THREA RAIZZA HERNANDES
HOMENS E DEUSES NA ILADA:
AO E RESPONSABILIDADE NO MUNDO HOMRICO
ARARAQUARA SP
2011
THREA RAIZZA HERNANDES
Homens e deuses na Ilada:
ao e responsabilidade no mundo homrico
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Estudos Literrios, da Faculdade de Cincias e Letras -
UNESP/Araraquara, como requisito para obteno do ttulo
de Mestre em Letras.
Linha de Pesquisa: Histria Literria e Crtica
Orientador: Prof. Dr. Fernando Brando dos Santos
ARARAQUARA - SP
2011
Hernandes, Threa Raizza
Homens e deuses na Ilada: ao e responsabilidade no mundo
homrico / Threa Raizza Hernandes. 2011
116 f. ; 30 cm
Dissertao (Mestrado em Estudos Literrios) Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Cincias e Letras, Campus de
Araraquara
Orientador: Fernando Brando dos Santos
l. Literatura grega. 2. Homero. 3. Ilada. I. Ttulo.
THREA RAIZZA HERNANDES
Homens e deuses na Ilada:
ao e responsabilidade no mundo homrico
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Estudos Literrios, da Faculdade de Cincias e Letras -
UNESP/Araraquara, como requisito para obteno do ttulo de
Mestre em Letras.
Linha de Pesquisa: Histria Literria e Crtica
Orientador: Prof. Dr. Fernando Brando dos Santos
Data da qualificao: 13/ 05 / 2011
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Presidente e Orientador: Prof. Dr. Fernando Brando dos Santos
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho
Membro Titular: Prof. Dra. Anise de Abreu Gonalves D' Orange Ferreira
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho
Membro Titular: Prof. Dra. Marisa Giannecchini Gonalves de Souza
UNAERP Universidade de Ribeiro Preto
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Cincias e Letras
UNESP Campus de Araraquara
A minha me, aos meus amigos e professores.
Aos meus padrinhos.
Ao meu eterno namorado pois, a morte
maior que a vida, mas o nosso amor maior
que os dois.
AGRADECIMENTOS
Aos amigos pela fora e companheirismo ao longo de um rduo perodo.
queles que sempre acreditaram que eu seria capaz de atingir meus objetivos.
Aos professores que, com boa vontade, colaboraram para a concretizao deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Fernando Brando dos Santos pelas sugestes, sem as quais este trabalho
seria impossvel.
A Walter Fonseca Junior pelo amor, compreenso e pacincia ao longo dos anos e ajuda
com a lngua alem para esse trabalho.
Como lees carnvoros se lanaram os
troianos
contra as naus , cumprindo as ordens de Zeus
[]
Intentando estas coisas, incitou nas cncavas
naus
Heitor Priamida, ele que de si estava j muito
incitado. (Il. XV,592-604)
RESUMO
Este trabalho analisa a relao entre o humano e o divino no mbito das aes realizadas pelos
homens e a responsabilidade que eles teriam ou no sobre elas, na Ilada. Para tanto, verifica a
concepo de homem em Homero, buscando mostrar o homem como unidade capaz de realizar
aes e analisa a concepo divina associada s ideias de vontade de Zeus e de Destino, que
afetariam a noo de responsabilidade na ao humana. Portanto, desejamos mostrar que as
decises prprias do homem no alteram o curso dos acontecimentos, uma vez que, na Ilada,
deparamos com a mentalidade mtica na qual divindade e homem se completam atravs de
oposies.
Palavras-chave: homens; deuses; destino; ao; responsabilidade; Ilada; Homero.
ABSTRACT
This study analyzes the relationship between the human and the divine in the context of the actions
carried out by men, and the responsibility that they would have on them or not, in the Iliad. To do
so, it verifies the conception of man in Homer, trying to show the man as a unit capable of
performing actions and analyzes the divine conception associated with the ideas of will of Zeus and
Destiny, which would affect the notion of responsibility in the human action. Therefore, we wish to
show that the man's own decisions do not change the sequences of events, once, in the Iliad, we
faced with the mythical mentality in which divinity and man complete each other through
opposition.
Keywords: men; gods; Destiny; action; responsibility; Iliad ; Homer.
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................. 11
1 A CONCEPO DO HOMEM DE HOMERO ....................................................... 20
2 RELAO ENTRE HOMENS E DEUSES: CAPACIDADE DE AO DE ZEUS E DAS
PARTES ............................................................................................................................. 40
3 O HERI DE HOMERO E O IDEAL GUERREIRO ........................................... 73
4 AO E RESPONSABIIDADE NA ILADA .......................................................... 93
CONCLUSO ................................................................................................................... 111
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................ 114
11
INTRODUO
A poesia pica, que tem suas imagens extradas do mundo do poeta, era centrada no
passado heroico e mostrava as emoes e qualidades dos heris. A partir da guerra, Homero
trabalha, na Ilada, o enigma da condio humana, no qual encontramos as aes dos heris,
que seguem o ideal guerreiro diante da morte, destino comum aos mortais. Essa morte, por
sua vez, est ligada vontade de Zeus de eliminar todos os heris, uma vez que os homens
mortais no deveriam ter contato com as divindades.
Dessa forma, vemos que o poeta, considerando os temas da honra e da morte
presentes na trama da Ilada, mistura as aes dos deuses com a dos homens de forma que
temos a presena das musas, fala divina capaz de retomar pela memria as faanhas dos
heris do passado; a clera de Aquiles; o encadeamento de mortes e a vontade de Zeus. A
morte aparece como fado dos mortais, sobre o qual os deuses no possuem poder algum,
podendo colaborar para efetivao e aceitar o cumprimento de uma ordem maior.
No mbito da morte, outros elementos aparecem no poema como as prticas
funerrias, a crena na existncia ps-morte e a concepo do mundo dos mortos que
associada aos aspectos da vida trazem a ideia de mortalidade e imortalidade. Isso nos leva
oposio entre a condio humana e a divina estabelecida por efemeridade e permanncia,
impotncia e potncia, infelicidade e felicidade, espao e alimentao. Todavia, devemos
atentar para o fato de que em Homero o humano e o divino no devem ser compreendidos
separadamente, mas como formas complementares, para assim entender qual a concepo dos
deuses para o homem retratado pelo poeta e de como ela era relacionada condio humana.
Antes disso ainda, devemos analisar a concepo que esse homem tinha de si mesmo e de
como isso afetava sua ao.
O corpo humano () no seria o mesmo que 'corpo', como encontramos em
Plato ou textos modernos, mas significaria cadver, em Homero. Assim tambm a
seria um duplo do homem como um todo e no uma parte dele como , o e ,
palavras usadas para designar a sede da emoo, conscincia e pensamentos. Para
entendermos esse termos na concepo do homem e de como eles afetam a noo do agir
humano e sua consequente responsabilidade ou no utilizaremos como base terica o livro A
descoberta do esprito de Bruno Snell (2003) e The origins of European thought de Onians
(1954).
12
No decorrer do trabalho, buscando compreender a relao do homem com o divino e
a concepo desse associada s ideias de vontade de Zeus e de Destino, que afetariam a noo
de responsabilidade na ao humana, nos basearemos em Nature and culture in the Iliad: the
tragedy of Hector de Redfield (1975), O sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mtico
do ser no mundo de Jaa Torrano (1987) bem como Dictionnaire tymologique de la langue
grecque de Chantraine (1968/1980) e os dicionrios Dictionnaire Grec-Franais Anatole
Bailly (1950) e A Greek-English Lexion Lidell-Scott (1940) nos quais todos o termos do
trabalho e seus significados foram pesquisados. Seguindo para o captulo final, no qual
relacionaremos o que vimos at ento com as aes dos heris na Ilada, analisando-as para
ver at que ponto elas se dariam como prprias ou como motivadas pela divindade, ou seja, se
trariam ou no a esse homem retratado responsabilidade sobre a ao, utilizaremos Gttliche
und menschliche Motivation im homerischen Epos, Lesky (1961) e A selvagem perdio: erro
e runa na Ilada, de Andr Malta (2006).
Em seu trabalho, Snell (2003) aborda a conscincia do homem retratado por Homero,
o conceito de pessoa individualizada e de alma, baseado na lexicografia, e o surgimento de
um eu interiorizado. Atravs disso, ele buscou uma histria do esprito na Grcia, que
questionado por Cunha Corra (1998). Para ela, uma parte do equvoco cometido deve-se ao
fato de existir em Homero palavras que foram descartadas por Snell, alm do uso do mtodo
lexicogrfico que baseado no conceito de falta de palavra, ausncia de conceito, pois como
os poetas faziam um recorte na linguagem no podemos afirmar que o que inexistente em
Homero seria no vocabulrio corrente.
Vale ressaltar que Snell busca fundamentos em dados arqueolgicos onde compara
representaes do corpo humano em cermicas com as feitas por 'nossas crianas', que
representam o corpo com uma parte central, enquanto os primeiros mostrariam a mobilidade
do corpo, sem um centro como parte principal, com msculos fortes e bem definidos, unidos
por juntas. A partir de sua pesquisa, Snell concluiu que se o homem retratado por Homero no
apresentava uma unidade fsica de corpo, tambm no teria unidade de esprito, ou seja, seria
desprovido de subjetivismo interior.
Dessa forma, o homem de Homero caracterizado como incapaz de abstrao, bem
como, sem conscincia de sua unidade fsica e espiritual no apresentaria tenses no esprito,
deliberao, emoes parciais ou capacidade de reunir foras a partir de si mesmo como
processo psicolgico -, j que o aumento de foras seria o resultado de intervenes externas,
principalmente, divinas. (SNELL, 2003, p.42-44). Essas intervenes se tornam importantes
mesmo em cenas nas quais o heri reflete, pois de acordo com Snell (2003), esse
13
desconheceria a verdadeira deciso prpria.
Lesky (1961), ao refletir sobre o estudo de Snell, nos coloca que s poderamos
atribuir responsabilidade ao homem de Homero se a qualidade do pessoal lhe fosse dada, no
aparecendo, exclusivamente, como objeto da interveno divina, mas como pessoa. Segundo
ele, o homem retratado por Homero no seria tomado como uma soma de corpo e alma, mas
como um todo que, apesar de sofrer intervenes divinas, seria capaz de tomar uma deciso
prpria.
