorização das ações culturais e um esforço de popularização da atividade,
distanciando-se da costumeira cultura do mecenato ou subsídio a pequenos eventos na capital.
Foi esse esforço que contribuiu para a legitimação do órgão junto aos seus opositores.
(BARBALHO, 1998).
As ações públicas na pasta de cultura no Estado do Ceará nesse período estão
fortemente vinculadas ao prestígio do gestor e a afinidade que o chefe do executivo tem com
relação ao tema, aspecto que fragiliza (ou fortalece) a pasta e propicia uma cultura de
alternância e instabilidade. Situação que ganha expressiva relevância por “caber ao Estado o
papel de patrono que intervém na produção cultural com recursos públicos”, que em última
instância, confere-lhe o “poder de patrono, de decidir qual ação implementar”. (BARBALHO,
1998, p.141).
Na verdade, observa-se no Estado, entre os anos 60 e 90, um reflexo das mesmas
ocorrências do País: ausência de tradição de mecenato privado, excessiva dependência do
poder público e utilização de contatos e prestígio pessoal para a obtenção de financiamentos.
Instaura-se no campo cultural um fluxo de ações onde os artistas se movimentam,
organizando-se de forma alternativa ao poder instituído e/ou contando com pequenos apoio e
iniciativas da ação pública o que, como já foi dito, confere a este uma centralidade neste
campo de forças. Aspecto que reforça o caráter ambíguo da relação entre artistas e aqueles
detentores de poder simbólico e econômico, aqui representados pelo Estado.
Apesar da constatação da relevância do poder público, como detentor do capital
político e econômico e de sua centralidade no campo, os agentes culturais no Ceará sentiram
os efeitos ocasionados com as alternâncias de governo e ausência de políticas públicas de
estado, que repercutiam diretamente na descontinuidade de projetos, escassez de verbas e no
papel secundário que era conferido ao tema nas sucessivas gestões estaduais, o que fez com
que a produção artística na década de 80 no Ceará fosse “se reduzindo até tornar-se o estado
do Nordeste com menor número de pessoas dedicadas às artes, segundo pesquisa realizada
pelo MEC”. (BARBALHO, 2005, p.54).
45
Nesse período, vigorava a prática da “cultura de balcão” onde se esperava que a
Secretaria da Cultura apoiasse as iniciativas dos artistas locais que dela lhe valiam. Tempos de
orçamentos pequenos e apoios simbólicos, mas significativos. Foi esse o cenário que estava
posto no Ceará, quando Tasso Jereissati, empresário e governador eleito com a expectativa de
representar ares de mudança e modernização para o Estado, encontrou ao assumir pela
primeira vez o governo em 1987.
[...] um campo cultural frágil no que se refere às instituições públicas. Vigoram no
Ceará as melhores relações clientelistas e paternalistas generalizadas no resto do
país. Não existiam, portanto, estratégias definidas para o setor. (BARBALHO, 2005,
p.54).
No início de sua gestão a cultura não foi considerada uma pasta estratégica. No
entanto, o próprio Estado sofria novas influências de contextos externos como: a criação do
Ministério da Cultura; as novas diretrizes da cultura pautadas por instituições com a ONU e a
UNESCO; a democratização; a retomada da discussão sobre a identidade cultural; a
demarcação de novos espaços; o fortalecimento do conceito de pluralismo cultural; inserção
da Cultura como tema integrante do desenvolvimento social; e, por fim, a criação da Lei
Rouanet. Conforme observa Barbalho: “[...] havia um descompasso entre a pujança dos
debates sobre as políticas culturais realizados em diferentes ambientes e o local desprestigiado
que a Secult ocupava na administração estadual”. (BARBALHO, 2005, p. 60).
No entanto, no esteio dessas mudanças, assumiu a pasta da cultura Violeta Arraes
(1988-1991), irmã do ex-governador pernambucano Miguel Arraes, que ao residir no exterior
por diversos anos se relacionou com inúmeros artistas e políticos exilados no período da
Ditadura. A nova secretária trouxe para a pasta prestígio pessoal e capital cultural, que se
traduziram também em capital político na nova secretaria e mais recursos para a realização de
obras expressivas, como a reforma do Theatro José de Alencar, importante equipamento
cultural do Estado e a realização de grandes eventos nacionais. Violeta conseguiu, mais
simbólica do que efetivamente, mas não por isso com menos valor, aproximar o Ceará do
Brasil e da Europa.
A gestão posterior, do publicitário e pensador Augusto Pontes (1991-1993), tem o
mérito de trazer novas reflexões para o campo cultural, ampliando seu conceito e introduzindo
importantes formulações sobre seu aspecto formativo. Mas foi somente na gestão de Paulo
Linhares (1993-1998) que se produziu um documento mais sistematizado sobre a cultura no
Ceará com o Plano de Desenvolvimento Cultural 1995/1996. Foi nesse período também que
46
se construíram os arcabouços do que deveria ser uma gestão “moderna, competente e eficaz
de cultura” segundo os preceitos neoliberais vigentes na sociedade brasileira.
A pasta da cultura passava a ser vista com destaque, associando-se a seu potencial
simbólico de construção de uma nova imagem do Ceará. O Estado vivia um período de
mudanças e no âmbito da cultura construiu-se o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura,
investiu-se na formação de novos profissionais ligados à arte e a cultura por meio do Instituto
Dragão do Mar de Arte e Cultura e apostou-se na criação de uma indústria audiovisual, que
não chegou a funcionar plenamente.
As iniciativas públicas animavam o mercado cultural que começava a se formar e,
apesar de todo o investimento, o Estado ainda carecia de verbas na pasta da cultura. Assim,
para atender demandas internas e externas, em 1995 foi criada uma Lei de Incentivo à Cultura
estadual, Lei 12.464, que ficou conhecida como Lei Jereissati em alusão ao governador.
Inspirada na criação da Lei Rouanet, a lei instituía dois mecanismos de incentivo à
cultura: o Fundo Estadual de Cultura – FEC e o incentivo a projetos culturais, conhecido
como mecenato cultural. O mecanismo permite aos empresários investir em projetos culturais
no Estado, por meio da transferência de recursos financeiros deduzindo mensalmente até 2%
do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) devido. A Lei Jereissati criou
também o Fundo Estadual de Cultura (FEC) para incentivo e financiamento de atividades
culturais tradicionalmente não absorvidas pelo mercado formal. O Fundo apoia até 80% do
valor do projeto proposto por órgãos municipais ou estaduais de cultura e entidades culturais
de caráter privado sem fins lucrativos. Cabe ao proponente assegurar uma contrapartida no
valor de 20% do montante.
Já o mecenato autoriza que o proponente capte no mercado, com instituições
pagadoras do imposto estadual, o apoio necessário à realização de sua iniciativa. Segundo
esse mecanismo, existem três modalidades de repasse de verbas: a doação com dedução de
100% do valor do projeto aprovado; o patrocínio com repasse de 80% do valor total e a
necessidade de uma contrapartida de 20% pelo proponente do projeto e a modalidade de
investimento, que prevê o repasse de apenas 50% do valor total. Todas preveem diferentes
condições de visibilidade a marca da empresa investidora.
A Lei Jereissati, juntamente com novas políticas públicas imbuídas de uma visão
mais estratégica do setor8, estimulou a dinamização do campo cultural, injetando novos
8 Segundo Barbalho em seu livro “A modernização da Cultura Políticas para o Audiovisual nos Governos Tasso
Jereissati e Ciro Gomes Ceará 1987-1998”, o Estado nesse período cultura nesse período era dirigida por um
47
recursos para a Cultura no Estado e contribuindo para a formação de um mercado local mais
ativo e diversificado. O Ceará viveu, a seu modo, o período de ascensão do marketing cultural
e da modernização da cultura com a realização de diversos eventos e iniciativas que
projetavam a imagem de um Estado pujante e criativo.
Em 2006, já na gestão do governador Lúcio Alcântara (2003-2006) e sob os
auspícios da era Lula, a Lei Jereissati foi revisada e sancionou-se uma nova legislação para o
financiamento à Cultura no Estado (Lei 13.811), que acompanhando as atuais diretrizes da
política cultural nacional, instituía o SIEC - Sistema Estadual de Cultura. Além de ter como
um de seus objetivos a integração ao Sistema Nacional de Cultura, o novo mecanismo traz em
sua essência a ampliação da noção de cultura, englobando conceitos como diversidade e
pluralismo, cidadania cultural, inclusão social, acessibilidade e participação da sociedade,
dentre outros.
Prevê ainda a realização de editais por parte do poder público a ser financiado,
com recursos do Fundo Estadual de Cultura e como instrumento para assegurar a nova
política de acesso democrático de toda a sociedade aos investimentos governamentais. Assim,
acompanhando as mudanças ocorridas no campo da cultura no País, os agentes culturais do
Ceará passam a conviver com as leis de incentivo e os editais, como fontes fundamentais para
a execução de seus projetos, que se somam à Lei Rouanet e aos editais federais. Segundo
depoimento de Claudia Leitão (2003–2006), Secretária da Cultura à época:
O novo SIEC propõe um redimensionamento da Lei estadual de Incentivo à Cultura,
através da criação de uma política de quotas capaz de neutralizar a concentração de
bens e serviços somente na capital do Estado. Deste modo, os recursos do Fundo
Estadual da Cultura passam a garantir uma política de editais para todo o Estado,
democratizando o acesso aos recursos para a cultura a todos os artistas, produtores,
pesquisadores e profissionais das cadeias produtivas das artes e da cultura.
(SANTOS; GUEDES, 2006, p.10).
O poder público passou a direcionar sua atenção para o interior do Ceará,
empreendendo esforços para promover à institucionalização de um Sistema Estadual de
Cultura. Nesta gestão foi dada ênfase a interiorização de ações da pasta, promovendo eventos
regionais e estimulando a criação de secretarias da cultura nos municípios do Ceará. Essa
aparente prosperidade não consegue sobrepor-se a realidade de orçamentos baixos e recursos
insuficientes para arcar com as necessidades e projetos da própria Secretaria, que disputava
secretário com capital social e cultural, que possuía apoio político e promovia uma política cultural definida e
alinhada com os ideais da modernização da gestão, dentro de um padrão midiático.
48
por verbas no campo político e ainda necessitava dos recursos do SIEC para viabilizar suas
iniciativas. Segundo depoimento de Paulo Linhares, em um olhar retrospectivo:
A lei permitiu que até hoje, a Secretaria atravesse crises financeiras como a que
recentemente atravessou e não seja destruída totalmente. O que possibilitou nesses
dois primeiros anos do Governo Lucio, que não tinha dinheiro para nada, uma crise
de financiamento do Estado como um todo, que a Secretaria não parasse totalmente,
que não fosse até fechada, foi uma estrutura do Fundo Estadual de Cultura e da Lei
de Incentivo. Na verdade, o que acontece: os recursos do orçamento são duramente
disputados, passam por crises e a lei corre um pouco fora desse sistema. (SANTOS; GUEDES, 2006, p.72).
O que se percebe é que, mesmo os novos instrumentos de democratização dos
acessos são insuficientes para responder a escassez de recursos. Há deficiências crônicas no
sistema de financiamento que geram instabilidade e disputas em correlação de forças com
diferentes posições e pesos. Entidades ligadas aos equipamentos públicos se utilizam das leis
de incentivo como forma de suprir suas limitações orçamentárias - a própria Secretaria da
Cultura passou a desenvolver vários projetos e se posicionar como mais um captador de
recursos no mercado (em posição muito mais privilegiada) - e compete ao Secretário da
Cultura aprovar “ad referendum” os projetos que julgar conveniente. Estes são só alguns
exemplos do compartilhamento de recursos que se dá entre produtores e Estado com bases nas
leis de incentivo. A essa disputa, somam-se ainda algumas limitações impostas por um acordo
entre as Secretarias da Fazenda e Cultura, que indica um teto para o volume de recursos
disponíveis para captação mensal via renúncia fiscal e a pequena participação das empresas
como financiadoras de cultura por meio do Sistema Estadual de Cultura.
Os velhos problemas perduram e se agravam. O atual governo do Ceará, sob a
gestão de Cid Gomes, iniciada em 2006, não apresenta um destaque na área da cultura que já
está sendo administrada pelo terceiro secretário. A pasta tem enfrentado diversas críticas9,
onde os produtores e artistas demonstram sua insatisfação, reclamando da falta de verbas e de
atenção para com o setor. Como resposta, a nova gestão anunciou a criação de um grupo de
estudo e a realização de uma consulta popular para subsidiar propostas de aperfeiçoamento do
Sistema Estadual de Cultura, responsável pelo financiamento a projetos culturais, cujo
resultado foi anunciado à sociedade em dezembro de 2013 e deverá ser submetido à votação
na Assembleia Legislativa em 2014.
Por sua vez, as políticas públicas municipais dedicadas à Cultura só foram se
efetivar de forma mais estruturada em 2005, quando toma posse como prefeita de Fortaleza,
9 Jornal O Povo 07/09/12 e 26/04/2013.
49
capital do Estado, Luizianne Lins (2005-2012), que no início de 2008 oficializa a criação de
um órgão exclusivo para a cultura no município, a Secretaria de Cultura de Fortaleza –
Secultfor, com o objetivo de criar o Sistema Municipal de Cultura para integrá-lo ao Sistema
Nacional de Cultura do Governo Federal.
A gestão municipal, também em consonância com as diretrizes nacionais e
internacionais de democratização cultural e inclusão social, passa a adotar a política de editais
como sua principal fonte de financiamento para iniciativas culturais realizadas na sociedade.
Com dotação orçamentária insuficiente para suprir a demanda e sem o apoio dos mecanismos
de renúncia fiscal municipal, os editais são financiados com recursos próprios da Secretaria,
que provém de uma conta única do tesouro municipal. Dentre as ações da Prefeitura destaca-
se a criação de um Sistema Municipal de Fomento à Cultura10
, formado por um Fundo
Municipal de Cultura e pelo Mecenato, com deduções de Imposto sobre Serviços de Qualquer
Natureza (ISS) e/ou Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) nos
moldes das outras já existentes, que, no entanto, ainda não foi regulamentada por se encontrar
em avaliação no Conselho Municipal de Cultura.
A Lei Orçamentária Anual - LOA, aprovada em novembro de 2013 pela Câmara
de Vereadores, prevê um aumento de mais de R$ 800 milhões na receita do município,
benefício, porém, que não beneficiará a cultura, uma vez que a receita prevista para Secretaria
Municipal da Cultura sofreu uma redução de 38,6% em relação ao orçamento de 2013.
2.4 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O SISTEMA DE FINANCIAMENTO À
CULTURA NO BRASIL
Mesmo com o passar dos anos, a Lei Rouanet continua a ser utilizada como um
importante instrumento de captação de recursos para viabilizar a realização de projetos
culturais em diversos estados do Brasil, apesar das inúmeras fragilidades, conforme
explicitado por Rubim ao enumerá-las:
1. O poder de deliberação de políticas culturais passa do Estado para as empresas e
seus departamentos de marketing; 2. Uso exclusivo de recursos públicos; 3.
Ausência de contrapartidas; 4. Incapacidade de alavancar recursos privados novos;
5. Concentração de recursos. Em 1995, por exemplo, metades dos recursos, mais de
50 milhões, estavam concentradas em 10 programas; 6. Projetos voltados para
institutos criados pelas próprias empresas (Fundação Odebrecht, Itaú Cultural,
Instituto Moreira Sales, Banco do Brasil, etc.); 7. Apoio equivocado à cultura
mercantil que tem retorno comercial; 8. Concentração regional dos recursos. Um
10Lei Nº 9904 de 10 de abril de 2012. Dispõe acerca do Sistema Municipal de Fomento à Cultura (SMFC).
50
estudo realizado, em 1998/99, pela Fundação João Pinheiro, indicou que a imensa
maioria dos recursos da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual iam para regiões de
São Paulo e Rio de Janeiro. (RUBIM, 2007, p.27).
Esses problemas continuam presentes como desafios a ser superado pelas políticas
públicas de cultura. Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Cultura11
, em 2012 foram
incentivados 3.398 projetos culturais, com um montante de recursos captado de R$
1.230.140.075,39. A região Sudeste captou 73% dos recursos utilizados pela Lei Rouanet em
todo o Brasil e o restante foi distribuído da seguinte forma: 12% na região Sul; 10% na região
Nordeste; 4% na região Centro-Oeste e apenas 1% para a região Norte. A desproporção dos
números na captação de recursos reproduz a mesma lógica de desigualdade social presente no
País.
Essa disparidade, no âmbito da Cultura, dá-se de diversas formas. Inicia-se já na
quantidade de projetos apresentados: em 2012 a região Sudeste aprovou 3.115 projetos na Lei
Rouanet, enquanto a região Norte somente 55. Esses números deixam transparecer não só a
necessidade de ações de divulgação do mecanismo de incentivo, estímulo à participação e
capacitação para o preenchimento dos formulários e gestão de projetos, mas também uma
descrença na obtenção de patrocinadores. As demais regiões também se encontram numa
situação inferior aos números apresentados pela região Sudeste, mas numa posição mais
favorável do que o desempenho da região Norte. O Centro-Oeste aprovou 241 projetos, a
Nordeste 404 e a região Sul 1.022.
No entanto, mesmo que os projetos sejam submetidos e aprovados, os
proponentes ainda têm à frente o enorme desafio de obter a adesão efetiva dos patrocinadores
para seus projetos. Diminuindo ainda mais o espectro de captação para artistas e produtores,
algumas empresas costumam investir recursos em suas próprias instituições ou a entidades e
projetos a elas vinculadas, como é o caso do Instituto Itaú Cultural, que lidera o ranking12
dos
maiores proponentes de projetos culturais na Lei Rouanet de 2012.
As maiores investidoras de projetos culturais se concentram na região Sudeste do
País13
e o acesso a elas não é fácil para os produtores e artistas de regiões menos
11Informações apresentadas em documento que consolida o desempenho da Lei Rouanet em 2012 elaborado e
fornecido pela SEFIC (Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura)/MinC. 12 Lista dos 10 maiores proponentes de 2012: Instituto Itaú Cultural, Fundação Padre Anchieta Centro Paulista e
TVs Educativa; Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, Associação Orquestra Pró-Música do Rio de Janeiro,
Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, Fundação Orquestra Sinfônica de São Paulo, Fundação Bienal de
São Paulo, Associação Sociedade de Cultura Artística e Museu de Arte de São Paulo Assis Chateubriand. 13Em 2012, as 10 maiores incentivadoras da cultura no Brasil foram a Petrobrás – Petróleo Brasileiro; VALE,
Banco do Brasil, Centrais Elétricas Brasileiras - Eletrobrás; Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
51
desenvolvidas. Os projetos com mais proximidade com a indústria cultural e/ou realizados nas
grandes metrópoles (principalmente Rio de Janeiro e São Paulo) apresentam maior potencial
de interesse da mídia e, consequentemente, oferecem mais visibilidade aos patrocinadores,
criando uma situação de "concorrência" bastante desigual. A concentração excessiva de
projetos na região Sudeste do Brasil tem um efeito nefasto na promoção e valorização da
diversidade cultural brasileira. A priorização dos aspectos de visibilidade e retorno
institucional desejada pelo patrocinador também interfere na concepção dos projetos culturais,
que passam a considerar, no momento de sua concepção e produção, formas de se tornarem
mais atraentes aos olhos das empresas.
Esses aspectos ressaltam a crítica que se faz a política de financiamento à Cultura
por meio das leis de incentivo, que é o processo de "privatização" da cultura, uma vez que a
definição de quais projetos serão apoiados e, consequentemente, realizados, concentram-se
nas grandes empresas, detentoras de impostos que asseguram os aportes necessários.
Se no início o mecanismo foi pensado como indutor de novos recursos para a
cultura, esse objetivo não se cumpriu plenamente. Ao estabelecer duas categorias de apoio no
Mecenato14
, a Lei Rouanet autoriza que projetos na área de Artes Cênicas, livros de valor
artístico e cultural, música instrumental e erudita, doação de acervos para bibliotecas públicas
e museus, construção de salas de cinema, produção de obras cinematográficas e preservação
do patrimônio cultural material e imaterial recebam um tratamento diferenciado por parte do
Ministério e gozem do direito de receber o benefício de 100% de isenção fiscal. A facilidade
do benefício de isenção total de impostos foi inserida durante a gestão do ministro Francisco
Weffort, como explicitado anteriormente, dentro de uma estratégia para aumentar o poder de
atratividade da Lei Rouanet.
Esse benefício que, em tese, prevê uma maior atenção a projetos com menor apelo
comercial, de fato, gerou uma crescente demanda por parte de proponentes e investidores, por
iniciativas que gozem do benefício da isenção integral, o que induziu a valorização de
Social - BNDS, Petrobrás Distribuidora; Bradesco Vida e Previdência, Souza Cruz, Telecomunicações de São
Paulo e Cielo. 14 O artigo 18 prevê um tratamento diferenciado por parte do Ministério para alguns segmentos que gozam do
direito de receber o benefício de 100% de isenção fiscal. Enquadram-se nessa categoria projetos na área de
Artes Cênicas, livros de valor artístico e cultural, música instrumental e erudita, doação de acervos para
bibliotecas públicas e museus, construção de salas de cinema, produção de obras cinematográficas e preservação
do patrimônio cultural material e imaterial, dentre outros. As demais categorias culturais se enquadram no artigo
26, que autoriza a dedução de 80% do apoio, obrigando que o patrocinador desembolse 20% do valor do apoio
com recursos próprios.
52
algumas expressões culturais em detrimento de outras, afetando a pluralidade e integridade
das expressões artísticas e culturais.
Com o passar dos anos, criou-se uma tendência no mercado de priorizar o aporte
de recursos em projetos integralmente beneficiados. Caso houvesse uma mudança radical
nesse sistema, é provável que poucas empresas se disponibilizassem a investir recursos
próprios em projetos culturais. Situação que poria em risco diversas iniciat ivas bem sucedidas
em todo o Brasil, provocando uma crise em um setor que, apesar dos problemas, vem
passando por um período de dinamização. Dessa forma, qualquer alteração no sistema de
financiamento à Cultura no Brasil demandará uma operação precisa e paciente, para alterar as
regras sem inviabilizar o jogo.
Os mecanismos de renúncia fiscal instauraram também uma nova relação entre o
setor público e privado, que afeta o Estado, as empresas, os atores do campo da cultura e a
sociedade, relação de contornos fluidos, onde nem sempre fica claramente delineado o papel
de cada um. Quase vinte anos depois de criado o mecanismo da Lei Rouanet, observamos que
ainda não há um consenso sobre a quem pertencem os recursos utilizados nas leis de incentivo
à Cultura. Alguns entendem que a verba utilizada pelas empresas em benefício de divulgação
de sua imagem é pública, uma vez que é proveniente de impostos. Outros compreendem que,
uma vez que optou pela renúncia, o recurso não pertence mais ao Estado, podendo e devendo
ser amplamente utilizado pelas empresas. O que se destaca aqui é a falta de consensos
mínimos sobre o sistema que ancora a política de financiamento à Cultura no Brasil e a
percepção de que, em última instância, os recursos pertencem à sociedade, que paga os
impostos.
A questão dos investimentos públicos e privados na cultura se torna mais
complexa se observarmos que na listagem dos 10 maiores incentivadores de cultura, via Lei
Rouanet, em 2012. Cinco são estatais, enquanto na lista de beneficiados com maiores verbas
captadas, encontram-se diversos proponentes15
cujas iniciativas dizem respeito a projetos
relacionados a instituições e equipamentos de interesse público. Esse aspecto exemplifica o
labirinto em que se encontra o sistema de financiamento à Cultura no Brasil.
O MINC buscava alternativas de aprimoramento do mecanismo, formas de
aperfeiçoar o diálogo com a sociedade e estimular uma maior participação de novos
contribuintes. No entanto, como afirma João Leiva, o debate foi prejudicado pela falta de
15Fundação Catarinense de Cultura; Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo; Secretaria de Estado
da Cultura de São Paulo; Associação de Amigos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro; Fundação Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo; Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, dentre outros.
53
clareza na identificação dos aspectos positivos e negativos que o mecanismo trouxe para a
área cultural e no excesso de opinião que era acompanhado da mais absoluta falta de
informação. (LEIVA, 2009). O próprio Ministro da Cultura Juca Ferreira (2008-2010)
protagonizou inúmeros debates onde afirmava de que o modelo atual é “inviável, injusto e
hipócrita”. (FERREIRA, 2009). Diante da possibilidade de visões reducionistas e/ou
maniqueístas, Leiva pondera que:
E esse é um perigo enorme, pois pode nos levar a tomar a regra por exceção, a
mistificar as distorções, a inverter responsabilidades, a confundir problemas
pontuais com questões estruturais e, pior, a dar um tiro no pé, eliminando da lei
justamente seus principais aspectos positivos.
Muita gente ainda não entendeu sequer que o poder público é na verdade o principal
agente da Lei Rouanet. O MinC é o responsável pela aprovação e pela fiscalização
de todos os projetos patrocinados e as estatais definem o destino de cerca de 40% dos recursos! Mas é mais cômodo acreditar que o “mercado” é o grande controlador
e vilão da lei. (LEIVA, 2009, p.43).
Henilton Menezes, ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do Ministério
da Cultura, em palestra proferida no Seminário ProCultura na cidade de São Paulo, em maio
de 2012, apresenta os benefícios e aponta as deficiências do mecanismo da Lei Rouanet,
reconhecendo a incapacidade do mecanismo de traduzir o atual momento da cultura brasileira
no quesito diversidade e territorialidade; a indução ao investimento em projetos e segmentos
culturais que permitem 100% de abatimento do imposto de renda; a promoção da
concentração de recursos em dois estados brasileiros; a ausência de estímulo ao investimento
privado na Cultura; a exclusão de agentes culturais, que não têm acesso aos patrocinadores; o
fato de tornar o produtor e seus projetos reféns dos recursos incentivados; e, por fim, o mais
importante: a não garantia ao acesso dos brasileiros à Cultura.
A despeito de todas as fragilidades que o mecanismo apresenta, é inegável sua
importância para o desenvolvimento de um mercado da cultura no Brasil. Inúmeras iniciativas
de alta relevância cultural e valor artístico foram realizados no País, com o apoio da Lei e
diversas profissões e atividades se criaram no esteio do crescimento cultural observado desde
sua criação. Parece-nos que muitas das críticas que o modelo de renúncia fiscal recebe ganha
maiores proporções devido à ausência de outros mecanismos de financiamento, à fragilidade
de nossas políticas culturais, a pouca percepção que a sociedade tem da Cultura como direito
fundamental e necessário, assim como o fortalecimento do campo da Cultura e da
consolidação de hábitos de consumo cultural em nosso País.
Vivemos em um período de transição, onde mudanças precisam ser feitas e
conquistas mantidas. É preciso assegurar a consolidação das políticas públicas e a atuação do
54
Estado, a liberdade criativa sonhada por Celso Furtado e uma participação mais potente e
igualitária da sociedade na gestão da cultura, onde se incluem artistas, produtores e
empresários. Conforme descreve Teixeira Coelho:
Em outras palavras, o velho não foi consolidado e o novo ainda não se fortaleceu:
esse é, de fato, um efeito perverso da lei de incentivo. Mudanças precisam ser feitas
como em todo organismo vivo. Mas mudanças que preservem o espírito da lei:
liberdade, ação direta, autogestão – seguida, se for o caso, de cogestão. (COELHO,
2009, p.14).
Foi nesse contexto que os editais se apresentaram como uma alternativa
importante para resolver alguns dos problemas identificados nas leis de incentivo. Utilizados
inicialmente pelo poder público em nível federal, estadual e municipal, passam a ser
utilizados também pelas empresas16
para selecionar projetos que serão incentivados por elas.
Diferentemente dos editais do Governo Federal e governos estaduais, estes preveem maiores
recursos e são utilizados para facilitar o processo de seleção dos projetos, já beneficiados
pelas leis de incentivo brasileiras, que receberão apoio das empresas.
Gradativamente os editais passam a fazer parte da rotina daqueles que precisam de
financiamento para seus projetos culturais. Lançados em datas dispersas ao longo do ano,
estes mecanismos de seleção pública preveem incentivo para produção de diferentes
linguagens artísticas, festividades populares, datas comemorativas, culturas tradicionais,
processos criativos, festivais, dentre outras, envolvendo um espectro mais diversificado de
iniciativas culturais e linguagens.
Os editais são processos públicos de seleção de projetos que, em sua maioria,
operam com a lógica de repasse de valores módicos a um número maior de beneficiados,
como um contraponto as leis de incentivo, que possibilitam a captação de somas maiores na
mão de poucos proponentes. Exatamente por isso são utilizados prioritariamente por pequenos
artistas e produtores, além de associações sem fins lucrativos. Devido a seu poder de
capilaridade social e sua esfera de micro atuação, os editais tornaram-se imprescindíveis na
concepção de política cultural efetuada durante e após o governo de Lula, que estimulou a
valorização das culturas populares e do cidadão como produtor de cultura.
16
Oi, Volvo, Votorantim, Natura, Itaú, Correios, Petrobrás, Caixa, BNB e outros, são algumas das empresas que
lançam editais periodicamente para selecionar projetos que serão contemplados para patrocínio. Alguns exigem
que o projeto seja contemplado em leis de incentivo estaduais e/ou federal e outros preveem o repasse de verba
direta.
55
Usados também como mecanismo de ativação de políticas e campos de interesse
do Estado, os editais podem ser compreendidos como um recurso17
onde a sociedade se torna
parceira do Estado, na busca da resolução das mazelas sociais que afligem o País. Em sua
maioria, os editais públicos solicitam contrapartidas sociais e demandam a realização de
projetos, que promovam algum tipo de inclusão, acessibilidade, promoção social,
desenvolvimento territorial e valorização de segmentos excluídos, só para citar alguns. Essa
percepção é mais nítida nos editais afirmativos, conforme observado por Barbalho, Gadelha e
Holanda:
É uma forma complexa e sutil de estimular à participação social, disciplinando-a e controlando-a desde sua criação e ainda assegurar seu caráter social e benéfico. Os
editais de ação afirmativa são apresentados como mecanismos que oferecem
diversos benefícios à sociedade: além de relevância artística, cultural ou científica,
ainda asseguram o atendimento de fins socialmente justificáveis, como inclusão
social, reconhecimento e afirmação identitária, reparação de problemas e práticas
discriminatórias. Uma cultura útil e boa, que serve a sociedade neoliberal,
contribuindo para a ideia da redução dos problemas gerados por ela. Conformada e
adequada por meio de editais, com sua seleção condicionada ao cumprimento de
todos os preceitos exigidos pelo Estado. (BARBALHO; BEZERRA; GADELHA,
2013, p.16).
Também pode ser considerado um instrumento de contenção social, uma vez que
se propõe tal qual o Bolsa Família18
, a suprir uma necessidade básica e crescente de produção
cultural diluída em todo o País, sem, no entanto, promover uma possibilidade de rompimento
desses laços, fazendo que diversos agentes culturais se considerem “editais dependentes”.
Continua a se reproduzir, por outros instrumentos, uma cultura de dependência onde o Estado
permanece na centralidade do repasse de verbas.
Mesmo que se pretendam universais e acessíveis, os editais são também criticados
por excessivas exigências de documentação, tanto no momento da inscrição como no de
prestação de contas, tornando o processo burocrático e por vezes inacessível para diversos
atores do campo da Cultura.
Na prática, os dois mecanismos, editais e leis de incentivo, mesmo com todas suas
deficiências, têm sido responsáveis pela realização da quase totalidade dos projetos de cunho
17De acordo com Miller e Yúdice (2004), a cultura vem sendo utilizada progressivamente como importante
recurso para a obtenção de fins sociopolíticos e econômicos e minimização de problemas sociais. Conforme
assinala os autores “a cultura não é mais experimentada, valorizada ou compreendida como transcendente. A arte
e a cultura são vistas como fundamentalmente interessadas” (MILLER; YÚDICE, 2004, p.27-28). 18 O Programa Bolsa Família prevê a transferência direta de renda para beneficiar famílias em situação de
pobreza e de extrema pobreza em todo o País. Mensalmente, o governo federal deposita uma quantia para as
famílias que fazem parte do programa, de acordo com o tamanho da família, da idade dos seus membros e da sua
renda. O programa objetiva, em curto prazo, minimizar os transtornos decorrentes de uma situação de pobreza
extrema e é criticado por seu caráter assistencialista e por criar uma cultura de dependência.
56
cultural realizados pelos produtores brasileiros. Como já foi dito, em geral, os projetos
maiores com mais atrativo de visibilidade se ancoram nas leis de incentivo e as iniciativas
menores nos editais. No entanto, muitas vezes esses mecanismos se mesclam, sendo usados
concomitantemente, de acordo com a oferta e a oportunidade. Outras vezes, dependendo de
fatores externos, onde há oscilação nas políticas e descontinuidades, um mecanismo pode
funcionar como suporte do outro, criando condições de sustentação das iniciativas.
O Ceará não foge aos parâmetros mencionados. Os maiores eventos se utilizam
regularmente das leis de incentivo, federal e estadual, e pontualmente dos editais, enquanto
artistas e pequenos e médios produtores trabalham com editais, que tem assumido nos últimos
anos um peso grande na mobilização de recursos para a Cultura.
É importante destacar que em 200619
foram realizadas alterações na sistemática de
funcionamento da Lei Estadual que, ao invés de promover uma maior agilidade nos trâmites e
acompanhar o dinamismo da produção cultural, gerou mais lentidão e maior burocracia. A
mudança determina o lançamento anual de pelo menos um processo público de seleção de
projetos culturais, com recursos do Fundo Estadual de Cultura - FEC. Essa nova organização
deu mais morosidade nos processos, uma vez que anteriormente a lei de incentivo estadual era
disponível para demanda espontânea ao longo do ano e agora passa a depender dos prazos da
Secult, juntamente com os outros editais.
As críticas mais comuns se referem ao desencontro da agenda de projetos
realizados no Estado, com o calendário do edital da Secult e ao atraso no repasse de verbas.
Mensalmente a Secretaria de Cultura do Estado divulga uma relação onde constam os
projetos, que receberão o Certificado Fiscal de Incentivo à Cultura – CEFIC, documento que
autoriza o investidor a deduzir o imposto em prol de um projeto cultural beneficiado pelo
Mecenato.
Uma Portaria20
assinada pela SEFAZ e SECULT regulamenta o limite máximo
mensal a ser repassado para a Cultura por meio da SIEC. Atualmente o teto é R$ 1.197.000,00
e há uma previsão de que em 2014 passe a vigorar o valor mensal de R$ 1.700.000,00. Na
relação de beneficiados com o CEFIC de julho de 2013, das vinte e cinco iniciativas
contempladas, doze21
são eventos com data fixa e já realizados, que ainda aguardavam a
19 Lei 13.811 de 16/08/06. 20 Portaria Conjunta SECULT/SEFAZ nº 01/2010 de 03 de março de 2010, publicada no Diário Oficial do
Estado do dia 09 de abril de 2010, página 06. 21
III Festcine de Maracanaú - Festival de Cinema Digital e Novas Mídias (4 a 9 de junho de 2012); Feira da
Música 2012 (22 a 25 de agosto 2012); 23° Festival Ibero Americano de Cinema (07 a 04 de setembro de 2012);
Festival Floração do Maracujá (26 a 28 de setembro de 2012); Bienal de Par Em Par 2012 (19 a 28 de outubro de
2012); Ceará Musical (12 a 13 de outubro de 2012); VII Festival da Lagosta (15 a 18 de novembro de 2012);
57
liberação da Secult para quitar seus pagamentos. Encontram-se, dentre estes, iniciativas
realizados em junho de 2012, como o III Festcine de Maracanaú, portanto, com quase 11
meses já passados do período de realização do projeto. Nesta mesma relação de julho de 2013,
o valor a ser repassado aos eventos já realizados chegava a um montante total R$ 613.438,00,
mais da metade do valor devido. É importante destacar que a liberação do CEFIC não
significa necessariamente o acesso automático a essa verba, uma vez que a efetivação do
pagamento ainda depende da disponibilização orçamentária da empresa apoiadora.
