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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
DEPARTAMENTOS DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
PATRÍCIA MEDEIROS DE OLIVEIRA
FORMAÇÃO E LEGALIZAÇÃO DO FEIRAGUAI:
UMA QUESTÃO DISCURSIVA
SALVADOR
2013
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
DEPARTAMENTOS DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
PATRÍCIA MEDEIROS DE OLIVEIRA
FORMAÇÃO E LEGALIZAÇÃO DO FEIRAGUAI:
UMA QUESTÃO DISCURSIVA
Orientadora: Prfª Drª Rosa Helena Blanco Machado
SALVADOR
2013
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Estudos de Linguagens do
Departamento de Ciências Humanas da
Universidade do Estado da Bahia, campus I,
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Estudos de Linguagens. Linha
de Pesquisa: Linguagens, Discurso e
Sociedade.
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PATRÍCIA MEDEIROS DE OLIVEIRA
FORMAÇÃO E LEGALIZAÇÃO DO FEIRAGUAI:
UMA QUESTÃO DISCURSIVA
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Rosa Helena Blanco Machado (orientadora)
Profº Drº Gilberto Nazareno Telles Sobral
Profª. Drª Palmira Virginia Bahia Heine Alvarez
SALVADOR
2013
3
A Deus,
Por tudo que sempre fez e continuará a fazer em minha vida.
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RESUMO
Este trabalho objetiva analisar, por meio do discurso, o processo de formação e
legalização do Feiraguai (espaço de comercialização ambulante de produtos importados
e/ou contrabandeados) na cidade de Feira de Santana, Bahia. O corpus é constituído por
matérias jornalísticas publicadas nos anos de 1994, 1995 e 1996 do Jornal Feira Hoje.
Além dos jornais, pesquisou-se em textos oficiais da época (atas das reuniões da Câmara
de vereadores) referência ao processo de transferência do Feiraguai, além da procura por
um projeto oficial que autorizasse essa transferência, mas nenhuma menção a isso foi
encontrada nas atas e nenhum projeto oficial foi encontrado em arquivos públicos. A
pesquisa fundamenta-se nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso Francesa e
busca depreender como, por meio de ações discursivas, ocorre uma espécie de
legalização das práticas de contrabando do Feiraguai. O discurso jornalístico classifica as
práticas do Feiraguai como ilegais, ao tempo que apresenta a voz de autoridades políticas
ao se posicionarem sobre processos de transferência e reorganização do Feiraguai, o que,
de certa forma, legitima a existência desse espaço. A análise das matérias investiga a
relação entre as ações de autoridades públicas com respeito ao Feiraguai no período
citado e a legislação vigente referente ao contrabando. Como resultado, o estudo
proporcionou uma análise vasta de estratégias discursivas na construção do sentido
supracitado, passando pela memória discursiva e pelos não-ditos do discurso.
Palavras-chave: Análise do Discurso; Discurso Jornalístico; Feiraguai; Legalização.
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ABSTRACT
This work aims to analyze, through discourse, the process of formation and
legalization of Feiraguai (marketing space menagerie of products imported and / or
smuggled) in the city of Feira de Santana, Bahia. The corpus consists of newspaper
articles published in the years 1994, 1995 and 1996 of the Official Fair Today, years that
are justified because this transfer period of itinerant Feiraguai a street of the city center to
the location, years later would be fixed address these merchants. In addition to the papers,
researched in official texts of the time (minutes of meetings of the Board of Aldermen)
reference to the process of transferring Feiraguai, besides looking for a project officer to
authorize such a transfer, but no mention of it was found in the minutes and no official
project has been found in the public archives. The research is based on the theoretical
principles of French Discourse Analysis and seeks to infer, by means of discursive
actions, is a kind of legalization of the practice of smuggling Feiraguai. The journalistic
discourse practices Feiraguai classifies as illegal, while it features the voice of political
authorities to position themselves on transfer processes and reorganization of Feiraguai,
which somehow legitimizes the existence of this space. The analysis of raw investigates
the relationship between the actions of public authorities with respect to the period
mentioned Feiraguai and legislation relating to smuggling. As a result, the study provided
an extensive analysis of discursive strategies in the construction of meaning above,
through discursive memory and the unspoken speech.
Keywords: Discourse Analysis; Journalistic Discourse; Feiraguai; Legalization.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 08
1. FEIRAGUAI: MAIS UMA FEIRA DA FEIRA
1.1. Feira de Santana: origens ......................................................................... 15
1.1.1. A grande feira e o Feiraguai: histórico e semelhanças ................................. 22
2. O QUE É LEGAL? – BREVE ESTUDO DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS....... 26
2.1. Feiraguai: entre a informalidade e o crime ....................................................... 30
2.2. Feiraguai: origem, localização e história .......................................................... 33
3. OS DITOS, OS JÁ-DITOS, O NÃO-DITOS, OS SENTIDOS APAGADOS: OS
DIZERES SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DO DISCURSO ........................ 37
4. A (DES)ORDEM COMO ARGUMENTO PARA TRASFERÊNCIA DO
FEIRAGUAI: O (DES)ENCONTRO COM O LEGAL .................................................. 45
4.1. Os ditos, os não ditos, os apagados: a transferência como símbolo da
legalização............................................................................................................... 74
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 79
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 84
ANEXOS ......................................................................................................................... 88
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LISTA DE FIGURAS
Figura 01 – Localização de Feira de Santana ......................................................... pag.10
Figura 02 – Mapa atual do centro de Feira de Santana. Em destaque, os locais citados por
Santana (19--) .......................................................................................................... pag.13
Figura 03 – Mapa das vias que cortam Feira de Santana ........................................ pag.15
Figura 04 – Mapa do centro de Feira de Santana mostrando a localização antiga e atual do
Feiraguai ................................................................................................................... pag.23
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INTRODUÇÃO
A cidade de Feira de Santana-Ba é representada por uma significativa variedade
de pessoas e lugares. Por conta do rápido crescimento urbano – e, por conseguinte,
econômico – a cidade foi se delimitando enquanto um espaço propício à aglomeração de
indivíduos com origens e identidades várias. Reconhecida como a segunda cidade em
importância da Bahia, Feira de Santana tem sua história marcada – e iniciada, pode-se
assim dizer – pela locação e crescimento do comércio em suas terras; o que lhe permite
hoje despontar como um dos grandes entrepostos comerciais do interior do estado,
agregando concentração e variabilidade na compra e venda de produtos. Ademais, por
conta disso, a cidade torna-se representativa economicamente por gerar empregos e
possibilitar a circulação de capital, pessoas e mercadorias.
Situada na região do Rio Paraguaçu, a 110 km de Salvador, com cerca de 556 mil
habitantes (CENSO, 2010) e localizada num importante entroncamento rodoviário do
Norte/Nordeste, Feira de Santana expandiu suas fronteiras, estabelecendo relações
comerciais as mais variadas. Expandiu as características primárias da primeira feira-livre
que lhe deu origem1, possuindo hoje comércio vasto e representativo no interior baiano.
Situa-se, assim, pelo atrativo comercial, como significativo reduto de vozes e
personalidades variadas, personalidades essas que acabam por construir a história
política, econômica e social do local em que habitam ou que passaram a habitar, como é o
caso dos viajantes que por aí se “achegaram” e por aí se estabeleceram.
Do início de sua formação até os dias de hoje, não poucas foram as feiras que se
instalaram na cidade; antes, foram se proliferando e dando continuidade à caracterização
da cidade. Entre as mais conhecidas, citam-se a Feira da Estação Nova, a Feira do
Tomba, a Feira da Cidade Nova, a Feira do Centro de Abastecimento, a Feira do Rolo, e
a conhecida Feiraguai, ou o2 Feiraguai, entre outras. Esta última é uma feira que se
destaca pela natureza de seus produtos. O Feiraguai é um comércio de produtos
importados do Paraguai, localizado no centro comercial de Feira de Santana e marcado
pelas por eventuais apreensões de produtos contrabandeados.
1 Feira de Santana originou-se da Fazenda Olhos D’água. Semanalmente era realizada uma missa na capela
da propriedade, o que possibilitou, aos poucos, a formação de uma feira para abastecer fieis e viajantes.
(POPPINDO, 1986) 2 Optei pelo artigo definido “o”, no masculino, pois é assim que a feira é chamada: o Feiraguai.
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Entretanto, alguns detalhes que envolvem a história da formação e
estabelecimento do Feiraguai chamam atenção quando associados a essa característica
dos seus produtos. No início de sua formação (início dos anos 1980), o Feiraguai não
passava de uma espécie de comércio ambulante, realizado ou em carros-de-mão ou em
barraquinhas colocadas aleatoriamente no centro da cidade. Em 1996, entretanto, após
algumas ações políticas, o Feiraguai foi transferido do centro da cidade para uma região
mais afastada, a Praça Presidente Médice. Com o tempo, o Feiraguai se desenvolveu e
conta hoje com uma estrutura fixa, 94 boxes (lojas) segundo consta no site da AVAMFS
(Associação dos Vendedores Ambulantes de Feira de Santana); todo a área é coberta
coberta e protegida por telhas pintadas com as cores verde, vermelha e branca, ou seja, as
cores da bandeira da cidade.
Assim, o estudo em torno do Feiraguai — por realizar negócios com objetos dos
quais se diz que são resultantes de contrabando, trazidos ilegalmente do país vizinho
Paraguai — impõe o exame de algumas questões fundamentais, como a questão da
legalidade. Como visto, no decorrer da sua história, o Feiraguai passou de um simples
comércio de ambulantes, esporádico e informal, para uma prática comercial de sucesso,
de endereço fixo, ainda que marcada pelo contrabando, como registraram os jornais
locais. Ainda assim, sua importância e fama cresceram e o Feiraguai serve hoje como
uma das caracterizações principais da cidade de Feira de Santana, tornando-se inclusive
rota quase que obrigatória para os que vêm de fora e pretendem economizar nas compras
do já tão conhecido comércio feirense.
É cabível, então, a seguinte pergunta: que discursos favorecem a implantação e
instalação do Feiraguai, uma prática comercial de sucesso e ao mesmo tempo conhecida
por sua característica de abrigar a venda de mercadorias que são dadas como
contrabando? Essa é a questão norteadora do estudo aqui apresentado. Dessa forma,
objetiva-se com esse trabalho avaliar os dizeres sobre o Feiraguai em matérias de jornais
locais; discutir os documentos oficiais (atas de reuniões da câmara de vereadores e o
projeto de transferência desses ambulantes) que versam sobre o Feiraguai; e analisar os
discursos sobre o Feiraguai a partir, principalmente, das noções de interdiscurso,
memória discursiva e formação discursiva.
Isso posto, compreende-se que os discursos autorizados a se pronunciar sobre o
estabelecimento e a legalidade desse espaço constroem sentidos e configuram as
possibilidades da existência do Feiraguai. Segundo Pechêux (1997, p.160), “as palavras,
10
expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por
aqueles que as empregam”. Nesse contexto, os jornais assumem importância
fundamental, tendo em vista que anunciam acontecimentos, informando fatos e, ao
mesmo tempo, formando opiniões por meio de juízos de valor, expressões de avaliação,
em formulações lingüístico-discursivas nas quais é visível o papel dos vários mecanismos
lingüísticos, tais como operadores argumentativos do tipo “mas”, “apenas” e etc., dentre
outros recursos para a construção dos argumentos condutores de sentidos favorecidos
pela formação discursiva a que se encontram atrelados os vários sujeitos discursivos que
discutem a questão nessas matérias jornalísticas visitadas e analisadas.
Entendendo que o crescimento acentuado dessa prática comercial se deu após a
retirada dos ambulantes do centro da cidade e sua consequente instalação na Praça
presidente Médici, adotaram-se como corpus desse trabalho as matérias do jornal local de
maior circulação, intitulado Jornal Feira Hoje que versaram sobre o Feiraguai, desde o
início das discussões sobre sua possível transferência da Rua Sales Barbosa para a praça
supracitada, em 1994, até a sua consumação, em 1996; além disso, o corpus planejado
foi composto também pelos documentos oficiais que autorizaram a lotação do Feiraguai
em seu atual endereço, os quais deveriam corresponder às atas de reuniões da câmara de
vereadores no período da transferência bem como pelo projeto que propôs a transferência
do Feiraguai, o denominado Projeto Centro, como ficou conhecido em função
especialmente da imprensa da época.
A Análise do Discurso Francesa, nos moldes pecheutianos, se constitui na
fundamentação teórica abordada, sendo exploradas, principalmente (mas não
unicamente), as noções de interdiscurso, memória discursiva e posições-sujeito. A
abordagem discursiva nos moldes aqui praticados, certamente proporciona uma leitura e
interpretação (dos textos jornalísticos analisados) mais concernente para
compreendermos a espinhosa questão de se investigar a construção e principalmente a
sobrevivência do Feiraguai, a despeito da característica de ilegalidade dos seus produtos.
A partir disso, também são feitas leituras e discussões sobre questões jurídicas, segundo
a literatura do Direito, sobre a qual faremos algumas incursões para um melhor
entendimento das questões que se apresentam.
A Análise do Discurso postula que, se por um lado não há discurso destituído de
ideologia, por outro, não há discurso que não tenha a presença de outros, visto que todos
eles apontam na perspectiva de suas relações com outros discursos. Assim, quando se
11
analisam os discursos em torno do Feiraguai, percebe-se que há uma repetição de
concepções e valores em torno do tema comércio de rua, o conhecido comércio
ambulante, informal. O conceito de interdiscurso assume, assim, papel fundamental para
os estudos de investigação sobre a linguagem humana e, por conseguinte, sobre o
Feiraguai, tendo em vista que é por meio de determinadas repetições que serão criadas a
base da argumentação principal para que o Feiraguai seja transferido e assim, de certa
forma, tenha sua prática legitimada.
Destacar-se-ão ao longo do trabalho as frequentes recorrências à noção de ordem
encontrada na matérias dos jornais analisados. Nas reportagens sobre o Feiraguai e suas
implicações para a sociedade, há um significativo predomínio da opinião de que o
Feiraguai deveria ser retirado do centro da cidade. Na defesa dessa posição, o principal
argumento utilizado é de que o Feiraguai, em seu endereço de origem, causava
desorganização nas ruas do comércio e essa desorganização impedia o progresso e o
desenvolvimento da cidade. Desenvolvimento e Feiraguai — alojado no centro da cidade
— estariam, portanto, em posições divergentes., posto que havia ali uma ordem fora do
lugar, uma desordem. Dessa forma, a retirada dos ambulantes do centro possibilitaria,
entre outros benefícios, o desenvolvimento/progresso econômico feirense. Os dizeres
ordem e progresso estão presentes inclusive na nossa bandeira. Trazidos de outros
lugares, esses dizeres se repetem nos dizeres jornalísticos sobre a exposição da feira em
seu lugar original, arregimentando outros sentidos como que algo está fora da ordem, fora
do legal. Retomados, por meio da repetição e da re-significação, fundamentam a retirada
do Feiraguai do centro de Feira de Santana e sua transferência para outro local.
Para Maingueneau (2002, p.55):
O discurso só adquire sentido no interior de um universo de outros
discursos, lugar no qual ele deve traçar seu caminho. Para interpretar
qualquer enunciado, é necessário relacioná-lo a muitos outros – outros
enunciados que são comentados, parodiados, citados, etc.
O estudo sobre o interdiscurso é indispensável para se compreender a relação
linguagem e sociedade na perspectiva discursiva, tendo em vista que os pressupostos em
torno do interdiscurso dão conta dos sentidos construídos e reformulados por meio da
memória; se constitui para nós um importante auxiliar na compreensão dos dizeres e dos
discursos encontrados nos jornais que vão ser consultados em nossa pesquisa.
Com o objetivo de se compreender a participação do jurídico na existência e
implantação do Feiraguai, discutir-se-á um pouco da legislação em torno do comércio de
12
produtos contrabandeados; discussões em torno da eficácia social que a norma proibitiva
desse tipo de comércio (o artigo 334 do código penal) pode ter sobre determinada
sociedade serão empreendidas. De acordo com Soares (2012), as normas precisam ser
objetivas e construídas com fundamentos histórico-sociais, não negligenciando, portanto,
fatores como desemprego, por exemplo, na hora de sua elaboração e exigência. Dessa
forma, sua legitimidade não pode ser desvinculada dos ideais de justiça cabíveis para
determinada sociedade.
Essas questões que envolvem o jurídico são imprescindíveis para a análise das
relações entre as atividades dos ambulantes e o poder municipal, tendo em vista que se
instala entres estes uma relação hierárquica fundamentada no que é de direito e no que é
de dever de cada cidadão ou grupo social. Essa relação hierárquica que se configura por
uma ordem de comando-obediência provoca uma tensão denominada por Lagazzi (1988)
de juridismo. Segundo Lagazzi (1988, p. 95),
Pensar o cotidiano sem o juridismo, pensar as relações interpessoais
sem a tensão que esse juridismo imputa, é negar o sujeito frente ao
histórico, ao social, ao ideológico, ou seja: é negar o próprio sujeito, já
que numa organização social como a nossa, que se caracteriza enquanto
uma sociedade de Estado, só é possível pensar o sujeito enquanto
sujeito-de-direito, centrado em responsabilidades, direitos e deveres,
inserido na coerção que se faz constitutiva.
Quanto à seleção das matérias jornalísticas para compor o corpus, definiu-se que
seriam escolhidas aquelas publicadas nos anos de 1994, 1995 e 1996, anos que marcam o
início das reclamações dos comerciantes quanto à existência do Feiraguai nas mediações
de suas lojas e o fim dessas reclamações, com a transferência para a Praça Presidente
Médici, em abril de 1996. Quanto ao jornal para seleção das matérias, foi escolhido o
Jornal Feira Hoje, jornal de circulação local e diária. O Feira Hoje foi selecionado por ser
o único jornal encontrado completo, com todas as edições nos anos definidos para a
análise — além de ter significativa repercussão entre os feirenses. Além disso, o Feira
Hoje servia como uma espécie de porta-voz da Câmara de Vereadores local, tendo em
vista que frequentemente eram feitas monções de apoio e de parabéns ao jornal, como é
comprovado nas atas das reuniões da câmara.
Foram visitadas todas as edições publicadas nos três anos envolvidos na pesquisa
(1994, 1995 e 1996), as quais totalizam 32.850 edições. Entre essas, foram selecionadas
apenas as edições que contêm matérias sobre o Feiraguai, num total de 31 produções, as
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quais foram fotografadas e catalogadas conforme data e página da publicação. Após essa
primeira etapa de se selecionar e catalogar as matérias, procedeu-se a uma segunda
seleção, a que seria de selecionar as matérias que fossem mais pertinentes ao objetivo de
pesquisa. Dessa forma, tendo em vista que as matérias discutiam uma decisão que
atingiria, de maneira diferente, dois grupos distintos, o grupo dos comerciantes lojistas e
o grupo dos comerciantes ambulantes do Feiraguai, estabeleceu-se, como critério, a
seleção das matérias que objetivassem, seja no título, seja em seu conteúdo, a exposição
da posição adotada pelos grupos envolvidos, pois assim noções como a de posição-sujeito
poderia ser mais bem explorada nas análises. Entre as matérias que contemplavam esse
critério, 11 foram selecionadas e constituem o corpus final de material jornalístico a ser
analisado neste trabalho.
Quanto às atas das reuniões da câmara municipal, foram lidas e analisadas todas
do ano de 1994, ano de discussão de ações da prefeitura para organizar o centro da cidade
– ou, como ficou conhecido, o Projeto Centro – com o intuito de se encontrar discussões
em torno da temática dos ambulantes e assim analisar argumentos contrários e favoráveis
a esse tipo de comércio. No entanto, a única referência encontrada foi uma informação
relativa às aprovações de ações da Prefeitura Municipal para organizar o centro
comercial, sem nenhuma discussão pontuada ou especificada. Sendo assim, além das
matérias jornalísticas, seriam tinha-se como objetivo de pesquisa analisar documentos
oficiais que, porventura, apresentassem a posição das autoridades diante do tema. No
entanto, em pesquisa realizada nas atas da Câmara de Vereadores, nenhuma referência ao
assunto foi encontrada assim como nenhum projeto oficial está registrado, seja como
aprovado ou apenas proposto, no arquivo público da Câmara Municipal de Vereadores.
O texto final da dissertação conta com a introdução, três capítulos e as
considerações finais. O primeiro capítulo traz informações sobre a cidade de Feira de
Santana e sobre o Feiraguai e sua formação, relacionando elementos das Condições de
Produção do discurso com informações históricas e sociais. O segundo capítulo
constituído da abordagem da fundamentação teórica, onde serão discutidos os conceitos
que servirão como base para análise, a partir Análise do Discurso Francesa pecheuxtiana;
e a discussão em torno da legalidade, a qual será desenvolvida, sobretudo, por meio da
literatura do Direito (SOARES, 2011; NADER, 2012; DINIZ, 1997). O terceiro capitulo
apresenta a análise das matérias de acordo com o referencial discutido no capítulo 2, de
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maneira a apresentar como se dá o estabelecimento do Feiraguai nas matérias
jornalísticas selecionadas.
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1. FEIRAGUAI: MAIS UMA FEIRA DA FEIRA
1.1 Feira de Santana: origens
Feira de Santana é um município brasileiro do estado da Bahia, situado a cerca de
110 km de Salvador. Sua população segundo o censo de 2010 era de 556.637 habitantes.
A cidade encontra-se num dos principais entroncamentos de rodovias do Nordeste
brasileiro, funcionando como ponto de passagem para o tráfego que vem principalmente
do Sul e do Centro Oeste e se dirige para Salvador e outras importantes cidades
nordestinas. Geograficamente, caracteriza-se por se localizar numa zona intermediária
entre o litoral úmido e o interior semi-árido (Figura 1).
Figura 1: Localização de Feira de Santana (ANDRADE, 2012)
De acordo com Santo (2003),
Devido a essa posição intermediária, a cidade de Feira de Santana
recebe precipitações nos meses de abril a junho e nos meses de
setembro a dezembro, o que a diferencia do litoral que recebe suas
precipitações principalmente no primeiro período, enquanto o interior
recebe principalmente no segundo período. Além disso, as
características geológicas e pedológicas da região favorecem o
aparecimento de inúmeras lagoas e nascentes, que serviam como
principal atrativo para fixação humana na região. (SANTO, 2003, p.10)
Graças a esta posição geográfica privilegiada – recebendo chuvas em períodos
diferentes dos da capital; próxima a nascentes; e cruzada por caminhos que levam a
16
destinos vários - e à distância relativamente pequena da capital do estado, Salvador, Feira
de Santana desenvolveu com o passar do tempo um diversificado setor de comércio e
serviços resultante da necessidade de abastecer os vaqueiros e viajantes que por ela
passavam e desejavam, principalmente, abrigo, água e alimento.