Assim, em Homero, mesmo havendo a interveno divina, pura e simples, a ao dos
heris pode ser de dupla motivao, ou seja, uma motivao humana acompanhada da
influncia divina, uma vez que o relacionamento das causas da ao no precisa ser,
necessariamente, de mtua excluso. Alm disso, para Lesky, h tambm uma motivao
exclusivamente humana sobre a qual Cunha Corra (1998), baseada em Dodds e Lesky,
afirma que o heri homrico capaz de tomar deciso, evidente, havendo at uma frmula
para express-la; a existncia de uma noo de responsabilidade evidencia-se pela
necessidade que sente de reparar seu erro. (CUNHA CORRA, 1998, p.44).
Vernant tambm se dedicou ao estudo da ao e responsabilidade humana e como
vimos, assim como Snell, no acredita na existncia de delimitao entre ser humano e
natureza, em Homero. Assim, o heri homrico, no apresentando a dimenso interior, no
poderia ser dado como responsvel por suas aes, as quais teriam origem e resultado fora
dele e seriam apenas consideradas exemplares e estereotipadas.
Devemos atentar para o fato de que Vernant (2008), ao tratar das questes de
responsabilidade sobre a ao, nos fala sobre a constituio da pessoa e da vontade que a
pessoa vista em seu aspecto de agente, o eu visto como fonte de atos pelos quais ele no
somente responsvel diante de outrem, mas tambm aos quais se sente preso interiormente.
(VERNANT, 2008, p.25). Essa vontade se manifesta no ato da deciso e assim, a partir do
momento em que um sujeito se decide por uma opinio ele se constitui como agente
autnomo e responsvel. Portanto, considerando o pensamento grego antigo no qual o
agente no seria individualizado, sendo fonte e centro da ao, no haveria ao responsvel.
Vernant nos diz que squilo coloca seus heris no limiar da ao, diante da
necessidade de agir (2008, p.27), em oposio a Homero e aos lricos. O heri, na tragdia,
diante de duas opes e aps um debate interior, toma uma deciso, que segundo Snell (2003)
seria livre e pessoal e faria com que o heri enfrentasse suas responsabilidades. Vernant
(2008, p.27) critica esse pensamento de Snell uma vez que o papel das foras divinas
subestimado, pois segundo o estudioso francs, as potncias estariam presentes no exterior e
14
no interior dos sujeitos, intervindo na deciso e coagindo escolha.
Dessa maneira, na tragdia, a deciso tomada pelo agente no seria livre, mas
engendrada por uma imposta pelos deuses, a necessidade (2008, p.27) e a
deliberao do heri apenas verificaria a nica alternativa que se abre para ele, motivando-o a
uma opo. Isso mostra no a livre escolha do sujeito, mas o reconhecimento dessa
necessidade de ordem religiosa da qual a personagem no pode subtrair-se e que faz dela um
ser forado interiormente (2008, p.28), o que no impede o sujeito assumir sua
responsabilidade.
Outros estudiosos, segundo Vernant, mesmo reconhecendo o papel importante das
divindades na ao do heri trgico, mantm a autonomia do sujeito, dando espao para a
motivao livre na deciso. Lesky retomado com sua teoria da dupla motivao, sabendo
que, na epopeia, a ao pode admitir duas explicaes efeito de inspirao divina ou
propriamente humana, estando os dois nveis quase sempre ligados.
Assim, em squilo, o heri estaria em confronto com uma necessidade superior
imposta, que o dirige, mas que por ele apropriada tornando-se sua ao ponto de querer o
que levado a fazer - conferindo uma margem de livre escolha. Entretanto, esse agir na
tragdia, apresentado por Vernant, do heri deliberar consigo mesmo e tambm contar como o
desconhecido, no parece ser to diferente de casos de deliberao e ao de heris na pica -
os quais foram discutidos por Lesky (1961) como Il. XI,402 ss. e que sero apresentados mais
frente. O que no haveria na pica, de acordo com Cunha Corra (1998) seria o debate sobre
as categorias de culpabilidade, das noes de inteno e responsabilidade (p.45), colocadas
em cena pela tragdia.
Segundo Vernant (2008, p.29) as formas da vontade entre os gregos seria baseada em
uma deciso sem escolhas e responsabilidade, que independe das intenes, pois de acordo
com A. Rivier o termo vontade usado para mostrar que o heri esquiliano no passivo,
mesmo sendo privado de escolha, j que a dependncia em relao ao divino no submete o
homem [] no inibe a vontade do homem [], pois que, ao contrrio, desenvolve sua
energia moral, aprofunda seus recursos de ao [...] (RIVIER apud VERNANT, 2008, p.29).
Toda a questo para Vernant procurar saber como os gregos entendiam a escolha e
sua ausncia, e a responsabilidade com ou sem inteno, pois as nossas noes de vontade,
livre escolha, responsabilidade e inteno no podem ser aplicadas diretamente mentalidade
dos gregos em que apresentam valores diferentes.
Dessa forma, em sua busca por definio de vontade, escolha e deciso, entre os
15
gregos, Vernant (2008) investigou, em Aristteles (tica Nicmaco, Paris: Louvain, 1959)
os significados dos termos: , , , , , ,
. A partir disso, conclui que a noo de vontade, se houvesse, estaria presa ao
divino que a inspira, pois para ele essa noo estaria ligada existncia de atos humanos, que
formariam uma conduta unificada; noo de indivduo como agente, de mrito e culpa
pessoal; responsabilidade subjetiva e anlise de intenes e realizao de atos.
A ao voluntria (), de acordo com Aristteles (E N), teria origem no
prprio agente que conhece as circunstncias nas quais a realiza, enquanto que a ao
involuntria () ocorreria pela ignorncia ou coero. Entre as aes voluntrias
temos as passionais que so causadas pelo impulso () ou pelo desejo (),
admitindo-se assim que crianas ou animais possam agir voluntariamente. Assim, para
Aristteles, as aes originadas em ns so voluntrias, uma vez que se o homem o autor de
seus atos e nele mesmo que devemos buscar as origens da ao.
Entretanto, ao no reconhecer os conceitos de e geralmente traduzidos,
desde Homero, como 'de bom grado' e 'constrangido' - como pertencentes categoria de
vontade, Vernant (2008, p.30-31), ao contrrio de Aristteles, acredita que se algum age
no apresenta uma ao intencional ou que seja realizada aps reflexo e deciso pois, mesmo
que seja uma ao voluntria, ela surge do ou . A , que a ao
sob forma de deciso, privilgio exclusivo do homem, enquanto ser dotado de razo
tambm voluntria, mas privada s crianas e aos animais, pois, apesar de realizarem aes
voluntrias, essas no so de (2008, p.30).
Essa se apoia num desejo que racional, uma aspirao (),
que com inteligncia busca o objeto prtico j apresentado alma pelo pensamento; alm
disso, tem como antecedente um processo de deliberao () e por objeto tudo o que
pode ser realizado pelo sujeito. A deliberao, por sua vez, pertence o intelecto prtico e diz
respeito no ao fim (objeto de desejo), mas aos meios, que seriam nada menos que o objeto de
deliberao e deciso, cabendo a ela avaliar as aes realizveis, ou seja, o que pode ser
obtido atravs da agncia do sujeito. Assim, o objeto da seria algo que desejado
16
aps deliberao, o desejo de algo em nosso poder primeiro h a deliberao, depois a
escolha e o desejo de acordo com ela, segundo Aristteles.
Por outro lado, a , a aspirao penetrada de razo (2008, p.32), tem
qualquer objeto e uma orientao para o fim da ao - o que move a alma para o bem e a faz
pertencer ordem do desejo. A questo para Vernant (2008, p.32) est no fato de que essa
funo desejante passiva, a aspirao orienta a alma para um fim racional, mas um fim
que lhe imposto e que ela, a aspirao, no escolheu.
Contudo, Cunha Corra (1998, p.47) diz que a deve querer e no escolher
o que se quer o que parece ser bom e isso escolhido pelo homem -, e de acordo com
Aristteles, o homem bom aspira ao bem, pois julga o que bom, do contrrio pode escolher
errado devido a um julgamento equivocado.
Segundo Vernant (2008, p.31), alguns estudiosos reconhecem na um
livre poder de escolha de que disporia o sujeito em sua deciso, outros atribuem esse poder
razo, que determinaria os fins da ao. Outros ainda identificam-na como um verdadeiro
querer, uma capacidade de determinar-se, que permanece acima dos apetites, dirigidos ao
prazer na e para o bem na . Todavia, baseando-se em Gauthier-Jolif,
Vernant diz que essas consideraes no se sustentam, pois, seguindo Aristteles (E N
113a17-20), a no seria independente das nicas faculdades que agem na ao
moral: a parte desejante da alma ( ) e o intelecto ().
Assim, para uma boa escolha ser feita seria necessrio um desejo e um princpio
verdadeiro que se encontram diante de coisas boas e ms o que escolhido se deve ao fato
de parecer bom e ser avaliado pela opinio do sujeito. No entanto, para Vernant a opo da
no se d entre o bem e o mal, entre os quais teria livre poder de escolha. (2008,
p.32), uma vez que, fixado um fim, a deliberao seria formada por julgamentos atravs dos
quais a razo busca os meios prticos que levam a esse fim. Ao final da deliberao, o ltimo
julgamento apresenta um meio no apenas como possvel, mas como imediatamento
realizvel (2008, p.32).
Dessa forma, em Aristteles, as formas de vontade e escolha, para Vernant, seriam
necessrias e no livres, embora no seja uma necessidade externa e imposta ao agente, por
uma divindade ou por outro, mas humana e interna. O livre poder de deciso ainda seria
17
estranho ao pensamento grego antigo, no aparecendo nas questes sobre ao responsvel,
quer seja escolha deliberada ou ato de bom grado.
Vernant (2008) no acredita que o agente possa ser um centro de deciso, ou seja,
uma fonte de seus atos. Para ele, a aspirao e a deliberao implicam um impulso da alma
em direo ao seu objeto (p.39), mas esse ltimo no seria a causalidade da ao do sujeito,
pois
O que pe o sujeito em movimento sempre um fim que orienta, como que
do exterior, a sua conduta: seja o objeto para o qual tende espontaneamente
seu desejo, seja o que a reflexo apresenta ao seu pensamento como um
bem. Num caso, a inteno do agente aparece ligado e submisso ao desejo,
no outro impelida pelo conhecimento intelectual do melhor. Mas, entre o
movimento espontneo do desejo e a viso potica do bem, esse plano no
aparece onde a vontade poderia encontrar seu campo prprio de aplicao e
o sujeito poderia, no e pelo querer, constituir-se em centro autnomo de
deciso, fonte verdadeira de seus atos. (VERNANT, 2008, p.39)
Baseado em Aristteles, para quem a ao depende do prprio homem, o estudioso
francs segue dizendo que esse , quando aproximado da frmula que mostra os seres
vivos com o poder de mover-se a si mesmos (2008, p.39), no se apresenta como um eu
pessoal, nem racional, o qual teria poder prprio de se opor s paixes. O se refere ao
indivduo humano tomado no seu todo, concebido como o conjunto de disposies que
formam seu carter particular. (p.40). Todavia, Aristteles no se questiona sobre o papel de
diferentes foras na formao do carter individual, mesmo no ignorando o papel da
natureza, legislao e educao, o que leva Vernant a dizer que o sujeito se apaga diante das
coaes sociais. (p.40). O propsito de Aristteles moral, por isso bastava relacionar o
carter e o indivduo, de onde surgiria a responsabilidade subjetiva do agente os atos teriam
origem no homem, encontrando nele o princpio e a causa, causalidade essa negativa, j que
quando no se pode atribu-la a uma causa exterior ela se encontra no homem, que agiria de
boa vontade. (VERNANT, 2008, p.40-41).
