UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
EBER BORGES DA COSTA
TAPEPORÃ – CAMINHO BOM: ANÁLISE DA
PRÁTICA MISSIONÁRIA DE SCILLA FRANCO ENTRE
OS ÍNDIOS KAIOWÁ E TERENA NO MATO GROSSO DO
SUL - 1972 a 1979
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2011
EBER BORGES DA COSTA
TAPEPORÃ – CAMINHO BOM: ANÁLISE DA
PRÁTICA MISSIONÁRIA DE SCILLA FRANCO ENTRE
OS ÍNDIOS KAIOWÁ E TERENA NO MATO GROSSO DO
SUL - 1972 a 1979
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de Humanidades e Direito, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.
Orientação: Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva.
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2011
A dissertação de mestrado sob o título “Tapeporã – Caminho bom: análise
da prática missionária de Scilla Franco entre os índios Kaiowá e Terena
no Mato Grosso do Sul – 1972 a 1979”, elaborada por Eber Borges da
Costa foi apresentada e aprovada em 08 de abril de 2011, perante banca
examinadora composta por Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva
(Presidente/UMESP), Profa. Dra. Blanches de Paula (Titular/UMESP) e Prof.
Dr. Clóvis Pinto de Castro (Titular/UNIMEP).
_____________________________________________
Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
______________________________________________
Prof. Dr. Jung Mo Sung
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião
Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura
Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Psico-sociais e Pedagógicas
Dedico este trabalho a:
Juliana, Ana Luíza e João Pedro, cujo amor me dá segurança para ser o que sou e cria oportunidades para meu crescimento.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva, pela acolhida,
paciência e precisão na orientação deste trabalho desde o seu início.
Aos meus pais, Domingos e Isaura, por tudo que me ensinaram com as
palavras e com a vida; entre tantas coisas, a tolerância e o respeito aos outros.
À Bete, Helmut, Lucas e Isabela, pelo carinho e hospitalidade. Ao Helmut,
também, pela leitura do texto e suas valiosas observações.
À Cleide, pelo importante auxílio na organização e digitalização de
documentos desta pesquisa.
Ao Rev. Paulo Silva Costa e à Revda. Maria Imaculada Conceição Costa
que me acolheram em sua casa e abriram as portas da Missão Tapeporã para
que eu pudesse realizar minha pesquisa.
À Concília Januário Franco que me recebeu gentilmente em sua casa e
compartilhou experiências vividas ao lado de Scilla Franco.
À Igreja Metodista na 5ª Região Eclesiástica que criou as oportunidades
para minha formação e me permitiu realizar esta pesquisa
Aos meus amigos Márcio Divino e Paulo Nogueira, pelo incentivo para
iniciar e continuar no programa de pós-graduação.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), pela bolsa de estudos que me permitiu realizar esta pesquisa.
Aos professores, professoras, funcionários, funcionárias e colegas do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP pela rica
convivência possibilitada pela diversidade e abertura e disposição para o
diálogo.
Aos membros da banca de avaliação, Profa. Dra. Blanches de Paula e
Prof. Dr. Clóvis Pinto de Castro, pelo cuidado com que leram e avaliaram este
trabalho. Suas orientações e correções muito contribuíram para o
aprimoramento desta pesquisa.
COSTA, Eber Borges da. Tapeporã – Caminho Bom: análise da prática
missionária de Scilla Franco entre os índios Kaiowá e Terena no Mato Grosso
do Sul – 1972 a 1979. Dissertação (Mestrado). São Bernardo do Campo:
Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo, 2011. Orientação de Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva.
RESUMO
A presente dissertação analisa a prática missionária do pastor metodista Scilla
Franco desenvolvida entre os índios Kaiowá e Terena no MS, nos anos de
1972 e 1979. Apresenta os principais traços da cultura e religião desses povos;
os efeitos negativos da colonização européia e de outros movimentos de
exploração econômica das áreas onde viviam e o lugar que religião cristã
ocupou neste processo através de missionários católicos e protestantes,
destacando a atuação dos metodistas no Mato Grosso do Sul. Num segundo
momento, descreve a trajetória pessoal e ministerial de Scilla Franco
analisando a criação da Missão Tapeporã, a formação do GTME e a natureza
do trabalho que desenvolveu, a partir de uma pastoral de convivência. Por fim,
a partir da análise do desenvolvimento do trabalho de Scilla Franco, apresenta
temas importantes para uma práxis missionária na atualidade e que podem ser
vistos na sua ação, como a contextualização e a convivência numa perspectiva
ecumênica.
PALAVRAS-CHAVE
Cultura indígena – Missão – Pastoral da Convivência – Contextualização
Ecumenismo – Metodismo
COSTA, Eber Borges da. Tapeporã – Good Way: analysis of the missionary
practice of Scilla Franco between Kaiowá and Terena Indians in Mato Grosso
do Sul - 1972 to 1979. Dissertation. São Bernardo do Campo: Postgraduate
Programme in Religion Sciences of the Methodist University of São Paulo,
2011.Oriented by: Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva.
ABSTRACT
This dissertation analyses the missionary practice of the Methodist minister,
Scilla Franco, developed between the Terena and Kaiowá Indians in Mato
Grosso do Sul, from 1972 to 1979. The main features of culture and religion of
these peoples, the negative effects of European colonization and economic
exploitation of other movements from the areas where they lived and the place
that the Christian religion occupied in this process through Catholic and
Protestant missionaries, showing the work of the Methodists are here
presented. Secondly, it describes the personal and ministerial trajectory of Scilla
Franco, analyzing the creation of the Tapeporã Mission, the formation of GTME
and the nature of the work developed from a pastoral living. Finally, from the
analysis of the development of Scilla Franco's work are presented important
issues for a mission in practice nowadays and can be seen in his action, in
context and coexistence in an ecumenical perspective.
KEY WORDS
Indian Culture - Mission - Pastoral Living – Contextualization – Ecumenism –
Methodism
SUMÁRIO
Introdução____________________________________________________13
Capítulo I – Conquista, catequese e perda da terra: os índios Kaiowá e
Terena na região de Dourados e o início da presença metodista entre
eles__________________________________________________________17
1. Índios no Brasil ______________________________________________17
2. Os kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul ________________________24
2.1. Os Índios Kaiowá _______________________________________24
2.2. Os Índios Terena _______________________________________28
3. A região de Dourados _________________________________________31
3.1. A Guerra do Paraguai (1864-1870) _________________________32
3.2. A Companhia Matte Laranjeira _____________________________33
3.3. O Marechal Rondon e a Era Vargas ________________________35
4. A Reserva Indígena de Dourados ________________________________38
5. A Igreja Metodista e seu envolvimento com os índios _________________42
5.1. No início do metodismo __________________________________42
5.2. No Brasil______________________________________________44
5.3. A participação metodista na Missão Caiuá segundo o
Expositor Cristão __ _____________________________________48
Capítulo II - Sensibilidade, compaixão e doação: a vida e o ministério de
Scilla Franco entre os índios Terena e Kaiowá ______________________54
1. Dados biográficos ____________________________________________58
9
1.1. Família e formação ______________________________________58
1.2. Vocação Pastoral _______________________________________60
1.3. Envolvimento com os índios _______________________________63
2. O Plano Piloto e a Missão Tapeporã ______________________________65
2.1. Plano Piloto de atendimento a colonos ______________________65
2.2. Missão Tapeporã _______________________________________68
2.3. Histórico da organização da Missão Tapeporã ________________69
2.4. Pós – tapeporã _________________________________________72
2.5. Episcopado ____________________________________________74
3. O desafio e a necessidade de unidade: a formação do GTME __________76
4. Pastoral da convivência _______________________________________79
5. Os Escritos de Scilla Franco ____________________________________83
Capítulo III – Convivência, contextualização e colaboração ecumênica: a prática missionária de Scilla Franco e os desafios da Missão na atualidade ____________________________________________________86
1. A prática missionária de Scilla Franco e como ele vê as relações entre
religião e cultura ________________________________________________87
1.1. A relação entre religião e cultura ___________________________87
1.2. A Relação entre Fé Cristã e Cultura Ocidental ________________89
1.3. Religião e cultura nos textos de Scilla Franco _________________94
2. Proximidade, contextualização e compaixão ________________________99
2.1. Proximidade e sensibilidade ______________________________99
2.2. A necessária contextualização ____________________________101
3. Missão e ecumenismo ________________________________________105
3.1. O Ecumenismo como uma exigência da Missão ______________105
3.2. Missio Dei, compaixão e vivência ecumênica ________________109
10
Considerações finais __________________________________________112
Bibliografia __________________________________________________119
ANEXOS
1- Parecer do chefe do Posto Indígena de Dourados, Vandelino Bravim,
sobre a Roça Comunitária__________________________________127
2- Autorização do Delegado Regional do 9º DR, Joel de Oliveira, para
implantação do Projeto Roça Comunitária______________________128
3- Relatório de Scilla Franco enviado ao Delegado Regional da FUNAI_129
4- Relatório de Scilla Franco enviado ao Diretor da ASPLAN _________132
5- Missão Metodista Tapeporã_________________________________140
6- Relação dos textos publicados por Scilla Franco ________________160
7- Carta ao presidente da FUNAI, assinada por Scilla Franco e Dom
Todardo Leitz ___________________________________________162
LISTA DE MAPAS
Mapa 1- Território Guarani em Mato Grosso do Sul_____________________26
Mapa 2- Áreas indígenas em Mato Grosso do Sul______________________26
Mapa 3- O Estado do MS com a localização de Dourados _______________31
Mapa 4- Reserva Indígena e a cidade de Dourados ____________________39
SIGLAS
1. ASPLAN – Assessoria de Planejamento
2. CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação
3. FUNAI – Fundação Nacional do Índio
4. FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
5. GTI – Grupo de Trabalho Indigenista
6. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
7. GTME – Grupo de Trabalho Missionário Indigenista
8. CIMI – Conselho Missionário Indigenista
9. COMIN – Conselho de Missões entre os Índios
10. SPI – Serviço de Proteção ao Índio
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar a ação missionária desenvolvida
por Scilla Franco entre os índios Kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul entre
os anos de 1972 e o início de 1979.
Pastor metodista nomeado pela primeira vez em 1963, Scilla Franco
(1930-1989) assumiu o trabalho missionário entre os índios quando pastoreava
a Igreja Metodista em Dourados – MS1. Entre os anos de 1972 a 1979,
desenvolveu uma pastoral de convivência entre os índios e alcançou
reconhecimento nacional. Por razões de saúde, teve que deixar o trabalho com
os índios, sendo eleito bispo na Igreja Metodista, ministério que exerceu por
menos de dois anos, vindo a falecer. Por causa de seu trabalho como pastor,
missionário e bispo, é reconhecido pela Igreja Metodista como um de seus
mais importantes expoentes e um referencial para a missão indigenista.
Os participantes da 41ª Semana Wesleyana2, realizada em maio de 1992
na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, cujo tema foi: “A Igreja
Metodista diante dos 500 anos – Repensando a Evangelização Junto aos
Povos Indígenas, remeteram uma carta aberta “a todo o povo metodista”, como
documento conclusivo do encontro. Nesta carta, afirmam: “A Igreja Metodista
tem no saudoso Bispo Scilla Franco um exemplo para a sua vocação
missionária entre os povos indígenas”.3
O período abordado nessa pesquisa, entre 1972 e 1979, refere-se aos
anos em que Scilla Franco desenvolveu seu ministério em contato direto com
os índios. Os textos escritos por Scilla Franco, embora, na maioria das vezes,
tenham sido publicados depois desta época, dizem respeito a esse período e
são resultado de sua experiência missionária.
1Fundada em 12 de agosto de 1955, a Igreja Metodista em Dourados é uma das pioneiras do metodismo no Mato Grosso do Sul. 2 Realizada anualmente no mês de maio, data que lembra a experiência religiosa de John Wesley, conhecida como o “coração aquecido”, a Semana Wesleyana é promovida pela Faculdade de Teologia da Igreja Metodista e apresenta temas da atualidade para reflexão à luz da tradição wesleyana. 3 KEMPER, Thomas & SILVA, Jaider Batista da (org.) Repensando a Evangelização junto aos povos indígenas. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1994, p. 159.
14
O objetivo geral desta pesquisa é descrever a natureza do trabalho
realizado por Scilla Franco, destacando quais os elementos que o tornam
referencial para a práxis missionária, na visão da Igreja Metodista.
Os objetivos específicos são, primeiramente, entender o contexto que
envolve os índios das etnias Kaiowá e Terena que habitam a reserva indígena
de Dourados e que foram alvo do trabalho missionário de Scilla Franco: sua
história, sua cultura e as conseqüências do contato com os brancos cristãos –
os católicos, primeiramente, e, depois, os protestantes; particularmente, os
metodistas. No primeiro capítulo, portanto, busca-se contextualizar a ação de
Scilla Franco descrevendo e entendendo as circunstâncias que envolviam os
índios aos quais se dirige e a tradição religiosa que o inspira e o mantém no
trabalho missionário.
Em segundo lugar, busca compreender como se deu o contato entre
Scilla Franco e os índios Terena e Kaiowá, o desenvolvimento de seu trabalho,
as repercussões e os desdobramentos para a Igreja Metodista, destacando-se
a descoberta da “pastoral da convivência”, por parte de Scilla Franco. Procura-
se descrever quem foi Scilla Franco e as razões e motivações que o levaram a
envolver-se com a missão indígena, destacando como a aproximação, convívio
e a identificação com a cultura, produzidos por uma sensibilidade solidária,
foram marcas de sua ação entre os nativos. Pretende, também, apresentar os
principais temas tratados nos textos que escreveu em defesa dos índios e
dirigidos ao grupo religioso que ele representava, a Igreja Metodista.
Em terceiro lugar, pretende-se apresentar, a partir dos capítulos
anteriores, elementos que podem ajudar a construir uma práxis missionária
relevante para a atualidade. Procura mostrar como a ênfase de Scilla Franco
na convivência leva a considerar os temas da relação entre religião e cultura, a
contextualização e o ecumenismo. Discute as relações entre cultura e religião
no Ocidente, apontando para uma necessária práxis missionária
contextualizada, motivada pela compaixão e numa perspectiva ecumênica
como um caminho para uma ação missionária cristã relevante no contexto
brasileiro atual.
15
No desenvolvimento desta pesquisa, utilizou-se o método histórico-crítico
que, conforme definido por Eva Maria Lakatos e Maria de Andrade Marconi4,
investiga acontecimentos, processos e instituições do passado, a maneira
como são influenciados pelo contexto de cada época e suas influências na
sociedade de hoje. As fontes utilizadas para esta pesquisa são depoimentos de
familiares e contemporâneos de Scilla Franco, textos que ele escreveu e
publicou em diversos periódicos da Igreja Metodista e de agências ecumênicas,
documentos encontrados na Missão Tapeporã, além de pesquisa bibliográfica
sobre a questão dos índios no Brasil e, em particular, no Mato Grosso do Sul e
a respeito de temas atuais da Missiologia.
Além do trabalho de pesquisa nestas fontes, foi realizada uma visita à
Missão Tapeporã e às aldeias que estão na Reserva Indígena de Dourados.
Nessa visita, houve a oportunidade de um contato direto com os índios e uma
melhor compreensão dos problemas que ainda enfrentam. Destaca-se as
figuras de Paulo Silva Costa e Maria Imaculada Conceição Costa, atuais
coordenadores da Missão Tapeporã e sua importante contribuição na coleta de
dados para a pesquisa. Eles disponibilizaram importantes documentos e
informações a respeito de Scilla Franco e da formação da Missão.
Dentre estas fontes, destacam-se os textos de Scilla Franco publicados
no Expositor Cristão5, órgão oficial da Igreja Metodista no Brasil. Naturalmente,
os textos nele publicados representam o pensamento oficial da Igreja e os
artigos assinados por pastores, pastoras, leigos e leigas passam por crivo
institucional. No entanto, vale observar que nos escritos de Scilla Franco
aparecem duras críticas à estrutura da Igreja Metodista e à sua liderança. Não
parece haver, no período estudado, controle ou algum tipo de censura por
parte da Igreja em relação a esses artigos. A partir do Expositor Cristão,
também, se recupera a história da participação metodista na Missão
Evangélica Caiuá, em Mato Grosso do Sul nos anos de 1928 a 1946.
4 LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Maria de Andrade. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 1983, p.79. 5 Fundado em 1º de janeiro de 1886, com o nome “O Methodista Cathólico”, era publicação quinzenal. Durante um período teve circulação semanal e, atualmente, mensal. O nome foi mudado para “O Expositor Christão” e, depois, “Expositor Cristão”. Publica, além das notícias referentes às igrejas locais e documentos oficiais, textos de pastores(as) e bispos(as).
16
A prática missionária de Scilla Franco representou uma nova forma de
“evangelizar” os índios em oposição ao proselitismo, mais comum na prática
missionária protestante. Scilla Franco, no desenvolvimento de sua prática
missionária, foi capaz de perceber a riqueza da cultura indígena e a dignidade
dessas pessoas e, a partir dessa experiência, faz uma crítica intra-religiosa do
grupo que representa. A maneira como realizou seu trabalho aponta para
novas possibilidades de práxis pastoral e missionária com base no diálogo
religioso, no respeito às diferentes culturas e na solidariedade com os fracos.
Nesta pesquisa, pretende-se abordar essas questões a partir de uma
pessoa que é um referencial importante, pela projeção que conseguiu, na
história recente da Igreja metodista brasileira. Seu testemunho ainda
permanece e, ao aproximar-se dele com os referenciais metodológicos e
conceituais construídos nos últimos anos, somos desafiados a assumir uma
práxis missionária comprometida com a promoção humana e a vivência
ecumênica.
O ministério de Scilla Franco, portanto, tanto entre os índios quanto no
episcopado da Igreja Metodista representa um marco importante na história
recente do metodismo brasileiro. Apesar disso, nenhuma pesquisa, em nível
acadêmico, foi realizada sobre sua vida e ministério. Esta pesquisa pretende
preencher parte dessa lacuna.
CAPÍTULO I
CONQUISTA, CATEQUESE E PERDA DA TERRA: OS
ÍNDIOS KAIOWÁ6 E TERENA NA REGIÃO DE
DOURADOS E O INÍCIO DA PRESENÇA METODISTA
ENTRE ELES
Neste capítulo, pretende-se descrever os principais traços culturais e
religiosos dos índios Kaiowá (da família Guarani) e Terena que habitam a
reserva indígena de Dourados no Mato Grosso do Sul. Foi a eles que se
direcionou Scilla Franco em sua prática missionária. Para situar melhor as
complexas questões que envolviam estes grupos indígenas na década de1970,
procura-se, neste capítulo, mostrar como aconteceu a ocupação do território
indígena no Mato Grosso do Sul e os principais acontecimentos que
determinaram a configuração da população, economia e as relações sociais na
região. Assim, analisa-se, principalmente, a questão indígena na região de
Dourados. Não é, portanto, objetivo desse trabalho analisar a questão indígena
no Brasil com toda a complexidade que a envolve. Entretanto, para melhor
compreensão desse recorte histórico, cultural e geográfico torna-se necessária
uma introdução para localizar este grupo específico e numa época própria
dentro de um quadro maior.
1. Índios no Brasil
A questão dos índios no Brasil é uma questão complexa e que, em cada
parte do país, de dimensões continentais, adquire contornos próprios. Há
grande diversidade de etnias e diferentes histórias, embora seja comum a
6 A grafia do nome “Kaiowá” aparece de variadas formas nos diferentes textos – Kaiowá, Caiuá, Kayová Cayua, Caygua, Caaygua, Cayagua, Cagoa, Cayoa, Caygoa, Cayowa e outros. Neste trabalho, optou-se por “Kaiowá” por ser a forma utilizada por Scilla Franco e pelos documentos da Missão Tapeporã.
18
todos os povos o fato do avanço da ocupação pelos brancos representar uma
ameaça.