Outro aspecto que fragiliza a boa performance do Sistema Estadual de Cultura no
Ceará é a participação reduzida de empresas com potencial para fazer maiores aportes como
patrocinadora, o que leva uma concentração da quase totalidade de recursos em poucas
instituições, gerando uma excessiva dependência das cifras da cultura do Estado, tanto para
uso no Mecenato como no FEC, na mão de praticamente 11 empresas investidoras. Uma
delas, sozinha, responde por aproximadamente 70% do total dos recursos. Para ilustrar a
precariedade do SIEC e a baixa adesão das empresas locais é só fazer um comparativo com a
Lei Rouanet22
, que contou, somente no ano de 2012, com 7.768 investidores na forma de
pessoa jurídica e com 16.955 investidores pessoa física.
Essa situação demonstra uma fragilidade orçamentária de grandes proporções para
o financiamento à Cultura no Ceará, tornando-o altamente vulnerável. Em 2011 essa maior
empresa investidora de cultura no Estado, pelo SIEC, sofreu alterações na sua gestão
administrativa, que acarretou mudança nos trâmites de aprovação dos projetos que realizados
no Ceará. A apreciação de quais iniciativas merecerá apoio da empresa, agora são decididos
no exterior o que, além de uma situação peculiar, ainda acarreta uma perda de agilidade nos
processos decisórios, que pode demorar até quatro meses em seu trâmite de aprovação
interna/internacional, ou seja, no prazo necessário para comunicar ao produtor se o projeto
será aprovado ou não. Essa vulnerabilidade atinge inclusive as ações do poder público, que
também necessita dos recursos aportados no Fundo Estadual de Cultura – FEC para executar
projetos de seu interesse, inclusive os editais anuais.
Esses aspectos contribuíram para uma situação de crise e precariedade no sistema
de financiamento à cultura no Ceará, fazendo com que em novembro de 2013 o recém-
empossado secretário Paulo Mamede reunisse os produtores para iniciar uma etapa de diálogo
e parceria na resolução dos problemas. Trabalha-se em três frentes: na proposta de alterações
Mostra Itinerante de Cinema do Ceará (10 a 17 de Novembro de 2012); VIII Curta Canoa (27 de novembro e 1º
de dezembro 2102 ); III Manifesta! - Festival das Artes (8 de dezembro de 2012); Festival Jazz e Blues 2013 (09
a 15 de fevereiro de 2013); Dragão Fashion (13 a 18 de março de 2013). 22 Dados disponíveis no site no Ministério: <http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/S>.
58
do Sistema Estadual de Cultura, na organização de um novo calendário de recebimento dos
recursos atrasados e na captação de novas empresas para incrementar as fontes de recursos
disponíveis para aplicação no SIEC, visando à manutenção do calendário de eventos culturais
realizados no Estado.
Em dezembro de 2013 foi apresentada à sociedade uma proposta de alteração no
SIEC, que prevê o aumento do valor da dedução do ICMS de 2% para até 3% (três por cento)
do ICMS para aporte no FEC ou Mecenas e ainda a transferência direta de 1,5% da receita
orçada proveniente do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e
sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação
– ICMS em favor do Fundo Estadual de Cultura. Também prevê uma maior participação da
sociedade no Comitê Gestor do SIEC e a volta do recebimento de projetos apresentados por
demanda espontânea, no período de fevereiro a novembro. Essas mudanças ainda serão
apresentadas a Assembleia Legislativa para apreciação e posterior votação.
A situação dos recursos para a Cultura também tem enfrentado obstáculos na
gestão do município de Fortaleza, que vem sendo criticada na imprensa23
pelo atraso no
repasse de verbas dos editais. Os produtores reclamam do descumprimento de prazos, da falta
de diálogo e atenção e da burocracia nos pagamentos, que fragiliza todo o campo.
Não bastassem todas essas dificuldades, outro aspecto merece ser observado: as
leis de incentivo e editais têm garantido a realização de inúmeras iniciativas, mas não
asseguram a continuidade e manutenção delas, uma vez que os projetos são formulados com
previsão de início, meio e fim, enquadrados e cronogramas e orçamentos finitos e
previamente aprovados.
Essa situação tem se configurado no decorrer desses anos como um dos maiores
paradoxos das políticas culturais do Brasil. Por meio de diferentes mecanismos, estas têm sido
responsáveis pelo surgimento e proliferação de inúmeras iniciativas de pequeno, médio e
grande porte em diversas localidades do País. No entanto, a gestão e sustentabilidade desses
projetos ainda são desafios a serem superados.
Desde os grandes projetos e eventos, até as atividades mais tímidas, mesmo que
tenham conseguido alcançar seus objetivos na captação dos recursos, se quiserem continuar a
desenvolver seus projetos, terão que iniciar todo o processo novamente. Isso cria uma espécie
de regra no "jogo" da cultura, onde, no final da partida, automaticamente, o jogador volta para
a primeira casa e inicia nova etapa, praticamente do ponto zero. Como esses projetos não são
23 O POVO de 25/11/ 2012 e Diário do Nordeste de 28/10/2013.
59
autossustentáveis há a impressão de que tudo o que está sendo feito no campo da produção
cultural, baseado nos mecanismos disponíveis no atual sistema de financiamento, são como
construções de castelos em bancos de areia. Além de retrabalho, o sistema não favorece uma
cultura de planejamento, aproveitamento de recursos e continuidade das iniciativas.
Por fim, é importante destacar que o aperfeiçoamento do sistema de
financiamento à Cultura no Brasil pede soluções estruturais e políticas, que trabalhem com
cenários de médio e longo prazo, assim como a percepção da Cultura como pauta importante
na agenda pública do País, como destaca Barbosa da Silva:
O entusiasmo com o aumento dos recursos incentivados desvia a atenção do fato de que as instituições federais de cultura foram penalizadas com a falta de
investimentos e de recursos orçamentários que lhes permitisse a ampliação de suas
capacidades de ação cultural.
[...] o aumento dos recursos orçamentários para a vitalização e ampliação das
instituições públicas federais nas suas capacidades de operação na área cultural,
embora central, não envolve simplesmente o apreço ou desapreço dos
administradores públicos pelas coisas da cultura, sendo que a ampliação ou
diminuição dos recursos depende, por um lado, das estratégias gerais do governo
com relação a variáveis macroeconômicas e, por outro lado, envolve a ampliação da
capacidade de gasto e de melhor uso dos recursos orçamentários por parte das
instituições públicas culturais. Ou seja, exige ampliação da capacidade de gestão e
planejamento. (SILVA, 2009, p.19).
Essas considerações sobre o sistema de financiamento à Cultura no Brasil e no
Ceará, longe de esgotar o tema, pretendem apenas apresentar algumas questões necessárias
para a compreensão da produção cultural no Brasil contemporâneo, nosso tema de pesquisa,
uma vez que é nesse campo, marcado por tensões, disputas, instabilidades e também
conquistas e realizações que tem se forjado o crescimento dessa nova categoria profissional
que é a dos produtores culturais.
No próximo capítulo, iremos nos deter mais detalhadamente no estudo do
funcionamento do campo da produção cultural e nas suas relações com as políticas públicas,
bem como no entendimento de como esse sistema de financiamento repercute na produção
cultural.
60
3 O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE
FINANCIAMENTO À CULTURA
Uma vez tendo sido feita uma breve contextualização sobre o sistema de
financiamento à Cultura no Brasil contemporâneo, que envolve relações entre mecenas,
benfeitores, governantes e artistas, pretendemos agora direcionar nossa atenção para outro
tipo de agente muitas vezes partícipe dessa relação, que tem desempenhado um papel oculto,
porém, essencial: o de possibilitar a concretização do percurso que se dá entre o momento da
inspiração artística até a sua contemplação pelo público, passando pela etapa de captação de
recursos.
Falamos de pessoas que, mesmo não sendo necessariamente artistas e nem
detentoras de recursos financeiros, materiais ou políticos, que lhes confira uma condição de
poder para viabilizar a produção de uma obra de arte ou projeto cultural, trabalham
incansavelmente e, por vezes, anonimamente para criar as condições necessárias à
concretização de uma ideia artística.
Em muitas ocasiões, são pessoas com características específicas e que têm em
comum afinidade com o campo das artes e convicção no potencial de um projeto ou de um
artista. Possuem uma considerável capacidade de realização, articulação e negociação, assim
como a força de superar desafios para possibilitar a concretização de empreendimentos
artísticos e culturais em que acreditam.
A Literatura não abriga muitos títulos sobre esses personagens, o que dificulta a
identificação de seu lugar no campo da Cultura e a observação mais precisa da sua
contribuição ao longo da História da Arte. No entanto, é de se imaginar que esse tipo de
atividade que impulsiona, organiza e viabiliza a produção artística deve ser tão antiga, quanto
necessária. Supomos que muitas pessoas que atuaram anonimamente, junto a artistas e
financiadores, tiveram um papel fundamental na mediação de relações e produção de grande
parte do legado artístico e cultural que conhecemos hoje.
Para ilustrar o relevante papel que essas pessoas tiveram ao longo da História,
retrataremos aqui um pouco da vida de Cosima Liszt (1837-1930), com base na obra
“Cosima: A Sublime”, de Françoise Giroud, que narra a história de uma mulher que
desempenhou um papel indispensável na vida de importantes artistas e, no entanto, permanece
desconhecida para a grande maioria do público.
61
Filha do compositor Franz Liszt, Cosima casou-se primeiramente com o regente e
pianista Hans Von Bulow, de quem se separou para unir-se ao compositor Richard Wagner,
provocando grande escândalo na sociedade. Teve também um destaque na vida de Friedrich
Nietzsche, que nutria por ela uma enorme admiração e fascínio e a quem ofereceu o primeiro
manuscrito de sua obra “Nascimento da Tragédia”. No entanto, vamos nos ater aqui ao papel
importantíssimo que Cosima teve na carreira de Richard Wagner, atuando ao seu lado na
viabilização das condições necessárias para que o artista pudesse criar, subsistir
materialmente e apresentar suas criações ao público, o que possibilitou um importante legado
musical à humanidade.
Inteligente, conhecedora das artes e pianista, Cosima tinha um forte magnetismo
pessoal. Recebia a sociedade local, frequentava salões e articulava contatos que eram
imprescindíveis para um ambiente propício e favorável ao artista. Abraçou a carreira do
marido, contribuindo para a glória de Wagner.
O seu trabalho assegurou, além da sustentação financeira de compositor e da
família, as condições necessárias para suas criações artísticas. Para isso, planejou e envolveu-
se em inúmeras e complexas articulações com autoridades instituídas, particularmente Luís II,
rei da Baviera, em busca da imprescindível adesão e financiamento permanente para o artista.
Luís II, tocado de maneira profunda pela arte de Wagner, foi incisiva e
permanentemente assediado por Cosima, que demandava um número crescente de recursos
para o compositor. Tornou-se o grande patrocinador do artista, numa relação íntima e
complexa que envolvia afinidades artísticas, afetos, intrigas, poder, política e economia.
Relação tão forte que fez Wagner afirmar que “seremos mais felizes que quaisquer outros
mortais, porque nós três – o rei inclusive – somos imortais”. (GIROUD, 1998, p.51).
Cosima também teve um papel decisivo na construção do teatro de Bayreuth24
e
na realização de 13 festivais musicais lá apresentados. Dedicou grandes esforços para sua
viabilização, promovendo ações de persuasão para captação de recursos junto a diversos
patrocinadores. Com isso, tornou possível o sonho de Wagner de apresentar suas peças -
dentre elas Siegfried, A Valquíria, O Ouro do Reno, Parsifal - em um teatro próprio. Suas
belas composições não deixavam transparecer a trajetória de altos e baixos em busca de
recursos, perceptíveis na afirmação de Wagner a respeito de sua parceira: “Cada pedra dessa
construção é vermelha do meu sangue e do teu”. (GIROUD, 1998, p.131).
24 Inaugurado em 1876, foi concebido especialmente pelo compositor para apresentar suas obras. Demorou
quatro anos para ser construído, o que demandou enormes esforços de Wagner e Cosima para assegurar sua
viabilização. Localizado na Alemanha, é hoje um importante reduto dos apreciadores de Wagner.
62
O papel de Cosima pode ser melhor mensurado se observamos que Wagner,
quando a encontrou, estava numa situação financeira desastrosa, ameaçado de prisão por
dívidas, sem credibilidade e apoio pecuniário, o que apresentava repercussão direta em seu
processo criativo. Ao fim de 20 anos de convivência e trabalho e 67 dedicados à sua obra,
Wagner era um dos mais importantes compositores do mundo.
Cosima trabalhou diariamente, ao longo de anos, pela criação de condições que
garantissem a viabilização das ideias e projetos do compositor, animando-o e assessorando-o
no aspecto artístico, na construção e administração do teatro, na gestão dos músicos,
concepção dos figurinos e maquiagem, na direção técnica dos espetáculos, negociação de
direitos autorais, relações com a imprensa, contatos com a elite e patrocinadores, realização
de eventos de captação, emissão de certificados de patrocínios, organização de turnês, etc.
Apesar de Wagner ter se tornado uma celebridade mundial, enganam-se quem
subestimar a importância de Cosima, pois sua “verdadeira natureza era o comando”.
(GIROUD, 1998, p.101). Importância creditada a ela pelo próprio Wagner que afirmava:
“Nós ficaremos, você e eu, na memória dos homens. Você, sobretudo”. (GIROUD, 1998,
p.79). No entanto, a previsão de Wagner não se concretizou. Em menos de cem anos, o nome
e a importância de Cosima se apagaram no tempo.
Essa falta de visibilidade não diz respeito somente a Cosima. Ao nos remetermos
à produção cultural e artística de distintos períodos da sociedade moderna, nos referimos,
quase que automaticamente, aos seus criadores e/ou movimentos culturais e, em alguns casos,
a seus mecenas e benfeitores. Pouco se destaca sobre os agentes que tiveram papel
preponderante para que essas ideias e criações se tornassem realidade.
Para ilustrar essa afirmação em período um pouco mais recente, podemos
apresentar o exemplo da Semana de 2225
. Quando são citados nomes do movimento
modernista no Brasil, se refere comumente a Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral,
Vila Lobos, Victor Brecheret, Di Cavalcante, dentre outros. São artistas e intelectuais que,
com suas produções artísticas e debates acalorados na mídia, participaram de um momento
criativo da cultura brasileira, que expressou artisticamente um movimento de ruptura próprio
de uma metrópole emergente. A História registra e consagra artistas e obras.
No entanto, ao adentrarmos os bastidores do evento, encontramos outros
personagens fundamentais que garantiram não só os recursos financeiros, mas o senso de
25 Evento ocorrido em São Paulo no ano de 1922, nos dias 13 a 17 de fevereiro. Realizado no Teatro Municipal,
com uma programação de pintura e escultura, poesia, literatura e música, marcou o início do modernismo no
Brasil e tornou-se referência cultural do século XX.
63
oportunidade e a objetividade necessária à realização da empreitada. Um deles é o intelectual
paulista Paulo Prado, ilustrado fazendeiro que atuou como um elo entre gerações, sendo
orientador e proponente de questões para os jovens artistas. Prado mobilizou a sociedade
paulista em torno do projeto de um evento nascente, garantiu as condições necessárias à sua
realização e conferiu prestígio, poder, recursos e organização à empreitada dos modernistas.
Seu papel, apesar de fundamental, também não é devidamente destacado na história da
Semana de 22. (GONÇALVES, 2012).
Paulo Prado representava a personalização do poder político, cultural e
econômico, que possibilitou a concretização dos sonhos dos jovens da pauliceia. Mas, além de
emprestar prestígio ao projeto de realização da Semana de 22, conferiu a esta a capacidade de
execução e organização que faltava aos artistas para levar à sociedade uma apresentação mais
estruturada de suas ideias e produções artísticas. Foi dele a sugestão da realização do evento
no Theatro Municipal de São Paulo e a obtenção do espaço para este fim, além da
mobilização de recursos para viabilizar a empreitada e a divulgação do mesmo junto à elite
paulistana. Sua importância foi tanta que fez Mário de Andrade afirmar que:
[...] o grande responsável pela Semana – seu fautor verdadeiro – não poderia
ter sido outro senão o abonado e bandeirantíssimo Paulo Prado, o homem que
levantou, com seus amigos da alta sociedade paulista, os meios para realizar
os festivais no Municipal. (GONÇALVES, 2012, p.253).
A relevância que os modernistas atribuem a Paulo Prado remete à convicção com
que Wagner falava da importância de Cosima para sua vida e obra. Interessante destacar que a
esses personagens é atribuído não só um papel executivo e operacional, mas também uma
relevância no sentido de planejamento e estratégia de condução dos acontecimentos, visando à
obtenção dos objetivos propostos.
Importância esta que não tem sido devidamente (re)conhecida pela História,
fazendo-nos imaginar que muitos outros podem ter ocupado um papel semelhante, ao lado de
artistas e ideias inovadoras. Essa constatação nos instiga a refletir sobre algumas questões:
que papel essas pessoas cumpriram para se configurar assim como tão necessária aos artistas?
A que se deve essa aparente irrelevância histórica?
Este capítulo se propõe a identificar os lugares ocupados por esses agentes
culturais na sociedade contemporânea em um esforço de reconhecimento da atividade, sua
função, atribuições e diversas nomeações a que tem recebido, assim como seus significados.
Buscamos apresentar o processo que possibilitou a inserção desses agentes no campo cultural
64
em uma perspectiva de formação de atividade profissional, assim como questionar as
condições de exercício do trabalho hoje.
Uma vez reconhecida essa prática, cabe-nos indagar que transformações lhe têm
sido postas, com o desenvolvimento do Capitalismo e a crescente complexidade da sociedade
de rede, globalizada, multifacetada e diversa culturalmente e qual o papel essa atividade
ocupa hoje no campo da cultura e quais atribuições lhe competem no sistema cultural
contemporâneo.
Para isso, faremos uma breve retrospectiva sobre como se formou a categoria em
suas relações com as políticas públicas, principalmente aquelas relacionadas à captação de
recursos. Nesse retrospecto, daremos especial atenção à formação dos produtores culturais no
Ceará e a formação do campo de atuação no Estado.
Objetivamos, por fim, compreender como a categoria se insere no campo social e
apresentar as especificidades desse campo e suas principais tensões e disputas em seu
relacionamento com as políticas culturais de financiamento à Cultura, base de sustentação da
atividade, no Brasil e no Ceará.
3.1 COMPREENDENDO O LUGAR: PERCURSOS E NOMEAÇÕES
Inicialmente, podemos constatar que a função primordial do agente que
desempenha esse papel de organização nos bastidores é dar forma, viabilidade, garantir a
realização e efetividade de ideias no campo cultural e artístico. Exatamente por ter essa
finalidade, configura-se como uma atividade de intermediação, ligando pontos e pessoas em
prol de objetivos comuns. Talvez nesse aspecto resida uma das razões de sua pouca
visibilidade, pois quem desempenha essa atividade não tem necessariamente, como principal
atributo, a posse de recursos financeiros e materiais, nem a capacidade criativa dos artistas,
ainda que isso não seja excludente, mas possui a capacidade de criar condições que integrem
uns aos outros. Situa-se numa condição que, apesar de fundamental, não lhe assegura a
exposição e prestígio dos detentores de poder econômico ou político, nem o carisma que
costuma acompanhar os artistas.
Essa realidade é explicitada em um jargão na atividade que diz: “O bom produtor
é aquele que não aparece. Se ele aparecer é porque algo deu errado.” Além de retratar uma
característica coloquial da atividade profissional, a expressão sugere a necessidade de um
65
olhar mais apurado sobre aquele que está presente e não aparece. É sobre esse “não
lugar/lugar” que direcionamos nossa atenção.
Falamos de uma atividade que, apesar de ainda ocupar um espaço pouco visível
no campo da cultura, desempenha uma função essencial para viabilizar a trajetória de
encontro de um produto artístico com seu público. Em nossa percepção, essa função que já
deve ter sido desempenhada muitas vezes de forma espontânea e sem nomeações específicas
em diversos momentos da História, com certas características e regularidades, merece ser
mais investigada e compreendida. Cumpre-nos refletir sobre a existência de suas práticas e
saberes em comum, apesar das diferenças de contextos, situações e condições históricas.
É uma função que pode ser desempenhada pelos próprios artistas ou por pessoas
que a ele estejam próximas e apresentem afinidades com a Arte, mas, principalmente, por
pessoas que tenham características empreendedoras para criar as condições necessárias à
execução de projetos e ideias no campo da cultura. Essa prática se traduz em uma disposição,
um modo de se colocar e operar em situações concretas e específicas.
Remetemo-nos aqui ao conceito de habitus, de Bordieu, considerando-o um
conjunto de disposições incorporadas que tornam “explícitas as relações intrincadas, embora
convergentes, entre as disposições inconscientes e as experiências por elas estruturadas [...]”
(BOURDIEU, 2007, p.161) para perceber que esse conhecimento foi se dando de forma
cumulativa e gradual, com base em afinidades, características pessoais e trajetórias de vidas,
que repercutem na subjetividade e nas práticas desses agentes, produzindo não só “práticas
individuais e coletivas, mas também fazendo história”. (BOURDIEU, 2007, p.76).
Apesar de não termos dados suficientes que possibilitem com precisão a
identificação das pessoas que já desempenharam ou desempenham essa função, podemos
perceber, por meio de depoimentos, algumas regularidades no comportamento e na realização
da atividade em diferentes contextos, o que nos permite trabalhar com a percepção de uma
“orquestração sem maestro que confere regularidade, unidade e sistematicidade às práticas de
um grupo ou de uma classe.” (ORTIZ, 1983, p.67).
A grande maioria das pessoas que trabalha nessa atividade se forjou como
profissional por meio de um conjunto de disposições. São pessoas que tiveram acesso às artes,
ou seja, alguma familiaridade com a ambiência cultural. Possuem características pessoais em
comuns, como senso de iniciativa e oportunidade, objetividade, capacidade de se comunicar,
organização e planejamento, para citar algumas. Por apresentarem esses atributos, em alguns
momentos se viram impelidos a usá-los em prol de um projeto ou ideia que necessitava ser
concretizada.
66
Dessa forma, segundo a teoria de Bourdieu, as conjunturas exercem sua ação de
estímulo, atraindo aqueles que estão dispostos a constituí-la, dotados de um determinado tipo
de disposição passíveis de serem redobradas e reforçadas pela posse direta de um discurso ou
saber capaz de assegurar o domínio simbólico dos princípios do habitus da classe. Foi,
portanto, dentro do campo e em contextos sociais, econômicos e culturais específicos,
vivenciados ao longo do tempo, que a atividade foi se configurando.
Para possibilitar o início do percurso dentro desse campo, faz-se necessário definir
o que entendemos como Cultura. Para isso, utilizaremos a definição adotada pela Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura – UNESCO. A escolha se deve ao fato
da instituição ter assumido um papel de crescente protagonismo influenciando, com a
promulgação documentos, convenções e declarações às políticas culturais em diversos países.
Segundo a UNESCO26
a Cultura é
o conjunto de traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social [...] englobando as artes, as letras,
os modos de vida, os direitos fundamentais ao ser humano, os sistemas de valores,
as tradições e as crenças.
Chauí destaca que a Cultura é o “campo no qual uma comunidade institui as
relações entre seus membros e com a natureza, conferindo-lhes sentido ao elaborar símbolos e
signos, práticas e valores, ao definir para si o possível e o impossível [...]”. (CHAUI, 2006,
p.131). Sendo um conceito iminentemente social, em tempos de globalização,
multiculturalismo e estados supranacionais, a Cultura assume outras funções e com elas,
novos discursos, conceitos e transversalidades. Ao identificar a complexidade que a cultura
assume na sociedade contemporânea, Rubim afirma que:
Com a modernidade temos a autonomização (relativa, é claro) do campo cultural em
relação a outras esferas societárias, notadamente a religião e a política. Tal processo
– que não pode ser confundido com isolamento ou desconexão social – implica a
constituição da cultura como campo social singular, que articula e inaugura
instituições, profissões, linguagens, símbolos, valores e tensões. A partir daí a
cultura passa a ser nomeada e percebida como dimensão social determinada que
pode ser estudada em sua especificidade. (RUBIM, 2008, p.46).
Rubim continua a apontar algumas transformações observáveis no campo da
cultura, no período que se sucede à sociedade moderna e perpassam o campo cultural na
contemporaneidade. Um deles é a “politização da cultura”, onde essa passa a se configurar
26 Definição proposta na Declaração da Cidade do México sobre Políticas Culturais de 1982 e adotado pela
Unesco em 1982, durante a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais Mundiacult.
67
como uma fonte significativa de legitimidade para o Estado moderno, uma vez que “a política
necessariamente se articula com a cultura, posto que trata da elaboração e da disputa de visões
do mundo”. Por outro lado, destaca também o aspecto da “culturalização da política”,
ressaltando a crescente e progressiva inserção de temas da agenda política moderna no campo
da cultura e de suas práticas e valores (2008).
Outro ponto que merece a atenção do autor é a “mercantilização da cultura”, uma
vez que com o advento da indústria cultural, observa-se o “avanço do capitalismo sobre os
bens simbólicos”, fazendo com que estes passem a ser concebidos, produzidos e vendidos
como mercadorias. Por fim, aponta outro eixo, complementar e simultâneo a este, que é a
“culturalização da mercadoria”, ou seja, “o papel de componentes simbólicos no valor das
mercadorias, inclusive de bens materiais” (2008).
Costa (2011) adverte que a crescente autonomização da cultura como um campo
social, além de ter possibilitado o surgimento de diversas instituições e categorias
profissionais, manifesta-se por meio de uma estrutura organizacional inserida em um
complexo sistema de relações humanas, produtivas e culturais, que culminam com a divisão
social do trabalho, tese compactuada por Linda Rubim ao afirmar que a tarefa de organizar a
cultura sempre esteve presente em diversas circunstâncias sociais, que com a secularização da
cultura, passou a solicitar profissionais diferenciados. Segundo ela:
No passado, um sistema cultural não comportava a diferenciação destas e de outras
atividades. Em tempos remotos, muito provavelmente, tais atividades não apareciam
como atividades diferenciadas e especificas, mas estavam imersas no bojo de um
conjunto indiferenciado, e simultaneamente, de modo inespecífico, de diversas
dimensões. A distinção das atividades faz parte, portanto, do processo de
complexidade da sociedade e do sistema cultural. (RUBIM, 2005, p.16).
É Albino Rubim, porém, que aprofunda o tema ao inserir esta atividade como
parte de um complexo sistema cultural, mais precisamente, do âmbito da organização da
cultura. Segundo ele, para que haja um pleno desenvolvimento da cultura na sociedade
contemporânea, faz-se necessário uma compreensão integrada do sistema cultural e das
diversas instâncias nele envolvidas distribuídas da seguinte forma: 1. Criação, invenção e
inovação; 2. Difusão, divulgação e transmissão; 3. Circulação, intercâmbio, trocas,
cooperação; 4. Análise, crítica, estudo, investigação, pesquisa e reflexão; 5. Fruição, consumo
e públicos; 6. Conservação e preservação; 7. Organização, legislação, gestão e produção
cultural. (RUBIM, 2007).
68
Ao adotarmos a perspectiva de sistema cultural de Rubim, não podemos esquecer
que a Cultura se dá em um fluxo de movimento e trocas permanentes, que não pode ser
analisada de forma estática e imutável. No entanto, Geertz reconhece que “os sistemas
culturais tem que ter um grau mínimo de coerência, do contrário, não o chamaríamos
sistemas”. (GEERTZ, 1989, p.13). Mas é Bauman que traz algumas questões relevantes ao
afirmar que:
A busca da ordem torna toda ordem flexível [...] a cultura nada pode produzir além
de mudança constante, embora só possa produzir mudança por meio do esforço de
ordenação [...] Ao falar de um grupo de itens como um sistema, temos em mente que
todos os itens estão interconectados, que o estado de cada um deles depende dos
estados que todos os outros assumem. (BAUMAN, 2012, p.29).
Essa compreensão ampliada da Cultura como parte de um sistema constitutivo de
diferentes e complementares instâncias sinaliza a amplitude do campo e a necessidade de
aprofundamento do conhecimento sob cada momento, suas peculiaridades, funções e
necessidades. Sabemos que estas instâncias encontram-se entrelaçadas e se dão de forma
simultânea e interdependente, formando um amplo e complexo sistema de relações e que, para
que o sistema funcione a contento, todas as instâncias precisam ser observadas e
contempladas.
Diante do exposto, quando abordamos o tema da Cultura, remetemo-nos a um
conceito que transcende a produção artística e, ao tratarmos da atividade da produção cultural,
objeto desta pesquisa, estamos nos referindo a um trabalho tangível e intangível ao mesmo
tempo, que tem relevância por sua capacidade de atuar como potencializador de novos
processos, transformações e percepções de uma sociedade, pois como ressalta Chauí:
Como trabalho, a cultura opera mudanças em nossas experiências imediatas, abre o
tempo para o novo, faz emergir o que ainda não foi feito, pensado e dito. Captar a
cultura como trabalho significa, enfim, compreender que o resultado cultural (a
obra) se oferece aos outros sujeitos sociais, se expõe a eles, oferece-se como algo a
ser recebido por eles para fazer parte de sua inteligência, sua sensibilidade, sua
imaginação e ser retrabalhada pelos receptores, seja porque a interpretam, seja
porque uma obra suscita a criação de outras. (CHAUI, 2006, p.136).
O objeto de interesse dessa pesquisa é o trabalho desenvolvido pelo profissional,
que possui papel fundamental na emergência dessas novas expressões culturais, ao mobilizar
esforços e recursos que possibilitam a existência dos produtos culturais, ofertando-os à
sociedade. Diferentemente do artista - que produz a Arte em si -, aquele que atua no âmbito da
69
organização da cultura produz a condição da manifestação da obra de arte e de um bem
cultural. E, porque não dizer, produz a si também como trabalhador.
Cabe ao trabalhador da organização da cultura avaliar cenários, identificar
possibilidades, propor caminhos, movimentar ferramentas e mobilizar as condições que
permitam a conexão com todas as outras instâncias do sistema. Lembrando sempre, como já
anunciado por Bauman, que esse esforço de organização se dá em um processo de mudança
contínua. Em muitos momentos, cabe a ele encontrar a possibilidade onde nada existia, criar
cenários e ofertar novas realidades. Atividade iminentemente relacional que, na prática,
congrega um número extenso de agentes e uma diversidade de interesses. Cabe a este
organizador, como diz a música de Caetano Veloso27
, fazer o movimento preciso, no tempo
propício, para espalhar benefícios.
A constatação de que a organização da Cultura se faz presente em diversos planos
é mais perceptível em grandes projetos e eventos, onde se identifica a necessidade da
administração de inúmeros recursos, serviços e processos. Mas convém observar a sua
relevância em todas as práticas do fazer cultural, nas rotinas e procedimentos cotidianos.
Mesmo as pequenas iniciativas culturais, de alguma forma, necessitam de esforços de
organização para se viabilizarem enquanto produtos, a fim de que possam atingir o objetivo
de ser apreciadas por seu público. No entanto, a visibilidade e o conhecimento acerca do
campo de organização da Cultura ainda são incipientes, o que sinaliza uma ausência de
tradições, saberes e conceitos consolidados. As diversas nomenclaturas dadas aos agentes que
atuam nessa área tentam dar conta da identificação e classificação desta atividade. Porém,
essa é uma difícil empreitada, uma vez que se trata de um campo amplo, complexo e em
constante mutação e movimento. Segundo Calabre:
[...] pensar e planejar o campo da produção, circulação e consumo da cultura dentro
de uma racionalidade administrativa é uma prática que pertence aos tempos
contemporâneos. A gestão cultural é um campo novo, com fronteiras fluidas, no
qual o perfil profissional se encontra em pleno processo de construção. (CALABRE,
2008, p.66).
Esse processo de construção pode ser observado ainda no difícil enquadramento
da atividade. Diversos nomes são atribuídos, em diferentes contextos e países, ao profissional
que trabalha na organização da cultura: animadores, mobilizadores, intermediadores,
produtores e gestores são os mais comuns. Cada um deles carrega múltiplas funções e, no
dizer de Rubim, “a pluralidade de denominações não só indica a idade recente das práticas e
27 Oração ao Tempo, de Caetano Veloso.
70
dos estudos acerca da organização da cultura, mas sugere pensar em itinerários e
peculiaridades [...]”. (RUBIM, 2008, p.52).
Dentre as inúmeras nomeações que a atividade recebe, “nenhuma delas é aceita
universalmente e mais grave: nenhuma delas está isenta de problemas de definição
conceitual” (RUBIM, 2005, p.21). Todas dizem respeito, de alguma maneira, aos contextos
em que foram forjadas, às políticas culturais vigentes e reforçam, em maior ou menor grau,
aspectos diferenciados da atividade. As nomenclaturas divergem de acordo com regiões,
períodos e também países. Ou, no dizer de Costa, “cada uma dessas definições sugere um
histórico”. (COSTA, 2011, p.48).
Na tradição americana, ao se referir ao profissional que atua na organização da
cultura, acentua-se seu caráter gerencial e administrativo. Conhecidos como arts
administrators, deles é esperada: uma administração racional, produtiva e próspera para dar
conta do sistema cultural do País, que abriga uma legislação específica de incentivo às artes;
tradição de apoio às causas sociais e filantropia; grandes instituições privadas de cultura em
convivência com pequenas associações comunitárias; uma sólida indústria cultural; e estímulo
a iniciativas de vanguarda. Permeiam todas essas instituições, políticas públicas de cultura,
interesses financeiros globalizados e fluxos dinâmicos, além de uma intensa rede de
networking. Cabe a esse profissional intermediar e otimizar as imbricadas relações entre
artistas, o público, a mídia, o Estado e o empresariado. (MCGUIGAN, 1996; MARTEL,
2006).
A Europa Pós-Guerra, por sua vez, preocupou-se em preservar a primazia do
Estado perante seu patrimônio cultural, elegendo a Cultura como um bem coletivo e criando
instituições públicas capazes de respaldar suas políticas. Apesar da consolidação de suas
instituições, não há um consenso sobre a nomenclatura dos profissionais que atuam na
organização da cultura. Na França, a despeito da utilização de outras nomenclaturas, pode-se
destacar a figura dos “mediadores culturais, que seriam o conjunto de intermediários pelos
quais as obras ou objetos poderiam se tornar conhecidos, compreendidos, recebidos.”
(COSTA, 2011, p.41).
Na Espanha, é comum se denominar os profissionais da área como “animadores e
promotores culturais”. Essa nomenclatura sugere a atividade de estimulação e fortalecimento
das relações entre os produtores e os receptores de cultura, o que é também uma função de
mediação, que visa o incremento do acesso público às artes. Apresenta também um viés
pedagógico, uma vez que tem o objetivo de estimular e animar a criatividade e a fruição
comunitária. Com o desenvolvimento das instâncias governamentais de cultura, insere-se, a
71
partir da segunda metade da década de 80, o termo “gestão cultural” que cuida não só da
atenção ao público, mas do planejamento, concepção e organização da oferta. (COSTA,
2011).
Ferreira, ao abordar a relevância dos “intermediários culturais” para o sistema
cultural de Portugal, afirma que “estes agentes desempenham um papel duplamente vital no
circuito cultural: agilizam a ligação entre criadores e públicos, ao mesmo tempo em que
concorrem para os processos de construção e consagração das carreiras e das obras dos
criadores”. A noção reporta-se a um conjunto de “atividades especializadas de agentes e
organizações que intervêm nos processos de seleção, filtragem, distribuição, divulgação,
avaliação e valorização das criações”. (FERREIRA, 2002, p.5).
3.2 PRODUÇÃO CULTURAL: UMA ATIVIDADE COMPLEXA E AINDA EM
FORMAÇÃO
Apesar de, como já foi dito, a atividade de produção cultural existir há muito
tempo, no Brasil, só recentemente ele começou a se configurar com uma atividade
profissional, ou seja, como ocupação financeira principal. Sua formação e crescimento estão
associados às políticas públicas de financiamento à Cultura, surgidas a partir da década de 80,
que possibilitaram a esses agentes vislumbrar em suas aptidões e afinidades artísticas, uma
atividade profissional inserida em um mercado e com possibilidades remunerativas.
Compreendemos que a atividade deve, como exemplificado na Semana de 22,
existir há muito tempo; porém, foi por meio da criação de políticas direcionadas ao
financiamento da Cultura, abordadas no capítulo anterior, que esses agentes puderam
vislumbrar a possibilidade de formação de um mercado para a cultura, o surgimento de novas
vocações produtivas e desenvolvimento dessa atividade numa perspectiva profissional,
processo que ainda está em formação e mutação constante, ainda carecendo de conceituações
primárias, dentre elas a própria denominação.