Assim, em Aristteles, a causalidade e a responsabilidade do sujeito no se referem
vontade, mas tem uma assimilao do interno, do espontneo e do propriamente autnomo.
Isso mostra que o indivduo, ao assumir a responsabilidade, por todos os atos de bom grado,
permanece muito fechado nas determinaes de seu carter, muito estreitamente preso s
18
disposies internas que comandam a prtica dos vcios e das virtudes, para libertar-se
plenamente como centro de deciso pessoal e afirmar-se, enquanto , em sua verdadeira
dimenso de agente. (VERNANT, 2008, p.41).
A partir disso, Cunha Corra (1998) questiona at que ponto poderamos colocar a
vontade e a escolha desvinculadas do desejo e do intelecto, como Vernant, que, afim de
reforar os argumentos, segue para um mtodo lexicogrfico, mostrando que, na Grcia
antiga, no haveria termos que expressassem a vontade, livre arbtrio e ao voluntria.
Dessa forma, assim como para Snell, o homem de Homero aqui age de acordo com
uma compulso externa, no possuindo qualquer forma de vontade, conscincia de si e
subjetividade, mas segue preceitos morais fixados pela tradio. Essa conscincia homrica,
segundo Snell (2003), seria uma apreenso visual do objeto, uma vez que ela no existiria no
homem como uma reflexo de si mesmo pois, apesar de ele poder refletir sobre seu ou
, esses seria, apenas rgos fsicos e no partes do 'eu', visto como um todo.
Baseando-nos nas consideraes feitas e buscando um melhor entendimento sobre as
intervenes e de como isso afeta o pensamento em relao existncia ou no de
responsabilidade sobre as decises e os atos, dividimos o trabalho em trs partes,
considerando, inicialmente, duas concepes distintas: Snell (2003) para quem o homem, em
Homero, no se concebia como origem das decises e atribua as aes a fatores externos;
Lesky (1961) para quem a falta de uma palavra que rena os aspectos de e , no
significa que o homem no se concebesse como unidade, pois essa seria expressa em falas e
atos das personagens, havendo assim, uma motivao humana da ao.
Dessa forma, faremos uma primeira parte, que poderia se dizer, explicativa da
concepo de homem em Homero, na qual explicaremos sobre os rgos anmicos e o porqu
de haver uma considerao sobre a falta de unidade espiritual, que levaria falta de
sentimentos mistos, em um mesmo rgo, e reflexo sobre os atos. Em seguida, partiremos
para as consideraes sobre os deuses na Ilada, seu modo de agir e as intervenes feitas.
Nesse momento, refletiremos sobre o fato de existir uma ordem maior, um destino, sob o qual
os deuses no tm poder de mudana, mas, ao mesmo tempo, esse mesmo destino se
confundiria com a vontade de Zeus. Aps essas reflexes, caminharemos, enfim, para as
questes de motivao dos atos e responsabilidade, uma vez que j teremos visto como so as
intervenes divinas. Partiremos ento para averiguar se, mesmo com elas, o homem tambm
realiza suas decises e se responsabiliza por elas.
19
Vale ressaltar que, para o presente trabalho, como no havia o intuito de propor uma
nova traduo, para os termos ou trechos relevantes da Ilada que so usados como exemplo,
ns utilizamos as tradues de Carlos Alberto Nunes (1951) e Frederico Loureno (2005), de
acordo com o que achamos mais conveniente em termos de adequao ao trecho referido.
1 - A CONCEPO DO HOMEM EM HOMERO
20
O homem homrico tem sido alvo de muitos estudos ao longo de anos, bem como
suas ideias e seu modo de vida. Contudo, no podemos cair no erro de analis-lo sob uma
perspectiva de nosso mundo e com nossas ideias. Devemos, portanto, compreender o mundo
espiritual homrico e interpretar sua linguagem a partir do que encontramos no prprio
Homero, e no cometer enganos de tom-la como uma linguagem que serviria a qualquer
homem, pois existem noes que so muito usuais para ns que no eram poca retratada
por Homero e vice-versa.
Muitos equvocos ocorrem quando ns nos deparamos com palavras, que
correspondem a termos mais gerais, como esprito, alma e corpo, os quais expressam a nossa
concepo psicolgica do homem, pois procurar uma correspondncia exata, traduzindo-as
com nossas noes, no seria correto. Contudo, no podemos pensar que essas noes no
existiam em Homero, mas sim, que se encontravam de uma forma diferente da qual
conhecemos.
De acordo com Bruno Snell (2003), o homem homrico no via seus atos como
resultados da ao voluntria e espiritual em unidade, mas isso no significa que eles no
tivessem uma noo ou refletissem sobre o esprito. O lugar da concepo espiritual seria
preenchido pela viso mtica do mundo, a qual, com o passar do tempo e desenvolvimento das
ideias, conduziu o mundo grego antigo na formulao de uma concepo de alma, resultando
em discusses morais, filosficas e religiosas, sobretudo na filosofia.
Na Grcia, surgiram representaes do homem e seu pensamento, em pinturas e na
literatura, que serviram de base para todo desenvolvimento intelectual posterior no ocidente.
No entanto, segundo Snell (2003), a linguagem homrica estaria longe disso, uma vez que as
lnguas primitivas no apresentavam abstraes, possuindo expresses que se voltavam para o
concreto e o sensvel. Homero enfatizaria a linguagem das coisas concretas e no se
preocuparia com as definies abstratas, apresentando a linguagem do singular e no do
universal.
Assim, a epopeia, que narra os grandes feitos e aes guerreiras dos homens no
campo de batalha, enaltece o espetculo da vida de forma grandiosa, tendo o estilo, que se
poderia dizer, da objetividade, de acordo com Snell (2003). Segundo Snell, quando Homero
fala do corpo humano, o que lhe interessa a realidade concreta do mesmo, na diversidade de
suas configuraes e limites. Todavia, precisamos compreender a forma como o homem
retratado por Homero e qual noo de corpo e esprito esse mesmo homem apresenta. Essa
noo interfere no modo em que vemos a capacidade de ao do homem, uma vez que, se
considerarmos que ele no se via como unidade de corpo e alma para a realizao de seus
21
atos, ele apenas se encontraria aberto a intervenes e motivaes exteriores. Dessa forma, o
homem de Homero no realizaria aes por si prprio nem assumiria responsabilidade por
elas.
Bruno Snell, em A descoberta do esprito (2003), estudou os diferentes verbos da
viso, nos poemas homricos, e procurou compreender a percepo tica que o homem de
Homero teria de si mesmo, chegando concluso de que nenhum desses verbos designaria
propriamente a viso como funo especfica dos olhos, apenas modos concretos do ver.
Dessa forma, os verbos de viso estariam ligados a uma maneira de ver determinada,
com gestos ou sentimentos envolvidos na ao, assim como quando Aquiles diz a Ptroclo
que esse chora como criana ao querer o colo da me e lagrimosa a contempla at que ela
nos braos a tome ( , , Il. XVI,10 Trad.
NUNES, 1950). O verbo tambm denota sentimentos tidos no ato de olhar e,
segundo Snell (2003, p.22), tem um sentido especfico que depende do objeto que visto e
dos sentimentos que o acompanham, assim como em Il. XIX,19
(depois que se deleitou no esprito a olhar para seu
esplendor - Trad. LOURENO, 2005).
Ao longo do tempo, nas vrias tradies poticas, a maioria dos verbos deixou de ser
usada assim que a lngua passou a expressar a funo visual com o uso de verbos objetivos
(, ), percebendo os objetos por meio dos olhos. Todavia, vale ressaltar, como
Paula Cunha Corra (1998) que Snell no discute os verbos , e , que no
apresentariam aspectos palpveis da viso, e poderiam, assim, traduzir a funo ativa do ver
que os outros verbos apresentados no trariam.
A partir de seu estudo com os verbos, Snell viu que a funo prpria do olhar no
seria muito importante para os heris homricos, os quais no apresentavam para ela nenhuma
palavra especfica e, portanto, no a conceberiam como tal. Segundo o estudioso, as palavras
usadas por Homero para designar a ao de ver nos mostra que o poeta no as compreendia
como faculdade do olho de transmitir impresses. Portanto, podemos dizer que, enquanto
faltava uma sntese para o entendimento da viso como algo uno, nesse perodo, Snell
argumenta que a falta seria da anlise, a qual leva ao entendimento da viso como uma funo
sensitiva.
No entanto, no podemos concluir que esses verbos fizessem referncia apenas
22
modalidade do ver e no ao ver em si, pois no devemos considerar que os homens de
Homero deixassem de lado meios de expresso que designavam a viso como faculdade
humana de compreenso do mundo. Assim, seria mais fcil supor que esses verbos, que
denotam a ao com o lado afetivo, estivessem relacionados a uma conveno do gnero
pico que associava ao e emoo.
Junto a essas concluses Snell questionou-se sobre a designao do corpo e do
esprito em Homero, buscando o entendimento de um quadro do homem ou mundo homrico
pela existncia de unidade corporal e espiritual, ou no. O estudioso ento iniciou a
investigao sobre qual palavra, em Homero, designaria a ideia de corpo e poderia ser
traduzida como tal; para tanto, os termos como , e foram sendo
descartados, uma vez que a primeira usada na designao de cadver, a segunda faz
referncia ao aspecto e estatura do corpo e no ao corpo em si e a ltima indicaria a
superfcie do corpo enquanto limite - que pode ser ferido.
Restariam apenas os plurais , e os que designam os membros
(SNELL, 2003, p.24-26, 30-33) que, de acordo com o estudioso, seriam verdadeiros plurais
que se referem aos membros em fora e velocidade, mas que poderiam ser usadas na forma
singular. A partir disso, Snell nos diz que o corpo representado em Homero no apresentava
unidade, pois as palavras usadas pelo poeta ao se referir a ele esto no plural e designariam os
membros.