Eduardo Bueno descreve as diferentes e ambíguas impressões tidas
pelos europeus no contato inicial com os índios. Citando, livremente, frases
repetidas na época da conquista e colonização e que mostram o que estava no
senso comum, revela a dificuldade em se definir quem eram os índios e a
diversidade que os caracterizava:
Cristóvão Colombo, achando que chegara ao Oriente, decidira
chamá-los de índios – mas índios os portugueses sabiam que não
eram. O que seriam então esses “negros da terra”? Bons selvagens,
como sugeriu Pero Vaz de Caminha (e os filósofos Rousseau,
Montaigne e Diderot ecoaram), ou antropófagos bestiais, como
insinuaram outros cronistas? Defini-los de que forma, se alguns eram
brutais e intratáveis, como os Aimoré – que comiam carne humana
“por mantimento e não por vingança ou pela antiguidade de seus
ódios” – e outros tão mansos e pacíficos como os Carijó, “o melhor
gentio da costa?”7
Os nativos pertenciam a uma grande quantidade de tribos que podem ser
divididas de acordo com o tronco lingüístico a que pertenciam: tupi-guaranis
(região do litoral), macro-jê ou tapuias (região do Planalto Central), aruaques
(Amazônia) e caraíbas (Amazônia). A denominação “índio” foi dada pelos
navegadores portugueses que buscavam um caminho mais curto para as
Índias Ocidentais. O nome dado aos habitantes que aqui já estavam surge,
portanto, da impressão que os navegadores tiveram de terem chegado às
Índias. Mesmo depois de perceberem tratar-se de “novas terras”, continuaram
a chamá-los genericamente de “índios”, ignorando as diferenças lingüístico-
culturais.8
Segundo Bueno,
Jamais se saberá com certeza, mas quando os portugueses
chegaram à Bahia os índios brasileiros somavam mais de dois
7 BUENO, Eduardo. Brasil: uma história – Cinco séculos de um país em construção. São Paulo: Leya, 2010, p. 18. 8 Informações extraídas de: http://www.funai.gov.br/indios/conteudo.htm, acesso em: 15 de maio de 2010.
19
milhões – quase três, segundo alguns autores. Mas, no alvorecer do
Terceiro Milênio da Era Cristã, não passam de 325.652 – menos do
que dois estádios do Maracanã lotados. Foram dizimados por gripes,
sarampo, varíola; escravizados aos milhares e exterminados pelo
avanço da civilização e pelas guerras intertribais, em geral
estimuladas pelos colonizadores europeus. Ainda assim, os povos
remanescentes constituem 215 nações e falam 170 línguas
diferentes.9
Dados da FUNAI10 apontam que atualmente vivem cerca de 460 mil
índios no Brasil, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que perfazem
cerca de 0,25% da população brasileira. Esses números se referem aos
indígenas que vivem em aldeias; estima-se que há entre 100 e 190 mil vivendo
fora das áreas indígenas, inclusive nas cidades. Há, ainda, 63 referências de
índios ainda não-contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o
reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista, a
FUNAI.11
No contato com os europeus, dezenas de milhares de pessoas morreram
por causa de doenças trazidas por eles. Doenças hoje facilmente tratáveis,
como gripe, sarampo e coqueluche, e outras mais graves, como tuberculose e
varíola, vitimaram sociedades indígenas inteiras, por não terem os índios
imunidade natural a estes males. Povos que habitavam a costa leste, na
maioria falantes de línguas do Tronco Tupi, foram dizimados, dominados ou
refugiaram-se nas terras interioranas para evitar o contato.12
A história do contato dos índios brasileiros com os colonizadores foi
marcada, também, por forte violência física. Os nativos foram perseguidos,
escravizados e mortos, quando ofereciam resistência. Vistos como empecilhos
à expansão da civilização e progresso da sociedade, foram alvo de tentativas
de integração ao sistema econômico, servindo como mão-de-obra barata.
9 BUENO – 2010, p. 27. 10 FUNAI – Fundação Nacional do Índio: órgão oficial do Governo brasileiro, ligado ao Ministério da Justiça 11 Disponível no site: www.funai.gov.br. Acesso em: 15 de maio de 2010. 12 Ibidem.
20
Nesse processo de colonização e avanço da “sociedade civilizada” povos
inteiros desapareceram e muitos outros foram dizimados.
Os índios que vivem em aldeias ocupam áreas demarcadas pelo Governo
Federal. A demarcação de uma Terra Indígena (TI) 13 tem por objetivo garantir
o direito indígena à terra, estabelecendo a extensão da posse indígena,
assegurando a proteção dos limites demarcados e impedindo a ocupação por
terceiros.14 Todavia, o Governo não tem conseguido garantir esses limites e
impedir as invasões. São frequentes as invasões de mineradores, pescadores,
caçadores, madeireiras e posseiros. Obras do próprio Estado como rodovias,
ferrovias, linhas de transmissão e usinas hidrelétricas acabam por tomar parte
significativa dessas áreas; além dos efeitos da poluição de rios e do
desmatamento. Não raro, há conflitos com colonos, fazendeiros e garimpeiros
pela posse da terra.
A maioria dos índios no Brasil vive hoje em precárias condições de vida. A
ocupação do “homem branco” e o avanço das plantações, da pecuária, da
mineração, das madeireiras e das cidades foi, ao longo do tempo, num
acelerado processo, destruindo as suas principais fontes de sustento. O
contato não lhes foi e não é favorável: vítimas de doenças para as quais não
possuíam anticorpos, de exploração pelo mais forte (econômica e militarmente)
e sem recursos, acabam tendo sua cultura menosprezada, ridicularizada ou
destruída.
É importante destacar que esse processo violento de colonização é
acompanhado e até legitimado pela religião cristã. Alia-se ao empreendimento
colonizador uma ação evangelizadora até então inédita. O modelo de
13 A definição de terras ocupadas pelos índios encontra-se no parágrafo primeiro do artigo 231 da Constituição Federal: são aquelas "por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seu usos, costumes e tradições". Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, in: www.planalto.gov.br, acesso em: 15 de maio de 2010. 14 “Desde a aprovação do Estatuto do Índio, em 1973, esse reconhecimento formal passou a obedecer a um procedimento administrativo, previsto no artigo 19 daquela lei. Tal procedimento, que estipula as etapas do longo processo de demarcação, é regulado por decreto do Executivo e, no decorrer dos anos, sofreu seguidas modificações. A última modificação importante ocorreu com o decreto 1.775, de janeiro de 1996. In: Povos indígenas no Brasi”: http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/introducao, acesso: em 15 de janeiro de 2011.
21
evangelização que acompanhou a conquista e colonização é o “paradigma
misssionário católico romano medieval”, descrito por David Bosch15como a
“eclesiastização da salvação”. Construído por influência do pensamento de
Agostinho, esse modelo afirmava-se numa compreensão de missão
“fundamentada na divindade, santidade e imutabilidade da igreja”. Nessa visão,
missão era a ‘auto-realização da igreja’”, radicalizada na frase de Cipriano extra
ecclesiam nulla salus (não há salvação fora da igreja).16
Com as descobertas de novas terras por portugueses e espanhóis,
descobriu-se milhões de pessoas que, após 15 séculos de cristianismo, não
conheciam a salvação. As duas primeiras potências colonialistas, ambas
católicas, assumiram a tarefa de levar a mensagem da redenção eterna.
“Assim, logo após a descoberta das rotas marítimas para a Índia e a América, o
papa Alexandre VI (na bula Inter Caetera Divinae) dividiu o mundo fora da
Europa entre os reis português e espanhol, conferindo-lhes autoridade plena
sobre todos os territórios que já tinham descoberto assim como sobre aqueles
que ainda descobririam.”17 Essa bula baseava-se na pretensão medieval de
que o papa possuía a autoridade suprema sobre todo o mundo.
É nesse contexto que surge o termo “missão” aplicado ao envio de
agentes eclesiásticos a colônias distantes. Segundo Bosch18, o termo foi
empregado pela primeira vez com esse sentido por Inácio de Loyola. Por
conseguinte, a esses agentes chamou-se “missionários.” Assim, a palavra
“missão” está historicamente vinculada à época colonial e à idéia de um envio
de pessoas às se delegava uma tarefa eclesiástica. Segundo Bosch,
Entendia-se a igreja como uma instituição jurídica que tinha o direito
de confiar sua “missão” aos poderes seculares e a um corpo de
“especialistas” – sacerdotes ou religiosos. “Missão” designava as
atividades pelas quais o sistema eclesiástico ocidental se propagava
para o resto do mundo. O “missionário” estava irrevogavelmente
conectado a uma instituição na Europa, da qual ele ou ela derivava o
15 BOSCH, David. Missão transformadora: mudanças de paradigmas na teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 265-292. 16 Ibidem, p. 270. 17 Ibidem, p. 280. 18 Ibidem, p. 281.
22
mandato e o poder de conferir salvação às pessoas que aceitavam
certos princípios de fé.19
O que chama atenção é o uso da coerção e da violência nessa
empreitada missionária. Povos não-cristãos deveriam ser “cristianizados” a
todo custo. A salvação, somente possível pelo batismo cristão, era um fim para
o qual os meios eram totalmente justificáveis.
É importante ressaltar, também, que o paradigma missionário protestante,
embora diferente do católico, teve desdobramentos semelhantes nas colônias
dos países dessa tradição religiosa. Segundo Bosch, nem houve um
rompimento completo com o paradigma católico medieval, descrito acima. São,
em alguns aspectos, uma continuidade. Primeiramente, na insistência na
correta na correta formulação doutrinária:
Tornou-se importante, sobretudo para as gerações subsequentes,
manter o credos da Reforma abslutamente inalterados e inalteráveis,
atribuindo-lhes uma validade extensiva a todos os tempos e
contextos e usando-os tanto para excluir certos grupos quanto para
incluir aqueles considerados ortodoxos na fé, enquanto se
descartava a possibilidade de qualquer desdobramento doutrinário
futuro.20
Além disso, a Reforma, não abandonou a compreensão medieval da
relação entre Igreja e Estado:
Do século 15 ao 17, tanto católicos romanos quanto protestantes
estavam, de formas muito distintas, é claro, ainda comprometidos
com o ideal teocrático da unidade de igreja e Estado. Nenhum
governante católico ou protestante dessa época podia conceber que,
com a conquista de concessões ultramarinas, estivesse ampliando
tão somente sua hegemonia política: era óbvio que as nações
conquistadas também deveriam submeter-se à religião do
governante ocidental.21
19 Ibidem, p. 281. 20 Ibidem, p. 294 21 Ibidem, p.367.
23
Segundo Bosch22, há ainda no século XVII e no século XVIII um
afastamento deste ideal teocrático. Mas, no século XIX, ele reaparece com o
chamado “Destino Manifesto”. Esse ideal parte do princípio da superioridade da
cultura ocidental e da convicção de que Deus escolheu as Nações do Ocidente,
particularmente os Estados Unidos, para propagar os benefícios e
superioridade dessa cultura.
Essa convicção, geralmente denominada como noção do “destino
manifesto”, quase não era perceptível durante as primeiras décadas
do século 19, mas aprofundou-se gradualmente e alcançou sua
expressão máxima durante o período de 1880 a 1920, conhecido
também como o “apogeu do colonialismo” [...] Existe,
inequivocamente, um elo orgânico entre a expansão colonial do
Ocidente e a noção do destino manifesto.23
As Missões protestantes que chegam ao Brasil no fim do século XIX e
que, particularmente, começam a se interessar pelo trabalho com os índios, na
década de 1920, estão inseridas nesse contexto e partilham dessa noção de
superioridade da cultura e religião que representam em relação às outras
culturas e religiões, especialmente, as indígenas.
Outro capítulo digno de nota no processo de colonização e, aliado a ele,
de cristianização dos índios foi o trabalho dos jesuítas através da catequese e
a estratégia de concentrar os índios em aldeamentos ou “reduções”. Segundo
Bueno24, esta ação resultou em tragédia. Por um lado, provocou surtos de
doenças infecciosas e, por outro, facilitou a ação de escravagistas; embora os
jesuítas lutassem contra a escravização dos índios.
O fato é que catequese e colonialismo andaram juntos. Graciela
Chamorro descreve as reduções como uma estratégia de transformação do
índio em cristão, o que implicava na negação de sua identidade indígena.
Convictos da universalidade das normas sociais e do alto grau de
unidade cultural – como reza o cânone bíblico e aristotélico – os
conquistadores europeus se empenharam em civilizar e cristianizar
22 Ibidem, p.362. 23 Ibidem, p.362. 24 BUENO – 2010, p. 53.
24
os indígenas, certos de que ocorreria por conta da civilização e do
cristianismo a eliminação das diferenças perturbadoras entre o modo
de ser europeu e o americano, reduzindo, obviamente, o índio ao
branco.25
Na visão dos jesuítas, o índio em estado natural é comparado às feras e a
conversão seria um paulatino desnudar-se da ferocidade desumana dos
indígenas. A redução, ou seja, juntar os índios num lugar, facilitaria esse
processo.
2. Os kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul
O alvo da ação missionária desenvolvida por Scilla Franco são os índios
Kaiowá e Terena que habitam a reserva indígena de Dourados em Mato
Grosso do Sul. Para uma melhor compreensão de quem são essas pessoas e,
consequentemente, uma adequada contextualização, descrevem-se, abaixo as
principais características destes povos e o processo que os levaram a viver
onde e da maneira como viviam na década de 1970, período em que Scilla
Franco esteve entre eles.
2.1. Os Índios Kaiowá
Kaiowá é um dos subgrupos da família Guarani, conforme descreve Egon
Schaden:
Os Guarani do Brasil Meridional podem ser divididos em três grandes
grupos: os Ñandéva, os Mbüá e os Kayová. Estes últimos são os
únicos que hoje em dia não usam, em face de estranhos, a
autodenominação Guarani [...] Em que pese as ligeiras variações
entre as numerosas aldeias, a divisão em três subgrupos se justifica
por diferenças sobretudo linguísticas, mas também por
peculiaridades na cultura material e não-material.26
25 CHAMORRO, Graciela. A conquista espiritual e os guarani: a questão de Deus e do “outro” in: DREHER, Martin (org.) 500 anos de Brasil e a Igreja na América Meridional. Porto Alegre: Edições EST, 2002, p. 181. 26 SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: EDUSP, 1974, p. 2.
25
Portanto, diferentes povos compõem a família Guarani. O que os une são
traços culturais semelhantes, como a língua. Mas, há diferenças entre eles. O
autor observa, por exemplo, que é possível distinguir com certa facilidade três
dialetos Guarani em território brasileiro. Segundo o site “Povos Indígenas no
Brasil” 27, há entre os subgrupos Guarani-ñandeva, Guarani-kaiowa e Guarani-
mbya existentes no Brasil, “diferenças nas formas linguísticas, costumes,
práticas rituais, organização política e social, orientação religiosa, assim como
formas específicas de interpretar a realidade vivida e de interagir segundo as
situações em sua história e em sua atualidade”.28
Segundo Jorge Eremites Oliveira, no Mato Grosso do Sul apenas os
índios chamados Ñandeva se autodentificam como Guarani; os Kaiowá que
vivem no Brasil se auto-identificam como Kaiowá e, não raramente, explicitam
sua identidade aos que se referem a eles como Guarani. Conclui Oliveira:
O termo Guarani, portanto, não corresponde a um único e grande
povo indígena monolítico e fossilizado no tempo e no espaço. Os
chamados subgrupos, parcialidades ou fragmentos, aí sim,
correspondem a grupos étnicos específicos que se identificam e são
identificados como Kaiowá, Mbyá ou Guarani (como no caso dos
Ñandeva), por exemplo.29
O nome Kaiowá significa “os que pertencem à floresta alta, densa”. E
Ñandeva, segundo Schaden, significa “nossa gente” ou “todos nós”. No Mato
Grosso do Sul, são conhecidos como Guarani e no Paraguai, como Chiripa.
Estes dois sub-grupos da família Guarani, Ñandeva (também chamados de
27 “Povos Indígenas no Brasil” é uma página na internet do ISA – Instituto Socioambiental, ligado ao CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação). Criado há 11 anos com o propósito de reunir verbetes com informações e análises de todos os povos indígenas que habitam o território nacional, além de textos, tabelas, gráficos, mapas, listas, fotografias e notícias sobre a realidade desses povos e seus territórios com o propósito de combater a desinformação que favorece o preconceito e a exploração. In: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva/1296, acesso em: 25 de outubro de 2010. 28 Ibidem. 29 OLIVEIRA, Jorge Eremites. Cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira: um estudo por ocasião da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação Kaiowá da terra indígena Sucuri’y in: Revista Sociedade e Cultura, v. 10 nº1, jan./jun. 2007, p. 95-113, Universidade Federal de Goiás, p. 99, disponível em http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/703/70310109.pdf, acesso em: 25 de outubro de 2010.
26
Guarani) e Kaiowá, habitam a região de Dourados e estão presentes nas
reservas indígenas da região (Mapa 1).
Mapa 1 – Território Guarani em Mato Grosso do Sul
Mapa 2: Áreas indígenas em Mato Grosso do Sul
Fonte: Geoprocessamento do Programa Kaiowá/Guarani, NEPPI, UCDB (2005)30
30 Acessado na página na Internet: “Trilhas de Conhecimento – O Ensino Superior de Indígenas no Brasil” http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm, acesso em: 25 de outubro de 2010.
27
Na década de 1970, os Kaiowá estavam confinados a uma série de
aldeias do Sul do Mato Grosso (como Dourados, Panambi, Teicuê, Taquapiri,
Amambai e outras) e de regiões contíguas do Paraguai. A maioria deles sob a
administração oficial do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, em reservas que
delimitavam o espaço físico de sua ocupação, dedicando-se à caça e à
lavoura, e trabalhando todos os anos durante alguns meses nos grandes ervais
que havia na região.31
Graciela Chamorro descreve as origens dos povos Guarani:
Os grupos guarani atuais pertencem ao tronco linguístico tupi-
guarani, que por sua vez se desenvolveu do tronco tupi mais antigo,
e à tradição denominada na arqueologia de tupi-guarani.
Frequentemente são incluídos na denominação genérica de “povos
amazônicos”, com o que se quer fazer menção ao lugar de origem de
seus ancestrais, a Amazônia. OsTupi teriam-se originado ao redor de
cinco mil anos atrás, entre os rios Jiparaná e Aripuanã, afluentes do
Rio Madeira, num habitat caracterizado por florestas entrecortadas
de cerrados, apto para a caça e coleta. O crescimento da população
durante os dois mil anos seguintes teria ocasionado a expansão do
grupo, a diversificação da protolíngua Tupi e a modificação da cultura
em geral, chegando à incorporação da agricultura – plantação de
tubérculos – e das cerâmicas. Ter-se-iam neolitizado. 32
A estrutura familiar Guarani era composta por famílias extensas, que são
unidades de produção e consumo, onde os homens tinham a função da
limpeza do terreno, e as mulheres a do plantio, colheita e transporte dos
produtos.
A religião é o elemento unificador da cultura Guarani. É no sistema
religioso que, apesar das diferenças de um subgrupo para outro, “a cultura
Guarani encontra a expressão máxima de sua unidade fundamental.”33 A
religião oferece os mecanismos de defesa e as condições para a resistência
31 Cf. SCHADEN – 1974, p. 4. 32 CHAMORRO, Graciela. A Espiritualidade Guarani: teologia ameríndia da palavra. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 41 33 SCHADEN – 1974, p. 184.
28
cultural. Ou, pelo menos, é na religião que estes mecanismos se evidenciam
melhor.
Chamorro34 faz um estudo da religiosidade dos povos chamados Guarani,
dentre os quais os Kaiwoá, e a descreve como uma religião da “palavra”.
A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida
para os povos chamados guarani e como eles imaginam o
transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra.