Até se tornar uma cidade de grande representação estatal, conhecida como a
segunda maior do estado, Feira de Santana passou por alguns processos históricos. O
primeiro deles foi a criação da Vila no dia 9 de maio de 1833, com a denominação de
Villa do Arraial de Feira de Sant’Anna, território desmembrado de Cachoeira – até então
a região pertencia ao município de Cachoeira –, constituídas pelas freguesias de São José
das Itapororocas (sede), Sagrado Coração de Jesus do Perdão e Santana do Camisão, atual
município de Ipirá.
Quarenta anos depois, em 16 de junho de 1873, a lei provincial nº 1.320 elevou a
vila à categoria de cidade. A partir daí, a denominação da cidade passou por algumas
transformações: inicialmente era chamada de Cidade Commercial de Feira de Santana.
Depois, com os decretos estaduais 7.455 e 7.479, de 23 de junho e 8 de agosto de 1931,
respectivamente, teve seu nome simplificado para apenas Feira. E, finalmente, sete anos
mais tarde, em 30 de novembro de 1938, o decreto estadual nº 11.089 oficializou a
denominação do município para Feira de Santana, como até hoje é chamada. O nome da
cidade faz uma homenagem dupla: aos seus fundadores, por serem esses devotos de
Nossa Senhora de Santana, e à prática de comercialização em feiras-livres já estabelecida
e conhecida na região.
Quanto à fundação da cidade, dá-se ao casal Domingos Barbosa e Anna Brandoa a
prioridade de seu povoamento. Entretanto, essa não é a única visão apresentada sobre o
povoamento de Feira de Santana. Segundo a professora Celeste Maria Pacheco de
Andrade em dissertação que versa sobre a origem do povoamento de Feira de Santana
(ANDRADE, 1990), há três tendências para se estudar a historiografia da cidade:
tradicional dominante3, a intermediária4 e a polêmica5. A tradicional dominante consagra
a figura do casal Domingos e Anna para explicar as origens do povoamento do sertão; a
intermediária acrescenta ao casal citado a figura do fazendeiro Peixoto Viegas no
processo de povoamento; e a polêmica que apresenta uma outra perspectiva de análise do
3 Defendida por Rollie Popino (1969) e Guimarães Cova (1913). 4 Defendida por Pedro Tomás Pedreira (1981) e Raimundo Pinto (1971). 5 Defendida por Godofredo Filho (---) e Monsenhor Renato Galvão (1982).
17
fato: elegem João Peixoto Viegas e sua família como reais fundadores e povoadores da
região de Feira de Santana.
Como não há nesse trabalho nenhuma pretensão de exaustão da historiografia
feirense, adota-se como referência a perspectiva tradicional – mais trabalhada e mais
adotada entre os teóricos – para se representar a história de Feira de Santana. Adota-se,
portanto, as figuras do casal Domingos Barbosa e Anna Brandoa como referência.
De acordo com a perspectiva tradicional, no século XVIII, o casal Domingos
Barbosa de Araújo e Anna Brandoa ergueu uma capela na Fazenda Sant’Anna dos Olhos
D’Água, em homenagem à sua santa de devoção, Senhora Sant’Anna, daí ser dado à
cidade o nome de Feira de Santana. A Fazenda Sant’Anna dos Olhos D’Água, juntamente
com seus entornos, começou a se estabelecer como um ponto obrigatório de tropas,
viajantes e tropeiros procedentes do alto sertão baiano e de outros estados a caminho do
porto de Cachoeira – então a cidade mais importante da Bahia - ou a caminhos de outras
regiões. As necessidades dos viajantes abriram espaço para o surgimento de um cada vez
mais próspero comércio de gado, ao lado de uma feira periódica.
O crescente ritmo de desenvolvimento do povoado exigiu a construção de ruas
largas, onde começaram a ser instaladas casas comerciais em grande quantidade, para
atender à população que crescia somada a chegada de brasileiros e estrangeiros que
adotaram Feira de Santana como moradia. Esse desenvolvimento se deu graças,
principalmente, à feira de gado, fato narrado e descrito por Santana (19--). Segundo a
autora, a origem de Feira de Santana está diretamente relacionada ao comércio, pois
As primeiras casas surgiram no local onde tropeiros e vaqueiros
paravam para descansar. O primeiro ponto de venda de animais,
oficialmente denominado “Campo do Gado” embora aberto e sem
qualquer infra-estrutura, foi no final da Avenida Senhor dos Passos,
onde hoje existe o abrigo Nordestino, Praça Dom Pedro II. Ali
começaram a ser realizados grandes negócios, e a feira cresceu tanto
que o então prefeito, Heráclito Dias do Carvalho, construiu o novo capo
do gado na década de 40, no local onde hoje funciona o Fórum
Desembargador Filinto Bastos. (...)O comércio era de gado e de
pequenos animais (caprinos, ovinos, suínos). A fama da feira do gado
espalhou-se pelo Brasil. Turistas e visitantes de várias partes do país
chegavam às dezenas, todas as segundas-feira (sic). (SANTANA, 19--,
p.7) (ver figura 2).
18
Figura 2: Mapa atual do centro de Feira de Santana. Em destaque, os locais citados por
Santana. (ANDRADE, 2012)
Contudo, o dia de realização da feira nem sempre foi às segundas. Inicialmente,
ainda no período colonial, havia uma coincidência entre o dia da feira-livre e o dia de
celebração da missa na capela fundada por Domingos e Anna: o domingo. Os vendedores
provavelmente devem ter aproveitado a aglomeração de pessoas no dia de celebração da
missa para exporem e comercializarem seus produtos. Entretanto, esse não continuou a
ser o dia escolhido para o dia da feira, passando pela terça-feira e, finalmente, por volta
de 1860, passou a ser realizada às segundas-feiras, dia até hoje marcado como de maior
movimentação no comércio da cidade. Há registros de que, desde 1825, já se fazia notória
a movimentação comercial no então conhecido arraial de Sant’Ána dos Olhos D’Água, a
qual tinha o gado como produto principal. Segundo Poppino (1969), encontram-se três
justificativas para a existência dessa feira de gado:
primeiro porque estava situada no caminho direito entre o Recôncavo e
as imensas pastagens do Mundo Novo, Jacobina e do Médio São
Francisco. Em segundo lugar, porque o povoado estava rodeado de
excelentes pastagens naturais. A terceira razão, de vital importância
para uma zona sujeita a secas periódicas, é que a região era atravessada
por dois rios e por numerosos riachos. Salvo nos períodos de seca
prolongada, o suprimento de água bastava para milhares de cabeças de
gado. (POPPINO, 1969, p.56)
19
Observa-se então que assim como as condições geográficas e sociais de Feira de
Santana proporcionaram a origem e o desenvolvimento da feira-livre, a feira-livre atuou e
exerceu importância primordial para que Feira de Santana despontasse tão logo como
cidade de representação notória entre os entrepostos comerciais da região e que se
transformaria na segunda cidade do Estado, 31ª do país, segundo o Censo 2010, com
vocação para atrair gente de todas as partes do país pela sua localização geográfica e a
hospitalidade do seu povo.
O estabelecimento da feira de gado de Feira de Santana como a mais importante
do estado da Bahia possibilitou ao município o avanço em outras áreas de seu
desenvolvimento, tendo como a mais expressiva a construção de inúmeras vias que a
ligavam a outras localidades. Segundo Poppino (1969), se considerarmos apenas o fim do
século XIX para o início do século XX, tem-se como iniciativas oficiais: 1837 - via
unindo Feira à Morro do Chapéu; 1847-1859 - estrada de Salvador a Feira; 1856 - é
concedido o direito de construção de uma estrada ligando São Félix e Conceição do Coité
à Vila de Santa Izabel de Paraguassu, com ramal para Lençóis, Andaraí, baixa do
Capoeirussu [em Cachoeira] e Feira de Santana; 1858 - estradas entre Feira e Monte
Alegre, e Feira e Tucano; 1876 - inaugurado o tráfego ferroviário normal entre Feira e
Cacheira, com a Companhia de estrada de ferro ‘The Brazilian Imperial Central Bahia
Raiway Company Limited’, mais conhecida com ‘Central da Bahia’; 1883 – as câmaras
municipais de Feira de Santana e Coração de Maria dão início à construção de uma via
para carroças entre os dois municípios; 1898 – autorização para construção de duas
pontes sobre o rio Pojuca, ligando os Municípios de Santo Amaro e Feira de Santana ao
de Coração de Maria; 1912 – início da construção da Ponte Rio Branco, sobre o Rio
Jacuípe, ligando Feira à estrada de Mundo Novo; 1913 – abertura do caminho para carros
de Feira para o distrito de Maria Quitéria, chegando até Pacatu. É possível perceber o
potencial viário da cidade de Feira de Santana por meio da figura 3 abaixo:
20
Figura 3: Mapa das vias que cortam Feira de Santana. (ANDRADE, 2012)
Esse potencial natural para a comunicação entre localidades garantiu a Feira de
Santana, no início de sua história, uma população flutuante, tendo em vista que os que
por aqui passavam estavam quase sempre a caminho de outros destinos, aproveitando a
cidade como ponto de descanso e de aquisição de serviços. Com o passar do tempo, a
oferta de serviços e de recursos naturais atraíram não mais viajantes, mas sim moradores
que viam na cidade uma promissora oferta de empregos e de condições melhores de vida.
Tudo isso implicou numa significativa alteração no contingente populacional da cidade, o
que se confirma segundo as informações prestadas por Poppino (1969).
É esse crescimento populacional vertiginoso e expressivo que resulta na
proliferação de estabelecimentos comerciais na cidade, uma vez que o varejo passa a ser
necessário e indispensável para suprir as necessidades de uma população local. De acordo
com Silva (2000, p.), “diferentes fontes indicam que o número de estabelecimentos
comerciais da cidade passa de 100, em 1875, para 102 em 1881, saltando para 472, em
1916.”. Sobre a existência do comércio em Feira de Santana, afirma Poppino (1969):
Pode-se afirmar que o comércio representa, em sentido amplo, a própria
razão de existir de Feira de Santana. O arraial, que se transformara em
cidade, a Segunda da Bahia, tivera por base o comércio e, em grande
extensão, a sua evolução e a sua prosperidade refletem a importância
crescente das atividades comerciais. A feira semanal, que deu vida ao
arraial, desde logo constituiu-se no ponto alto de todo o comércio. A
maior parte das pessoas que freqüentavam a feira atraíam negociantes,
21
que pouco a pouco se instalavam definitivamente em Feira de Santana.
Muitas das empresas fundavam-se para adquirir as mercadorias do
sertão, enquanto outras se especializavam na venda de produtos
manufaturados e de luxo da Cidade do Salvador. Tais estabelecimentos
preenchiam lacunas e desde o início floresceram todos os negócios por
atacado e varejo.
Pela sua localização nos entroncamentos dos principais estradas entre a
costa e o sertão, era evidente que Feira de Santana progrediria como o
centro comercial líder do interior. O papel vital do comércio na
economia de Feira de Santana ficara patente, em 1873, quando recebeu
o qualificativo oficial de cidade comercial e, de novo, no século vinte,
quando foi batizada de Princesa do Sertão. (POPPINO, 1969, p.306-
307)
Dessa forma, não há como se investigar o percurso da cidade sem se deter nos
caminhos e descaminhos pelos quais passaram as feiras livres – ou não livres – que deram
origem, formatação e sentido ao desenvolvimento da cidade, pois o desenvolvimento da
cidade com o passar dos anos sinaliza que sua história está diretamente ligada às diversas
feiras que nela se estabeleceram e ao comércio profícuo e representativo que aí se ergueu.
No final do século XX, surge o Feiraguai, uma das inúmeras feiras que
constituíram— e constituem — a cidade; em seu percurso, esta feira, objeto de nosso
estudo, enfrentou uma série de objeções e ações políticas contrárias a sua existência. O
Feiraguai se manteve por um bom tempo enquanto feira-livre – feira desenvolvida e
organizada a céu aberto entre os próprios comerciantes e sem organização prévia das
autoridades públicas –, e durante esse período muitas objeções foram feitas a essa
existência com o argumento voltado, sobretudo, para o tipo de mercadoria que era
comercializada: produtos contrabandeados do Paraguai.
Essas objeções, no entanto, não foram suficientes para a extinção do Feiraguai,
tendo em vista que a principal ação desenvolvida pelas autoridades políticas – a
transferência para outro local – diante das constantes reclamações de comerciantes e da
população fortaleceu ainda mais aquele comércio informal, garantindo a ele um endereço
fixo e uma organização sindical que reivindicasse direitos equiparados com o de qualquer
outro comerciário da cidade de Feira de Santana. Também por conta disso – a
transferência –, o Feiraguai deixa de ser uma feira-livre para se tornar conhecido como
um shopping popular.
22
1.1.1. A Grande Feira e o Feiraguai: histórico e semelhanças
Apesar de muitos serem os registros que confirmam a estreita ligação da história
de Feira de Santana com a feira do gado nascida em seu seio, não raro encontram-se na
história da cidade projetos e ações políticas que vão de encontro com os interesses e
sobrevivência das feiras-livres instaladas na cidade. O Feiraguai, por exemplo, apesar de
ter alcançado posto de importância e identidade da cidade, enfrentou problemas
semelhantes aos que feiras mais antigas tiveram que encarar. Problemas muitas vezes não
solucionados e batalhas políticas perdidas em nome de certo ideal de modernização.
Nesse sentido, serão explanados aqui alguns dos problemas encontrados na
história de outra feira importante para a cidade de Feira de Santana – a chamada grande
feira – com o intuito de se perceber semelhanças e repetições nos discursos de
transferência desta com a do Feiraguai. Isso é importante tendo em vista que se percebe
uma estrita ligação entre a ideologia que perpassa os argumentos de transferência de uma
e de outra, uma ideologia que fundamenta a busca pela modernidade e pela ordem em
detrimento muitas vezes das necessidades e condições de sobrevivência de determinado
grupo social.
A grande feira que deu origem à cidade, por exemplo, resguardadas as devidas
diferenças com o Feiraguai, apesar de um símbolo cultural, chegou a seu fim após a
objeção ostensiva também sofrida pelas autoridades locais. Na grande feira, encontrava-
se variadas mercadorias: produtos horti-fruti-granjeiros, peças para eletrodomésticos,
carnes, roupas, sapatos, etc. De acordo com Deocleciano (1984, p. 136),
Cerca de cinco mil e quinhentos feirantes ocupavam a área de oito
quilômetros quadrados da feira, com suas barracas e pontos. A grande
feira era dividida em feiras menores, a exemplo da feira da banana de
um lado da Praça João Pedreira e, de outro, os vendedores de carne-do-
sol e toucinho. A subfeira dos móveis ocupava trecho da Rua Marechal
Deodoro e a da madeira, o final da Avenida Getúlio Vargas. Camelôs e
vendedores de confecções tinham ponto em frente da Igreja Senhor dos
Passos. No interior do Mercado Municipal, farinha, cerâmica, louças,
pássaros, caças, artesanato... cada tipo de mercadoria, cada ramo,
ocupava espaços definidos e constantes. (DEOCLECIANO, 1984,
p.136)
A feira não era apenas mais um local para se comprar produtos de necessidades
primárias ou coisas do gênero, a feira era um acontecimento social e pela sua
23
grandiosidade imagina-se que constituía um evento aguardado por muitos, tendo em vista
que o espaço da feira servia enquanto local de comercialização de produtos e de
confraternização de pessoas; seria, portanto, um acontecimento que agregava além da
sobrevivência – garantida pelo lucro das vendas –, a descontração e lazer para os que nele
se achegavam, seja para comprar, seja para vender, seja simplesmente para apreciar a
agitação proporcionada pelo vai-e-vem de comerciantes e compradores. Ainda segundo
Deocleciano (1986, p.135), a feirinha, outro espaço dentro da grande feira e bem
frequentado por boêmios, “era um conjunto de barracas que vendiam comidas e bebidas
típicas desde a madrugada das sextas-feiras, à luz dos fifós, e ao som de pandeiros,
zabumbas, sanfonas...”.
Entretanto, a alegria dessa feira não duraria tanto tempo. Em 10 de janeiro de
1977, o Projeto Cabana6 (projeto de transferência dos feirantes e barraqueiros da grande
feira para o Cento de Abastecimento) executou seus objetivos e retirou a feira do seu
local de origem, levando-a para um local mais afastado e de diferente dinâmica do seu já
estabelecido espaço: o recém inaugurado Centro de Abastecimento. Essa transferência
veio como resultado de uma série de queixas e acusações desprendidas especialmente
pelo poder público e pelo interesse de particulares. Deocleciano (1986) apresenta quais
foram as principais queixas que serviram como justificativa para que o poder público
realizasse a transferência:
Medieval; anti-higiência; poluidora; incompatível com o grau de
desenvolvimento de Feira de Santana; causadora da evasão de 50% das
rendas; número crescente de feirantes e pouco espaço disponível;
provocava engarrafamento de veículos e problemas para a circulação de
pedestres; atraía ladrões, aumentava o número de roubos e furtos; as
barracas tinham “péssimo” aspecto e faziam concorrência “desleal”,
“ostensiva” e de “baixo nível” com o comércio do centro da cidade;
6 O projeto encaminhado anteriormente por José Falcão da Silva à Câmara Municipal foi reprovado. José
Falcão retornou à Prefeitura e promoveu a ampliação das instalações do Centro de Abastecimento,
inaugurando no dia 2 de fevereiro de 1986, juntamente com a Praça do Tropeiro. O Projeto Cabana
constitui-se de um complexo atacadista varejista situado no bairro Barroquinha e deu origem ao Centro de
Abastecimentos de Feira de Santana. O Centro é considerado o maior entreposto comercial do interior do
Norte/Nordeste. É dividido em dois pavimentos: na plataforma superior, são dois galpões. Um é destinado à
venda de grãos alimentícios e farináceos. Funcionam mercearias, agência bancária, farmácia e lanchonetes,
além de funcionar boxes de artesanato em geral, confecções, calçados, utensílios domésticos e correlatos. A
praça de recreação é destinada à apresentação de capoeira, danças regionais, recitais de literatura e cordel.
Há estacionamento para táxis e veículos particulares.
24
prejuízos para os estabelecimentos bancários e comerciais em geral por
causa da instalação de barracas em frente deles; “péssimo” cartão de
visita para o turismo; tornava “feia” a vida urbana de Feira de Santana...
(DEOCLECIANO, 1986, p.136)
Assim, com esses argumentos, o ideal de modernização ia sendo propagado e a
feira que dera fama e crescimento ao pequeno povoado de Ana Brandoa e Domingos
Barbosa, passava então a ser vista como sinônimo de atraso e de sujeira para as
autoridades locais. Esses argumentos seriam repetidos futuramente para fundamentar a
retirada de outra feira, o Feiraguai, a exemplo da concepção que considerava que a
grande feira proporcionava a diminuição da renda dos comerciantes locais. No caso do
Feiraguai, essa argumentação entra em contradição com outro argumento utilizado para
sua retirada. A contradição se encontra no fato de que muitos comerciantes diziam que o
Feiraguai atraía em demasia pessoas e movimentação para o centro da cidade; ora, tendo
em vista que o objetivo de todo comércio são as vendas, um maior número de pessoas
circulando pelo comércio garantiria, assim, um maior número de clientes para as lojas e,
portanto, de vendas.
De acordo com Orlandi (1994, p.53)
se pensamos o discurso como efeito de sentidos entre locutores, temos
de pensar a linguagem de uma maneira muito particular: aquela que
implica considerá-la necessariamente em relação à constituição dos
sujeitos e à produção dos sentidos. Isto quer dizer que o discurso supõe
um sistema significante, mas supõe também a relação deste sistema com
sua exterioridade já que sem história não há sentido, ou seja, é a
inscrição da história na língua que faz com que ela signifique. Daí os
efeitos entre locutores. E, em contrapartida, a dimensão simbólica dos
fatos.
Os sentidos que esses argumentos suscitam no momento de transferência do
Feiraguai se estruturam, portanto, a partir dessa relação constante entre os sujeitos e sua
história, retomando e re-significando, ao mesmo tempo, esses discursos capazes de
promover mudanças sociais. É nesse contexto que a repetição surge e o interdiscurso se
configura como responsável pela regularização de uma memória coletiva, uma memória
que não se apresenta explicitamente, mas que está regulando dizeres e sentidos. De
acordo com Indursky (2009, p. 2),
(...) se há repetição é porque há retomada/regularização de uma
memória que é social, mesmo que esta se apresente para o sujeito do
discurso revestida da ordem do não-sabido. Em nosso entender, se o
25
discurso se faz no regime da repetição, tal repetição se dá no interior de
práticas discursivas que são de natureza social. São os discursos em
circulação nas práticas discursivas que são retomados e repetidos.
Repetição não é compreendida aí como o simples ato de reproduzir termo a termo,
mas é da ordem do social, da Formação Discursiva a que o discurso é submetido,
considerando suas condições sócio-históricas e ideológicas de produção. Dessa forma,
compreender as repetições que ocorrem entre o processo de retirada da grande feira no
ano de 1977 com a transferência do Feiraguai da Rua Sales Barbosa para a Praça
Presidente Médici em 1996, 20 anos depois, é compreender que os efeitos de sentido
empreendidos por essa repetição estão relacionados com os sentidos pré-construídos
determinados pelo interdiscurso.
26
2. O QUE É LEGAL? – BREVE ESTUDO DOS FUNDAMENTOS
JURÍDICOS
A questão norteadora desse trabalho centra-se no questionamento sobre as ações
do poder.público ao possibilitar a instalação e, de certa forma, legitimar a existência do
Feiraguai, e as possíveis repercussões que tais iniciativas (do mesmo poder público)
engendrariam na população da cidade, haja vista que pesam sobre a prática comercial
exercida por esse grupo de ambulantes, as significações de ilegalidade das mercadorias
comercializadas por eles. E permeando essas questões, outras tantas de natureza jurídica,
apresentam para a compreensão do problema em torno às atividades comerciais do
Feiraguai. Em decorrência disso, nesta seção far-se-á uma pequena discussão sobre o
texto da Lei e o tipo de prática comercial que se imputa ao Feiraguai.
Sendo assim, recorrer-se-á à literatura do direito no sentido de se compreender as
normas jurídicas referentes à legalidade do tipo de prática comercial exercida no
Feiraguai; bem como à noção de juridismo empreendida por Lagazzi (1988), com o
intuito de se discutir as implicações dessa estrutura jurídica para as práticas comerciais
que beiram a ilegalidade.