Segundo Aristarco1 a palavra no designaria corpo vivo, apenas cadver, pelo
menos Homero, utilizando a palavra em seu poema, no a usaria no sentido de corpo. Assim,
para Aristarco o corpo vivo seria , mas Snell no considera esse termo, alegando ser um
substituto insatisfatrio de corpo (2003, p.24), pois s ocorre na forma de acusativo de
relao, estando restrito a algumas expresses que passam a ideia de estrutura ou forma
(pequeno, grande, semelhante). Nesse sentido, Lesky (1961, p.8) prefere a expresso
(fora de Telmaco) - que a seu ver se refere pessoa como um todo -, ao
traduzir por corpo.
Entretanto, segundo Cunha Corra (1998) representaria o corpo vivo em sua
1 LEHRS, K. De Aristarchi studiis Homericis. G. Olms. Hildesheim, 1964.
23
totalidade e seria adequado como em Il. I,115, visto que, de acordo com Dictionaire
Grec/Franais Anatole Bailly (1950), uma palavra neutra usada somente no nominativo e
acusativo singular e siginifica corpo, tamanho e estatura ,
(nem de corpo, nem de estatura, nem na inteligncia, nem nos
lavores Trad. LOURENO, 2005).
Na Ilada, em expresses que utilizariam a palavra corpo (denominado , no
sculo V), Homero emprega - seja o termo usado apenas por uma questo de mtrica,
correspondente a duas breves. O que importa atentarmos para o fato de que ele conserva o
sentido de pele enquanto superfcie que limita o corpo e no de corpo propriamente dito.
,
.
A prpria malha, que o rei costumava trazer sobre o corpo
Como anteparo, por certo, eficaz, foi, tambm, transpassada;
Mas a epiderme somente esflorada ficou pelo dardo. (Il. IV,137-139 Trad.
NUNES, 1950 )
No entanto, o uso mais frequente o emprego de palavras no plural como (
,/
. em ambos, logo, tocou, infundindo-lhes fora invencvel,/ leves lhes torna ele
os membros, os braos e as pernas robustas. Il. XIII,60-61 Trad. NUNES, 1950) e
( . dos membros partisse a alma para a
manso de Hades. Il. VII,131- Trad. LOURENO, 2005), que denotam a corporeidade do
corpo. Carlos Alberto Nunes traduz por da existncia privado, o que daria o mesmo
sentido, uma vez que os membros no mais se moveriam.
Dessa maneira, Snell (2003) concluiu que o corpo do homem em Homero no era
visto como unidade, mas sim, como uma pluralidade de membros. Esse fato foi relacionado
com os verbos de viso, pois assim como nesses, se a funo no fosse reconhecida, no seria
expressa, havendo uma conscincia de sua existncia. Faltaria, portanto, uma conscincia
24
unitria do corpo vivo o que faria a ateno ser centrada nas diferentes partes.
No encontrando, nos poemas de Homero, um termo que designasse o corpo como
um todo, Snell (2003) considerou que no haveria nenhuma palavra para esprito ou alma
como unidade, pois para ele onde no existisse representao do corpo no poderia haver a da
alma (SNELL, 2003, p.28). Assim, nos deparamos novamente com a dificuldade de traduo,
pois Homero no conheceria uma palavra exata para tal; apesar disso, a concepo homrica
de , usada mais tarde como alma que sente e pensa, no se encontra separada por um
abismo das concepes posteriores, mas serve de matria prima para a evoluo ulterior.
A seria o princpio de vida, o sopro que habita o homem e o mantm vivo, um
fator explicativo para a passagem da vida para morte do ponto de vista dos que permaneciam
vivos, segundo Snell. No entanto a no possui uma localizao precisa nem exerce
atividade ou participa na conscincia do ser vivo.
Homero nada nos diz a respeito do modo especfico de agir da no homem
vivo, afirmando apenas que ela expirada ou sai pelas feridas ou narinas e segue para o
Hades ( / com um sibilo, qual
fumo, na terra/desaparece. Il. XXIII,100 Trad. NUNES, 1950) - como uma imagem do
morto, uma sombra -, ou ainda, motivo pelo qual o guerreiro luta em um combate, podendo
ser entendida como vida ( /
A minha vida, sem dvida, vale bem mais do que quanto/ dizem que Troia possua Il.
IX,401-402 Trad. NUNES, 1950).
Devemos atentar que esse tipo de traduo nos sugere um sentido duplo de , o
qual dissipado quando consideramos outras passagens como Il, XVI,453, que dificulta a
relao de com o sentido de vida (
Porm quando a alma e a vida o tiverem deixado- Trad. LOURENO, 2005). Com isso,
temos a ideia de alento vital que abandona o homem na hora da morte e nos faz lembrar que o
homem mortal ( , / uma alma,
apenas, possui; que tambm mortal dizem todos Il. XXI,569 Trad. NUNES, 1950), ou
seja, a palavra parece no estar ligada vida do homem, mas ao momento em que esse a
perde. Notamos ainda que Homero no utiliza para se referir a esse mesmo alento,
25
enquanto permanece no homem vivo ou quando sua vida est por um fio, referindo-se a uma
fora () que coloca o homem em ao (
[at quando] no peito alento sentir e puderem os joelhos mover-se-lhe Il. X, 89
Trad. NUNES, 1950).
No encontro entre a de Ptroclo e Aquiles, no canto XXIII da Ilada, notamos
que possui os traos figurativos do morto, mas destituda de suas caractersticas
fsicas, sendo um vazio que no possui . Teramos, portanto, a noo homrica de
na passagem do canto XXIII,103-104 ( /
, - Ora a certeza adquiri de que no
Hades, realmente, se encontram/ almas e imagens dos vivos, privadas, contudo, de alento. -
Trad. NUNES, 1950.
O termo ou possui vrios sentidos, estando, em algumas passagens,
ligados aos sentimentos, enquanto em outras exprimem o que relacionado mente (sede de
representaes). As so consideradas rgos fsicos e so traduzidas como diafragma
- se atentarmos para o fato de que antes do sculo V a C. o intelecto era situado prximo ao
corao. Mas em Homero, as seriam entranhas midas do trax, que abriam para um
leque de estados de conscincia, pensamentos, impresses, emoes e atitudes psquicas onde
encontramos a complexidade da experincia humana. Essa ideia defendida por Onians, que
parece crer que as , na verdade, seriam os pulmes.
Sendo assim, de acordo com Onians (1954), elas exerceriam mais ou menos a mesma
funo que atribumos ao crebro, ou seja, o de sede das atividades anmicas - racional,
emocional, sensria ou conativa. Buscando a localizao da sede da conscincia, o
pesquisador demonstrou que as se encontravam na regio central do peito e no na
parte de baixo - onde o diafragma separa os pulmes do abdmen -, e constatou que a
atividade pulmonar, na poca, estava relacionada atividade mental, levando-o identificao
de como pulmes.
Alm disso, Onians indica a ausncia da palavra pulmo (), em Homero -
26
que aparece uma nica vez em Il. IV,528 - concluindo que essa no seria a palavra mais
comum no uso mais geral para a designao dos pulmes, e que assim, preencheria
esse vcuo, como sede da conscincia.
Em Homero, a concepo usual da alma humana corresponderia a um tipo mais
primitivo que seria a de almas corporais, pois a substncia da alma ou sua potncia se
encontraria em partes do corpo. Essas partes, em si, no compreenderiam por completo a
potencialidade da alma, e mesmo que a substncia da mesma possa ser encontrada no
conjunto do corpo, ela designada de acordo com o lugar em que sua potncia se manifesta.
Dessa forma, assim como o corpo no era concebido em unidade (membros e rgos)
por Homero segundo Snell, a alma (espiritual anmico) tambm seria concebida como uma
srie de rgos anmicos articulados, sedes de suas atividades distintas: - sede das
emoes, que suscita movimentos e reaes (
- com a lana de bronze, desejoso de o privar da vida. Il. V,852 Trad.
LOURENO, 2005); - rgo do pensamento, sede dos conceitos (
, mas no passou despercebido mente sbia de Zeus Il. XV,461 Trad.
LOURENO, 2005); - sede emoo/reflexo (
de nimo inquieto no peito, no pode tranquilo manter-se Il. XIII,280
Trad. NUNES, 1950) que mais se aproxima de rgos fsicos, assim como (
saltando-lhe dentro do peito o corao,com
violncia Il. XIII, 281 Trad. NUNES, 1950). A no deve ser entendida como rgo
anmico, em paridade a esses citados, a no ser quando ocorre uma confuso com ,
como veremos a seguir.
Devemos nos lembrar de que os poemas de Homero no so um tratado de
psicologia, no qual as linhas divisrias entre as atividades anmicas esto previstas, e assim,
no devemos querer construir uma psicologia do homem retratado pelo poeta, baseando-nos
nas expresses para os rgos anmicos e em algum manual. Para ele, a vida anmica
constitui, acima de tudo, uma unidade e os vrios termos, usados para design-la, no
27
representam um esforo de anlise consciente, mas tem sua origem na variedade de
experincias que provocam seu uso.
Em oposio s poucas informaes sobre a atuao da , Homero se revela
muito explcito sobre as funes dos rgos anmicos, que, de certa maneira, preenchem a
lacuna da falta de correspondncia entre a concepo da e a nossa noo de alma.
O , cerne da vida e sede da coragem, em algumas passagens, abandona o
homem na morte, podendo nos levar a consider-lo como alma em oposio (
/ , . dos membros o
esprito/ rapidamente lhe foge, envolvendo-o funesta caligem. Il. XIII,671-672 Trad.
NUNES, 1950). Devemos notar que, como rgo das emoes, tambm determina o
movimento corporal e, de certo modo, abandona o corpo na morte, indo habitar o Hades, -
sendo traduzido, algumas vezes por vida/ existncia (
mas a ambos privou de vida, Il. VI,17 Trad. LOURENO, 2005). Contudo, o
deixa os (a expresso que se refere aos ossos e membros), e com isso, o que dava
movimento ao corpo desaparece, no existindo, assim, aps a morte.
Segundo Onians (1954, p.50), o poderia ser definido como alento, uma
conscincia dinmica que sofreria variaes de acordo as mudanas de sentimentos e
pensamentos, os quais no eram separveis at ento, pois, nesse mesmo rgo, localizavam-
se as atividades emotivas e intelectivas, assim como afirma Lesky, (1961, p.8). Portanto, o
, interagindo com o ar externo dentro da (Il. VIII,202 [...] .)
seria a sede das emoes, ativo e no mencionado aps a morte, j que abandona o corpo,
cessando a conscincia e respirao. Dessa forma, poderamos consider-lo tambm como um
princpio vital, que estaria ligado ao sentir e pensar do homem.