Deus é palavra. Dentre todas as faculdades humanas, são as
diversas formas do “dizer” as vias, por excelência, de comunicação
com as divindades, pois estas são essencialmente seres da fala.35
E esta “palavra” toma forma no mundo, adquirindo uma dimensão
cosmológica: a terra é “um corpo que murmura” a palavra. A palavra tem uma
dimensão não-corpórea, embora habite o corpo. No nascimento, a palavra
“provê para si um lugar no corpo da criança”. Tanto a terra quanto o corpo são
habitados pela “palavra”, o que confere forte ligação entre eles – terra e corpo.
Segundo Chamorro, os povos Guarani são capazes de “compreender-se e de
compreender toda a sua vida como experiências de palavra, atos de dizer-
se.”36
2.2. Os índios Terena
Os Terena tem uma trajetória diferente dos Kaiowá e as relações entre
eles, embora vivendo na mesma reserva, nem sempre são amistosas. Os
Terena fazem parte dos Guaná, de língua aruák, povo que outrora habitava a
parte setentrional do Chaco. Era um povo de lavradores sedentários que, antes
da chegada dos espanhóis e dos portugueses, já haviam sido subjugados por
caçadores de índole guerreira e pertencentes ao grupo linguístico Guaikurú.
Embora as culturas destes povos indígenas fossem originalmente distintas,
34 CHAMORRO, Graciela. Terra Madura –Yvy Araguyje: fundamento da palavra Guarani. Dourados, Editora UFGD, 2008. 35 Ibidem, p. 56. 36 CHAMORRO – 1998, p. 48.
29
vários séculos de contato levaram a uma grande similaridade em suas crenças
e costumes.37
O antropólogo Fernando Altenfelder Silva descreve, num texto clássico da
etnologia dos povos brasileiros, a chegada dos Terena à região do Mato do
Grosso do Sul:
Os Terena vivem hoje em oito aldeias próximas às cidades de
Aquidauana, Taunay e Miranda, no sul do Mato Grosso [...] Dizem os
Terena ter vindo do Chaco há uns 100 anos. Logo após sua
chegada, os brasileiros começaram a penetrar no mesmo território, e
os Terena afirmam que foram maltratados pelos fazendeiros, tendo
que mudar-se de um lugar para outro, enquanto os brasileiros
tomavam posse das terras. Alguma ajuda de caráter econômico foi-
lhes dada em 1911, quando a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil
alcançou a área e os indígenas conseguiram emprego como
trabalhadores da ferrovia. Em 1914, graças ao General Rondon,
cederam-se as terras aos Terena e dessa época em diante ficaram
eles sob a proteção do Governo brasileiro.38
No passado, a aldeia constituía a unidade básica da vida social terena.
Era nela que se realizavam as atividades primárias de natureza econômica,
religiosa e outras cerimônias. Em torno da aldeia estavam os campos
cultivados e nas florestas e rios vizinhos, a caça e o peixe, que contribuíam
para a subsistência. A lavoura era a principal forma de atividade econômica. A
unidade econômica era a família extensa, que vivia em uma casa comum. A
unidade política primária era a aldeia, cada qual com seu chefe. Dispunham de
uma base social muito mais sofisticada do que seus vizinhos Mbayá. Estavam
estratificados em camadas hierárquicas: os "nobres" ou "capitães e a "plebe"
ou "soldados".
Quanto à religião, os principais rituais estão ligados à lavoura, sua
principal atividade econômica. A agricultura é um dos fundamentos da religião
Terena e o tradicional ritual realizado no fim da colheita é um dos mais 37 SILVA, Fernando Altenfelder. Religião Terena in: SCHADEN, Egon (org.) Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 269. O texto foi originalmente publicado com o título “Terena Religion” na Acta Americana, V, IV, 1946, México. O texto foi traduzido por Egon Schaden. 38 Ibidem, p. 269.
30
importantes. Sua finalidade é agradecer pelo sustento vindo da terra e, ao
mesmo tempo, conseguir a bênção de Itukó’Oviti, o Deus Superior, para o
próximo plantio. Esses rituais eram realizados sempre com muita festa e
alegria.
Silva descreve os principais traços da aculturação dos Terena:
Exteriormente, os Terena parecem brasileiros. Vestem roupas
brasileiras, muitos vivem em casas de tijolos, com camas e mobílias
simples, usam regularmente pão e arroz em sua dieta, aprendem o
português em escolas brasileiras, tocam modinhas brasileiras no
violão e dançam danças brasileiras. Mas não se identificam como
brasileiros. Chamam-se a si próprios “Terena”.39
O Mato Grosso do Sul abriga uma das maiores populações indígenas do
Brasil e os Terena, por contarem com uma população bastante numerosa e
manterem um contato intenso com a população regional, são o povo indígena
que mais tem visibilidade. Podem ser vistos com frequência nas cidades
vendendo artesanato e nas fazendas e usinas de açúcar e álcool em trabalhos
temporários. Segundo Silva,
Essa intensa participação no cotidiano sul-matogrossense favorece a
atribuição aos Terena de estereótipos tais como “aculturados” e
“índios urbanos”. Tais declarações servem para mascarar a
resistência de um povo que, através dos séculos, luta para manter
viva sua cultura, sabendo positivar situações adversas ligadas ao
antigo contato, além de mudanças bruscas na paisagem, ecológica e
social, que o poder colonial e, em seguida, o Estado brasileiro os
reservou.40
Os Terena vivem atualmente em um território descontínuo, fragmentado
em pequenas “ilhas” cercadas por fazendas e espalhadas pelos municípios de
Miranda, Aquidauana, Anastácio, Dois Irmãos do Buriti, Sidrolândia, Nioaque e
Rochedo, em Mato Grosso do Sul. Além dessas áreas exclusivas, estão
também em Porto Murtinho (na Terra Indígena Kadiweu), em Dourados (TI
Guarani) e no estado de São Paulo (TI Araribá).
39 Ibidem, p. 275. 40 Ibidem, p. 275.
31
3. A região de Dourados
Dourados está localizada no Estado do Mato Grosso do Sul (Mapa 3) e
atualmente, segundo dados do Censo 2010, realizado pelo IBGE41, conta com
uma população de 191.638 habitantes. Na década de 1970, a população era
estimada em torno de 175 mil pessoas.
Mapa 3: O Estado do Mato Grosso do Sul com a localização da cidade de Dourados:
Fonte: http://www.geomundo.com.br/mato-grosso-do-sul-50126.htm, acesso em: 27 de outubro de 2010.
O Estado do Mato Grosso do Sul foi criado por meio de uma Lei
Complementar (nº 31) em 11 de outubro de 1977, promulgada no governo de
Ernesto Geisel. O novo estado surgiu do desmembramento da parte meridional
do antigo Mato Grosso e foi implantado a partir de 1º de janeiro de 1979.
Compreende uma área de aproximadamente 358.000 Km².42 Portanto, a época
estudada refere-se ao tempo em que a região fazia parte do Estado de Mato
Grosso.
41 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístca. Dados disponíveis no site: www.ibge.gov.br, acesso em 5 de janeiro de 2011. 42 OLIVEIRA, Jorge Eremites de. Cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira: um estudo por ocasião da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação Kaiowá da terra indígena Sucuri’y in: Sociedade e Cultura. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, janeiro-junho de 2007, p.99.
32
Antes da colonização branca, o município de Dourados era habitado pelas
tribos Terena e Guarani (Ñandeva e Kaiowá). Os remanescentes desses povos
constituem uma das maiores populações indígenas do Brasil.43 Em 10 de maio
de 1861, foi fundada a Colônia Militar de Dourados, sob o comando de Antônio
João Ribeiro, quando houve a invasão Paraguaia, um dos episódios que deu
origem à Guerra do Paraguai ou Guerra da Tríplice Aliança.
No final do século XIX, vieram para o Mato Grosso algumas famílias
originárias dos Estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo em
busca de novas terras no oeste do país. A boa fertilidade da terra na região, a
preços baixos, atraiu os novos colonizadores. Outro fator que levou à ocupação
da área pelos não-índios foi a possibilidade de exploração dos extensos ervais
nativos impulsionada pela ação da Companhia Matte Larangeira, que deteve o
monopólio da exploração dos ervais em toda a região, entre os anos de 1882 e
1924. Houve, também o desenvolvimento da cultura pastoril, com inúmeras
fazendas de gado, e a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil,
entre 1904 a 1914. Estes foram alguns dos principais fatores que levaram ao
desenvolvimento econômico e crescimento populacional na área.
Em 20 de dezembro de 1935, com áreas desmembradas do município de
Ponta Porã, através do Decreto nº 30 do então Governador do Estado, Mário
Corrêa da Costa, foi criado o município de Dourados.44 A colônia agrícola de
Dourados, criada em 1943, com uma área de 50.000 hectares, reservado em
1923 para a colonização, passou a integrar Dourados pelo Decreto de elevação
à categoria de município em 1935, atraindo para a região tantas levas de
imigrantes brasileiros e estrangeiros, principalmente japoneses, que se
dedicaram especialmente ao cultivo de café.
3.1. A Guerra do Paraguai (1864-1870)
Evento determinante na história da região e de consequências graves
para os índios daquela parte do território brasileiro e, também, da Argentina e
43 Segundo dados da FUNASA – Fundação Nacional de Saúde, o número de indígenas no município de Dourados é de 12.132. Esses dados foram publicados em 1ºde julho de 2010 e estão disponíveis na página da internet: www.funasa.gov.br. Acesso em: 10 de novembro de 2010. 44Informações retiradas da internet no site da Prefeitura Municipal de Dourados: http://www.dourados.ms.gov.br, acesso em:10 de outubro de 2010.
33
Paraguai, foi a chamada Guerra do Paraguai. Eduardo Bueno assim a
descreve, sucintamente:
... foi uma guerra suja, travada em pântanos e alagadiços, lutada por
escravos recém-libertos, indígenas de diversas nações, mestiços,
“voluntários” convocados à força e até por mulheres, crianças e
velhos. Guerra na qual muitos combatentes morreram de tifo, cólera
ou malária antes de dispararem o primeiro tiro. Guerra de interesses
expansionistas, travada entre ex-colônias emergentes sonhando um
dia ser metrópole. A mais longa (prolongou-se de outubro de 1864 a
março de 1870) e a mais terrível (deixou cerca de 150 mil mortos)
guerra ocorrida no mundo entre 1815 e 1914. A maior guerra da
história da América Latina.45
A Guerra foi um prolongado conflito em território ocupado por povos
indígenas e que os envolveu diretamente nas batalhas: eram forçados a lutar.
Por causa da guerra, tiveram que mudar várias vezes o local de moradia.
Houve desestabilização nas relações familiares em povos que se configuram a
partir delas. Após a Guerra, políticas governamentais de ocupação da região
foram implementadas e, também, afetaram significativamente a vida desses
povos.
O povo Terena foi um dos mais afetados pela guerra. Ela representou um
dos acontecimentos que tiveram maior impacto sobre suas vidas: um dos
palcos do conflito foi o território deles. Aliados dos brasileiros, sofrem com os
ataques e represálias por parte das tropas paraguaias. Buscando refúgio nas
matas densas e de difícil acesso, se dispersam em uma vasta região.
3.2. A Companhia Matte Larangeira
A maioria dos autores consultados nessa pesquisa aponta como fator de
destaque na ocupação das terras Guarani em Mato Grosso do Sul a
exploração da erva mate46. Segundo Eva Maria Luiz Ferreira e Antonio
45 BUENO – 2010, p. 216. 46 Planta nativa da América, a erva-mate era usada com frequencia pelos índios antes da chegada dos colonizadores. Quando chegam à região, logo descobrem as propriedades e os benefícios do uso da erva; seu uso é adotado por eles e intensificado adquirindo valor comercial. Assim, a extração da erva-mate, presente em grande quantidade nas matas da
34
Brand47, o domínio da Companhia Matte Larangeira na extração do produto na
região foi a primeira expansão econômica em território Guarani.
Com o fim da Guerra do Paraguai, uma comissão de limites percorreu a
região ocupada pelos Kaiowá, entre o rio Apa, no Mato Grosso do Sul, até o
Salto de Sete Quedas, em Guaíra, Paraná. Em 1874, os trabalhos de
demarcação da fronteira entre Brasil e Paraguai foram encerrados. Fazia parte
dessa comissão, Thomaz Larangeira, empresário responsável pelo
fornecimento de alimentos à expedição. Percorrendo a região, ele percebeu
novas possibilidades de exploração econômica no lugar. No mesmo ano,
Larangeira fundou uma fazenda de gado no Mato Grosso e logo depois, em
1877, iniciou o trabalho de exploração da erva-mate, no Paraguai.
Quando o chefe da comissão, o Barão Enéas Galvão, foi nomeado
presidente da província, Larangeira fez uso das boas relações que mantinha
com ele, recorreu à sua proteção e, através do Decreto Imperial nº 8799, de 9
de dezembro de 1882, tornou-se o primeiro concessionário legal para a
exploração da erva-mate nativa, por um período inicial de 10 anos.
Ferreira e Brandt descrevem como Larangeira, com o tempo, alcançou o
monopólio de extração da erva mate na região, através da proximidade com o
poder público:
A área de concessão é constantemente ampliada, sempre através do
apoio de políticos influentes, como os Murtinho e Antônio Maria
Coelho. Com o advento da República, as terras legalmente
consideradas devolutas passam para a responsabilidade dos
Estados, o que favorece os interesses da Empresa, pelo seu grau de
proximidade com os governantes locais.48
Desta forma, a Companhia adquiriu o monopólio na exploração da erva-
mate na região, ultrapassando os 5.000.000 de hectares. Esse domínio
começou a encontrar oposição a partir de 1912, mas, manteve-se até 1943,
região, atraiu um número considerável de pessoas. A vida dos índios é afetada por esse movimento e pela exploração de sua mão de obra. 47 FERREIRA, Eva Maria Luiz Ferreira; BRAND, Antonio. Os Guarani e a erva-mate. In: Revista Fronteiras, Dourados, MS: v. 11, n. 19, p. 107-126, jan./jun. 2009. Universidade Federal da Grande Dourados, p.109. 48 Ibidem, p.109.
35
quando o presidente Getúlio Vargas criou o território de Ponta Porã e anulou os
direitos da Companhia.49
Evidentemente, essa longa ocupação atingiu de forma importante a vida
dos índios. Muitos são explorados por ervateiros, num regime de quase
escravidão. Próximo às vias de escoamento do produto, vão surgindo
pequenos povoados, gerando grandes conflitos, nos quais os índios sempre
saem perdendo.
3.3. O Marechal Rondon e a Era Vargas
Personagem importante na história do Brasil, cuja ação foi determinante
na configuração das questões indígenas em muitas regiões do país e,
particularmente, onde hoje é o Mato Grosso do Sul, foi o Marechal Cândido
Mariano da Silva Rondon (1865-1958), militar de carreira que trabalhava na
expansão das linhas telegráficas no Mato Grosso e na Amazônia. Rondon é o
primeiro diretor do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão do Governo
criado em 1910.
A política do SPI era a de integração dos povos indígenas à sociedade
substituindo a idéia da catequese missionária pela de proteção e assistência do
Estado. No entanto, a proteção era um momento transitório, que deveria
garantir as condições para que os índios se tornassem parte da massa de
trabalhadores nacionais.
Segundo Seth Garfield, “Rondon, positivista ortodoxo, junto com seus
colegas ideólogos no SPI, acreditava no progresso inevitável das sociedades
como evolução dos chamados estágios de primitivismo ao racionalismo
científico ou ‘positivo’.” O desejo de Rondon era que o índios fossem integrados
à sociedade brasileira, deixando de ser índios e incorporando-se plenamente
na “nacionalidade brasileira tão íntima e completa quanto possível”.50
Essa tentativa de oferecer proteção aos índios, todavia, gerou novos e
graves problemas. O confinamento em reservas, com espaço cada vez menor,
49 Ibidem, p. 110. 50 GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Naçao na Era Vargas. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: nº 39, 2000, p. 16.
36
representa uma violência ao modo de vida indígena. Historicamente, viviam
livres, sem limites territoriais, a não ser os definidos pelas próprias etnias. Por
meio da coleta, da caça e da pesca retiravam na natureza tudo o que
necessitavam para sobreviver. Em razão disso, mantiveram sempre forte
ligação com o território. A limitação territorial se opõe aos seus traços culturais
básicos de viver livres de fronteiras. Segundo Jaime Ribeiro de Santana Júnior,
Os Guarani denominam os lugares que ocupam de tekoha,
significando o lugar físico - terra, mato, campo, águas, animais,
plantas, remédios, etc. - onde se realiza o teko, o “modo de ser”, o
estado de vida guarani. O tekoha engloba a efetivação de relações
sociais de grupos macro familiares que vivem e se relacionam em um
espaço físico determinado. Idealmente este espaço deve incluir,
necessariamente, o ka’aguy (mato), elemento apreciado e de grande
importância na vida desses indígenas como fonte para coleta de
alimentos, matéria-prima para construção de casas, produção de
utensílios, lenha para fogo, remédios, etc. [...] Indispensáveis no
espaço Guarani são as áreas para plantio da roça familiar ou coletiva
e a construção de suas habitações e lugares para atividades
religiosas.51
Ao invés de proteger os índios, a criação das reservas, facilitou a
ocupação da região pelos brancos. Assim, o objetivo de integração dos índios à
sociedade, se ligava diretamente a outro: promover a conquista das terras
indígenas que ainda permaneciam fechadas à colonização. As reservas
indígenas foram resultado de um projeto claro de colonização e civilização que
desconsiderou as especificidades (étnicas, culturais e históricas) dos indígenas
e negou-lhes o direito à posse das terras que tradicionalmente ocuparam.
Segundo Santana Junior,
As demarcações das reservas quase nunca respeitavam as culturas,
tradições, modo de vida, rituais, posse natural da terra, o que trouxe
como conseqüência, o fato das reservas abrigarem vários povos
51 SANTANA JUNIOR, Jaime Ribeiro de. Produção e reprodução indígena: o vir e o porvir na reserva de Dourados/MS in: Revista de Geografia Agrária, v. 5, nº 9, 2010. Revista eletrônica disponível no site: http://www.campoterritorio.ig.ufu.br/viewarticle.php?id=243, acessado em 28 de outubro de 2010, p. 207.
37
indígenas, com culturas, línguas, tradições totalmente diferentes, ou
seja, sem levar em consideração o tekoha, resultando entre os
indígenas, conflitos e adaptações.52
A exemplo de outros movimentos de colonização ocorridos ao longo da
história do país, “a história das 'pacificações' realizadas pelo SPI é, na maioria
dos casos, uma sucessão de desastres demográficos. Os novos métodos de
Rondon não eram capazes de impedir a mortandade provocada pela
introdução de doenças contra as quais os índios não tinham resistência.”53
A criação das reservas representou um confinamento compulsório dos
índios Guarani dentro de oito reservas. Todas elas deveriam estar localizadas
relativamente próximas a cidades ou vilarejos, visando inseri-los na economia
regional como de mão-de-obra. As demarcações foram realizadas pelo SPI,
entre os anos de 1915 e 1928. São elas: Benjamim Constant (1915, em
Amambaí); Francisco Horta Barbosa (1917, em Dourados); José Bonifácio
(1924, em Caarapó); Sassaró ou Ramada (1928, em Tacuru); Limão Verde
(1928, em Amambaí); Takaperi (1928, em Coronel Sapucaia); Pirajuy (1928,
em Paranhos) e Porto Lindo (1928, em Japorã). Todas as áreas totalizariam
18.297 hectares.54
Rondon vai ser ainda personagem de destaque em outra importante
política do Governo brasileiro que, igualmente, afetou a vida na região de
Dourados. Com o advento da Era Vargas (1930-1945) foi adotada pelo
Governo uma política de ocupação do país denominada de “Marcha para o
Oeste”. Garfield assim a descreve:
Lançada na véspera de 1938, a Marcha para o Oeste foi um projeto
dirigido pelo governo para ocupar e desenvolver o interior do Brasil.