Segundo Nader (2012, p.83), “as normas ou regras jurídicas estão para o Direito
de um povo, assim como as células para um organismo vivo”. Essas normas devem ser
práticas e possuir por finalidade a orientação da conduta de um povo em determinado
período histórico, não negligenciando, portanto, as mudanças decorrentes do tempo e da
cultura. Assim, define-se norma jurídica por:
Padrões de conduta ou de organização social impostos pelo Estado, para
que seja possível a convivência dos homens em sociedade. São
fórmulas de agir, determinações que fixam as pautas do comportamento
interindividual (...). Em síntese, norma jurídica é a conduta exigida ou
modelo imposto de organização social (NADER, 2012, p.83)
Dessa forma, compreende-se que as normas jurídicas, uma vez descritas como
impostas e exigidas pelo Estado, constituem práticas obrigatórias aos indivíduos
pertencentes à determinada sociedade, sendo estes passíveis de sofrer penas caso não
respeitem as normas (ou regras). Alguns aspectos, entretanto, devem ser observados
quando da criação e exigência da norma jurídica. De acordo com Soares (2011), toda
norma jurídica é regida por atributos que, apesar de controversos na literatura, podem ser
assim resumidos: validade, vigência, eficácia (técnica e social) e legitimidade. No caso
27
aqui estudado, os dois últimos atributos (eficácia e legitimidade) são imprescindíveis para
se compreenderem as questões jurídicas que perpassam o funcionamento do Feiraguai.
O atributo da eficácia refere-se à possibilidade concreta dos efeitos jurídicos de
uma norma. Além disso, figura, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr (2007 apud SOARES,
2011).
como um atributo normativo que se relaciona com a produção concreta
de efeitos, seja porque estão presentes as condições técnico-normativas
exigíveis para sua aplicação, seja porque estão presentes as condições
fáticas necessárias para sua observância, espontânea ou imposta, ou
para a satisfação dos objetivos almejados. (MAURÍCIO, 2012, p.34)
Dessa forma, tem-se duas acepções para se conceber a eficácia: a da técnica,
quando as condições jurídicas estão asseguradas, não sendo necessária a criação de
nenhuma outra norma para que a norma em questão seja aplicada; e a social, que
corresponde à ligação entre a norma jurídica e a realidade social no sentido de que os
dispositivos normativos são assimilados e cumpridos pelos cidadãos na realidade
concreta.
Partindo-se do princípio de que as leis são formas de expressão das normas, como
afirma Soares (2011), pode-se analisar o posto no artigo 334 do Código Penal Brasileiro,
o qual versa sobre contrabando e descaminho, a partir da noção de eficácia técnica e
social. Segue o artigo:
Contrabando ou descaminho
Art. 334 - Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo
ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada,
pela saída ou pelo consumo de mercadoria:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§ 1º - Incorre na mesma pena quem:
a) pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei;
b) pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou
descaminho;
c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma,
utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade
comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que
introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou
que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou
de importação fraudulenta por parte de outrem;
d) adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no
exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de
procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou
acompanhada de documentos que sabe serem falsos.
§ 2º - Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste
artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de
mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.
28
§ 3º - A pena aplica-se em dobro, se o crime de contrabando ou
descaminho é praticado em transporte aéreo.
Como exposto, o artigo 334 apresenta como crime a prática de qualquer atividade
comercial com produtos provenientes de outro país que não tenham passado pela devida
fiscalização, apresentando os documentos e notas fiscais exigidas. No que se refere à
eficácia técnica nada há que desautorize ou impeça o artigo 334 do código penal em sua
aplicabilidade, sendo perfeitamente possível de ser exigido segundo as condições
jurídicas a ele relacionadas, uma vez que não será necessária a criação de nenhuma outra
norma para que esse artigo possa ser aplicado.
Quanto à eficácia social, a qual consiste na “efetiva correspondência da norma ao
querer coletivo, ou dos comportamentos sociais ao seu conteúdo” (DINIZ, 1997, p.407),
observações podem ser feitas, tendo em vista que não raros são os exemplos de feiras já
consagradas que têm o contrabando como marca da identidade de seus produtos. Pode-se
citar a Feira dos importados em Brasília, a Feira dos Importados de Caruaru, a Feira
Hippe em Ipanema, o Centro Popular de Compras de Porto Alegre, o Shopping Popular
de Cuiabá, o próprio Feiraguai em Feira de Santana, entre outras feiras. De acordo com
Kelsen (1998), uma norma que nunca é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que não
é eficaz em uma certa medida, não será considerada como válida, pois um mínimo de
eficácia é a condição de sua validade.
O outro atributo das normas jurídicas a ser analisado é o da Legitimidade, o qual
“designa a correlação da norma jurídica com o valor socialmente aceito de justiça. A
norma jurídica é considerada legítima quando a maioria da sociedade a considera justa,
em dadas circunstâncias histórico-culturais” (SOARES, 2011, p.35). Nesse aspecto, cabe
questionar a suposta ligação entre direito e justiça: será que tudo atribuído como de
direito a determinado grupo ou pessoa é, de fato, justo? A correlação entre esses termos
nem sempre se dá de maneira uniforme e depende de uma série de fatores histórico-
sociais. Para Lagazzi (1988, p.39)
sem a legitimação, o poder não se exerce e, para conseguir legitimar-se,
‘o poder necessita recobrir-se de atributos como justiça, moral, religião
e outros valores culturais que definem ‘finalidades’ aceitáveis, assim
como as ‘responsabilidades’ daqueles que exercem o poder.
Dessa forma, compreende-se a importância do ideal de justiça, visto que esta
confere ao direito a própria razão de existir, e que o direito deve ser justo ou, caso
contrário, não teria sentido a obrigação de respeitar os seus comandos normativos
29
(SOARES, 2012). Nesse sentido, cabe questionar se as normas jurídicas que proíbem o
contrabando levam em consideração as circunstâncias histórico-sociais que o
fundamentam.
É notório, portanto, que o código penal considera como crime a ação de
contrabando, sendo, inclusive, prevista pena por lei. Assim, por que esse tipo de prática
comercial, apesar de ilegal, continua a existir e a se proliferar nas mais diversas cidades
brasileiras? Em que condições ela surge, negando normas jurídicas e resistência política?
E mais: por que a proibição continua a existir mesmo com tanta resistência? Que sentidos
essa lei adquire diante de tal situação?
Por meio da ilusão de ser o autor de seu dizer, o homem cria normas e estabelece
direitos, acreditando que estes sejam oriundos de uma raiz natural que levaria a uma boa
convivência interpessoal dentro de uma sociedade específica; “esse conjunto de normas
coloca-se como ‘lógico e necessário para organizar as relações entre as pessoas’, não nos
deixando perceber que ‘essas relações já se encontram organizadas em outro lugar’, ou
seja, no modo de produção” (LAGAZZI, 1988, p.41). Dessa forma, a existência do artigo
334 justifica-se não por um ideal de justiça, no qual as pessoas seriam privilegiadas por
relações interpessoais saudáveis; mas justifica-se por sua finalidade financeira: a
arrecadação de lucros para o Estado por meio dos impostos e da burocracia imposta.
Ainda segundo Lagazzi (1988, p.41),
A lei está calcada na indeterminação e por isso ela adquire a
generalidade necessária para se aplicar a todo e qualquer cidadão.
Teoricamente, ‘a lei deve mostrar-se como estando acima dos interesses
pessoais ou de grupos’ (Orlandi, 1986a), pronta para ser aplicada a todo
e qualquer infrator.
Assim, o Direito acaba com as singularidades dos indivíduos por meio da máxima
de que todos os homens seriam iguais perante a lei, tendo em vista que os direitos e
deveres são formulados para garantia da comunidade, do grupo, e não para o sujeito
singular. Daí fatores sociais como desemprego, altos impostos, excessiva burocracia,
entre outros não serem levados em consideração na norma que proíbe absoluta e
irrestritamente o contrabando. Nesse processo jurídico
A causa é apagada para que se observe apenas a conseqüência jurídica,
ou seja, apaga-se o social e o histórico para que a ordem se mantenha a
qualquer custo. É esse apagamento que sustenta a formação ideológica-
30
jurídica, possibilitando que a lei se coloque como igual para todos.
(LAGAZZI, 1988, p.42)
É essa tentativa a todo e qualquer custo que se percebe na persistência do arquivo
334 do código penal, tendo em vista que as condições sociais e históricas são apagadas
com o pretexto de se conseguir a ordem, a harmonia interpessoal, o justo. Esse justo,
entretanto, é medido por uma suposta homogeneidade social, excluindo diferenças e
particularidades de grupos e indivíduos, constituindo-se, assim, como um ideal de justiça
falho, sustentando o jurídico como natural e não como o poder legítimo do Estado.
2.1. Feiraguai: entre a informalidade e o crime
O fenômeno da economia informal tem despertado grande interesse de
governantes e da sociedade em geral, esteja esse fenômeno acontecendo em países
desenvolvidos ou não. Parte desse interesse deve-se à significativa participação desse tipo
de prática na economia do país.
Uma das características ressaltada pelas análises sobre o trabalho
informal nos anos 60 e 70 é o seu caráter “transitório”, ou seja, ele é
descrito como um conjunto de atividades de baixa capitalização, não
tipicamente capitalistas, com uso da força de trabalho familiar e que,
com o processo de desenvolvimento e industrialização do país, iria
progressivamente desaparecer, integrando-se ao mercado de trabalho
formalizado e protegido socialmente.
Entretanto, o que marca o trabalho informal nos dias atuais de
“modernidade” neoliberal é que seu caráter transitório se tornou
permanente; o que antes era visto como um caso atípico do mercado de
trabalho urbano, agora passa a ser uma regra do mercado flexível,
transformando-se numa forma de inserção, que engloba a maioria da
“classe-que-vive-do-trabalho”. (DRUCK e OLIVEIRA, 2007, p.01)
Esse trabalho informal expande-se e passa-se a falar em economia informal,
também denominada de economia ilegal, submersa, subterrânea. Sendo assim, a análise
setorial do mercado de trabalho perde completamente o sentido, pois o critério básico de
definição do campo empírico da informalidade é o conjunto de atividades ou formas de
produção e as relações de trabalho que escapam à regulação do Estado, seja esta
tributária, trabalhista ou de qualquer outro tipo. Portanto, o papel do Estado e sua
capacidade de intervir na economia é o eixo central do debate sobre a informalidade.
31
Nesse sentido, é interessante que se esclareça o papel do Estado diante das
questões em torno da ilegalidade das práticas do Feiraguai, tendo em vista que se espera
do poder público uma ação que coadune com a legitimidade garantida a determinadas
ações. Por essa lógica, a ação do poder público baliza-se não apenas nas práticas
consideradas informais, mas naquelas tidas socialmente como ilegais e, portanto, dignas
de sanções jurídicas, como o contrabando e a pirataria. Sendo assim, faz-se
imprescindível que se descrevam as origens do Feiraguai, no sentido de se compreender
como esse espaço ganhou representação além-Feira, embora continue a comercializar
produtos contrabandeados.
Como já descrito, Feira de Santana tem sua história marcada pelo estabelecimento
de muitas feiras-livres em suas terras. Feiras as mais variadas, comercializando os mais
diversos produtos e nos mais diferentes locais da cidade. O Feiraguai é uma dessas feiras
e caracteriza-se pela comercialização de produtos importados, principalmente do
Paraguai. Esses produtos são diversos e caracterizados por baixos preços, o que garante
significativa atratividade aos habitantes locais e de regiões vizinhas.
De fato, um dos grandes fatores responsáveis pelo sucesso e crescimento do
comércio ambulante é o baixo preço dos seus produtos se comparados aos disponíveis
nos estabelecimentos comerciais formais. De eletrodomésticos, passando por roupas e até
alimentos são encontrados em barracas colocadas no meio da rua ou em carros-de-mão,
com qualidade igual ou pouco inferior ao que se encontra nas lojas, assim, consegue-se
comprar qualquer produto por preço bem mais em conta. Levando-se em consideração a
situação econômica do Brasil, considerado o 4º pior em distribuição de renda da América
Latina, as compras no comércio ambulante representam uma saída viável e mais possível
para quem quer e precisa economizar.
Esses preços mais reduzidos são conseguidos por meio de uma série de fatores,
tais como o não custo com a manutenção de um estabelecimento formal (contas de água,
luz, telefone, internet); a ausência de custos com o pagamento de funcionários (salário
regulamentado, férias, 13º salário), tendo em vista que no comercio ambulante ou são os
próprios donos que vendem as mercadorias, ou são pessoas da própria família, ou há a
contratação de poucos funcionários para exercerem a atividade de venda do produto.
Além disso, o fator fundamental para o barateamento dos produtos vendidos no Feiraguai
é o não pagamento de impostos; muitas das mercadorias vendidas são oriundas do
Paraguai e chegam ao Brasil, atravessando a fronteira, burlando a fiscalização.
32
Entretanto, essa feira, o Feiraguai – hoje não mais ambulante, tendo em vista que
já se encontra em local fixo e protegido, o que foi garantido por ações do poder municipal
– destaca-se não só pela acentuada quantidade de consumidores que a procuram para
buscar desde um aparelho eletrônico à uma simples boneca, mas destaca-se
principalmente por esses produtos serem, em sua maioria, contrabandeados, como
indicam as frequentes apreensões de produtos sem nota fiscal feitas pela Polícia Federal
no local (ver imagens 1 e 2 abaixo) . Assim, estudar a trajetória do Feiraguai até o ponto
onde hoje essa feira está instalada significa estudar e se aprofundar nas questões que
envolvem não só o comércio informal no país, como também as questões referentes à
legalidade/ilegalidade que circundam certas práticas comerciais.
Imagem 1: Capa do Jornal Feira Hoje de 13 de Novembro de 1996.
(OLIVEIRA, 2012)
Imagem 2: Matéria do Jornal Feira Hoje publicada em 04 de Dezembro de
1996. (OLIVEIRA, 2012)
33
2.2. Feiraguai: origem, localização e história
Desde 1982 existia na cidade uma feira livre denominada popularmente como
“Feira do rolo”, a qual acontecia com o objetivo de vendas e trocas de produtos usados;
era localizada no centro de Feira de Santana, na Praça da Bandeira, uma das principais da
cidade. Nessa mesma época, houve um assalto ao banco Bamerindus, instalado nessa
região, e o gerente do estabelecimento solicitou à Prefeitura Municipal de Feira de
Santana (PMFS) que retirasse os feirantes daquele local, pois assegurou que a presença
desse comércio próximo ao banco funcionou como principal atrativo para marginais.
Logo em seguida, por conta desse ocorrido, a PMFS transferiu os ambulantes para a Rua
Sales Barbosa ao lado do mercado de Artes Popular, um local mais afastado do banco,
mas ainda no centro da cidade.
Com o passar do tempo, o grande contingente de pessoas que circulavam pela Rua
Sales Barbosa favoreceu a expansão desse comércio e o tipo de mercadoria foi se
alterando conforme a necessidade da população, predominando então artigos trazidos do
Paraguai. Cerca de uma década depois do início dessa feira, em 1994, muitos
proprietários das lojas situadas nas mediações daquele local passaram a reclamar da
presença desses ambulantes. Para os lojistas, os mesmos causavam uma série de prejuízos
aos seus estabelecimentos, argumentando, inclusive, que os feirantes propiciavam a
ocorrência de assaltos no local.
O prefeito em exercício naquele ano, José Raimundo de Azevedo, juntamente com
o secretario da SEDEC, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Everton
Cerqueira, atendendo ao apelo dos lojistas e da Associação comercial, apresentou aos
camelôs a proposta de transferência para a Praça Presidente Médici, comprometendo-se
com a garantia de uma área ampla coberta, com estacionamento, módulo policial,
banheiros e toda a infra-estrutura necessária para esses ambulantes. Segundo o site da
AVAMFS, Associação de Vendedores Ambulantes de Feira de Santana, “o acordo foi
aceito por um Sindicato que se dizia representante dos camelôs”, o que foi considerado
por outros grupos de ambulantes como uma ação sem nenhuma legitimidade, tendo em
vista que os ambulantes não foram previamente consultados. (AVAMFS, 2011).
Apesar da discordância de muitos camelôs, a transferência para a Praça Presidente
Médici foi feita, mas ocorreu aos poucos. Não raras foram as reclamações dos ambulantes
por conta da transferência e o principal argumento era a distância do centro comercial da
34
cidade. No início, cada camelô recebia um espaço marcado no solo medindo 80cm X
1,20m e uma estrutura de barraca de ferro com cobertura de lona para montar e
desmontar todos os dias que custou para cada um o valor de R$ 110,00. A prefeitura deu
o espaço para a transferência, mas não deu as condições para o estabelecimento dos
comerciantes; os mesmos tiveram que desembolsar o valor das suas barracas, além das
dificuldades que enfrentaram no início para a venda dos produtos ocasionada pela
mudança de local. No dia 16 de abril de 1996 finalizou-se a transferência dos
comerciantes da Rua Sales Barbosa para a Praça Presidente Medici (ver Figura 4).
Figura 4: Mapa do centro de Feira de Santana mostrando a localização antiga e atual
do Feiraguai. (GOOGLE MAPS, 2012)
Com o objetivo de organizar o espaço e criar melhorias para os vendedores em
questão, um grupo de ambulantes fundou em assembléia, no dia 19 de Novembro de
1996, uma Associação denominada de AVAMFS - Associação dos Vendedores
Ambulantes de Feira de Santana, e elegeu o também ambulante Nelson Dias de Assis
como Presidente e toda a diretoria. Como nesta época já existia outro Sindicato em prol
da categoria, não foram poucos os desentendimentos entre este e a AVAMFS,
dificultando as negociações com o poder Publico Municipal. Período que se estendeu por
sete anos.
Em 29 de outubro de 2002, ocorreu no local um incêndio de grandes proporções
devido à precariedade das instalações elétricas e a falta de estrutura para funcionamento
35
das barracas móveis instaladas no local. A AVAMFS solicitou uma audiência pública na
Câmera Municipal de Vereadores e os camelôs reivindicaram melhorias para o local. A
PMFS para amenizar os prejuízos dos comerciantes que foram atingidos pelo incêndio
construiu 23 boxes que foram entregues no dia 30 de abril de 2003.
No dia 05 de maio de 2003 foi realizada nova eleição da AVAMFS, reelegendo o
Sr. Nelson Dias de Assis como Presidente. Após reeleito, o então presidente Nelson Dias,
em assembléia, apresenta para os sócios projetos para melhoria dos vendedores. Após a
escolha do projeto, o Presidente Nelson apresentou-o à PMFS, sob a administração do
Prefeito José Ronaldo de Carvalho e o Vice-Prefeito e secretario da SEDEC o Sr.
Antonio Carlos Borges Junior. O projeto previa a construção de mais boxes, seguindo
limite padrão marcado pela PMFS. A partir daí, foi realizada uma nova assembléia para a
construção de toda a Praça já denominada popularmente como Feiraguai, apelido
recebido por conta da origem dos produtos comercializados, junção de Feira (de Feira de
Santana) com “guai” (final da palavra Paraguai, principal origem dos produtos.).
A AVAMFS ficou responsável pela execução do projeto de construção de toda a
praça do Feiraguai. Foi medida toda a área para saber quais seriam os custos. Em
assembléia ficou definido o valor da obra e que cada comerciante teria o seu espaço
cubado, construído e pagaria os custos do seu espaço. Vale salientar que toda construção
foi de responsabilidade única da AVAMFS. Cada associado recebia das mãos do seu
presidente as chaves do seu Box (loja), já construído e pronto para trabalhar e
comercializar suas mercadorias.
Hoje, 16 anos depois da sua instalação na Praça Presidente Médici, de acordo com
dados disponíveis no site da associação comercial que representa a classe, o Feiraguai
conta com 94 boxes, os quais são reformados constantemente. Essa reformas são
oficialmente custeadas pela própria associação que arrecada dos donos dos boxes.
Entretanto, muitos questionamentos são constantemente levantados por
autoridades políticas, tais como: por que a Associação dos Comerciantes do Feiraguai
cobra pelo uso do solo e não repassa nenhum valor para a Prefeitura? Por que o preço do
box de metal é tão abusivo, sendo repassado para os comerciantes por R$7 mil, enquanto
seu preço no mercado é em torno de R$ 1.700? Por que há comerciantes com mais de um
box no local? Por que a prefeitura repassa um valor de R$ 4 mil para a Associação e não
é prestado conta desse dinheiro?
36
Além disso, problemas como falta de espaço e infra-estrutura para os
consumidores que compram no local são problemas citados com freqüência por quem
possui um Box no local. De acordo com o Ivo da Silva Brito, presidente do Sindicame –
Sindicato dos Camelôs de Feira de Santana que representa a classe como um todo e não
apenas os que estão lotados no Feiraguai – e que também trabalha no Feiraguai, desde a
implantação do centro de compras em 1996: “O Feiraguai é, hoje, o metro quadrado mais
caro da cidade, 1m² custa R$ 7.000,00”. (SINDICAME, 2012)
37
3. OS DITOS, OS JÁ-DITOS, O NÃO-DITOS, OS SENTIDOS APAGADOS:
OS DIZERES SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DO DISCURSO
Embora a questão do comércio informal já seja objeto de pesquisas nos campos da
História, Geografia, Antropologia, Sociologia, entre outros, entende-se que o debruçar-se
sobre essa questão a partir dos pressupostos da Análise de Discurso trará novas e
importantes considerações sobre essa prática comercial, tão antiga e tão presente na
formação e crescimento das sociedades. Os dizeres pronunciados sobre essa prática são
anunciados por um sujeito do discurso a partir de determinadas condições de produção,
não podendo se separar o discurso de sua exterioridade, seu contexto histórico e
ideológico.
As condições de produção, portanto, englobam o sujeito e a situação a que este
esteja submetido. Em particular, o trabalho com a formação do Feiraguai pretende, do
ponto de vista discursivo, contribuir para uma reflexão em torno das ideologias que
configuram a postura da população, especialmente a de Feira de Santana, aí incluídos a
mídia local e as organizações políticas responsáveis pelo funcionamento da cidade, frente
às práticas sociais decorrentes desse ambiente comercial. A memória discursiva nesse
contexto é o que aciona e retoma sentidos já construídos, atualizando-os e
ressignificando-os, pois, como afirma Orlandi (2010), memória discursiva é o “saber
discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-
dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra (ORLANDI, 2010,
p.31).
Nesse contexto, a Análise de Discurso (AD) disponibiliza a estrutura teórica para
a compreensão do processo de construção de sentidos em torno do Feiraguai e
especialmente de sua implantação e manutenção até hoje em Feira de Santana. A análise
dos dados de que dispomos e selecionados para tanto, a partir do trabalho com os
conceitos de memória discursiva e de Interdiscurso da Análise do discurso nos moldes
pecheutianos é fundamental para que se compreendam o percurso histórico e as
condições sociais e discursivas que valoraram termos e expressões, contribuindo para a
formação de sentidos e opiniões. Uma vez que na AD “teoriza-se sobre a língua em sua
inseparabilidade com a história, sempre em mudança/movimento, numa relação de
determinação e constituição” (LEAL, 1999, p.22), não há como negar o papel da
38
linguagem na construção discursiva do Feiraguai, construção por si só contraditória,
tendo em vista a não legitimidade das práticas comerciais efetuadas.