H passagens nas quais e se confundem ou so permutveis e que so
vistas como problemas de composio ou contaminao por outros trechos, a partir de
equivalncia entre os termos como os apresentados por Snell (2003). Dessa forma temos Il.
XXII,67-68 em que tirado dos ( /
28
[qualquer Dnao] me houver da existncia privado,/ com
bronze agudo ferindo-me - Trad. NUNES, 1950) e Il. XXII,362 em que a que sai
voando do mesmo lugar ( a alma dos
membros saindo, para o Hades, baixou - Trad. NUNES, 1950).
Snell nos explica isso como uma questo de correspondncia feita entre =
e = . Sabendo que habitualmente a sai pela boca (
/ , . mas a
alma humana, uma vez escapada do encerro dos dentes,/ no mais se deixa prender, sem
podermos, de novo, ganh-la Il. IX,408-409 Trad. NUNES, 1950) ou pelas feridas (
/ , . a alma
escapou-se depressa pela ferida/ aberta e a escurido cobriu-lhe os olhos Il. XIV,518 Trad.
LOURENO, 2005), em seus estudos, Snell supe, em Homero, a equivalncia de e
boca, uma vez que encontrou em Safo e Alceu como rosto.
Esse tipo de problema ocorre em passagens como Il .VII,131 (
. dos membros partisse a alma para a manso de Hades. - Trad.
LOURENO, 2005), na qual o sai dos membros e vai para o Hades, o que, segundo
Snell, teria sido uma contaminao por Il. XIII,671-672 ( /
, .), que se refere aos e por Il. XVI,856 =
XXII,362 ( ), em que a deixa os
e vai para o Hades.
No entanto, no haveria um grande problema na troca entre e , desde
que reconheamos, como Onians (1954), que as duas noes apresentam diferentes funes
nas categorias conhecidas por Homero, pois o muitas vezes descrito como rgo do
pensamento e do sentimento, enquanto a refere-se vida do ser humano.
29
Segundo Onians (1954) o seria algo vaporoso, um sopro, e a poderia
ser entendida como gasosamente insubstancial, embora visvel (1954, p.93). Dessa forma, a
no seria o , propriamente, mas representaria outra coisa no homem vivo, algo
gasoso ligado ao sopro - uma vez que sai pela boca ou feridas -, identificada como 'sombra',
aps a morte. Contudo, mesmo no fazendo parte do significado de ser uma ausncia,
mas considerando que pouco descrito, ele pde assumir a funo da na morte. Como
o poema expressa a mentalidade coletiva e indefinida no h problemas com a ambiguidade e,
dessa, forma, diferentemente da ideia de Snell, o no idntico , mas tambm
no uma noo de todo separada, podendo ser confundido e at chegar a ser a mesma coisa.
Alm disso, os termos e , e podem aparecer coordenados
em uma mesma sentena ( e o corao e
o nimo orgulhoso do parente refreado Il. IX,635 Trad. LOURENO, 2005) ou ora um
ora outro como fonte de um prazer ou ao, por exemplo. Com isso, temos Il. IX,185-189, na
qual o prazer sentido com a lira localizados no , mas tambm no .
,
, [...]
, .
Chegaram s naus e s tendas dos Mirmides
e encontraram-no a deleitar-se com a lira de lmpido som,
bela e bem trabalhada, [...]
Com ela deleitava o seu corao, cantando os feitos gloriosos dos homens
(Trad. LOURENO, 2005)
Assim tambm, quando Nestor repreende Agammnon por ter ofendido Aquiles, fala
da influncia do do rei, enquanto esse coloca a causa de tudo em seu (Il.
IX,108,119).
30
[...]
, . [...]
,
Na verdade eu prprio
Tudo fiz para te dissuadir; mas tu cedeste ao teu esprito altivo [...]
A ele deu resposta Agammnon, soberano dos homens:
ancio, no foi com mentiras que narrastes meus desvarios.
Fiquei desvairado, nem eu prprio posso o nego. [...]
Visto que desvairei e cedi a funestos pensamentos. (Trad. LOURENO,
2005)
Encontramos outra dificuldade, na verificao dos limites entre os termos, quando
nos deparamos com e o, havendo interferncias entre o rgo anmico, que gera os
movimentos e se relaciona mais s emoes, e o rgo que recebe as impresses referindo-se
mais ao intelecto. No entanto, como nos mostra Snell (2003), - sabendo que o pe o
homem em ao -, em Il. XIV,61-62 usado , pois feito pedido de reflexo, ou seja,
representao intelectual ( /
Mas pensemos ns agora como se passaro estes trabalhos/ se que o pensamento ajuda. -
Trad. LOURENO, 2005) ; enquanto em Il. II,409, o saber localizado no (sede das
reaes anmicas), uma vez que no adquirido por conhecimento, mas por um
pressentimento movido pela relao fraternal (
/ . Vem Menelau sem convite, o
guerreiro de voz retumbante,/ pois bem sabia os cuidados que na alma do irmo se agitavam
- Trad. NUNES, 1950).
Poderamos dizer que o engano cometido por Snell (2003) se deve ao fato de ter
31
atribudo um valor conceitual ao que era apenas uma noo na mentalidade mtico- potica de
Homero. Snell acredita que o (corao) e o o (mente) no devem ser entendidos
como semelhantes s partes da alma sobre as quais nos fala Plato, porque no so integrados
num todo - sendo rgos separados que no se distinguem dos rgos do corpo. Contudo,
Onians nos mostra que o pensamento de Plato separava esses princpios e suas funes de
uma forma mais clara que a mentalidade mtico-potica onde emoo e conao se
relacionam igualmente.
Alm disso, devemos nos lembrar de que o texto, como um todo, produto no s da
elaborao potica, mas tambm do imaginrio coletivo que oferece vrios smbolos de
significao, atribuindo sentido ao texto oral no s palavra isolada. Dessa maneira, no
haveria problema em usar um termo no lugar do outro, pois o valor est no que se diz com ela,
j que o pensamento de Homero parece no se preocupar com uma verdade eterna, mas uma
que se apresente por meio da fala e mostre sua funo.
Seguindo os estudos de Snell, entendemos que o seria o rgo do discernimento,
um ver com percepo espiritual, ou seja, o esprito enquanto representaes claras que
podemos encontrar em Il. XVI,688 em que se fala do o de Zeus ser o mais poderoso
( Mas a vontade de Zeus mais forte
que o arbtrio dos homens - Trad. NUNES, 1950). Assim, a vontade de Zeus se coloca acima
do livre arbtrio dos homens, tendo o deus supremo um olhar, um conhecimento muito claro
sobre os fatos.
O o pode designar sua prpria funo, o que denota a capacidade de ter ideias, a
inteligncia vista em Il. XIII,730-733, em que a divindade concede faanhas guerreiras a uns e
bom o a outros ( , [...]
/ que a um homem d o deus as faanhas guerreiras,
[...] e no peito de outro coloca Zeus, que v ao longe,/ uma mente excelente - Trad.
LOURENO, 2005). Isso nos leva a relacionar com o sentido posterior dado a o, - o de
entendimento -, pois, como sendo funo permanente (capacidade de ter ideias) poderamos
empregar a palavra inteligncia, tanto para esprito quanto para a sua atividade.
Essa evoluo do sentido tambm ocorre com , que, a partir da designao
32
do rgo, passa a significar a vontade ou carter, e s vezes, um impulso concreto. Isso
explicaria, segundo Snell (2003, p.39), a transio do rgo para sua funo e nos ajudaria a
entender o composto como , que no pressupe para o valor abstrato, apenas o
uso do rgo no lugar da funo, assim como na expresso sem cabea (capacidade de
pensar) que designa a falta da funo de pesamento.
Portanto, a falta de um conceito preciso de alma leva ausncia de distino clara
entre o fsico e o psquico, sendo o homem de Homero no uma soma de corpo e alma, mas
um todo do qual se destacam determinados rgos, mantendo uma relao entre a pluralidade
do homem vivo e a unidade. No encontro de Aquiles com a de Ptroclo vemos que o
corpo se apresenta como conjunto de partes, mas percebemos que a integrao do todo se
desfaz no momento da morte, levando o cadver a ser fragmentado em relao ao corpo do
homem vivo multiplicidade tanto no nvel anmico quanto corpreo.
Dessa forma, as pernas geis seriam um rgo do homem, no do corpo do homem,
bem como o um rgo do homem e no da alma do homem. Podemos assim, atribuir
atividades anmicas a todo o homem ou a cada um de seus membros, pois ele era
compreendido como unidade e um atuante que mantinha no seu todo a coerncia entre as
partes. O eu expresso por expresses como minha fora poderosa, minha lana (
Il. VI,126), minhas mos/braos ( Il. I,166), e a descrio do
processo, pelo qual o guerreiro recobra os nimos, tambm apresenta um caminho fsico (
/ ,
Isso dizendo, Posido, que a terra sacode, com o cetro/ em ambos, logo, tocou, infundindo-
lhes fora invencvel Il. XIII,59 Trad. NUNES, 1950).
O heri se mostra sensvel aos estmulos, tendo reaes violentas que repercutem em
sensaes fsicas, pelas quais localiza determinados impulsos e sentimentos. Com isso, seu
corao, enquanto rgo fsico pode ser transpassado, mas tambm bater agitado pela
expectativa de um combate, ou o diafragma pode ser a sede da raiva, quando excitado por
insulto ( , Na verdade no h
raiva no corao de Aquiles: no quer saber. Il. II,241 Trad. LOURENO, 2005). Essas
expresses dificultam a distino entre o fsico e o psquico e, embora a primeira significao
33
tenha sido fsica, elas passaram por evolues de ajustes contrrios.
Segundo Snell (2003), o , em Homero, assim como o corao, seria um rgo
das emoes anmicas que no se diferenciava dos rgos corporais, noo essa que mudou
com os lricos a partir de novas concepes de e . Para ele, os lricos no
concebiam a alma em relao aos rgos corporais e tendiam para uma ideia mais abstrata do
anmico, chegando dicotomia corpo-alma. Em seus estudos, o autor se baseou em
fragmentos de Aquloco, nos quais examinou um diferente tratamento dado ao e a
(corao), que revelariam a abstrao atravs de expresses que Homero no
conhecia.