Apesar de encontrarmos no País denominações como animadores culturais,
intermediários, promotores culturais, dentre outros, visando à nomeação e identificação desses
agentes, dois termos são utilizados mais comumente: produtor cultural e gestor cultural. O
consenso sobre a nomenclatura adequada não existe e cada um enfatiza aspectos
diferenciados. Ainda assim, apresentam limitações para definir a extensão de suas funções.
Ao tratar do conceito de produção cultural, iniciamos remetendo-nos a Rubim
(2008). Segundo ele, enquanto a América Latina atuava com a noção de gestão cultural, no
72
Brasil, as políticas culturais priorizaram a ênfase nas leis de incentivo à Cultura e o Mercado,
o que fez com que o Estado se afastasse do seu papel de produtor cultural, que foi delegado à
sociedade. Assim, essa responsabilidade foi transferida para novos agentes que ingressaram
no mercado, atendendo pelo nome de produtores culturais. Segundo ele:
A ausência de tradição na formação de gestores, a submissão da cultura à lógica de
mercado e a fragilidade das políticas culturais do Estado nacional – fortemente acentuada nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort – são,
por excelência, o contexto elucidativo da emergência da nomeação de produtores
culturais, com as características que eles adquirem no país. (RUBIM, 2008, p.27).
Segundo Cunha, as imprecisões na definição dos perfis e nomenclaturas desses
agentes devem-se a própria dificuldade de sua colocação de forma mais objetiva no mercado,
mas também pelo fato da categoria ainda estar constituindo seu próprio campo profissional.
Adverte, no entanto, que a seleção do termo produtor cultural ou gestor cultural revelam
também aspectos sobre seu posicionamento no mercado. Segundo ela:
O produtor tem sido colocado como um profissional mais executivo e o gestor no
âmbito das ações mais estratégicas. No entanto, apesar de serem identificadas como
duas profissões diferentes, elas se confundem enquanto ocupação de espaços de
atuação no mercado cultural e, principalmente, em relação aos saberes desenvolvido
em cada profissão, coexistindo, ao mesmo tempo, no mercado de trabalho. (CUNHA, 2008, p.8).
Rubim recomenda o aprofundamento nas reflexões entre a gestão e a produção
cultural, de forma a marcar suas diferenças e semelhanças. Lembra ainda que, na própria
esfera da organização da cultura, há distintos níveis:
[...] a dos formuladores e dirigentes, afeitos ao patamar mais sistemático e macrossocial das políticas culturais; os gestores, instalados em instituições e/ou
projetos culturais mais permanentes, processuais e amplos; e, finalmente, os
produtores, mais adstritos a projetos de caráter mais eventual e microssocial.
(RUBIM, 2008, p.28).
E continua a discorrer sobre o tema, apontando o que é, a seu ver, a diferença
marcante entre produtores e gestores: os primeiros circunscrevem sua atuação em uma esfera
mais pontual, detendo-se na prática a organização de shows, eventos e outros projetos com
duração limitada e definida, enquanto os últimos lidam com atividades constantes, de caráter
mais amplo e permanente. Essa visão, apesar de ainda guardar aproximações com o que
acontece no mercado, parece-nos simplificada e incapaz de atender a mudanças ocorridas no
73
campo e as novas exigências e parâmetros de atuação, onde muitas vezes um mesmo
profissional atua em várias instâncias ao mesmo tempo.
Cunha compartilha da visão de que o produtor “dentro dessa divisão profissional,
tem a atribuição de executar tarefas”; no entanto, pondera que ele não limita sua ação,
necessariamente, em eventos pontuais, podendo estar envolvido em projetos de longa
duração. Considera ainda que os dois caminhem lado a lado, numa relação complementar e
recíproca, onde o produtor “é antes um apoiador, já que fornece suporte à ação planejada da
gestão”. (CUNHA, 2008, p.8).
A questão não é consensual e, a esse tema, Avelar dedica um capítulo inteiro em
seu livro “O Avesso da Cena - Notas sobre produção e gestão cultural”. Nele, reafirma as
diversas convergências e pontos em comum entre as duas definições: ambos realizam
atividades cotidianas no âmbito da administração e ocupam um lugar de interface com os
diversos agentes do sistema da cultura (mídia, artistas, público, poder público, profissionais e
técnicos e empresas, dentre outros). Nesta perspectiva, define o produtor cultural como:
O profissional que cria e administra diretamente eventos e projetos culturais,
intermediando as relações dos artistas e demais profissionais da área como Poder
Público, as empresas patrocinadores, os espaços culturais e o público consumidor de
cultura. (AVELAR, 2010, p.52).
E continua seu esforço de conceituação, ao apresentar o gestor cultural como:
Profissional que administra grupos e instituições culturais, intermediando as relações
dos artistas e dos demais profissionais da área com o Poder Público, as empresas
patrocinadoras, os espaços culturais e o público consumidor de cultura; ou que
desenvolve e administra atividades voltadas para a cultura em empresas privadas,
órgãos públicos, organizações não governamentais e espaços culturais. (AVELAR.
2010, p.52).
Para ele, as semelhanças são muitas e a principal diferença se concentra
fundamentalmente no fato de que os produtores criam e administram diretamente eventos e
projetos culturais e os gestores administram grupos e instituições culturais. Lembra, no
entanto, que as fronteiras entre um e outro são tênues e que, em determinadas ocasiões, um
mesmo profissional pode ocupar uma ou outra função, ou acumular as duas. (AVELAR,
2010).
Na verdade, acreditamos que as duas definições apenas se aproximam da
complexidade vivenciada na prática, onde muitas vezes esses papéis se diferenciam ou se
aproximam, de acordo com projetos e contextos específicos e os diferentes habitus desses
74
agentes. Retratam não só um campo de atuação em si, mas uma maneira de se ver, de se
posicionar e do que se tem para disponibilizar ao campo.
Parece-nos que a seleção de uma ou outra nomenclatura sinaliza outra questão
essencial para a compreensão dessa categoria profissional emergente. Em nosso ponto de
vista, as diferentes nomenclaturas falam das mutações e exigências do próprio campo, que
iniciou seu processo de desenvolvimento com ênfase no aspecto da realização e do fazer,
razão pelo qual se destacou o termo produção cultural. Campo que, gradativamente, assiste ao
surgimento de novos conhecimentos e demandas, assim como de novos postos de trabalho no
setor público e empresarial, que solicitam outro posicionamento do profissional, não mais
concentrado no fazer, mas também no saber. Exige-se hoje, além da ação e da intermediação
inerentes ao ofício do produtor, a reflexão e o planejamento, atributos consagrados ao gestor.
Assim, quando falamos das definições de produção cultural e gestão cultural, estamos falando
muito mais de um processo do que de uma atividade.
A dificuldade de definição de nomenclaturas, a ausência de uma tradição na
formação para o setor, o baixo reconhecimento social como profissão, a não formalização da
atividade como categoria profissional, a própria mobilidade e amplitude do campo contribuem
sobremaneira para que não haja, inclusive entre os mesmos profissionais, um consenso sobre
o que fazem e qual a nomenclatura apropriada. Observa-se a utilização de um e outro, numa
espécie de autodefinição com base na trajetória desenhada no próprio campo da cultura.
Diante do que já foi abordado, nos propomos a fazer um recorte no campo da
produção cultural, apesar de consideramos que um produtor cultural pode atuar de diversas
formas, organizando projetos eventuais ou permanentes, de iniciativa própria ou sob
solicitação de terceiros. Elegemos como objeto de estudo neste trabalho o termo produtor
cultural, para descrever o profissional que cria e executa projetos artísticos e culturais e que
não restringe sua atuação só no âmbito operacional, mas toma para si a responsabilidade de
concepção, planejamento, intermediação e mobilização de recursos para viabilizar a
execução de suas propostas.[grifo nosso].
Nessa definição, ainda que parcial por ser incapaz de dar conta da totalidade da
categoria, enfatizamos a capacidade intelectual e criativa do produtor de apresentar iniciativas
de relevância cultural e artística e sua condição de torná-las viáveis numa relação favorável de
custo benefício, com qualidade técnica, eficácia e eficiência.
Além de sua capacidade de conceber, ou seja, de interferir conceitualmente no
campo da cultura, domina as técnicas de planejamento e gestão de processos intangíveis e
tangíveis. Um profissional com habilidade para efetuar um rigoroso e detalhado planejamento
75
que inclui a identificação de objetivos e processos, o dimensionamento de recursos (humanos
e materiais) e a organização das etapas, que serão percorridas assim como mecanismos de
acompanhamento e avaliação.
No entanto, além das técnicas de gestão, o produtor cultural deve ter ainda
habilidades relacionais e visão sistêmica, ao ter que assegurar todas as conexões necessárias à
realização de seus projetos, conciliando interesses, pessoas e cenários em prol da mobilização
dos recursos necessários à execução de suas propostas.
Acreditando no potencial de um projeto cultural ou artístico, possuem uma forte
capacidade de realizar, articular e negociar, assim como a condição de superar desafios para
possibilitar a realização dos empreendimentos a que se propõem. Movimentam o processo
cultural, criam projetos e dão forma e concretude às diversas iniciativas artísticas, numa
interface direta e permanente com a sociedade, artistas e poderes instituídos. Não são
necessariamente artistas e nem detentores de recursos financeiros, materiais ou políticos, mas
trabalham incansavelmente e, por vezes, anonimamente para criar as condições necessárias à
produção e à apreciação da Arte.
Priorizamos trabalhar nesta pesquisa com profissionais que, por meio de suas
produções, representam iniciativas surgidas no seio da sociedade, movimentando o campo da
cultura e atuando onde o Estado não consegue diretamente alcançar e que têm uma importante
colaboração no dinamismo cultural contemporâneo. Ou seja, utilizamos uma abordagem que
incorpora elementos das duas terminologias, ao priorizarmos como objeto de investigação
produtores que atuam na gestão de projetos produzidos por eles mesmos. Devido essa
perspectiva, em alguns momentos podemos utilizar as definições atribuídas ao gestor, para
ressaltar alguns aspectos também presentes no produtor.
A escolha da utilização do nome de produtor / produção cultural neste estudo
deve-se também por ser o nome mais utilizado no campo da cultura por aqueles profissionais
que labutam no mercado cultural em interface direta com as leis de incentivo [grifo nosso] e
as políticas públicas como um todo, objeto do nosso estudo. Ou seja, a incorporação e
aceitação da maneira como se denominam será priorizada. É importante registrar ainda que o
termo “produtor cultural” é também encontrado na Literatura para designar aquele que
produz, no sentido da criação, objetos ou obras de Arte. No entanto, apesar de reconhecermos
a pertinência da expressão, não será esta a acepção utilizada no presente documento.
O surgimento das políticas culturais no Brasil e a crescente importância que a
cultura tem assumido na sociedade atual, fazem com que os produtores desempenhem cada
vez mais um papel estratégico na interface das políticas públicas com a sociedade.
76
Desse profissional, se esperam múltiplas competências e responsabilidades. Ao
apresentar o perfil do gestor cultural, José Marcio Barros destaca alguns atributos desejáveis:
[...] mediador entre a dimensão subjetiva e sensível da cultura e os seus
desdobramentos e interfaces... Antes de ser um especialista em conhecimentos e
práticas exclusivas e excludentes, é uma espécie de roteador de informações
alternativas e possibilidades dinâmicas de construção de cenários prováveis, mas
também de cenários utópicos... O gestor de hoje é um profissional da complexidade
da cultura (BARROS, 2008, p.111).
Atuando profissional e diretamente no aspecto da organização da cultura, cabe a
estes profissionais a responsabilidade de criar e/ou “tornar exequível” uma ideia, cuidando de
todas as etapas de que esta necessita para se tornar realidade, desde o planejamento até a
administração dos recursos humanos, técnicos e financeiros. São inúmeras providências para
projetos diversos que demandam, de acordo com suas características singulares, reflexões e
respostas imediatas num ambiente de tensão e mutação, com múltiplos interlocutores em
diálogo permanente.
O exercício da produção cultural apresenta características complexas, inerentes à
função de dar forma e administrar bens materiais e imateriais, desde a subjetividade e
peculiaridades inerentes ao processo criativo, até a gestão de fornecedores e serviços de uma
ampla cadeia produtiva em um ambiente de recursos financeiros (quase sempre) escassos.
As características da própria atividade ganham maior gravidade no embate com o
sistema de financiamento à Cultura no Brasil, que apresenta suas próprias inconsistências,
acentuando a difícil subsistência no campo e exigindo maiores desafios do produtor cultural.
É imprescindível que a organização da cultura seja percebida como uma atividade complexa
de administração em num campo dinâmico, plural, criativo e multifacetado.
Ao nos defrontarmos com as características que o campo da cultura assumiu na
sociedade contemporânea brasileira e na importância da organização desta para dar
concretude e efetividade às ações culturais, cabe aprofundar o estudo sobre o momento
organizativo atual da cultura no Brasil e suas possibilidades de contribuição efetiva no sistema
cultural vigente.
Ferreira, ao refletir sobre o papel desses agentes no sistema cultural de Portugal,
reforça sua importância destacando a denominação de “novos notáveis”, que Cláudia Madeira
(1999) confere a estes protagonistas da Cultura. Destaca ainda outro aspecto, que é o poder
simbólico conferido a estes produtores/intermediadores:
77
Estes agentes desempenham então um papel duplamente vital no circuito cultural:
agilizam a ligação entre criadores e públicos, ao mesmo tempo em que concorrem
para os processos de construção e consagração das carreiras e das obras dos
criadores. A este duplo papel poder-se-á acrescentar um terceiro, que aparentemente
se manifesta de forma particularmente intensa nos mundos da arte e da cultura mais
mercantilizados e industrializados: o de interferirem substantivamente no processo e
nos conteúdos da criação e da produção cultural [...] (FERREIRA, 2002, p.4).
O autor amplia a percepção da relevância desses profissionais, ao destacar que sua
atuação, além de repercutir em programas de formação, qualificação e atração dos públicos
para a Cultura, atua diretamente no sistema de representações simbólicas, produzindo
instrumentos de integração e coesão, de partilha de sentidos e valores e identidade coletivas
capazes de criar novas configurações ou consolidar as já existentes. Assim, para ele:
O alargamento e a complexificação dos circuitos por onde transitam as artes e as
diversas formas de cultura e o seu permanente entrecruzamento com outros circuitos
de ação tornam, na verdade, o papel dos intermediários mais cruciais do que nunca e
merecedor de uma atenção sociológica mais abrangente, já que é da sua ação que
dependem, em larga medida, a natureza e os efeitos desses entrecruzamentos.”
(FERREIRA, 2002, p.6).
Apesar da centralidade do papel do produtor cultural, que possibilita a
“transmutação” do processo criativo individual para torná-lo um bem coletivo e das
crescentes responsabilidades e atribuições que assume no campo da cultura, seu ofício ainda
permanece envolto em desconhecimento e invisibilidade. Ainda hoje, essa não é uma
atividade reconhecida “de direito”, mesmo que seja “de fato”. Na Comissão Nacional de
Classificação – CONCLA, do Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão, a categoria
que mais se aproxima da produção cultural se encontra na Seção que trata de “Artes, Cultura,
Esportes e Recreação”, que prevê as atividades artísticas, criativas e de espetáculos e aquelas
ligadas ao patrimônio cultural e ambiental. Como pode se constatar, uma categorização
genérica e bastante abrangente.
No âmbito do Ministério do Trabalho, a atividade de produção cultural também
não se enquadra na listagem de profissões regulamentadas, sendo a que mais se aproxima
desta atividade é a de “Artista/Técnico em Espetáculos de Diversões”28
.
O Panorama Setorial da Cultura Brasileira, editado em 2012, com o objetivo de
retratar o cenário da Indústria Cultural brasileira por meio da perspectiva de seus atores,
revela dados interessantes sobre os produtores culturais de todo o País: 83,4% são
28
Norma Regulamentadora: Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978 - Dispõe sobre a regulamentação das profissões
de Artista e de Técnico em Espetáculos de Diversões e dá outras providências. Decreto nº 82.385, de 5 de
outubro de 1978 - Regulamenta a Lei nº 6533, de 24/05/1978
78
representados por pessoas jurídicas; 86,2% utilizam o Mecenato como mecanismo de apoio
para captação de recursos; 89% dos produtores estão acima de 31 anos e 54% tem mais de 11
anos de experiência.
A importância que esse agente tem na dinamização do campo cultural, não
encontra correspondência na solidez de sua formação. Os produtores culturais mais
experientes, no âmbito da sociedade brasileira contemporânea, em sua maioria, aprenderam o
ofício na prática, uma vez que os primeiros cursos de graduação em produção cultural no
Brasil surgiram somente em 1996, sendo um na Bahia e outro no Rio de Janeiro. (CUNHA
2007; COSTA, 2011). Dados da pesquisa já citada mostram que 64% dos entrevistados se
tornaram produtores sem planejar, aproveitando uma oportunidade, e 47% ingressaram na
carreira forçados pela necessidade de viabilizar seus projetos artísticos. A pesquisa relata que
77% dos produtores têm formação superior, o que é um dado excelente, uma vez que segundo
o IBGE29
apenas 7,9% da população brasileira tem esse tipo de formação. No entanto, desse
total somente 1% tem formação em produção cultural e 66% vem da área de Humanas. Esse
dado retrata o longo caminho a ser percorrido no País para que a produção cultural se
consolide, como campo com saberes constituídos e atividade profissional estruturada. Os
dados também sinalizam a estreita ligação da atividade como conhecimento empírico e
intuitivo.
O documento mostra ainda que 86,6 % dos produtores culturais mencionam ter
renda individual acima de R$ 2.501,00, mas ressalta que 63% dependem de remuneração
advinda de outras atividades. Esse aspecto evidencia uma desconcentração na área de
atividade e sugere a subutilização de um potencial intelectual, criativo e organizativo
desperdiçado na gestão da cultura no Brasil.
Por fim, outro dado da pesquisa revela aspectos interessantes da atividade.
Quando indagados sobre sua própria autoimagem, os produtores se enquadram em cinco
perfis: 32% se consideram “idealistas”; 28% “desiludidos”; 18% “alienígenas”; 13%
“profissionais”; 9% “por acaso”, ou seja, aquele que atua na área por uma oportunidade. A
reflexão sobre esse resultado pode nos levar a considerações importantes acerca da produção
cultural no Brasil. O que significa considerar-se um “alienígena”? Ou praticar uma profissão
que o faça se sentir um ser diferente dos outros? Será o peso de sentir-se só e isolado? Que
profissão é essa que para exercê-la é necessário uma grande dose de idealismo? Uma
profissão que se institui por acaso, sem planejamento?
29Censo 2010.
79
O que apreender de uma profissão recente, onde 28% dos seus quadros se
declaram desiludidos? Número que, somados aos que se consideram “alienígenas”, chega a
expressivos 46%. Ou seja, quase a metade do universo entrevistado sente algum tipo de
desconforto em relação à profissão. Esses resultados merecem uma reflexão mais aprofundada
sobre a condição em que a profissão se estabeleceu no Brasil.
Uma das primeiras questões a serem consideradas é a própria noção de
profissionalização que precisa ser relativizada, pois a atividade ainda não está regulamentada
e não possui sindicatos ou entidades fortes que a representem como categoria30
. Os
produtores, mesmo os pequenos empresários, trabalham em prol de suas iniciativas culturais
com o objetivo de viabilizar não só suas ideias, mas seu próprio sustento. Muitos trabalham
como prestador de serviço, em um mercado sazonal e frágil em sua base de sustentação, como
foi visto no capítulo que tratou do financiamento à Cultura no Brasil. Dessa forma, apesar de
já serem representados por pessoas jurídicas (o que denota certo grau de amadurecimento da
atividade), observa-se um elevado grau de insegurança e instabilidade em uma perspectiva de
futuro desses profissionais que, em sua maioria, não contam com um sistema de previdência,
nem de aposentaria e direitos trabalhistas.
Essas constatações nos remetem a algumas reflexões sobre a administração do
capital humano na contemporaneidade. Segundo Boltanski e Chiapello (2009), a partir dos
anos 80 a introdução do conceito de flexibilidade na nova organização do trabalho,
possibilitou transferir para os assalariados, subcontratados e prestadores de serviço o “peso
das incertezas do mercado”. Passa a ser cada vez mais utilizada a mão de obra maleável, na
forma de empregos precários, temporários e autônomos; contratados por temporadas, jornadas
ou horas. No caso dos produtores, por projetos. Esse caráter da atividade profissional do
produtor é fortemente estimulado pelo sistema de financiamento à Cultura, base de
sustentação do mercado e de seu campo de atividade, que se ancora como já vimos nas leis de
incentivo e editais.
Como a possibilidade de uma atuação profissional no campo da produção cultural
é recente, nasce diretamente imbricada com essa nova cultura gerencial, que é coordenada por
determinados valores econômicos, que migraram para outros domínios da vida social e
“ganharam um forte poder normativo, instituindo processos e políticas de subjetivação que
30 Existe uma entidade intitulada Associação Brasileira de Produção Cultural – ABPC - que nasceu da iniciativa
de um grupo de profissionais graduados em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense. Apesar de
ter o objetivo de atuar em prol dos trabalhadores da cultura, não tem ainda penetração em âmbito nacional.
80
vem transformando sujeitos de direito em indivíduos-microempresas – empreendedores”.
(GADELHA, 2009, p.144). Segundo o mesmo autor:
[...] é esse mesmo indivíduo que se vê induzido, sob essa lógica, a tomar a si mesmo
como um capital, a entreter consigo (e com os outros) uma relação na qual ele se
reconhece (e aos outros) como uma microempresa;e, portanto, nessa condição, a ver-
se como entidade que funciona sobre o imperativo permanente de fazer investimento
em si mesmo – ou que retornem, a médio e/ou longo prazo, em seu benefício – e a
produzir fluxos de renda, avaliando racionalmente as relações de custo/benefício que
suas decisões implicam. (GADELHA, 2009, p.149).
Boltanski e Chiapello reiteram essa visão, ressaltando que até a década de 60
cabia às empresas produzir riqueza e ao Estado assegurar que essas fossem distribuídas aos
cidadãos. Com o advento de uma moderna gestão empresarial, pós-industrial, criaram-se
novas concepções que repercutiram diretamente na organização do trabalho. Espera-se, nesse
novo regime, que um trabalhador que seja capaz de se agenciar, de utilizar todas suas
capacidades humanas para desenvolver-se plenamente. O trabalhador (que agora passa a ser
um colaborador) é seduzido pela “perspectiva de trabalhar para um projeto interessante, que
valha a pena, coordenado por uma pessoa excepcional, cujo sonho vai ser compartilhado”.
(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.122).
Criam-se assim novas formas de estímulo para substituir as carreiras hierárquicas,
que serão substituídas por uma sucessão de projetos. Segundo Boltanski e Chiapello:
As pessoas não farão carreira, mas passarão de um projeto a outro, pois o sucesso
em dado projeto lhes possibilitará acesso a outros projetos mais interessantes. Como cada projeto dá oportunidade de conhecer novas pessoas, há a possibilidade de ser
apreciado pelos outros e, assim, poder ser chamado para outro negócio. Cada
projeto, diferente, novo e inovador por definição, apresenta-se como uma
oportunidade de aprender e enriquecer competências que se tornam trunfos na busca
de outros contratos. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 125).
Assim se constitui a atividade da produção cultural, onde nem bem se executa um
projeto, já se tem que viabilizar o próximo. O produtor se encontra imerso em um enorme
campo de possibilidades, de redes e contatos, de atores cuja matéria-prima é inesgotável e o
produto, sempre um vir a ser. O sistema de financiamento à Cultura não lhe oferece garantias
e as políticas públicas não contemplam iniciativas que assegurem sua “proteção”.
A própria natureza mutável e intangível da Cultura e a ausência de políticas que
garantam sustentabilidade da atividade evidenciam essa nova cultura gerencial. É, pois, uma
atividade que se vem se configurando como profissão no centro dessa perspectiva do
81
trabalhador / empreendedor, onde, como dizem comumente os produtores, “é preciso matar
um leão por dia”. No dizer de Gorz:
A pessoa deve, para si mesma, tornar-se uma empresa; ela deve se tornar, como
força de trabalho, um capital fixo que exige ser continuamente reproduzido,
modernizado, alargado, valorizado... Ela deve ser sua própria produtora, sua própria
empregadora e sua própria vendedora. (GORZ, 2005, p.23).
Para dar conta dessa tarefa de produzir-se como agente competitivo e portador de
boas ideias, o produtor precisa apresentar qualidades de comportamento “expressivas e
imaginativas”, onde não conta só sua inteligência, saber e atitudes, mas suas relações e a
capacidade de se viabilizar e permanecer inserido no campo. Desempenho esse, cuja
performance será avaliada também por meio da implicação subjetiva do produtor, por sua
motivação e envolvimento nos projetos que realiza, pois, como diz Gorz, os trabalhadores
pós-fordistas devem entrar no processo de produção com toda a sua bagagem cultural.
No caso dos produtores, muito mais deve ser dado, como trabalha com cultura,
lazer e entretenimento, muitas vezes atua no horário comercial para viabilizar seus projetos e
nas noites, fins de semana e feriados para acompanhá-los. É necessária sua disponibilidade
integral (física, psicológica, pessoal e às vezes até financeira) em prol dos projetos. Essa
demanda incessante chega ao ponto de uma indefinição sobre o que é pessoal e profissional,
ambos são um só, como descrito:
Doravante, não nos é mais possível saber a partir de quando estamos do lado de fora
do trabalho que somos chamados a realizar. No limite, não é mais o sujeito que
adere ao trabalhado; mais que isso, é o trabalho que adere ao sujeito. (COMBES;
ASPE apud GORZ, 2005, p.22).
Todos esses aspectos somados elucidam parte da fala dos produtores ao destacar
altas doses de idealismo para o exercício da atividade e sinais de desânimo e solidão
apontados na pesquisa. Sabemos que essa nova concepção de trabalho está inserida em um
contexto global, abrangendo várias profissões, mas é inegável que na atividade da produção
cultural se apresenta de forma mais contundente, por todos os motivos já explicitados. Para
tanto, é necessário avançar no estudo de como essa atividade vem se configurando no País nos
anos recentes.
82
3.3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A PRODUÇÃO CULTURAL NO BRASIL
No Brasil, como pudemos observar, a profissionalização no campo da organização
da cultura ainda é recente, seja ela feita por produtores ou gestores. É também uma atividade
que precisa ser mais bem compreendida em sua função social. Dentre tantos pontos que
merecem ser aprofundados, destacaremos aqui a investigação sobre como os produtores
culturais se relacionam com políticas públicas de cultura e como estas têm afetado o
desenvolvimento e as conformações desse campo.
Faremos um esforço aqui de relacionar o desenvolvimento da atividade da
produção cultural com as políticas públicas de cultura no Brasil, com ênfase naquelas
relacionadas à questão do financiamento por entender, como já foi dito, que estas é que
assegura a condição de viabilidade dos projetos culturais, razão de ser da própria atividade.
Nos governos autoritários de Getúlio Vargas (1930-1945) e (1951-1954) e do
Regime Militar (1964-1985), observamos nesses dois períodos na cultura política brasileira a
dificuldade de viabilização de artistas e intelectuais fora do espaço institucional dominante.
Segundo Barbalho, ao tratar da cultura no Estado ditatorial de Vargas, “em um mercado de
bens simbólicos pouco desenvolvidos, os produtores culturais31
tinham que fazer valer essa
intimidade com os homens públicos para conseguir sinecuras e patrocínio e continuar
produzindo”. (BARBALHO, 1998, p.47).
Barbalho continua sua argumentação, afirmando que o estado autoritário se
utilizava de alguns mecanismos de controle, que iam desde a censura propriamente dita, até a
negação de disponibilização de recursos financeiros para determinadas produções. Em
períodos de maior desgaste político, também se observava um incremento do investimento na
cultura e a busca de maior aproximação e diálogo com a sociedade civil.
A relação entre artistas e produtores culturais com o Estado nos governos
autoritários é marcada por tensões e oscila entre momentos de cooptação na forma de
obtenção de empregos e troca de favores até momentos de rejeição aos circuitos oficiais,
criando-se alternativas de produção cultural “marginais, alternativas e independentes”
acentuadamente no final da década de 60 e 70. Segundo Barbalho, “A relação Estado-Cultura
no Brasil foge a qualquer olhar reducionista ou simplista, e traz a marca da contradição”.
(BARBALHO, 1998, p.91).
31 O autor, quando se refere a produtores culturais, está incluindo nessa categoria artistas e criadores.
Utilizaremos a expressão do autor, pois entendemos que muitas vezes esses atuavam como mobilizadores de
recursos ou se associavam a terceiros para a realização de seus projetos.
83
É preciso lembrar que nas relações entre política e mercado cultural as contradições
nem sempre se manifestam de forma antagônica. A intenção de enfrentar o autoritarismo militar, com suas estratégias e dispositivos de controle, censura,
manipulação, esbarrou em mecanismos de dependência das benesses estatais por
parte dos artistas, intelectuais e profissionais de comunicação e da cultura. (PORTO
ALEGRE, 2006, p.18).
Nesse contexto, no campo cultural também se observam outros componentes da
cultura política brasileira: a alternância de interesses de acordo com distintos governos;
políticas públicas de cultura alinhadas com afinidades artísticas pessoais dos gestores;
utilização de círculos de amizade pessoal na obtenção de favorecimento/apoio a projetos
culturais; e o estabelecimento de uma relação de submissão e dependência, que perdurou
durante muitos anos no Brasil e ficou conhecida como “cultura de balcão”. O Estado dava um
pouco para (quase) todos, comprometendo aqueles que recebiam as benesses com gratidão e
um silencioso consentimento.
Nessa época, observava-se também uma atividade de caráter mais “artesanal”. As
produções eram feitas a um custo acessível e contava-se, além do apoio de instituições
públicas, com a rede de relacionamentos dos artistas e produtores. Os orçamentos não eram
onerosos e o custo era viabilizado por meio de pequenos apoios, contrapartida de serviços e
adesão e voluntariado de muitos. A possibilidade de remuneração (e, dificilmente, de lucro)
consistia basicamente na venda de ingressos ou produtos.
Todas essas relações marcaram a atuação dos produtores no campo da
organização da cultura, contribuindo para o estabelecimento de práticas amadoras, cenários
instáveis e uma relação de submissão com o poder instituído. Relações que, de alguma forma,
ainda permeiam o imaginário e a vivência dos produtores culturais, que se confrontam
cotidianamente com crescentes necessidades de autogestão, solicitada pelas leis de incentivos
e editais, e que coexistem com uma forte dependência do Estado, instituição responsável pelo
aval final nas principais fontes de recursos no sistema de financiamento à Cultura no Brasil.
A redemocratização trouxe novas configurações sociais e sucedeu-se um período
de importantes mudanças nas políticas sociais, como o pacto federativo, onde se observou
uma perspectiva de participação gradativa da sociedade civil. No entanto, as diversas crises
envolvendo a tentativa de resolução das mazelas econômicas e sociais que afligiam o Brasil
impactaram também nas políticas públicas da cultura.
A gestão institucional da cultura atravessou um cenário de instabilidade, com a
posse de 10 gestores da cultura em apenas três mandatos presidenciais, entre 1985 a 1995
84
(José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco). Ficaram como importantes marcos dessa
época a criação do Ministério da Cultura (1985), o surgimento da primeira Lei de Incentivo à
Cultura no Brasil (1986), na gestão de Celso Furtado (1986 a 1988), à época Ministro da
Cultura de José Sarney, e a extinção de diversos órgãos da cultura na gestão do presidente
Collor (1990)32
.
A implantação de uma Lei de Incentivo à Cultura introduziu uma ruptura com o
modelo vigente de financiamento às artes ancorado no Estado, sendo agora pretensamente
substituído pelo mercado. A maior contradição, no entanto, consistia em dar autonomia às
empresas para definir os projetos de seu interesse, quando, na verdade, a verba oriunda da
renúncia fiscal continuava a ser pública (RUBIM, 2007). Essa fragilidade não ofusca os
significados da lei, visão corroborada por Rosa Furtado, partícipe do momento:
O contexto era adverso, mas não foram poucas as realizações [...] A mais inovadora
foi a elaboração da primeira legislação brasileira de incentivos fiscais à cultura... A
lei apelava para a parceria com o empresariado no financiamento de projetos
culturais e, em troca o governo abria mão de parcelas do imposto de renda devido.
Isso que hoje é moeda corrente há 25 anos era uma novidade. [...] Ou seja, a ideia
era que a sociedade civil assumisse as propostas culturais da própria comunidade,
arcando com o financiamento dos recursos [...]Afinal, o espírito da lei era,
justamente, devolver à sociedade a iniciativa cultural, sair do paternalismo que
prevaleceu no Brasil no passado. (FURTADO, 2012, p.14).
A Lei Sarney, como ficou conhecida, teve curta duração33
, mas guarda o mérito de
apresentar aos produtores culturais outras possibilidades de financiamento, com o ingresso de
novos atores (empresários e contribuintes) e apontar para a atenuação da relação de
dependência direta do Estado, apesar dos recursos continuarem sendo públicos. Estimulou
também a necessidade de mais organização e novas competências dos agentes da cultura.
Celso Furtado, em sua curta permanência no Ministério (1986-1988), plantou
algumas bases importantes o campo cultural no Brasil, como a compreensão da dimensão da
cultura em seu processo produtivo, e não apenas como produtora de bens simbólicos; a
necessidade de diagnósticos com a contratação da primeira pesquisa do setor34
, feita pela
Fundação João Pinheiro; e a busca da valorização da arte e da criatividade do povo brasileiro
32 Funarte, Embrafilme, Pró Memória, Fundacem, dentre outros. 33A Lei Sarney foi revogada em março de 1990, depois de sofrer inúmeras críticas por não contemplar
mecanismos estruturados de controle e fiscalização das verbas financiadas. 34Diagnóstico dos investimentos em cultura no Brasil – Fundação João Pinheiro. Faz um levantamento e uma
análise dos gastos realizados com cultura pelos poderes públicos federal, estadual e municipal das capitais dos
Estados, ao nível das administrações direta e indireta, no período de 1985 a 1995/97.
85
nos projetos e programas ministeriais. (MAGALHÃES, 2012). Outro aspecto importante na
gestão de Celso, segundo Magalhães, é que ele:
Propunha, até mesmo, a ampliação da presença do Estado em determinadas áreas,
em confronto com as teorias neoliberais que, naqueles anos, apoiavam medidas de
enfraquecimento do Estado, revigoradas pelo impacto das ideias de Margaret
Thatcher, cujo modelo de governo era copiado pelo mundo afora, com significativa
aceitação no Brasil, principalmente pela imprensa. (MAGALHÃES, 2012, p.180).
As teorias neoliberais35
tiveram seu ápice no Brasil na gestão de Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), período onde a administração era pautada pela pretensa
eficiência do gerenciamento público. Na nova ordem, o Estado deveria se ater exclusivamente
à política social, estimulando a privatização e investimentos econômicos do setor privado.
Esperava-se das instituições públicas autonomia financeira e administração voltada para
resultados, semelhantes a uma lógica empresarial.
Essa filosofia teve um impacto direto na área cultural. Durante o governo de FHC,
as políticas públicas estiveram sob a égide do mercado, atingindo seu ápice com um esforço
de divulgação e incremento na utilização da Lei Rouanet, dispendendo esforços para aumentar
sua adesão por parte das grandes empresas e estatais. A nova política cultural priorizava o
patrocínio cultural e o empoderamento da esfera privada. O crescimento do mercado cultural
e a visão da Cultura como negócio foram algumas das heranças da gestão Fernando Henrique
Cardoso, conforme descreve Leonardo Brant (2009), ao afirmar que nesse período o Estado se
tornou cada vez mais diminuto, cuidando apenas do aparato burocrático do funcionamento do
mecanismo da Lei, cabendo às empresas privadas a definição de que projetos culturais
deveriam ser financiados ou não, associando a realização de um trabalho artístico a uma
adequação ao mercado. A Lei Rouanet foi o grande instrumento de política pública da gestão
de FHC.