Nas palavras de Vargas, a Marcha incorporou "o verdadeiro sentido
de brasilidade", uma solução para os infortúnios da nação. Apesar do
extenso território, o Brasil havia prosperado quase que
52 Ibidem, p. 210. 53 Secretaria de Educação Fundamental - Secretaria de Educação a Distância. Índios do Brasil. Brasília: MEC, SEED SEF, 2001, Cadernos da TV Escola, p. 65. 54 Ibidem, p. 210.
38
exclusivamente na região litoral, enquanto o vasto interior mantinha-
se estagnado - vítima da política mercantilista colonial, da falta de
estradas viáveis e de rios navegáveis, do liberalismo econômico e do
sistema federalista que caracterizaram a Velha República (1889-
1930). Mais de 90% da população brasileira ocupava cerca de um
terço do território nacional. O vasto interior, principalmente as regiões
Norte e Centro-oeste, permanecia esparsamente povoado. Muitos
índios, é claro, fugiram para o interior justamente por estas razões.
Mas os seus dias de isolamento, anunciou o governo, estavam
contados.55
Essa política de ocupação encontrou em Rondon um importante
colaborador e o SPI, por sua vez, foi visto pelo Governo Vargas como um
instrumento de sua implantação. A “valorização” do índio fez parte da
campanha governamental para popularizar a Marcha para o Oeste. Os índios
passaram a ser considerados como figuras importantes e Rondon
entusiasmou-se com a atenção do Estado Novo para com eles e seus
"problemas".
A “Marcha para o Oeste” foi determinante para a configuração econômica
e populacional da região de Dourados. Entretanto, para os índios, foi mais um
movimento de ocupação de terras que, outrora, foram suas.
4. A Reserva Indígena de Dourados
A reserva indígena de Dourados – Francisco Horta Barbosa (Mapa 4), foi
a segunda área a ser demarcada, em 1917. Mas, só teve seu processo de
demarcação, homologação e recebimento do título definitivo concluído 48 anos
depois, ou seja, em 1965.
Santana Junior assim a descreve:
A reserva de Dourados tem seus limites territoriais juntos aos limites
do perímetro urbano do município, ficando a norte da cidade. A sua
composição étnica é composta por três etnias: Caiuás (Kaiowá),
Guarani (Ñandeva) e os Terena. Divididas em duas aldeias: a Bororó
55 GARFIELD – 2005, p. 15.
39
e a Jaguapirú, que totalizam uma área de 3.539 hectares. Com uma
população estimada em 2007, superior a 12 mil indígenas
distribuídos nas duas aldeias. Nesse contexto, observamos a
existência de uma grande população indígena delimitadas
territorialmente em um espaço demarcado, afrontando assim,
aspectos peculiares ao seu modo de vida tradicional.56
Mapa 4: Reserva Indígena – composta pelas aldeias Jaguapiru e Bororó
– e a cidade de Dourados:
Fonte: Prefeitura Municipal de Dourados, 2010.57
Na década de 1990, a reserva de Dourados ganhou destaque nacional
pela divulgação do elevado número de suicídios que ocorreram ali. Esses
suicídios são motivados, em sua maioria, pela perda da perspectiva de vida no
interior da reserva. Falando a respeito dos suicídios entre os índios e suas
possíveis causas, Bueno afirma:
56 Ibidem, p. 204. 57 Disponível na página da Internet: http://geo.dourados.ms.gov.br/geodourados/map.phtml acesso em: 25 de outubro de 2010.
40
De todos os dramas vividos pelas tribos brasileiras, o mais rumoroso
tem sido o do suicídio coletivo dos Guarani-Kayowá, de Mato Grosso
do Sul. Agrupados em reservas improdutivas, submetidos a um
regime de trabalho semi-escravo e despojados de suas tradições,
236 Kayowá se mataram em menos de uma década. Só em 1995,
foram 54 os que cometeram o deduí, o suicídio ritual – ou rito de
“apagar o sol”, como os próprios índios, trágica e poeticamente, o
denominam.58
A reserva de Dourados possui característica peculiar: é formada por três
etnias: os Kaiowás, os Ñandeva e os Terena. Formada pelas aldeias Bororó e
Jaguapirú, a reserva localiza-se a norte da cidade, tendo seus limites territoriais
junto ao perímetro urbano do município (Mapa 2). Segundo dados da FUNASA,
estima-se uma população superior a 12 mil habitantes, distribuídas nas duas
aldeias.
A proximidade da reserva com a cidade, que tinha por objetivo tornar
possível o emprego da mão-de-obra dos índios, é fator determinante para os
problemas culturais. Por um lado, gera entre os indígenas o sentimento da
oportunidade, principalmente entre os mais jovens; mas, por outro, evidencia a
discriminação e exclusão sociais, já que de maneira geral, a sociedade não
índia é fortemente marcada por uma carga de preconceito em relação a essas
populações.
Os recursos naturais sempre representaram um dos principais meios de
sustento dos indígenas, mas com o processo de desmatamento ocorrido na
reserva, há uma degradação quase que total desses recursos. Associam-se a
essa questão, processos erosivos, devido à retirada da cobertura vegetal e o
uso inadequado de máquinas e implementos agrícolas.
Na criação da reserva de Dourados, havia indígenas Terena na região
que foram trazidos para a reserva pelo Serviço de Proteção ao Índio no intuito
de ensinar técnicas de agricultura para os Guarani (Ñandeva) e Kaiowá. Os
Terena eram tradicionalmente considerados hábeis agricultores. Nesse
contexto, desenvolveu-se entre eles uma relação de dominação dos Terena
58 BUENO – 2010, p. 27.
41
sobre os Guarani, gerando inúmeros conflitos étnicos, levando a uma
subdivisão entre a área ocupada pelos Terena e pelos Guarani.
Os Kaiowá e os Terena, portanto, embora sejam povos diferentes,
ocupam a mesma reserva por causa das políticas governamentais do passado.
Segundo o depoimento de Paulo Silva Costa, que atualmente coordena os
trabalhos na missão Tapeporã, criada por Scilla Franco, os Terena foram
trazidos para a reserva de Dourados vindos de Aquidauana. Diz ele:
A partir de 1918 o SPI – Serviço de Proteção ao Índio – hoje FUNAI,
na época chefiado pelo Marechal Rondon, começou a demarcar
essas áreas. O SPI chegou lá, olhou para os Kaiowá e concluiu: “Ah!
Esses índios são meio preguiçosos, aqui eles não vão trabalhar,
então a gente vai trazer os Terena da região de Aquidauana, porque
os Terena são mais trabalhadores, então vamos trazê-los para
ensinarem os Kaiowá a trabalhar.” O resultado é que a reserva era
pequena e foi dividida ao meio, em cima ficam os Terena, em baixo
os Kaiowá. Ficou um corredorzinho que nem água tem mais, o
chamado “farinha seca” como divisa geográfica dentro da reserva.59
Esse depoimento dá a idéia de como foram e ainda são tratados os
índios. Mesmo em órgãos oficiais criados para “protegê-los” transparece o
preconceito e falta de compreensão da cultura desses povos em toda a sua
complexidade. O resultado são relações conflituosas entre os índios e a
miséria. São dois povos diferentes ocupando um mesmo espaço reduzido e
vivendo sob a tutela de um órgão do governo. Ao mesmo tempo, aos poucos
as fazendas que cortam a reserva vão ocupando a terra dos índios, diminuindo-
a ainda mais. Segundo o mesmo depoimento de Costa, em 1994, a área que
oficialmente era de 3.500 hectares60, não chega a 3.000.61
Os índios Kaiwoá e Terena que estão presentes na reserva indígena de
Dourados têm em comum um longo processo de aculturação que aconteceu
durante todo o período em que estiveram em contato com os brancos. Ainda
59 COSTA, Paulo Silva ; COSTA, Maria Imaculada. O suicídio entre os Kaiowá. In: KEMPER, Thomas; SILVA, Jaider Batista da. Repensando a Evangelização junto aos povos indígenas. São Bernardo do Campo, EDITEO, 1994, p. 80. 60 Um hectare equivale a 10.000 metros quadrados. 61 COSTA ; COSTA - 1994, p. 80.
42
que mantenham muitas de suas características culturais, assimilaram muitas
coisas da cultura branca, como as roupas, a religião cristã (há inúmeras igrejas
dentro da reserva, a maioria pentecostais), a maneira de lidar com a terra, a
alimentação, os costumes.
Fazem parte desse processo de aculturação o contato com os
colonizadores europeus, tanto no Paraguai como no Brasil, o contato com os
jesuítas nas reduções indígenas, os efeitos da Guerra do Paraguai, a
exploração da erva-mate em larga escala, a vinda de pecuaristas e das
fazendas de lavouras comerciais.
A política de criação das reservas próximas às cidades acelerou o
processo. Também, fazem parte desse processo, as missões protestantes. Foi
entre os índios Guarani do Mato Grosso do Sul, Kaiwoá e Ñandeva, que houve
maior incidência de trabalho missionário. Segundo o site “Povos Indígenas no
Brasil”,
Há missões evangélicas protestantes (desde 1928), metodistas
(1978), fundamentalistas alemães (1968), todas com um viés
evangélico tradicional. Mais recentemente têm proliferado
denominações pentecostais carismáticas em muitas áreas guarani
naquele estado. A igreja católica atua na área através do Conselho
Indigenista Missionário (1978).62
5. A Igreja Metodista e seu envolvimento com os índios
5.1. No início do metodismo
A preocupação com a evangelização dos índios na tradição metodista
remonta aos primórdios do Metodismo. John Wesley, seu principal fundador, no
ano de 1736, deixa a Inglaterra, onde fora formado e desenvolvia seu trabalho
pastoral, e vai para a Geórgia – nesse tempo, uma das colônias inglesas na
América do Norte.
A intenção de Wesley, ao evangelizar os índios, tem como ponto de
partida uma crise que ele próprio vivia em relação ao cristianismo que conhecia
62 Povos Indígenas no Brasil in: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva/1296, acessado em 25 de outubro de 2010.
43
em seu país. Pensava ele que, ao anunciar a mensagem cristã a um povo que
não conhecia nada do cristianismo (que adquiriu, ao longo do tempo, vários
males e distorções), conseguiria encontrar a essência da fé cristã. Vive,
também, uma crise de fé pessoal e imagina que, ao evangelizar os índios,
encontraria seu próprio caminho. Segundo Richard Heitzenrater, pouco antes
de sua partida,
Wesley estava escrevendo uma carta para responder a John Burton
(Letters, 25:439-41), que havia visto o motivo de seu “encargo
piedoso” como o “desejo de fazer o bem para as almas dos outros e,
como conseqüência disso, para a sua própria.” Wesley novamente
reverteu a ordem ao apontar para o objetivo já proposto, agora
transferido de Oxford para um novo campo de trabalho: “Meu
principal motivo... é a esperança de salvar minha própria alma. Agora
ele havia encontrado um lugar no qual esse processo poderia
avançar de um modo mais perfeito; seu motivo secundário, então,
era “a esperança de fazer mais do bem na América.”63
A princípio, pode parecer uma fraqueza e revelar uma dimensão negativa
do trabalho missionário. Por outro lado, pode ser interpretado também como o
reconhecimento de que a evangelização é uma via de mão dupla e tanto um
como outro, missionário e “evangelizado”, podem aprender e descobrir coisas
novas nesse encontro. Aqui, percebe-se que há um duplo sentido na
evangelização: ao ensinar, aprende; ao proclamar, descobre algo novo ou
perdido. Evidentemente, esse processo exige certa abertura e humildade para
reconhecer que não se tem toda a verdade.
Wesley demonstra uma visão idealizada do indígena americano. Ao
encontrar-se com eles, frustra-se ao perceber a resistência desse povo à
mensagem cristã. Segundo Heitzenrater, os primeiros contatos de Wesley com
os índios acontece ainda no navio. Já nesse encontro, ele começou a perceber
os erros das concepções nas quais fundamentava sua missão e rapidamente
muda de idéia quanto à sua crença de que os “nobres selvagens” não tivessem
opiniões preconcebidas e fossem
63 HEITZENRATER, Richard P., Wesley e o povo chamado metodista. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1996, p. 58.
44
“um grupo interessado, pronto como criancinhas, ávido e preparado
para receber o evangelho em sua simplicidade”. Embora Tomochichi,
um chefe dos Creeks, expressasse sua esperança de ouvir a
“Grande Palavra” (se os homens sábios de sua nação o
permitissem), ele preveniu Wesley e seus amigos que os
comerciantes franceses, espanhóis e ingleses haviam causado
grande confusão e haviam feito com que muitas pessoas se
negassem a ouvir a palavra.64
Aqui, percebem-se os problemas da identificação do cristianismo com a
exploração e morte produzidas pelo homem branco. O cristão, a despeito da
mensagem de libertação e vida originária do cristianismo e ainda presente na
pregação, traz consigo – algumas vezes, involuntariamente – a morte, a
destruição e a escravização.
De acordo com Duncan A. Reily65, o mito do “nobre selvagem” influenciou
a visão missionária de Wesley e foi sua motivação. Esse mito, melhor descrito
por Rousseau, já estava presente nas primeiras impressões que os europeus
tiveram dos índios, tanto na América do Sul, quanto na do Norte, embora não
fossem as únicas. A descrição feita por Pero Vaz de Caminha é um sinal disso,
segundo Reily.
5.2. No Brasil
Ao analisar o histórico do envolvimento dos protestantes no Brasil, em
particular dos metodistas, com os indígenas, percebe-se uma demora para que
as questões relativas a essas pessoas tivessem a atenção da Igreja.66
A Igreja Metodista chegou ao Brasil em 1836. Essa primeira tentativa
de inserção durou até 1841 e logo foi interrompida. Em 1867 fixou-se no Brasil
com a chegada de Junius Eastham Newman, que veio acompanhando
imigrantes oriundos do Sul dos Estados Unidos e que se fixaram em Santa
64 Ibidem, p. 61. 65 REILY, Duncan Alexander. Uma pequena história do contato evangélico com os povos indígenas. In: KEMPER, Thomas. & SILVA, Jaider Batista da. Repensando a Evangelização junto aos povos indígenas. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1994, p. 89. 66 Cf. Colégio Episcopal da Igreja Metodista. Diretrizes pastorais para a Ação Missionária Indigenista. São Paulo: Editora Cedro, 1999, pp. 7-11.
45
Bárbara D’Oeste, interior do Estado de São Paulo.67 Entretanto, não houve até
1928 nenhuma iniciativa missionária que envolvesse os indígenas. Neste ano,
foi organizada a “Associação de Catequese” apoiada pelas Igrejas
Presbiteriana Independente, Presbiteriana do Brasil e Metodista. A essa
associação deu-se o nome de Missão Caiuá
Segundo Reily68, o primeiro a pensar na evangelização dos índios pelos
protestantes foi Regente Feijó, que tinha pretensões de reformar a Igreja
Católica brasileira tornando-a uma Igreja nacional, a exemplo da Igreja da
Inglaterra. Dentre suas propostas, estava a de convidar os Irmãos Morávios
para evangelizar os índios do Brasil. Feijó tinha conhecimento do trabalho que
eles realizavam na América Central, Guiana Francesa e em outros lugares e
queria que o mesmo acontecesse aqui. Sua proposta não encontrou aceitação.
Mais tarde, segundo Reily, o Marechal Rondon também desafiou os
protestantes, especialmente a trabalhar entre os índios Kaiowá.69 Esse desafio
serviu de motivação aos protestantes, que já pensavam em iniciar trabalho
missionário entre os índios, e surgiu a “Missão Caiuá”, reunindo presbiterianos
e metodistas.
Segundo Jonas Furtado do Nascimento70, que fez um estudo da Missão
Caiuá e da presença de missionários protestantes entre os Kaiowá e Terena,
os missionários que iniciaram o trabalho adotaram um modelo protecionista de
cristianização, acompanhando o tipo de ação do SPI. Segundo o autor,
A atuação missionária visa integrá-lo na civilização, mesmo que
implique na desvalorização de sua cultura. O projeto missionário
protestante na atuação da Missão Caiuá junto aos índios Guarani-
Kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul através de programas nas
áreas de educação (construção e manutenção de escolas), saúde
(construção de hospital) e agricultura, eram considerados meios para
se conseguir a conversão dos índios. Nesse sentido, o índio é
67 Cf. REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984, p. 80-88. 68 Ibidem, p. 102. 69 Ibidem, p. 103 70 NASCIMENTO, Jonas Furtado do. Missão Caiuá: um estudo da ação missionária protestante entre os índios Guarani, Kaiowá e Terena. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2005, dissertação de mestrado.
46
sempre visto como elemento passivo e não se reconhece a
identidade e autonomia indígena.71
Na avaliação de Nascimento, a atuação do Governo brasileiro através do
Serviço de Proteção aos Índios – SPI, criado em 1910 pelo Marechal Rondon e
Fundação Nacional do Índio – FUNAI, órgão que o sucedeu em 1967,
desenvolveu “suas ações baseados no propósito de neutralizar os povos
indígenas, tidos como impedimentos para as frentes de expansão do país.
Assim, em geral, estes órgãos estiveram estreitamente vinculados a interesses
não-indígenas ou mesmo anti-indígenas.”72
É no contexto de atuação de Rondon que surge a Missão Caiuá. A
iniciativa da criação de uma Missão entre os índios no sul de Mato Grosso foi
do missionário norte-americano Albert Sidney Maxwell e sua esposa Mabel
Davis Maxwell, que chegam Brasil em 1915. Depois de um período de cerca de
um ano na região Norte, Maxwell decidiu começar seu trabalho na região de
Dourados, por considerar os índios em piores condições do que os outros por
onde havia passado.73 Nessa viagem, ele acompanha a caravana de Rondon.74
Para concretizar seu objetivo, Maxwell buscou apoio institucional na
Comissão Brasileira de Cooperação das Igrejas Evangélicas. Essa Comissão
foi resultado do Congresso do Panamá – 1916 que, por sua vez, foi um
desdobramento da Conferência Missionária de Edimburgo, na Escócia em
1910, evento que representa o início formal do movimento ecumênico.
Como desdobramento de “Edimburgo 1910”, que não teve representantes
da América Latina, realizou-se, em 1916, no Panamá um congresso com uma
estrutura idêntica à conferência de Edimburgo, mas que limitou o seu escopo à
América Latina. Participaram, principalmente, latinos e missionários
trabalhando no continente, embora fosse presidido pelos missionários norte-
americanos Robert E. Speer e John R. Mott, sendo o inglês o idioma oficial do
71 Ibidem, p. 12. 72 Ibidem p. 70. 73 Ibidem, p.76. 74 Ibidem, p.76.
47
conclave.75 A Comissão Brasileira de Cooperação das Igrejas Evangélicas
iniciou suas atividades em 1920 e chegou a abranger 19 entidades entre
Igrejas, missões e organizações evangélicas cooperativas. Dela participaram
as Igrejas: Episcopal, Presbiteriana, Presbiteriana Independente, Metodista e
Congregacional.
O tema da missão aos índios aparece, pela primeira vez, no relatório das
atividades da Comissão de Cooperação referente aos anos 1927 e 1928: “A
nossa sub-comissão de missões aos índios elaborou um projeto de estatutos
de uma associação de evangelização dos índios, em vias de formação, e na
qual estão interessadas a West Brazil Mission da igreja presbiteriana [...] e
várias outras corporações, e com vasto programa cooperativo.”76 Segundo,
Reily, a Missão Caiuá foi a concretização desse planejamento.
A Missão Caiuá foi criada no dia 28 de agosto de 1928, em São Paulo, e
contou com a participação da East Brazil Mission, agência missionária da Igreja
Presbiteriana dos Estados Unidos da América do Norte, representada por
Albert Maxwell, pastor; a Igreja Presbiteriana do Brasil, através do agrônomo
João José da Silva; da Igreja Presbiteriana Independente, com o professor
Esthon Marques e da Igreja Metodista, através do médico Nelson de Araújo.