Homero conhecia o corao como rgo corporal fonte de coragem (
/ com igual corao e
nimo se derramaram os Mirmides/das naus Il. XVI,266 - Trad. LOURENO, 2005) e
tinha a ideia de que o homem ou seus podem se encher de (Il. XVII,573),
(Il. I,103) ou (Il. XVII,211,499). Enquanto isso, Arquloco, segundo Snell
(2003), usava a palavra no lugar dessas foras, dando um significado mais abstrato.
No entanto, para Paula Cunha Corra (1998) os exemplos utilizados por Snell no parecem
revelar uma noo mais concreta da alma, visto que em Il. X,244-245, pode ser
colocado como a prpria coragem. ( /
cuja coragem, nos grande perigos, e o esprito ardente/ sempre se
afirmam - Trad. NUNES, 1950).
Seria importante lembrarmos a observao feita por Dodds (1951) de que o ,
no heri de Homero, tambm aparece como uma voz interior, podendo ser de origem natural
ou divina. Com isso, o estudioso nos coloca que, para esse mesmo homem, o poderia
se manifestar como duas vozes contrrias, aparecendo, portanto, como uma voz da
conscincia, uma voz interior independente (1951, p. 24). Assim, o no seria nem a
alma nem parte dela, mas um rgo independente que no era sentido como parte do eu.
34
Essa objetivao dos impulsos emocionais, segundo Dodds, deve ter levantado a
ideia sobre a interveno psquica, que agiria no (
/ . Novamente combater, quando o
corao no peito/o mandar e uma divindade o incitar Il. IX,702-703 Trad. LOURENO,
2005) ou em um lugar fsico, como o diafragma ( ,
,/ Ento o desvario tomou-lhe a mente e deslassou-lhe os
membros:/ estava ali de p, atordoado Il. XVI,805 Trad. LOURENO, 2005) ou peito e
no diretamente sobre o homem.
Vimos, portanto que o corpo humano, em Homero, no o mesmo que encontramos
em Plato ou textos posteriores, mas sabemos que entendido como cadver, da
mesma forma que no propriamente o sopro vital, mas, em relao com a morte, um
duplo do morto - no apenas uma parte do ser humano, mas uma cpia do homem como um
todo.
Seguindo seus estudos, Snell (2003) afirmou que a alma em Homero no apresentava
a unidade que, por sua vez, teria surgido com a filosofia. Contudo, vemos que a falta de
palavras para designar corpo e as vrias usadas para alma no retira a unidade de sentido
dessas noes na poesia pica, pois podemos admitir que elas fizessem parte da noo de
homem, que as englobavam em unidade.
A viso de alma oposta a fenmenos fsicos, ou seja, ilimitada e intensiva,
encontrada pela primeira vez em Herclito, de acordo com Snell (2003), onde temos o homem
, de pensamentos profundos, em uma dimenso do invisvel, enquanto em Homero
ele , de muitos pensamentos, com noo de quantidade. O estudioso acredita que
os rgos espirituais seriam apenas rgos nos quais no haveria nenhuma origem de emoo,
pois a ao do esprito seria o resultado de foras que agem a partir do exterior.
Devido a isso, Snell (2003) considera que os lricos tenham apresentado um novo
homem e novo mundo, uma vez que teriam procedido a avanos no vocabulrio, indicando
maior abstrao em relao alma e teriam conduzido dicotomia corpo-alma, que seriam
concebidos em sua unidade. Essa dicotomia seria ignorada pelos homens em Homero, que no
diferenciavam o espiritual do corporal, percebidos apenas na morte, e por isso, no
conheceriam sentimentos mistos, nem reflexo com a prpria alma, pois as contradies no
35
ocorreriam em um nico rgo. Dessa maneira, Snell (2003) concluiu que faltava a esses
homens um ponto central para que pudessem conceber como fonte de emoo e origem de
decises, e, portanto, atribuam as iniciativas aos deuses ou agentes externos, no existindo a
capacidade de ao prpria e a noo de responsabilidade humana.
Estudiosos que seguem o pensamento de Snell enfatizam as transformaes na
mentalidade grega: a de Homero, caracterizada pela falta de subjetividade interior e
autoconscincia fragmentada, e a de Plato, onde encontramos as discusses sobre a alma
imortal. Isso, para alguns estudiosos, indicaria que o surgimento de formas mais elaboradas
no pensamento grego ocorreu como uma exploso do esprito subjetivo, o que segundo Cunha
Corra (1998) deveria ser balanceado, investigando as causas sociais que contriburam para o
surgimento de uma nova maneria de pensar.
Para Vernant (1990, p. 333-346), o corpo, em Homero, tambm no seria unificado -
apenas no cadver -, e sim, composto por rgos com funo fsico-psquicas, onde no h
distino entre corpo e alma. Entretanto, o estudioso ao falar da mudana de sentidos de
e , busca a formao de um novo conceito de alma em cultos margem da
religio oficial. A deixa de ser a fumaa inconsistente de Homero e passa a ser uma
fora no interior do homem vivo, com a consistncia de um ser real e, ao mesmo tempo,
parte do homem imortal, unificada e divina.
Assim, sendo realidade objetiva e experincia vivida na intimidade do sujeito, a
permite, pela primeira vez, que o mundo interior se torne objetivo e inicie a construo
das estruturas do 'eu', ou seja, uma elaborao do mundo das experincias internas diante do
mundo exterior. A origem religiosa, segundo Vernant foi de grande importncia, uma vez que
a descoberta da interioridade liga-se ao dualismo psico-somtico, no qual a alma definida
como contrria ao corpo, e assim, ganha sua objetividade e existncia.
Contudo, a alma, sendo divina, no exprimiria a singularidade dos sujeitos
humanos e ligada ao (princpio divino) faria parte do que anima a natureza.
Portanto, para Vernant, vemos que a noo de pessoa, nesse perodo, no diz respeito ao
indivduo singular, nico, nem no que apresenta de humano em relao natureza; ela se
orienta pela fuso dos particulares com o todo. Para ele, esses valores religiosos impediram
a construo da noo de delimitao da pessoa, pois ela se prolongava na natureza, e assim,
sem contornos, no se separava do mundo mtico nem se fixava.
Em relao aos estudos da concepo do homem em Homero, Lesky (1961) retoma a
36
afirmao de que designaria o cadver, colocando que o corpo no seria tomado como
um todo, mas suas partes que seriam consideradas. Ao falar da alma, o estudioso afirma que
em Homero ela no aparece oposta ao corpo, uma vez que os rgos corporais e espirituais
estariam relacionados da mesma forma com o 'eu'.
Para Lesky (1961), a afirmao de Snell de que , e so rgos
separados e apresentam funes especficas nos revela que algo parte, o fundamento
de emoes da alma no homem vivo, referida e sentida como qualquer sensao corporal, de
acordo com Otto Regenbogen (LESKY, 1961, p.7). Assim, no poderia ser colocada no
mesmo nvel de ou como aspecto parcial da vida interior; alm disso, como
Homero no diz nada a respeito da natureza da alma e seu comportamento nos homens vivos,
no devemos buscar na uma base para as decises prprias do homem.
Deveramos, portanto, segundo Lesky, construir uma psicologia do homem homrico
que fosse baseada nas vrias expresses para rgos dos impulsos da alma, compreendendo
melhor esse homem e suas contradies. Os estudos de E.L. Harrison (LESKY,1961, p.8)
sobre as expresses trazem a cada uma dessas uma regio central e zonas marginais onde
ocorrem interferncias, o que segundo Lesky seria importante para a construo do homem
de Homero, podendo ser os termos trocados sem ocasionar grandes linhas de separaes,
como feito por ele com as palavras , , e , no canto XX da Odissia.
Assim, para Lesky (1961) a expresso (na mente e no
corao, Il. XI,411 Trad. NUNES, 1950) que expressa algo complementar ao que
entendemos por vida interior, ficaria estranha se comparada
(tornando-lhe o esprito ao peito Il. XXII,475 Trad. NUNES, 1950), enquanto em Il.
XVI,656 vemos que o uma parte da pessoa que pode ser estimulada (
- Frio desnimo, logo, no peito de Heitor ele (Zeus)
insufla Trad. NUNES, 1950). Encontramos ainda, em Od. IX,302, Odisseu rejeitando um
plano sobre o qual ele se sobrepe e reflete em seu , por causa de seu
, o que nos chama a ateno para um sentimento no originado apenas nas
37
emoes, mas antes no intelecto.
Esses conceitos, pouco ntidos, no oferecem nenhuma definio para a pessoa como
um todo, segundo Lesky. Esse todo seria algo a mais do que a simples soma das partes
seguindo a definio do psiclogo Rohracher, para quem totalidades so conexes de
componentes individuais, cuja influncia oposta leva a conexo a mostrar caractersticas
diferentes das de cada um de seus componentes. (ROHRACHER apud LESKY 1961, p. 8).
Pensando nisso que Lesky diz preferir a expresso , como j
apresentado, por fazer referncia pessoa inteira. Entretanto, para ele, esses princpios no
comprovam que o homem em Homero no se via sozinho em seus rgos, mas que possua
uma personalidade completa.
Lesky ainda lembra que Snell se baseou no fundamento de que a linguagem seria
meio para a compreenso do que reconhecido pelo homem como objeto de pensamento, ou
seja, o que refletido por ele, mas ressalta que buscar uma palavra exata para essa ao, em
Homero, seria equivocado. O equvoco tambm ocorre quando se questiona sobre se a falta de
representao do corpo como unidade, na pica, implicaria uma falta de conhecimento, por
parte dos homens em Homero, ou se a ausncia de uma palavra para o pensamento ou deciso
significaria a no capacidade desses homens elaborarem seus prprios pensamentos ou tomar
decises.
Assim, Lesky retoma Dodds (1951), que anteriormente, havia dito que o homem,
nessa poca, no possuia o conceito de vontade, conduzindo falta de um desejo prprio, de
uma vontade livre, mas nada o impediria de distinguir entre as aes que tivessem origem no
'ego' daquelas que eles consideravam oriundas de interveno psquica.
No entanto, Lesky nos chama ateno para o fato de que, apesar de alguns outros
estudiosos considerarem o vocabulrio homrico suficiente para a determinao das
caractersticas de seus homens, no deveramos buscar uma traduo para a palavra 'pessoa'
no lxico homrico. Segundo esse estudioso, os homens de Homero pouco refletiam sobre a
unidade da pessoa, mas o contrrio seria visto nas formas de lidar com ela, o que torna a ideia
de partes do corpo mais uma confirmao do que negao.