O modelo de captação de recursos com base na renúncia fiscal inspirou a criação
de novos mecanismos de financiamento em estados e municípios brasileiros, que, por sua vez,
estimulou o surgimento e profissionalização do campo da produção cultural em outras regiões
do País. Observou-se também a realização de iniciativas artísticas de maior porte, antes
35 Concepção segundo a qual o mercado deveria servir como base de organização da sociedade, formulada
neoliberal formulada em 1947 por Friedrich August Von Hayek, tendo sua expansão nos governos de Margareth
Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a partir dos anos 1980. Segundo sua concepção, o
Estado deve restringir sua responsabilidade social, relegando ao mercado e às empresas privadas parte dos seus
encargos. O neoliberalismo propõe uma desregulamentação da economia (controles públicos menos rígidos das
atividades econômicas), a privatização das empresas estatais como as usinas de energia, as indústrias de base, a
construção e administração de estradas, a administração de portos e até parte de setores de fundamental interesse
público como saúde e educação. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/>.
86
concentradas dos centros urbanos nacionais, em outros estados e pequenos municípios.
Ampliaram-se as relações de troca e de poder no campo da produção cultural. Albino Rubim
aborda esse processo, afirmando que:
A partir dessa revirada (criação das leis de incentivo) começa a predominar no Brasil
aquilo que vamos chamar de produtores culturais. As primeiras leis de incentivo não
previam isso, mas a reforma da Lei Rouanet passa a prever os intermediários
culturais que, na verdade, é outro nome para falar dos produtores culturais.
Começamos a ter, a partir de então, uma dominância no campo da organização da
cultura dos produtores culturais. Isso é uma singularidade brasileira. (RUBIM, 2008,
p.102).
Neste contexto, se observa de forma mais estruturada o surgimento de uma nova
categoria profissional no Brasil: os produtores culturais. Originalmente, no Art. 28 da Lei
Rouanet, previa que nenhuma aplicação dos recursos poderia ser feita por meio de qualquer
tipo de intermediação e ressaltava, no parágrafo único, que a contratação de serviços
necessários à elaboração de projetos para obtenção de doação, patrocínio ou investimentos
não se configurava como intermediação.
Em 1997, a medida provisória nº 1.589 alterou o transcrito parágrafo único, que
passou a declarar que a contratação de serviços necessários à elaboração de projetos para a
obtenção de doação, patrocínio ou investimento, bem como a captação de recursos ou a sua
execução por pessoa jurídica de natureza cultural, não configura a intermediação referida
neste artigo36
. Essa Medida Provisória foi reeditada várias vezes e finalmente convertida na
Lei nº 9.874/1999. Assim, passa a constar na Lei Rouanet a figura do intermediário cultural,
um profissional autorizado a captar recursos e a menção a atividade de elaboração do projeto.
O reconhecimento de uma atividade de intermediação por parte do Ministério teve uma forte
carga simbólica e, ainda que por via de uma definição limitada, contribuiu para que o produtor
cultural começasse a perder sua condição de “invisibilidade”.
Em cartilha37
produzida para estimular a cultura do mecenato, o MinC mostra o
reconhecimento do papel dos agentes culturais – produtores, agências de propaganda,
consultores, etc – e aceita a inclusão no orçamento dos projetos dos custos de captação,
divulgação e elaboração de projetos. Posteriormente, em 2012, o MinC publica outro
36
Redação dada pela Lei nº 9.874, de 1999. 37 Cartilha intitulada “Cultura é um bom negócio” lançada no governo Fernando Henrique Cardoso, direcionada
aos empresários com o objetivo de apresentar aos empresários as vantagens do investimento em cultura por
meio do mecanismo de incentivo público.
87
documento38
, contendo uma planilha com o indicativo de preços de “mão de obra” da área
cultural para subsidiar a elaboração dos orçamentos de projetos apresentados na Lei Rouanet,
onde já constam 161 atividades profissionais envolvidas na cadeia produtiva da cultura,
incluindo somente 06 tipologias de produtores.
Segundo depoimento de Mequita Andrade, coordenadora da Lei Rouanet na
Secretaria de Livro e Leitura do Ministério da Cultura, no início da implantação do
mecanismo de incentivo, houve certo constrangimento por parte do Ministério em tratar, no
âmbito da Lei Rouanet, da remuneração dos profissionais emergentes:
[...] assim foi nascendo uma nova categoria de profissionais: produtores culturais, analistas de projetos, restauradores e captadores. Os captadores, por exemplo, eram
pessoas que tinham entrada nas empresas e que, pela própria lei, tinham direito a
uma remuneração equivalente a 10% dos investimentos. Isso causava certo
desconforto, pois existiam projetos milionários, como os da área de restauro do
patrimônio. Alguns ajustes, ainda na gestão de Weffort, foram feitos, mas o volume
era demasiado grande e havia pouco dinheiro para realizar as mudanças de forma
rápida e democrática. Para contornar a questão, estabelecemos um teto de R$ 100
mil para o captador. (ANDRADE, 2011, p.48).
Em 2013, outra alteração39
na Lei explicita que a “captação de recursos será
realizada por profissionais contratados para este fim ou pelo próprio proponente, cujo valor
será limitado a cem mil reais ou a dez por cento do valor do projeto” e aceita que o
proponente seja remunerado com recursos decorrentes de renúncia fiscal, desde que preste
serviço ao projeto, discriminado no orçamento analítico. Muitas vezes, o proponente é o
próprio produtor e essa será sua remuneração. Esses exemplos mostram como uma dose de
indefinição, invisibilidade e constrangimento sempre permearam a relação destes
profissionais com as leis de incentivo.
Mesmo com a ausência de política mais claras relacionadas aos produtores
culturais, as leis de incentivo dinamizaram o setor e promoveram a profissionalização e o
aumento da oferta de iniciativas culturais, que acarretaram transformações no campo da
cultura criando novas rotinas, práticas e saberes. Instaurou ainda a busca por projetos de
excelência e acentuou antigas desigualdades culturais, sociais e territoriais brasileiras, ao
favorecer projetos com maior visibilidade e/ou realizados na região sudeste do País. Sentia-se
a nova atmosfera da cultura, mas o acesso aos grandes patrocinadores da Lei Rouanet ainda
não tinham chegado com mais intensidade ao Ceará.
38Lista de mão de obra elaborada pelo MINC e Fundação Getúlio Vargas – FGV com indicadores de valores da
cultura, disponível no site <http://www2.cultura.gov.br/site/2012/05/16/indicadores-de-precos-da-cultura-2/>. 39Instrução Normativa Nº 01, de 24 de junho de 2013.
88
Vivia-se a crença em um movimento de renovação política e gerencial, que ficou
conhecido como Período Mudancista, com os governos de Tasso Jereissati e Ciro Gomes
(1987-2002). No âmbito da cultura, assistia-se no Estado o prestígio dessa pasta, a realização
de projetos de grande porte, a reforma e construção de equipamentos culturais, a valorização
da cultura local, investimentos na indústria audiovisual e a criação da lei estadual de incentivo
à Cultura.
A possibilidade de novas fontes de financiamento; a valorização de projetos e
eventos com visibilidade e apelo “comercial ou institucional”, que despertassem o interesse
das empresas investidoras; a busca por padrões de “excelência” técnica e artística; e as
competitividades entre os projetos em um mercado ainda incipiente alteraram as relações no
campo da cultura e exigiu dos produtores um esforço acentuado para se enquadrar nos novos
padrões da política cultural brasileira.
Os produtores culturais sentiram a necessidade de aprimorar sua qualificação e se
capacitar para ingressar no novo “mercado da cultura”. Com formação autodidata, em sua
grande maioria, tiveram que aprender rápido para aprimorar discursos e incorporar técnicas
gerenciais de forma a provar aos investidores que seus projetos eram “viáveis e competitivos”
e que “trariam bons resultados” à empresa apoiadora.
O Estado viveu também seus primeiros passos no que pode ser considerada uma
política de formação na área com a criação do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura.
Segundo o ex-secretário Paulo Linhares40
(1993-1998), criador do projeto, a ideia deveu-se a
seu entendimento de que o Ceará precisava de uma escola de cultura que criasse uma geração
de novos profissionais e técnicos, além de investimentos na gestão cultural. A intenção não
era só ter gestores, mas “criar uma compreensão da importância cultural”. Foi imbuída desse
espírito que a Secult ofereceu, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas – FGV, um curso
de 72h/a intitulado “Administração da Cultura”, repassando para os aspirantes à carreira de
produção e gestão cultural, os primeiros preceitos da nova atividade.
A política de financiamento pautada na Lei Rouanet inaugura uma profunda
mudança ao campo da cultura. Segundo Olivieri, os produtores ou artistas proponentes que
pleiteavam esse benefício fiscal passaram a sentir a necessidade de novos conhecimentos que
iam muito além do fazer artístico. Para ela, “a formação e a capacitação artísticas não são
suficientes e não garantem a sobrevivência no processo de aprovação e realização de
40 Depoimento registrado no livro 40 anos da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará 1966 – 2006. A história
da Secult por seus secretários. (SANTOS, Fabiano; SILVA e GUEDES, Mardonio - Orgs). Coleção Nossa
Cultura, p.70.
89
projetos”. (OLIVIEIRI, 2004, p.128). Os procedimentos necessários para atender as inúmeras
solicitações do Ministério e demais secretarias estaduais, dependendo das instituições
demandadas, acabam por requerer um gasto de tempo excessivo no projeto que, após passar
por essa etapa, ainda tem que vencer o desafio da captação, onde o projeto cultural, além de
atender a diversos pré-requisitos legais, precisa estar em conformidade com os interesses da
empresa. Segundo Olivieri, “esse conceito criou vários cursos, palestras e livros (apostilas)
explicando várias formas de empacotar o projeto cultural para que ele atenda às necessidades
de comunicação das empresas.” (OLIVIERI, 2004, p.135). [não posso alterar citações]
Isso, sem falar das inúmeras estratégias, tempo e recurso despendido para ter
acesso aos setores de marketing ou comunicação das possíveis empresas com potencial de
investimento. Na verdade, o desconhecimento da lei de incentivo era grande. As empresas
possuíam potencial de patrocínio restrito, sendo, em sua maioria, localizadas na região
sudeste, o que exigia grandes esforços por parte dos produtores culturais de outras localidades
do país para despertar o interesse sobre suas iniciativas.
O alarmante descompasso entre a demanda de patrocínio e a disponibilidade de
verba, agravado pelo número restrito de fontes de financiamento, criou concorrência
entre os produtores culturais na obtenção de patrocinadores [...] dessa forma, o
proponente que, para a aprovação de seu projeto junto ao Ministério da Cultura,
deveria ter no primeiro momento, capacitação para o desenvolvimento de objetivos,
fundamentos, metas, orçamentos, controle financeiro e obtenção de documentos, deverá na segunda fase (captação), cumular as funções de empacotador de seu
projeto de acordo com as teorias de comunicação e marketing, bem como de acordo
com o balanço da empresa e das estratégias de mercado. (OLIVIERI, 2004, p.153).
É importante destacar o aspecto de que os produtores culturais já se forjaram
como categoria profissional em um cenário de disputa por obtenção de patrocínios, que se
manifestava na forma de concorrência por verbas, prestígio e visibilidade para seus projetos.
Essa, com certeza, é uma importante característica na conformação do campo da produção
cultural no Brasil.
Às disputas e tensões do mercado se somavam também a necessidade de
atendimento de múltiplas expectativas e ao incremento constante nos projetos, de forma que
esse se destacasse no mercado cultural, trazendo outras implicações e conformações ao
processo, em consonância com a política neoliberal de estímulo ao empreendedorismo,
concorrência e maximização de resultados.
O produtor ou é um super-homem, com várias habilidades e competências, ou
deverá contratar profissionais que o auxiliem no caminho. Os profissionais ainda são
poucos e nem sempre se habilitam a trabalhar em função do sucesso na obtenção de
90
patrocínios. Ademais, os profissionais, de acordo com as próprias regras de
mercado, agrupam-se ao redor de projetos maiores e mais fáceis de serem aceitos
pelo mercado [...] (OLIVIERI, 2004, p.53).
Observa-se uma maior possibilidade de êxito para aqueles que estão associados a
projetos com viabilidade financeira ou de interesse comercial, o que se configura como uma
deformação no sistema cultural, uma vez que exclui desse leque projetos com caráter
experimental, polêmicos ou sem grande poder de visibilidade. Olivieri aponta ainda outro
aspecto crucial, por vezes despercebido, que pesa sobre o ombro do produtor, nesse
emaranhado de relações que ocorrem no campo da cultura entre artistas, produtores, poder
público e empresas patrocinadoras: “o Estado passou para o produtor e/ou artista a
responsabilidade de obter recursos e, portanto, a culpa na hipótese de insucesso”. (OLIVIERI,
2004, p.53).
Foi com esse peso em seus ombros e a responsabilidade de abrir caminhos e criar
condições de garantir a sustentabilidade de seus projetos, e ainda se adaptando aos padrões e
demandas, que os produtores culturais assistiram ao surgimento de novas e profundas
transformações no mercado: o início do governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, e,
com ele, a valorização de novos símbolos culturais e políticos, que vieram acompanhados de
uma crescente complexificação do campo da cultura no Brasil.
Maquiavel (1999), no início do século XVI, já trazia em O Príncipe
recomendações sobre a condução atenta que um governante deve ter para manter seu poder,
em tempos de guerra e paz. Apontava como atributos importantes para um bom governo,
dentre outros, a necessidade de consideração dos "costumes / modos de ser" de um povo
subjugado; a permanência da conquista pela "amizade / estima"; a observação da "memória"
de um povo e a importância que ele dá à noção de liberdade e à necessidade do favorecimento
às artes em seu reinado. Seus conselhos, que continuam atuais, reforçam a existência de
imbricadas e complexas relações entre cultura e poder.
Essas recomendações nos auxiliam a perceber a dimensão simbólica e política dos
discursos e pronunciamentos de Gilberto Gil41
, quando esteve à frente do Ministério da
Cultura – MinC (2003-2008) e, posteriormente, de seu sucessor Juca Ferreira (2008-2010),
quando afirma, na época, que o novo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-
2010) representa uma “mudança estratégica e essencial, que mergulhe fundo no corpo e no
espírito do País” e continua enfatizando o papel das políticas culturais do governo como
41 Discurso proferido na Solenidade de Transmissão do Cargo. Brasília, 02 de janeiro de 2003. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u44344.shtml>.
91
“parte do projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso País [...] e que deverá
permear todo o governo, como uma espécie de argamassa de nosso novo projeto nacional”.
Essa perspectiva inédita possibilitou uma retomada do papel intervencionista do
Estado e a reestruturação institucional do Ministério da Cultura (MinC), que criou secretarias
e programas para atender às novas áreas culturais, por meio de processos de construção de
políticas culturais mais democráticas. A Cultura passou a ser percebida e publicizada como
importante instrumento de inclusão social, cidadania e desenvolvimento. A ênfase saía do
mercado - o que até então prevalecia na política cultural brasileira - para o social, com
programas e ações direcionados a todos os “cantos e recantos do Brasil”. Embora o uso do
conceito “antropológico” de cultura e a valorização da diversidade cultural não seja uma
novidade histórica nas políticas culturais no Brasil, agora se apresenta de forma mais
sistematizada em um conjunto de ações e programas políticos.
As políticas culturais sofreram também influências da mundialização, da
internacionalização dos mercados, da complexificação das relações sociais e da nova
conjuntura política com o fortalecimento de países emergentes, onde se destacou o Brasil.
Também trouxeram significativas contribuições ao processo de construção da nova agenda
cultural, instituições externas, principalmente a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO. Por meio de convenções internacionais,
indicaram ainda novos parâmetros e perspectivas para as políticas públicas, dando prioridade
a conceitos de desenvolvimento social, diversidade cultural e preservação do patrimônio
material e imaterial.
Nesse período, o governo brasileiro se destaca pela criação da Secretaria da
Identidade e da Diversidade Cultural (SID/MinC), responsável por fomentar políticas para a
diversidade cultural brasileira. Alguns programas buscaram sistematizar a atuação do
Ministério em nível nacional, descentralizando e ampliando o apoio do MinC às instituições e
grupos culturais de todo o País, como o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania
-Cultura Viva42
, criado 2005, por meio da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural
(SCDC/MinC).
Foi com essa missão ampla e complexa que o Ministério da Cultura, na gestão de
Gil e Juca, estabeleceu uma importante fase da história da política cultural contemporânea no
42O Programa Cultura Viva, por meio dos editais do Ponto de Cultura, privilegia o investimento público direto
nos projetos da sociedade civil, que tem como foco primordial promover a acessibilidade à cultura – produção,
fruição, difusão – e inclusão de novos agentes no atendimento das políticas culturais, sem restrição de segmento,
expressão cultural, condição social ou posição geográfica. Funciona, desse modo, como o principal fomentador
da diversidade de expressões culturais brasileiras. (IPEA, 2011).
92
Brasil. Durante esse período, o MinC trabalhou para: atuar na formulação e execução do que
seria a base de políticas públicas para o setor; na reforma administrativa e nos marcos legais;
na criação de diversos programas e projetos; na ampliação do seu campo de atuação por meio
de uma visão antropológica, cidadã e econômica da cultura; na inclusão de novos atores no
campo da cultura; na abertura de canais de diálogo com a sociedade; e na inserção da pauta da
cultura brasileira na agenda política nacional e internacional do País. As políticas almejavam
ampliações não só territoriais, mas também sociais, simbólicas, políticas e culturais.
Esses novos modelos e discursos aconteceram em paralelo ao pleno
funcionamento da Lei Rouanet, que enfrentou um intenso debate sobre a necessidade de
reforma43
. O governo Lula propôs, pela primeira vez, uma revisão pública para corrigir as
suas deficiências e limitações. Como resultado de fóruns públicos, a proposta de mudança
pretende corrigir antigas distorções do programa, de forma a aferir mais peso político e
recursos financeiros ao Estado, diminuir as desigualdades regionais, estimular a inserção de
novos atores, dentre outros. Processo criticado por Sarkovas:
O Ministério da Cultura de Gilberto Gil esforçou-se para realizar mudanças que
mantenham tudo como está. Cheio de ambição e bons propósitos, mas sem nenhum
plano estratégico e de ação, desencadeou em diversas cidades do País um “processo
democrático” de consultas ao qual deu o nome de “Cultura para Todos” para
“aprimorar” a Lei Rouanet. Embrenhou-se num cipoal de pressões localizadas que
arrastaram o final do processo e não apontaram para nenhuma solução estrutural. Fez de conta ser possível evitar o desabamento de um edifício com problemas no
alicerce mudando as regras do condomínio e as pastilhas da fachada. (SARKOVAS,
2011, p.55).
Como alternativa de financiamento à Cultura, como já citado, o governo Lula
também foi responsável pela criação de uma política de editais, com objetivo de estimular
segmentos culturais estabelecidos como prioritários pela nova política cultural do governo.
Enquadram-se nessa categoria projetos na área de cultura Afro-Brasileira; Identidade e
Diversidade; Patrimônio Imaterial; Economia Criativa; Educação e Cultura; Intercâmbios
Culturais com países da América do Sul e da Lusofonia; Produções Culturais em
Comunidades Indígenas e Territórios com Baixos IDHs; Cultura LGBT; Culturas
Tradicionais e Populares, entre outros. (SALGADO et al RUBIM, 2010). Editais que, apesar
de atenderem a uma demanda de interesse do Estado, também são criticados pelo excesso de
burocracia e direcionismo.
43 Proposta de reforma no sistema de financiamento da cultura, com debates públicos nacionais visando à
construção de uma Lei que dê conta das novas demandas, conhecida como Procultura, atualmente em tramitação
no Congresso Federal.
93
Ainda no governo Lula, promoveu-se um esforço de estimular a participação da
sociedade civil na construção das políticas públicas de cultura. Nessa perspectiva é que se deu
a elaboração de um Plano Nacional de Cultura44
e de um Sistema Nacional da Cultura, que
consistiu no empenho por parte do Ministério de implantar um sistema de gestão integrado
entre as políticas públicas federais, estaduais e municipais. No que diz respeito, a
implementação de mecanismos de democracia participativa da sociedade civil na esfera
pública foram realizadas amplas consultas nacionais e locais por intermédio de fóruns,
conferências45
e conselhos.
A quantidade e variedade de iniciativas e a velocidade com que se processaram,
nos remetem a um crescimento que não teve tempo de maturação, de criação de bases sólidas.
Alguns anos depois, já vivemos no campo das políticas públicas culturais com uma sensação
de perplexidade diante da necessidade de dar continuidade aos diversos esforços que foram
mobilizados. Diante das inúmeras expectativas geradas, ainda não foram feitas mudanças
substanciais que garantam a continuidade e permanência de uma nova política cultural. Não
há uma consciência ampliada da relevância da cultura na sociedade e no Estado; os aportes de
recursos orçamentários por ora são insuficientes; leis importantes ainda estão por ser
aprovadas e há pouco envolvimento social nas políticas culturais. Ou, como diz Sarkovas, foi
arquitetado uma linda reforma no edifício, sem, no entanto, se ter autorização para alterar seu
alicerce. Com todas suas limitações, a gestão da cultura no governo Lula chegou ao seu final
como um marco para as políticas públicas, muito mais pelo que representou simbolicamente,
do que estruturalmente.
No entanto, os múltiplos programas do Ministério e a implantação do Sistema
Nacional de Cultura estimularam o surgimento de novas articulações em inúmeros pontos de
cultura46
e a criação de secretarias da cultura em diversos municípios do País, que também
repercutiram no campo da produção cultural, estimulando novas oportunidades de trabalho. O
sistema cultural não era mais pautado somente pelos mecanismos de incentivo, por meio das
44 PNC – Plano Nacional de Cultura instituído pela Lei 12.343 tem por finalidade o planejamento e
implementação de políticas públicas de longo prazo (até 2020) voltadas à proteção e promoção da diversidade
cultural brasileira. 45Em 2005 foi realizada a I Conferência Nacional de Cultura, com o tema “Estado e Sociedade construindo
políticas públicas de cultura”, com a participação de 1.200 municípios brasileiros. Em 2009, aconteceu a II
Conferência Nacional de Cultura, com o tema “Cultura, Diversidade, Cidadania e Desenvolvimento”, contando
com o envolvimento de 2.974 municípios, o que equivale a mais de 50% dos municípios do país (SOTO et al
RUBIM, 2010). 46
Pontos de Cultura integram o Programa Cultura Viva do MinC e prevê o financiamento de projetos de pequeno
porte realizados por entidades governamentais ou não-governamentais, que visam a realização de ações de
impacto sociocultural nas diversas comunidades brasileiras. Um dos mais importantes programas do Governo de
Gilberto Gil.
94
leis de financiamento à Cultura, com seus projetos de grande porte e visibilidade. Com eles,
atuavam, concomitantemente, os pontos de cultura, as pequenas iniciativas, a formação de
redes, as associações sem fins lucrativos e, sobretudo, novos valores a serem considerados.
Entram em cena novos atores culturais, que ingressam no mercado já encontrando
um campo em formação e atividade. Se o produtor cultural já vivia em um ambiente de tensão
e disputa pela captação de verbas em um contexto pautado pela ênfase na Lei Rouanet,
assistiu, em poucos anos, ao alargamento do seu campo de atuação e o ingresso de novos
interlocutores no sistema cultural.
A gestão da cultura no Ceará nesse período acompanhou, a sua maneira, todas as
diretrizes das políticas nacionais. A então Secretária de Cultura do Estado, professora Claudia
Leitão (2003-2006), contou com dois fatores favoráveis: o apoio do governador Lúcio
Alcântara e do ministro Gilberto Gil. Viveu-se um período de intensas parcerias, apesar de
ambos não serem alinhados politicamente47
.
A Secretaria, que passava a defender a “retomada do Estado no seu papel de
definição de uma política voltada para a inclusão social, por meio da construção de uma
cidadania cultural48
”, despendeu seus esforços na criação de um Sistema Estadual de Cultura
e elegeu as ações no interior do Estado como prioritárias. Entre os anos de 2005 e 2006 a
Secretaria e grande parte de seu staff esteve em todas as 184 cidades cearenses, em um projeto
denominado “Cultura em Movimento”, promovendo pessoalmente a sensibilização de
gestores municipais, Poder Legislativo e sociedade para a criação de secretárias e órgãos para
a cultura e adesão ao Sistema Estadual. (NUNES, 2007).
Vivia-se uma “euforia” da descoberta do potencial dos recursos da cultura em sua
condição de transversalidade, com a exaltação das associações entre desenvolvimento
territorial, inclusão, formação, turismo e cultura, dentre outros. Criaram-se diversos eventos,
intitulados projetos estruturantes, em regiões distintas do interior do Estado, capitaneados pela
própria Secretaria, que passava a assumir o papel de produtora. Essa situação impactou
diretamente no campo de atuação dos produtores culturais, uma vez que, além de propor os
projetos, a própria Secretaria se encarregava de captar os recursos por meio das leis de
incentivo, estadual e federal, gerando uma situação desigual de acesso e de disputa no
mercado.
47 Gilberto Gil representava o governo do Partido dos Trabalhadores – PT e Lúcio Alcântara era filiado ao
Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. Sobre esse assunto ler artigo O “PARTIDO DA CULTURA”:
Política cultural no Ceará na Era Lula de Alexandre Barbalho e Jocastra Bezerra. 48 Texto de apresentação do documento “Secretaria da Cultura: um caminho trilhado (2003-2004)”, publicado
pela Secretaria da Cultura do Governo do Estado do Ceará.
95
A gestão também realizou mudanças na lei estadual, ajustando-a as novas
necessidades, que findaram por tornar o processo mais burocrático e moroso para os
produtores. Nesse período, o financiamento à Cultura no Estado passa a contar com o
incremento de outros mecanismos como a Lei Rouanet, que fica mais acessível a outros
estados brasileiros, e ao incremento dos editais, que passam a ser usados largamente nas
políticas estadual e federal.
Surgia outra geração de produtores e novas demandas de organização da cultura.
É nesse período que aparece com mais ênfase o termo “gestão cultural” e a percepção da
necessidade de formação na área, seja nas políticas públicas ou em instituições educativas
técnicas ou superiores. Amplia-se o mercado de trabalho, seja nas recém-criadas instituições
públicas, em associações sem fins lucrativos ou como autônomos, criando seus projetos ou
contratados para trabalhar nas iniciativas culturais e eventos que passam a acontecer com mais
frequência.
Observa-se também a necessidade do produtor somar novos conhecimentos aos já
incorporados. Além de ser um bom executor e administrador de projetos, é requerido agora
competências de planejador, articulador e conhecedor de políticas públicas de cultura.
Começava a surgir uma geração de produtores que buscavam novos conhecimentos e, no ano
2000, na transição dos governos FHC e Lula, foi ofertada no o I Curso de Especialização em
Gestão e Produtos Serviços Culturais no Ceará, promovido em uma parceria da Universidade
Estadual do Ceará – UECE com a Secretaria da Cultura.
Além de conhecimentos inéditos, é importante destacar a “valorização” de novos
símbolos. A ênfase nos conceitos de diversidade, democracia, desenvolvimento e inclusão
cultural, dentre outros, provocaram efeitos no cotidiano dos produtores culturais que passaram
a incorporar esses valores em seus projetos, discursos e práticas. Criam-se assim novas
conformações no campo da produção cultural. Outras exigências se sobrepunham às antigas
deficiências, ainda não resolvidas.
Se antes os produtores já enfrentavam dificuldades para captar verbas para seus
projetos, agora se viam na condição de incorporar a eles novos discursos e parâmetros sociais
compatíveis com as diretrizes do Estado. Essa situação, muitas vezes, ampliava ainda mais o
escopo dos projetos, resultando em orçamentos mais onerosos, que terminava repercutindo
também na dificuldade de captação de recursos.
Nesse período se observa a inclusão de mais agentes ao campo da cultura,
passando a se observar já uma segmentação das atividades e perfis, composta por produtores
vinculados a empresas, outros a instituições públicas, alguns atuando na área social, outros
96
administrando companhias e grupos e mais um leque diversificado de possibilidades. Ainda
de que forma incipiente, inicia-se também uma maior organização do campo em regiões
menos desenvolvidas economicamente do Brasil e nos maiores municípios do Ceará.
Além de cuidar da gestão de seus próprios projetos e de sua subsistência
econômica, os novos atores do campo da cultura, como os produtores, também se viram
compelidos a vivenciar mais ativamente da construção social das políticas públicas, que agora
seriam pensadas pelo viés da participação social.
A gestão da presidenta Dilma Rousseff (a partir de 2011) deu continuidade aos
principais programas de Luís Inácio Lula da Silva. Em 2013, apresentou à sociedade brasileira
a versão final do Plano Nacional de Cultura, cujo documento apresenta um planejamento de
longo prazo para a cultura no País, prevendo 53 metas a serem cumpridas até 2020, com
responsabilidades compartilhadas entre estado e sociedade.
São metas que tratam desde o aumento de emprego no setor cultural (11); maior
oferta de graduação e pós-graduação na área do conhecimento cultural (16); ampliação da
oferta de cursos e oficinas em gestão cultural e outros campos afins (18); aumento de
produção e circulação de espetáculos nos municípios das macrorregiões do País fomentados
com recursos federais (24); gestores capacitados em 100% das instituições e equipamentos
culturais apoiados pelo MinC (35); promoção de cursos ou certificações promovidos pelo
MinC para gestores e conselheiros em 100% das Unidades da Federação (36); aumento de
recursos para á área com 10% do Fundo Social do Pré-Sal para a cultura (50); aumento de
37% acima do PIB, dos recursos federais para a cultura (51); e aumento de 18,5% acima do
PIB da renúncia fiscal do Governo Federal para incentivo à Cultura, só para citar algumas.
Não só as mencionadas, mas todas as metas - ao traduzirem e proporem
intervenções no campo da cultura no Brasil - possui em maior ou menor extensão repercussão
no âmbito da produção cultural. Além de apresentar importantes elementos para a
compreensão das questões que afligem o campo da cultura no Brasil, nesse momento atual
sinalizam um cenário desejado e os passos a serem dados.
É inegável a importância que todo esse processo teve no campo da cultura; porém,
segundo nossa perspectiva de avaliação, parece-nos, figurativamente falando, com um bolo
que em sua feitura recebeu muito fermento, cresceu rápido demais e depois de frio começa a
minguar. Parece-nos que foram realizadas inúmeras (e necessárias) iniciativas em pouco
tempo, e que estas não tiveram tempo (nem talvez a intenção) de assegurar as bases mais
sólidas de sustentação.
97
No Ceará, desde o início do governo Cid Gomes (2007 até os dias atuais) a pasta
da cultura perdeu relevância. São inúmeras as críticas49
que passam pela ausência de políticas,
falta de prestígio e recursos, além de ausência de diálogo com os produtores. Situações que
agora, na gestão do terceiro Secretário, prometem ser resolvidas, ou pelo menos, amenizadas.
No âmbito da produção cultural, está sendo ofertado um curso técnico de média
duração50
intitulado Laboratório de Produção – Curso Técnico em Produção de Eventos
Culturais, o primeiro desse tipo direcionado para formação de produtores de eventos culturais
no estado do Ceará. O curso foi proposto por uma produtora e conta com a parceria da
Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e do Instituto Centro de Ensino Tecnológico –
CENTEC. Contou com 467 inscritos dos quais 40 foram selecionados. Para retratar a situação
de instabilidade do campo, a iniciativa foi viabilizado por meio da proposição de um projeto
no Sistema Estadual de Cultura, com o apoio da iniciativa privada, não tendo, portanto, a
despeito de sua importância, a garantia da realização de outras turmas assegurada.
No nível da formação superior, os cursos ofertados são insuficientes e apenas
tangenciam a área da produção cultural, pois são poucos e sua criação também se insere na
transição do século XX para XXI. Em 1999, a Universidade Estadual do Ceará – UECE
ofertou um curso de Especialização em Organização de Eventos, com 450h/a; em 2000, o já
citado I Curso de Especialização em Gestão e Produtos Serviços Culturais no Ceará; e em
2005, a Universidade de Fortaleza – UNIFOR realizou uma Pós-Graduação Lato Sensu em
Criação e Gestão de Eventos, com 375h/a. A UNIFOR oferece, desde 2002, um Curso
Superior de Tecnologia em Eventos, com 1.620h. Como vimos os cursos ainda são poucos e
há uma carência no Estado de formação aprofundada no campo da produção e gestão cultural,
que colabore para o amadurecimento do setor.
Vivemos uma espécie perplexidade diante de um fim de ciclo, em que temos que
assegurar os ganhos obtidos, sem ter as condições necessárias para isso. No Ceará, muitas das
iniciativas realizadas no interior, lutam para continuar acontecendo e instituições funcionam
de maneira precária, sem recursos, pessoal especializada e visão política da relevância da
gestão cultural. Os inúmeros agentes que se formaram nesse período, também tentam se
manter e viabilizar seus projetos em um cenário incerto no âmbito do financiamento público,
como já abordado.
Essa situação nos põe diante da responsabilidade de consolidar as bases de uma
política cultural consistente, duradoura e compartilhada com a sociedade, o que só é possível
49 Jornal o POVO edições de 18/12/11, 22/04/12, 17/06/12, 06/07/12, 23/01/12, 25/11/12, 02/06/13 e 26/12/13. 50 1.050 horas/aula, distribuídas ao logo de dezoito meses.
98
se compreendermos com mais profundidade onde estamos e como chegamos aqui. É isso que
nos propomos agora, ouvindo e analisando o depoimento dos próprios produtores, que
viveram e continuam a vivenciar o processo retratado nesse trabalho.
99
4 O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ
Neste capítulo apresentaremos o campo da produção cultural, com foco nas
diversas relações que nele se configuram, campo entendido aqui como espaço onde são
vivenciadas as relações entre os produtores culturais, entre si e com os demais agentes que
compõem esse locus. Campo também longe de ser um ambiente estático, haja vista ser um
espaço de disputas, multiforme e permeável, não só receptor das tensões, mas emissor de
novas configurações.
Usaremos os conceitos de Pierre Bourdieu como instrumentos para nos auxiliar
nessa empreitada de compreensão de um tema tão complexo, caleidoscópico e ainda em
formação. Nosso objetivo é, por meio da memória vivida no próprio contexto, narrada por
seus agentes, compreender também o seu processo de conformação, aprendendo alguns de
seus significados e repercussões, pois como descreve o sociólogo francês:
Não é demais afirmar que a história do campo é a história da própria luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção e apreciação legítimas; é a
própria luta que faz a história do campo; é pela luta que ela se temporaliza.
(BOURDIEU, 2008, p.88).
Por fim, essa tarefa só será possível se nos aventuramos na inserção no próprio
campo. Para isso, aproveitaremos a nossa própria experiência no mercado cultural, além da
leitura de publicações recentes sobre o tema, artigos em jornais e blogs publicados durante o
período da pesquisa.
No entanto, o fio condutor serão os conteúdos dos depoimentos coletados com os
produtores, por meio de entrevistas semiestruturadas, onde fizemos algumas interrogações
pontuais para auxiliar na elucidação de aspectos de maior interesse e deixamos os
interlocutores discorrerem à vontade sobre os temas abordados. Os depoimentos apresentados
foram editados para preservar a identificação dos entrevistados, porém, sem perda da
fidelidade do conteúdo.
Partimos do ponto de vista de que o produtor ainda se encontra em uma condição
de “invisibilidade”, sendo, portanto, um agente que carece ser melhor percebido e escutado. A
necessidade premente da realização de atividades concretas faz com que sua fala seja
comumente condicionada a intervenções direcionadas e, quase sempre, em busca de
resultados específicos.
100
Dessa forma, buscamos nas entrevistas oferecer espaço para um discurso
autorreflexivo, onde o entrevistado pudesse falar sobre si, sua história e seu próprio campo. O
sentido aqui não era buscar dados concretos e informações precisas e cronológicas sobre a
atividade. Antes disso, nossa intenção era muito mais captar o sentimento, a percepção, as
impressões e interpretações desses protagonistas sobre seu lugar no campo da cultura e sobre
o próprio campo.
Explicitar e nomear as vivências desses produtores nos parece de fundamental
importância para a compreensão do campo da produção cultural. Por meio de suas falas,
tentaremos buscar conexões e sentidos que possam revelar o que ainda não havia sido
percebido. Buscaremos regularidades e pistas que nos permitam compreender melhor como se
deram as conformações do campo da produção cultural no Ceará e as distintas configurações
que este assumiu.