Essa configuração da equipe de trabalho com um pastor, um agrônomo, um
médico e um professor indica os objetivos da Missão: oferecer aos índios a
pregação do Evangelho, assistência agrícola, assistência médica e escola.
Desses, a evangelização se destaca como o principal, a razão de ser da
Missão.
Katya Vietta e Antonio Brand destacam a importância do hospital para os
índios da região. Segundo eles, “um dos únicos locais de atendimento a esse
segmento da população, sem qualquer preconceito quanto ao internamento e à
75 REILY - 1984, p. 247 e 248. 76 Ibidem, p. 255.
48
assistência. A assistência à saúde sempre atraiu muitos índios para o conjunto
dos trabalhos realizados pela missão, no qual se inclui a evangelização.”77
Segundo Carlos Barros Gonçalves, a presença do engenheiro agrônomo
é importante tanto para a produção de consumo dos missionários, quanto para
a natureza da obra missionária. Para facilitar a evangelização e catequese, era
preciso que os índios se fixassem na terra. Assim, “a função do missionário
João José da Silva seria então a de ensinar aos índios não só o cultivo
científico da terra e o manejo dos instrumentos, mas também as vantagens e a
garantia da vida agrícola em contraste com as misérias do nomadismo.”78
A escola, por sua vez, é fundamental para a tarefa evangelizadora. Como
caracterizado por Antonio Gouvêa Mendonça79, o protestantismo é uma
“religião do livro”, fundamentada na leitura e interpretação dos textos sagrados.
Parte central do culto protestante é ocupada pela Bíblia e, na liturgia, os livros
de cânticos têm lugar de destaque.
5.3. A participação metodista na missão Caiuá segundo o Expositor Cristão
O Expositor Cristão, na edição de 8 de agosto de 1928, traz reportagem
sobre o início da Missão Caiuá80. Nessa reportagem, descreve como a Igreja
Metodista decidiu participar da missão através do envio do médico, uma vez
que já havia o agrônomo e o professor.
A Conferência Central da Egreja Methodista Episcopal do Sul, no
Brasil, na sua primeira sessão, realizada em São Paulo, em outubro
do anno passado (1927), recomendou que a Egreja Methodista
77 VIETTA, Katya; BRAND, Antonio. Missões evangélicas e Igrejas neopentecostais entre os Kaiwá e os Guarani em Mato Grosso do Sul In: Transformando os deuses: Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Ed. UNICAMP, 2004, p. 228. 78 BARROS, Carlos Gonçalves. O movimento ecumênico no Brasil e o projeto missionário em Mato Grosso in: Anais do II Encontro Nacional do GT História das Religiões e das Religiosidades. Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH, Maringá: v. 1, nº 3, 2009, p. 16. 79 MENDONÇA, Antonio Gouvêa Mendonça. O Celeste Porvir – a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1995, p. 66. 80 Um appello à alma methodista brasileira. O Expositor Christão,São Paulo, p. 1, 8 de agosto de 1928.
49
entrasse em cooperação com as demais egrejas evangélicas no
plano de evangelização dos índios Gaynazes, de Matto-Grosso, e
que essa cooperação, preferidamente, se traduzisse em facto,
enviando a Egreja Methodista o missionário-médico que a obra
requer.81
Da Igreja Metodista de Juiz de Fora, apresentou-se o Dr. Nelson de
Araújo, médico recém-formado. Membros da Igreja se organizaram e cotizaram
os custos da viagem do missionário-médico para conhecer o local da Missão
na companhia do Rev. Maxwell, que aconteceu entre maio e junho de 1928.
Um desafio é feito ao final da reportagem para que haja participação das
Igrejas Metodistas no sustento missionário:
Levantar-se-á então o methodismo brasileiro e sustentará o seu
primeiro missionário? Como o fará? Que organização assumirá a
responsabilidade de seu sustento? Ainda não está organizada a
Junta Nacional de Missões; a quem competirá, pois, assumir a
responsabilidade e em nome de que organização methodista irá à
selva de Matto-Grosso o Dr. Nelson Araújo?82
Na edição seguinte, de 15 de agosto de 1928, o jornal publica nova
reportagem na primeira página do jornal, agora com o título “Nossa Missão aos
Bugres83”. Nela, evidencia-se a fragilidade organizacional da Igreja Metodista.
Logo depois foi o appello do Rev.Maxwell trazido à barra da
Conferência Central do Brasil, a favor dos bugres. A Conferência
apanhada de surpresa limitou-se a uma recomendação favorável que
ficaria sepultada em suas actas, como um silencioso protesto contra
a nossa desarticulação ecclesiástica, se a Providência, proctetora,
81 Ibidem, p. 1. 82 Ibidem, p. 2. 83 “Bugre” é visto, hoje, como um termo depreciativo e ofensivo aos índios. Segundo QUEIROZ, Antônio Carlos. Politicamente correto e direitos humanos, Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004, p. 7. “Bugre – Termo depreciativo do indivíduo de origem indígena, tido como selvagem, rude. Parece que a expressão foi utilizada pela primeira vez no Brasil em 1555, por oficiais da marinha francesa, que estabeleceram numa ilha da Baía da Guanabara a sede da chamada “França Antártica”, para designar os tamoios, um subgrupo do povo Tupinambá, que dominavam grande extensão do litoral brasileiro, desde o norte de São Paulo até Cabo Frio e o Vale do Paraíba, no Rio de Janeiro. Tinha o sentido de indivíduo rude, selvagem, primário, não-civilizado, não-cristão, herético. Segundo o dicionário Houaiss, a origem da palavra é o nome que os franceses davam, em 1172, a uma seita religiosa de búlgaros, cujos membros eram considerados “heréticos” e “sodomitas”.”
50
não viesse apontar-nos a direção [...] É preciso confessar-se que, no
momento, nada se pode esperar da Egreja-organismo [...] nosso
mecanismo ecclesiástico está em laborioso concerto.84
Faz, então, um apelo ao movimento leigo na Igreja Metodista: “Nossas
vistas voltam-se, porém, para a Egreja-espírito, viva, forte, extuante, que é a
nossa [...] Seria possível permittirmos que o nosso mecanismo ecclesiástico em
desarranjo se torne culpado do fracasso dos mais bellos surtos de iniciativa da
Egreja Brasileira?”
Nas edições seguintes do jornal, publicado semanalmente, volta-se falar
da Missão sempre com destaque na primeira página, enfatizando a importância
do trabalho, destacando as figuras dos missionários Rev. Maxwell e Dr. Nelson
Araújo, especialmente, e apelando para a cooperação da Igreja Metodista com
recursos financeiros.
A criação Missão Caiuá ganha destaque no Expositor Cristão de 5 de
setembro de 1928:
Vingou, finalmente, o plano que Deus traçou no coração do Rev.
Maxwell. A ‘Associação Evangélica de Catechese dos Índios’ está
definitivamente criada em São Paulo, no dia 28 de agosto de 1928.
(...)“Estiveram presentes à sessão inicial o dr. Benjamin H. Hunnicutt
e rev. A.S. Maxwell, representando a East Brazil Mission, a Egreja
Presbyteriana dos Estados Unidos, a Comimssão Brasileira de
Cooperação e a Federação de Escola Evangélicas; o rev.
Epaminondas de Moura e dr. E. Escobar Junior, pela Associação da
Egreja Methodista; drs. Nelson de Araújo e rev.C. L. Smith, da Egreja
Methodista; rev. Alfredo Borges Teixeira, da Egreja Presbyteriana
Independente; rev. Salomão Ferraz, da Egreja Episcopal; Kamel Kuri,
da Egreja Presbyteriana e Joaquim da Silveira Bueno, da Egreja
Baptista.85
O texto destaca que nem todos os presentes puderam inscrever os
nomes das entidades que representavam na lista de associados por julgarem
não ter autorização para isso. Decidiu-se, também, que apenas corporações
84 Nossa Missão aos Bugres. O Expositor Christão, São Paulo: 15 de agosto de 1928, p.1. 85 O Expositor Christão, São Paulo: 5 de setembro de 1928, p. 1.
51
legalmente organizadas poderiam ser admitidas como associadas para que a
nova sociedade missionária tivesse cunho legal. Para isso, também, ela foi
constituída como uma entidade jurídica própria. “Inscreveram-se como sócios
organizadores a East Brazil Mission, a Egreja Presbyteriana dos Estados
Unidos, a Commissão Brasileira de Cooperação, a Federação das Escolas
Evangélicas e a Associação da Egreja Methodista.”86
Para a diretoria da Missão foram escolhidos: presidente: Elias Escobar
Junior (redator do Expositor Cristão na época)87; secretário-executivo: Dr.
Benjamin Hunnicut e tesoureiro: Rev. William Kerr. A partir dessa data,
Expositor Cristão publica, em todas as suas edições, relatório das contribuições
recebidas para a Missão aos Índios até a edição de 23 de janeiro de 1929.
Em 15 de maio de 1929, novamente na primeira página, o jornal publica
carta do Dr. Nelson Araújo relatando a longa viagem feita até a região de
Dourados, na época pertencente ao município de Ponta Porã. Destaca as
dificuldades da viagem e a receptividade do povo de Dourados. Sugere a
criação de um espaço no jornal com o título: “A Missão Evangélica Cayuás está
precisando de ... Quem quer auxiliá-la?” Aqui, refere-se á missão com o nome
de Missão Cayuás. Relata, também, que iniciaram uma Escola Dominical que
já contou com a participação de alguns visitantes de Dourados, o que
demonstra o caráter evangelístico da obra. A partir desta carta, envia
frequentemente notícias para serem publicadas no jornal.
A participação metodista na Missão Caiuá vai até o ano de 1946. Não há
um registro preciso da saída da Igreja Metodista da Missão. Nascimento cita
uma carta da Junta Geral de Missões da Igreja Metodista em que se declara
disposta a assumir a responsabilidade total do trabalho, alegando que era a
única que estava fazendo a parte que lhe competia como cooperante. A
Assembléia, no entanto, resolveu que não iria dissolver a sociedade.88 Num
histórico da participação metodista no trabalho com os índios89, elaborado pelo
86 Ibidem, p.1. 87 Elias Escobar Júnior foi o redator de “O Expositor Christão” até o 06 de novembro de 1929, quando assumiu Guaracy Silveira. Talvez, por essa razão, seja dado grande destaque à Missão sempre nas primeiras páginas do jornal. 88 NASCIMENTO – 2005, p. 126 89 IGREJA METODISTA – COLÉGIO EPISCOPAL – 1999, p. 8.
52
Colégio Episcopal da Igreja Metodista, há apenas uma frase sobre essa saída:
“Em 1946 a Igreja Metodista se retirou oficialmente da Missão.” Reily90 afirma
que a saída se deu por causa de desentendimentos com Augusto Schwab,
então Secretário Geral de Missões da Igreja Metodista, mas, não esclarece
quais seriam os motivos desse desentendimento. Apesar da saída da Igreja
Metodista da Missão, o médico Nelson de Araújo permanece ligado ao
trabalho.
A falta de informação sobre a retirada da Igreja Metodista no Expositor
Cristão contrasta com a grande publicidade e destaque que se deu no início. O
que se percebe é que, aos poucos, o tema foi perdendo espaço no jornal. A
questão dos índios aparece apenas na reportagem sobre o 5º Concílio Geral
da Igreja Metodista do Brasil, com uma breve menção à missão entre os índios:
“A Junta Geral de Missões recomendou, e o plenário aprovou, que iniciemos
nova Missão entre os índios e é bem provável que dentro de pouco esse
trabalho seja iniciado.” 91
Destacamos aqui a Missão Caiuá em razão da participação metodista em
dado momento (1928 a 1946) e da proximidade com Scilla Franco. A Missão
Tapeporã, nome dado por Scilla Franco ao trabalho que inicia entre os índios,
está inserida no mesmo espaço territorial da Missão Caiuá. Embora não haja
ligação institucional entre elas, a proximidade inevitavelmente leva a influências
e, também, oposição.
Scilla Franco admite as diferenças. Em entrevista concedida ao Jornal
Contexto92 na cidade de Campinas, por ocasião de um encontro do Grupo de
Trabalho Indigenista, do qual era coordenador, faz críticas ao trabalho
desenvolvido na Missão Caiuá, destacando como positivas as ações na área
de saúde, mas, apontando defeitos, em sua visão, nas outras áreas,
principalmente na evangelização e na educação.
Além da participação na missão Caiuá, por breve tempo, os metodistas
tiveram contatos com os índios em Dourados através do casal Áurea e
90 REILY – 1994, p. 103. 91 Expositor Cristão. São Paulo: 28 de fevereiro de 1946, p. 2. 92 Jornal Contexto, ano 1, nº 5. Campinas: abril de 1984, p. 6 e 7. Entrevista concedida a João Batista Nunes.
53
Francisco Brianezi, que foi pastor em Dourados e Ponta Porã. No Paraná,
durante um curto tempo entre os Kaingang em Laranjeiras do Sul, com o pastor
Geraldo Esteves. Ambas as ações foram pontuais e curtas. A conclusão de
Reily é que “tradicionalmente, os protestantes que trabalham no Brasil têm
dado pouca atenção ao trabalho indígena. Isso é o caso de nossa Igreja
(metodista) e parece ser o caso das Igrejas em geral.”93
Além da presença metodista entre os índios da região de Dourados,
outras ações, depois disso, foram sendo implementadas pela Igreja em
diversas partes do país. Ações essas marcadas pela preocupação com o
serviço e a solidariedade. Não houve uma preocupação em se fazer adeptos
para o metodismo. Essa forma de alcançar os índios contrasta com a ênfase
frequentemente dada no crescimento numérico da Igreja.
93 REILY – 1994, p. 107.
CAPÍTULO II
SENSIBILIDADE, COMPAIXÃO E DOAÇÃO: A VIDA
E O MINISTÉRIO DE SCILLA FRANCO ENTRE OS
ÍNDIOS TERENA E KAIOWÁ
No capítulo anterior, descreveu-se os principais elementos e
acontecimentos que fizeram parte de um processo de ocupação e
desenvolvimento econômico da região de Dourados. É lá que se dá a vocação
de Scilla Franco para o trabalho missionário entre os índios Kaiowá e Terena.
Todavia, não é o primeiro. Antes dele, já havia missionários protestantes em
Dourados. Portanto, a prática missionária de Scilla Franco não aconteceu
descontextualizada. Faz parte de um contexto, de um processo, de uma
tradição protestante e metodista anterior e simultânea a ele. A ação missionária
de Scilla Franco deve ser vista a partir dessa tradição que o precede e dentro
do contexto particular o que o cerca: a reserva indígena de Dourados.
Neste capítulo, apresenta-se a trajetória pessoal de Scilla Franco, sua
formação familiar, religiosa e profissional, o desenvolvimento de sua vocação
pastoral e as circunstâncias que o levaram a desenvolver um trabalho de
assistência aos índios Kaiowá e Terena em Dourados. Para contextualizar sua
atuação, descreve-se primeiro as questões que o cercam na década de 1970.
Tem-se como pano de fundo, na década de 1970, o desenvolvimento da
Teologia da Libertação, cuja preocupação maior está na identificação do pobre
como prioridade no Reino de Deus. Scilla Franco mostra-se, em alguns de
seus textos, crítico da Teologia da Libertação, particularmente, do discurso
desvinculado da prática. Para ele, isso é fundamental: os discursos devem vir
acompanhados de ações concretas. É um princípio a partir do qual faz uma
crítica das diversas tendências teológico-pastorais que havia na Igreja
55
Metodista. Mas, ao mesmo tempo, é possível perceber identificação e
reconhecimento de que não é possível o exercício da fé sem ações que
alcancem os pobres. E, ao alcançá-los, sua preocupação maior está em
amenizar os efeitos da fome e da miséria.
Na década de 1970, cresce a Teologia da Libertação, mas, também, se
afirma fortemente o fundamentalismo evangélico. É outra forma de reagir ao
momento político e social que vive o Brasil. O país está sob o domínio da
ditadura militar. Liberdades são limitadas. Há forte censura e repressão.
Grupos de esquerda, fora e dentro das Igrejas, são vistos com desconfiança e
reprimidos. Líderes religiosos, leigos e clérigos, são presos e exilados.
A Igreja Metodista, como outras, transita entre atitudes de aprovação,
resistência e omissão diante das ações do governo militar. Embora o que
prevaleça seja o apoio. Leonildo Silveira Campos, a partir de uma análise de
artigos publicados nos principais jornais evangélicos brasileiros, descreve como
foi a postura das Igrejas evangélicas em reação ao Golpe de 1964 e a ditadura
militar.94 De modo geral, segundo ele, houve alinhamento ideológico dos
discursos evangélicos com o governo ditatorial. O inimigo a ser combatido, o
comunismo.
Conforme Campos,
Os evangélicos somente passaram a oferecer algumas tímidas
críticas ao regime militar durante a “abertura política” anunciada
desde Geisel, mas cujo controle acabou escapando das mãos dos
militares durante o governo Figueiredo. A campanha pela anistia
ofereceu espaço para material contrário ao regime e à Lei de
Segurança Nacional nos jornais e revistas. Mesmo assim,
pouquíssimos jornais evangélicos se aproveitaram desse momento
final de enfraquecimento da ditadura.95
Essa postura “tímida” pode ser vista nos textos de Scilla Franco. Ele
aponta alguns problemas da ditadura militar, mas, está mais interessado em
94 CAMPOS, Leonildo Silveira. Religião, prática política e discurso de evangélicos brasileiros no período republicano. In: SILVA, Eliane M., BELLOTTI, Karina k.; CAMPOS, Leonildo S. (org.). Religião e Sociedade na América Latina. São Bernardo do Campo, UMESP, 2010, p. 149-183. 95 Ibidem, p. 174.
56
denunciar os erros na Igreja Metodista, que precisa rever suas práticas e
organização para ser presença profética no momento pelo qual passa o Brasil.
Em um de seus textos, Scilla Franco traça um paralelo entre a Igreja
Metodista e o Governo:
O governo gasta menos em agricultura e saúde, que devia ser a
meta prioritária num país agrícola – e nós gastamos apenas 2% em
evangelização, que é o objetivo da Igreja no mundo. O governo lança
impostos – e nós, orçamentos. O governo “quebra o galho” dos
ministros, fazendo rodízio – e nós temos ministros que nunca caem
do galho. E se alguém se atreve a “chacoalhar” o galho, o máximo
que acontece é levar umas bolotas na cabeça e ser expulso de sua
sombra. O governo distribui mal as rendas – e nós nem chegamos a
distribuí-las. O governo faz desconto de renda na fonte – e nós
consumimos as rendas na fonte. O governo nomeia militares para
cargos civis – e nós, pastores para cargos leigos. O governo
concentra muitos recursos num só lugar – e nós, pastores.96
Em “Igreja dos coronéis”, lembra de um artigo com o mesmo título que
havia lido no passado e que, segundo ele, era exagerado para a ocasião,
porque havia democracia na Igreja Metodista. Agora, entretanto, a idéia faz
todo sentido, pois “a partir de 1968 a Igreja passou a copiar o governo no seu
aspecto negativo”.97 Enxerga na maneira como a Igreja passou a organizar-se,
através de um Conselho Geral em detrimento das “Conferências Anuais”, uma
cópia da legislação de exceção do país. “Digo copiavam, porque a nossa, por
coincidência, tem um ato institucional, ato complementar, intervenção, usurpa o
concílio e concentra o poder nas mãos de meia dúzia.”98
Embora Scilla Franco não faça críticas diretas ao governo militar, toca em
alguns assuntos nevrálgicos para a época como, por exemplo, a censura: “Eles
(os caraí) que tanto falam em liberdade possuem uma coisa chamada censura.