Seria assim frequente, na pica, o dilogo entre a pessoa e seus pensamentos,
fazendo referncia ao e , no qual ela pode ser aquele que fala ou sobre quem se
fala, como vemos em Il. XI,403 (
Desanimado assim disse ao seu magnnimo corao: - Trad. LOURENO). De acordo com
38
Lesky, em ns mesmos algo move-se no interior, estimulando-nos ou impedindo-nos atravs
de conversa com a voz interior. O estudiosos, baseando-se no ensaio de Rudolf Meringer,
ressalta que no existe pensamento sem voz interior, sendo que, frequentemente, o
pensamento est disfarado como palavra interior e assim, pensar, ouvir e falar internamente
geralmente a mesma coisa. (MERINGER apud LESKY, p.10, 1961).
Dessa forma, a caracterstica de falar sobre os fenmenos internos no questionaria a
personalidade do falante, como podemos ver na j citada passagem Il. XI,403 ss - na qual
Odisseu se dirige ao e o censura -, se considerarmos o sujeito como todo, implcito no
uso da primeira pessoa e na indicao do verso 411 (
- Enquanto assim ponderava no esprito e no corao - Trad.
LOURENO), em que o poeta mostra algo unificado que move os pensamentos.
O falante, portanto, para Lesky (1961), tomado como um todo, ao qual pertencem
os rgos espirituais e nos quais ele se anima; ou seja, o homem de Homero no seria visto
por uma diviso entre corpo e alma, mas um todo, no qual podemos encontrar determinadas
partes - rgos, que vm da pessoa, de maneira espontnea. Assim, a expresso mais fcil para
identidade da pessoa, atravs das frases de tratamento, seria o nome prprio, de acordo com
Lesky (1961).
Portanto, podemos dizer que, no homem retratado por Homero corpo, alma, ao e
inteno esto unidos, uma vez que, para Cunha Corra (1998, p.34) se falta alguma palavra
que rena os sentidos de , , no quer dizer, de maneira geral, que o homem
dessa poca no tivesse conscincia de sua unidade. Assim, mesmo que no encontremos, na
pica, uma reflexo sobre a 'pessoa', sua unidade estaria expressa nas falas e atos das
personagens, pois Homero as representa como 'agentes unitrios'. Com isso, se a 'pessoa' for
definida como a que organiza e rene atividades emotivas e intelectuais no indivduo, o
simples emprego do pronome 'eu' implica, por si, tal noo. (CORRA, 1998, p.34).
Essa ideia se coloca em oposio de Snell (2003), j apresentada, de que Homero
desconhecia o verdadeiro ato de deciso humana, uma vez que, nas cenas de reflexo do
heri, a interveno divina sempre uma parte importante e os rgos espirituais e
seriam apenas rgos onde no podemos ver origem de nenhuma emoo, o que torna a
ao do esprito um efeito de foras exteriores ao homem o qual se encontra sujeito a vrias
foras. No entanto, no podemos retirar totalmente da ao humana a determinao pela
39
vontade prpria, pelo fato de os deuses terem a capacidade de interferir diretamente na
conscincia humana.
Homero, ao expressar o pensamento dos homens por meio de um dilogo com o
ou , se limita a representar o raciocnio discursivo sem que isso implique algum
problema ntimo ou conflito interno entre o homem e o rgo ao qual se dirige durante a fala.
O homem homrico no distinguiria entre o que de si mesmo e do ambiente, entre o fsico e
o psquico dentro de si. Como o fsico e o psquico no estariam claramente separados, a
substncia da alma se encontraria no conjunto do corpo e se designaria com relao quelas
partes do corpo, nas quais sua potncia mais evidente.
A alma no seria vista como um princpio estruturante da personalidade ou atividade
humana, sendo os homens motivados pelos deuses em suas deliberaes de forma natural,
pois viveriam naturalmente com o divino. Assim, a interveno no interromperia a ordem das
coisas, dando sentido aos acontecimentos do cotidiano, como por exemplo, o surgimento de
uma nova fora ou um comportamento alm do esperado.
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2 RELAO ENTRE HOMENS E DEUSES: CAPACIDADE DE AO DE ZEUS E
DAS PARTES
Na epopeia, vemos que h um entrelaamento entre as aes dos homens e dos
deuses, na Ilada no mbito da guerra () e na Odissia durante o retorno para a casa
() dos heris sobreviventes da guerra de Troia. Ambos os poemas apresentam um
heri principal, que tem o apreo do poeta por seus grandes feitos, e lidam com a descrio
dos hbitos gregos em relao morte, busca do ideal heroico, relao com os deuses e entre
os homens.
A epopeia se desenvolve no mbito dos deuses, que intervm nas aes, enquanto os
homens se encontram sob uma viso de justia ligada aos deuses, designada pela palavra
(lei divina), que significa no s o estatuto dado aos reis por Zeus, para administrar a
justia, mas tambm tudo o que transformado em regra pela tradio. No incio da Ilada,
estruturada a partir da clera de Aquiles, nos dito que todos os acontecimentos estariam de
acordo com os desgnios de Zeus, ou seja, cumpririam sua vontade, o que se inicia com o
sonho enviado a Agammnon e sua incitao ao ataque.
Devemos notar que esse mesmo Zeus no tem permisso de salvar o prprio filho,
Sarpdon, das determinaes do destino (Il. XVI, 458), alm de que, em outras passagens,
como Il. VIII,69, Zeus aparece recorrendo balana, o que nos conduz ao pensamento de que
a ao de pesar o destino equivale vontade divina. No mundo de Homero, no entanto, o
destino no leva a um determinismo rgido, pois no s Zeus reflete sobre a possibilidade de
salvar a vida de seu filho, como tambm vemos expressa a possibilidade de os homens
sofrerem ou fazerem algo alm do que est determinado ( , ), quando
Zeus fala do temor sobre o fato de Aquiles assaltar as muralhas e desafiar o destino (Il.
XX,30).
No poema homrico, mesmo com as referncias aos deuses e ao seu poder, no
aparecem prodgios, mas nada acontece sem a presena das divindades. Essa aproximao
ocorre de forma natural, uma vez que um deus inspira e desperta nimo no homem, dando
nimo, fora e agilidade ao corpo humano. Entretanto, podemos notar momentos nos quais as
foras humanas se concentram para deciso ou ao, mesmo que essas mudanas fossem
vistas como manifestaes dos deuses. Estes, por sua vez, estariam presentes em todas as
formas e estados da vida, pois o divino no se manifestaria com poder soberano, mas como
41
essncia do natural.
Assim, no sendo o homem um mero instrumento nas mos dos deuses nem sua
existncia tida como um palco da atuao divina, devemos buscar entender como se d a
relao entre homens e deuses e de como a esfera divina influi na esfera humana compelindo-
a ao. Precisamos, portanto, compreender como h um aparente 'poder total' dos deuses,
pois o contrrio criaria uma contradio entre a identificao da divindade com a natureza e
sua onipotncia: em determinadas situaes os deuses no podem intervir, pois o poder divino
se encontra diante de um limite inabalvel.
Na epopeia ainda notamos que a vontade ou plano de Zeus acompanha algumas
personagens que no tiveram seus destinos cumpridos na guerra, mas os enfrentaro na volta
para a casa, estabelecendo assim, que as mortes delas estariam traadas de acordo com um
plano elaborado por Zeus (observado no ciclo pico) e relacionando a concepo de destino
(, ) com a da morte ().
O tema da vontade/plano de Zeus frequente no ciclo pico e vemos sua origem no
desentendimento entre Prometeu e o cronida, relacionado vontade divina de eliminar todos
os heris (semideuses - , ) da terra, como vemos em Hesodo (1978, fragmento
24. 98-103). Assim, devemos atentar para a participao dos deuses nos poemas picos pois,
se eles lidam com os desejos divinos porque os deuses tm alguma importncia na trama.
Vemos, em Redfield (1975), que os deuses, na Ilada e Odissia, seriam divindades literrias,
que estariam figurativizadas no texto e apresentariam suas caractersticas especficas descritas
pelo poeta - seres das palavras.
Os deuses da Ilada, por outro lado, so geralmente frvolos, criaturas
inconstantes, cuja amizade ou inimizade, tem pouco a ver com justia
humana. Eles no aparecem na narrativa como garantidores das
normas humanas ou como as fontes do processo natural. Estes deuses
Ilidicos podem usar os recursos da natureza trovo e terremoto
mas eles no garantem um cosmos; suas intervenes so errticas e
pessoais. Mais importante, os deuses da Ilada carecem de numen; eles
so de fato a principal origem da comdia nos poemas. Ns podemos,
eu penso, explicar essa diferena mais facilmente ao assumir que os
deuses da Ilada pertencem ao mundo convencional do pico e foram
entendidos como tal pela audincia. Exatamente como o pico fala,
42
no de homens, mas de heris, assim tambm ele narra histrias, no
de deuses concebidos como reais, mas de deuses literrios.
(REDFIELD, 1975, p.76)
Contudo, seria um erro se considerssemos a ao dos deuses apenas no plano
esttico e da tcnica potica, pois eles formariam um sistema de foras onde encontramos a
totalidade da existncia humana. Os deuses de Homero tm um papel fundamental na trama e
percebemos isso pela atuao que apresentam e que, muitas vezes, colabora para o
seguimento do enredo, pois existem momentos em que sem a interveno divina no haveria
continuidade. Um exemplo disso o encontro de Aquiles e Pramo (Il. XXIV,141 ss.), j que,
na esfera humana e nos eventos em situao de guerra, o encontro entre os dois poderia ser
considerado impossvel dentro das convenes em estado de combate, se no houvesse a
interveno de um deus.
Segundo Redfield (1975), os deuses em Homero carecem de numen, palavra
traduzida do latim2 que significa divindade, vontade divina, e que pode ser relacionada com o
grego que significa natureza divina, divindade. Enquanto divindade, o numen
presena, fora, nome e essncia, como nos diz Torrano, em O sentido de Zeus: [...] Deuses
imortais, enquanto presidem a destinos particulares e assinalam-se as sinas, dizem-se Numes
(Damones) [...] (1996, p.141). Contudo, os heris homricos, apresentando uma
preocupao religiosa, fazem oraes e sacrifcios e esperam receber ajuda e sorte dos deuses,
o que seria difcil acontecer se os deuses fossem apenas literrios e carentes de divindade.
