Aos queridíssimos leitores com quem conversámos em tantas
bibliotecas de norte a sul do país
Capítulo 1
Emoções na biblioteca
— Esta biblioteca é bem gira — disse a Teresa.— Giríssima! — respondeu o Chico num tom de voz tão especial
que os outros viraram a cabeça para trás, admirados.Ele piscou um olho e indi cou a bibliotecária, que de facto era mui-
to bonita. Alta, magra, com uma cabeleira ruiva, rija e brilhante, al-gumas sardas no nariz arrebitado e uns enormes olhos verdes, sorria por trás dos óculos redondinhos para um rapaz de camisola preta. Conversavam em voz baixa com ar de namorados, mas, assim que os viram, interromperam o diálogo e ela recebeu-os da forma mais acolhedora.
— Cheguem-se ao pé de mim — pediu. — Hoje estou sozinha. A minha colega adoeceu e não tenho quem me ajude. Felizmente é um dia de pouco movimento. Querem inscrever-se na biblioteca? Ou já têm cartão?
— É preciso cartão?— Se quiseres levar livros para casa, é. Mas não fiques atrapalha-
do porque não há problema nenhum.— E paga-se?— Claro que não! Preenches uma ficha, mostras o bilhete de iden-
tidade e pronto. Nem sequer é preciso fotografia!Enquanto falava ia abrindo e fechando gavetas. Distribuiu papéis,
deu as informações necessárias, emprestou canetas a quem não ti-nha, tudo muito depressa e sem perder o sorriso porque, além de bonita, era despachada e simpática. Querendo pô-los ainda mais à
vontade, apresentou-se:— Eu sou a Matilde. E vocês?Responderam-lhe todos ao mesmo tempo, o que resultou num
coro incompreensível.— Calma! Um de cada vez.— Então começo eu — disse o rapaz da camisola preta. — Cha-
mo-me Samuel e venho aqui quase todos os dias.Pedro e Chico olharam-no com uma certa inveja. Ele e a Matilde
seriam mesmo namorados? Se fossem, o tipo era um sortudo!O mesmo pensava o João enquanto revolvia a mochila à procura
do nome do livro de que precisavam para fazerem um trabalho de grupo.
— Não encontro! Não encontro!Irritado, virou a mochila ao contrário e despejou no chão uma
montanha de tralha: livros, cadernos, um estojo de canetas bastante velho, dois chocolates meio derretidos, elásticos de cor, a tesoura e a régua, berlindes a rebolar em todas as direcções...
Os outros riram-se.— Falta alguma coisa? — perguntou a Ma tilde.— Falta, sim. O nome do livro que o Clube do Ambiente nos
mandou consultar.— Não faz mal. Vai procurando com a ajuda dos teus amigos que
eu vou acabar o que estava a fazer.Não se mostrou incomodada com a barafunda. Enquanto o Pe-
dro e o Chico se precipitavam à caça de berlindes, voltou-se para Samuel e falou-lhe, agora num tom profissional:
— Você quer o livro em que anda a trabalhar, não é verdade?Ele esboçou um trejeito com a boca e não disse que sim nem que
não.— É engraçado, sabe? Só você é que costuma requisitar esta obra.
Mas ontem veio um senhor e pediu-a.Ao ouvir aquilo o rapaz ficou tão pálido que se diria ir desmaiar e
recuou dois passos, cambaleando.— Sente-se mal?
— Não... não... — balbuciou. — Acho que tive uma... a... tontura. Já passou.
— Tem a certeza?— Sim... sim...As gémeas aproximaram-se logo, prontas a ajudá-lo, porque pen-
saram que estivesse doente. Só que ele recuperou depressa. Na cara já não havia palidez, só atrapalhação.
— Tem a certeza de que quer o livro? — insistiu a Matilde. — Ou será melhor ir para casa descansar um bocado?
Em vez de responder, ele tirou um lenço do bolso e limpou a testa.— Não se preocupe — articulou por fim. — Foi um mal-estar
passageiro. Se uma pessoa tiver calma, tudo se resolve...A última frase escapara-lhe sem querer e corou até à raiz dos ca-
belos.Embora a cena fosse um pouco esquisita, divertiu as gémeas, que
se puseram a cochichar, interpretando os factos à sua maneira.— Tenho a impressão de que sei qual é a doença do Samuel.— Também eu. Apaixonou-se pela Matilde e se calhar estava-lhe
a pedir namoro quando nós chegámos. Agora não sabe como reco-meçar a conversa.
— Ou então tiveram uma zanga e ele gostava de fazer as pazes mas não pode resolver o assunto na nossa frente.
— E a paixão é tão forte que até perde o equilíbrio.— Achas que o amor dá tonturas?— Não sei. A mim nunca deu.— As pessoas não reagem todas da mesma maneira.— Pois não. A Matilde, por exemplo, continua nas calmas.— Se calhar não gosta dele.— Ou disfarça bem.Mortas de curiosidade, seguiram cada movimento da cabeleira
ruiva sem chegarem a nenhuma conclusão definitiva. Ela foi lá den-tro a uma salinha reservada e voltou poucos segundos depois trazen-do na mão um volume castanho de título bem sugestivo: Os Poetas Malditos.