É ela que ordena o que a gente pode dizer, e, outras vezes, somos obrigados a
96 FRANCO, Scilla. Que tens, dormente? Expositor Cristão, São Paulo: 1ª quinzena de junho de 1979, p.10. 97 FRANCO, Scilla. Igreja dos coronéis. Expositor Cristão. São Paulo, 1ª quinzena de julho de 1980, p.12. 98 Ibidem, p. 12.
57
ouvir enjoativos discursos oficiais, embora saibamos, não sejam a expressão
da verdade.”99
Outro assunto que aborda, em tom de crítica, é a questão da terra: “quem
rouba nossas terras recebe o nome de ‘empresário’, ‘pecuarista’, ‘agricultor’ ou
‘homem de negócios’... Mas, se nós retomamos as nossas terras, chamam-nos
de ‘agitadores’, ‘posseiros’ e até de ‘comunistas...’”.100
Emite, também, sua opinião sobre a abertura política101 prometida pelo
governo militar, demonstrando esperança de tempos melhores, ainda que em
passos lentos: “As chamadas aberturas, conquanto no momento sejam apenas
réstias de luz, já permitem ver alguma coisa, apesar de que nossas pupilas
dilatadas pelas trevas das restrições democráticas não podem encarar de
frente a aurora que desponta preguiçosa e restrita.”102
Neste contexto, Claudia Romano de Sant’Ana103 traça um paralelo entre
Luiz Inácio Lula da Silva e Scilla Franco demonstrando como Scilla Franco é
visto por parte da Igreja, particularmente, pela juventude. Descreve a trajetória
desses dois líderes, um sindicalista e um pastor, destacando as semelhanças:
ambos vinham do povo, aprenderam com a vida – sem muitas oportunidades
de estudo formal, tiveram aceitação entre a juventude e assumiram a defesa de
pessoas marginalizadas – operários e índios –, dando voz à suas aspirações e
angústias.
Diz a redatora do jornal Expositor Cristão:
Ambos possuem o dom da palavra certa, no momento necessário.
Conhecem a fundo a causa que abraçaram: índios e operários.
Surgiram depois de crises. O primeiro, tornou-se conhecido a partir
de 1977 quando, em contato com a juventude, em congressos, e a
seguir, pelo trabalho apresentado junto aos indígenas. O seus apelos
99 FRANCO, Scilla. Che Ahai Te Tama. Expositor Cristão, São Paulo,1ª quinzena de abril de 1979, p. 16. 100 Ibidem. 101 “Com a posse de Geisel, em 15 de março de 1974, o general Golbery do Couto e Silva voltou ao poder. Ambos, Golbery e Geisel, articularam um projeto de abertura ‘lenta,gradual e segura” rumo a uma indefinida ‘democracia relativa’” (BUENO – 2010, p. 397) Essa abertura concretizou no governo João Baptista Figueiredo, no início dos anos 80. 102 FRANCO, Scilla. Reflexões sobre o povo Kaiowá. Boletim do GTME nº1. Cadernos do CEDI, nº 5, 1980. 103 SANT’ANA, Cláudia Romano. O pastor e o operário. Expositor Cristão, 2ª quinzena p. 4.
58
emocionaram pessoas de todas as partes do Brasil (e exterior) e os
índios acreditaram nele, desde os primeiros contatos na Missão em
Dourados. O segundo, passou a ser mais focalizado, depois da greve
no início de 1979. Suas declarações são debatidas por políticos e
pelo povo.104
1. Dados biográficos
1.1. Família e formação
Scilla Franco nasceu em Rio das Pedras, pequena cidade do interior de
São Paulo, na região de Piracicaba, em 23 de dezembro de 1930. Era filho de
João Batista Franco e Maria da Glória Carvalho Franco, que faleceu quando
ele tinha sete anos de idade. Foi o sétimo filho de uma família de onze irmãos.
Seu pai, após a morte de sua mãe, casou-se com Lourdes Aníbal Franco, que
assumiu o papel de mãe de Scilla e de seus irmãos.
Passou a infância e a adolescência no campo na região de Piracicaba,
interior de São Paulo. Essa experiência lhe conferiu apego às coisas da terra.
Mais tarde, em seu trabalho missionário, essa será uma característica
importante no desenvolvimento de suas ações e na identificação primeiro com
colonos e, depois, com os índios.
Quando perguntado sobre o impacto de deixar a “sociedade dos brancos”
e entrar na cultura indígena, Scilla Franco afirma: “Transferir-me para o
trabalho indígena não foi muito difícil devido à minha condição de homem de
interior, porque a princípio a minha única preocupação era a roça. Difícil se
tornou quando comecei a entender, a amar o índio e sua cultura, voltar à
sociedade branca.”105 Ou seja, sua formação no campo foi determinante para o
seu trabalho missionário. Essas raízes rurais de Scilla Franco são, também,
importantes na definição de seu jeito de falar, escrever e interpretar as
realidades à sua volta.
Segundo José Carlos de Souza,
104 Ibidem, p. 4. 105 Uma vida dedicada à missão – entrevista publicada no Boletim do GTME, nº5, 1984.
59
Imagens singelas, figuras do cotidiano, comparações e histórias
constituíam os fragmentos de um discurso capaz de impressionar a
todos pela clareza, bom senso, simplicidade e, ao mesmo tempo,
inegável veracidade. Assuntos sérios e temas extremamente graves
eram tratados com humor e, não raras vezes, com ironia. Longe da
polidez, hipócrita dos que se conformam às convenções sociais, o
seu linguajar era objetivo e concreto, indo diretamente ao coração
das questões analisadas. Sem a especulação filosófica ou os
intricados exercícios mentais assimiláveis apenas por uma minoria
de supostos intelectuais, a sua palavra cativava os mais diversos
auditórios e revelava uma sabedoria profundamente arraigada no
povo. Talvez por isso, não procurava tanto persuadir as pessoas a
mudar de idéias quanto levá-Ias à mudança de atitudes e de
comportamento: uma verdadeira metanóia.106
Na adolescência e juventude vive em Campinas, uma cidade grande e
com mais possibilidades de estudo e trabalho. Participa ativamente da Igreja
Metodista assumindo funções de liderança nos grupos locais de mocidade na
Igreja Metodista Central. Nesse envolvimento é que vai se formando sua
consciência vocacional. Em Campinas, também, pôde completar sua formação
escolar, cursando colegial (Ensino Médio) e realizando cursos técnicos como o
de ajustador mecânico e eletrônica.
Com 14 anos é admitido como funcionário no Instituto Agronômico de
Campinas107, um órgão do governo do Estado de São Paulo, numa fazenda
experimental no distrito de Tupi, pertencente ao município de Piracicaba. Ainda
como funcionário público no Instituto Agronômico, é transferido para a Fazenda
Santa Elízia, em Campinas.
106 SOUZA, José Carlos. Scilla Franco: uma vida a serviço do Reino in: Minha Prece – Coletânea de textos missionários e indígenas do Bispo Scilla Franco. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1992, p. 12. 107 O Instituto Agronômico de Campinas (IAC) é instituto de pesquisa da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, e tem sua sede no município de Campinas. Foi fundado em 1887 pelo Imperador D. Pedro II, tendo recebido a denominação de Estação Agronômica de Campinas. Em 1892 passou para a administração do Governo do Estado de São Paulo. (fonte: página oficial do Instituto Agronômico de Campinas - http://iac.weblevel.com.br/index.php, acesso em: 15 de setembro de 2010.
60
No final de 1952, descobre que tem hanseníase e é afastado do trabalho,
vindo, posteriormente, a aposentar-se. Por causa da doença, é internado numa
instituição que acolhia e tratava os portadores de hanseníase, a colônia-asilo
de Pirapitingui108, localizada na cidade de Itu, no km 115 da Rodovia Dr.
Waldomiro Camargo Correia, que liga a cidade à Sorocaba, no interior de São
Paulo. Neste local é que conhece Concília Januário, internada junto com mais
dois irmãos, todos portadores de hanseníase.
A colônia de Pirapitingui é um lugar de grande sofrimento: além dos
sintomas da doença que estigmatizavam os hansenianos, os internos
experimentam o isolamento e o afastamento da família.109 Apesar do estigma,
preconceito e temores que envolvem a doença, Scilla Franco e Concília
Januário se casam, tendo quatro filhos: Maria da Glória, Márcia Regina, Adolfo
e Priscila, nenhum dos quais desenvolveu hanseníase.
1.2. Vocação Pastoral
Scilla Franco sente-se vocacionado para o ministério pastoral ainda na
adolescência. Descreve como se deu seu chamado em entrevista concedida
108 A Colônia-asilo de Pirapitingui tem o nome hoje de Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes e ocupa um espaço de 330 hectares. As colônias-asilos foram criadas no Brasil de uma Lei Compulsória de 1926 que obrigava as pessoas portadoras da doença a apresentarem-se para a internação e isolamento. Eram construídas fora das cidades. A segregação foi oficialmente recomendada pela 2ª Conferência Mundial da Lepra de Bergem, na Noruega, em 1909. O bacilo Mycobacterium leprae, agente causador da lepra, foi descoberto em 1874 pelo médico norueguês Gerhard Hansen, mas desde a Antiguidade há registros da doença. Até a década de 1980, o isolamento era tido com a única solução para evitar a disseminação da doença, quando se descobriu a cura através do tratamento poliquimioterápico. A partir de então, a doença passou a ser chamada de hanseníase, numa referência ao Dr. Hansen, e o termo lepra, de forte conotação negativa, deixou de ser utilizado. A lei "Compulsória" de 1926 foi revogada em 1962, mas, o próprio paciente não desejava mais a alta. A miséria e o abandono familiar inviabilizavam o retorno à vida social. A hanseníase provoca seqüelas tanto físicas quanto psicológicas. A segregação e a discriminação deixaram marcas profundas, e alguns internos, ainda hoje, sentem-se mais protegidos dentro do hospital. O preconceito fez com que muitos deles tivessem medo de encarar a sociedade, depois de passar tanto tempo confinados. Fonte: Pirapitingui – História de um exílio in: http://www.franciscanos.org.br/v3/noticias/reportagensespeciais/2010/pirapitingui/01.php, acesso em: 15 de setembro de 2010. 109 Sobre esse assunto: AUVRAY, Katia. Cidade dos Esquecidos: A vida dos hansenianos num antigo leprosário do Brasil. Itu, Ottoni Editora, 2005 e ZAPELLA, Mariana; FERREIRA, Lidiane; GAURI, Ligia. Como viveram e ainda vivem os atingidos pela hanseníase, uma doença marcada pelo preconceito, no antigo leprosário do Pirapitingui in: http://marianazapella.yolasite.com/memorias-sitiadas.php, acesso em: 15 de setembro de 2010.
61
em 1987, logo após sua eleição para o episcopado na Igreja Metodista, a
Percival de Souza110. No ano de 1944, vive uma experiência mística ao retornar
a cavalo da Escola Dominical realizada em um sítio no distrito de Tupi para sua
casa. Afirma ter ouvido uma voz que dizia “você vai ser pastor”. Seus familiares
não deram muito crédito ao relato. Contudo, a partir dessa experiência,
começou a pregar e a dirigir cultos.
Já nessa fase de sua vida, sente certa inclinação para o trabalho social.
Em entrevista concedida a Sarah Frances Bawden, para a revista Flâmula
Juvenil111, e publicada no Expositor Cristão112, relata como surgiu a
preocupação com as pessoas mais pobres como uma ênfase de seu
pastorado:
A minha vocação para o aspecto social do ministério pastoral surgiu
numa visita, juntamente com o Dr. Warwick E. Kerr113, ao sítio dos
Marques, perto de Piracicaba. Fiquei impressionado e até mesmo
empolgado, ao ver aquele cientista de destaque nacional e
internacional, identificando-se com o povo simples e humilde daquela
zona rural, ministrando os seus conhecimentos em agricultura e
compartilhando de sua experiência cristã e deles recebendo
inspiração para a sua vida. Aquela visita me levou a pensar
seriamente sobre a importância do Evangelho integral, o qual dá
ênfase à salvação da totalidade da pessoa humana.114
Percebe-se, portanto, como desde a adolescência vai se desenvolvendo
a consciência vocacional de Scilla Franco e como vão se definindo as ênfases
de seu ministério pastoral e missionário. É significativo que ele faça referência
a experiências vividas na juventude exatamente ao se dirigir a adolescentes e
110 Se alguém aspira ao episcopado, excelente obra almeja .Expositor Cristão, São Paulo: 1ª e 2ª quinzenas de agosto de 1987, pp. 8 e 9. 111 Flâmula Juvenil era uma publicação periódica da Igreja Metodista voltada para os adolescentes. Mais tarde, tornou-se uma revista de estudos para a Escola Dominical. Scilla Franco é frequentemente convidado para falar a jovens e adolescentes em seus congressos e encontros. Esta entrevista é concedida num destes encontros, realizado em Penápolis, SP. 112 Expositor Cristão, São Paulo,1ª quinzena de abril 1977, p. 9. 113 Warwuick Estevam Kerr, nascido em 1922, é um geneticista brasileiro com reconhecimento internacional. Foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e Membro do Conselho Geral da Igreja Metodista. 114 Expositor Cristão, São Paulo:1ª quinzena de abril 1977, p.9.
62
jovens da Igreja. Acredita que, através delas, possa despertar vocações entre
eles.
Em razão dos poucos recursos financeiros de sua família, Scilla Franco
não pode cursar Teologia, exigência para quem quisesse seguir a carreira
pastoral na Igreja Metodista. E, apesar dessas vivências e da consciência
vocacional experimentadas cedo em sua vida, seu desejo de ser pastor se
concretizou apenas mais tarde, no início da década de 1960, quando ele,
Concília e seus filhos moravam em Porto Feliz, interior de São Paulo.
A vocação de Scilla Franco é reacendida quando, frequentando a Igreja
Presbiteriana de Porto Feliz – não havia Igreja Metodista na cidade –, chega à
Igreja o apelo por um obreiro para um novo trabalho aberto no Paraná. Sente-
se tocado e busca conselho com pastores de sua Igreja de origem, onde
encontra, agora, a oportunidade de formação e atuação pastoral.
Nesta época, na Igreja Metodista havia um programa de estudos voltado
para leigos que, como Scilla Franco, demonstravam ter dons para assumir
funções pastorais. A essa função era dado o nome de “Pastor Suplente”. A
esse programa dava-se o nome de Curso de Provisionado115 e era definido
pela Junta Geral de Educação Cristã da Igreja Metodista. Conciliando seu
trabalho secular como técnico em eletrônica, o cuidado com a família – neste
tempo, o casal Franco tinha três filhos pequenos – e os estudos, Scilla Franco
conclui o programa com êxito.
Em 1963, Scilla Franco é nomeado pastor suplente no VII Concílio
Regional da 5ª Região Eclesiástica e designado para atender a Igreja em
Valparaíso. Como pastor suplente, pastoreou as Igrejas de Valparaíso (1963-
115 Os Cânones da Igreja Metodista aprovados no VIII Concílio Geral em Porto Alegre, RS, assim define a natureza do ministério dos provisionados: “Provisionados são leigos piedosos que tenham dons para evangelizar, pregar, visitar e fazer serviços de caráter pastoral e que, não querendo ou não podendo, por qualquer motivo, dedicar-se ao� ministério, estão, contudo, dispostos a ajudar, sem ônus para a Igreja, os pastores das igrejas em que se acham arrolados, e, excepcionalmente, servir como pastores suplentes" IGREJA METODISTA. Cânones da Igreja Metodista do Brasil 1960. São Paulo: Imprensa Metodista, 1960, p. 81. Há uma série de exigências que o candidato deveria cumprir para receber a certidão de provisionado. Entre elas, cumprir um programa de estudos definido pela Junta Geral de Educação Cristã. Anexo aos Cânones, aparece o currículo estabelecido pela Junta (p. 254-255). Eventualmente, um leigo provisionado poderia servir como pastor auxiliar ou suplente.
63
1966) e de Álvares Machado (1967-1971). Em 1970, no XIV Concílio Regional
da 5ª Região Eclesiástica, ocorrido em Lins – SP, é eleito presbítero da Igreja
Metodista, depois de cumprir as exigências canônicas da Igreja.116
Em 1972, como presbítero, recebe a nomeação para a Igreja Metodista
em Dourados e a incumbência de supervisionar o Campo Missionário Regional
em Mato Grosso. Em Dourados se dá seu envolvimento com o trabalho de
atendimento a colonos através de um programa chamado Plano Piloto e
financiado pela Igreja Unida do Canadá. Essa experiência é o que lhe serve de
inspiração para iniciar o trabalho com os índios. Possibilita, também, os
recursos financeiros para iniciá-lo.
1.3. Envolvimento com os índios
O envolvimento de Scilla Franco com os índios se deu pela proximidade.
Estão à sua porta e ele não pôde deixar de ver sua miséria e sofrimento. A
visão do “outro” em seu sofrimento o perturba e essa perturbação o leva ao
envolvimento. Sensibiliza-se porque vê o outro como “próximo”.
Frente a frente, pessoa a pessoa é a relação prática de proximidade,
de vizinhança, como pessoas. A experiência da proximidade entre
pessoas como pessoas é que constitui o outro como “próximo”
(próximo, vizinho, alguém), como outro; e não como coisa,
instrumento, mediação.117
Mas, envolvimento não é a única possibilidade de reação à proximidade
com a dor do outro. Outra possibilidade é o afastamento e até o asco. Sentir a
dor do outro ou incomodar-se com ela é uma reação própria do ser humano.
Compaixão, entendida como “sentir a dor do outro” é um sentimento que toda
pessoa tem diante do sofrimento. Entretanto, essa compaixão não se expressa
apenas no ato de fazer o bem, mas também, no fechamento, na repulsa.
Segundo Jung Mo Sung,
116 Os artigos 233 a 240 dos Cânones da Igreja Metodista definem a natureza, os requisitos para admissão e os direitos e deveres dos presbíteros na Igreja Metodista. IGREJA METODISTA. Cânones da Igreja Metodista do Brasil,1965, p. 135 – 137. 117 DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 19.
64
Quando uma pessoa desvia o olhar para não ver o sofrimento alheio
ou responde de modo agressivo a uma criança pobre que pede um
trocado, ela não está sendo indiferente. Se fosse realmente
indiferente ou insensível, esta pessoa não reagiria fechando o olho
ou desviando o olhar, muito menos sendo agressiva. Estas reações
imediatas, na maioria das vezes inconscientes e/ou não planejadas,
mostram que a pessoa foi tocada. A dor da outra pessoa a incomoda
e ela é incapaz de suportar a visão do sofrimento alheio. Reage. Só
que reage com uma aparente indiferença ou com agressividade,
como uma forma de se defender do “incômodo”, da dor sentida ao
ver o sofrimento alheio. É compaixão.118
Não basta, portanto, ter sensibilidade. É preciso que seja uma
“sensibilidade solidária”. Neste processo, as convicções religiosas podem
ajudar. É o que acontece com Scilla Franco. Ele descreve o drama de não
poder falar do tema “amor” em seus sermões sem que a imagem de um índio
remexendo o lixo de sua casa lhe venha à mente.
Assim ele descreve seu envolvimento com os índios:
Pode-se dizer que foi por acidente. Era um pastor comum, apenas
envolvido com as questões sociais, no caso a organização dos
colonos em cooperativas, quando um dia deparei com um índio
comendo os restos de lixo de minha casa. Diante disto perdi toda a
moral para fazer o que fazia. Ao preparar os sermões, ou ao subir no
púlpito, aquela figura me acompanhava. Comecei tirando dos meus
sermões o tema amor, e finalmente, achei que ou eu fazia alguma
coisa ou nem tinha também como pregar sobre outros assuntos.
Assim, tomei as providências e transferi os recursos dos colonos, já
organizados em cooperativas e financiados pelo Banco do Brasil,
para o índio.119
Para ele, o que faltava para os índios daquela região eram apoio e crédito
para que pudessem ter condições de cultivar sua própria terra e dela tirar seu
sustento. Combate a cultura do paternalismo produzida por anos de
118 SUNG, Jung Mo. Sujeito e sociedades complexas – para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 159. 119 Uma vida dedicada à missão. Entrevista publicada no Boletim do GTME nº 5, 1984.