As crenças, hábitos, costumes, afirmações etc. que as pessoas manifestam e
expõem todos os dias são analisadas pela análise de discurso como o resultado de
operações ideológicas e discursivas. As declarações em torno do comércio informal como
não poderiam deixar de ser, também decorrem de determinações históricas e ideológicas.
Para a AD, é a ideologia que determina o que é e o que deve ser; melhor dizendo, é a
ideologia, por meio do discurso, que explica porque pensamos de um jeito e não de outro,
porque consideramos algo como certo ou errado, bom ou ruim, agradável ou não, útil ou
inútil etc. Segundo Pecheux (1997, p.160),
É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe”
o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve,
etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado
“queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a
“transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter
material do sentido das palavras e dos enunciados.
Esse caráter material do sentido das palavras não existe em si mesmo e por si só,
antes é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-
histórico no qual essas palavras são (re)produzidas. A partir disso é que se pode dizer que
“as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que as empregam” (PECHÊUX, 1997, p.160). Sendo assim,
diremos que os indivíduos são interpelados em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu
discurso) pelas formações discursivas que representam, na linguagem, as formações
ideológicas que lhe são correspondentes (PECHÊUX, 1997). De acordo com Pecheux
(1997),
Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que
nela se constitui, sua dependência com respeito ao “todo complexo com
dominante” das formações discursivas, intricado no complexo das
formações ideológicas. (PECHÊUX, 1997, p. 162)
Esse todo complexo define-se pela relação entre as diversas Formações
Discursivas, onde uma é dominante, constituindo um complexo de FD, ou seja, o
Interdiscurso. Toda e qualquer declaração que possa ser feita é feita a partir de discursos
anteriores. Esses discursos anteriores são produzidos em determinadas condições e
constituem o interdiscurso; esse, por sua vez, define-se por todo dizer disponível que
afeta o modo como o sujeito significa numa dada situação discursiva.
39
Nas palavras de Orlandi (2010, p.31), o interdiscurso são todos os “sentidos já
ditos por alguém, em algum lugar, em outros momentos, mesmo muito distantes” que se
presentificam num certo discurso. O discurso aí referido é definido por Orlandi (1994)
como aquele que se constrói e se estabelece na relação com o outro, dentro de
determinadas condições de produção e a partir das formações discursivas nas quais os
sujeitos se inscrevem e da historicidade simbólica do dizer dos sujeitos.
Ou seja, se pensamos o discurso como efeito de sentidos entre
locutores, temos de pensar a linguagem de uma maneira muito
particular: aquela que implica considerá-la necessariamente em relação
à constituição dos sujeitos e à produção dos sentidos. Isto quer dizer que
o discurso supõe um sistema significante, mas supõe também a relação
deste sistema com sua exterioridade já que sem história não há sentido,
ou seja, é a inscrição da história na língua que faz com que ela
signifique. Daí os efeitos entre locutores. E, em contrapartida, a
dimensão simbólica dos fatos (ORLANDI, 1994, p. 53).
A partir da compreensão de que a história está ligada a práticas sociais e não ao
tempo cronológico em si, infere-se que a noção de interdiscurso dará conta justamente
dessa historicidade que configura significados e atribui sentidos ao dizer (Orlandi, 1990).
As noções de mesmo e de diferente no funcionamento da linguagem trazidas por Orlandi
(2010) têm papel importante para se entender a construção dessa historicidade. Segundo
Orlandi (2010, p.36), “todo o funcionamento da linguagem se assenta entre processos
parafrásticos e processos polissêmicos”. A paráfrase representa o mesmo, o repetido, o
retomado, aquilo que se repete e que ainda configura sentidos mesmo numa outra
formação discursiva.
Indursky (2009), ao discorrer sobre a origem das discussões em torno da noção de
memória (a construção interdiscursiva por meio do mesmo e do diferente, da paráfrase e
da polissemia), alega ser indispensável discutir também a noção de repetição. Para
Indursky (2009, p.2)
(...) se há repetição é porque há retomada/regularização de uma
memória que é social, mesmo que esta se apresente para o sujeito do
discurso revestida da ordem do não-sabido. Em nosso entender, se o
discurso se faz no regime da repetição, tal repetição se dá no interior de
práticas discursivas que são de natureza social. São os discursos em
circulação nas práticas discursivas que são retomados e repetidos.
40
O conceito de repetição não é compreendido aí como o simples ato de reproduzir
termo a termo, mas é da ordem do social, da Formação Discursiva a que o discurso é
submetido, considerando suas condições sócio-históricas e ideológicas de produção.
Assim, os efeitos de sentido empreendidos pela repetição estão relacionados com os
sentidos pré-construídos determinados pelo interdiscurso numa dada formação discursiva.
Conforme Pêcheux (1990, p. 314), uma formação discursiva "[...] não é um
espaço estruturalmente fechado, pois é constitutivamente `invadido' por elementos que
vêm de outro lugar (...) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas
fundamentais". Sendo assim, o sentido de uma declaração (ideia, palavra, expressão etc.)
se modifica à medida que desliza de uma formação discursiva para outra, pois fatores
(históricos, sociais, culturais etc.) diferentes imprimem à mesma outras delimitações.
Uma formação discursiva, portanto, mantém relação com outras formações discursivas
que podem ser complementares, contraditórias ou excludentes, formando um novo
discurso com novos efeitos de sentido resultantes dessa combinação.
Esse processo de retomada e “esquecimento” constrói o discurso e “a estruturação
do discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória social" (ACHARD,
1999, p. 11). Essa memória é reconstruída na enunciação, a qual deve ser tomada não
como “advinda do locutor, mas como operações que regulam o encargo, quer dizer a
retomada e a circulação do discurso" (ACHARD, 1999, p. 17). A repetição, assim, pode
ser compreendida como uma questão social, pois os sentidos são produzidos na
circulação desses saberes coletivos por meio da memória. A repetição se organiza no
nível interdiscursivo e pode produzir a renovação ou o retorno. A noção de repetição
formulada por Deleuze (2006) considera que o retorno do mesmo, pelo fato de reaparecer
em outro lugar e em outro tempo, deixa de ser o mesmo e passa a ser outro. Esses
apagamentos da anterioridade dos sentidos e da determinação interdiscursiva na
constituição dos dizeres são chamados por Pêcheux de “esquecimento”. O autor divide e
classifica os esquecimentos em duas ordens distintas, mas dependentes uma da outra:
esquecimento nº 2 e esquecimento nº 1.Sobre o segundo esquecimento, Pêcheux afirma:
Concordamos em chamar esquecimento nº 2 ao “esquecimento” pelo
qual todo sujeito-falante seleciona” no interior da formação discursiva
que o domina, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela
se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou
seqüência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que
poderia formulá-lo na formação discursiva considerada. (PÊCHEUX,
1988: 173)
41
Isso que é chamado “seleção” por Pêcheux configura um ato que se dá na forma
de “escolha” de certos enunciados e apagamento do que não é selecionado, mas que não
deixam de estabelecer relação com o que figura no enunciado. Porém, apaga-se para o
sujeito a relação dos enunciados com outros enunciados também formuláveis em dada
formação discursiva. Relação essa que constitui uma rede parafrástica da qual o sujeito se
“esquece”.
A marca especificadora de minha filiação na Análise de Discurso é
minha proposta de considerar a relação contraditória entre a paráfrase e
a polissemia como eixo que estrutura o funcionamento da linguagem (E.
Orlandi, 1996). Aí está posta a relação entre o mesmo e o diferente, a
produtividade e a criatividade na linguagem. Esta é uma relação
contraditória porque não há um sem o outro, isto é, essa é uma diferença
necessária e constitutiva. Mas há outros sentidos nessa contradição que
é preciso compreender. Em termos discursivos teríamos na paráfrase a
reiteração do mesmo. Na polissemia, a produção da diferença. (...)
(Orlandi, 1998, p. 14-15)
Essa repetição que pode produzir o retorno (paráfrase) ou o renovo (polissemia) é
mediada pela ideologia na história. A polissemia retrata o diferente, o novo, o original,
aquilo que representa o deslocamento da significação por meio da ruptura de sentidos
antigos. Paráfrase e polissemia atuam juntas e produzem a tensão na qual os sujeitos e os
sentidos se constroem. É justamente a ideologia que afeta os sujeitos e faz com que eles
atribuam determinados sentidos e não outros. Orlandi (2010, p.37) assim explica esse
jogo:
É porque a língua é sujeita ao equívoco e a ideologia é um ritual com
falhas que o sujeito, ao significar, se significa. Por isso, dizemos que a
incompletude é a condição da linguagem: nem os sujeitos, nem os
sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados. Eles estão
sempre se refazendo, havendo um trabalho contínuo, um movimento
constante do simbólico e da história.
Esses sentidos já ditos por alguém são recuperados ao longo do discurso pelo
sujeito por meio da memória discursiva – ainda que os sujeitos não tenham consciência
disso – e interferem diretamente nas escolhas discursivas. No corpus encontramos
diferentes formulações sobre o mesmo objeto, no caso, sobre o Feiraguai, onde quando
para uns é apenas uma feira de produtos importados, para outros não passa de um
contrabando. Vejamos:
42
Há anos, a feira de produtos importados, instalada no calçadão
da Sales Barbosa, é considerada o “calo” de muitos comerciantes.
(JORNAL FEIRA HOJE, 1994, julho, p.03)
“Não passa de um contrabando”, acusa. Nós pagamos, no mínimo, 12
impostos e eles, que não pagam nada, ficam aí o tempo todo
incomodando. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994, julho, p.04)
Todas essas possibilidades são disponibilizadas pelo interdiscurso através da
memória discursiva do sujeito e sua escolha representará o seu modo de significar.
Segundo Orlandi (2010, p.32), no ato da escolha, “alguma coisa mais forte (...) traz em
sua materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades.”
Assim, para Maingueneau (1997, p.115),
Toda formulação estaria colocada, de alguma forma, na intersecção de
dois eixos: “o “vertical”, do pré-construído, do domínio da memória e o
“horizontal”, da linearidade do discurso, que oculta o primeiro eixo, já
que o sujeito enunciador é produzido como se interiorizasse de forma
ilusória o pré-construído que sua formação discursiva impõe. O
“domínio da memória” representa o interdiscurso como instância de
construção de um discurso transverso (...). A intervenção deste
interdiscurso se revela particularmente nas nominalizações, graças às
quais uma formulação já assertada vem encaixar-se como pré-
construído.
Essa dicotomia entre os eixos vertical e horizontal que Maingueneau (1997)
apresenta, fundamentado nos estudos de Courtine (1984), é elucidada e apresentada
também por Orlandi (2010) através dos termos Interdiscurso e Intradiscurso,
respectivamente: “há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo que é a que
existe entre o interdiscurso e o intradiscurso ou, em outras palavras, entre a constituição
do sentido e sua formulação” (ORLANDI, 2010, p.32). Assim, o dizer só é possível a
partir do dizível, melhor dizendo, só há intradiscurso (formulação) mediante as
possibilidades do interdiscurso (memória), as quais são dotadas de sentido por meio de
sua historicidade.
É bom lembrar que o interdiscurso compreende tudo o que é dito, mas, ao sujeito,
será possível recuperar apenas aquilo que faz parte da sua memória discursiva, pois essa é
limitada e se relaciona diretamente com a Formação Discursiva com a qual o sujeito se
identifique. Segundo Courtine (1981, p. 53), “A noção de memória discursiva diz respeito
à existência histórica do enunciado no seio de práticas discursivas reguladas pelos
43
aparelhos ideológicos”. A compreensão do conceito de memória na AD é fundamental
para se entender a atualidade pela formulação, pois
A memória discursiva seria aquilo que face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem estabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados,
discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do
legível em relação ao próprio legível. (PÊCHEUX, 1999, p.52)
A noção de memória discursiva relaciona-se, assim, diretamente com os
enunciados produzidos no interior das práticas discursivas, reverberando os sentidos
guardados pelo interdiscurso e regulados pelos aparelhos ideológicos. Os sujeitos se
inscrevem nessa memória coletiva para poder significar os discursos. A memória
discursiva não é a memória enquanto função psicológica individual, e sim "(...) sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas" (PÊCHEUX,
1999, p. 52). Pêcheux (1999) considera a memória como estruturação da materialidade
discursiva entendida como dialética da repetição e da regularização.
Nesse jogo discursivo, as escolhas vão sendo feitas pelo sujeito que se identifica,
contra-identifica ou des-identifica com a Formação Discursiva que represente no
momento da enunciação. Esse processo de identificação ou não do sujeito ocasionará o
deslizamento de sentido, a re-significação do dito “no ponto de encontro de uma
atualidade e uma memória” (Pêcheux, 1983/1990, p.17), entre o intradiscurso e o
interdiscurso. Quando esses deslizamentos ocorrem, “eles vêm perturbar a memória
social. E faz-se necessário que esta memória se reorganize para poder acomodar estes
novos sentidos que também passam a se inscrever no interdiscurso (...).” (INDURSKY,
2009, p.7)7.
Recorre-se mais uma vez a Indursky para se diferenciar as noções de Memória
discursiva e Interdiscurso: tanto uma quanto a outra referem-se a uma memória coletiva,
social, que além de não se superporem, também não se confundem. Enquanto a memória
discursiva está circunscrita a uma FD específica, determinada, o interdiscurso representa
algo maior, não delimitável: a memória social referente a todas as FD que compõem o
complexo com dominante (INDURSKY, 2009).
Aquilo que é verbalizado, dito, tem representação evidente dentro do discurso. No
entanto, o que não é dito tem também importância fundamental na construção dos
7 Para Indursky e Courtine Memória discursiva e Interdiscurso são distintos. Pêcheux, no entanto, não faz essa distinção.
44
sentidos. Falar em “efeitos de sentido” é, pois aceitar que se está sempre no jogo, na
relação das diferentes formações discursivas, na relação entre os diferentes sentidos. Para
Orlandi (1933), o silêncio também pode ser pensado como significação, lugar de recuo
necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. O silêncio pode
ser compreendido, assim, também como a iminência de sentido. O dado serve como
direcionamento para se interpretar os sentidos implícitos nesse silêncio, os apagados da
significação.
45
4. A (DES)ORDEM COMO ARGUMENTO PARA TRASFERÊNCIA DO
FEIRAGUAI: O (DES)ENCONTRO COM O LEGAL
A formação do Feiraguai na cidade de Feira de Santana é envolta de uma série de
ações políticas e discursivas que atuaram para o estabelecimento de um espaço físico fixo
para suas atividades comerciais e, por conseguinte, corroboraram para o seu acolhimento
dentro da memória do povo feirense, juntamente com as demais práticas sócio-culturais
desse povo. Como agente direto nessa formação, os jornais locais agiram num momento
decisivo para a formação do Feiraguai tal como é hoje: o de transferência da Rua Sales
Barbosa para a Praça Presidente Médici. Até essa relocação, o Feiraguai não passava de
um grupo de ambulantes identificados pela origem da mercadoria que comercializava, ou
seja, Feiraguai era apenas o nome dado ao grupo de ambulantes que vendiam mercadorias
importadas – ou contrabandeadas, conforme ações policiais assim o demonstravam e
conforme entendimento popular – do Paraguai; após a transferência para a Praça
Presidente Médici, o Feiraguai passa a ser identificado e localizado por um espaço físico,
com endereço completo e de destino certo para os que passam pela cidade a compras, a
passeio ou a trabalho.
Entretanto, o momento que contempla essa transferência não é de sentimentos
amistosos e nem de interesses convergentes, pois se estabelece entre o governo municipal
e os ambulantes do Feiraguai uma significativa disputa: a prefeitura, querendo atender às
reivindicações de lojistas e de uma parte da população, tentava a transferência dos
ambulantes do Feiraguai daquele espaço; e os ambulantes, desejando a permanência e
continuidade do seu comércio, se recusavam a sair.
O principal argumento levantado por parte da população contrária à permanência
do Feiraguai na Rua Sales Barbosa era o mau ordenamento na ocupação do espaço, tendo
em vista que a desordem na posição das barracas impedia inclusive o tráfego livre de
pedestres; já os comerciantes locais, além da alegada falta de organização das barracas,
argumentavam que o comércio ambulante atraía marginais para a região próxima das
lojas, o que espantava clientes; na contramão dessas opiniões, os ambulantes se
defendiam afirmando que a falta de organização era resultado da falta de estrutura e
investimento por parte da prefeitura e que a ação de marginais no local não era de sua
responsabilidade, constituindo essa visão um preconceito com relação aos que praticavam
o comércio informal.
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Essa disputa, no entanto, deve contemplar questões maiores que excedem à
simples relocação desses comerciantes para outro espaço, especialmente as indagações
sobre a legitimidade ou não da existência do Feiraguai, uma vez que, por meio mesmo da
ação policial na cidade, era do conhecimento da população em geral, a natureza ilícita das
mercadorias comercializadas pelos ambulantes do Feiraguai. Nesse contexto de discussão
sobre o destino daqueles ambulantes ali na Sales Barbosa, muitas são as matérias
publicadas pelos jornais de Feira de Santana em torno da temática “Feiraguai”, que
historicizavam esse processo e relatavam os conflitos entre poder público, população e
ambulantes.
Para este trabalho, foram analisadas todas as matérias do Jornal Feira Hoje
publicadas entre os anos de 1994 a 1996. Esses anos correspondem aos anos de boom das
reclamações por parte dos comerciantes lojistas da Rua Sales Barbosa acerca da presença
dos ambulantes do Feiraguai próximos de suas lojas, marcando o surgimento das
discussões sobre permanência ali (ou não) dos camelôs ou/e sua possível transferência e
relocação para outro lugar da cidade de Feira de Santana. Ao todo, nos três anos
enfocados (1994, 1995 e 1996), foram encontradas 31 matérias referentes ao Feiraguai;
dessas, 11 foram selecionadas para estudo. Essa seleção se deu para atender a um critério
de “ouvir”, na medida do possível, as diversas vozes em torno à questão: a população em
geral, os comerciantes lojistas, os ambulantes do Feiraguai e o poder público.
Abaixo seguem as manchetes das matérias publicadas entre 1994 e 1996, nas
quais se enfatiza a diversidade de opiniões quanto à transferência dos ambulantes do
Feiraguai:
MATÉRIA ESCOLHIDA JORNAL/DATA DE
PUBLICAÇÃO
1. Esgoto da Sales Barbosa ainda é grande problema. (Feira Hoje, 18/03/1994)
2. “Feiraguai” causa divergências. (Feira Hoje 17/07/1994)
3. Está impraticável andar na Sales Barbosa (Feira Hoje 24/11/1994)
4. População exige organização na área dos camelôs. (Feira Hoje 24/11/1994)
5. Para lojistas, única saída seria a transferência de todos
os camelôs. (Feira Hoje 24/11/1994)
6. Vendedores admitem: reordenar é preciso. (Feira Hoje 24/11/1994)
7. Prefeitura começa a organizar o comércio dos camelôs
no calçadão. (Feira Hoje, 08/03/1995)
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8. “Feiraguai” já abriga mais de 600 vendedores de
produtos importados. (Feira Hoje, 07/04/1995)
9. Começa o preenchimento das vagas para camelôs. (Feira Hoje, 11/01/1996)
10. Comerciante diz que a saída de camelô melhorou
vendas. (Feira Hoje, 21/07/1996)
11. Ocupação da Sales Barbosa será por sorteio (Feira Hoje, 10/10/1996)
Assim, é cabível se indagar: que sentidos são mobilizados – repetidos,
reelaborados, desconstruídos – em torno da movimentação, permanência/ou não, do
estabelecimento (ou não) dos ambulantes ditos como do Feiraguai ali naquele espaço
central da cidade de Feira de Santana? Que sentidos permeiam a ação dos lojistas em
relação aos ambulantes? E a população em geral? O que diziam da questão – o
estabelecimento ali do Feiraguai e uma possível movimentação deles? — os poderes
públicos, principalmente?
A construção das significações nos dizeres encontrados se dá por meio de
repetição e retomada de sentidos, o que, nos termos de Courtine (2009 [1981]), diz
respeito aos domínios da atualidade, da memória e da antecipação na constituição dos
enunciados.
Analisando nosso corpus, percebe-se uma significativa divisão dos dizeres
produzidos pelas manchetes anteriores e posteriores à transferência dos ambulantes do
Feiraguai. As manchetes de publicação anterior à transferência (de 1 a 9) são construídas,
em sua maioria, a partir da preocupação com o problema de desordem que o Feiraguai
representa; nessas matérias a questão da ordem e da desordem na disposição dos
ambulantes na rua Sales Barbosa, se constitui no grande argumento em torno do qual vão
girar as discussões, os sentidos. As outras duas reportagens (10 e 11) são construídas a
partir de certa inversão do que seria essa desordem, tendo em vista que no momento pós-
transferência, a prefeitura passa a ceder vagas para outros ambulantes interessados em
ocupar a Sales Barbosa, ou seja, a prefeitura passa a querer ocupar com ambulantes um
lugar que até então estava sendo visto como necessitado de desaglomeração. Atitude
contraditória por parte da prefeitura, uma vez que a noção de desorganização atribuída ao
Feiraguai como argumento para sua retirada, estava nas matérias a todo tempo ligada ao
fato de aquele local já se apresentar inchado – espaço que, como apresentado pelas
matérias, deveria estar livre para a passagem dos transeuntes.
48
Esses dizeres, em sua maioria, ligados à desordem que o Feiraguai causava no
centro comercial de Feira de Santana (quando ainda alocados na Rua Sales Barbosa) são
fundamentais para que a transferência dos ambulantes ocorra e um espaço distinto e
distante do local inicial firme-se enquanto espaço fixo e próprio para o estabelecimento e
crescimento do Feiraguai – na praça Presidente Médici.
Assim, a problemática em torno desse comércio informal profícuo e de
crescimento surpreendente na cidade, o Feiraguai, em boa parte das discussões feitas pelo
Jornal Feira Hoje se restringe à desorganização causada por esses ambulantes, posição
que seria defendida pelos comerciantes lojistas e pela população em geral. Em todas as
matérias analisadas, a ideia de (des)organização se apresenta e se põe como eixo da
problemática, como se vê nos dizeres das reportagens abaixo:
A desorganização na distribuição dos ambulantes na rua contribui para
que acidentes aconteçam. (FEIRA HOJE, 18 de abril, 1994, p.03)
A única coisa que falta é uma maior organização da categoria (...).