Exatamente para assegurar a livre expressão, optamos por não identificar os
produtores culturais entrevistados. Como atuam em um campo ainda restrito, onde a grande
maioria dos agentes se conhece, compreendemos que essa seria a melhor solução para manter
a potencialidade e a integridade dos discursos. Por uma estranha ironia, para dar visibilidade a
esses atores no coletivo, estes terão que ficar no anonimato no plano individual.
Foram entrevistados 20 produtores culturais, residentes em Fortaleza (capital do
Ceará) e que atuam no mercado, distribuídos em três grupos distintos. O primeiro formado
por produtores que começaram sua carreira na produção cultural antes da criação das leis de
incentivo; o segundo formado por produtores que identificam sua “profissionalização” em um
processo de relação direta com as leis, federal e estadual, no Ceará; já o terceiro grupo iniciou
suas atividades já no século XXI, na gestão do presidente Lula, encontrando um campo maior
de possibilidades de atuação e políticas culturais mais expressivas.
A esse grupo de entrevistados, somou-se também o depoimento de alunos do
Laboratório de Produção Cultural, em relatos coletados em agosto de 2013, ocasião em que
pudemos ministrar a 55 discentes uma disciplina sobre Produção Cultural onde debatemos,
durante 20 horas, o campo da produção cultural no Ceará e no Brasil. Compreendemos que as
reflexões, trabalhos e debates realizados na turma, composta majoritariamente, por produtores
que estão ingressando no mercado em busca de uma melhor formação, também contribuirão
para enriquecer este trabalho.
A decisão de ouvir produtores culturais atuantes em Fortaleza, na capital do
Estado, já revela algo sobre o campo. Alguns desses entrevistados são provenientes de
distintos municípios do interior do Ceará; no entanto, afirmam que para atuar
101
profissionalmente na área da cultura, tiveram que migrar para Fortaleza. Apesar de já terem
desenvolvido atividades culturais em suas cidades, sentiram em determinado momento, o
campo limitado, com poucas possibilidades de subsistência e formação restritas, fazendo com
que apesar de eventualmente continuarem a manter laços e iniciativas pontuais em seus
municípios, passassem a atuar na capital.
É importante registrar que essa divisão em grupos, em subcampos distintos, não
tem contornos e limites rígidos e se dá apenas por uma necessidade metodológica. Apesar de
os grupos guardarem algumas distinções, atuam juntos no mercado contemporâneo, em
correlação de forças e disputas dentro do mesmo campo na atualidade. Para guardar maior
sigilo, os entrevistados serão identificados no final de seus depoimentos por uma letra de seus
nomes, seguida da indicação do grupo a que pertencem.
Posta essa observação, passaremos a descrever cada um dos grupos, utilizando
nomeações que, longe de corresponder a totalidade do grupo, ressalta algumas características
mais marcantes e facilita a identificação.
Grupo 1– Produtores/Artistas
Para a composição deste grupo foram entrevistados seis produtores culturais.
Fazem parte desse conjunto: cineastas, músicos, gestores de associações culturais, produtores
de projetos relacionados às culturas populares e diretores de festivais culturais e eventos de
grande porte. Alguns ocupam mais de uma dessas atividades simultaneamente.
Os mais experientes, iniciaram seu trabalho no campo da cultura ainda no final da
década de 60. A maior parte, porém, ingressou nos anos 70. Esse grupo foi afetado pelas
repercussões da Contracultura e teve, nesse período, uma atuação artística marcada por um
posicionamento ideológico de esquerda e contestação.
Os que vieram do interior do Estado trouxeram uma bagagem cultural fortemente
associada às culturas populares tradicionais e, com ela, a temática da valorização da nossa
identidade cultural. Os entrevistados desse grupo deixam transparecer a convivência com o
campo da cultura desde uma idade tenra e a naturalidade dessa relação, que tem como base a
família, a comunidade local ou a escola. Uma vez na capital, disputaram com outros agentes a
legitimação e afirmação de suas culturas.
No interior do Estado as atividades realizadas também eram comumente
associadas a agremiações escolares e as manifestações artísticas e culturais da capital tinham
forte relação com o ambiente universitário, o que evidencia o poder da instituição educacional
102
enquanto instância consagradora. Grupos diversos vinham de cidades do interior ou de bairros
da periferia para ter acolhida no ambiente democrático e acolhedor da universidade.
Os entrevistados relatam a existência de vínculos mais próximos e solidários com
a comunidade onde se inseriam. A prática da cultura e da atividade artística era feita de
maneira mais simples e artesanal, em um sistema de compartilhamento e apoio mútuo. As
produções artísticas se davam, muitas vezes, de maneira coletiva. Vivia-se uma efervescência
criativa e o que prevalecia era a relevância da manifestação estética e não necessariamente a
qualidade técnica, ou no dizer de um deles: “Era um período efervescente, inquieto. Tudo era
ideológico e visceral”. Partilhava-se um sonho.
Interessa observar que, mesmo que não havendo um mercado consolidado, a
maioria dos entrevistados não cogitava viver sem o contato com a Cultura, mesmo que para
isso tivessem que buscar outras fontes de renda paralelas, que possibilitassem,
paradoxalmente, viver de Arte. Nesse sentido, era fundamental a busca de uma segurança
profissional em alguma instituição que assegurasse a sua subsistência mínima. Muitos
obtinham emprego no próprio poder público.
Nesse sentido, como não havia fonte de renda assegurada, nem leis de incentivo
ou políticas consolidadas de financiamento à Cultura, a realização de um projeto cultural,
como a simples gravação de um disco, poderia durar vários anos. Trabalhava-se por etapas. O
apoio vinha da rede de relacionamento dos artistas (amigos, parceiros, empresários de
pequeno porte, agremiações políticas, etc) e eventualmente, de pequenos patrocínios do poder
público (órgãos da cultura ou outros) e da Universidade. Raras vezes esse apoio vinha em
forma de dinheiro, fazendo-se presente principalmente por meio de permutas de serviços,
pagamento direto de fornecedores, empréstimos, cessões, trabalho voluntário, etc. Muitas
vezes os produtores/artistas investiam em seus projetos e colocavam suas economias para
financiar suas iniciativas.
Não havia a prática da elaboração de projetos complexos com objetivos, metas a
serem alcançadas, contrapartidas, resultados esperados, cronogramas e planilhas
orçamentárias. Também não era necessário fazer uma prestação de contas. Essa se efetivava
por meio da própria comprovação do projeto, fosse ele um produto ou um evento. Os
apoiadores também recebiam seus agradecimentos em forma de discos, livros, ingressos para
shows, etc. As contrapartidas eram negociadas caso a caso.
Uma das características mais marcantes desse grupo é que nenhum dos
entrevistados iniciou no campo com o desejo explícito de ser produtor cultural. Todos se
autodeclaram artistas, que ingressaram na atividade da produção por uma absoluta
103
necessidade de viabilizar suas expressões artísticas e, às vezes, de seus colegas. A produção
era simplesmente um meio e não uma atividade em si. Até hoje, entrevistados desse grupo
trazem essa dicotomia presente em sua própria essência e no desempenho de suas atividades.
Observa-se que os produtores que consultamos continuam a realizar seus projetos
culturais, mas não o fazem sob uma perspectiva empresarial. Vivem com padrões financeiros
módicos e tem restrições ao desenvolvimento mercadológico do mercado da Arte.
Desenvolvem outras atividades para assegurar sua subsistência, realizam projetos com
intervalo espaçados de tempo e tem como resistência a crença e o desejo de fazer somente a
arte que lhes interessa e a busca de um equilíbrio entre a carreira de gestor e artista. Ainda há
um estranhamento na relação com a produção. Melhor é ser artista.
Grupo 2 – Produtores / Empreendedores
O segundo grupo é formado por produtores que ingressaram na atividade nas
décadas de 80 e 90 e que usufruíram como consumidores de cultura em um ambiente artístico
cultural formado, em grande parte, pelos agentes do grupo anterior, na década de 70. Jovens,
já participavam dos movimentos culturais realizados em Fortaleza, que se dava em torno
principalmente de apresentações e formações de grupos artísticos, que começavam a ganhar
novos contornos na cidade.
Mesmo que ainda se observasse um papel importante da Universidade nesse
período, já começava a ganhar mais visibilidade alguns outros espaços da boemia, festivais,
shows, etc. Durante o período da transição democrática, meados de 80, alguns grupos
conseguiram “abrigo” em gestões públicas mais receptivas às manifestações artísticas. Havia
um ambiente propício ao consumo cultural e a experimentação. Mesmo que não se possa falar
na existência de políticas culturais, os relatos trazem a importância decisiva de determinados
gestores em lugares estratégicos para a animação do campo.
Um aspecto interessante, é que esse grupo traz entre seus membros, a presença
majoritária de indivíduos que não são artistas e já começaram a atuar, desde o início, sob a
perspectiva da organização e intermediação dos processos, ou seja, da produção cultural. Com
formação variada, se inseriram no campo em uma condição de tornar viáveis os
empreendimentos artísticos e culturais, seja organizando as iniciativas propostas pelo poder
público, seja criando suas próprias iniciativas e buscando os meios para viabilizá-las.
Esses profissionais iniciaram sua atividade como autônomos, participando
ativamente de um campo em formação, aprendendo na prática e estimulando outros a se
104
profissionalizarem. Segundo o depoimento de um deles, foi preciso “Criar os mecanismos da
profissão. Criar rotinas, processos, agendas, etc. Foi preciso botar moral”.
Os membros desse grupo se inserem na atividade em uma época de transição.
Vivenciaram o fim do período em que se fazia uma produção de forma artesanal (Grupo 1) e
continuam a trabalhar e repensar sua atuação dentro das novas configurações do século XXI
(Grupo 3). Essa é sua riqueza e peculiaridade. Nesse período, puderam acompanhar a
implantação das políticas de cultura e seus respectivos discursos, a criação das leis de
incentivo e dos editais, o desenvolvimento das tecnologias digitais e a ampliação do campo.
Todos têm destacada influência na maneira de fazer produção cultural e na
“profissionalização” da atividade no Ceará.
Na busca de recursos para seus projetos, esses produtores alcançaram o período
onde captação se dava de maneira mais informal e, no próprio exercício da atividade, tiveram
que ir se adequando às novas exigências do marketing cultural e às posteriores expectativas
das políticas de democratização e inclusão cultural. Como diz o jargão “tiveram que trocar o
pneu com a bicicleta andando”.
Respondem por esse grupo nove entrevistados, que atuam profissionalmente na
área, e tem a atividade de produção/gestão cultural como fonte de renda exclusiva e/ou
prioritária. Todos estão à frente de grandes projetos culturais realizados no Ceará, nas mais
diversas expressões artísticas, com visibilidade nacional. Sete deles dirigem empresas
culturais, criadas no final da década de 90 ou início dos anos 2000 e são responsáveis pela
contratação de outros profissionais da área, ocupando uma posição de liderança no campo.
Dois deles atuam com associações culturais e gestão pública, mas também estão à frente de
grandes projetos culturais.
No entanto, apesar de assegurarem um prestígio no campo e a imagem de
empresas consolidadas, esses produtores/empreendedores vivenciam diariamente o equilíbrio
precário na gestão de suas atividades, uma vez que assumiram responsabilidades e
compromissos, empresariais e culturais, em um setor que ainda é extremamente frágil, sem
um mercado de consumidores amplo e, portanto, dependente das políticas públicas em vigor.
Foram e continuam a ser empreendedores culturais.
Esta geração iniciou desempenhando a função de “produtores de plantão”. Uma
vez que não tinham aptidões artísticas determinadas que os inserissem em uma linguagem
específica, produzia tudo o que fosse necessário, independente de suas aptidões pessoais.
Nesse período, contavam-se muito mais uma atitude, do que uma especialização. Como o
mercado era incipiente, fazia-se o que aparecesse e o que fosse necessário. Com o passar do
105
tempo, o campo ganhou maior complexidade e passou a absorver diferentes posições. A
maioria desses produtores (na forma de suas empresas ou ONGs) se especializou em
determinadas linguagens ou nichos de mercado, onde desenvolvem suas produções, apesar de
estarem aptas a exercer inúmeras outras atividades no campo.
Grupo 3 – Produtores/Gestores
O terceiro grupo é composto por cinco produtores culturais, que iniciaram sua
atuação no campo da cultura depois do ano 2000, com trajetória profissional fortemente
influenciada pelas políticas culturais do governo Lula, o que possibilitou tanto o ingresso de
novos atores no campo, como a ampliação do seu espectro de atuação. Fato que pode ser
observado na própria formação do grupo, que é mais eclética tendo chegado à produção
cultural por meio de distintas influências: movimentos sociais; partidos políticos; influência
de ambientes familiares; afinidades pessoais e gosto pelas práticas artísticas.
É um grupo mais heterogêneo, de difícil enquadramento. Não só em sua
formação, mas também na sua atuação profissional. Desenvolvem suas atividades sob
diversas formas de organização: administrando empresas, participando de associações
culturais ou coletivos artísticos, atuando na iniciativa privada e na gestão pública e também
como empreendedores individuais, mobilizando outros produtores em prol de seus projetos.
Observamos novamente a presença do artista que se tornou produtor para viabilizar suas
próprias expressões e crenças.
Apesar das diferenças, o grupo tem em comum o gosto pela cultura e o desejo de
produzir suas ideias e viabilizar projetos que representem suas crenças e valores. Não somente
em forma de eventos e apresentações pontuais. Esses produtores pensam em atividades
formativas e em políticas de educação e desenvolvimento social. Como já iniciaram suas
atividades, inseridos no contexto das políticas culturais de Gilberto Gil, compartilham com
naturalidade dos conceitos em vigência como diversidade cultural, inclusão, acessibilidade,
etc. Os membros desse grupo apresentam uma percepção do contexto social onde estão
inseridos e da necessidade de sua participação políticas na gestão da agenda da cultura, que
está sendo construída no Estado e no País.
Apesar dessa consciência, observa-se que estes jovens produtores fazem
investimentos e esforços permanentes para conseguirem se inserir no mercado, afirmar seus
projetos, dar continuidade a estes e ainda subsistir materialmente. Nesse aspecto, observamos
106
que alguns estão em uma posição mais confortável do que outros. Obtém mais vantagem,
quem se situa no campo com mais capital cultural, intelectual, político ou econômico.
Como estes produtores não possuem larga experiência, nem ainda empresas com
um portfólio extenso, utilizam como aporte no mercado seu capital e sua rede de contatos.
Assim, se observa que ora se apoiam nos movimentos sociais, na militância “de esquerda”, na
gestão pública, ou ainda em coletivos artísticos. Outros buscam estabelecer uma ampla rede
de parcerias políticas, institucionais e até internacionais, criando mecanismos que minimizem
a dependência das leis, editais e instabilidades políticas locais. No entanto, aqueles que não
têm esse suporte sentem-se mais fragilizados e numa posição menos competitiva nas disputas
e embates travados no campo, o que demonstram na forma de insegurança e angústia.
Os jovens produtores administram seu empreendimento criativo de maneira mais
alternativa e menos onerosa do que os membros do Grupo 2, podendo por vezes montar suas
bases de atuação em casa, em escritórios virtuais ou em empresas formais com menos
funcionários fixos e mais terceirizados.
Alguns dos entrevistados já atuaram ou ainda atuam na gestão pública,
compartilhando ambas as experiências. São profissionais que investem na sua formação e
procuram se aperfeiçoar nos estudos da cultura e em suas competências como uma das formas
de possibilitar uma ascensão e desenvolvimento profissional que minimize os riscos da
atividade. A virtualidade, multiplicidade de papeis, investimentos na formação e a
empregabilidade na gestão pública se configuram como características do grupo em que se
encontram.
O sentimento de fragilidade diante dos desafios do campo é bem mais visível nos
alunos do Laboratório de Produção. A percepção da complexidade do campo e o sentimento
de que disputam pela obtenção de verbas em condições desiguais com projetos culturais mais
antigos e produtoras consagradas é bastante presente. São inúmeros esforços de inserção sem
a garantia de espaço para novos projetos. Isso sem falar da necessidade de sobrevivência
financeira. É perceptível em muitos deles um sentimento de angústia, incerteza e frustração.
No entanto, são os produtores desse mesmo grupo que, diante dessa dificuldade, estão
buscando novas formas de inserção no mercado, melhor formação teórica, maior participação
política no campo e fontes alternativas de gestão e financiamento para seus projetos. A
dificuldade os faz atuar em grupos e trabalhar com trocas de serviço, pequenos apoios,
voluntariado e projetos menos onerosos, lembrando, em alguns aspectos as formas de trabalho
empregadas pelos produtores do Grupo 1.
107
Uma vez apresentados os distintos grupos, organizaremos o conteúdo desse
capítulo em dois tópicos. No primeiro, intitulado “Percursos e conformações”, abordaremos
os distintos processos vividos ao longo do período estudado, que contribuíram para a
formação do campo. Ou seja, propõe um olhar sobre os percursos realizados e sobre como
estes contribuíram para a(s) forma(s) que o campo assumiu nas décadas recentes.
No segundo e último tópico, intitulado “Configurações e paradoxos”, buscaremos
identificar as distintas formas que o campo apresenta hoje, algumas tensões e relações que se
dão entre os agentes, lugares de distinção e de ocupação nos espaços, onde se situam os
produtores culturais e como se instituíram essas posições. Tentaremos compreender quais as
estratégias utilizadas por esses produtores na conquista e manutenção de seus espaços em
relação às políticas de financiamento à Cultura e que recursos utilizam para manter a
ocupação de seu espaço e obter melhores resultados, bem como esses diversos elementos se
combinam e relacionam, na busca de “desmistificar o caráter sagrado da cultura e considerar
sua produção como resultado de um amplo empreendimento de alquimia social”.
(BOURDIEU, 2008, p.13).
Adentraremos nessa busca guiada pelos próprios agentes que o integram. Esse
será o fio condutor. Esperamos com a apresentação desses aspectos colabore para a
compreensão do campo e sua especificidade, assim como para uma inserção social e atuação
profissional do produtor cultural mais clara, criativa e potencializada.
4.1 PERCURSOS E CONFORMAÇÕES
Ortiz, ao abordar aspectos da teoria de Bourdieu, afirma que o campo é o “espaço
onde as posições dos agentes se encontram a priori fixadas. O lócus onde se trava a luta
concorrencial entre os atores em torno de interesses específicos que caracterizam uma área em
questão.” (BOURDIEU, 1983, p.19). No entanto, as lutas travadas e os diversos interesses,
geram mudanças de posições, que se recriam e transmutam os agentes e suas posições.
Lutas nem sempre visíveis com facilidade, uma vez que se dá em diversos
subcampos, de contornos sutis e muitas vezes diluídos ao longo do tempo. Para auxiliar a
perceber esses processos, em sua relevância e regularidade, utilizaremos a teoria de Bourdieu
sobre os campos como um princípio que permita enxergar “o real social como relacional, não
como interações, mas, com inter-relações de estruturas invisíveis. É no campo de luta onde os
108
agentes altamente especializados se enfrentam em busca de legitimidade”. (LINHARES,
2013, p.264).
No entanto, como adverte Ortiz, o campo “não é o resultado das ações
individuais”. Por isso se faz necessário o estudo das estratégias utilizadas pelos agentes que o
compõem: seus sistemas de transformação e conservação. É antes um campo de luta, espaço
onde se manifestam relações de poder, que se estrutura a partir de uma distribuição desigual
de um quantum, formado por dominados e dominantes, onde aqueles que ocupam o lugar de
dominantes são justamente os que possuem um máximo de capital social. (ORTIZ, 1983).
Capital que, segundo Bourdieu, é uma medida de reconhecimento e tem como base a
identificação das “categorias de percepção, os princípios de visão e divisão, os sistemas de
classificação e os esquemas cognitivos”. (LINHARES, 2013). Assim, é necessário fazer uma
retrospectiva com um olhar direcionado para o microcosmo, para compreender o espaço e o
contexto em as relações objetivas se efetivam. Buscaremos nas distintas trajetórias, uma
chave para a percepção das atuais conformações do campo. Falamos de trajetórias, como uma
série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo agente em estados sucessivos no
campo. (LINHARES, 2013, p.102).
Na identificação das trajetórias, devemos observar outro conceito fundamental,
utilizado por Bourdieu, que é o de habitus, como organizador das práticas e das percepções
sobre essas práticas e mais ainda, como princípio gerador dessas práticas. Ouvindo os relatos
dos entrevistados, podemos perceber certas disposições introjetadas, que além de estruturadas
pelo campo da produção cultural, também o estruturam.
Para compreender o campo, iniciaremos pelos depoimentos dos primeiros
produtores que atuavam no Ceará, pertencentes ao Grupo 1, que com seus habitus, trazem
diversas regularidades discursivas e trajetórias em comum
Segundo os entrevistados, nesse período vivia-se em um o campo cultural
dominado por questionamentos políticos e ideológicos, onde a Arte representava a
demarcação de um posicionamento. Mas também era uma época de paixões, inquietações e
contestações. Esse contexto político e social é bastante presente na fala dos produtores, e
incide, fortemente sobre suas práticas, disposições e concepções.
Havia uma forte influência da Contracultura que vinha na época de 60 e adentra-se
um pouco na década de 70, onde a ditadura militar era mais pesada. Essa Contracultura, essa cultura subterrânea, essa cultura marcadamente é influenciada
por uma cultura internacional, na contracultura norte americana que ela vai de
encontro com a cultura popular... Era um período intenso, inquieto... (C., Grupo 1).
109
Segundo esse entrevistado, a Arte era um instrumento de afirmação de valores e
contestação. Havia uma maior liberdade na manifestação, que também repercutia na forma de
produzir. As relações no campo da cultura se davam em um ambiente de maior proximidade e
interação. O que era sonhado precisava ser expressado e essa expressão só era possível se
houvesse um esforço coletivo e comunitário para sua concretização. Por isso, contavam uns
com os outros, com seus familiares e amigos.
[...]a gente tinha muita entrega porque era muito difícil não tinha nenhum mercado,
a gente tinha que conquistar as pessoas. Então você contava muito com as pessoas
mais próximas, as pessoas da família, as pessoas amigas. Não havia um público,
então era um trabalho mesmo de formiguinha, de ir lá e de fazer tudo... Era um
mutirão danado feito muito na base das amizades de muito amor e um estoicismo
danado. Ou você abraça a sua causa ou ela vai ficar sem abraço (A., Grupo 1).
Assim se consolidava um poder que, segundo Bourdieu (2008), não deriva
somente da riqueza material ou cultural, mas da capacidade de transformá-la em capital social
e simbólico. Capital simbólico entendido como “uma dádiva atribuída àqueles que possuem
legitimidade para impor categorias do pensamento e, portanto, uma visão de mundo”.
(BOURDIEU, 2008, p.12). Valorizava-se nessa economia simbólica pensar o social, ser um
pouco ousado, um pouco subversor.
Essa maneira de vivenciar a Arte fez com que alguns artistas se destacassem no
campo, distinguindo-se não só como portadores de um capital simbólico, mas por suas
qualidades de liderar o grupo, propor soluções criativas que viabilizassem a realização das
ideias e organização dos processos. Essas pessoas, geralmente artistas, se destacam por seu
capital, assumindo então uma posição diferenciada no campo, mesmo que intuitivamente e
sem planejamento prévio.
Eu era obrigado a inventar produção, se não nada acontecia, ou ficava ali a mercê
de um convite, sazonal. Eu sentia essa necessidade de me expressar assim, de
colocar para fora, de divulgar para os terceiros. Era eu sempre quem tomava a
iniciativa... (L., Grupo 1).
Esses agentes desempenhavam várias atividades ao mesmo tempo. Criavam
oportunidades para arrecadar recursos, organizavam os grupos, divulgavam as ações nas
comunidades locais. Observa-se ainda que como o campo ainda estava em formação, as
posições ocupadas era menos hierarquizadas e disputadas, o que permitia que os artistas
ocupassem papeis, hoje já considerados de menor prestígio no campo e portanto evitadas,
110
como assumir a função de produzir as condições operacionais de viabilizar sua inserção
artística no campo cultural.
Alguns já traziam consigo essa prática desde jovens, em suas cidades do interior.
De um habitus passava a se conformar uma prática que ganhava novos contornos nas
produções que continuaram a acontecer já na capital, ainda que em espetáculos produzidos de
forma artesanal, apresentados nas escolas ou faculdades. Configurava-se nesse período a
formação de um agente no campo com disposições de um produtor/artista.
Eu fazia bingos e rifas. Dirigia teatro junto com os grupos de jovens. Ia na rádio
divulgar e chamava os amigos para participar. Então sempre teve isso... A
necessidade de complementar o que o artista fazia. (L., Grupo 1).
Nós mesmos, artistas, era que saíamos em uma Kombi, pregando cartazes, uma
Kombi que era da produção. Saíamos com um monte de artistas pregando cartaz
nas ruas. (S., Grupo 1).
Nós produzimos o espetáculo, produzimos a venda desse espetáculo, e a divulgação
desse espetáculo, produzimos as entrevistas desse espetáculo... Eu comecei a produzir esses espetáculos, e depois eu produzi todos os outros subsequentes.
Comecei a fazer, definimos os espetáculos, as concepções artísticas, a partir das
concepções artísticas a gente procurava o lugar, acertava o lugar, fazíamos
cartazes, levava na imprensa, cobrávamos para ver se conseguíamos apoio ou não...
(F., Grupo 1).
Observamos aqui uma característica interessante da produção cultural em sua
formação como campo. Como foi forjada em um status coletivo na forma de práticas grupais,
não se evidenciava a atividade da produção cultural com um fim em si, mas apenas como um
meio. Esse aspecto pode ser observado na Literatura existente sobre o campo artístico cultural
no Ceará, que faz raras e difusas menções ao agente que organizaram as iniciativas culturais
nessa época, onde os protagonistas da História são, majoritariamente, os artistas. No dizer de
um dos entrevistados, fazia-se produção por meio de uma “polifonia de vozes e de artes”.
O livro Massafeira 30 Anos é um exemplo disso. Falamos da primeira edição de
um evento multicultural, realizado em 1979, que reuniu em quatro dias de celebração,
centenas de artistas de distintas linguagens em um acontecimento cultural de grandes
proporções para a cultura cearense. O evento, sob a liderança do cantor e compositor Ednardo,
teve o mérito de ser pensado e realizado coletivamente. Caso esse projeto fosse proposto hoje,
é impensável que não utilizasse recursos de financiamento público e não contasse com o
suporte de produtores culturais. No entanto, ao longo das páginas do livro destinadas a
construção do projeto, não se destina muita atenção a esse “detalhe”.
111
Segundo depoimento de Augusto Pontes, mentor intelectual do grupo, foi o
próprio caldo cultural da época que fez com que a Massafeira “nascesse espontaneamente”
com tudo acontecendo “muito junto”. Segundo ele, “as pessoas gostavam de estar juntas,
podiam estar juntas, havia tempo para isso...” (2010, p.60). Augusto explicita mais ainda seu
pensamento, ao afirmar que “A Massafeira foi um movimento que explodiu. Ninguém é autor
dele. Todos participaram.” (2010, p.123).
Mas é Brandão, compositor cearense, que ao fazer as analogias do que foi o
Massafeira com as regras do campo cultural hoje, traz questões desconcertantes:
O que teria sido a Massafeira? Um show? Um show pago ou gratuito? Se com entrada paga, por quais critérios teria sido feita a distribuição da arrecadação dos
artistas?
Se gratuito, foi financiado por quem e com que interesse? Teria sido um evento
patrocinado pelo governo estadual ou municipal para a promoção da cultura ou do
turismo? Teria sido alguma tentativa oficial ou de um grupo empresarial artístico de
lançar as sementes de algum festival anual?
Teria sido organizado por ONGs que, engajadas em alguma política pública,
destinava-se a trabalhar com a cultura entre os jovens mesclando experiências e
talentos de diferentes épocas e regiões?” (2010, p.69).
Nenhuma dessas regras vigentes hoje no campo da cultura conseguiria traduzir e
reproduzir o que aconteceu no Massafeira. Era uma época em que se pensava e agia sob
outros regimes de valor, em que o campo prestigiava a criatividade artística e a acolhia com
práticas mais amadoras e discursos coletivos. Mais importante do que os benefícios
financeiros e comerciais, almejavam-se os lucros simbólicos. No entanto, ainda assim, se
fazia necessário buscar formas de viabilizar as iniciativas, criando novas maneiras de obter as
benesses das velhas instituições - Igreja, Empresários e Estado, no papel dos tradicionais
mecenas - conforme visto no primeiro capítulo dessa dissertação.
Sem formação específica para atuar no campo, com um mercado cultural e
políticas públicas incipientes, as estratégias de captação e conquista de apoiadores eram
criadas, observando-se adaptações que eram processadas nas pequenas comunidades e/ou
círculos sociais e readaptadas à capital. O campo da produção cultural se forjava intuitiva e
criativamente.
Eu inventava... Eu inventava porque eu via também que a gente fazia isso, de uma
forma lúdica, na festa da igreja, nas quermesses, nas festas da padroeira, no leilão
de Santa Luzia... Eu era observador e via. Bebia daquilo que as pessoas faziam
como experiência, e me alimentava daquilo. Eu imitava! Por exemplo, eu sabia que
na igreja, os senhores sentavam na primeira fila. Na festa [tinham melhor lugar]
aqueles que davam as maiores prendas... E o cara ficava lá todo enxerido, aquele
prefeitão, aquele político... O cara se alegrava também do padre dizer: Olha essa é
112
uma oferta de fulano! Quer dizer, eu acho que essa coisa toda, eu fui transformando
do meu jeito. Por exemplo, tinha bodegueiro no meu interior, uns comerciantes que
eram conhecidos como “os sovinas” que não davam nada a ninguém. Eu chegava
lá, conversava com a mulher dele, ficava aquela coisa e tal. Eu dizia: “olhe é a
senhora que dorme com ele, dá uma conversada com ele, isso vai ser bom para a
comunidade, para nós e não sei o quê”. E acabava vindo, umas besteirinhas de
nada, mas vinha. Eu agradecia e aquilo formava uma coisa que até possibilitou
abrir portas para outros... (L., Grupo 1).
Na capital também se percebia a necessidade do estabelecimento dos contatos
pessoais, das persuasões, do investimento na elaboração de discursos e argumentos para o
convencimento dos apoios. Algumas instituições assumiram, nesse período, um papel central
no acolhimento das iniciativas culturais, apoiando com pequenos volumes de recursos,
destacando-se nesse segmento o papel da Universidade. O campo abrigava posições
ideológicas bem definidas e os movimentos sociais e estudantis também investiam nos
projetos dos artistas identificados com a ideologia de esquerda.
No entanto, era necessário contar com o apoio do Estado, seja por meio das
gestões estaduais e municipais, o que nem sempre se configurava como uma situação
confortável como já se percebeu ser bastante comum nas relações entre mecenas e artistas.
Nós estamos falando do final dos anos 70, e começo dos anos 80. Então ainda tinha
um pouco desse resquício da ditadura, desse tipo de política que era muito “toma lá da cá”, de troca interesses. Às vezes até a gente tinha o receio de contar com apoio
institucional do estado ou do município, porque não pegava bem. Era um negócio
meio assim ligado a uma politica que não era o que a gente apostava. A gente era à
margem disso. Então, a partir do momento em que começou abertura e o momento
político brasileiro foi mudando, essa questão e também o diálogo com as
instituições ditas oficiais. (A., Grupo 1).
Mesmo ocupando posições divergentes e bem demarcadas, ambos precisavam um
do outro. Nessa prática da “cultura de balcão”, trocava-se capital econômico e político por
capital simbólico. Com os recursos ofertados esperava-se reconhecimento e gratidão, alguma
dose de contenção e às vezes até simpatia. A relação se pautava em um interesse mútuo, que
era administrado da forma mais conveniente por todos os envolvidos, onde algumas vezes a
menção do apoio do poder público poderia até ser omitida.
O Governo, por sua vez, oferecia recursos módicos para o artista, em um valor
que não assegurava a realização total da iniciativa artística, mas já configurava uma
demonstração de “boa vontade”. Muitas vezes, os artistas/produtores eram chamados atenção
por sua reincidência nos pedidos. Forjava-se aí uma percepção que continua a existir como
uma tensão presente nessa relação, onde o produtor continua a ser visto, muitas vezes, como
um demandante insaciável e, por vezes, inconveniente.
113
Importante destacar que a relação entre produtores/artistas e Estado variava de
acordo com o momento político, mas também com o grau de sensibilidade e simpatia do
gestor de plantão ao tema e ao artista solicitante. A relação se dava de forma bastante
individualizada e em padrões que se aproximavam do apadrinhamento pessoal. Os jovens
produtores/artistas não encontravam, em um mercado precário, condições de subsistir com o
fruto de seu trabalho artístico e, muitas vezes, o apoio a um projeto se davam em forma de
contratação do artista em órgãos públicos, com respectiva liberação para realizar as suas
produções e criações artísticas.
No entanto, segundo os depoimentos, esse modelo passa a não atender mais a
demanda dos projetos, sempre crescente, e a própria necessidade de subsistência dos agentes
culturais, que vão amadurecendo, constituindo família e ampliando suas expectativas. Pouco a
pouco as criações artísticas passam a se individualizar, assim como aumenta o desejo de
conquistar algum retorno financeiro e maior espaço simbólico no mercado. Apesar de ainda
não existir efetivamente um mercado cultural, que assegure uma subsistência mínima ao
artista, ao menos se faz necessário garantir a realização de seus projetos.
A atividade da produção cultural passa a ocupar um espaço mais necessário,
porém, ainda desempenhado por artistas que ocupam uma posição privilegiada no campo,
graças a seu capital cultural e suas aptidões técnicas, aqui denominados de produtores/artistas.
Estes assumiam uma posição que os distinguiam no campo, conferindo-lhes vantagem em
relação aos outros que dependiam do suporte de terceiros.
Eu me acostumei a essa dinâmica de produzir meus próprios trabalhos, de estar à
frente da direção, de ter controle sobre todas as etapas, que uma produção requer.
Eu não sou alienado em relação ao que eu estou fazendo, então, eu gosto disso, de
estar acompanhando todas as etapas, de perceber, de aprenderas nuances que
qualquer tipo de produção requer. É um processo muito rico. (F., Grupo 1).
No entanto, com as mudanças e as especializações na área, surgem também novos
questionamentos e a necessidade de conceituações, disposições, investimentos e também
algum profissionalismo. A atividade que era feita de forma “distraída”, começa a solicitar
definições.
Aqui é preciso fazer uma reflexão mais apurada para compreender os sentidos que
essa produção assumia nesses agentes, como era percebida e como estes se relacionavam com
essa atividade. Para isso, utilizaremos três depoimentos, que traduzem as questões mais
relevantes dessa relação.
114
Eu fui ser produtor cultural pela necessidade do artista. (A., Grupo 1).
Eu me defino antes de tudo como um artista, mas também como produtor cultural.
(O., Grupo 1).
Eu não quero [que diga] que eu sou produtor, eu não divulgo essa parte, ela é como
é que se diz... Ela é velada... Ela é uma consequência, porque eu quero e prefiro, eu
me sinto mais como artista, como criador. (L., Grupo 1).
Os depoimentos reafirmam o papel secundário que era conferido ao produtor e
uma hesitação em assumir esse lugar como atividade principal. Surpreende, porém, perceber
que essa atividade ainda continua a ser percebida como um “mal necessário”, um dever de
ofício, representando um ônus para aqueles que a exercem nessa condição. Entre os
depoimentos, identificamos um entrevistado que, mais de três décadas depois do início de
suas atividades de produção cultural, continua tendo com ela uma relação de velado
constrangimento.
Um dos fatores que contribui para essa postura é a valorização dos benefícios
simbólicos das iniciativas culturais e de suas manifestações estéticas e sociais, em detrimento
aos seus aspectos administrativos, financeiros e técnicos. Em sua maneira de ser feita e de
acordo com os valores da época, valorizava-se seu aspecto de guerrilha. Fazer produção
cultural era uma forma de afirmação e resistência, e esse altruísmo era também uma
oportunidade de conquistar uma posição privilegiada no campo.
Alguns produtores/artistas se posicionam distintivamente no campo, afirmando
sua disposição de fazer interferências, propor e concretizar criações autorais e, cientes de seu
capital cultural, posicionam a produção não como um trabalho laboral em si, mas como uma
possibilidade de demarcar espaços e conquistar capital simbólico e uma relativa autonomia. O
depoimento de dois artista/produtores deixa essa postura transparecer:
A questão da produção para mim é uma questão de posicionamento político da minha percepção de mundo. Ou seja, eu vou te dar um exemplo eu digo: „Ah, eu vou
criar um projeto X‟. Aquilo não é por nenhuma necessidade minha de produção.