65
dependência do índio em relação ao branco. Esse paternalismo rouba a
dignidade do índio e favorece a discriminação e o preconceito. Tido por
indolente e preguiçoso, o índio, na verdade, era tão capaz quanto qualquer
outro colono. O paternalismo, ao mesmo tempo, encobre a exploração.
2. O Plano Piloto e a Missão Tapeporã
2.1. Plano Piloto de atendimento a colonos
Scilla Franco chega a Dourados no início de 1972. Como apresentado no
primeiro capítulo deste trabalho, nessa época, Dourados é uma cidade com
quase 180 mil habitantes e muitos índios na periferia120, das tribos Guarani
(Kaiowá e Ñandeva) e Terena.
Havia também muitas famílias que se mudaram para a região vindas do
Nordeste, por causa do plano de incentivo do governo Getulio Vargas. A elas
foi dada a terra, mas não os recursos para financiamento da lavoura e nem a
escritura dessas terras. Esses colonos tornaram-se vítimas de exploração na
região. Sem escritura, não conseguiam financiamento para o plantio. Sem
crédito nos bancos, recorriam a atravessadores que, com juros altos,
monopólio da venda de sementes e a compra da colheita por preços baixos,
impunham sobre esses trabalhadores uma forte carga de exploração.
Scilla Franco aponta que o que sustentava a exploração eram a
ignorância e a miséria. Sem consciência e compreensão das questões que
envolviam a posse da terra e com fome, os colonos pobres eram presa fácil.
Como pastor da Igreja Metodista em Dourados e supervisor da Igreja na região,
envolve-se num projeto de assistência a esses colonos, o Plano Piloto,
financiado pela Igreja Unida do Canadá e iniciado em 1966. Em entrevista
concedida a Sarah Frances Bowden em abril de 1977, ele descreve,
brevemente, o que foi o Plano Piloto:
120 Segundo dados colhidos no site: http://www.geomundo.com.br/mato-grosso-do-sul-50125.htm, acessado em 14 de setembro de 2010. Dourados possui 174.668 em 1970. De acordo com o mesmo site, o município de Dourados tem a maior concentração, em âmbito nacional, de população indígena em áreas urbanas, estimadas em mais de 10.000 pessoas.
66
Havia em Mato Grosso um Plano Piloto mantido pela Igreja
Metodista, através de uma oferta bem significativa (100 mil dólares
canadenses) da Igreja Unida do Canadá. Os colonos, que não
tinham escritura da terra, ao redor de Glória de Dourados, podiam
fazer empréstimos e comprar sementes, adubos, inseticidas e outros
produtos que lhes davam condições para cultivar a terra e obter
resultados financeiros satisfatórios. O plano foi bem sucedido e os
colonos devolveram o dinheiro que lhes foi emprestado. Agora
continua a existir uma cooperativa, um hospital maternidade em
Glória de Dourados e um colégio em Fátima do Sul, como fruto do
trabalho da equipe do Plano Piloto.121
Scilla Franco entende o Plano Piloto como uma importante ação da
Igreja, cuja missão, também, é atuar em prol de uma sociedade mais justa. Em
1980, o Expositor Cristão publica a palestra proferida por Scilla Franco no
Congresso Nacional de jovens metodistas. Neste texto122, a partir do relato
bíblico de Gênesis 4.1-10, que conta a história de Caim e Abel, ele discute a
omissão da Igreja Metodista em relação à causa dos pobres. Entende serem
“os oprimidos de todos os naipes, especialmente os pobres” o “irmão” a
respeito de quem Deus inquire, como faz com Caim. Ao fazer isso, destaca
como exemplo de “uma oferta mais excelente” (citando a expressão bíblica que
descreve a oferta de Abel, que agradou a Deus) a implantação e o
desenvolvimento do Plano Piloto. A implantação desse projeto acontece num
momento particularmente difícil no Brasil: “na década de 60, debaixo de uma
legislação de exceção, tratar do problema da terra, era uma temeridade, era
ser comunista.”123
O Plano Piloto é uma tentativa por parte da Igreja de responder a uma
situação de injustiça chamada por Scilla Franco de “iniquidade”. “A Igreja ouviu
esse clamor; foi para lá com recursos da Igreja irmã, do Canadá; montou
121 FRANCO, Scilla. Tem hora que dá vontade de abandonar tudo. Expositor Cristão, São Paulo: 1ª quinzena de abril de 1977, p. 9. 122 FRANCO, Scilla. Onde está teu irmão? Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de junho de 1980, pp. 8 e 9. 123 Ibidem, p. 8.
67
cooperativas, escolas, hospitais, maternidades, conscientizou o povo – que lá
eles dizem, abriu os olhos.”124
Ao referir-se à exploração a que eram submetidos os colonos daquela
região, Scilla Franco demonstra ter percepção da dimensão social do “pecado”.
Isso é importante porque o distancia de uma visão tradicional no pensamento
evangélico que entende o pecado apenas na dimensão pessoal, com um tom
fortemente moralista, e, ao mesmo tempo, coloca os problemas sociais na
pauta missionária da Igreja. Combater a injustiça é combater o pecado.
Outro exemplo dessa compreensão do pecado numa dimensão social
pode ser visto em trecho de uma mensagem por ocasião do Natal de 1987:
Pediram-me que escrevesse uma mensagem de Natal. (...) Então
pensei no que sempre penso em ocasiões tais: o que representa o
Natal para aqueles que estão fora do sistema de consumo e as
causas sociais que produzem tais fenômenos. Não sendo sociólogo
sou incompetente para comentá-las mas se algum crédito me é dado
no âmbito da religião classificá-la-ia como uma única palavra:
pecado. (...) Ainda esta semana passei por um acampamento dos
chamados Sem-Terra. Não sei se diria uma nova classe ou uma
nova nomenclatura dada aos deserdados e vítimas de um sistema
agrário iníquo.125
O Plano Piloto, entretanto, não conta com o apoio de toda a Igreja. Há
resistência, inclusive por parte de comunidades locais e seus pastores que
julgavam ser mais proveitoso aplicar os recursos na construção e manutenção
dos templos. Algumas pessoas envolvidas com o projeto sofreram ameaça de
morte, como o próprio Scilla. Segundo seu relato, foi “empreitado” para morrer
por duas vezes. Segundo ele, foi salvo graças à intervenção de Áurea
Brianezzi, educadora metodista com grande prestígio na região.126
Os colonos, financiados pelo projeto, começaram a organizar-se em
cooperativas e a conseguir financiamento pelo Banco do Brasil. Isso significou
124 Ibidem, p. 9. 125 Mensagem dos Bispos ao Povo Brasileiro. Expositor Cristão.São Paulo: 1ª e 2ª quinzenas de novembro de 1987. 126 FRANCO, Scilla. Onde está teu irmão? Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de junho de 1980, p.9.
68
o sucesso do projeto. Essa experiência inspirou Scilla Franco no trabalho com
os índios. Ele conseguiu que os recursos que financiavam os colonos fossem
direcionados para o financiamento de um Plano Piloto voltado para os índios.
2.2. Missão Tapeporã
O trabalho missionário que, mais tarde, recebeu o nome de Missão
Tapeporã, começou com dez famílias de índios Terena. Recebeu, de início, o
nome de “Plano Piloto”, mesmo nome do projeto com os colonos e consistiu na
organização de uma “roça comunitária” cultivada em regime de mutirão. Com o
sucesso da primeira colheita, outros índios quiseram juntar-se ao
empreendimento. Entretanto, para ampliá-lo era preciso mais investimentos e
Scilla Franco foi buscá-los no Conselho Geral da Igreja Metodista e os
conseguiu. Segundo Souza,
A leitura da oração (Minha Prece127 escrita pelo Rev. ScilIa comoveu
a todos os presentes que, unanimemente, decidiram apoiar a
proposta, buscar recursos junto às igrejas cooperantes e, por fim,
enviar o dedicado pastor para ocupar-se integralmente dessa obra.
Nascia a Missão Tapeporã (em tupi, "caminho bom, excelente,
bonito, novo").128
O projeto inicia-se, então, de modo semelhante ao que era feito com os
colonos brancos. Entretanto, só o financiamento para adquirirem sementes e
os suplementos agrícolas não era suficiente. Era necessário ajudá-los a lidar
novamente com a terra, a operar as máquinas e a comercializar o resultado
obtido. Scilla Franco utiliza-se, dessa forma, de sua experiência como homem
vindo do campo e do conhecimento adquirido nos cursos e no trabalho
realizado no passado no Instituto Agronômico de Campinas e na fazenda
experimental mantida por esta escola.
O Plano Piloto passa a ser conhecido na Igreja Metodista como “Plano de
Promoção Social do Índio” e tem por objetivo prover meios ao índio para sua
subsistência, mas, não de forma paternalista. Quer devolver ao índio sua
127 Publicada no Expositor Cristão. São Paulo:1ª quinzena de abril de 1977. 128 SOUZA – 1992, p. 15.
69
dignidade. Seus objetivos são: integração do índio na comunidade que o
envolve; promoção do status do índio, através da educação agrícola que o
libertará da marginalidade social, dando-lhe independência econômica e
conscientização da comunidade de que o índio é tão capaz quanto qualquer
outro colono e que desde que tenha crédito e apoio pode desfazer por si
mesmo a imagem negativa que dele têm muitos brancos.129
Scilla Franco descreve as exigências impostas pelo trabalho e os
primeiros resultados:
É um trabalho que consome a energia e a saúde. Preciso ser, desde
o orientador técnico, até o mecânico. Iniciamos desbravejando um
alqueire de terra e hoje temos 120 hectares. A terra é propriedade da
União e o índio tem apenas o usufruto dela. Com apenas dois
tratores equipados, esse plano de promoção do índio da Igreja
Metodista proporcionou às trinta famílias de índios numa área de
doze alqueires de terra, 1800 sacos de milho, 154 sacos de trigo, 750
sacos de arroz e 200 sacos de soja. Ao ser carregado o primeiro
caminhão, o qual iria entregar produtos para a venda, um índio
visivelmente emocionado exclamou: “Este é o primeiro caminhão de
mercadoria plantado pelo índio e cuja a renda será para o índio”.130
2.3. Histórico131 da organização da Missão Tapeporã
O índio que busca comida no lixo da casa pastoral e que protagoniza a
cena que sensibiliza Scilla Franco é do povo Terena. Entre os Terena, portanto,
Scilla Franco inicia seu trabalho. Tendo sido bem sucedido, sua ação ganha o
reconhecimento de órgãos oficiais, como a FUNAI, e é convidado a estendê-la
aos Kaiowá.
Em 14 de março de 1978, o chefe do Posto Indígena de Dourados,
Vandelino Bravim, emite parecer favorável à implantação da Roça Comunitária 129 Conforme reportagem publicada no Expositor Cristão, São Paulo: 2ª quinzena de julho de 1974. Essa reportagem foi feita com base em relatórios de Scilla Franco, reportagem do jornal Diário da Serra, de Campo Grande, MT (21/04/1974), e de entrevista com o Bispo Oswaldo Dias da Silva, secretário-geral de Ação Social da Igreja Metodista. In: FRANCO – 1992, p. 74. 130 Expositor Cristão, São Paulo: 1ª quinzena de abril de 1977, p. 9. 131 Elaborado a partir de documentos fornecidos pelo Rev. Paulo da Silva Costa e Revda. Maria Imaculada Conceição Costa, atuais coordenadores da Missão Tapeporã.
70
entre os Kaiwoá (Anexo 1). Para justificar seu parecer, afirma: “Dever ser
considerado a experiência do referido Senhor (Scilla Franco) com o trabalho
indígena, tendo em vista o excelente resultado em projeto semelhante no Posto
Indígena Panambi.” Neste documento, põe à disposição do projeto, maquinário
da FUNAI.
Em 15 de março de 1978, a FUNAI, através do Delegado Regional do 9º
DR, Joel de Oliveira, emite autorização para a implantação do Projeto (Anexo
2). Assim, firma-se um convênio entre a Igreja Metodista e a FUNAI.
Em 16 de maio de 1978, Scilla Franco envia relatório ao Delegado
Regional da FUNAI (Anexo 3) sobre os primeiros trinta dias de trabalho:
descreve as dificuldades em ampliar o projeto, sugestões para superá-las – a
curto, médio e longo prazo – e as preocupações com respeito à mecanização
total da lavoura e a cultura Kaiwoá. Segundo Scilla Franco, a mecanização total
representava “uma violência e a anulação do último reduto da cultura indígena
do P.I. (Posto Indígena) de Dourados, pois este grupo ainda conserva suas
tradições (língua, religião, danças, autoridade do capitão, etc.)” Demonstra
preocupação, também, com o desmatamento provocado pela cultura da soja,
que exige grande espaço de terra para o plantio.
Em 13 de setembro de 1978, envia relatório ao Diretor da ASPLAN,
Fundação Nacional do Índio, em Brasília (Anexo 4). Nesse relatório, faz um
retrospecto do trabalho realizado e propõe mudanças significativas na forma
realizá-lo. Já nos primeiros meses, as condições mudaram muito e são
necessárias adaptações e ampliação do projeto.
Nesse documento (Anexo 4), descreve a situação dos Kaiwoás na
reserva: “esquecidos e acuados numa extremidade da reserva”. Segundo ele,
não acreditam nas ações da FUNAI e da Igreja. Os índios mais velhos
desconfiam dos missionários e antropólogos. Em relação aos missionários,
como uma “auto-defesa de sua religião” e com respeito aos antropólogos,
“pelos inúmeros e aborrecíveis levantamentos de cujos resultados práticos
ainda não tiveram conhecimento.” Os índios jovens, por outro lado, vivem “um
processo de descaracterização” buscando novas experiências, embora,
mantenham a mesma desconfiança dos mais velhos.
71
Scilla Franco denuncia, nesse relatório, alguns crimes que impedem a
evolução do projeto: “interesses inconfessáveis de todos quantos serão
prejudicados pela libertação do índio minam o projeto pelos mais estranhos
processos, desde suborno até o emprego de imbecis úteis, promoção de
intrigas e difamação do representante da FUNAI.” Aponta a compra de lenha
pelas cerâmicas vizinhas à reserva como uma importante causa do
desmatamento dentro dela. Essa prática, “representa combustível barato para
as cerâmicas vizinhas da aldeia e sem dúvida alguma o suicídio do índio”.
Na avaliação de Scilla Franco, o projeto das roças comunitárias não pode
desenvolver sua potencialidade e não consegue competir com os “gateiros” –
aliciadores de mão de obra indígena para trabalharem fora da reserva sem o
conhecimento da FUNAI e sem garantias previdenciárias. Esse aliciamento é
facilitado pela proximidade com a cidade e pelas rodovias que cortam a
reserva.
Mais uma vez, demonstra sua preocupação com o desmatamento e faz
uma apelo: “A devastação das matas seja quais forem as razões é coisa que
tem que ser impedida a qualquer custo”. Em seguida, relaciona as
necessidades do projeto e sugestões de ações que poderiam torná-lo mais
viável.
A partir desse pedido, Scilla Franco elabora o projeto denominado “Roça
Comunitária” voltado para os Kaiwoá. Num primeiro encontro com os índios,
são cadastradas 45 famílias. Este encontro aconteceu no dia 4 de abril de
1978, na casa do capitão132 Ireno. Segundo depoimento de Paulo Silva Costa,
atual coordenador da Missão Tapeporã, essa data pode ser considerada a data
da fundação da Missão.
O projeto da roça comunitária ignorou, de certa forma, aspectos
importantes da cultura kaiowá e sua relação com a terra. Para eles, a roça
deveria ser da família extensa. A idéia de uma roça comunitária para além dos
132 O termo “capitão” designa a autoridade indígena de cada reserva ou área indígena. A figura do “capitão” surgiu a partir da ação do SPI , remonta aos tempos de atuação do Marechal Cândido Rondon. Foi ele quem adotou a linguagem militar para a organização das reservas indígenas.
72
membros da família era estranha. Por isso, trabalhavam na lavoura, mas,
diziam estar trabalhando para o “pastor”.
Assim, pode-se perceber que a organização da Missão Metodista
Tapeporã foi um processo que teve início com o envolvimento de Scilla Franco
com os Terena através de ajuda com o cultivo da terra, desenvolveu-se com a
ampliação para alcançar os Kaiwoá através da “Roça Comunitária” e a parceria
com a FUNAI e, futuramente, com outros projetos sociais.
O trabalho de Scilla Franco ganha cada vez mais reconhecimento dentro
da Igreja Metodista. Isso é o que garante a continuidade da Missão mesmo
após sua saída da área indígena. Para seu lugar é enviado o agrônomo Áureo
Brianezi, que atuava no Campo Missionário da Transamazônia, no Pará.133
Além disso, uma equipe de apoio à Missão Tapeporã é criada pela Igreja
Metodista.
Nos dias 10 e 11 de dezembro de 1982, essa Equipe de Apoio da Missão
Tapeporã, então composta por Scilla Franco, Sérgio Marcus Pinto Lopes,
Antonio Olímpio de Santana e Lydia dos Santos, elaborou uma “Proposta de
Definição de uma Política Indigenista para a Igreja Metodista” e uma “Proposta
de Alteração no Projeto Tapeporã” (anexo 5). Essas propostas foram
aprovadas pelo Colégio Episcopal da Igreja Metodista, em 16 de abril de 1983
e pelo Conselho Geral da Igreja Metodista em 17 de abril de 1983. A primeira
foi a base para “As Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista”134
definidas pelo Colégio Episcopal da Igreja Metodista em 1999.
2.4. Pós – tapeporã
O trabalho de Scilla Franco junto aos índios é interrompido por um
acidente com defensivos agrícolas na lavoura. Este acidente agravou os
problemas de saúde com os quais já vinha sofrendo e foi obrigado a deixar o
trabalho com os índios. Não deixou, entretanto, a causa indígena. Passa a
133 Conforme reportagem publicada no Expositor Cristão. São Paulo, 1ª quinzena de maio de 1979. 134 COLÉGIO EPISCOPAL DA IGREJA METODISTA, Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista. São Paulo, Editora Cedro, 1999.
73
escrever com mais frequência sobre a questão indígena, trabalha em agências
ecumênicas e retoma, simultaneamente, o trabalho pastoral. O incidente, de
certa forma, contribui para que sua voz fosse ouvida com mais atenção.
Souza assim descreve o acidente e seus desdobramentos:
...durante os trabalhos de pulverização da lavoura com agrotóxicos,
um vazamento na mangueira atingiu seu rosto, provocando séria
intoxicação. A medicina não lhe ofereceu nenhuma esperança. Com
a saúde abalada pela infecção hepática e renal, o Rev. Scilla
aprendeu a conviver com a possibilidade da morte iminente. Em
virtude dessa contingência, a sua palavra chegou a assumir traços
de irrevogabilidade e desafio permanente. Cada dia vivido era uma
dádiva de Deus e, sobretudo, uma oportunidade que não podia ser
desperdiçada em vão.135
Escreve, nessa ocasião, uma comovente carta de despedida136. Neste
texto descreve a dor de ter que deixá-los. Desde que deixa a tribo, Scilla
Franco passa a escrever com frequência e seus textos são publicados
principalmente no jornal “Expositor Cristão”. Revela o quanto havia se
identificado com eles, usando muitas expressões em Guarani.
Sua aparente fragilidade torna-se sua força. O inusitado, um homem
simples, sem formação acadêmica e doente que inicia um trabalho audacioso,
desperta a atenção. Ganha visibilidade e espaço para falar através de seus
textos. É convidado a falar em congressos, principalmente da juventude, e em
ambientes acadêmicos. Fala com desenvoltura e bom humor, sem perder a
profundidade e o tom de denúncia profética.