Hoje, ninguém consegue comprar nas lojas da Sales Barbosa, pois o
local está intransitável. (FEIRA HOJE, 1994, 17 de julho, p.03)
A população de Feira de Santana reage contra a desorganização em
que se encontra um dos principais trechos do comércio da cidade, o
calçadão da Sales Barbosa. (FEIRA HOJE, 24 de Novembro de 1994,
p.04)
É bom retirar, porque virou uma bagunça e não está permitindo que as
pessoas andem por aqui. (...) Está muito desorganizado. (FEIRA HOJE,
24 de Novembro de 1994, p.04)
Alguns comerciantes são mais contundentes e acham que uma
organização pode permitir a permanência dos ambulantes no local.
(FEIRA HOJE, 24 de Novembro de 1994, p.04)
Vendedores admitem: reordenar é preciso. (FEIRA HOJE, 24 de
Novembro de 1994, p.04)
Valmir Araújo Costa, há seis meses no local, disse ser impossível a
colocação de mais barracas ao longo da rua Sales Barbosa. “Lá não dá
para mais ninguém”. (FEIRA HOJE, 08 de março de 1995, p.05)
As mudanças já estão aos poucos sendo introduzidas, a exemplo do
processo de reordenamento de alguns setores que abrigam camelôs no
centro da cidade. (FEIRA HOJE, 07 de abril de 1995, p.04)
Délia Santiago, proprietária de uma loja de confecções, disse que o
congestionamento com os ambulantes era tão grande que dificilmente
um cliente chegava até a sua loja. Mas ela ainda vê muita bagunça na
Sales Barbosa. (Feira Hoje, 11 de janeiro de 1996, p.03)
49
Para o reordenamento dos camelôs, a Secretaria de Desenvolvimento
Econômico aguarda apenas as mudanças estruturais que serão feitas no
calçadão da Sales Barbosa. (Feira Hoje, 21 de julho de1996, p.04)
O calçadão da rua Sales Barbosa (...) começa a ser recuperado essa
semana. (...) o objetivo da obra é proporcionar maior comodidade aos
transeuntes e aos camelôs que serão instalados no espaço. (FEIRA
HOJE, 10 de outubro de 1996. p.03)
Esta ideia de ordem/desordem, organização/desorganização está de alguma forma
relacionada com os projetos de progresso e desenvolvimento da cidade, sendo feita
incessantemente uma oposição entre desorganização dos ambulantes e desenvolvimento
da cidade, nas reportagens. De um lado, portanto, estaria a presença dos camelôs do
Feiraguai no centro da cidade, causando desorganização, desordem; de outro, estaria o
progresso e o desenvolvimento da cidade de Feira de Santana, como objetivos a serem
perseguidos, representados pela organização, limpeza das ruas e por uma suposta
modernização do centro comercial.
Assim, o que determina a escolha do termo desorganização e seu campo
semântico para referir ao agrupamento que fazem os ambulantes ali situados? Que
sentidos se manifestam na (re)utilização desses termos? Quais são as condições
históricas, sociais e discursivas que atuam na construção da noção de ordem referenciada
nas matérias?
Esses sentidos produzidos ressaltam posicionamentos, resgatam ideologias e
ratificam e constroem concepções num processo contínuo de renovo e de retomada
(Orlandi, 2010). Esse processo de retorno e de renovo constitui uma memória discursiva
específica, fundamental na emergência de sentidos, pertencente ao Interdiscurso.
De acordo com Pechêux (1988, p.163) “a interpelação do indivíduo em sujeito de
seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o
domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito)”. Essa identificação com a
Formação Discursiva é o que se reconhece como forma-sujeito.
Nas matérias jornalísticas analisadas, nas quais se pode depreender as diferentes
vozes em torno à questão da presença e atuação dos feirantes do Feiraguai no espaço da
rua Sales Barbosa, podem-se identificar diferentes posições discursivas, determinadas
por distintas Formações Discursivas (FD) relacionadas á presença dos ambulantes
naquela área. Nesse sentido, é possível a identificação de duas FD: a FD que representa o
50
domínio do saber em defesa da permanência dos ambulantes no centro da cidade e a FD
que representa a defesa da retirada, da transferência desses ambulantes para uma área
mais afastada. Essas formações são a todo tempo reclamadas pelas matérias. São
perceptíveis aí os dizeres que representam uma ou outra FD, seja como favorável á
permanência no local dos ambulantes; seja como contrária à permanência dos ambulantes
no calçadão e favorável á sua transferência para outro local.
Nos desdobramentos dos estudos sobre FD e forma-sujeito, Pêcheux (1988) indica
que a unicidade do sujeito é da ordem do imaginário, tendo em vista que será sempre
possível a esse sujeito negar a formação discursiva a que esteja submetido e produzir
outros sentidos, divergentes ou não com a mesma.
Essa segunda modalidade consiste, então, em “uma separação
(distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta...)”8 em
relação aos saberes da forma-sujeito, conduzindo o sujeito do discurso a
contra-identificar-se com a forma-sujeito da formação discursiva que o
afeta. E é esta modalidade de tomada de posição que coloca o sujeito do
discurso na posição de “mau sujeito”, vale dizer, aquele que se permite
duvidar, questionar os saberes e não simplesmente reduplicá-los (...)
(INDURSKY, 2008, p.4)
Nas matérias em análise, não raro encontra-se o mau-sujeito; esse capaz de não só
se distanciar, como também de contra-identificar-se com sua formação discursiva
original. É assim, como mau-sujeito portanto, que são analisados, por exemplo, os
sujeitos camelôs do Feiraguai que julgam seus companheiros – e a si próprios, por assim
dizer – como responsáveis pela desorganização e atraso do comércio de Feira de Santana.
Na matéria de 24 de Novembro de 1994, por exemplo, encontra-se a fala de um camelô:
É bom retirar, porque virou uma bagunça e não está permitindo que as
pessoas andem por aqui. (FEIRA HOJE, 24 de novembro1994, p.04)
Nessa fala, é visível o posicionamento contrário de um dos ambulantes com
relação à permanência na Rua Sales Barbosa, contrariando a posição adotada por sua
classe de que os ambulantes deveriam permanecer na Sales Barbosa. Para além da análise
de mau-sujeito, compreende-se que este sujeito se desidentifica com a FD, aproximando-
se então a outro domínio de saber; isso pode ser visto nos dados relativos à FD favorável
à retirada dos camelôs.
8 (idibid., p.215)
51
Do mesmo modo, num processo de desidentificação, estão alguns sujeitos donos
de lojas ou lideranças locais que não se opõem à permanência dos ambulantes no centro
comercial, divergindo da tomada de posição da sua classe, a exemplo do que ocorre na
mesma matéria do mês de novembro de 1994, quando se expõe a fala de um comerciante:
Acho que não devem ser retirados. É só fazer uma reorganização porque
está muito bagunçado.” (JORNAL HOJE, 24 de novembro de 1994,
p.04)
Partindo-se da Formação Discursiva contrária à transferência, identifica-se na
história, especialmente na de Feira de Santana, uma progressão de acontecimentos que
contribuem para a memória discursiva dessa posição e explicam a constante referência à
“desordem” que o Feiraguai causaria. Em trabalho que versa sobre a modernização e a
violência na cidade de Feira de Santana nas décadas de 1930 a 1950, Souza (2008)
apresenta a cidade baiana como mais um município que seguiu os projetos de
modernização que contagiaram o país desde o início do século XX e que, assim como o
Rio de Janeiro e Salvador, fizeram modificações estruturais em nome de uma organização
européia.
A força do discurso na capital baiana (...) estava pautada na concepção
de que “a modernidade em sua plenitude demandava mais do que
pavimentação e edifícios suntuosos, era preciso promover uma nova
ordem” impor novos comportamentos. A euforia da busca pela
civilização se fez presente nas primeiras décadas do século XX, em
Feira de Santana, já nessa época, maior cidade do interior baiano.
Fenômeno semelhante de valorização dos ideais modernos da capital
federal e estadual se fez notar nesta época. A propaganda de intervenção
pública visando melhoramentos urbanos chegava a essa cidade trazida
pelos dirigentes locais que se apropriavam dos discursos da
modernidade – influenciados por viagens feitas para a capital estadual e
federal e em alguns casos até mesmo para a Europa, onde essas
transformações já estavam em curso. As imagens do período – a
exemplo das fotografias, cartões postais e livros - trazidas por
representantes destes segmentos para presentear aos amigos e familiares
que ficavam, constituíam-se em outro instrumento de apropriação e
disseminação desses discursos. (SOUZA, 2008, p.14)
De acordo com Souza (2008), a tradição e a história da cidade de Feira de Santana
eram deixadas de lado em nome de uma modernização construída às vistas das ações da
política soteropolitana e carioca; ações que se faziam perceber por meio das reformas e
projetos de reestruturação municipal que objetivavam a transformação da cidade
provinciana e “ultrapassada” numa cidade digna do posto de segunda maior do estado,
segundo padrões europeus. Essa intervenção na cidade, da qual fala Eronize Souza
52
(2008), tem reflexos não só nas décadas referidas, mas possui “braços” de sua ação ainda
em meados da década de XX, quando ocorre a extinção em 1977 da antiga e tradicional
feira livre que acontecia no centro da cidade.
Quando se dá a maior parte das discussões sobre o comércio ambulante de
produtos importados – especialmente sobre Feiraguai - no fim da década de 1990, essas
discussões são retomadas e é com base nesse ideal de modernização que muitas ações do
poder municipal se fundamentam, prevendo uma organização do centro comercial de
Feira de Santana, incluindo a transferência do Feiraguai para uma região mais afastada.
A história apresenta certas interseções que mostram concepções e valores
repetidos em situações que, apesar de diferentes, apresentam semelhanças. Assim como o
Feiraguai assume importância fundamental para a história mais recente da cidade, a
grande feira livre extinta em 1977 representava a identidade da região de Feira de
Santana. Deocleciano (1986) apresenta um posicionamento sobre a grande feira que
permite relacionar os feitos (Feira Livre em 1977 e Feiraguai em 1996):
A velha feira livre sobreviveu de teimosa seus bem-vividos cem anos.
Sua história é a saga de resistência contra a pressão de interesses
públicos e particulares. Ao longo da vida da feira, estes interesses
desfiaram um rosário de queixas e acusações contra sua permanência no
centro urbano de Feira de Santana. Queixas, acusações, pressões,
interesses de variada ordem (...) tudo isso era imbuído de poder e de
influência bastante fortes sobre o poder público (...). (DEOCLECIANO,
1986, p. 130)
Da mesma forma que a grande feira livre sobreviveu durante certo tempo, o
Feiraguai permaneceu no centro comercial enquanto as autoridades locais não
conseguiam executar seu projeto de limpeza do comércio. Essa limpeza é permeada por
um discurso que se repete e configura sentidos outrora vivenciados pela população local.
Não há como negar a importância que expressões utilizadas por jornais locais para
representar o Feiraguai assumem em determinado contexto. No caso em questão, a noção
de desorganização evocada para se referir ao Feiraguai é semelhantemente tomada pelos
jornais como foi tomada à época de extinção da grande feira, ou seja, a impropriedade de
permanência da grande feira no centro de Feira de Santana como sinônimo de atraso no
desenvolvimento da cidade.
Tome-se, por exemplo, a matéria publicada em 18 de março de 1994,
“Esgoto da Sales Barbosa ainda é grave problema”:
53
O problema da rede de esgotos na rua Sales Barbosa continua
sendo um dos mais graves e de difícil solução por parte da
administração municipal. As grades de proteção dos caneletes estão
quase todas arrancadas e destruídas, causando transtorno às centenas de
pessoas que circulam diariamente pelo local. A desorganização na
distribuição dos ambulantes na rua contribui para que acidentes
aconteçam, pois as pessoas são obrigadas a passar onde existe (sic) os
buracos.
Quem trafega pela rua Sales Barbosa depara-se com os
problemas: o entupimento da rede de esgoto e a falta das grades de
proteção das canaletes por onde passa a água das chuvas. Os
comerciantes e ambulantes que ali trabalham queixam-se do descaso da
Prefeitura para com o problema e reclamam da ausência de
trabalhadores para fazer a limpeza do local, onde o lixo acumulado
provoca o entupimento das caneletes.
Para o camelô Israel de Jesus, “o jeito é colocar sua barraca de
produtos sobre os buracos para evitar que as pessoas possam se ferir”.
Já as ambulantes Carmem de Freitas Leite e Maria Lúcia Lima dizem
que o problema maior ocorre quando chove, “pois devido ao
entupimento das valas (canaletes) a água acumula e o mau cheiro toma
conta da rua”.
O secretário de Obras do município, Antônio Carlos Pinto de
Almeida, afirma que a destruição das grades de proteção é feita pelos
próprios camelôs, “que agem dessa maneira para jogar lixo dentro dos
canais”. Ele afirma, também, que as grades já foram consertadas e os
canais desentupidos duas vezes e que este trabalho será feito
novamente. “O problema só será resolvido, definitivamente, com a
relocação dos ambulantes para a área do antigo Mercado do Fato, na rua
Desembargador Filinto Bastos”, diz.
A matéria se inicia com a contextualização do problema, apresentando a
dificuldade das autoridades competentes em sua resolução. Ainda no primeiro parágrafo,
a matéria apresenta um responsável por toda a situação: os camelôs, como se percebe no
trecho que diz:
a desorganização da distribuição dos ambulantes na rua contribui para
que acidentes aconteçam, pois as pessoas são obrigadas a passar onde
exite (sic) os buracos. (FEIRA HOJE, 1994, março, p.03).
Assim, apesar da convivência desta posição, posteriormente, com outros
posicionamentos, percebe-se que há de início um direcionamento da matéria que
responsabiliza os ambulantes pelos problemas enfrentados por quem passa ou trabalha
naquela localidade. Essa responsabilização se dá por meio da palavra desorganização,
termo muitas vezes repetido nas matérias que tratam da problemática em torno do
comércio ambulante, como já vimos. A opinião dos ambulantes é requerida e assim se
encontra descrita pela reportagem:
54
Os comerciantes e ambulantes que ali trabalham queixam-se do descaso
da Prefeitura para com o problema e reclamam da ausência de
trabalhadores para fazer a limpeza do local, onde o lixo acumulado
provoca o entupimento das canaletas. (FEIRA HOJE, 1994, março,
p.03).
A matéria discute o problema de um esgoto a céu aberto enfrentado por
comerciantes e consumidores que trafegam pelo centro de Feira de Santana, relacionando
este problema com a questão da ocupação daquela área pelos camelôs – os do Feiraguai.
A fala de um camelô quando diz que “o jeito é colocar a barraca dos produtos sobre os
buracos para evitar que as pessoas sofram” comprova a relação de desconforto e
desordem estabelecida; os ocupantes, os camelôs, são aqueles que atenuam o problema,
livrando o transeunte de um acidente.
O dizer do camelô objetiva a sua defesa, apresentando-se enquanto responsável
por amenizar os problemas estruturais daquele lugar, os quais seriam de responsabilidade
do poder municipal. Entretanto, essa referência à responsabilidade que a Prefeitura
Municipal tem no problema em questão, é reduzida no início e desfecho da matéria, uma
vez que a mesma concepção de ação vândala dos ambulantes é apresentada e ratificada
pela fala do secretário de obras do município, Antônio Carlos Pinto de Almeida, quando
afirma:
a destruição das grades de proteção é feita pelos próprios camelôs, que
agem dessa maneira para jogar lixo dentro dos canais’” (FEIRA HOJE,
1994, março, p.03).
Ou seja, os sentidos que haviam sido construídos de maneira positiva para os
camelôs são desconstruídos, tendo em vista que a tentativa de solução do problema
tomada por eles – colocar a barraca sobre os buracos – passa a significar como uma
tentativa de se amenizar um problema que eles mesmos teriam criado: a desorganização
no local. O jornal aparece como fonte enunciativa que seleciona os dizeres e os imputa, a
partir de sua posição, aos camelôs, aos comerciantes, ao poder público e à população.
A matéria é finalizada com a afirmação do secretário: “o problema só será
resolvido, definitivamente com a relocação dos ambulantes” (FEIRA HOJE, 1994, março,
p.03). A posição do camelô, que com a sua fala apresenta uma nova ordem possível,
apresentando uma possível organização, é negada. O que é retomado é o sentido de
ordenar para progredir, concepção que acompanhou todo o processo de republicanização
brasileira no final do século XIX, quando então se começam a pensar as cidades
55
brasileiras. São os sentidos da ordem/desordem, organização/desorganização das formas
de disponibilização das barracas dos feirantes naquele espaço, uma rua da cidade, que se
impõem nos textos analisados, sendo essa desordem/desorganização que propicia a
situação de caos, tal como se pode depreender das reportagens analisadas. Um caos que
deve ser eliminado. Mas há de se observar também aqui um outro sentido, a relocação,
que surge como solução para a questão da desorganização — mudança daquele grupo de
comerciantes para um outro lugar, sua relocação em outro espaço — abrindo-se assim
uma lacuna, uma deriva para o sentido da transferência dos ambulantes daquele lugar
como possibilidade de resolução do problema colocado. A desordem não será corrigida
no mesmo espaço, mas na relocação das pessoas.
Em situação semelhante a esse contexto de desordem que o Feiraguai estaria
causando na cidade, as autoridades municipais já haviam combatido a desordem da antiga
feira livre utilizando argumentos semelhantes, tais como os vistos em Deocleciano (1986)
de que a feira era medieval e anti-higiênica, que aumentava o número de roubos e furtos,
que causava prejuízos para os estabelecimentos bancários e comerciais em geral e etc.
Nesse artigo, Deocleciano (1986) lista os codinomes dados à feira-livre de meados
do século XX e os argumentos utilizados para sua retirada do centro de Feira de Santana.
A forma-sujeito aí levantada é a que desacredita que a modernização e o crescimento da
cidade possam vir coadunados com o interesse de se permanecer com uma feira-livre no
centro comercial. Essa posição afina-se com a ideologia da Ordem e Progresso que
fundamenta, inclusive, a estrutura política do Brasil. A máxima inspirada nos escritos de
August Comte, segundo o qual o progresso dependeria da ordem. Assim, termos como
“anti-higiênica” e “poluidora”, termos já levantados pelo poder político da década de 70,
repetem-se para que a retirada dos comerciantes do Feiraguai do centro feirense ocorra. O
ideal de modernização mais uma vez atua na estruturação do comércio local, retirando
aquilo que não condiz com ordem e, por conseguinte, progresso e desenvolvimento da
cidade.
É retomado mais uma vez o discurso da nova ordem republicana brasileira,
exposto na bandeira de nosso país, o qual aparece sempre que determinadas condições
surgem, sendo necessário para o restabelecimento da ordem. Há uma correlação
estabelecida entre as situações citadas – Grande feira e Feiraguai. Sentidos mais antigos
são retomados e constituem uma filiação de sentidos que se repetem.
Vejamos agora parte de uma outra reportagem:
56
“Feiraguai” causa divergência
Há anos, a feira de produtos importados, instalada no calçadão
da Sales Barbosa, é considerada o “calo” de muitos comerciantes.
Entretanto, para o presidente da Associação Comercial, Cloves Cedraz,
a única coisa que falta é uma maior organização da categoria. “Os
camelôs deveriam estar num local apropriado, com barracas
padronizadas e facilidade de acesso para o consumidor interessado
naquele tipo de mercadoria”, opina.
Já o proprietário das lojas Mersan Calçados, Luís Henrique
Mercês dos Santos, o “Feiraguai”, é considerado o primeiro de uma
série de problemas enfrentados pela classe no município. “Hoje,
ninguém consegue comprar nas lojas da Sales Barbosa, pois o local está
intransitável. É uma verdadeira imundície”, desabafa. Além disso, o
comércio de Feira de Santana necessita de uma maior disciplina, com
ruas iluminadas e conservadas. “A cidade está carente de algo que atraia
a atenção do consumidor para ir ao comércio à noite. Nossa Feira está
se acabando”, lamenta.
[...]. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994, julho, p.03)
Apesar de o título, “‘Feiraguai’ causa divergências”, sugerir a cobertura de
posições diferentes a respeito da prática comercial que ocorre na Rua Sales Barbosa,
centro de Feira de Santana, o que se vê são sentidos que convergem para a tomada de
uma única decisão: a retirada dos ambulantes do referido local em razão do referido caos
em que eles se instalam, causando transtorno a toda a cidade. O que representa a vontade
de uns e não de todos; no caso, a posição das autoridades políticas e dos comerciantes
lojistas.
De acordo com a matéria, uma visão antiga cultivada pelos comerciantes locais a
respeito do Feiraguai é a de que ele seria um problema a ser solucionado. Nesse sentido, é
fundamental que se compreenda, para além do exposto na matéria, como são expostos
pelas matérias os porquês dessa posição dos comerciantes.
Já no início do texto há a utilização da palavra “calo”, o que faz referência à
expressão popular “calo no sapato” para se referir à feira de produtos importados.
Expressão que assume o sentido de problematizar a presença da feira no centro do
comércio feirense. Pela recorrência intertextual ao ditado popular, “calo” significa aquilo
que machuca, que incomoda, que deve ser tratado, retirado para que o conforto se
estabeleça. Essas significações associadas às afirmações de que o “Feiraguai é
considerado o primeiro de uma série de problemas”, que “o local está intransitável”, que
“(o local) é uma verdadeira imundície”, e que “o comércio de Feira de Santana necessita
de uma maior disciplina” ratificam ainda mais a concepção de infortúnio atribuída ao
57
Feiraguai, tendo em vista que a feira seria responsável pela origem de uma série de
problemáticas para o município.
Apresentando dizer favorável aos ambulantes do Feiraguai – o que é percebido
pela inserção do operador argumentativo “entretanto” no início do período, apontando
para um outra conclusão –, a matéria recorre ao discurso indireto para expor a fala do
presidente da Associação Comercial, Cloves Cedraz, segundo a qual, o que há é uma
necessidade apenas de organização da categoria dos camelôs. Sugere-se ao leitor,
portanto, antes da fala direta do presidente da associação, que a transferência nesse caso
não seria mais necessária, tendo em vista que o problema maior – a desordem – estaria
resolvido. No entanto, logo em seguida é apresentada de maneira direta a fala do
entrevistado:
Entretanto, para o presidente da Associação Comercial, Cloves Cedraz,
a única coisa que falta é uma maior organização da categoria. “Os
camelôs deveriam estar num local apropriado, com barracas
padronizadas e facilidade de acesso para o consumidor interessado
naquele tipo de mercadoria”, opina. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994,
julho, p.03)
Tal discurso ressignifica a noção de ordem anunciada, pois o que inicialmente
parecia indicar apenas uma espécie de “arrumação” dos ambulantes no local onde já
estavam instalados, agora surge como sinônimo de transferência, uma vez que pela fala
do presidente da Associação Comercial “barracas padronizadas” e “facilidade de acesso”
não estão desvinculadas do que ele chama de “local apropriado” para esses camelôs.