Não é nenhuma necessidade minha financeira. Não é nenhuma necessidade minha
profissional, mas é para por em prática o movimento, uma percepção que eu tive
sobre a vida sobre o mundo. (C., Grupo 1).
Eu não tenho vergonha, na realidade de ser produtor. Eu considero assim uma
faceta de muitos méritos de enfrentamento. Tudo começa, na realidade, em um
processo de difusão, de concretização. Tudo começa com produção. Depois da
criação, propriamente dita, você tem que ter uma produção, porque produção
também é criação. (F., Grupo 1).
115
Este produtor assume novas competências no campo e passa, ele também, a fazer
parte das instâncias de consagração, na acepção de Bourdieu, na medida em que se apropria
do lugar de ser mais um a proclamar o prestígio de artistas e produtos culturais, a ressaltar
experiências estéticas ou, como diz o sociólogo francês, “a atuar como um banqueiro
simbólico que oferece como garantia todo o capital simbólico que acumulou.” (2008, p.22).
Revestem-se do papel de serem “descobridores” de talentos, de “apresentadores” de
conteúdos e “propositores” de valores estéticos e sociais à sociedade. Com isso, e como parte
desse ciclo que integram, passam a adquirir uma autoridade, um crédito junto à sociedade.
Estabelecem-se reputações e conquistam-se espaços diferenciados.
O campo passa a abrigar novas possibilidades de atuação e uma ampliação da rede
de relações. Na década de 70 e 80 uma geração de artistas51
cearenses, por exemplo, deixa a
capital em busca de inserção no mercado nacional, com consequentemente aumento de
repertório cultural e intercâmbio com a região sudeste do País. Dotados de um maior capital
cultural, alguns agentes com mais predisposição para a produção cultural anseiam por
distinção no campo, demonstrando maior ousadia e buscando propor projetos mais “atraentes”
para outros setores da cidade, com o objetivo de extrapolar o mercado restrito da cultura, com
padrões técnicos que se espelhavam nas produções nacionais.
Quando a gente retornou do Rio [de Janeiro] veio a vontade de produzir alguns
espetáculos nossos aqui no Ceará. Desde aí a gente começou a procurar o Sistema
Verdes Mares52... Nós ousamos preparar um evento no litoral do Ceará, e isso não existia nessa época nenhum incentivo estadual, municipal como hoje existe. Para se
fazer um evento, nessa época eram somente os grupos da universidade ou então os
grupos da iniciativa privada... Fortaleza era bem menor e as ações dos produtores
culturais eram setorizadas. Fomos atrás de apoio local, logístico, que eram hotéis
que hospedavam artistas e o apoio logístico local. Foi uma cadeia de apoio de
produtores iniciantes e isso nos fez ficar bem entusiasmados... (S., Grupo 1).
Nos anos 80 já se observa uma mudança na forma de produzir cultura, com a
necessidade da conquista de espaços na mídia e uma inserção na indústria cultural. No âmbito
da política, o País vive o período de democratização e mudanças ocorrem também no Estado,
com a eleição em 1985 de Maria Luiza Fontenele, do Partido dos Trabalhadores para a
prefeitura de Fortaleza. Nesse período, observa-se a criação de novos espaços de fruição e
criação artística na cidade, na forma de eventos promovidos pela Prefeitura Municipal de
51 Fagner, Ednardo, Belchior, Rodger Rogério, Teti, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Stélio Vale, Mona Gadelha e
diversos artistas saíam de Fortaleza para se estabelecer nas grandes capitais em busca de viver profissionalmente
da Arte. 52Grupo de Comunicação local com um complexo de TV, Rádio e Jornal. É transmissor da afiliada da Rede
Globo no Estado.
116
Fortaleza, que passa a demandar a contratação de produtores locais para organizar as
iniciativas. Estimulados, uma nova geração de produtores passa a aproveitar as oportunidades
e criar outras possibilidades de atuação no campo cultural.
Observa-se nesse período um número maior de shows, festivais de música,
encenações teatrais, produções cinematográficas, dentre outros. E o surgimento de projetos
que não são criação exclusiva de artistas, mas sim pensados por produtores ou pela gestão
pública para a cidade nas diversas linguagens e expressões artísticas. Surge uma geração que,
mesmo não sendo de artistas, integra-se ao campo já na condição de produtor cultural, ainda
que este conceito esteja em formação.
É nesse contexto que os entrevistados do Grupo 2, passam a participar mais
ativamente desse processo e dão seu depoimento:
Nessa época, a Maria Luiza assumiu a Prefeitura de Fortaleza, e tinha alguns
projetos bem bacanas... A gente pegou muita experiência nessa época. Eram
eventos maiores que tinham uma periodicidade e isso obrigava a gente a se
organizar. A gente sentia muito o quanto não tínhamos mão de obra preparada, a
gente se dedicava muito... Aprendemos fazendo mesmo, e a gente tinha que “botar
moral” porque era uma coisa meio sem moral. Você está desocupado e pode
produzir. Então a gente começou a sistematizar as coisas e a organizar cadastros
do pessoal. A gente não tinha também uma metodologia ainda clara, tinha pouca
gente. Quando o evento era maior, sofríamos para dar fluidez ao processo... Era
muito difícil juntar tudo isso e fazer a ligação com a infraestrutura da cidade ligada à prefeitura e a necessidade do evento, segurança aquela coisa toda. A gente sentia
que era bem difícil, era uma época no começo assim de organização era um esforço
muito grande. Mas, muito cedo eu entendi que aquilo era minha profissão que eu
era uma produtora cultural. (C., Grupo 2).
Os novos produtores atuavam em um contexto de precariedade no âmbito
profissional, de mercado e de política públicas. Ou seja, contavam basicamente com sua
disposição. Ainda não era possível pensar a produção cultural como atividade remunerativa
principal e estes produtores precisavam buscar alternativas para viabilizar projetos e garantir
uma remuneração básica. Nessa etapa, os entrevistados relatam a necessidade de desempenhar
diversas outras atividades profissionais no setor de comunicação, publicidade, entretenimento,
educação e outras áreas. Todos esses conhecimentos seriam assimilados e adaptados
posteriormente na atividade da produção cultural.
Realizavam atividades freelancers e pontuais, atuando aonde houvesse trabalho.
Recebiam o pagamento disponível, num misto de desbravamento, aventura e coragem. Eram
poucos profissionais autônomos, que criavam as oportunidades em um campo a ser construído
e, como tal, encaravam-se enormes desafios, inclusive monetários. O que se ganhava em um
projeto, poderia ser totalmente perdido no seguinte.
117
Já se observa nesse contexto a formação de pequenos subcampos com
características distintas e complementares: os produtores/artistas que continuavam a viabilizar
seus projetos, os produtores que criavam suas próprias iniciativas e administravam seus
empreendimentos culturais e aqueles que atuavam aonde se apresentasse a oportunidade. No
entanto, ainda era uma atividade árdua, precária e bastante dependente de recursos públicos,
conforme o depoimento de alguns produtores, ao relatar suas experiências no trato das
questões diárias. Enumeramos alguns tópicos para elucidar a riqueza desse momento na
formação dos códigos que hoje já estão instituídos na atividade:
Captação: Visitava dez [lugares em busca de apoio] e levávamos uns sete nãos, ou oito ou nove para ganhar um sim. ... Depois, começava outra rodada com mais dez.
(L., Grupo 1).
Apoio: Não tinha como você ir a um empresário e ter contrapartidas, mesmo por
vias fiscais e de qualquer outra maneira de marketing. Não tinha nada disso. Era na
base de convencer alguém a apostar na sua ideia. Era uma coisa muito romântica,
mas que era um início de um trabalho. Era uma época que também não comportava
uma coisa mais arrojada, eram produções sempre muito simples, a gente sonhava,
mas também não dava para delirar muito. (A., Grupo 1).
Retorno financeiro: Você não tinha um retorno imediato de produção, como hoje a
gente pode quantificar. Hoje você pode até dizer, vou gastar tanto e vou lucrar tanto como produtor. Esse é o meu valor e eu vou ganhar tanto. Nessa época, não tinha
isso não, era fazer e arriscar. Às vezes não ganhar e às vezes perder... (F., Grupo 1).
Visibilidade dos apoiadores e contrapartidas: Eu não misturava [correntes
ideológicas diferentes], como eu também não botava gabinete do deputado da
esquerda, também não botava. Eu botava instituição. Era uma cartilha que eu
mesmo inventava, da minha postura, do meu centro de cidadão, do meu interior. Eu
inventava uma postura ética, para mim mesmo, perante aquele que estava me
apoiando. (L., Grupo 1).
Rede de apoiadores: Eram todos pequenos apoios, em uma rede da qual eu fazia parte, de um determinado movimento, do qual eu estava inserido, e aquela era
minha produção. Era uma produção que envolvia pequenos recursos, nós também,
colocávamos os nossos recursos, eu me lembro que no meu primeiro projeto, eu
trabalhei três anos, de professor e depositava em uma poupança. Gastava pouco, eu
tinha uma poupança direcionada para aquele projeto. (F., Grupo 1).
Forma de apresentação: Nós não usávamos essa termologia de projeto, eu nem
sabia nada, não tinha esse negócio de projeto nem nada. Eu me lembro muito bem
[da primeira vez que um gestor me pediu um projeto]. Nós só fazíamos projetos na
escola. (F., Grupo 1).
Atuação: Eu comecei realizando, só que para mim. Eu não tinha muita noção, a gente ia fazendo... Eu nem tinha noção de como se configuravam o meio... Nós não
tínhamos ainda a visão estratégica, das ações, nós sabíamos das necessidades que
tinham, mas sabíamos que tínhamos que correr atrás. Não existia nem a palavra
checklist. (G., Grupo 2).
118
Esse cenário se estendeu com poucas modificações e muitas regularidades,
durante as duas décadas de 70 e 80, sofrendo alterações importantes depois de 1987, quando
Tasso Jereissati foi eleito Governador do Estado em uma gestão identificada com a promessa
de uma mudança, de ingresso do Estado na moderna administração. Contribuíram
significativamente para a transformação desse quadro a criação da Lei Sarney (1986), a
criação da Lei Rouanet (1991) e posteriormente a criação, no âmbito do estado, da Lei
Jereissati (1995).
O que se sucedeu nesse período foi uma significativa transformação no campo da
cultura no Ceará. Além das leis de incentivo, que vislumbravam a possibilidade de novas
formas de financiamento, assistiu-se a uma inserção da Cultura na agenda do Estado em
patamares mais elevados de prestígio e visibilidade. Além disso, houve um desenvolvimento
no mercado cultural estimulado pelas políticas públicas que direcionaram seus esforços no
investimento da indústria cultural cinematográfica, na criação e reforma de equipamentos e
iniciativas de formação na área, temas que já foram tratados nos capítulos anteriores.
As leis de incentivo, apesar de assumirem um papel fundamental na conformação
do campo, foram sendo absorvidas gradativamente. Mudanças que alteraram as relações dos
atores envolvidos e exigiram novos esforços de adaptação, por parte dos produtores. Estes,
além da necessidade de dispor de mais conhecimentos e habilidades, também tiveram que
fazer investimentos para possibilitar a ampliação do mercado e a adesão das empresas
investidoras. Alguns anos se passaram entre o período de criação das leis federais, até sua
efetiva utilização. O mecanismo confirmando as distintas posições de disputa no campo foi
incorporado primeiro na região Sudeste, para depois ser absorvido e utilizado no Ceará.
Interessa-nos aqui, destacar, como essas mudanças foram percebidas pelos
produtores e o que representaram na conformação do campo. Para isso, selecionamos alguns
depoimentos.
A primeira vez que nós começamos a interagir com esses mecanismos foi com a Lei
Sarney, mas era tão confuso, que nós não conseguimos fazer. Tinha uns mecanismos
que ninguém conseguia mexer direito, nós tentamos até aprender algo sobre ela, mas não deu. Aí começou a Lei Rouanet, em 1991 e nós não tivemos experiência
com a Lei Rouanet por um bom tempo. O primeiro projeto que nos fizemos com
incentivos fiscais foi em 1996 pela Lei Estadual. (V., Grupo 2).
A partir da Lei Rouanet começou a se ter uma discussão mais aprofundada do que é
esse ramo cultural. Eu acho que foi o momento que o produtor cultural começou a
ter alguma importância. Antes era muito focado no artista, e acho que a partir desse
momento, o produtor cultural passa a ter um papel fundamental, porque ele vai ter
que ter assim um rigor maior no preenchimento de formulários, no
acompanhamento em prestações de contas, então o produtor ele vai se fazer muito
presente, muito atuante (M., Grupo 2).
119
O início [das leis de incentivo] trouxe muita esperança, como se isso fosse resolver
alguns gargalhos. A Lei Federal se mostrou muito cruel, porque nessa época era
muito difícil, o acesso era infinitamente mais difícil do que é agora. Enviávamos
vários projetos antes de obter alguma resposta. Não era algum sucesso não, era
uma resposta do ministério. Então o próprio ministério era ausente mesmo, muito
distante. (C., Grupo 2).
Se trabalhar com os mecanismos de financiamento federais à Cultura não parecia
acessível, tampouco os produtores encontraram facilidade imediata para lidar com a Lei
Estadual. A dificuldade aqui não residia na sistemática de funcionamento da Lei, uma vez que
o processo era relativamente simples e a Secretaria da Cultura se mostrava receptiva e
acessível. No entanto, o mecanismo além de introduzir a prática da elaboração de projetos,
demandou um esforço adicional dos agentes do campo que passavam agora a ter o dever de
prestar contas, apresentando relatórios e documentação fiscal das despesas realizadas. Essas
mudanças também contribuíram para a valorização da atividade do produtor cultural que
agora passava a ser visto não mais só como animador e organizador, mas como um
profissional com tarefas mais específicas e necessárias.
Outra atribuição que passava a competir ao produtor era a obtenção dos
patrocínios, agora já sob os preceitos do marketing cultural, com novas exigências e
demandas. Antes disso, era preciso criar as condições de interesse por parte desses
investidores, que ainda atuavam com base nas relações pessoais e não haviam ingressado na
“era” do marketing cultural.
As empresas não conheciam a lei, as empresas achavam que era uma devassa fiscal.
Algumas empresas de fora, que tinham filiais aqui, passaram a investir na cultura
do Ceará. Nenhum governo teve a expertise de preparar os empresários para
compreender essa lei... Os artistas e os produtores começaram a entender que
precisavam se organizar para que os empresários começassem a conhecer isso... Foi um interesse nosso. Eu fui voluntário aqui na FIEC53 para que houvesse essa
compreensão... Se os empresários não sabiam, muito menos os prefeitos, e os
secretários de cultura do interior. (S., Grupo 1).
Depois de superada as dificuldades iniciais de adaptação às leis e de
esclarecimento do mecanismo aos empresários, observou-se um período de otimismo no
campo, com o surgimento de diversas iniciativas culturais de porte mais profissional no
Estado, relevância artística e qualidade técnica. Havia um ambiente de crença e euforia com a
criação de variados projetos no Estado por parte desses produtores. De festivais e eventos, de
53 Federação das Indústrias do Estado do Ceará.
120
porte local e nacional, e uma diversidade de filmes, CDs, livros que passavam a ser
viabilizados sob os auspícios das leis de incentivo.
Teve foi um momento que teve essa abertura e se começou a criar muitas coisas
interessantes. Muita gente pode gravar CD, que antes era muito restrito a quem era
amigo dos políticos. Agora é para quem é amigo dos políticos e dos empresários,
pelo menos é mais um novo componente aí. Eu acho que teve um momento em que
as pessoas estavam animadas. Sabe, teve uma liberdade grande, não teve muita
interferência política na época. Sempre tem, não é? Porque, o Estado ele tem que
realizar os projetos dele, mas tinha certa liberdade... (M., Grupo 2).
O desenvolvimento dessas políticas públicas estimulou também a abertura das
primeiras empresas especializadas em produção cultural no Ceará. Estas foram criadas com a
crença de que haveria mercado para desenvolver seus próprios projetos ou para atender alguns
clientes, oriundos do poder público, associações não governamentais, instituições públicas e
privadas. Formava-se um mercado, que pouco a pouco, passava a absorver novos agentes e
estimular a formação de vocações produtivas na área cultural. Surgem, então, os
produtores/empreendedores.
As empresas de produção cultural passavam a se diferenciar no campo por
atuarem em segmentos diferenciados. Umas se especializaram em determinadas linguagens
artísticas e projetos culturais; outras optaram por priorizar a elaboração de projetos e
prestação de contas para leis de incentivos e editais; outras elegem a organização de eventos
culturais para terceiros; e algumas ainda desempenhavam todas essas atividades.
Permaneciam no campo também os produtores/artistas que resistiam buscando alternativas
para viabilizar suas próprias criações.
No entanto, aquilo que se acreditou ser uma panaceia para a ausência de recursos
e consolidação de um mercado, as leis de incentivo passaram a apresentar suas próprias
contradições e mostrar a continuidade e permanência de antigas mazelas. Concentração,
dependência do Estado, relações de subserviência e fragilidade do sistema de financiamento,
são alguns desses exemplos, segundo os próprios produtores.
Lutou-se muito para se criar leis de incentivos, aqui no próprio Estado. Foi uma
luta constante, agora o que se vê tudo é que isso é sempre uma tensão muito grande. Qual é essa tensão? A tensão é a grande luta para que essas leis sejam criadas,
sejam estabelecidas, e tal. E se percebe que as normas, regras e não funcionam
porque são concentracionárias. E mesmo assim o que se vê é que cada vez mais, é
que o acesso é muito difícil, e que nos terminamos construindo também uma coisa
muito, muito perigosa, que foi entregarmos nas mãos de empresas, a decisão, que
termina sendo ideológica e estética, também sobre a Arte que se vai fazer ou como
se vai fazer isso termina gerando um filtro ideológico muito pesado entendeu? No
meu entender, acho que essas leis todas levaram a uma concentração muito grande.
121
Por exemplo, a briga do Sudeste, que é quase oitenta e tantos por cento, mas se
você olhar o próprio Estado mesmo, você vê que é muito concentrado. As empresas
investem muito pouco, você aprova muito pouco, e mais das metades dos projetos
caducam, sem captar nada. É preciso de uma relação de corpo a corpo, que termina
sendo quase uma relação politica também no sentido do mendigo mesmo, de pedir
esmola! (C., Grupo 1).
Mesmo que esses projetos sejam aprovados, depois de aprovados o que fazer com
eles? Então é muito frágil tudo isso. A maioria dos projetos se ancoram em duas ou
três empresas no máximo. Algumas empresas [financiadoras] são do próprio
Governo e aí é que fica mais difícil isso mesmo, e a gente não sabe qual a escolha e a determinação dessa verba, não se sabe na realidade quais os critérios. Não se
sabe mesmo. Então é usado pelo próprio governo para resolver as suas questões.
(C., Grupo 2).
[A lei funcionou] para quem podia, para quem tinha as conexões, para quem era
mais esperto. Como eu tinha o nome já firmado na comunidade, então é claro que
você é ouvido, a pessoa para e escuta o que é que você tem a dizer. Diferente de
uma pessoa que está se lançando. Quer dizer, complicou para esse povo, se eu
começasse no período das Leis de Incentivo, adeus. Por quê? Porque particulariza
muito, tira aquele espírito... Se livra, é como se eles dissessem “Não, isso aqui não
é comigo. É com a Lei de Incentivo”. A pessoa tira o corpo. Um empresário deixa aquela responsabilidade. No começo ainda era um pouco disfarçado, mas hoje é
assim: não tenho nada a ver com cultura, é a Lei de Incentivo. Então, aquele
mecenas apaixonado, só se for dos 45 anos para cima, que ainda se lembram da
gente, porque esses novinhos aí perguntam „Ah! O que é isso?‟” (L., Grupo 1).
Eu não tinha um alcance, não tinha essa, eu não almejava, ou não conseguia
porque talvez eu não tentava. Ou talvez tivesse uma percepção que [meu projeto]
não chegava, ao mundo empresarial, voltado para uma produção mais midiática.
Não tinha essa consciência, mas, na época, talvez eu tivesse um pressentimento que
eu não tinha aquele acesso, então eu nunca busquei esses apoios mais comerciais,
dentro desse lado do empresariado. (F., Grupo 1).
Vivia-se um paradoxo e já se evidenciavam as diferentes posições no campo.
Sentia-se a importância da Cultura, o tema estava mais presente na agenda pública e na mídia
nacional. A cadeia produtiva54
do setor se ampliava e os agentes investiam na formação de um
mercado, mas o modelo nem bem havia começado e já mostrava suas debilidades. Era o final
do governo Fernando Henrique Cardoso e outra transição iria acontecer com a posse do novo
ministro Gilberto Gil. Um dos entrevistados faz uma analogia interessante para a
compreensão simbólica da transformação que iria se processar:
[Gil] era um grande pensador da Cultura e a gente ficava muito feliz vendo tudo
aquilo acontecendo. [Porque antes] é como se você tivesse fazendo a festa na sua
casa, e tinha um bolo muito gostoso lá na sala, só você não podia provar do bolo, porque você só via as pessoas falando do gosto do bolo, mas você não podia entrar,
porque a festa não é sua, é do seu vizinho. Então, [na nova gestão] a gente começa
a fazer uma festa, a gente pode convidar o nosso vizinho e a gente pode participar
também disso. Você começa a entender que... Pode existir uma democratização
54 Conjunto de serviços e produtos que tem seu incremento relacionado com o desenvolvimento do mercado
cultural como serviços de iluminação, sonorização, estruturas, comunicação, gráficas, apresentadores, roadies,
técnicos, etc.
122
maior sobre a Cultura. E ele não partiu do princípio das capitais, colocando isso
aos secretários. Os Pontos de Cultura foram um grande passo, a consideração dos
Mestres da Cultura, também foi outro grande passo... (S., Grupo 1).
Percebe-se a repercussão no campo, na possibilidade de alteração na correlação de
forças nas disputas no campo da cultura. Além do tradicional espaço dos agentes que
dispunham de capital cultural e econômico, localizados no sudeste do País e nas capitais
brasileiras, novos agentes são convidados a ingressar no campo e participar da festa. Os
valores da nova gestão, que se pretende mais democrática, também repercute no Ceará e
passam a se sobrepujar aos preceitos do marketing cultural anteriormente mais prestigiados.
Muita coisa mudou, porque já não é mais só a experiência, entra também um
aspecto interessantíssimo, que é o diálogo. A possibilidade de você conhecer
pessoas que estão se dedicando exclusivamente a essas temáticas [da Cultura],
pessoas que estudam profundamente essa questão de mercado, de diálogo com
empresas, que exploram toda uma questão de captação de recursos e tal. E também
hoje, quer dizer, de um tempo para cá, você também tem os workshops, e oficinas.
Fernando Henrique, ele não influenciava, e sim ele reduzia o poder de impacto daquilo que a gente queria fazer, porque era um período de política neoliberal e a
visão do Estado ela não priorizava essas coisas que eu gosto muito de trabalhar que
é a cultura tradicional. (A., Grupo 1).
O Gil trabalhou muito essa questão, simbólica, da autoestima, que o Lula trazia
também. O Lula trazia essa coisa do povo brasileiro, da possibilidade de se
acreditar no povo brasileiro. O Gil foi muito sensível a isso, captou essa mensagem
do governo Lula, ampliou isso, e criou programas, de uma amplitude maior, como o
Mais Cultura55, eu acho que o programa Mais Cultura, foi um grande programa,
através dos pontos de cultura. O Gil não construiu absolutamente nada, nenhuma
parede, mais ele foi o cara que mais construiu essa dinâmica, porque ele potencializou o que existia. (F., Grupo 1).
Como já falamos, para atender aos novos preceitos, surgem os editais públicos,
como contraponto as leis de incentivo e com a justificativa de serem instrumentos mais
democráticos e universais. Os editais, juntamente com outros programas, como o Cultura
Viva, priorizam a inserção dos chamados grupos tradicionais, as culturas populares e o
protagonismo cultural. Segue-se um período onde novos discursos são aprendidos e práticas
são readequadas para se ajustar às políticas vigentes. São vários os reflexos dessas políticas
nas conformações do campo. Um deles é a institucionalização de inúmeras atividades
culturais, ligadas aos movimentos sociais e populares, que eram desenvolvidas de maneira
55 Programa do Ministério da Cultura que tem entre suas diretrizes garantir o acesso aos bens culturais, promover
a diversidade cultural, qualificar o ambiente social das cidades e gerar oportunidades de emprego e renda.
123
informal e que agora passavam a se legalizar para receber recursos por meios dos
instrumentos públicos de fomento à Cultura.
Nesse processo, novos agentes passam a ingressar no campo, desempenhando
atividades de organização dessas instituições e de produção cultural. Pessoas que, além de se
organizar institucionalmente, passam a sentir a necessidade de dominar os códigos para
preenchimento de formulários e editais. Também se inserem no campo por meio da
participação nos processos de construção das políticas culturais, aproximando-se do
Ministério e demais instituições locais e dos movimentos que se organizavam em torno da
cultura e dos novos processos da gestão cultural.
Alguns relatos retratam a riqueza desse momento, que deixou várias repercussões,
como descrito a seguir:
[Senti necessidade de me aproximar do MinC e fui morar no Distrito Federal] Em
Brasília eu colocava o meu terno e a minha gravata e ia participar da agenda, que
eu pesquisava antes, do Ministério da Cultura, ou de qualquer ação que estivesse
ligada para que eu pudesse participara como diretor da minha instituição cultural.
Queria marcar a minha presença, compreender os mecanismos, depois disso, eu iria
buscar os meus recursos... Era a minha faculdade. Para a realização de um projeto,
eu precisaria naquele momento conhecer o mecanismo, saber por que aquele
dinheiro estava sendo dado para mim. Preencher uma planilha, aquilo para mim
não me interessava, o que interessava no momento era aprender porque que a gente
estava dentro desse processo, porque que nós somos gestores culturais. Porque na verdade, essas reuniões, esses conselhos, essas coisas todas que são da gestão de
um governo, elas só são gestões, mas quem executa somos nós. (S., Grupo 1).
Eu fui um produtor que procurei entender os contextos dos editais, e me adaptar as
linguagens, que estivessem mais no vácuo ali para ocupar... Então eu mudei, porque
eu acabei estudando um pouco mais, percebendo um pouco mais essas nuances dos editais. Precisei me adequar aos editais, às linguagens dos editais. Quando eu
participo de um edital na realidade eu tenho que estudar. Eu estudo até os termos
ortográficos, que ele vai usar, qual o objetivo que ele quer. Eu vou atingir o mesmo
objetivo que ele quer, a terminologia que ele usa... (L., Grupo 1).
Nesse período, entram diversos agentes no mercado, que, com outras formações,
passam a desempenhar a atividade de produtores culturais. São agentes oriundos dos
movimentos sociais, políticos, grupos tradicionais, grupos artísticos e também jovens que já
ingressaram no campo com formação superior diversificada, vislumbrando a atividade da
produção e da gestão cultural como uma realidade profissional possível.
A trajetória de um dos entrevistados, integrante do Grupo 3, exemplifica bem o
perfil do novo produtor e ilustra as semelhanças de algumas práticas desse grupo com antigos
processos, assim como as mudanças ocorridas. Ator destacava-se no seu coletivo teatral por
sua capacidade de articulação e organização. Preferiria seguir a carreira nas artes cênicas, mas
124
almejava uma profissão que lhe garantisse mais estabilidade profissional. Optou por cursar
administração, uma vez que assim poderia se aproximar dos conceitos de gestão da cultura e
administração do grupo artístico.
Investiu no estudo da área, escreveu sua monografia sobre administração de
projetos culturais e estagiou, durante o período universitário, na gestão da cultura. Beneficiou-
se da carência de quadros para trabalhar nessa área e foi absorvido pelo poder público em
diferentes governos assim que concluiu o curso superior. Após trabalhar em três mandatos da
gestão pública, desejou mais estabilidade e novos desafios e optou por abrir sua própria
produtora. Jovem, vivencia os desafios de ser um empreendedor cultural e administrar sua
empresa em mercado ainda precário, faz uma pós-graduação e já possui uma experiência
diversificada. Sua trajetória ilustra bem o novo perfil profissional do produtor/gestor.
Eu nunca tinha trabalhado diretamente com gestão pública, então eu sofri bastante,
para aprender tudo, pegar todo o feeling da coisa, porque eu sabia muito, mais era
uma coisa muito teórica, muito ligada também aos conhecimentos, ligado a
administração, a gestão de projetos, mas nada de prática, enfim estava acabando de
sair de uma graduação. E [trabalhar na gestão pública] foi uma escola maravilhosa
para mim, foi um período que eu mais me desenvolvi. Eu fazia esse trabalho de
assessoria de projetos, todos os projetos que envolviam captação de recursos. Eu
que elaborava o projeto, formatava o projeto, e encaminhava os projetos para as
instituições, e cuidava do projeto até o recurso entrar dentro da conta da secretaria.
(S., Grupo 3).
Quando eu passei a de fato focar mais na empresa, e me desvencilhar, de fato no
trabalho na gestão pública, foi quando as fichas começaram a cair. O meu bolso
começou a apertar, porque antes era muito prático, eu tinha o dinheiro todo mês
fixo, ali e tal. Tinha uma certa segurança, daí quando eu passei a não ter essa
segurança, quando eu comecei a entender essa sazonalidade, do mercado cultural,
de que o primeiro semestre é morto, porque de fato o primeiro semestre para gestão
publica é muito complicado fazer com que esse dinheiro saia. A entender que até o
carnaval, nem pense em ter renda, porque não vai aparecer, não vai ter um órgão
publico que vai lhe financiar um projeto seu dentro desse período, então tudo isso
começou a cair a ficha, depois que eu comecei a focar de fato mais na minha empresa. (S., Grupo 3).
Outro exemplo dessa nova geração de produtores pode ser percebida na história
de outro entrevistado que, participando dos movimentos políticos e sociais ligados ao Partido
dos Trabalhadores, já dominava os conceitos de cidadania cultural56
, que posteriormente
viriam a ser implantados na gestão presidencial de Lula.
56 Cidadania cultural – Conceito defendido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo na gestão petista
de Luiz Erundina (1998-1992). O termo se refere a concepção que compreende a cultura como um direito do
cidadão e, em particular, como um direito à criação desse direito por todos aqueles que têm sido sistemática e
deliberadamente excluídos do direito à Cultura. Por direito à Cultura se entende: o direito de produzir cultura; o
direito de participar das decisões quanto ao fazer cultural; o direito de usufruir dos bens da cultura; o direito de
estar informado sobre os serviços culturais; o direito à formação cultural e artística pública e gratuita; o direito à
experimentação e à invenção do novo nas Artes e nas Humanidades; o direito a espaços para reflexão, debate e
125
A familiaridade com os ideais e o círculo de amizade pessoal com aqueles que
viriam a ocupar o poder, aliados ao seu capital cultural, colaboraram decididamente para que
esse produtor se posicionasse em uma perspectiva que favorecesse a proposição de iniciativas
bem sucedidas no campo da captação de recursos, no domínio das regras políticas e na criação
de iniciativas que estivessem bem posicionadas perante as políticas públicas. Consegue olhar
para o ambiente e identificar as oportunidades, compreendendo a sua atuação sob um viés
político e social ampliado. Em suas próprias palavras:
Alinhamos nossos projetos com as políticas públicas. Estávamos alinhados com a
necessidade de integração da América Latina... Pensamos também em projetos que
melhorem a nossa condição de trabalho – do produtor. Procuramos perceber as
necessidades do mercado, do Brasil. Um mercado cultural mais potente é melhor
para todos os produtores. (H., Grupo 3).
O peso do social no conjunto das coisas [da cultura] tem a ver com o jeito do PT
conduzir. Não digo que é bom, nem ruim. É importante ter, mas precisa ver até onde
a mão pesa sobre isso. É complicado. E a gente sente muita dificuldade, porque
acaba por reproduzir modelos, palavras, conceitos. Trabalhar dentro de uma repetição mais do que com um espaço de criatividade e estamos trabalhando com
cultura, conhecimento. (H., Grupo 3).
Outros produtores ingressaram no campo da produção cultural na gestão Lula,
oriundo de agremiações culturais, associações ligadas às culturas populares e movimentos
culturais estudantis ou comunitários. Esses, muitas vezes, sentem um pouco mais de
dificuldade de se posicionar no campo e buscam aumentar sua legitimação por meio da
presença nos processos de participação social promovidos pelo Estado, no acompanhamento
das políticas públicas, além de depositar nos editais a viabilidade de seus projetos e em outros
programas públicos, como o Cultura Viva. Alguns desses agentes iniciaram sua atividade em
municípios do interior, com atuação próxima à gestão municipal, as políticas de cultura e os
esforços de implantação do Sistema Estadual de Cultura. Dois depoimentos, de agentes
diferentes, retratam esse grupo.
Nós éramos produtores culturais da cidade, atuando nos grupos de teatros, nos
corais e nas festas culturais cívicas. Nós produzíamos e nós refletíamos aquela
nossa ação, como proposta para uma coisa que o município todo tivesse como
direito, que seria a política pública. Nós criamos algumas definições, alguns
instrumentos para essa política pública de cultura se estabelecer, a secretaria,
programas culturais e etc... (Fe., Grupo 2).
crítica; o direito à informação e à comunicação. (CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2006).
126
Alguns livros que eu consegui [produção cultural, políticas públicas], eu comprei e
fui estudar para entender mesmo o funcionamento. Foi quando eu comecei a
trabalhar com meu grupo, e aí comecei a produzir... A gente ganhou alguns
projetos, mais aí não estava funcionando porque era muito tempo e não tinha
dinheiro. Eu deixei o grupo, e já tinha o projeto de um evento. Já estava nessa
busca de realizá-lo, e aí fui migrando... A gente tem uma veia na tradição porque eu
fiz Pós-Graduação em Folclore. Eu gosto e eu sempre tento buscar trabalhar com
coisa do patrimônio histórico e material, só que não trabalho só com patrimônio
histórico, eventos em geral digamos assim mais, dentro da coisa chamada evento
cultural. (M., Grupo 3).
Outros ainda chegaram ao campo pelo convívio com as artes bebendo na fonte
criada pelos precursores e beneficiados pela maior oferta de festivais, eventos e projetos
culturais que já aconteciam na cidade com certa regularidade, realizados pelo Estado e pelos
produtores/empreendedores. Incidiu sobre esse processo a existência de um mercado, ainda
que incipiente, que demandava novos profissionais, técnicos e a oferta de cursos de curta
duração na área de elaboração de projetos e produção cultural, que sinalizavam a necessidade
de novos profissionais e a oportunidade de investimento no campo. É possível fazer uma
analogia desse grupo com os primeiros produtores/artistas do Grupo 1. Com novas leituras e
interpretações também estão no campo com o desejo de intervir criativamente. Não só realizar
seus projetos, mas interferir artística e conceitualmente no campo.
Acho que eu sou produtora cultural por necessidade de ver as minhas ideias
realizadas. Quando eu comecei a ter ideias, e querer ver elas acontecendo eu cansei
de esperar por outras pessoas que abraçassem essas ideias e fizessem elas entrarem
em ação. Para mim foi uma coisa que eu não fui muito atrás... Eu me vi tomada por
essa necessidade de produzir para ver acontecer essas coisas que eu desejava que
fossem realizadas. Acho que poderia mudar o nome, eu não sou produtora cultural,
eu sou produtora passional, porque eu só produzo aquilo que realmente eu sou
apaixonada, aquilo que eu realmente acredito. (Li., Grupo 3).
Quando eu resolvi ser produtor, eu sabia que para eu ser produtor eu tinha que ter produtos de excelência eu tinha que produzir isso. Para eu produzir isso eu tinha
que estudar eu tinha que aprender. Eu fiz isso. E criei mecanismos para que isso
acontecesse. Então eu comecei a entender que eu não queria ser esse produtor da
execução e de resolver esse problema da existência nem queria ser aquele cara que
ficava lá na execução do dia a dia do projeto e nem queria ocupar esse função local
do produtor do diálogo da existência. Sou meio ambicioso acho que temos que ser
ambicioso às vezes. Eu queria saber, e queria chegar à onda no nível nas pessoas
que criam essas políticas que criam esses conceitos. (V., Grupo 3).