Samuel hesitou antes de lhe pegar. Fitava as letras douradas como se emitissem raios pe rigosíssimos. Quando finalmente se decidiu a estender a mão e tocou na capa, parecia que estava a tocar num ferro em brasa.
Aquela estranha reacção fez inverter a linha de pensamento das gémeas.
— Ele tem um problema qualquer — disse a Luísa mastigando as palavras. — E não é de amor...
Teresa procurava os termos exactos para defi nir o que via e con-cluiu num sussurro:
— O Samuel reagiu como se tivesse medo do livro.Pedro, que terminara a recolha de berlindes e se juntara às géme-
as, interceptou a conversa.— Não comecem com as vossas maluqueiras.— Maluqueiras, não. Tu não estavas aqui, portanto não viste.
Mas garanto-te que se passa qualquer coisa com o Samuel. Está as-sustado.
— Assustado porquê? Que mal é que o livro lhe pode fazer?Teresa encolheu os ombros e não respondeu. Limitou-se a fitar o
rapaz, que se encaminhava para a zona de leitura de cabeça baixa e arrastando os pés.
— Mostra-se... contrariado.— Contrariado está — declarou o Chico, que entretanto também
se juntara ao grupo. — E não admira.— Por que é que dizes isso?— Ora! Não é preciso ser um génio para perceber o que aconte-
ceu. O tipo veio ter com a miúda todo satisfeito. Preparava-se para uma sessão de palavrinhas doces quando nós aparecemos e estragá-mos tudo.
— Ao princípio também pensámos isso mas depois mudámos de ideias — teimou a Luísa. — Pode ser que haja romance, pode ser que não haja. Mas o que há de certeza é um problema relacionado com aquele livro.
— Oh! Vocês sofrem de imaginação deli-rante.
Tinham podido discutir assim porque Matilde se ausentara por uns instantes. Logo que regressou, calaram-se.
— Desculpem a demora — pediu. — E digam o que querem. Es-tou à vossa disposição.
Estenderam-lhe um papel com o título pretendido e ela aprovou vivamente:
— É uma obra estupenda. Está ali nas prateleiras de livre acesso. Podem ir buscá-la, leiam à vontade.
— Como?Nenhum deles percebera as indicações porque todos fitavam de
soslaio a camisola preta. Samuel instalara-se na zona de leitura. Es-colhera uma mesa comprida entre duas estantes e debruçava-se com a cabeça inclinada na posição normal de quem lê. Já não lhes parecia contrariado mas sim concentrado.
— Que se passa? Estão na Lua? — perguntou a Matilde.Pedro ficou envergonhado.— ... É que... não sabemos onde é essa estante de livre acesso.— Então venham daí comigo. Eu levo-os lá.Encaminhava-os para um recanto onde também havia jornais e
revistas quando entraram dois homens de fato claro. Detiveram-se a meio da sala a olhar em volta como se procurassem alguém. Depois fizeram um sinal a Matilde que significava: «Por favor atenda-nos logo que puder. Nós esperamos.»
A delicadeza, tão própria para quem circula numa biblioteca, influenciou-os. Acomodaram-se procurando não fazer barulho ao arrastar as cadeiras.
Chico reprimiu um bocejo. Aquela sala enorme e silenciosa era demasiado calma para o seu gosto. Apetecia-lhe refastelar-se numas almofadas de espuma que estavam arrumadas na secção infantil. Se pudesse estender-se ao comprido, tirava uma rica soneca! Pedro, in-capaz de resistir ao prazer de descobrir coisas novas, mergulhara logo na leitura, completamente esquecido dos companheiros. João, em vez de trabalhar, resolveu entreter-se com uma revista que tinha fotografias de cães. Quanto às gémeas, não tiravam os olhos de Sa-
muel, presas à ideia de que se passava alguma coisa esquisita com o rapaz. Do sítio onde estavam viam-no mal, mas quase podiam jurar que não só não virava as páginas como não movera um único mús-culo desde que se sentara.
— Não mudou de posição quando entraram aqueles homens de fato claro — comentaram em surdina.
Era verdade. Dir-se-ia completamente alheado do que se passava à sua volta. E continuou imóvel mesmo quando os dois indivíduos se enfiaram atrás da cadeira dele para rebuscarem na estante dos dicionários.
— Transformou-se em estátua — disse uma.— Adormeceu — disse a outra.Chico ouviu-as e bocejou de novo, agora esticando ligeiramente
o corpo.— Estou cá com uma soneira... acho que vou para casa.Ia a levantar-se mas o grupo reagiu.— Nem penses.— Ficas aqui connosco.E puxaram-no com toda a força pela manga. Ele esbracejou.— Deixem-me! Não gosto de estar quieto, preciso de me mexer...Nesse momento ouviu-se um estrondo, um grito, e a estante dos
dicionários desmoronou-se nas costas de Samuel, despejando-lhe em cima vários calhamaços grossíssimos. Ele tombou da cadeira ar-rastado pela avalancha.
Correram todos para lá em ânsias, sem perceber o que se tinha passado. Matilde precipitara-se a afastar a livralhada.
— Samuel! Samuel!Mas o rapaz perdera os sentidos.