Parece haver aqui um deslocamento de sentidos, indicando a passagem de organização
para relocação em um outro espaço (na qual os ambulantes estariam naturalmente
ordenados).
Além disso, a matéria também recorre ao posicionamento de um proprietário de
loja. As formulações linguístico-discursiva das falas do proprietário de loja trazem o
Feiraguai como um dos grandes problemas do município, pois segundo Cloves Cedraz, as
atividades dos feirantes do Feiraguai tornam a Rua Sales Barbosa intransitável,
prejudicando o comércio das lojas. É importante salientar que essa é a única recorrência
feita pela matéria aos envolvidos na situação, não sendo apresentado nenhum
posicionamento ou opinião dos ambulantes sobre o assunto. Além do mais, a associação
aqui evocada não é representativa dos camelôs, mas apenas dos comerciantes lojistas.
58
Mais uma vez focando em dizeres relativos à estrutura do local e sem fazer
referência a outros fatores preponderantes, a capa do jornal Feira Hoje de 24 de
Novembro de 1994, apesar de não citar diretamente o Feiraguai, faz referência ao caos
proporcionado pelas barracas desses ambulantes, trazendo inclusive uma imagem do local
para representar a desordem gerada (ver imagens 3 e 4 abaixo).
Imagem 3: Capa do Jornal Feira Hoje de 24 de Novembro de 1994 com a manchete
Está impraticável na Sales Barbosa.
Imagem 4: Destaque da Capa do Jornal Feira Hoje de 24 de Novembro de 1994,
mostrando a quantidade de barracas instaladas no calçadão da Sales Barbosa.
59
Segue parte da matéria:
Está impraticável andar na Sales Barbosa
A população de Feira de Santana reage contra a desorganização
em que se encontra um dos principais trechos do comércio da cidade, o
calçadão da Sales Barbosa. Nas ruas, apurou a reportagem, os feirenses
cobram da Prefeitura uma medida urgente para solucionar o problema
que se tornou grave: as barracas tomaram conta do local, praticamente
impedindo que as pessoas transitem livremente. Lojistas também
sofrem na pele, pois a clientela tem dificuldades para chegar até os
estabelecimentos. Os próprios ambulantes reconhecem a necessidade
de, ao menos, um reordenamento. Hoje tem uma reunião na prefeitura
para tratar do assunto. Os camelôs podem ser transferidos, dali, informa
o prefeito José Raimundo. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994, novembro,
p.04)
O teor da matéria centra-se especialmente nos sentido de que os ambulantes,
naquele lugar, estariam impedindo um direito do cidadão: o direito de ir e vir, o que se
confirma já com o próprio título: “Está impraticável andar na Sales Barbosa”. Essa
recorrência ao direito do cidadão vem novamente associada à desorganização na
disposição dos ambulantes, sendo citados os problemas enfrentados pelos transeuntes (a
dificuldade de locomoção na região das barracas) e os enfrentados pelos lojistas (a
diminuição do número de clientes que chegam às lojas e claro, com isso, suas
consequências.
É importante ressaltar que esse texto constitui uma matéria de capa para uma série
de reportagens publicadas nessa mesma edição do jornal sobre a situação desses
ambulantes do Feiraguai. A matéria de capa, no entanto, não chama atenção para nenhum
dos problemas possivelmente vividos pelos ambulantes, muito menos para as possíveis
soluções propostas por estes, ainda que superficialmente, tratados pelas matérias do
interior da edição.
Além disso, no fim do texto, aponta-se para uma possibilidade de solução do
problema da aglomeração, informando a ocorrência de uma reunião com representantes
da prefeitura. O que chama a atenção é o fato de que, apesar das discussões girarem em
torno da organização/reordenamento das barracas, antecipa-se a tomada de uma solução
diferente por parte da prefeitura: a transferência dos ambulantes dali para outro local.
No interior da edição desse mesmo dia, outras matérias sobre o assunto foram
publicadas. Entre os três anos de publicações pesquisadas (1994, 1995,1996), esta foi a
edição com maior enfoque na questão dos ambulantes do Feiraguai, tendo sido dada a
60
capa do Jornal e toda uma página no interior da edição com quatro reportagens sobre o
assunto.
A matéria intitulada “População exige organização na área dos camelôs” fez parte
dessa série de matérias que faziam referência à necessidade de transferência para outro
local dos comerciantes ambulantes que estavam instalados no calçadão do centro da
cidade. As outras três matérias sobre o mesmo tema publicadas no mesmo dia, têm como
títulos: “Para lojistas, única saída seria a transferência de todos os camelôs” “Reunião
para definir o assunto hoje entre governo e camelôs” e “Vendedores admitem: reordenar é
preciso”. A matéria “População exige organização na área dos camelôs” diferencia-se por
trazer vozes de diferentes representantes da população sobre o assunto.
Imagem 5: Matéria publicada em 24 de Novembro de 1994 com opinião de lojistas e
ambulantes.
Essa matéria apresenta uma série de comentários da população feirense,
envolvidos ou não com o Feiraguai, acerca desse ambiente comercial. A matéria, que por
sua natureza indicaria a diversidade de opiniões sobre o assunto – tendo em vista que
foram selecionadas pessoas comuns, lojistas e ambulantes para se pronunciarem sobre a
61
situação – acaba já por apresentar em seu parágrafo introdutório as conclusões das
entrevistas que serão em seguida apresentadas:
os clientes cativos e também as pessoas que pouco frequentam o
‘Feiraguai’ (...) defendem em sua maioria a transferência do comércio
para um outro lugar. (FEIRA HOJE, 24 de novembro de 1994, p.04)
Além disso, aponta-se também no parágrafo inicial da matéria, para um possível
deflagrador de toda essa polêmica sobre a permanência ou não dos ambulantes no centro
da cidade: o Projeto Centro9, projeto de organização urbanística da cidade proposto pela
Prefeitura Municipal:
A velha polêmica está de volta agora que a Prefeitura anuncia, no bojo
do seu “projeto centro”, mudanças para aquela atividade informal.
(FEIRA HOJE, 24 de novembro de 1994, p.04)
Em seguida, a matéria apresenta as falas de nove entrevistados: uma sacoleira, três
professores, um garimpeiro, um ambulante de outra região, um comerciante, um gerente
comercial e um taxista, mas nenhum, vale ressaltar, ambulante do Feiraguai. Entre os
entrevistados, seis são favoráveis à retirada dos ambulantes e três são contra. Os que são a
favor apresentam dizeres diversos como a falta de espaço para a circulação de pessoas, a
desorganização das barracas, a facilidade para ocorrência de roubos e o fato de que esse
comércio “ [Isso] é coisa de cidade desarrumada e está denegrindo (sic) a imagem de
Feira de Santana”, conforme um dos entrevistados. Já os que se posicionam contra a
retirada, ressaltam que esse é o meio de sobrevivência desses trabalhadores e que é até
divertido para a população comprar nesse tipo de comércio por ter características
diferenciadas, entretanto, os três contrários à retirada dos ambulantes são unânimes
quanto à necessidade de organização no local.
Partindo-se da lógica adotada pela matéria – de apresentar as ocupações
trabalhistas dos entrevistados – expõem-se a seguir as opiniões elencadas pelo Jornal
Feira Hoje, informando-se a profissão e opinião de cada entrevistado em tabela:
9 Em pesquisa realizada no Arquivo Público da Câmara Municipal de Vereadores de Feira de Santana,
foram verificadas todas as atas das reuniões nos anos compreendidos entre 1994 a 1996, bem como os
Projetos de Lei que tramitaram nesse mesmo período, aprovados ou não. Em todos os arquivos, não foi
encontrado nenhum projeto organizado e nenhuma referência ao que seria o chamado Projeto Centro9 com
objetivos de discussão ou possível aprovação das ações a serem tomadas pela prefeitura. A não existência
de um projeto escrito que verse sobre as mudanças no centro da cidade e, por conseguinte, da alteração de
local do Feiraguai, mais uma vez converge com os não-dizeres sobre a ilegalidade desses ambulantes,
permitindo a transferência sem embates jurídicos.
62
Profissão
Favorável ou não
à
transferência
Principal justificativa
1 Sacoleira Não O serviço é o meio de sobrevivência
dos ambulantes.
2 Garimpeiro Sim O local está desorganizado.
3 Ambulante Sim O comércio no local virou uma
bagunça.
4 Professora (1) Sim Propicia roubos.
5 Bancário Sim Não é bom para a imagem da cidade.
Prejudica o comércio local (lojista).
6 Professora (2) Não É divertido comprar no Feiraguai. Só
precisa se organizar.
7 Gerente
comercial Sim
É necessário um local mais
apropriado para os ambulantes, que
não atrapalhe o comércio local.
8 Professora (3) Sim Um lugar mais apropriado.
9 Comerciante Não
Precisa apenas ser organizado e
deixar mais espaço para o trânsito de
pessoas.
10 Taxista Sim As barracas não permitem o acesso
às lojas.
As falas acima identificadas podem ser analisadas a partir de sua formação
discursiva e ideológica, tendo em vista que o sujeito aqui colocado é aquele que não está
na origem do dizer, pois é afetado pessoal e socialmente. “Na constituição de sua psiquê,
este sujeito é dotado de inconsciente. E, em sua constituição social, ele é interpelado pela
ideologia.” (Indursky, 2008, p.2). Nesse sentido, o sujeito toma posições que coadunam
completamente ou não com a FD discursiva que o domina. De acordo com Pecheux
(1988, p.172)
a tomada de posição resulta de um retorno do ‘Sujeito’ no sujeito, de
modo que a não-coincidência subjetiva que caracteriza a dualidade
sujeito/objeto, pela qual o sujeito se separa daquilo de que ele ‘toma
consciência’ e a propósito do que ele toma posição, é fundamentalmente
homogênea à coincidência-reconhecimento pela qual o sujeito se
identifica consigo mesmo, com seus ‘semelhantes’ e com o ‘Sujeito’.
Como já visto, o sujeito do discurso pode assumir, segundo os estudiosos, três
posições diferentes em relação á forma – sujeito da formação discursiva, constituindo o
bom sujeito, o mau sujeito e aquele que se distancia da FD e passa a incorporar uma outra
formação discursiva. O que vemos nesta reportagem pode elucidar bem essas diferentes
tomadas de posição, no que diz respeito ás formações discursivas já referidas e descritas:
63
a FD favorável á permanência dos ambulantes; a FD favorável á sua retirada com
possível transferência para outro lugar.
Tomando os exemplos expostos acima, pode-se afirmar que os exemplos 01, 05 e
07 são exemplos de bons sujeitos, ou seja, exemplos em que a posição tomada identifica-
se com a forma-sujeito da FD. A sacoleira (exemplo 01) tem profissão semelhante a dos
comerciantes do Feiraguai, vive da venda informal de seus produtos e compartilha uma
realidade de dificuldades financeiras e imposições trabalhistas também vivida pelos
ambulantes citados. O seu dizer sobre “o meio de sobrevivência dos ambulantes” ratifica
sua posição ressaltando o serviço não só como algo a ser permitido, mas que é
indispensável para a vida dos camelôs envolvidos. É de se esperar, portanto, por conta da
semelhança ideológica imposta por suas condições de vida, que a sacoleira se manifeste
de maneira favorável à causa dos ambulantes do Feiraguai, o que de fato ocorre na
matéria.
Além do dizer da sacoleira, os dizeres do bancário e do gerente comercial também
revelam superposição entre o sujeito do discurso e o sujeito da formação discursiva.
Dentro das justificativas expostas para concordarem com a saída dos ambulantes, tanto o
bancário quanto o gerente comercial referem-se à possível melhoria que essa ação traria
para o comércio local. Percebe-se, então, que há aí nos dizeres apresentados bons
sujeitos, os quais apresentam por meio do discurso posições que corroboram com suas
respectivas formações discursivo-ideológicas.
Já nos exemplos 03 e 09, no entanto, o que se vê são os maus sujeitos, aqueles
que, apesar de afetados por dada formação discursiva, acabam por se contra-identificarem
com a forma-sujeito da FD. O dizer do ambulante vai de encontro à formação discursiva
que propõe a permanência dos ambulantes no local. Talvez se esperasse em suas palavras
que ele aderisse à ideia da permanência (e a garantia do trabalho) dos ambulantes, e que
não desejasse a transferência. Já no exemplo 09 é no dizer do comerciante que se
encontra um exemplo de mau sujeito; a formação discursiva o afeta ideológica e
subjetivamente, como exposto nos casos acima (exemplos 05 e 07), espera-se, então, que
o comerciante seja favorável e não contrário à transferência dos ambulantes daquele
espaço.
A próxima matéria a ser analisada é a “Para lojistas, única saída seria
transferência de todos os camelôs”, também publicada na edição de 24 de Novembro de
1994. Segue abaixo a matéria:
64
Para lojistas, única saída seria transferência de todos os camelôs
Para comerciantes do Calçadão da Sales Barbosa, reordenar,
apenas, não resolve o problema. Eles querem mesmo a transferência das
barracas. Segundo os empresários, as barracas incomodam porque
atrapalham a movimentação das pessoas, além de propiciar assaltos,
uma vez que o grande fluxo de gente facilita a ação de marginais.
Hermelina Magalhães, que administra o comércio do seu cunhado
há 32 anos, vê com bons olhos a mudança. De acordo com ela, muita
gente deixou de freqüentar as lojas daquele local porque não suporta
circular no Calçadão. “Muitas pessoas já foram assaltadas aqui e não
querem mais vir, com medo de serem assaltadas”, conta.
A empresária Antonieta Sarkis, com comércio no Calçadão da
Sales Barbosa há 42 anos, diz que permanência dos ambulantes nessa
área é um grande absurdo. “Não passa de um contrabando”, acusa. Nós
pagamos, no mínimo, 12 impostos e eles, que não pagam nada, ficam aí
o tempo todo incomodando. Daqui a alguns dias, vão colocar suas
barracas dentro do nosso comércio, bradou Antonieta, que acusa o ex-
prefeito João Durval Carneiro de deixar o mercado ambulante “à-toa”.
Ela afirmou até admitir que aquilo “seja o pão de cada dia de cada
pessoas, mas é preciso deixar o passeio livre; do contrário, por onde
vamos circular?, questiona.
Alguns comerciantes são mais contundentes e acham que uma
organização pode permitir a permanência dos ambulantes no local.
Sergio Vitório, por exemplo, sugeriu a retirada “de duas fileiras, a fim
de liberar mais a área. Desse jeito que está não dá nem para andar aqui”,
acrescenta. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994, julho, p.04)
Toda a matéria é direcionada para o sentido de que há uma necessidade real de
transferência dos ambulantes, apresentando as dificuldades vividas pelos comerciantes
lojistas e pela população que frequenta o local, diante da presença dos ambulantes do
Feiraguai. Nesse momento, é retomado e reformulado o sentido até então sempre
levantado para explicar a confusão e possível retirada dos ambulantes: o argumento da
ordem:
Para comerciantes do Calçadão da Sales Barbosa, reordenar, apenas,
não resolve o problema. Eles querem mesmo a transferência das
barracas. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994, julho, p.04)
Vê-se aparecer aqui, de modo explícito, os sentidos relativos à transferência dos
ambulantes e a recusa dos sentidos de permanência no local, ainda que reordenada.
Alguns operadores linguístico-argumentativos se apresentam aí — (reordenar) “apenas”
e (querem) “mesmo” — marcando esses movimentos em direção a conclusão
pretendida, no caso a transferência dos Feiraguai, rejeitando a reordenação no sentido de
uma simples organização no local.
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Na fala da comerciante entrevistada justificam-se os porquês do incômodo dos
comerciantes diante dos ambulantes; justificativa que se apresenta ao longo da matéria
com as informações de que eles incomodam porque atrapalham a movimentação das
pessoas, porque propiciam assaltos, porque facilitam a ação de marginais e etc. Em
“Desse jeito que está não dá nem para andar aqui” direciona-se a leitura da matéria para a
conclusão do texto e a retomada do título “Para lojistas, a única saída seria a transferência
de todos os camelôs.
É nessa matéria também que ocorre, dentre aquelas editadas durante o período de
discussão sobre a localização dos feirantes na Sales Barbosa e antes de sua transferência
para a Praça Médici (dados que constituem o nosso corpus), a única recorrência direta à
origem ilegal das mercadorias do Feiraguai:
A empresária Antonieta Sarkis, com comércio no Calçadão da
Sales Barbosa há 42 anos, diz que permanência dos ambulantes nessa
área é um grande absurdo. “Não passa de um contrabando”, acusa.
Nós pagamos, no mínimo, 12 impostos e eles, que não pagam nada, ficam aí o tempo todo incomodando. Daqui a alguns dias, vão colocar
suas barracas dentro do nosso comércio, bradou Antonieta, que acusa o
ex-prefeito João Durval Carneiro de deixar o mercado ambulante “à-
toa”[...]. (grifos nossos) (JORNAL FEIRA HOJE, 1994, julho, p.04)
Nesta fala de uma comerciante lojista entrevistada, aponta-se para a ilegalidade da
mercadoria com a qual os feirantes do Feiraguai trabalham, como motivo para a sua
relocação; além de dizer que “não passa de um contrabando”, a comerciante reforça o
fato de os ambulantes do Feiraguai não pagarem impostos, de qualquer natureza.
Emergem aí os sentidos de justiça e de igualdade entre os lojistas que comercializam
produtos, grupo do qual os ambulantes não participam; daí não ser considerada justa a
permanência dos camelôs no local.
A matéria de 24 de novembro de 1994 é a próxima a ser analisada é a de manchete
“Vendedores Admitem: reordenar é preciso”. A matéria apresenta a questão do comércio
no Feiraguai pelo olhar das duas posições: contra a retirada e pela permanência dos
camelôs; e a favor da transferência dos ambulantes da Rua Sales Barbosa. Essas opiniões
são divididas em duas colunas: uma primeira, à esquerda, sem indicação do seu conteúdo,
e uma outra, à direita, sendo precedida pelo subtítulo “a favor”. Ademais, a reportagem
vem acompanhada de uma imagem da rua onde estão localizados os ambulantes e a
seguinte legenda: “A posição das barracas no calçadão prejudica bastante o movimento
das pessoas”. Segue a matéria:
66
Vendedores admitem: reordenar é preciso
Se depender dos vendedores ambulantes, não vai haver mudança
alguma no local onde eles estão estabelecidos há vários anos, no
calçadão da Sales Barbosa. Segundo eles, a área já se tornou própria
para aquele comércio e uma mudança desestruturaria totalmente o
mercado. Mas a classe reconhece uma coisa: reordenar é preciso. E se
mostram dispostos a um entendimento neste sentido. Gilvan Pereira
Lima, ambulante, há mais de dez anos, por exemplo, diz ter a impressão
que “se sairmos daqui o movimento vai acabar. E nós temos
compromissos a cumprir”, alega.
Para Helivelton Soares Almeida, no local há mais de quatro anos,
“o lugar tem que ser o calçadão mesmo. Uma mudança causaria uma
‘coladeira’ geral, ou seja, ninguém ia vender mais nada”, acredita. O
ambulante vai mais longe afirma que hoje já não está mais fácil,
“imagine se nos tirarem daqui”, completa.
A vendedora Aparecida Pinheiro Lima também se colcoa contra a
transferência do ponto. De acordo com ela, “o povo está acostumado a
comprar nesse local e não vai atrás de outro, a não ser que seja tão
apropriado quanto a Sales Barbosa”. Aparecida não conseguiu apontar
nenhuma local adequado para comercialização das miudezas e outros
objetos.
A FAVOR
Hoje, é quase impossível transitar naquela área, o que também já
está sendo entendido pelos próprios ambulantes. Roseval Mascarenhas é
um dos vendedores a favor da transferência de barracas. Segundo ele,
não tem condições de continuar na mesma situação. “Isso aqui está cada
dia mais inchado; alguma coisa tem que ser feita, pois até os pais de
família não querem vir aqui. É preciso organizar ou então não será mais
viável.”, argumenta. Helivelton Soares, embora admita não querer sair
do local, confessa que existe muita barraca, “criando bagunça. Acredito
que devam ficar as barracas localizadas nas laterais”, opina o
ambulante.
O presidente do Sindicato dos Vendedores Ambulantes, Joelson
Lefuntes Costa, disse que os vendedores devem se conscientizar da
necessidade da mudança, “mesmo porque, dessa forma, todos estão
sendo prejudicados. É preciso organizar”, definiu. (JORNAL FEIRA
HOJE, 1994, julho, p.04)
Pela organização da matéria – dividida em colunas, sendo uma titulada com “a
favor” – subtende-se que na primeira coluna estejam contidos os dizeres contrários,
apesar de não virem indicados com um subtítulo como ocorre com as posições a favor, à
direita. De início, é exposto que os ambulantes rejeitam a transferência com receio de
uma desestruturação do comércio, de uma redução das vendas.
Entrevistado contrário 1:
Gilvan Pereira Lima, ambulante, há mais de dez anos, por exemplo, diz
ter a impressão que “se sairmos daqui o movimento vai acabar. E nós
temos compromissos a cumprir”. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994, julho,
p.04)
67
Entrevistado contrário 2:
o lugar tem que ser o calçadão mesmo. Uma mudança causaria uma
‘coladeira’ geral, ou seja, ninguém ia vender mais nada. (JORNAL
FEIRA HOJE, 1994, julho, p.04)
Entrevistado contrário 3:
A vendedora Aparecida Pinheiro Lima também se colcoa contra a
transferência do ponto. De acordo com ela, “o povo está acostumado a
comprar nesse local e não vai atrás de outro, a não ser que seja tão
apropriado quanto a Sales Barbosa. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994,
julho, p.04)
A matéria recorre à fala direta de desses três ambulantes para ratificar as posições
contrárias à transferência. É fundamental ressaltar que é a primeira vez que a voz dos
ambulantes do Feiraguai é requerida e apresentada de maneira direta em todo o período
em que o Jornal Feira Hoje se propõe a apresentar a discussão sobre os problemas
gerados pelo Feiraguai na rua Sales Barbosa. Além disso, os ambulantes são apresentados
como “dispostos” para um entendimento concernente à organização do lugar. Os três
entrevistados, no entanto, são unânimes em se posicionarem contrários à transferência e
justificam que a saída do local causaria prejuízos à comercialização de seus produtos.