O aumento da oferta de editais e de projetos passíveis de serem apoiados por meio
de fundos de cultura57
gerou também a inserção de uma nova modalidade de participação no
57 Os projetos para serem contemplados com recursos dos Fundos de Cultura (federal e estadual), só podem ser
propostos por instituições sem fins lucrativos. Lei 8.313 de 23 de dezembro de 1991 e Lei 13.811 de 16 de
agosto de 2006.
127
campo da produção cultural: a criação de diversas associações e fundações culturais que
atuam na área da organização da cultura. Administradas, muitas vezes, por produtores que já
possuem uma empresa privada na área da produção cultural, essas instituições são um reflexo
das políticas públicas, que cobram a existência de entidades sem fins lucrativos para serem
beneficiárias de recursos para financiamento de seus projetos. Algumas funcionam quase
como uma extensão das empresas privadas de produção cultural; outras representam coletivos
de produtores ou agentes culturais, o que por si já aponta para a necessidade de novas relações
a serem desvendadas.
Como vimos, a cada tentativa de apresentar o campo da produção cultural, outros
subcampos vão se configurando e, com eles, novas e complexas relações, cada uma com uma
combinação diversificada de possibilidades e desdobramentos, tornando, assim, nosso
exercício precário e limitado. No entanto, a impossibilidade de alcançar o todo, não elimina a
validade de captação de aspectos dele a que nos propomos.
É importante destacar aqui que essa multiplicidade de novos agentes,
denominados produtores/gestores, entra em processo de interação em um campo já
constituído por produtores/artistas e por produtores/empreendedores, que permanecem no
mercado criando projetos em áreas com linguagens específicas, disputando verbas para
financiar suas criações artísticas e projetos culturais.
É interessante observar que entre essas três gerações há alguns pontos de
convergência como uma dose de idealismo: o desbravamento do campo e a necessidade de
adaptabilidade permanente; a afinidade pessoal com algumas linguagens específicas; a pouca
diferenciação entre os espaços de trabalho, vida e arte e uma alta dose de idealismo, são só
alguns dos exemplos.
No campo da produção cultural contemporânea pode-se identificar ainda um
espectro amplo e diversificado, também composto por várias subcampos de produtores
culturais que, ao ingressar no mercado sob os auspícios das leis de incentivo e, continuaram a
realizar suas atividades durante o governo Lula, assumiram configurações diferenciadas e de
difícil definição conceitual. Encontram-se nesse campo diretores de empresas de produção
cultural, com mais de dez funcionários permanentes; produtores/consultores especializados
em assessorar empresas na gestão de seus projetos; empresas cuja especialidade é formular,
inscrever, captar recursos e eventualmente produzir; produtores que prestam consultoria para
municípios do interior na elaboração de projetos e de planos de cultura e, uma expressiva
quantidade de empresas criando e realizando seus próprios projetos em diversos segmentos:
128
de eventos internacionais à manutenção de grupos de culturas tradicionais, e nas diversas
linguagens artísticas e produtos culturais.
A diversidade e a complexidade são tantas, que não é possível nem o consenso
sobre como os próprios agentes nomeiam sua atividade profissional, como mostra a
diversidade de identificações fornecidas pelos entrevistados: realizador; pesquisador da
cultura; produtor musical; produtor artístico; gestor; difusor de cultura; articulador; assessor
de cultura; consultor; administrador cultural; empreendedora cultural e - é claro - produtor
cultural.
Essa mesma variedade se apresenta na forma de atuação daqueles que também
atuam empresarialmente. Para que esses subcampos e suas distintas interpretações fiquem
mais perceptíveis, reproduziremos aqui algumas apresentações que os entrevistados desse
grupo fizeram de sua atividade profissional/empresarial.
A gente passou por muitas possibilidades de empresa e a gente escolheu trabalhar com lei estadual. Teve duas coisas que a gente estabeleceu: que ia trabalhar só com
incentivo fiscal e que a gente não ia fazer produção de forma direta. A gente
também teve como estratégia atender o mercado... Então como a gente optou por
atender o mercado, nós temos muitos projetos rodando. Não são nossos, tem alguns
que estão no nosso nome, pois emprestamos [o nome para ser proponente].
Fazemos para as pessoas, pois a pessoa não tem capacidade técnica. Mas tem
muitos projetos que são de artista e que são de outros produtores porque eles
também não têm essa capacidade de fazer. Então a gente vai gerindo... Hoje a gente
é basicamente gestor de projetos. A gente era conhecido como captador de recursos
e a gente aboliu esse termo aqui. Nós somos agenciadores de recursos que parece
uma coisa só semântica, mas não é. A gente só faz o projeto se ele tiver viabilidade, que antigamente a gente fazia todos e buscava a viabilidade, hoje não a gente senta
vê a viabilidade, a gente não perde tempo. (F., Grupo 2).
Eu chamo de assessoria de projetos, eu chamo de consultoria, porque na verdade a
minha relação com isso também é uma relação muito estreita com as empresas. Eu
não tiro um projeto da cartola e acho que ele vai dar certo e saio correndo atrás
dele. Eu tento, dentro do que as empresas imaginam articular coisas que são
interessantes dentro de problemáticas, dentro de dinâmicas... Enfim, aí é onde eu
acho que eu entro, que é uma coisa mais delicada que é o que propor, o que definir
como fazer. Então eu não posso chamar isso de simplesmente um processo de
produção, é um processo de criação, de formulação de uma produção para eles. (S.,
Grupo 2).
A gente começou a pensar também como poderíamos contribuir para essa coisa da
formação dos agentes, em todos os sentidos, não é a formação só técnica não... É
sobre como que essas informações são democratizadas... A gente trabalha para o
restante dos outros agentes culturais. A gente planeja, a gente elabora projetos, e a
gente executa projetos e no meio disso a gente faz isso [formação dos agentes
culturais]. Faz formação, integra os agentes. Temos adicionado isso as nossas
tarefas. (C., Grupo 2).
Realizamos alguns projetos que são da própria empresa e projetos que são de
entidades, de outras pessoas que pediram para nós fazermos. Eu crio essas coisas, eu trabalho, eu vou atrás de outros projetos pontuais, porque eu preciso de dinheiro
129
para me manter, e manter a empresa, porque dentro dos meus projetos [eventos]
não dá para tirar muito dinheiro. (L., Grupo 2).
Por fim, diante de um campo tão multifacetado, não se torna uma tarefa fácil
conceituar o que faz, quem é e qual o papel social e profissional atribuído a esse agente, ainda
que com nomenclaturas diversas. Vários aspectos contribuem para essa “polifonia”. O caráter
recente da profissão, a ausência de um processo formativo consolidado e a não
regulamentação profissional são alguns deles.
Entendemos que, para uma melhor compreensão da atividade e de sua função
social, é muito importante que seja dada voz aos próprios protagonistas dessa história, como
uma forma de unir os diversos fios que formam a rede, procurando fazer emergir o próprio
tecido dessa trama. Uma vez destacado, talvez possa ser melhor percebido, tornando seu lugar
no sistema da cultura mais tangível.
Acreditamos que apresentar os diversos entendimentos da produção cultural
descrito por seus próprios protagonistas, em um exercício de autorreflexão, é fundamental
para que a atividade supere sua condição de invisibilidade e para os objetivos desta pesquisa.
Não serão apresentadas todas as descrições, mas procuraremos selecionar as que apresentam
diferentes compreensões e pontos de vista complementares sobre a atividade do produtor
cultural.
Ele é fundamental, para você ter um cenário, um setor, vamos dizer assim, uma área, um campo cultural. Eu acho que é ele que vai fazer as coisas acontecerem. O
artista ele faz a parte da produção, mas quem coloca em circulação, quem dá
visibilidade, quem leva para o público é o produtor. O acesso do público vem
através do produtor, então eu compreendo assim que esse setor artístico sem o
produtor cultural não existe. Acho que é função mesmo do produtor cultural tentar
convencer um conjunto de atores por um projeto comum. Conciliar todos esses
interesses eu acho que esse é o exercício mesmo do produtor cultural. (M., Grupo
2).
Eu acho que o nome produtor cultural um pouco reducionista. Eu acho que você é
gestor, porque na verdade você não só produz, porque você sabe que produção é só
um momento. Quando você gere você entende o processo desde o início, percebe como é que faz o projeto. Acho que a gente pode inclusive ampliar esse conceito.
Produção é só uma parte do processo inteiro que a gente tem que fazer... (F., Grupo
2).
Eu sou um difusor de cultura. Eu acho que o meu trabalho dentro desses projetos é
de fermentar a cultura mesmo. (L., Grupo 2).
Produtor cultural é o cara que comenta é o comentador da cultura. É o cara que faz
as pontes, que faz as ligações, faz os contatos. Eu acho que é importante o papel do
produtor cultural. Embora não seja regulamentado e também não seja reconhecido,
é importantíssimo fazer esse papel. (X., Grupo 2).
130
O produtor ele é prático, ele quer fazer o negócio acontecer e normalmente não
precisa ser o artista. A pessoa que pensa na coisa, às vezes joga muito alto, solta
muito a imaginação, joga todo o potencial criativo. É um casamento muito
interessante [artista e produtor]. Não dá para não ter um produtor realmente. (C.,
Grupo 2).
Somos bem articuladores mesmo, mobilizadores e sonhadores. (F., Grupo 2).
Eu acho que o produtor é esse grande engenheiro. Ele vai montando esse processo
de circular, de montar, de vender... A gente tem que ter esse conhecimento dilatado,
pois produtor não é só um cara que carrega gente para um lado e para o outro, só pra ver se um palco está pronto. Produtor tem que saber de conceito tem que
entender a linguagem. Se o cara está fazendo música ele tem que saber o que é
música, ele tem que saber o histórico daquele artista, que tipo de música que está
produzindo... Qual é o histórico disso, saber qual a referência disso mundialmente.
Se ele [o artista] é ou não importante, se isso é ou não importante pra cidade, para
um lugar dele sabe?! Eu acho que quando um produtor começa a entender isso ele
começa a contribuir com o lugar dele. Eu tenho que começar a entender, o que é
que eu, como um produtor tenho que começar a oferecer pra esse lugar pra
começar a transformar esse lugar. Esse produtor articulador, esse produtor
provocador é o que mais me agrada. (V., Grupo 3).
Essa profissão de produtor cultural, eu vejo que ainda não é muito bem definida. Na
minha concepção eu vejo que o produtor é aquele que coloca a mão na massa
dentro dos projetos culturais, ainda mais das coisas operacionais, de logística, e tal.
Já essa visão de um profissional articulador, que concebe, pensa, planeja, e executa
um projeto, gere um projeto cultural, eu vejo mais ele na posição de um gestor. Eu
digo que eu sou administrador, porque esse perfil de gestor é mais para um
administrador. (S., Grupo 3).
O produtor precisa entender que ele não é um tarefeiro. Ele trabalha com
conhecimento e seu projeto é um instrumento de gestão. A gente planeja, temos
capacidades. Temos que ser elevados a uma categoria mais autônoma, ter mais prestígio social. (B., Grupo 3).
O produtor cultural ele é necessário porque o artista em si, ele não sabe
administrar a realização por completo, do princípio ao fim, de escrever o projeto,
prestar contas, isso não cabe ao artista. Eu acho que, na medida, em que a gente vai
colocando essas funções sistemáticas para os artistas realizarem, a gente vai
cortando as asas, e vai podando um pouco o espaço da criatividade da realização.
Então eu acho que o produtor cultural é essencial para que exista a movimentação
cultural no nosso país no mundo. (L., Grupo 3).
Quem bota gasolina nesse negócio somos nós. Ser o combustível disso, esse é o
nosso papel. (F., Grupo 2).
A despeito das inúmeras formas de se posicionar no mercado, um dos primeiros
aspectos que merece ser apontado como definitivo para o estudo desse campo é a
compreensão do papel relevante que esse agente ocupa no sistema da cultura. Atuando na área
de elaboração de iniciativas que conferem vida, concretude e dinamicidade à cultura no
Brasil, esses produtores assumem uma ocupação necessária para o funcionamento do sistema,
atuando nas diversas linguagens artísticas e interagindo com as outras instâncias de criação,
circulação, consumo, divulgação, etc.
131
A produção cultural ganha uma dimensão maior ainda pelas características
simbólica, criativa, operacional, política, econômica da cultura. Na prática, são eles que, em
sua maioria, dão materialidade às diretrizes e políticas públicas, ocupando-se a dar corpo e
concretude a inúmeras iniciativas culturais em diversas localidades do País. É no campo, no
embate e na disputa pela ocupação dos espaços entre produtores, artistas e Estado que as
políticas públicas vêm sendo criadas e readaptadas.
É a necessidade da produção cultural que a lei responde, ou que os programas
respondem. Você pode identificar claramente: esse programa aqui nasce realmente
dessa discussão do produtor, dos impostos, das isenções, das facilidades de
intercâmbio cultural, programas de viagem, edital de manutenção de grupo...
Então a política pública ela parece que responde a essa instância que é o produtor.
E é isso mesmo que deve a quem está vivendo atuando. O produtor, diferente dos
teóricos, ele não está pensando sobre isso, ele está vivendo isso, então muitas coisas na produção cultural você só descobre que elas precisam existir, na própria prática
daquilo. (Fe., Grupo 2).
É, portanto, o produtor cultural um receptor e um emissor. Ou, como afirma
Barros, um “roteador de informações alternativas e possibilidades dinâmicas de construção de
cenários prováveis, mas também de cenários utópicos.” (BARROS, 2008, p.113). Roteador
nos parece um termo bem adequado para definir o grande número de possibilidades de
conexões possíveis no campo, assim com a multiplicidade de formas e combinações que se
movimentam no mesmo tempo e espaço. Esse roteador administra dimensões subjetivas e
intangíveis em uma rede extensa e diversificada de relações e cenários.
Esse roteador também precisa ter um suporte para dar sustentação e efetividade às
atribuições que lhe são conferidas. No Brasil, ainda observamos uma pouca percepção social
da relevância da Cultura e da sua inclusão como um tema político prioritário. Ainda não
temos um mercado formado por consumidores de cultura e os produtores culturais
movimentam o campo sob influência direta das políticas de financiamento à cultura que, no
Brasil, tem como estrutura central as leis de incentivos e editais.
Este mecanismo, juntamente com as diversas políticas públicas, tem agido sobre o
campo e em intensa relação de pressão e conformações. Empresários, fornecedores,
movimentos sociais, artistas e diversos outros agentes se somam a esse campo de tensões.
Longe de ser uma relação passiva, esta se dá em uma intensa perspectiva relacional de
influências mútuas que conformam o campo e formam novas configurações. Faz-se
necessário mudar a própria concepção que se tem de produtor, minimizando seu lugar de
“pedinte ou receptor” e percebê-lo como ativador do sistema.
132
Na verdade os produtores culturais são agentes do Estado, para realizar as ideias
que os Estados têm para a Cultura, ou são agentes das empresas para realizar as
ideias que as empresas têm. Um outro, consegue furar isso, e trazer uma ideia sua.
O lugar do produtor cultural é mais importante do que o lugar do poder público
nessa questão da cultura. Porque ele é o provocador... [aponta] para onde nós
devemos prestar atenção, para onde nós devemos olhar agora. O que o produtor
cultural faz, não tem poder público que alcance pelos seus instrumentos... [ele atua
em] uma comunidade de boi que mora no sertão central, a não sei quantos
quilômetros de uma cidade. Não tem poder público que dê conta de alcançar isso,
de alcançar a percepção sobre isso... Então, o produtor cultural ele é como se ele
fosse um agente de desenvolvimento, que presta atenção nos potenciais e provoca um encontro das forças que podem mobilizar esses potenciais. (Fe., Grupo 2).
É com esse entendimento do papel social do produtor cultural e já tendo
identificado aspectos importantes de como a atividade foi conformada nos últimos anos, que
chegamos agora ao ponto de examinar, com mais profundidade, não só o “lugar” que o
produtor ocupa, mas “como” ocupa esse lugar.
Não só por se encontrar ainda em processo de construção de suas bases, mas
também por natureza complexa, mutável e sistêmica, é imprescindível um olhar para a forma
como algumas relações se estabelecem e que repercussões têm gerado no campo da produção
cultural. É o que tentaremos apresentar agora, ainda que cientes da incompletude desta
missão, selecionando algumas questões para serem aprofundadas.
4.2 CONFIGURAÇÕES E PARADOXOS
Como vimos a própria atividade do produtor cultural é, em si, uma atividade
relacional, devido a seu papel de intermediador e propositor de iniciativas e conexões. A todas
as questões relacionadas ao próprio exercício da atividade de produção cultural, soma-se uma
quantidade significativa de interferências e contingências externas, além das relações que se
estabelecem no próprio campo, entre os diversos componentes do sistema da cultura.
Bourdieu, ao tratar do campo da produção artística, traz elementos que se
mostram pertinentes ao campo da produção cultural:
A forma das relações que as diferentes categorias de produtores de bens simbólicos
mantêm com os demais produtores, com as diferentes significações disponíveis em
um dado estado do campo cultural e, ademais, com sua própria obra, depende
diretamente da posição que ocupam na hierarquia propriamente cultural dos graus de
consagração, tal posição implicando numa definição objetiva de sua prática e dos produtos dela derivados. (BOURDIEU, 2005, p.154).
133
A disposição que estes ocupam está diretamente relacionada ao prestígio das
iniciativas culturais desenvolvidas, que transfere poder simbólico aos produtores, poder este
que os une e/ou os distingue no interior do campo. O prestígio e o reconhecimento do valor
artístico e/ou cultural de seus projetos, seja pela mídia, nas esferas cultas e/ou educacionais,
ou pela própria sociedade, conferem àquele produtor um lugar privilegiado no espaço onde
atua que repercute diretamente na maneira como é percebido por seus pares, na obtenção de
visibilidade e apoio para seus projetos e, principalmente, na capacidade de influenciar o
próprio campo. Esse aspecto é tão relevante no estudo do campo que merece a seguinte
observação de Bourdieu:
Se, em um estudo do campo da magistratura, não se considerar o presidente do
Supremo Tribunal de Justiça ou se, se em um estudo sobre o campo cultural da
França em 1950, não se considerar Jean-Paul Sartre, o campo fica destruído, porque
estes personagens marcam, só por si, uma posição. Há posições de um só lugar que
comandam toda a estrutura. [grifo nosso]. (BOURDIEU,1989, p.40).
Cabe-nos, no estudo da produção cultural, buscar compreender as diferentes
posições desses agentes e o seu poder de influência no próprio campo, que pode se apresentar
de maneira explícita, como observado por Bourdieu, extrapolando as próprias dinâmicas do
campo, ou de maneira menos evidente, no interior do campo, mas ainda com forte influência
entre seus componentes.
O campo da produção cultural no Ceará não é homogêneo e apresenta distintos
espaços de atuação, prestígio e capital. Esse aspecto se apresenta como uma percepção, difusa
e imprecisa, porém, presente e que transparece na fala dos próprios entrevistados.
Contribuem para a inserção do produtor em determinada posição de prestígio,
diversos fatores: o seu capital intelectual e cultural; as relações políticas e sociais que
estabelece; o tempo de permanência no mercado; o prestígio obtido nas instâncias de
consagração (mídia, títulos, premiações, etc); as linguagens artísticas que trabalha; o prestígio
e a inserção nos campos nacional e internacional da cultura; a credibilidade e reconhecimento
de seus projetos; a proximidade ou afastamento de suas atividades com o comércio e o
mercado empresarial e até a retribuição financeira que recebem na atividade, dentre outros.
O depoimento de um produtor ilustra essa diferenciação. Como atua com projetos
exclusivos do rock, reconhece uma posição diferenciada, com acessos mais restritos aos
patrocinadores e outras situações que o desfavorecem no campo. Situação observada tanto
134
internamente, entre os próprios produtores, e externamente, com patrocinadores e mídia,
dentre outros.
Eu nunca consegui trabalhar com empresa privada... Porque quando nós batemos
na porta da empresa todos falam que não tem interesse dizem que já desenvolvem
projetos com outras entidades. Aí a gente acaba que nunca consegue... Rock é
associado à violência e a droga, dizem quem não querem o nome associados a este
tipo de imagem. O estigma é grande. Diminuiu bastante, mas ainda existe. (X.,
Grupo 2).
Segundo Bourdieu (2008), a cada posição corresponde um número de
pressupostos. Esses aspectos, longe de serem consensuais e explícitos, também são
cambiantes e variam de acordo com cada subcampo. Alguns posicionamentos aproximam os
integrantes, outros os diferenciam. Um dos pontos comuns à grande maioria dos produtores
culturais são uma identificação e cumplicidade mútua, um sentimento de pertencimento a uma
categoria elevada, reverenciada por aqueles que vivem da “cultura”. O compartilhamento
desses valores os mantém coesos, destacando sua participação na sociedade em contraposição
com aqueles produtores que atuam na esfera iminentemente da indústria cultural, promovendo
produtos artísticos de caráter comercial sem nenhum prestígio simbólico e “valor cultural”.
Segundo Bourdieu:
É ainda nas características dos bens culturais, e do mercado onde são oferecidos, que
reside o princípio fundamental das diferenças entre os empreendimentos comerciais
e os empreendimentos criativos. Um empreendimento encontra-se tanto mais
próximo do pólo comercial (ou, inversamente, mais afastado do polo cultural),
quanto mais direta ou completamente os produtos oferecidos por ele no mercado
corresponderem a uma demanda preexistente, ou seja, a interesses preexistentes, e a
formas preestabelecidas. (BOURDIEU, 2008, p. 59).
Há um entendimento implícito que aproxima os produtores culturais, um tipo de
“enobrecimento”, por atuarem em empreendimentos criativos e culturais, com algum
distanciamento (ainda que em alguns momentos tênue) dos produtos duvidosos da indústria
cultural. Cabe a eles um duplo papel: o ônus e a honra de criar demandas culturais e de ofertar
a possibilidade do convívio da sociedade com estas.
A relação entre Arte e Comércio é complexa. Observa-se, em alguns subcampos
de linguagens artísticas eruditas ou ligadas à indústria cultural, que aferir lucros financeiros
pode ser sinal de prestígio e êxito profissional. Em outros, como nas atividades desenvolvidas
com as culturas tradicionais, pode adquirir significado oposto. O campo, em geral, considera o
sucesso “suspeito” e valoriza a ascese, que se torna, segundo Bourdieu,
135
[...] à condição de salvação no além [...] encontra seu princípio na própria economia
da produção cultural ao pretender que os investimentos só terão retorno se forem operados, de alguma forma, a fundo perdido, a maneira de um dom, que só pode ter
a certeza do contra dom mais precioso, ou seja, o reconhecimento... (BOURDIEU,
2008, p. 65).
Ao entrevistarmos os produtores podemos perceber, de maneira velada, todas
essas formulações. Há um valor implícito na sua capacidade de doação e abnegação. E no
campo, sua apreciação torna-se complexa. A evidência de seu êxito profissional e financeiro,
ao mesmo tempo, que pode conduzir a um maior prestígio, também pode remeter a um
comércio sujo e condenável. Como diz um entrevistado, “na gestão cultural você tem que
esconder a sua riqueza”. Essa visão permeia o campo e os agentes que dela participam e se
abriga também no poder público, segundo depoimento dos próprios produtores:
[O poder público] sempre tem a visão que, o produtor e a produtora cultural, estão
querendo se dar bem de qualquer forma, sempre querendo ganhar dinheiro, sempre tendo uma visão de que são muitos ricos, e que estão querendo tirar o dinheiro
deles... Às vezes eu acho que rola até uma certa concorrência, dos projetos da
própria gestão pública, com os projetos da iniciativa privada. Um gestor público
fica querendo concorrer com os projetos, e quando eu falo concorrer, tanto
concorrer em relação a recursos públicos, a recursos de editais, de empresas
privadas, e também concorrer em relação a resultados. Isso é mais forte ainda nas
prefeituras. Na hora que algum projeto começa a dar certo, você vê um certo
incômodo dos gestores públicos. (S., Grupo 3).
Essa visão romântica e idealizada do campo da produção cultural, que não avaliza
a lucratividade e o êxito comercial nos projetos culturais, também se amplifica por meio de
uma compreensão equivocada que o poder público tem de seu papel no sistema cultural,
fazendo com que este, em alguns momentos, dispute o lugar de produtor cultural.
A história recente das políticas culturais no Brasil também contribui para essa
percepção, ao estimular a utilização da cultura como estratégia para minimizar as
desigualdades sociais do País, valorizando seu caráter social e benéfico, portanto, em
contraposição aos problemas gerados pelo mercado. Essa percepção permeia todo o campo da
produção cultural no Brasil e no Ceará, mas é mais presente na geração dos
produtores/artistas, que se formou em uma época de forte idealismo, e na geração dos
produtores/gestores que ingressou na atividade durante a gestão do presidente Lula. Os
produtores/empreendedores que foram estimulados a abrir empresas no período de livre
mercado de FHC, apesar de ter um discurso mais alinhado com as regras do mercado, ainda
136
que dentro dos parâmetros culturais, sentem a tensão no campo, caso sua prosperidade seja
demasiada.
De uma maneira geral, há uma dificuldade de assimilação do lugar do produtor e
da aceitação da categoria como uma atividade profissional qualquer, portanto, digna de
disputar os lucros do mercado. Mesmo em épocas de “economia criativa” e
“empreendedorismo cultural” essa crença perdura. Visão também presente nas políticas de
financiamento público, que põem restrições à remuneração dos proponentes e avaliam com
desconfianças cifras altas. Esse é um dos temas nevrálgicos do campo e que, eventualmente,
tem sido alvo de debates e polêmicas58
na mídia nacional, principalmente na aprovação de
valores expressivos para projetos que se enquadram tanto no perfil cultural como comercial,
cujas opiniões dividem o próprio campo. Apresentaremos alguns depoimentos sobre como
esses grupos se posicionam em relação aos aspectos de sua própria remuneração.
Eu sempre tenho uma certa dificuldade [de estipular minha remuneração], porque eu tenho uma ligação muito forte com a gestão pública, com o trabalho público, e
isso dentro da gestão pública, é muito forte de que, sempre o dinheiro é muito
pouco, e que os produtores estão sempre ganhando dinheiro... Toda vez que eu vou
colocar a minha remuneração dentro dos projetos, que normalmente são
financiados com recursos públicos, eu tenho uma tendência a seguir a lógica dessa
visão de um gestor público... Mas não. Você está fazendo o seu trabalho e você
precisa ser remunerado. Você investiu na sua formação, você investe de outras
formas... Como livros, participações em eventos, seminários, conferências, coisas
que você esta sempre querendo se reciclar e para isso você precisa de dinheiro
também. E precisa que tudo isso que você investiu em você também seja
reconhecido, no sentido de você ter um bom retorno financeiro. Então, essa parte realmente, é uma parte que é um problema na minha vida profissional. (S., Grupo
3).
Acho que produção cultural e recursos são inseparáveis. Tem que vir de algum
lugar. Não se faz um trabalho desses com voluntários, as pessoas precisam e devem
ganhar dinheiro com essa atividade. Eu acho que não seja nenhum problema você
ser remunerado pelo que faz, é uma atividade como outra qualquer. (V., Grupo 2).
Quem cria essas leis não tem a menor ideia de como é que funciona o setor
cultural... Eu acho que existia também uma farra sabe, o artista também achando
que ele não deveria prestar conta de nada. Me dê o dinheiro porque o meu papel
para a sociedade eu já fiz que é a minha criação. Então eu acho que nesse sentido você avançou em alguma coisa de dizer que o artista é um trabalhador, que tem que
estar e tem que funcionar junto com outras coisas, ele não é uma coisa sagrada
dentro de uma sociedade, mas ele tem uma função, e essa função também esta
submetida às leis. (M., Grupo 2).
Eu tenho cobrar um custo que vai ter que pagar o meu funcionamento, então isso
daí também encarece a gente, não ter uma economia forte na área da Cultura. Você
58 Há diversos debates na mídia sobre cifras altas envolvendo a aprovação de projetos na Lei Rouanet propostos
por artistas que tem maior atratividade comercial na captação de recursos ou possibilidade de retornos
financeiros sem a necessidade dos incentivos. Alguns casos ficaram mais conhecidos como a gravação de DVD
de Maria Betânia, turnê de Caetano Veloso, apresentações do Circo Du Soleil e, por fim, a aprovação de desfiles
de estilistas brasileiros no exterior.
137
tem uma informalidade muito grande, as pessoas que são só executoras da cultura
colocam os preços para baixo também, e quando vem uma empresa assim mais
estruturada as pessoas não compreendem o que é esse valor que você cobra... Na
área cultural tem aquela historia “Ah! Está pagando caro”, mas está pagando caro
porque é melhor, entendeu?Então tem muito dessa coisa assim, realmente de pensar
que essas pessoas estão explorando a área cultural. (M., Grupo 2).
Esse aspecto se acentua na medida em que, mesmo atuando como
empreendedores sociais e microempresários, a base de sua remuneração continua se dando
por meio de incentivos ou doações oriundas das verbas públicas. Nem há um mercado
consumidor de produtos culturais, que estipule a concorrência com base na oferta e na
procura; nem há a percepção social de que Cultura é um bem público que deve ser
assegurado. O produtor ocupa um espaço que se situa entre o sagrado e o profano. Ao mesmo
tempo em que compete a ele assegurar a criação artística, protegendo-a das interferências
negativas do mercado, espera-se dele bons resultados operacionais e financeiros e a garantia
de uma inserção qualificada do artista ou de seu projeto nesse mesmo mercado. Cabe-lhe o
papel de quem fica entre a pedra e o mar.
Segundo Bourdieu, a oposição entre o comercial e o não comercial é
incessantemente lembrada no campo da produção artística, estando presente em toda parte e
se configurando como um princípio gerador da maioria dos julgamentos. O que tende a
estabelecer uma correlação negativa entre o sucesso e o valor propriamente artístico. Para ele:
A oposição entre a arte verdadeira e a arte comercial abrange a oposição entre os
simples empresários que procuram lucro econômico imediato e os empresários
culturais que lutam para acumular um lucro propriamente cultural, nem que fosse mediante á renúncia provisória do lucro econômico. (BOURDIEU, 2008, p.31).
Como descrito por Bourdieu, ainda compartilhamos a concepção que o trabalho
com a Arte é da ordem de um campo mágico, místico, onde se perceber lucros, trabalhando
com cultura em si, pode representar uma profanação. Parte da mudança desse paradigma
passa pelo fortalecimento de um mercado consumidor de cultura, pela diversificação das
fontes de financiamento e pelo aumento do orçamento público da cultura, uma vez que essas
tensões se dão também pela necessidade concreta e objetiva de recursos para viabilizar as
ações públicas e as iniciativas realizadas pelos produtores culturais. Ou seja, trata-se de uma
disputa que se dá em um plano financeiro e simbólico ao mesmo tempo.
Essa percepção, acentuada pela disputa efetiva de um volume limitado de recursos
que circula no campo da produção cultural, contribui para uma tensão interna do campo, entre
os próprios produtores, que olham com desconfiança para aqueles que realizam grandes
138
projetos ou iniciativas culturais bem sucedidas. Um dos entrevistados denuncia essa tensão ao
afirmar que “no Ceará se pune quem passa no vestibular”, ou seja, nem sempre quem tem
êxito será visto com bons olhos.
Essa disputa ganham crescentes e sucessivas proporções nos subcampos ou além
destes. Traduzem-se na concorrência entre projetos semelhantes ou de linguagens artísticas
iguais. Ou ainda: entre produtores de um mesmo território; produtores de diferentes regiões
do País; projetos diferentes em um mesmo território; projetos de natureza similar em diversas
regiões do Brasil e/ou no mesmo território; projetos de interesse social versus interesse
comercial, dentre outros. Por vezes, os produtores ainda têm que disputar pela captação de
recursos para suas iniciativas com projetos de interesse do próprio poder público, propostos
por associações, fundações, OSCIPS59
vinculadas a prefeituras e governos estaduais.
A despeito de todas essas relações que se estabelecem entre os próprios
produtores, podemos também destacar ainda outras questões que se instauram na dinâmica da
organização da cultura, tornando mais complexo o próprio exercício da atividade e que, não
serão aprofundadas neste trabalho.
Ferreira destaca alguns aspectos que devem ser observados no crescente papel que
é atribuído a esse agente no campo da cultura: as múltiplas tensões que, no contexto dos
processos de intermediação cultural, se estabelecem entre intermediários e criadores; as
modalidades de circulação e troca de informação entre os intermediários e entre estes e outros
agentes culturais, dimensão em que se opera a consolidação e a reformulação contínua de
concepções culturais, modelos, metodologias de atuação; a mutabilidade dos agentes na
ocupação de funções, posições, áreas de atividade e campos distintos; a abrangência da ação
simbólica que ocorre nos processos de intermediação cultural; e, por fim, aos efeitos que as
atividades de intermediação cultural, sobretudo aquelas que assentam na articulação entre
organizações culturais e entidades político-administrativas, produzem sobre o território e os
ambientes culturais urbanos. (FERREIRA, 2002).
Uma das tensões que merecerá destaque agora - e que talvez seja a de mais fácil
percepção - é a própria contradição que se instaura no processo de “organização” da cultura e
da arte e que já faz parte da própria dinâmica cultural. Bauman aborda a inconclusivibilidade
da Cultura, acentuando seu aspecto de veneno e cura. Para ele:
A ideia de cultura serviu para reconciliar uma série de oposições enervantes pela
incompatibilidade ostensiva: entre a liberdade e necessidade, entre voluntário e
59 OSCIP - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
139
imposto, teleológico e causal, escolhido e determinado, aleatório e padronizado,
contingente e obediente à lei, criativo e rotineiro, inovador e repetitivo - em suma,
entre a autoafirmação e a regulação normativa. (BAUMAN, 1997, p.17).
Por sua natureza criativa, expansiva e livre, muitas vezes cabe ao produtor a difícil
tarefa de contê-la, administrá-la e fatiá-la, tendo em vista que opera com ênfase na
administração de algo intangível. Equilibrar as distintas exigências do mercado e os processos
criativos dos artistas é outra atividade que lhe compete.
As leis de incentivo à cultura e os editais, por sua vez, também trouxeram outros
elementos ao campo da produção cultural, que agregam novas exigências, adesões e
enquadramentos. O campo não se sustenta mais tendo como base somente a intuição,
afinidades, dinamismo e uma forte dose de voluntarismo. Agora, para encontrar espaço no
campo e viabilizar suas iniciativas, os produtores culturais passam a se relacionar com
crescentes exigências legais, fiscais, trabalhistas e burocráticas.
Outro aspecto que tem se configurado como elemento paradoxal no campo
cultural é a crescente formalização dos procedimentos e necessidade de trâmites burocráticos
para utilização de leis de incentivos e editais. Estes solicitam ao proponente/produtor uma
quantidade cada vez maior de informações do projeto, além de documentos comprobatórios
de idoneidade técnica e legal para aprovação de suas iniciativas. O atendimento dessas
exigências requer a definição de detalhes financeiros, técnicos e conceituais do projeto, que,
em última instância, se tornam uma peça de ficção, uma vez que aquela ideia ainda irá se
submeter a diversas instâncias de análise e prováveis diligências60
até obter a aprovação e
passar pelo crivo do mercado na hora da captação.
Muitas vezes, o que está posto no papel não poderá ser realizado integralmente,
pois, além de depender do sucesso na obtenção do patrocínio - que nem sempre atinge
integralmente o valor apresentado - ainda está sujeito ao interesse e a disponibilização dos
recursos das empresas investidoras, que, por sua vez, dependem do desempenho de mercado e
da lucratividade e, por fim, da disponibilidade orçamentária do poder público para a liberação
dos recursos.
Tem uma burocracia que você tem que enfrentar para estar ok com os mecanismos.
Às vezes eu fico vendo as instruções normativas e eu penso será que o pessoal quer mesmo que a gente continue a produzir cultura? Porque são tantas situações que
você tem que ficar atento, que muda, que você tem que fazer tal coisa... Se você não
estiver atualizado com essas demandas você acaba se prejudicando. Eu tive que
60Averiguações tendentes a esclarecer qualquer assunto. Procedimento adotado pelos órgãos públicos da Cultura
para solicitar informações adicionais aos projetos submetidos às leis de incentivo.