Para Jasper Griffin (1980) os deuses e os mortos so o pano de fundo para a pica de Homero,
no havendo o pico sem eles:
[...] As epopeias homricas so poemas sobre as aes e o
destino/runas de heris, mas ns vemos tudo neles falsamente se ns
no o vermos contra o pano de fundo dos deuses e do morto. Os
deuses esto em casa na radiante claridade do Olimpo, o morto est na
escurido eterna; os homens vivem entre eles em um mundo no qual
luz e trevas sucedem-se mutuamente. Os deuses gozam de eterna
juventude e energia, os mortos esto sem poder ou atividade; os
homens so capazes de ascender ao herosmo e podem ser
2 CRETELLA JNIOR, J. & ULHA CINTRA, G. Dicionrio Latino-Portugus. So Paulo: Nacional, 1956.
43
semelhantes aos deuses, mas para todos os velhos e mortos so o
destino final. Os deuses podem ser irresponsveis na ao e no
necessitam temer nenhuma consequncia desastrosa; os homens esto
dispostos de tal modo que o fim de todas as suas aes a partida da
alma, lamentao, a partida de sua juventude e fora (GRIFFIN, 1980,
p.162)
Dessa forma, a ideia de Redfield sobre a carncia de divindade (dos deuses) perde
seu sentido, uma vez que os homens esto sempre em atividade e possuem energia para
executar suas aes, desastrosas ou no, nas quais os deuses fazem interferncias defendendo
seus protegidos e punindo os transgressores da ordem. Pela citao acima, percebemos que h
trs esferas de atuao no mundo dos heris homricos: o mundo dos deuses, cheio de brilho,
o dos mortos na escurido e o dos homens vivos com um pouco de cada uma dessas
caractersticas.
Cada mundo recebe os habitantes considerando sua natureza e a condio de
existncia da mesma e, por isso, a esfera de atuao dos seres que neles vivem pode ser
dividida em: mundo dos imortais ( sem morte) formado pelos deuses (),
mundo dos mortais (/ com morte) ao qual pertencem os homens ()
e os semideuses (, com qualidades humanas e divinas) e mundo dos mortos -
mundos esses que esto ligados.
Na crena homrica, os mortos no deixam de existir, mas passam a ter uma
existncia diferente das dos vivos, fator que levou esse reino a perder sua 'santidade', presente
na crena anterior, e do qual os deuses olmpicos encontram-se separados por seu prprio ser
( [] , - morada medonha e
bafienta, que os deuses odeiam Il. XX,65 - Trad. LOURENO, 2005). A morada de Hades
causa horror aos olmpicos, principalmente na poca clssica, mas em Homero, eles no
temem aproximao com um cadver ( ,
/ [...] - V tu agora, Febo amado, e limpa o
negro sangue de Sarpdon [...] Il. XVI,667 Trad. LOURENO, 2005).
Como dito no primeiro captulo, o corpo do homem recebe fora e nimo da
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(alma), sem a qual o corpo pode ser considerado morto. Aps sua liberao por alguma
abertura no corpo, a segue para o Hades (Il. XVI,856; XXII,362) onde considerada
uma sombra do guerreiro (), uma imagem do morto ( Il. XXII,93-107), que
vaga entre as outras almas aps receber os ritos fnebres. Aqui, podemos estabelecer uma
aproximao entre os mortos e os deuses, pois ambos perduram e so superiores aos homens
vivos, embora apenas os segundos possam ser felizes em si mesmos.
O reino dos mortos, por sua vez, est localizado nos limites do Oceano, embaixo da
terra3 e essa ideia de limites que traz a de invisibilidade. Nos poemas homricos, os limites
so relacionados com a extenses da terra e do oceano, pois como a viso do homem no
consegue alcan-las elas exprimem o ilimitado que tambm invisvel. Assim, esse limite
exerce uma funo geogrfica que separa o reino dos vivos e o dos mortos, obedecendo a
regras definidas: h a preocupao de permitir a entrada apenas da alma que recebeu os ritos
fnebres, bem como no permitir que a mesma deixe o Hades e entre em contato com os
vivos a no ser que seja nutrida com sangue das vtimas de sacrifcio (Il. XX,54-66).
Dessa forma, a s poder se comunicar com os vivos recebendo sangue ou
atravs de sonhos. Nesse ltimo caso, o contato estabelece a relao entre dois mundos muito
parecidos, pois os sonhos e as almas so como fumaa, o que torna a relao possvel, visto
que a de Ptroclo reclama os devidos rituais fnebres a Aquiles (Il. XXIII,65ss). No
outro caso, h a ligao entre algo material e imaterial, como se a alma fosse capaz de voltar
vida, por um instante.
Vemos tambm que a natureza divina dos deuses no transmitida para seus filhos
com mortais e por isso, os heris compartilham com os homens comuns a morte e com os
deuses, a possibilidade de serem chamados divinos. Nesse ponto consiste a ambiguidade do
carter heroico, pois, o heri est acima dos homens comuns, no chegando no entanto, a ser
exatamente um imortal. Ele, portanto, nem homem nem deus, imbatvel, mas ao mesmo
tempo chora.
O heri seria a personificao de um ideal - a glria do guerreiro transformada em
ao humana -, visto que a oposio entre o aspecto modelar do heri com excelncia e o
aspecto humano de cidado que conduziu ao conflito entre Aquiles e Agammnon, logo no
incio da Ilada. O grande heri da Ilada, Aquiles, tinha conscincia da mortalidade, o que
3 Il. VI,19; VII,330; XIV,457; XX,54-66; XXIII,100-101
45
nos leva a pensar como Vernant (1979, p.33) que, para o heri, sua prpria existncia humana
estaria em jogo e assim, o reconhecimento deveria ser de forma absoluta como seu risco, o
que o conduz inflexibilidade.
De um lado temos o chefe poltico com suas funes sociais, que Vernant (1979,
p.41) considera efmero, de outro, a glria e prestgio do heri que morre no combate;
enquanto um poder derivado do estatuto civil e militar o outro, distante de uma vivncia
passageira, busca a morte e a imortalidade, ou seja, a imortalidade atravs da morte.
Ultrapassa-se a morte acolhendo-a em vez de a sofrer, tornando-a a aposta
constante de uma vida que toma, assim, valor exemplar e que os homens
celebraro como um modelo de 'glria imorredoura'. O que o heri perde
em honras prestadas sua pessoa viva, ao renunciar longa vida para
escolher a pronta morte, ele o torna a ganhar cem vezes mais na glria de
que fica aureolada, por todos os tempos vindouros, sua personagem de
defunto. [] Ultrapassar a morte tambm escapar da velhice [] Aos
olhos dos homens vindouros, cuja memria habitar, ele se acha, pelo
traspasso, fixado no fulgor de uma juventude definitiva. (VERNANT, 1979,
p.41-44)
Essa durabilidade diferencia a figura do heri do guerreiro e homem comuns. A
distino se encontra nas aes que se tornam proezas heroicas, tanto pelo fato de o heri
execut-las acima da capacidade humana, quanto por receberem auxlio de seus protetores
divinos. Atravs dessas aes o heri busca honra e com uma morte honrada (bela morte -
), a glria imorredoura, fazendo seu nome permanecer entre as geraes, uma
vez que, pela morte imposta a todos os mortais, sua ficar no esquecimento.
Contudo, na Ilada, talvez no fosse correto afirmar que o heri se colocasse em
risco absoluto, uma vez que a vida humana seria um bem natural e absoluto que no
encontraria felicidade aps a morte. Dessa forma, esse risco de tornaria nulo, pois no poema
tudo acorre de acordo com a lgica do mito, ou seja, conforme foi tecido pelo destino.
Lembrando que o destino da morte se prende a cada um individualmente, Aquiles, que o
heri exemplar, mais um carter do que uma pessoa, no seria quem nem realizaria suas
proezas sem sua Moira particular. Ele estava, portanto, enredado pelo destino e sempre esteve
ciente disso, preferindo uma vida breve a uma longa sem glria.
46
.
,
,
,
,
, .
Ttis, a deusa dos ps argentinos, de quem fui nascido,
j me falou sobre o dplice Fado que Morte h de dar-me:
se continuar a lutar ao redor da cidade de Troia,
no voltarei mais ptria, mas glria hei de ter sempiterna;
se para casa voltar, para o grato torro de nascena,
da fama excelsa hei de ver-me privado, mas vida mui longa
conseguirei, sem que o termo da Morte mui cedo me alcance. (Il. IX,410-
416.Trad. NUNES, 1950)
Poderamos pensar que a concepo dos deuses exemplifica a impossibilidade de
perceber as noes de outro modo que no baseado na contraposio, visto as vrias
limitaes da existncia humana, pois no a mesma raa dos deuses imortais e dos homens
que caminham sobre a terra. ( /
. Il. V,441-4422 Trad. LOURENO, 2005), ou os homens que
comem o fruto da terra lavrada ( Il. VI,142 Trad.
LOURENO, 2005) e esto submetidos morte ([ ]
Il. III,322) se opem aos deuses que moram no Olimpo e tm a
imortalidade.
Entretanto, o que vemos na obra do poeta uma ligao entre humano e divino de tal
forma que no poderamos compreend-los separadamente, mas sim como formas
complementares que se fundam na oposio mortalidade (homens) e imortalidade (deuses).
47
Os deuses em Homero tm forma, sentimentos e paixes humanas, mas so imortais e
possuem um poder sobre-humano, que os tornam superiores aos homens em fora, beleza e
inteligncia.
Porm, o epteto semelhante aos deuses ( Il. XXIV, 217), aplicado ao
homem, s vezes, empregado de forma meramente decorativa, aparece, em outras passagens,
com um sentido mais preciso e atribudo ao heri a quem um deus transmitiu sua fora em
forma de qualquer qualidade.
Todas as qualidades que tornam o homem um ser superior provm dos deuses: a
beleza de Pris ( De nada te
serviria a lira ou os dons de Afrodite Il. III,54 Trad. LOURENO, 2005), a fora de jax
( / ,
jax, visto que o deus te deu fora e grandeza/ e sensatez, e com a lana s
o melhor dos Aqueus Il. VII,288 Trad. LOURENO, 2005) ou a de Aquiles (
, Se s excepcionalmente possante, porque
um deus tal te concedeu Il. I,178 Trad. LOURENO, 2005), bem como as permanentes no
homem superior (heri) ou as que, ocasionalmente, um deus infunde em seu favorito, no
combate.
Para melhor compreendermos essas relaes de afastamento e aproximao devemos
buscar entender os homens, na Grcia Antiga, e os deuses, refletindo sobre sua essncia
divina. Como notamos na frmula homrica os deuses que habitam o Olimpo ou (Zeus
Olmpio ( - Il. XIII, 58), epteto aplicado a Zeus, a morada dos deuses () -,
tambm chamados de celestes () - o Olimpo. Esses termos usados para se
referir aos deuses nos ajudam a definir um de seus aspectos que se contrape condio
humana, ou seja, a prp
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