Em seguida, há a introdução do que seria a posição favorável à retirada dos
ambulantes, o que é feito com a titulação do parágrafo com o “A FAVOR”. A matéria
apresenta essa postura por meio de dizeres de um vendedor – a matéria não deixa claro se
esse é vendedor ambulante ou não – e de um ambulante do local. De acordo com a
matéria, esses dizeres se apresentam condizentes com a ideia de que o local está
desorganizado e, por isso, a transferência dos ambulantes seria necessária. No entanto,
nessa segunda coluna, onde estão os dizeres “a favor”, são encontrados também dizeres
que reforçam a posição contrária à transferência e favoráveis apenas a uma organização
do local, como expresso nas falas de Helivelton Soares. O dizer desse vendedor
ambulante configura sentidos em torno da necessidade de organização e não de
transferência das barracas, o que é reafirmado quando a matéria informa que este
ambulante não gostaria de sair do local.
Helivelton Soares, embora admita não querer sair do local, confessa que
existe muita barraca, “criando bagunça. Acredito que devam ficar as
barracas localizadas nas laterais”, opina o ambulante. (JORNAL FEIRA
HOJE, 1994, julho, p.04)
Nesse sentido, o jornal:
68
a) classifica dizeres que são contrários à transferência como favoráveis à
transferência dos ambulantes do Feiraguai ao titular todo o texto da coluna com o “A
FAVOR”, mesmo havendo nessa coluna opiniões que não opostas à transferência.
b) tem um único sentido em destaque: o favorável à transferência, uma vez que os
dizeres contrários não vêm precedidos de um título “CONTRA”, como ocorre com a
posição divergente.
Ademais, a fala do comerciante entrevistado quando diz “pois até os pais de
família não querem mais vir aqui” direciona a leitura para a interpretação de que o
comércio dos ambulantes do Feiraguai não é bem visto, seja por conta da desorganização
do local, seja por conta da origem das mercadorias. Dizer “pais de família” retoma
sentidos valiosos da memória de uma sociedade ocidental, onde valores cristãos ainda são
imperiosos, inclusive em decisões públicas e políticas; valores como de uma pessoa justa,
correta, honesta, cautelosa e etc. são atribuídos a quem assim for denominado. Dessa
forma, o dito pela matéria perpassa a memória discursiva de quem produz e de quem lê o
jornal, sendo decisivo para corroborar para a construção negativa do Feiraguai naquele
local.
A enunciação desses dizeres, por outro lado, faz suspeitar /levantar sentidos que
não aparecem na mesma passagem e que constituem um mundo de formulações e
sentidos não ditos em relação ao que aí é dito. Ressalta-se que não é dito, por exemplo:
- pois até as pessoas não querem mais vir aqui
- pois até os consumidores não querem mais vir aqui
- pois até os negociantes não querem mais vir aqui
- pois até os outros ambulantes não querem mais vir aqui
- pois até a população não quer mais vir aqui
- etc.`
Saindo da esfera do micro – essa matéria especificamente – e indo para o macro –
o conjunto de todas as matérias publicadas pelo Jornal Feira Hoje a respeito do Feiraguai,
é possível depreender que esse dizer serve como reprodutor e, ao mesmo tempo,
mantenedor de uma dada visão que coaduna com a ideia de retirada dos ambulantes
daquele local, retomando afirmações já ditas em outras matérias sobre o fato de o
Feiraguai “denegrir”10 a imagem da cidade e “prejudicar”11 o comércio local.
10 Termo na íntegra utilizado em outra matéria.
69
A matéria é finalizada com a posição do presidente do Sindicato dos Vendedores
Ambulantes que diz:
os vendedores devem se conscientizar da necessidade da mudança [...].
“É preciso organizar”. (JORNAL FEIRA HOJE, 1994, julho, p.04)
Nesse momento, é compreensível que não há para o presidente do sindicato uma
separação entre transferência e ordem; no caso, para ele, a organização está justamente no
ato de se transferir os ambulantes dali para outro lugar. Na passagem, os efeitos de
sentido apontam para uma substituição da noção de organização para a de transferência, a
tal ponto de se recorrer à conscientização dos feirantes do Feiraguai para esta
“necessidade”.
Em 8 de março de 1995, a prefeitura de Feira de Santana começa a pôr em prática
uma das ações do que seria o “Projeto Centro” com o objetivo de organizar os camelôs no
centro da cidade. Sua primeira ação nesse sentido é retirar os ambulantes que estão em
locais indevidos. Os comerciantes ambulantes que estavam alocados no calçadão em
frente ao Mercado de Arte Popular são os primeiros a serem transferidos. A matéria com
manchete “Prefeitura começa a organizar o comércio dos camelôs no calçadão” apresenta
essa ação da prefeitura ao transferir os comerciantes, antes localizados na Avenida
Getúlio Vargas. A contradição aqui é que esses comerciantes foram transferidos
justamente para a rua que é palco de discussões por conta da presença dos ambulantes do
Feiraguai: a Rua Sales Barbosa.
Essa ação se dá antes mesmo que os comerciantes do Feiraguai sejam relocados
para a Praça Presidente Medici, ou seja, é ordenado que outras barracas sejam alocadas
juntamente com os comerciantes do Feiraguai. Por isso mesmo, como apresentado na
matéria em questão, a indignação dos comerciantes transferidos, por acreditarem que na
Sales Barbosa não há mais espaço para novas barracas.
Abaixo, segue a matéria:
Prefeitura começa a organizar o comércio dos camelôs no
calçadão
Dezenas de camelôes que comercializam produtos importados do
Paraguai, na calçada do Mercado de Arte Popular, foram retirados do
local ontem pela manhã. A operação foi liderada pela fiscalização da
Prefeitura Municipal. É mais uma etapa da operação de retirada dos
ambulantes da área central da cidade. Nesse caso específico, eles
impediam o acesso dos turistas ao MAP e o tráfego de pedestres,
informou Francisco Albano, chefe da polícia Administrativa Municipal.
11 Termo na íntegra utilizado em outra matéria.
70
De acordo com um dos integrantes da guarda, Juscelino Souza
Andrade, cerca de vintes homens participaram do trabalho. Ele disse
que a ação estava sendo realizada de maneira pacífica e que os camelôs
estavam apenas sendo transferidos para a rua Sales Barbosa, lugar de
concentração dos vendedores desses produtos.
Valmir Araújo Costa, há seis meses no local, disse que é
impossível a colocação de mais barracas ao longo da rua Sales Barbosa.
“Lá não dá para mais ninguém”, Antônio Machado da Silva sugeriu que
a relocação fosse para um terreno no fundo da Matriz que “vem
servindo como ponto de lixo”. Os fiscais prometem estabelecer uma
vigilância no local. (JORNAL FEIRA HOJE, 1995, março, p.05)
Essa ação da prefeitura, aqui traduzida pelos dizeres encontrados na matéria,
contradiz com o motivo exposto pela prefeitura para retirada dos ambulantes do
Feiraguai. A noção de organização tão aclamada por autoridades para que a Rua Sales
Barbosa fosse mais atrativa e mais acessível à grande população parece aqui perder
sentido, tendo em vista que na maioria dos dizeres sobre o Feiraguai a desorganização
estava ligada diretamente ao inchaço daquele espaço com o grande número de barracas
que ali estavam alocadas. Sendo assim, é um contracenso se propor que ambulantes de
outro local sejam transferidos para a rua onde estão os ambulantes do Feiraguai.
Diante da situação, é possível se perguntar: quais são os sentidos trazidos por esse
novo discurso na matéria apresentada? O que se pode inferir a respeito dessa ação da
prefeitura que vai de encontro a discursos outros?
A contradição entre a ação relatada e os já ditos pela prefeitura a respeito da
organização da Rua Sales Barbosa é minimizada quando se retoma o fato de que a origem
dos produtos dos dois grupos de ambulantes (o da avenida Getúlio Vargas e o da rua
Sales Barbosa) aqui citados é a mesma: o Paraguai:
Dezenas de camelôs que comercializam produtos importados do
Paraguai, na calçada do Mercado de Arte Popular, foram retirados do
local ontem pela manhã. A operação foi liderada pela fiscalização da
Prefeitura Municipal. (JORNAL FEIRA HOJE, 1995, março, p.05)
Ainda assim, permanece as indagações: como conciliar esses sentidos
aparentemente contrários, onde quando se parece querer organizar a Sales Barbosa com a
retirada dos ambulantes do Feiraguai coloca-se outros no mesmo lugar, proporcionando
ainda mais inchaço e, por conseguinte, o que se considera desorganização?
Há de se considerar que é a transferência para a Praça Presidente Médici – a ser
estabelecida mais a frente – que legitima de certo modo a existência e a prática dos
ambulantes do Feiraguai, uma vez que é dado a estes endereço fixo, espaço organizado e
71
etc. Mais a frente, em 7 de abril de 1995 – ainda antes da transferência – a matéria de
manchete ““Feiraguai” já abriga mais de 600 vendedores de produtos importados” traz
informações tanto sobre as ações da prefeitura ao por em prática o chamado Projeto
Centro quanto sobre o número de camelôs cadastrados no centro da cidade. A reportagem
informa ainda que os números são os divulgados pelo IBGE em pesquisa para a
Secretaria de Planejamento, Urbanização e Meio Ambiente. De acordo com as
informações, são ao todo 1589 ambulantes em toda área comercial da cidade, sendo 610
os que trabalham com produto importados , o Feiraguai.
Essas informações acrescentadas ao que se diz sobre o trabalho da prefeitura de se
transferir os ambulantes constroem sentidos referentes à necessidade ou a legalidade da
transferência.
Segundo a pesquisa feita pelo IBGE, para a Secretaria de Planejamento,
Urbanismo e Meio Ambiente do município, o Feiraguai – comércio de
produtos importados no calçadão da rua Sales Barbosa – possui 610
vendedores que diariamente armam suas barracas no local. (JORNAL
FEIRA HOJE, 1995, abril, p.04)
Citar informações de um órgão federal nacionalmente reconhecido para
fundamentar a necessidade das ações referentes ao Feiraguai, legitima de algum modo a
prática de transferência desses ambulantes por parte da prefeitura, além de repassar certa
urgência de ações mediadoras, tendo em vista o grande número de vendedores já
instalados no local.
Para que a transferência seja efetivada, a prefeitura começa a fazer um
levantamento dos ambulantes que de fato trabalhem na Sales Barbosa com mercadorias
do Paraguai. O objetivo é fazer com que os ambulantes manifestem interesse nas vagas
que serão disponibilizadas no que a matéria denomina de “camelódromo”, na Praça
Presidente Médici, o que é apresentado pela matéria “Começa preenchimento das vagas
para camelôs” do dia 11 de janeiro de 1996. É anunciado o início do período para que os
camelôs, que já trabalhem no Feiraguai há pelo menos um ano, se cadastrem para que
tenham direito a ocuparem uma das 752 vagas oferecidas pela prefeitura. É explicado que
há fiscais da prefeitura analisando as informações prestadas pelos ambulantes e
informado que já 30 camelôs compareceram a esse cadastramento.
Além disso, indicam a possível data para transferência: final do mês de janeiro.
Apesar de ser essa a data prevista para a transferência definitiva dos ambulantes do
Feiraguai para a Praça Presidente Médici, de acordo com a datação das matérias, esse
72
objetivo não se concretizou, como se comprova pela matéria de julho de 1996 a qual
afirma que se passaram cerca de dois meses dessa relocação. Além disso, o site da
AVAMFS (2011) indica a data de 16 de abril de 1996 como data definitiva da
transferência.
A matéria também discute o possível desentendimento entre os camelôs mais
antigos e os mais novos. Diz a matéria: “Agora os camelôs mais antigos terão que
concorrer em igualdade com os mais novos se desejarem garantir seus espaços”. No lugar
de continuarem a exigir o seu espaço na rua Sales Barbosa – só que mais organizado e
estruturado –, os camelôs passam a concorrer entre si uma vaga no chamado
camelódromo.
Tendo a transferência já sido efetivada, mas sem se tratar, em mais nenhuma
edição do Jornal Feira Hoje, da relocação do Feiraguai e sobre as datas do processo de
transferência pela Prefeitura, o Jornal Feira Hoje publicou, em 21 de julho de 1996, uma
matéria com manchete “Comerciante diz que saída de camelô melhorou vendas”
apresentando as impressões de comerciantes lojistas sobre a retirada dos ambulantes. São
entrevistados quatro comerciantes e gerentes lojistas, todos relatam melhorias no
comércio de suas lojas devido à retirada dos camelôs, ressaltando-se apenas, como
contraponto, dois depoimentos em que se fala da a necessidade de melhorias estruturais
no local:
[ainda se] “vê muita bagunça na Sales Barbosa, como a falta de uma
limpeza diária, o calçamento estragado e o esgoto a céu aberto, fatores
que impedem o crescimento maior de vendas.” (JORNAL FEIRA
HOJE, 1996, julho, p.04)
Além disso, a matéria salienta o desejo de um dos comerciantes que, apesar de
admitir uma grande melhoria nas vendas, ratifica a necessidade de se retirar os
ambulantes que ainda restam no local. Pedido esse que não só não é atendido como
também, por ação do poder municipal, outros ambulantes passam a ocupar o local antes
ocupado pelos comerciantes do Feiraguai, como anuncia a matéria de 10 de outubro de
1996, “Ocupação da Sales Barbosa será por sorteio”, a qual traz uma informação que
contraria boa parte das justificativas dadas pela prefeitura para a retirada dos ambulantes.
O título da matéria referida — “Ocupação da Sales Barbosa será por sorteio”
(publicada em 10 de outubro de 1996) — traz, em sua própria formulação, sentidos que
não se coadunam com toda a trajetória de que se está aqui a trabalhar: se os feirantes do
Feiraguai já haviam sido transferidos para outro espaço, em razão da desordem e
73
desorganização que eles acabavam por acarretar no local, devido ao número de
ambulantes que ali havia, e em função da necessidade de uma organização dos espaços
para que a população em geral por ali pudesse passar e ter acesso ás lojas do comércio
fixo da região, como se compreende agora que a própria Prefeitura esteja a promover
sorteios para a locação de novos ambulantes naquele mesmo espaço?
Até então, outubro de 1996, todas as matérias analisadas de certo modo
apresentaram a desorganização como o principal motivo para a transferência do
Feiraguai. Segundo essas matérias, os comerciantes, os representantes do governo
municipal e a população estavam insatisfeitos com a desordem instalada na rua Sales
Barbosa, pois a desorganização trazia insegurança e pouca movimentação nas lojas. Essa
desorganização estava associada não apenas à disposição das barracas, mas à simples
permanência delas naquele local; muitos entrevistados – lojistas, população, camelôs e
autoridades – apresentaram a reorganização do local como dependente da saída dos
camelôs do Feiraguai daquele local, tendo em vista que seria melhor para a passagem dos
transeuntes, entre outros motivos. Entretanto, com apenas cerca de cinco meses após a
transferência dos camelôs, a prefeitura abre inscrições para camelôs interessados em
ocupar o calçadão da Sales Barbosa, trazendo agora, para este sorteio, uma única
exigência: que comercializassem outros tipos de produtos diferentes dos comercializados
pelos ambulantes do Feiraguai.
Para a praça Presidente Médici serão relocados apenas os ambulantes
que comercializam produtos eletrônicos, brinquedos e fitas cassete no
espaço denominado de “Feiraguai”. (FEIRA HOJE, 09 de janeiro de
1996)
Para o calçadão da Sales Barbosa seriam transferidos os vendedores de
calçados, bolsas, cintos e produtos afins. (FEIRA HOJE, 10 de outubro
de 1996)
Nesse momento, cabe a reflexão sobre qual a importância que a enunciação dos
sentidos relacionados ao tipo de mercadoria comercializada por esses ambulantes — o
contrabando — tem para a construção do texto jornalístico aqui analisado e sua relação
com as decisões do poder público.
A ação da prefeitura em definir um espaço específico e a quantidade exata de
ambulantes a serem transferidos para um espaço onde, há pouquíssimo tempo, havia
outros comerciantes ambulantes é, no mínimo, geradora de algumas questões
conflituosas: Por que esses ambulantes podem ali se instalar e os outros não? Sendo a
74
desorganização – entendida enquanto aglomeração de barracas – o motivo para a retirada
dos ambulantes do Feiraguai, conforme pode-se ler nas reportagens aqui trazidas, por
que, então, não se procedeu a sua organização em vez de retirá-los? Os dizeres trazidos
pelo jornal revelam justificativas contraditórias no processo de retirada dos ambulantes
do Feiraguai, sugerindo inclusive que a desorganização não tenha sido em nenhum
momento motivadora para a transferência, muito menos os baixos preços que
estabeleceriam concorrência com os lojistas, tendo em vista que para lá foram levados
outros comerciantes ambulantes que praticavam com preços tão baixos quanto e tão
possíveis de desorganizarem o local quanto o comerciantes do Feiraguai.
4.1. OS DITOS, OS NÃO DITOS, OS APAGADOS: A TRANSFERÊNCIA
COMO SÍMBOLO DA LEGALIZAÇÃO
Conforme a matéria de 10 de outubro de 1996, foi exigência do poder público que
ali na Sales Barbosa não se comercializassem produtos importados tais quais eram
comercializados pelo Feiraguai. Nas matérias vistas até aqui, foi possível destacar, com
clareza, os sentidos relativos à questão do estabelecimento, na rua Sales Barbosa, dos
ambulantes do Feiraguai, relacionados com sentidos de desorganização dos feirantes
dificultando a passagem das pessoas, dificultando o acesso ás lojas fixas, a generalizada
confusão e desordem do espaço, inclusive com o surgimento do problema dos canaletes,
sempre entupidos. Em algumas reportagens publicadas antes da transferência do
Feiraguai para a Praça Médici, havia uma informação de que aqueles feirantes
compunham uma “feira de produtos importados” ou “uma feira de produtos importados
do Paraguai”.
No entanto, é importante observar que no recorte aqui escolhido para análise, o
período de inicio das matérias sobre a presença dos ambulantes naquele local até a efetiva
transferência do Feiraguai para a Praça Presidente Médici, em abril de 1996, não há
referência feita nessas matérias à ilegalidade da prática desses ambulantes, com exceção
de uma única fala direta a esse respeito feita por uma entrevistada: “não passa de um
contrabando” (FEIRA HOJE, 24 de novembro de 1994). As referências à ilegalidade só são
encontradas em reportagens publicadas no período pós-transferência, quando esses
comerciantes ambulantes já estão alocados no novo espaço.
75
Somente em novembro de 1996, quando o Feiraguai já está alocado na Praça
Presidente Médici, é publicada uma matéria onde se encontram dizeres a respeito da
ilegalidade das mercadorias vendidas no Feiraguai, matéria intitulada “Polícia Federal faz
blitz e centenas de mercadorias são apreendidas”, a qual veio precedida de uma chamada
de capa com a manchete “PF apreende relógios e fitas na Feiraguai”; além dessas, outras
matérias são apresentadas sem fazer referência direta ao Feiraguai, mas apresentando
discussões em torno da comercialização de mercadorias contrabandeadas, como ocorre
nas matérias de 04 de dezembro de 1996, “Produtos do Paraguai são apreendidos em um
ônibus” e “Mercadorias do Paraguai apreendidas pela Polícia Rodoviária Federal”. Todas
elas são posteriores à transferência dos ambulantes do Feiraguai e em época em que esses
feirantes/comerciantes já estavam instalados no espaço físico que lhes foi possibilitado
pela Prefeitura Municipal, nos boxes que lhes couberam, por ocasião dos sorteios. A
transferência da rua Sales Barbosa para a Praça Médici parece ter dado àqueles feirantes,
ao contrário do que se poderia supor, um estatuto de comerciantes bem instalados,
seguros e amparados pelo poder legal, já que foi concedido pela própria Prefeitura da
Cidade.
Como dito, nenhuma das matérias anteriores à transferência aponta para sentidos
de ilegalidade, de prática configurada como criminosa, tal como se observa nos títulos
das reportagens publicadas após a transferência. De maneira geral, o que há,
especialmente, nas matérias em questão é um apagamento dos sentidos referentes à
ilegalidade da prática comercial dos ambulantes do Feiraguai, sendo o sentido da ordem
aclamado como real motivo para transferência deles da Rua Sales Barbosa para outro
local. Nas matérias publicadas durante o período de discussão, antes da relocação, as
referências aos produtos comercializados, quando acontecem, não passam de uma
identificação com a origem das mercadorias, como se vê, por exemplo, em:
(...) há anos, a feira de produtos importados, instalada no calçadão da
Sales Barbosa”, essa “feira de produtos importados. (FEIRA HOJE,
17 DE JULHO 1994, p.04)
Esses dizeres trazem como efeito de sentido que os produtos importados, como
qualquer outro pode ser importado, não havendo referência nos textos a questões como
sonegação de impostos, contrabando etc. O apagamento dos sentidos da ilegalidade da
mercadoria comercializada, de sonegação de impostos, a configuração de uma ação
criminosa coadunam com a perspectiva de transferência, tendo em vista que a
76
possibilidade de a Prefeitura Municipal – órgão representativo da ordem e da legalidade –
transferir o Feiraguai para outro espaço só é possível acontecer dentro da legalidade.
Há então uma convergência entre os objetivos da prefeitura e os dizeres do jornal
no apagamento de sentidos em torno da ilegalidade da prática comercial desses
ambulantes, pois se assim não fosse, se a ilegalidade fosse levantada, as ações do poder
municipal seriam anuladas e outras medidas – como a de extinção desse comércio –
seriam mais adequadas à situação legal. Admitir a origem ilegal das mercadorias seria
trabalhar dentro da perspectiva do impedimento desse comércio e não mais na
possibilidade de transferência.
É importante que se faça aqui uma consideração mais geral sobre os sentidos
apagados e/ou não ditos nas matérias jornalísticas aqui analisadas. Algumas significações
não são ditas, mas é possível chegar-se a elas pela observação daquilo que é dito, das
formulações linguístico-discursivas propriamente enunciadas. Os sentidos não ditos são
“tomados” a partir dos próprios enunciados, das mesmas formulações lingüísticas
discursivas encontradas.
Tomando-se o conjunto das reportagens que aqui se tem analisado, podemos dizer
que há alguns não ditos “extraídos” daquilo que é propriamente dito. Fala-se por
exemplo, nas diversas matérias: da desarrumação das calçadas causada pelos ambulantes
do Feiraguai; da dificuldade de acesso às lojas pelas pessoas; em razão dessa
desorganização, fala-se da sujeira da cidade causada pela ação dos próprios ambulantes, o
que vem enfear a cidade; e muitos outros sentidos, quase todos relativos à uma formação
discursiva de defesa da extinção ou do deslocamento/transferência deste grupo de
ambulantes para um outro espaço, que não concorresse com o comércio estabelecido,
legal, assegurado pelos poderes públicos. O acolhimento mesmo desses sentidos levanta a
possibilidade, por outro lado, de se ter como sentidos não-ditos, ou apagados, os
seguintes:
Não é feita nos textos nenhuma referência aos preços dos produtos
comercializados pelos vendedores ambulantes, em geral mais baratos do que os
comercializados pelo comércio legal;.