140
estudar, me aprofundar para poder tentar cumprir com o que eu tenho que produzir
e com as necessidades burocráticas da atividade e isso é muito pouco produtivo. Eu
acho que quem é artista tem poucas chances de usar esses mecanismos, porque ele
vai passar tanto tempo nessa burocracia que o processo criativo vai se perder.
Porque hoje pra mim o projeto cultural ele é caro, porque eu não consigo gerenciar
sozinha, eu tenho que ter alguém às vezes em tempo integral, com salários
relativamente altos, pois são pessoas que a gente tem que formar o mercado não
tem essas pessoas prontas. (V., Grupo 2).
É muito tempo despendido às vezes e fica a dúvida se tudo aquilo é desnecessário...
Eu acho que poderia ser mais fácil, eu acho que muita coisa da cultura devia ser desonerada. Principalmente para o realizador, ele perde tempo pensando nessa
coisa, principalmente no financeiro. De como fazer com cuidado para não errar
para isso. Porque não pode ter um erro aqui, você não pode deixar de tirar a cópia
do cheque, você não pode deixar de estar com o depósito na mão, você tem que
estar atento, é um saco, é meio sacal. (G., Grupo 2).
Uma coisa que eles [as leis e editais] não permitem mais é o exercício da criação, e
do improviso... Então você tinha no Brasil toda uma tradição bastante original do
cinema que tinha toda sua própria narrativa, que tinha toda sua própria forma de
fazer, onde o improviso, e a inserção do acaso, vamos dizer assim, das coisas,
estavam muito ligadas a esse fazer, a essa pulsação. Hoje você não pode mais fazer isso, você dá um roteiro lá, e fica amarrado naquele roteiro, e se você muda
qualquer coisa, eles vão lhe cobrar depois. Ou seja, você está amarrado pelo limite
da burocracia, de uma visão burocrática. Quer dizer, se os atores forem bons, se
eles me permitem, eu posso criar mil e uma situações, o filme pode crescer muito, se
enriquecer muito, com isso. Mas não, virou tudo burocracia... Sua alma fica cindida
com tantas coisas, porque você não pode colocar em movimento mais nenhum
projeto sem se transformar também em um economista, em um contador. Mesmo
você para fazer esses serviços, você tem que ter conhecimento, você se torna um
burocrata para cuidar dessas papeladas, dessas coisas todas. E fica dividido, com
varias outras preocupações e com a Arte também, e a Arte é um pouco egoísta, a
Arte é uma coisa que ela trabalha no inconsciente, ela trabalha na vida, ela trabalha na emoção, ela trabalha nas sombras, em outras dimensões, e outras
coisas que você não pode estar dividido. (C., Grupo 1).
Outro agravante que merece ser destacado, é a confirmação dos apoios e seus
respectivos valores que, muitas vezes, só são obtidos muito próximos à data de realização dos
projetos e, em diversas ocasiões, repassados aos produtores em moderadas parcelas, que serão
pagas após a realização da atividade incentivada. Situação incompatível com as exigências
legais e as necessidades de planejamento e organização dos empreendimentos, que demandam
tempo prévio para sua execução e contratação de serviços (com efetivação dos pagamentos)
que se dão antes do início do projeto.
Os produtores que atuam tendo como base uma empresa – o que exige
cumprimento de diversos compromissos legais e trabalhistas – ainda têm que fazer um esforço
adicional para honrar seus compromissos mensalmente e manter seu sustento regular. As
atuais configurações do campo fazem com que ele se considere um equilibrista, tentando
compatibilizar prazos, projetos, indefinições, captações e prestações de contas em um
processo de gestão empresarial, que não se concilia facilmente com as características e
141
instabilidades do campo cultural. Diversos entrevistados explicitam sua angústia diante dessa
situação em que tem que recorrer a contrair empréstimos particulares para suprir o atraso no
repasse de verbas ou ficar endividado na praça.
Nós planejamos tudo, tínhamos uma verba e ela não saiu. Nós fizemos o maior
escarcéu na rede social, jornal, denunciamos e tal... Nós nos prejudicamos com os
cartões de crédito. Planejava de novo, reorganizava os prazos e quando era o dia
de receber a verba, cadê? Aí você se complicava todo. Tinha dois cartões de credito
com o limite de cinco mil reais cada um o limite, estourei tudo. Paguei, mas deixei
de pagar, vou pagar como? Fiquei com o nome sujo, sabe? Aí passava para um
outro colega entendeu? (X., Grupo 2).
A dor é essa dificuldade. Não é de você levantar verba, é a de você não saber se a
terá. O pessoal, os patrocinadores, as instituições públicas, governo e prefeitura, não levam muito em consideração a logística necessária, os tempos necessários de
produção, o cronograma que você monta. Então, você tem que montar o seu
orçamento até tal dia, mas aí você pediu um apoio lá e tal eles só vão avaliar o seu
apoio uma semana antes do evento. Eles não sabem o quanto isso mexe com o seu
orçamento. Então é muito difícil você não ser compreendido em toda essa trama que
é necessária estar conectada, para a coisa acontecer. Uma das maiores dores é essa
a incompreensão. (L., Grupo 3).
Instaura-se assim, a necessidade de uma administração feita em dois campos
simultâneos: um trata da gestão das rotinas, na medida em que ocorrem, no tempo real dos
acontecimentos; e outro da esfera legal, que inclui contratos, notas fiscais e prestações de
contas que precisam ser apresentados. A gerência de todas essas instâncias muitas vezes
acontece em diversos níveis paralelos, pois os projetos podem (e comumente são)
beneficiados por meio de mecanismos diferenciados como leis estaduais, federais, convênios
e editais, gerando um emaranhado de teias e processos de difícil acesso.
Podemos afirmar que o produtor cultural opera entre extremos. Por um lado,
trabalha com prazos fixos e definições rígidas, no âmbito dos projetos e de sua tramitação
para a obtenção de apoio e, por outro, se defronta com um cenário incerto e nebuloso, onde
não sabe se vai conseguir viabilizar suas iniciativas, nem em que condições e prazos isso se
dará. Situação agravada pela necessidade de, além de ter que assegurar a viabilidade de seu
projeto, precisar obter os meios para sua própria sobrevivência. No fim, a prestação de contas
tem que ser criteriosa e aprovada, pois dela depende a possibilidade da participação em novos
projetos. O processo é estressante e a conta dá muito trabalho para ser bem resolvida.
Como é que uma pessoa faz um trabalho para receber um ano depois? Nós temos
que encontrar meios... O próprio Governo nos força a ter que fazer as coisas
ilegais. Nós queremos trabalhar direito, nós temos nossas concepções do que é
direito, do que é certo, de como não deve ser, a contabilidade, as prestações de
contas, mas o próprio governo nos força a fazer na ilegalidade. Por exemplo, eu
consigo o dinheiro emprestado e pago a pessoa. Ou com um dinheiro nosso ou de
142
um outro projeto e combino com aquela pessoa para que daqui a seis sete meses, ele
me dê uma nota de que ele recebeu... Eu perco muito mais tempo nos controles
disso, do que pensando nos projetos. Todo dia acordo pensando em mudar de ramo.
(L., Grupo 2).
É como se estivesse todo o mundo nervoso, em um mercado para se produzir ideias
maravilhosas, projetos maravilhosos, mas que está todo o mundo aprisionado, é
como se houvesse uma prisão é todo mundo querendo sair disso, sabe todo mundo
fala a mesma língua, da dificuldade. (M., Grupo 3).
A administração desses trâmites requer especialização e disponibilidade integral,
o que repercute na inclusão de novos serviços no escopo dos projetos, ocasionando um
“alargamento” nas propostas, com consequente oneração dos orçamentos finais. Novos
profissionais se agregam ao mercado da cultura para atender as solicitações. Hoje, faz parte da
rotina do produtor cultural, se cercar de redatores/projetistas, técnicos financeiros e assessores
jurídicos, além das outras atividades já tradicionalmente integrantes da cadeia produtiva da
Cultura.
Espera-se dos projetos aprovados por leis e editais algumas contrapartidas sociais,
na forma de ações que englobem acessibilidade, inclusão, cultura, educação ou
desenvolvimento. Essa demanda também exige além de investimento intelectual, uma
condição de maturação, planejamento, avaliação e construção gradativa. E é aqui que reside
outra das maiores tensões observadas no campo da cultura atualmente.
Esse complexo sistema de ações proposto pelas políticas públicas e pelo mercado,
movido pelo produtor cultural, em interface direta com os outros agentes do campo, pauta-se
no sistema de financiamento com base nas leis de incentivos e editais. No entanto, o sistema
não favorece a construção de ações de médio e longo prazo, uma vez que trabalha com
projetos de ação temporária definida, que precisam ser renovados permanentemente e ainda
garantir o interesse e a permanência do investidor privado e do poder público na iniciativa.
Sistema que faz com que os produtores, a cada edição, (re)iniciem todo o processo em busca
de captação para garantir a continuidade do mesmo, buscando conferir novos atributos e
adjetivos ao seu empreendimento, o que gera a inclusão de novos custos a seu projeto. Ou
seja, é preciso se mostrar maduro e sólido e ainda renovado constantemente.
Esse círculo se destaca pelo imenso paradoxo que traduz: a realização de inúmeras
iniciativas de qualidade artística, técnica, social e cultural relevante, que tem sido promovidas
no Brasil e movimentado o campo da cultura nacional, que não contam com uma base sólida
de sustentação e continuidade. Essa situação nos remete a metáfora de uma construção em
cima de dunas, sempre cambiantes, e sem a garantia de permanência.
143
O sentimento é de que assim, todo ano, você começa tudo de novo, não adianta você
ter no Ceará, um projeto que tem um ano, ou que tenha 20 anos, a defesa de fazer esse projeto vai ser a mesma luta, a mesma briga, a mesma argumentação, e a
mesma possibilidade de não conseguir nada com isso, então assim, o patrimônio
que os projetos adquirem com a longevidade eles não tem peso para a política
pública no Ceará. (Fe., Grupo 2).
Você nunca sabe o amanhã, você não sabe nem quando você começa um projeto, se
você termina aquele projeto... Funciona tudo quanto é deveres para qual você tem
com o Estado, as obrigações, as datas, os cronogramas, tudo quanto é o contrato
por parte deles. Se você receberia um recurso em uma data e eles não liberam, você
vai ter que assumir pagamentos. Mas se você assumir os pagamentos, você não vai
ter como receber depois os recursos, ou seja, é um caos, uma loucura. Você não sabe se termina aquele projeto, se terminar, também não sabe o que faz com aquele
projeto, terminando esse projeto. Você não sabe se conseguirá viabilizar um
próximo projeto. Se você é uma estrutura, com empregados, com impostos, você
está ferrado, porque você terá que ter um capital para manter, inclusive toda aquela
estrutura durante fase... Então essa imprevisibilidade é total e absoluta. É uma
esquizofrenia! (C., Grupo 1).
Eu me sinto angustiado, profundamente angustiado, já me perturbou menos, mais
hoje está me perturbando mesmo ao ponto de atravessar o meu sono, é quando você
dorme pensando e acorda pensando. Não é saudável, do ponto de vista que você
não está pensando em uma coisa legal, e sim pensando que vou ter prejuízo, que
vou ficar sem receber, que vou deixar de pagar meus parceiros, mas eu tenho que produzir o evento. (M., Grupo 3).
Essa característica do nosso sistema de financiamento à Cultura possui ainda
outro efeito nefasto: o de desviar a atenção do produtor do trabalho criativo e intangível -
inerente ao campo da cultura - para concentrar sua atuação na gestão de processos
burocráticos, administrativos e mercadológicos da cultura. O inverso do que apregoa Heloísa
Buarque de Holanda, ao dizer que “o ambiente de inspiração tem que ser preguiçoso. Se não
for preguiçoso, não vai funcionar. É preciso não querer nada, não ter metas, não ter padrões e
ficar ali aberto para trocas”. (HOLANDA, 2010, p.32). Na verdade, parece-nos que essa
possibilidade está cada dia mais distante da realidade dos produtores culturais. As tensões a
que são expostos esses agentes se acentuam mais ainda e ganham maior complexidade quando
este se vê inteiramente inserido em um contexto onde atuam múltiplos aspectos que
transcendem o prazer estético e o entretenimento outrora atribuído à Arte e à Cultura. As
colocações de Yúdice deixam transparecer uma variedade de interesses em atuação no campo,
conforme assinala:
Hoje em dia é quase impossível encontrar declarações públicas que não
arregimentem a instrumentalização da arte e da cultura [...] A arte se dobrou
inteiramente a um conceito expandido de cultura que pode resolver problemas,
inclusive o de criação de empregos. Seu objetivo é auxiliar na redução de despesas
e, ao mesmo tempo, ajudar a manter o nível de intervenção estatal para a
estabilidade do capitalismo. Uma vez que todos os atores da esfera cultural se
144
prenderam a essa estratégia, a cultura não é mais experimentada, valorizada ou
compreendida como transcendente[...] a arte e a cultura são vistas como
fundamentalmente interessadas. (YÚDICE, 2004, p.27).
Os novos contornos da economia mundial e da sociedade brasileira repercutem
diretamente nas diretrizes políticas que, por sua vez, reforçam o aspecto da conveniência no
âmbito da Cultura, conforme observado por Yúdice. As políticas públicas de cultura têm,
sistematicamente, transferidas para as iniciativas desenvolvidas pelos produtores, um número
cada vez maior de aspectos a serem contemplados em seus projetos, seja implícita ou
explicitamente. O atendimento a essas novas demandas serão observados na análise que suas
iniciativas sofrerão, tanto pelo Estado como pelo pela iniciativa privada, resultando na
aprovação ou não de seus projetos e, em última instância, na possibilidade de realização do
empreendimento cultural.
Nesse aspecto, a mudança que se operou no campo, do início da década de 70 para
cá, é significativa e suas repercussões na cultura e nas práticas criativas ainda não tem sido
devidamente observada. As exigências previstas na Lei 8.66661
, que regula os mecanismos de
contratação de serviços com base nos preceitos da eficiência e legalidade, cede ao campo da
Cultura o mesmo tratamento que é dado, por exemplo, a Engenharia Civil. A administração
desses dois aspectos distintos é também uma tarefa que cabe ao produtor tentar equacionar,
ainda que de forma precária e às vezes, angustiante, conforme o contundente desabafo de um
produtor ao relatar o exercício da administração da cultura inserida nas exigências e
formatações sistema de financiamento à Cultura no Brasil.
A pior de todas as distorções [a que estamos submetidos] é que estão tirando da
arte toda rebeldia, toda inquietude, todo o lado subversivo. Outra coisa terrível...
Você elabora mentiras em cima de mentiras, porque se faz de conta que é assim. O
outro diz que é geração de renda de emprego, de rentabilidade, de não sei o que
coisa e tal como se tudo virasse economia. Ou seja, a economia viria a reboque da
Arte. Então geramos uma arte anêmica, um cinema anêmico, um teatro anêmico, tudo anêmico. Claro que os movimentos surgem nas periferias, os movimentos
surgem como levantes, como surgiu no País inteiro o povo nas ruas, tocando fogo
em ônibus. A Arte teria que estar ligado a isso, a Arte teria que estar ligado a uma
pulsação de nação, a uma pulsação de inserção dessa nação, dentro de uma
contemporaneidade mundial, universal... O que está se passando? Um tédio, está
tudo muito tedioso, tudo ao mesmo tempo, o País passando por transformações
profundas, e nós não fazemos hoje uma arte que corresponda a inquietude da nação
brasileira. Eu não quero gerar renda, não quero emprego, não quero gerar nada.
Eu quero quebrar, eu quero quebrar as estátuas, eu quero tocar fogo na catedral.
61 Lei de 21 de Junho de 1993, que orienta sobre procedimentos que devem ser efetuados com base nos
princípios definidos no Art.37 3 da Constituição Federal, a saber, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a
publicidade e a eficiência, com o intuito de proporcionar à Administração a aquisição, a venda ou uma prestação
de serviço de forma vantajosa, ou seja, menos onerosa e com melhor qualidade possível e isonomia aos membros
da sociedade.
145
Você deixa de ser um artista, você passa, primeiro você passa pelas garras
inquisitoriais de uma legalidade absurda, porque eles querem te tratar da mesma
forma como é a ponte da construção civil, da mesma forma como é um trator,
quando se trata de Arte, como você vai fazer uma licitação para escolher o teu
fotógrafo, vai ter três cartas de fotógrafos... E você tem que responder legalmente
diante de uma burocracia, por tudo isso, aí você se torna refém disso tudo. A vida
inteira é prestando contas, de não sei o quê, você se torna um burocrata e chega
momentos que você faz a pergunta... Burocrata tem alma? (C., Grupo 1).
Os produtores se queixam que cada vez mais passam a dispender a maior parte de seu
tempo e esforços na administração burocrática dos projetos, no cumprimento dos diversos
preceitos e exigências. No entanto, essa não é uma relação de submissão e consentimento. As
disputas acontecem no próprio campo, entre produtores e poder público, administrador dos
incentivos, numa intensa atividade relacional de dependência e desejo de autonomia. A cada
nova exigência, e a cada novo projeto, as estratégias se renovam assim como o desejo de
resistência.
É a minha “esquizofrenia” [conciliar Arte e Produção]... Depois que o Gil
começou a falar em liberar um pouco mais as coisas, a gente começou a também a
ter mais coragem de fazer as coisas diferentes. Pois não dá para propor coisas
diferentes, pois o Ministério só queria aquilo. Se você tivesse a cartilhinha estava
certo, se não tivesse a cartilhinha estava fora... O que está escrito no papel nem sempre é o que ocorre. O que nós vamos fazer é o que a gente quer fazer entendeu?
Nós queremos o dinheiro para fazer o que quisermos fazer se você precisar que eu
te diga outra coisa eu te digo, mas quando o dinheiro chegar eu vou fazer o que eu
quero com ele entendeu? O que a gente acha que deve. (F., Grupo 2).
Eu fico muito insatisfeito às vezes com projetos que eu mesmo faço e que são
selecionados, porque às vezes tenho projetos aprovados, mas eles não representam,
do ponto de vista da elaboração, da concepção aquilo que eu acho que é necessário.
Ele representa o que é necessário para eu conseguir ganhar o edital. Mas não
representa o que é necessário para ter a transformação que eu preciso, ou para
produzir um espetáculo que é sensacional, ou para fazer aquela ação cultural que vai ter uma repercussão importante. A gente se limita muito pela concorrência, pelo
medo, pelas dificuldades que a gente tem no mercado e pela incapacidade de quem
está avaliando, que se não encontrar as palavrinhas mágicas“inclusão,
democratização...” (B., Grupo 3).
No entanto, a despeito de uma atuação pretensamente pautada por regularidades,
padrões e trâmites previstos nas políticas públicas, observa-se ainda que o prestígio, as
relações sociais dos produtores e as afinidades pessoais daqueles que detém o poder de
seleção de projetos por determinadas linguagens artísticas ainda podem beneficiar algumas
iniciativas em detrimentos de outros. Por vezes, esses aspectos também se manifestam nas
diferentes gestões governamentais que, alternam prioridades, de acordo com a sensibilidade
cultural do gestor de plantão. Assim, o produtor cultural se equilibra precariamente entre
inúmeras exigências contemporâneas de uma administração “legal e racional” em um campo
146
ainda afetado por afinidades pessoais e relações de “apadrinhamento” e troca de favores,
assimilando e acumulando os dois tipos de procedimentos a fim de viabilizar suas iniciativas.
Constatamos que no campo da produção cultural no estado do Ceará, a despeito
do cumprimento das exigências administrativas e burocráticas, ainda é muito presente a
necessidade de relações sociais e políticas e uma postura de não enfrentamento explícito para
que os projetos sejam aprovados e o produtor possa ter seus pleitos atendidos a contento,
como deveria ser, uma vez que se cumprissem os trâmites exigidos. Aqui também, os agentes
do campo ocupam posições distintas, de acordo com seu grau de adesão, silêncio e inserção
nas esferas de poder político e econômico local.
Cria-se assim, outra situação de dilema entre o enfrentamento e constrangimento,
segundo depoimento dos produtores.
Um constrangimento que também me incomoda muito e que eu vejo que a gente
acaba silenciando bastante para você não prejudicar o seu trabalho. Porque você
não vai sair batendo na gestão do governador, você não vai ficar batendo na gestão
de um Secretário, porque a gente sabe que existe isso, existe essa perseguição.
Então todo mundo tem que se calar, a gente não pode reclamar nada. Às vezes eu
vejo alguma coisa que inclusive não tem nada a ver com cultura, algum problema
de serviço público mesmo dentro da cidade, que a vontade que eu tenho é de sair
protestando, de fotografar, enfim fazer um certo barulho, mas ao mesmo tempo eu
tenho que me calar. Aí você fica sempre nessa “nóia”, de que não pode reclamar
tem que ficar calado, e daí acaba sendo um constrangimento, não só um constrangimento profissional, mas um constrangimento em relação a sua vida como
cidadão. (S., Grupo 3).
É evidente que quando eu tinha boas relações, eu conseguia mais... Conheço gente
que não recebe nada, porque é marcado mesmo, principalmente com Facebook
aberto. Os “caras” tomam café da manhã olhando o Facebook marcando [as
pessoas que fazem críticas]... Adeus Brasil, temos que começar tudo de novo! (L.,
Grupo 1).
A verdade hoje no estado do Ceará é que para você conseguir algum recurso, você
tem que correr atrás dos políticos, a realidade é essa, hoje no ano de 2013. Você não vê um projeto apoiado pela sua competência, pelo bom projeto, você vê o
projeto pela parte politica do estado do Ceará. Se você vai para a mídia, você parte
para denunciar tudo isso aí, você fica marcado. Eu canso de receber ligações de
jornalistas para eu denunciar e eu digo que não, eu prefiro não falar, é melhor ficar
calado. Eu estou isolado. (L., Grupo 2).
A nossa profissão está ligada ao lobby, diretamente ao lobby, ou seja, aqui em
Recife, Rio, São Paulo, etc. Ela se sustenta porque eu tenho que estar lá coçando
um ou outro, massageando o ego de um, massageando o ego de outro. Ou seja, não
existe uma escala, um nível mensurável disso, de você ter um projeto bom,
impactante, que os profissionais que realizam são competentes. Isso não serve, o que serve é se você estar no jogo, aí você consegue trabalhar. Se você não está,
você consegue trabalhar, mas de forma precária. (M., Grupo 3).
147
No âmbito das políticas federais, não se observa essa percepção de
constrangimento ou cerceamento por parte do Ministério da Cultura. O órgão tem feito
diversos investimentos e melhorias na gestão dos processos apresentados, junto ao PRONAC,
que são aprovados sem a gerência política ou necessidade de contatos pessoais.
No entanto, a despeito da facilidade de aprovação dos projetos juntos ao
mecanismo federal, o sentimento de desprestígio no campo se dá de outras formas. Na falta de
acesso às empresas investidoras e na dificuldade de participação dos produtores culturais nas
relações sociais nacionais, que possibilite o acesso as cifras que circulam no Brasil para a
cultura, majoritariamente alocadas na região Sudeste. No caso, a exclusão se dá pela própria
falta de acesso aos interlocutores, ao networking da cultura e da política nacional. O recurso
encontrado, por alguns produtores, é minimizar essa ausência por meio da atuação de algum
político que atua como intermediador, intercedendo pelos projetos junto às estatais e grandes
empresas nacionais.
Todas essas questões fazem parte da complexidade que está presente no campo da
produção cultural hoje no Ceará. Um campo, que em pouco tempo, tem conseguido interferir
socialmente, realizando diversas iniciativas – internacionais ou em universos microcosmos –
de grande relevância cultural, social e até econômica em alguns territórios. O produtor
cultural, como já foi dito, é um elo fundamental no sistema da Cultura, por atuar na ponta,
como importante agente de desenvolvimento onde o Estado não chega.
Muitas mudanças tem se operado no campo da produção cultural nas últimas
décadas, onde novos atores ingressam a cada ano, em uma atividade de grande relevância
cultural e com bases de sustentação ainda tão frágeis e não resolvidas. Onde sobra
criatividade, coragem e resultados, faltam recursos, formação, compreensão do campo,
diálogo e tempo para maturação do que já está sendo feito.
Para que as conquistas se consolidem e o campo continue a crescer, abrigando
toda a diversidade e criatividade que são inerentes à Cultura, faz-se necessário uma maior
visibilidade de suas problemáticas e tensões, a reflexão sobre suas especificidades, a revisão
de alguns marcos legais, o aumento e diversificação de recursos e, principalmente, a ativação
do sistema cultural em sua integralidade.
Todas essas condições são necessárias para que os produtores ultrapassem a
barreira que os prendem a uma luta pela condição da sobrevivência, que só lhes permite
enxergar o hoje. É preciso alterar as formas de fazer e as formas de pensar a produção
cultural, como relata um jovem produtor, que acena para o novo que precisa emergir.
148
Hoje a gente tem um grande problema, de que todo mundo age isoladamente. A
gente tem que pensar em rede, não adianta a gente pensar isolado. Eu tenho uma visão muito crítica em relação a isso, eu acho que a gente continua pensando hoje
em resolver o problema de captar o recurso para o projeto acontecer pra gente
pagar nossas contas. E o problema de público, hoje, é o nosso maior problema que
enfim interfere diretamente na produção artística. Se não tem público, o recurso que
continua tendo é o recurso público e a produção é frágil. Se não tem público, os
grupos não produzem produto de qualidade de excelência, se não tem produto a
excelência não tem circulação, então se não tem circulação você não existe nem no
seu lugar, imagine em outros lugares. O que a gente precisa mudar é o problema do
apreciador, que é problema da produção de qualidade, o problema da formação de
nossos artistas, o problema da formação dos nossos profissionais de produção. O
edital só resolve o problema de existência. (V., Grupo 3).
149
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa é fruto de uma necessidade e tem um sentido de emergência.
Necessidade que foi crescendo, à medida que vivenciamos como produtores culturais no
Ceará, todos os processos, tensões e paradoxos descritos neste trabalho. Emergência por se
fazer imprescindível e urgente a compreensão de uma trajetória pessoal e coletiva.
Como integrante do grupo de produtores/empreendedores, pudemos acompanhar
de perto os esforços de criação dessa atividade profissional e as alterações que foram se dando
no campo. À medida que as políticas eram instituídas, novos valores apregoados e múltiplas
exigências eram demandadas, o campo se tornava mais complexo e crescia também o
sentimento de isolamento, invisibilidade e angústia.
Isolamento por não contar com suportes que assegurem uma estabilidade
profissional, nem tampouco a continuidade do trabalho construído. Invisibilidade por não nos
sentirmos percebidos como ator no campo, muito menos compreendidos no exercício da
atividade. E angústia pela necessidade, cada vez mais crescente, de conciliação de elementos
paradoxais que faz parte da rotina daqueles que vivenciam o dia a dia da produção cultural.
Com o passar do tempo e as multiplicidade das exigências, sentíamo-nos contínua
e crescentemente enredados em uma teia complexa que nos mantinha “pesados” e cada vez
com maior dificuldade para efetuar os procedimentos necessários. A falta de perspectiva de
mudanças nesse quadro, somados ao isolamento e incompreensão do campo, sinalizavam para
um esgotamento iminente de forças e uma descrença em novas possibilidades de atuação. Por
isso querer compreender quem somos, em qual âmbito estamos inseridos, o que fazemos e
para onde pretendemos ir se tornou tão necessário como o próprio oxigênio que se respira.
Precisávamos de respostas e razões para permanecer partícipes e atuantes no campo.
Foi preciso então, interromper um ciclo, sair da imersão que nos afundava,
distanciar-se, compreender o percurso e, principalmente, fazer um esforço de apreensão e
tradução do campo da produção cultural para que se pudesse iniciar um novo processo. Sob o
ponto de vista do produtor, era necessário ouvir, falar e ser visto. Esse foi o sentimento que
nos moveu durante todo o trabalho: a procura por novos caminhos, por motivos e pelo próprio
sentido de sermos produtores culturais. Sobrepondo-se a tudo isso, tornou-se concreta a
necessidade de tornar inteligível o próprio campo da produção cultural no Ceará por meio da
percepção de suas conformações, configurações e paradoxos.
150
Assim, a tentativa de tradução do campo da produção cultural no Ceará
configurou-se muito além de um exercício intelectual: passou a ser como uma releitura do
próprio trajeto vivenciado e da busca de compreensão dos sentidos de seus percursos e efeitos.
Jornada esta que não foi vivenciada de forma isolada, pois à medida que contatávamos os
produtores, sentíamos a mesma angústia e o mesmo desejo de sermos visto e compreendidos
em nossas singularidades. A cada entrevista, aumentava a polifonia de vozes, informações e
dados em um amálgama que teceu o constructo que, por hora, transparece nesta pesquisa.
Este exercício se traduziu em três possibilidades de leituras diferenciadas e
complementares: retratar a formação da atividade da produção cultural no Ceará nas décadas
recentes e sua relação com as políticas públicas, dar mais visibilidade a própria atividade em
si e apresentar uma análise das relações e tensões que se configuram no campo.
Ao alcançarmos a conclusão deste trabalho, consideramos que a tarefa está
parcialmente cumprida, tendo cabido o primeiro passo à confecção desta investigação. Muito
mais do que retratar toda a amplitude do campo da produção cultural no Ceará, conseguimos
sinalizar uma reflexão para a existência dessa categoria, apresentar algumas de suas
conformações e singularidades, repensar acerca do seu lugar no sistema da Cultura e
identificar algumas tensões a que tem sido imposta a categoria.
O trabalho possibilitou também o registro das configurações do campo da
produção cultural do Ceará no momento da pesquisa e, mais ainda, a captação das mudanças
que estão se processando no contexto atual. Acreditamos que o campo da produção cultural,
que tem sua base de captação de recursos no atual sistema de financiamento à Cultura, está
em processo de crise e esgotamento, o que por si já exige a necessidade de mudanças que
favorecerão novas formas de configuração da atividade.
Acreditamos que esse trabalho tenha cumprido sua função ao mostrar os fios
dessa complexa trama, que posteriormente poderão servir como condutores em uma imersão
mais aprofundada e integral nessa rica tessitura. Ao apresentarmos algumas questões
essenciais, fornecemos caminhos para que outros possam identificar e aprofundar outras
relações que se dão no interior do campo que, por vezes, continuam insondáveis até aos
próprios produtores. Facilitará, ainda, a identificação dos novos processos que continuarão a
se suceder no campo da produção cultural.
No entanto, a realização deste trabalho, já aponta para algumas questões se
colocam como urgente e que precisam ser tratadas no âmbito das políticas públicas, dentre as
quais merece ser realçada a necessidade de uma melhor compreensão da atividade e da
promoção de melhorias nas condições de trabalho na produção cultural no Brasil e no Ceará.
151
A despeito de suas próprias incertezas e indefinições, o produtor cultural segue
possibilitando importantes contribuições ao sistema cultural no Brasil. Longe de serem
agentes passivos nesse trajeto histórico, são atores fundamentais para a ativação das políticas
públicas e, em grande parte, responsáveis pela qualidade e quantidade do que se tem
produzido e consumido culturalmente neste País nas últimas décadas.
É imperativo que a atividade obtenha uma condição diferenciada de percepção e
que passe a ser compreendida como uma função importante e necessária. O produtor cultural
precisa se fazer considerar e ser considerado como aliado na ativação das políticas públicas.
Precisa conquistar e receber um olhar mais atento, receptivo e solidário do Estado e da
sociedade. Para isso, urge modificar sua própria percepção da atividade e conquistar uma
nova forma de inserção no campo com mais espaço político e reconhecimento social.
Outra questão que se impõe é a promoção da melhoria das condições de
desenvolvimento da atividade. É nocivo, ao próprio sistema da Cultura, que na sociedade
brasileira contemporânea a produção cultural ainda não seja reconhecida como categoria
profissional, sem merecer tratamento adequado das políticas culturais, trabalhistas e
securitárias.
Faz-se necessário uma política pública mais atenta às especificidades do campo,
as quais só poderão ser identificadas e devidamente tratadas quando o Estado, a sociedade e
os produtores culturais se reconhecerem como partes integrantes de um mesmo processo e
passarem a dialogar e trabalhar juntos em prol de um ideal comum. É preciso ainda que seja
conhecida e aprofundada a função que cada um destes agentes deve ocupar em uma gestão,
que pretenda promover a cultura como bem social.
Constatamos, ao fim deste trabalho, que o produtor cultural tem vivido em uma
espécie de “círculo vicioso”, que nos remete à analogia do coelho correndo atrás de uma
cenoura amarrada em seu próprio rabo, despendendo a quase totalidade dos seus esforços para
garantir o que um entrevistado chamou de “problema da existência”. Ou seja, seu trabalho é
direcionado para garantir a sua sobrevivência e a de seus próprios projetos, em um cenário
onde sobreviver significa o mesmo que existir como categoria.
Só superando a cultura da sobrevivência é que esse produtor poderá atingir outros
patamares de atuação e reflexão, potencializando sua participação na construção da política
cultural no Brasil, de forma a assumir o lugar de agente reflexivo, propositor e político. Para
que essa superação seja possível, dois aspectos são fundamentais. Um deles é o investimento
em formação especializada, permanente e de qualidade para a atuação na área. Essa formação
passa pela compreensão da atividade, pela elaboração de uma grade curricular adequada com
152
geração de conteúdos específicos, pela oferta regular e em diferentes níveis (Técnico,
Superior e Pós-Graduação), pela regulamentação e por melhores condições de atuação da
profissão.
Outro aspecto a ser considerado é a necessidade de fazer mudanças profundas no
sistema de financiamento à Cultura no País. É preciso alterar a própria concepção de
desenvolvimento da atividade que se pauta por “projetos” finitos e datados, repercutindo não
só no que se realiza, mas também no que se pensa como intervenção cultural. Governo e
produtores têm exaurido esforços para viabilizar a produção de iniciativas temporais e
esporádicas, que precisam incessantemente ser recriadas e renovadas, antes mesmo de serem
consolidadas.
Esse aspecto gera um enorme desperdício de esforços e de capital intelectual,
cultural e potencial criativo em atividades rotineiras e reincidentes. E não favorece a
maturação do sistema, a avaliação adequada do que é realizado e o fortalecimento do sistema
cultural, que em última instância repercute na formação de um País onde se amplie as
possibilidades de educação e consumo da Cultura.
É preciso superar a promoção de uma cultura pautada em projetos, procedimentos
e resultados, onde a burocracia e a perda do potencial criativo e espontâneo da Arte se
apresentam como efeitos colaterais incômodos a serem administrados. Juntos, produtores,
sociedade e Estado precisam encontrar novos espaços e possibilidades de atuação onde seja
possível conciliar os interesses sem o risco de “engessamento” do campo. Há de se criar uma
maior delicadeza na administração da cultura.
Junto com a necessidade dessa gestão diferenciada, a agenda do produtor e do
Estado precisa ser renovada por meio de um processo que também pede políticas consolidadas
e soluções conjuntas. Muito mais do que projetos pontuais, precisamos compartilhar
caminhos e responsabilidades. Construir um sistema de financiamento múltiplo e
diversificado, que minimize a dependência excessiva do Estado, favorecendo a participação
de novos agentes financiadores e a realização e continuidade das boas iniciativas culturais,
seja elas pontuais ou permanentes.
Muito mais do que um mero “proponente” ou executor, o produtor cultural pode e
deve assumir um lugar de destaque no sistema da cultura como importante conector, tradutor
e, como foi dito, agente de desenvolvimento e ativação da Cultura em todos os “cantos e
recantos” do Brasil. É preciso transcender o papel de “fazedor” de eventos e mero proponente
de projetos, em uma busca interminável por recursos. Para isso, seu potencial cultural e sua
expertise precisam ser considerados e, mais ainda, ser estimulados. É imprescindível que esse
153
agente seja compreendido como um elemento fundamental no sistema da Cultura e passe a
atuar como planejador, propositor, formulador, realizador e corresponsável pela dinâmica
cultural que se estabelece no País.
Só assim, ao superar o dilema da existência, o produtor poderá contribuir com
capital intelectual e sua capacidade operativa para o desenvolvimento de uma cultura viva,
diversa e pulsante no Brasil, ocupando seu lugar como interlocutor qualificado e necessário
no processo de amadurecimento da institucionalização da cultura brasileira. Esperamos, com
esse trabalho, ter dado nossa contribuição para que esse processo se realize.
154
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