Não se faz menção à voz dos ambulantes, com suas justificativas, direitos e
necessidade de estar ali trabalhando.
77
Também não é referido, em nenhum momento, o não pagamento de impostos
pelos feirantes; isto é, a ilegalidade do comércio, em função das mercadorias
configuradas como contrabando.
Observe-se, por exemplo, o que é dito sobre o Feiraguai: “Há anos, a feira de
produtos importados, instalada no calçadão da Sales Barbosa, é considerada o “calo” de
muitos comerciantes.” O texto do jornal enuncia a presença de uma “feira de produtos
importados”, o que significa dizer que se trata de uma feira que comercializa produtos
comprados em outros países e aqui vendidos. É de conhecimento público, porém, que
esta Feira não é tão somente uma feira de produtos importados, mas uma feira de
produtos importados que comercializa mercadorias consideradas como contrabando ou
descaminho, por não terem sido pagos por elas os impostos devidos. Por que estas
informações não são colocadas na reportagem? Em decorrência desta mesma questão, e
como desenvolvimento daquela informação primeira de ser uma feira de produtos
importados, também não se informa aqui sobre os preços dos produtos importados
vendidos por esses ambulantes e sobre o impacto dessas vendas nas atividades comerciais
dos comerciantes fixos ali estabelecidos, que pagam impostos pelas mercadorias que ali
vendem, o que, possivelmente, fará aumentar o valor destes produtos. O possível
descompasso entre os preços praticados pelos comerciantes fixos e os ambulantes,
certamente será também motivo para que não se deseje essa proximidade entre uns e
outros, com evidente posicionamento dos comerciantes locados na rua. Esses “não ditos”
são certamente possíveis a partir mesmo dos textos do jornal, se considerarmos que os
leitores do mesmo são pessoas que vivem na cidade de Feira de Santana e têm não só o
jornal como fonte de conhecimento sobre o que acontece em sua cidade.
Esses não-ditos estão diretamente relacionados com os sentidos levantados na
matéria, ou seja, com os ditos. De acordo com Machado (1992)
A interpretação [dos não ditos] é permitida na medida em que a um
dado explicitado, há um outro correlacionado a ele, não evidenciado;
mas esse primeiro dado é, ele próprio, uma pista para o vir à tona dessa
significação apagada. Evidentemente, tais argumentos não são gratuitos,
aleatórios ou fruto de uma ingênua análise da situação. Na verdade
revelam as representações ou matizes ideológicos que permeiam as
relações sociais do grupo a que pertence o sujeito do discurso, que em
função disso, busca persuadir o seu interlocutor, servindo-se, para tanto,
de significações ‘cuidadosamente selecionadas’ (MACHADO, 1992,
p.82)
78
Como colocado, o explícito, o dado, o dito, serve como pista, como um
direcionamento para se interpretarem os sentidos implícitos, os apagados da significação.
Além disso, há de se considerar que os sujeitos do discurso são assujeitados
ideologicamente e agem – dizem – a partir daquilo que lhes é permitido dizer dentro
dessa formação ideológica, sendo o seu dizer, portanto, revelador da ideologia
relacionada á sua FD. O discurso é assim um produto das condições sociais e ideológicas
do sujeito do discurso.
A não referência aos preços dos produtos comercializados pelos camelôs, em
geral mais baratos do que os praticados pelos comerciantes ali instalados legalmente,
constitui também um apagamento de sentido que se revela como um viés ideológico que
corrobora para a retirada dos ambulantes, tendo em vista que os baixos preços poderiam
servir como fator preponderante para a permanência dos camelôs do Feiraguai no centro
comercial de Feira de Santana. Significações como essas não são exploradas, sequer
referidas na reportagem, sendo a organização e a ordem da área ocupada pelos diversos
comerciantes sempre reforçadas como motivo para transferência.
O não dizer das dificuldades dos ambulantes aponta para o sentido de que há um
grupo com maior razão: os lojistas, tendo em vista que há o apagamento dos sentidos
relativos aos prejuízos dos ambulantes gera o entendimento de que são apenas os lojistas
que sofrem as consequências, são apenas os lojistas os prejudicados.
Diante do exposto, é perceptível que há uma perfeita ligação entre os sentidos que
são ditos, os sentidos que não são ditos e os sentidos que são apagados, os quais
apresentam a noção de ordem como imprescindível para o desenvolvimento de Feira de
Santana e o atributo de legalidade como pertinente ao Feiraguai. Por isso mesmo a
transferência se torna possível e os ambulantes do Feiraguai podem se estabelecer num
local público, independente das questões legais; transferência essa que é auxiliada pela
inexistência de documentação de projetos e das discussões no processo de “doação” de
uma praça pública para comercialização de produtos de origem polêmica.
79
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Decerto, as questões referentes ao comércio ambulante passam por dada
complexidade que envolve muito mais do que um recorte teórico e uma análise na área da
linguagem; envolve aí, de aspectos econômicos a culturais, uma lógica de sobrevivência
adotada por grupos que tentam ultrapassar os limites, muitas vezes legais, de
funcionamento do mercado em sociedades como a descrita. Quando esses limites são
ultrapassados, passa-se da informalidade ao crime – pelo menos de acordo com a
legislação cabível a essas situações – e muitos são os meandros a que os ambulantes se
submetem para continuar a sua comercialização.
Não foi objetivo desse trabalho defender ou condenar determinada prática, mas
compreender, a partir do estudo discurso, como esses meandros são facilitados. Na
Análise do Discurso, concebe-se a língua em sua relação inseparável com a sociedade,
com a história, com a ideologia. Os sentidos, portanto, circulam conforme certos modos,
engendrados pelas diversas relações em uma sociedade específica numa dada época
(PÊCHEUX, 1993; ORLANDI, 2002).
Nesse trabalho, a pesquisa se debruçou sobre um caso específico de
comercialização ambulante: o Feiraguai, o qual é conhecido não só pela comercialização
informal, mas principalmente pela “compra” ilegal de seus produtos, a maioria
proveniente do Paraguai, sem o devido pagamento de impostos; o Feiraguai desenvolveu-
se e ganhou representação na cidade de Feira de Santana, onde está localizado, sendo um
espaço comercial estabelecido e reconhecido, independente das questões legais.
Neste estudo, investigaram-se as questões discursivas envolvidas nesse processo
de formação e instalação do Feiraguai, a partir de análises de matérias jornalísticas,
tendo em vista que edições do Jornal Feira Hoje que falaram sobre o período decisivo
para o Feiraguai – a época de transferência para a praça Presidente Médici e momentos
anteriores– mostraram-se indispensáveis para o conhecimento da construção discursiva
possibilitadora da instalação do espaço do Feiraguai hoje existente, atuante e muito
conhecido entre os Feirenses e entre os baianos, de modo geral.
Nas edições do jornal, é perceptível que alguns sentidos vão sendo, retomados,
reatualizados, mas também ressignificados na tensa relação com outros dizeres e seus
diferentes modos de significar. Essa ressignificação é encontrada especialmente quando
os dizeres do jornal giram em torno da caracterização da prática comercial dos
80
ambulantes do Feiraguai e em torno das justificativas apresentadas para a transferência do
Feiraguai, do espaço onde estava instalado para outro. São encontrados dizeres que
ressignificam sentidos já postos durante a transferência de uma outra feira, cerca de 30
anos antes da existência do Feiraguai: a Grande Feira. Nessa ocasião, a Grande Feira era
considerada um atraso para o crescimento, desenvolvimento e progresso da cidade de
Feira de Santana e por meio de justificativas diversas, foi transferida para outro local.
Diferente do Feiraguai, nas práticas comerciais dessa Grande Feira não perpassava a
ilegalidade, mas segundo jornais daquela época, ela era responsável por uma série de
transtornos à sociedade e acabou sendo transferida, e com a transferência, veio seu fim.
Nesse momento, cabe analisar o final da existência da Grande Feira. Considera-se
que a Grande Feira tenha acabado, pois uma vez transferida para outro local, submeteu-
se, a condições divergentes das antes estabelecidas: não era mais uma feira aberta e livre,
passou a existir num espaço demarcado e determinado; não era mais uma feira de todos,
pois passou a ter restrições e exigir cadastramento de seus comerciantes; não era mais
uma feira de grandes expressões culturais, pois muitos dos artistas que usavam o espaço
da feira para suas manifestações deixaram de se apresentar. Enfim, as melhorias na
organização do espaço não permitiram que a feira continuasse a ser a Grande Feira
porque para ser a Grande Feira necessitava das mesmas condições de existência.
Exaurindo-se essas condições, findaram-se também as atividades da velha Grande Feira.
Segundo os pressupostos teóricos da Análise do Discurso, os dizeres ressignificam
outros discursos já construídos e o que se depreende são posições que o sujeito ocupa ao
dizer, segundo representações imaginárias dos lugares sociais em conjuntura histórico-
político-ideológica dada. Sendo assim, não há como não relacionar esses dizeres sobre a
Grande Feira – um local a ser transferido por não ser compatível com o ideal de
modernização e progresso da cidade de Feira de Santana – com os dizeres sobre o
Feiraguai em sua época de transferência, uma vez que em sua época de transferência,
sentidos semelhantes foram construídos como argumento para que o Feiraguai saísse da
rua Sales Barbosa e fosse para praça Presidente Médici.
No que tange às justificativas de transferência do Feiraguai para a Praça
Presidente Medici, um sentido em especial circulou de certa forma em todas as matérias
analisadas: a desorganização da Rua Sales Barbosa, desorganização atribuída à existência
do Feiraguai naquela área, reforçada por questões como a falta de espaço e o excesso de
barracas. Sentido muitas vezes requerido para se justificar, em princípio, a
81
impropriedade da presença ali dos ambulantes do Feiraguai; desses sentidos de
impropriedade, inadequação da presença dos feirantes ali, logo se tem a passagem, o
deslizamento para os sentidos de necessidade de retirada e transferência dos ambulantes
do Feiraguai, para um outro espaço, com isso preservando-se a organização e a ordem na
Sales Barbosa. E nesse espaço da Praça Médici, para onde foram transferidos e que é até
o momento ocupado pelos do Feiraguai, sem que haja qualquer admoestação,
desaprovação pública por parte dos poderes legais nem da população, aqueles ambulantes
do Feiraguai podem desenvolver com tranqüilidade as suas práticas comerciais, as quais
continuam sendo conhecidas como práticas comerciais de produtos considerados, pela lei,
como contrabando ou descaminho. Atente-se ainda que as matérias do mesmo jornal
visitado, em edições posteriores á transferência daqueles ambulantes, essas já traziam,
escancaradamente, o caráter ilegal das mercadorias, a intervenção da polícia, a apreensão
de objetos de venda desses ambulantes. A ação da polícia, porém, não se
estendeu/estendia ao fechamento do local, por venda de mercadoria contrabandeada ou
outro motivo. Os boxes se mantiveram e se mantêm, os comerciantes continuam no
mesmo espaço e as práticas comerciais são muito produtivas, conhecidas e procuradas
pela população.
Por outro lado, o lugar onde antes estavam instalados esses feirantes do Feiraguai,
a Rua Sales Barbosa, foi ocupado por outros camelôs, esses vendedores de mercadorias
também do mesmo tipo mas com uma presunção: de que não são mercadorias importadas
do Paraguai, como se viu no capítulo das análises. A autorização e a orientação para que
ali se instalassem se deu, de modo contraditório para os que acompanham esses
movimentos, pela Prefeitura Municipal, conforme também matéria do jornal visitado. A
questão que se impõe é: se antes foi colocado o tema da desorganização dos camelôs do
Feiraguai naquele espaço — daí acontecendo em seguida a transferência, como entender
agora a ocupação, no mesmo espaço, de outro grupo de ambulantes, comerciantes do
comércio informal, cuja única restrição imposta pelos poderes locais era a
comercialização de produtos diferentes já comercializados pelo Feiraguai.
Se por um lado há a orientação da Prefeitura de que só fossem transferidos para a
Rua Sales Barbosa os comerciantes que não trabalham com produtos importados do
Paraguai; e por outro há o afastamento dos ambulantes do Feiraguai desta mesma rua
Sales Barbosa e sua transferência para um outro espaço não tão central (ainda que seja
um espaço bem sucedido para os feirantes do Feiraguai) e mais distante dali, por outro,
82
fazem pensar que as mercadorias importadas do Paraguai se constituem no eixo da
questão e não necessariamente a ordem representada pela ausência de camelôs. E isso é
depreendido a partir dos enunciados que esclarecem que cada grupo de camelô teria seu
espaço comercial a partir daquilo que comercializavam:
“para a praça Presidente Médici serão relocados apenas os
ambulantes que comercializam produtos eletrônicos, brinquedos e fitas
cassete no espaço denominado de “Feiraguai” e “para o calçadão da
Sales Barbosa seriam transferidos os vendedores de calçados, bolsas,
cintos e produtos afins.”
A mercadoria trabalhada pelos feirantes do Feiraguai é proveniente do vizinho
pais, o Paraguai. Formulações como essas são encontradas em algumas reportagens:
O Feiraguai é uma feira que comercializa produtos importados. Ou:
... [o Feiraguai é] uma feira que comercializa produtos importados do
Paraguai.
Os sentidos dessas formulações, porém, não levam a qualquer entendimento de
ilegalidade, no que diz respeito às práticas corriqueiras do comércio: compram-se
mercadorias em muitos lugares, são várias as lojas que vendem produtos importados de
outros países. As matérias jornalísticas visitadas falavam da mercadoria importada e, às
vezes, da mercadoria importada do Paraguai, pelos comerciantes do Feiraguai. O que não
se diz, em qualquer das matérias que falam sobre a presença e o trabalho dos feirantes do
Feiraguai na Sales Barbosa (com uma única exceção, como já colocado), é a natureza da
mercadoria comercializada, da ilicitude dessa mercadoria, uma vez que adquirida no
Paraguai sem os devidos pagamentos de tributos que os comerciantes devem fazer sobre
os preços daquilo que comercializam. Essa é a ilegalidade daquelas mercadorias, a
sonegação de impostos. Além disso, estando na rua Salles Barbosa, os comerciantes
ambulantes concorrem com os lojistas fixos, esses comerciantes que pagam devidamente
os seus impostos, pagam ademais aluguel de suas lojas e os tributos daí decorrentes.
Aqui, então, há de se pensar não somente nos sentidos colocados nas formulações
lingüístico-discursivas encontradas nas matérias jornalísticas analisadas, mas,
principalmente, naqueles sentidos apagados, constituindo o grupo dos sentidos não-ditos,
de que falam Orlandi (2001) e Machado (1998), dentre outros. Os sentidos não
colocados, os não ditos ou os apagados, nesta série de matérias jornalísticas, são
significativos, como costumam ser os não ditos: significam pelo que não dizem. O estudo
83
dessas matérias jornalísticas, pela visão da Análise do discurso pecheutiana, mostra que
não somente a retomada de sentidos já falados em outros lugares, como aqueles
referentes ás relações entre os episódios da Grande Feira e o Feiraguai; nem apenas a
reformulação desses sentidos, como se vê, quando se fala da relação que acabou por se
estabelecer entre reorganizar e transferir (a reorganização vindo pela transferência), são
importantes na consideração da leitura e interpretação de um texto, de um dizer, da língua
em movimento, então. Ou seja, os não ditos são tão presentes/significativos quanto os
ditos. E nesta análise a consideração dos não ditos, dos apagados contribui fortemente
para um trabalho de interpretação á luz da AD.
Pode-se depreender, ainda, das análises que o processo de transferência foi
fundamental para que o Feiraguai fosse, de certa forma, legitimado. Legitimado agora
pelo novo endereço em que se instalou, legitimado pela aprovação do povo que freqüenta
suas lojas, boxes, na Praça Médici. No percurso metodológico, durante a análise dos
textos relacionados ao período de discussão da transferência, percebeu-se que os
apagamentos referentes à ilegalidade de sua prática – tanto no que se refere à inexistência
nas matérias de discussões sobre o contrabando das mercadorias quanto no que se refere à
ausência de um projeto formalizado pela prefeitura para balizar sua ação de
reorganização do comércio e transferência dos camelôs – foram de fundamental
importância para que um novo lugar lhes fosse dado e, por conseguinte, estabelecessem-
se fixamente, de maneira a confundir os caminhos (driblar?) que levam aos impedimentos
legais: hoje, praticamente, apesar do entendimento comum, entre a população, sobre as
origens da mercadoria, não se veem ações no sentido de proibir sua comercialização.
A constatação de que a mudança de lugar ajudou os feirantes a se instalarem e se
colocarem, na sociedade, de modo genuíno, legitimado, é a vitalidade do comércio do
Feiraguai na Feira de Santana de hoje. A mudança de lugar, tão trabalhada linguística e
discursivamente nas matérias jornalísticas, certamente contribuiu para a construção dessa
ideia de legitimidade que acaba-se por dar ao Feiraguai, hoje. Dessa forma, é que, por
meio do discurso, o Feiraguai se legitima sem se legalizar.
84
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JORNAL FEIRA HOJE. Esgoto da Sales Barbosa ainda é grande problema. Feira de
Santana 18 de março de 1994. Capa, p.03.
___________________. “Feiraguai” causa divergências. Feira de Santana 17 de julho
de 1994. p.03.
___________________. Está impraticável andar na Sales Barbosa. Feira de Santana
24 de novembro de 1994. Capa, p.01.
___________________. População exige organização na área dos camelôs. Feira de
Santana 24 de novembro de 1994, p.04.
___________________. Para lojistas, única saída seria a transferência de todos os
camelôs. Feira de Santana 24 de novembro de 1994, p.04.
___________________. Vendedores admitem: reordenar é preciso. Feira de Santana
24 de novembro de 1994, p.04.
___________________. Prefeitura começa a organizar o comércio dos camelôs no
calçadão. Feira de Santana 08 de março de 1995, p.05.
___________________. “Feiraguai” já abriga mais de 600 vendedores de produtos
importados. Feira de Santana 07 de abril de 1995, p.04.
___________________. Começa o preenchimento das vagas para camelôs. Feira de
Santana 11 de janeiro de 1996, p.03.
___________________. Comerciante diz que a saída de camelô melhorou vendas.
Feira de Santana 21 de julho de 1996, p.04.
___________________. Ocupação da Sales Barbosa será por sorteio. Feira de Santana
10 de outubro de 1996, p.03.
86
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88
ANEXOS
ANEXO A – Manchete de 18 de março de 1994 - Esgoto da Sales Barbosa ainda é
grave problema.
ANEXO B – Matéria de 17 de julho de 1994 - “Feiraguai” causa divergências.
ANEXO C – Matéria de 24 de Novembro de 1994 - Está impraticável andar na Sales
Barbosa.
ANEXO D – Capa da edição do dia 24 de Novembro de 1994.
ANEXO E – Interior do jornal da edição de 24 de Novembro de 1994 com diversas
reportagens sobre os ambulantes da Sales Barbosa.
ANEXO F – Matéria de 24 de Novembro de 1994 - População exige organização na
área dos camelôs
ANEXO G – Matéria de 24 de Novembro de 1994 - Para lojistas, única saída seria
transferência de todos os camelôs.
ANEXO H – Matéria de 24 de Novembro de 1994 - Vendedores admitem: reordenar é
preciso
ANEXO I – Matéria de 17 de fevereiro de 1995 - Começa o cadastramento dos
camelôs do centro.
ANEXO J – Matéria de 07 abril de 1995 – “Feiraguai” já abriga mais de 600
vendedores de produtos importados.
ANEXO L – Matéria 8 de janeiro de 1996 – Prefeitura começa a organizar o comércio
dos camelôs no calçadão.
ANEXO M – Matéria de 11 de janeiro de 1996 – Começa o preenchimento das vagas
para camelôs.
ANEXO N – Matéria de 21 de julho de 1996 – Comerciantes diz que saída de camelô
melhorou vendas.
ANEXO O – Matéria de 10 de outubro de 1996 – Ocupação da Sales Barbosa será por
sorteio.
ANEXO P – Matéria de 13 de novembro de 1996 – PF apreende relógios e fitas na
Feiraguai.
ANEXO Q – Matéria de 13 de novembro de 1996 – PF faz blitz e centenas de
mercadorias são apreendidas.
89
ANEXO R – Matéria de 04 de dezembro de 1996 – Mercadorias do Paraguai
apreendidas pela Polícia Rodoviária Federal.
ANEXO S: Chamada para matéria de 04 de dezembro de 1996 - Produtos do Paraguai
são apreendidos em ônibus.
90
ANEXO A - Manchete de 18 de março de 1994 - Esgoto da Sales Barbosa ainda é
grave problema.
91
ANEXO B - Matéria de 17 de julho de 1994 - “Feiraguai” causa divergências
92
ANEXO C – Matéria de 24 de Novembro de 1994 - Está impraticável andar na
Sales Barbosa.
93
ANEXO D - Capa da edição do dia 24 de Novembro de 1994.
94
ANEXO E - Interior do jornal da edição de 24 de Novembro de 1994 com diversas
reportagens sobre os ambulantes da Sales Barbosa.
95
ANEXO F – Matéria de 24 de Novembro de 1994 - População exige organização na
área dos camelôs.
96
ANEXO G - Matéria de 24 de Novembro de 1994, Para lojistas, única saída seria
transferência de todos os camelôs.
97
ANEXO H – Matéria de 24 de Novembro de 1994 - Vendedores admitem: reordenar é
preciso.
98
ANEXO I - Matéria de abril de 1995, “Feiraguai” já abriga mais de 600 vendedores
de produtos importados.
99
ANEXO J - Matéria 8 de março de 1995, Prefeitura começa a organizar o comércio
dos camelôs no calçadão.
100
ANEXO L – Matéria de 11 de janeiro de 1996 – Começa o preenchimento das vagas
para camelôs.
101
ANEXO M - Matéria de 21 de julho de 1996 - Comerciantes diz que saída de camelô
melhorou vendas.
102
ANEXO N - Matéria de 10 de outubro de 1996, Ocupação da Sales Barbosa será por
sorteio.
103
ANEXO O: Capa do Feira Hoje de 16 de Novembro de 1996 - PF apreende relógios e
fitas na Feiraguai.
.
104
ANEXO P – Matéria de 13 de novembro de 1996 – PF faz blitz e centenas de
mercadorias são apreendidas.
105
ANEXO R – Matéria de 04 de dezembro de 1996 – Mercadorias do Paraguai
apreendidas pela Polícia Rodoviária Federal.
106
ANEXO S: Chamada para matéria de 04 de dezembro de 1996 - Produtos do
Paraguai são apreendidos em ônibus.
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