Ao retornar do Campo Missionário do Mato Grosso, Scilla Franco
pastoreou as Igrejas de Presidente Prudente, Pacaembu (Campinas), e de
Betânia e Paulista (Piracicaba). Ao mesmo tempo em que prestava assistência
pastoral a essas comunidades, foi colaborador do Conselho Mundial de Igrejas
num programa voltado para comunidades de fronteira. Por último, com
135 SOUZA – 1992, p. 17 136 FRANCO, Scilla. Che ahai te tama. Expositor Cristão, São Paulo:1ª quinzena de 1979.
74
dedicação exclusiva, foi pastor em Birigui, interior de São Paulo; de 1985 até
1987 quando foi eleito bispo no XIV Concílio Geral da Igreja Metodista.
Com a saída de Scilla Franco da Missão Tapeporã, o trabalho tem
continuidade com Áureo Brianezzi, agrônomo mantido pela Igreja Metodista.
Vale destacar que Áureo é filho do casal Francisco e Áurea Brianezzi que, por
muito tempo, estiveram ligados à Missão Caiuá e às Igrejas Metodistas na
região. Hoje, a Missão Tapeporã é coordenada pelo casal Paulo Silva Costa137
e Maria Imaculada Conceição Costa, ambos pastores metodistas, sendo que
Paulo tem formação técnica em agricultura, tendo trabalhado na reserva com
Scilla Franco antes de iniciar sua formação teológica. Atualmente, há uma
Igreja Metodista na reserva, criada a pedido dos índios, que conta com 33
membros, segundo estatísticas da Igreja Metodista na 5ª Região Eclesiástica –
2010. Participam da Igreja muitas crianças, que não são consideradas nessas
estatísticas.
2.5. Episcopado
A eleição de Scilla Franco ao episcopado da Igreja Metodista foi
controvertida. Num plenário com 98 membros votantes, era preciso, segundo
as normas estabelecidas pelos Cânones da Igreja Metodista, obter a maioria
absoluta dos votos, ou seja, 50. Seis bispos seriam eleitos para dirigir as seis
regiões eclesiásticas que compunham a Igreja Metodista na época. No primeiro
escrutínio, cinco bispos foram eleitos e Scilla Franco obteve 49 votos. Foi eleito
no segundo escrutínio com 52 votos contra 45 do segundo, Paulo Ayres
Mattos.138
Em entrevista concedida ao jornalista Percival de Souza, logo após a
eleição, Scilla Franco fala dos preconceitos de que é vítima. Fala de certo
“elitismo” e “bacharelismo” que dificultaram sua eleição. É tido, por alguns
setores da Igreja, como despreparado para a função episcopal. A maneira
137 Paulo da Silva Costa assume a coordenação da Missão Tapeporã em 3 de fevereiro de 1984, conforme reportagem do jornal Expositor Cristão. São Paulo, 1ª quinzena de março de 1984. 138 Conforme reportagem publicada no Expositor Cristão, São Paulo,1ª e 2ª quinzenas de agosto de 1987, p. 7.
75
simples e despojada de se vestir, sua aparência rude e sua linguagem popular
são características que são apontadas como inadequadas para a função de
bispo. Nas suas palavras “... fizeram de tudo para impedir minha eleição,
dizendo que sou doente, inculto, não tenho boa apresentação.” 139 Nessa
mesma entrevista, descreve o que pensa ser o episcopado: “a tarefa
fundamental do bispo não é administrativa, e sim pastoral.”
Scilla Franco enfrentou grandes dificuldades em seu episcopado: de
ordem pessoal, com sua saúde debilitada; e de ordem eclesial, com tendências
teológico-pastorais conflitantes na 5ª Região Eclesiástica. Encontrou, por outro
lado, pastores, pastoras, leigos e leigas empenhados no programa missionário
“Agentes da Missão”, com o objetivo de revitalizar a ação ministerial da Igreja
com foco no envolvimento do laicato. Tentou promover a conciliação e apoiou o
“Agentes da Missão”.
Segundo Souza, Scilla Franco
Entendia que o seu papel, nesse contexto, devia ser
fundamentalmente pastoral, mais do que administrativo. Todavia,
aspirava a colaboração de todos, especialmente das lideranças
regionais. Cogitava ainda a possibilidade de transferir a sede
episcopal para um ponto mais central da vasta Região ...Tão
prontamente assumiu o ministério episcopal, essas idéias foram
tomando corpo. A assessoria de muitos pastores o ajudava a atender
as imposições do cargo que a saúde precária impedia fossem, por
seu exclusivo empenho, plenamente cumpridas. De um ou de outro
modo, o Bispo Scilla ia imprimindo características e estilo próprios às
atividades regionais, inaugurando um tempo promissor para a
Igreja.140
Tem um período curto no episcopado da Igreja Metodista. Seus
problemas de saúde se agravam e ele vem a falecer no dia 7 de outubro de
1989, em Piracicaba, onde se submetia a tratamento.
139 Se alguém aspira ao episcopado, excelente obra almeja. Expositor Cristão, São Paulo: 1ª e 2ª quinzenas de 1987, p. 9. 140 SOUZA – 1992, p. 18.
76
3. O desafio e a necessidade de unidade: a formação do GTME
Outra importante ação da qual Scilla Franco participou e que pode ser
relacionada como desdobramento de seu trabalho entre os índios é a formação
do Grupo de Trabalho Missionário Evangélico – GTME. O GTME foi organizado
em agosto de 1979 por missionários das Igrejas Metodista, Luterana e
Presbiteriana Unida, visando uma maior cooperação e integração das pessoas
que se encontravam nas frentes missionárias.
Os objetivos do GTME eram desenvolver, por meio das igrejas
evangélicas, uma cultura de solidariedade aos povos indígenas; oferecer
formação a missionários e missionárias e expressar um compromisso
elementar com o ecumenismo a partir da unidade evangélica. Scilla Franco foi
escolhido como coordenador do grupo.
Lourivaldo Abich, um dos participantes do encontro que organizou o
GTME, em depoimento no livro “Minha Prece”141, assim descreve a
organização do Grupo de Trabalho Missionário Evangélico:
Em agosto de 1979, missionários e obreiros das Igrejas Metodista,
de Confissão Luterana e da Federação Nacional das Igrejas
Presbiterianas (atual Igreja Presbiteriana Unida), além de simpatizan-
tes da causa indígena, reunidos na Chácara Flora, em São Paulo,
para o Encontro Presença Evangélica nas Fronteiras do País,
optaram pela criação de um grupo de trabalho interdenominacional,
visando uma maior cooperação e integração dos que se
encontravam nas frentes missionárias.142
A partir dessa preocupação ecumênica, definiram-se os princípios que
norteariam as ações do grupo. Não era para ser, segundo Scilla Franco, uma
organização/instituição, mas, uma união de propósitos e princípios. Continua
Abich em seu depoimento:
Os missionários não podiam ficar no isolamento. Deveriam se
encontrar, trocar experiências, apoiar uns aos outros naqueles
momentos difíceis de ditadura militar. Haveria também empenho por
141 ABICH, Lourivaldo. Pastor e companheiro in: FRANCO – 1992, p. 9-10. 142 Ibidem, p.9.
77
se desenvolver no meio das igrejas evangélicas, uma cultura de
solidariedade aos povos indígenas, Ficavam, ainda, a preocupação
com a formação de missionários e missionárias e o compromisso
elementar do ecumenismo a partir da unidade evangélica. O Centro
Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que servira de
berço para o nascimento do GTME, ficou responsável pela
assessoria e o pastor Scilla Franco foi escolhido para coordenar as
tarefas do grupo.143
Para tentar atingir esses objetivos, dentre outras coisas, o GTEME publica
boletins – elaborados de forma rudimentar – com reflexões sobre a missão
entre os indígenas e a cultura desses povos; promove encontros, seminários e
cursos de capacitação para missionários e missionárias e procura auxiliar e
despertar as Igrejas para o trato com as questões que envolviam os índios nas
diferentes regiões do país. Os desdobramentos do GTME foram o surgimento
do Conselho de Missões entre os Índios (COMIN), na Igreja Luterana e do
Grupo de Trabalho Indigenista (GTI), na Igreja Metodista.
Em entrevista publicada no boletim do GTME nº 5, em 1984, Scilla Franco
faz um balanço dos cinco anos do grupo e fala de suas expectativas e
frustrações em relação ao GTME. Para ele, um dos problemas mais
importantes que o Grupo poderia resolver era o do isolamento dos missionários
que estavam no campo:
a falta de uma retaguarda, de um fórum de debates, no qual eu
pudesse aclarar as idéias, crescer nos meus conhecimentos, ser
avaliado e, acima de tudo, gozar da fraternidade missionária, já que o
missionário que realmente se envolve na luta concreta dos índios
acaba não tendo amigos. Os políticos não o estimam porque ele é
avesso à politicagem. Para o fazendeiro, ele é um empecilho para a
tomada da terra ou exploração de mão-de-obra barata. Para a
comunidade envolvente, um excêntrico que ‘fica se ocupando destes
lugares, quando há tantos brancos necessitados’. Para as outras
missões, um herege que vem se intrometer e fazer política. Então
meu sonho era de que missionários de todos os credos, mesmo
143 Ibidem, p.9.
78
discordando da práxis de cada um, pudessem se entender em favor
da causa maior. Muito cedo percebi que isto era impossível. Os
guetos evangélicos estão cada um ocupados com os seus próprios
problemas, com suas estruturas e com os “seus índios”. Muitas
vezes os próprios missionários, quem sabe consumidos por suas
atividades locais, não conseguem enxergar fora de seu “mundinho”.
Outros são impedidos pela estrutura a que são ligados.144
Scilla Franco fala da necessidade de cooperação entre as diversas igrejas
que atuam entre os indígenas. O desafio maior para os missionários cristãos,
segundo Scilla Franco, é atuar em nome do Evangelho e não das organizações
que os financiam, sejam as Igrejas ou as agências missionárias. Diz ele:
Como os que trabalham com os índios não o fazem às suas próprias
custas, estão de modo geral (submissos) a seus financiadores,
embora a maioria não seja capaz de reconhecer isto, quer por falta
de autocrítica, ou meramente por vaidade, muito própria do branco.
Ainda há que considerar o que os brancos fizeram com o Evangelho.
O que é feito em nome do Evangelho, muitas vezes é frontalmente
contra seu ensinamento básico, que é o amor.145
O GTME pretendeu ser uma forma de apoiar os missionários e
missionárias para responderem a esses desafios e ser, ao mesmo tempo, um
núcleo de formação e capacitação de pessoas para a missão. Ao longo dos
anos tem conseguido cumprir, não sem dificuldades, seu propósito. Segundo
Ana Cláudia Figueroa,
Este grupo de trabalho era interdenominacional, propondo-se a
repensar o conceito de missão e evangelização, trocar idéias e
experiências e estreitar laços de amizade apoiando-se mutuamente.
Em 1988, o GTME se definiu por um trabalho específico de apoio e
solidariedade aos povos indígenas. Uma organização não-
governamental, sediada em Cuiabá – MT, mantendo parcerias com
as igrejas: Evangélicas de Confissão Luterana no Brasil (IECLB),
Metodista, Episcopal Anglicana no Brasil (IEAB) e Presbiterianas
Independente e Unida (IPI, IPU). Em vista de objetivos indígenas
144 Uma vida dedicada à missão – Boletim do GTME nº 5, 1984. 145 Ibidem.
79
comuns, o GTME tem se articulado, ao longo dos anos, com
entidades afins, como é o caso do Conselho Indigenista Missionário
– CIMI (Igreja Católica), Operação Amazônia Nativa – OPAN e
Instituto Socioambiental – ISA.146
Scilla Franco vê com esperança o surgimento de um novo tempo para as
missões protestantes, a partir dos contatos no GTME. É um novo momento
porque, segundo ele, no passado, as missões protestantes foram coniventes
com a exploração dos índios, como foram os católicos. Segundo sua avaliação,
“praticamente por quatrocentos anos o índio esteve na mão da Igreja. E o que
fez a Igreja? Acredito que hoje esta posição está sendo revista. Estão
estudando a questão do ponto de vista mais crítico, mas a caminhada é bem
grande ainda.”147
4. Pastoral da convivência
Rui de Souza Josgrilberg, na apresentação do livro que traz uma
coletânea de textos missionários e indígenas de Scilla Franco148, descreve uma
passagem da ação missionária de Scilla Franco de uma visão encarnacional da
fé cristã para uma Pastoral da Convivência. Afirma Josgrilberg:
A visão missionária da encarnação pressupunha, como era
entendida, assumir o máximo a condição indígena: ser um entre eles,
apesar de ser branco e da cultura branca. Os índios Kaiowá e
Terena, após alguns anos, reconheceram esse modo de ser cristão e
deram nome indígena a Scilla Franco. Ele foi aceito, fato raríssimo,
em rituais e conselhos indígenas. Um Índio disse que ele era
reconhecido como um deles. Mas essa visão e essa forma de
encarnar o Evangelho custaram caro para o missionário e a família.
Em algumas ocasiões, Scilla foi ameaçado de morte.149
146 FIGUEROA, Ana Claudia. Metodismo e Indigenismo no Brasil in: Revista Caminhando, volume 8, nº 2. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2003,p. 206. 147 Missões protestantes foram coniventes na exploração do índio. Entrevista concedida ao Jornal Evangélico, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Publicada na edição da 1ª quinzena de fevereiro de 1981. Também publicada em FRANCO – 1992, p.76-79. 148 FRANCO – 1992, p. 7 e 8. 149 JOSGRILBERG – 1992, p. 7.
80
No desenvolvimento de seu trabalho, Scilla Franco foi percebendo as
limitações dessa visão encarnacional e descobre a “pastoral da convivência”. É
no convívio com missionários de outras denominações com os quais participa
no GTME, no processo conjunto de organização e consolidação desse grupo
como orientador de uma práxis missionária indígena coerente, que ele
descobre a “pastoral da convivência”. Segundo Josgrilberg.
Essa pastoral reconhece, mais profundamente, a cultura indígena em
sua particularidade, reafirma melhor a autonomia indígena, e toma o
grupo indígena como um parceiro de diálogo e de caminho em
direção à auto-sustentação cultural política, econômica e espiritual. A
pastoral da convivência não foi entendida tanto como uma negação
de pastoral encarnacional, mas como uma correção dela. Scilla, junto
com tantos outros missionários, evangélicos e Católicos, havia
penetrado na lógica da cultura do outro (como diria Carlos Rodrigues
Brandão) e a compreensão da encarnação passou por outros
critérios.150
O trabalho de Scilla Franco entre os índios foi marcado pelo
desprendimento e interesse em fazer alguma coisa de relevante para resolver
os problemas enfrentados pelos índios. Pode-se dizer que fez muita coisa e
ensinou muita coisa. Foi, para ele e para a Igreja Metodista, um processo de
aprendizado. A partir de sua experiência, definiram-se as Diretrizes da Igreja
Metodista para o trabalho com os índios. Reconhece-se nele uma inspiração e
um modelo de pastoral.
A experiência de Scilla Franco, portanto, e a compreensão que tem de
“Pastoral de Convivência”, em grande parte construída na participação no
GTME, ajuda a definir as Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária
Indigenista151 na Igreja Metodista, nas quais a Pastoral da Convivência ocupa
lugar de destaque. Esse documento tem como base o relatório da Equipe de
Apoio da Missão Tapeporã, elaborado em dezembro de 1982 (anexo 6) que
descreve a Pastoral de Convivência da seguinte forma:
150 Ibidem, p.8. 151 IGREJA METODISTA – COLÉGIO EPISCOPAL – 1999.
81
A Igreja Metodista pretende que sua presença evangelizadora em
meio à comunidade indígena se dê em um contexto de respeito aos
valores dos povos índios e através de uma pastoral de convivência,
de maneira tal que ela seja capaz de sinalizar aos índios a presença
do Reino de Deus, sem violentar a sua consciência e destruir a sua
liberdade quer como povo, quer como indivíduos.
Conceitua-se como pastoral de convivência o estar presente o
obreiro da Igreja na comunidade indígena, participando em todos os
seus momentos, sem uma proposta prévia acabada, mas
aprendendo e descobrindo com ela os caminhos para a formulação
de uma pastoral indígena [...] Torna-se, pois, necessário buscar uma
pastoral indígena, a ser aprendida em convivência com o índio, uma
vez que as formas tradicionais de evangelização adotadas na cultura
da sociedade maior não alcançam ou interpretam adequadamente os
valores indígenas.
É importante anotar que, na prática missionária de Scilla Franco, pode-se
observar um processo de aprendizado e conhecimento das questões culturais
que envolvem a missão entre os índios. Instintivamente e compassivamente,
Scilla Franco concebe uma maneira de fazer missão através da presença e do
convívio, procurando valorizar a pessoa do índio e não como uma forma de
dominação. Nesse processo, entretanto, comete equívocos.
Scilla Franco admite que seu desconhecimento da cultura indígena o
impediu de desenvolver uma ação mais efetiva em favor dos índios, chegando
a repetir erros passados e pelos quais se penitencia:
Quando eu comecei a trabalhar com o índio, iniciei dentro do sistema
tradicional de pregar o Evangelho para eles, achando que quando
conhecessem o Evangelho se libertariam de tudo. Mas percebi que
eles apenas me aceitavam porque eu tinha o poder. Eu tinha o trator,
a semente, o veneno e o conhecimento de plantio agrícola. Na
verdade eu era um corpo estranho dentro da tribo.152
Descobre, com o convívio, que seu discurso religioso e evangelizador
dizia pouco para os índios. O que importava para eles era como ele vivia.Nesse
152 FRANCO – 1992, p.76-79.
82
convívio, ganha a confiança e é reconhecido, inclusive, como sacerdote. Chega
a ser admitido em rituais próprios dos índios.153
De início, Scilla Franco pouco entende das questões que envolvem a
causa indígena no Brasil e, também, da vida e cultura desses povos. É um
missionário que vai ao encontro dos índios movido pela compaixão, mas, com
pouco preparo e conhecimento da vida, da cultura e da religiosidade indígena
e, também, das complexas relações econômicas e políticas que cercam a
reserva Indígena de Dourados. Todavia, busca esse preparo enquanto convive
com eles, através de obras de antropologia e participação em seminários.
Busca, também, aprofundar seus conhecimentos agrícolas, necessários,
segundo ele, porque “os indígenas confiam inteiramente no que eu digo, por
isso não posso errar.”154
Scilla Franco é capaz, todavia, de realizar uma autocrítica, admitindo sua
falta de conhecimento da cultura indígena e seu modo de ser:
O meu trabalho era de ação comunitária, basicamente
desenvolvimento agrícola. O fundamento era que possuindo os
índios daquela reserva, menos de ½ hectare por pessoa, ou se
usava alguma tecnologia visando ao aumento da produção, ou eles
morriam de fome. A crítica que eu faço ao meu trabalho é que por
pura ignorância, introduzi uma cultura comercial (soja) sem antes
saber que o índio ao não saber usar os resultados da colheita
(manobrar o dinheiro), um dia depois da venda ele estava tão pobre
como antes e que isto também levou a uma competição, gerando
fatos tais como: arrendamento de terras e compras de terras uns dos
outros. E pior foi que tudo levou a desestimular a roça de
manutenção. Quando me dei conta e comecei a conciliar os projetos,
aí tive que deixar o trabalho.155
Scilla Franco reconhece, também, que passou por mudanças teológicas
importantes na sua compreensão de Deus, de sua manifestação e propósito de
salvação. Esse processo de mudança em seu pensamento teológico acontece
153 Ibidem. 154 FRANCO, Scilla. Os Índios querem uma oportunidade. Expositor Cristão. São Paulo: 2ª quinzena de julho de 1978. 155 Uma vida dedicada à missão. Boletim do GTME nº 5, em 1984.
83
no convívio com os índios e na interação com uma cultura bem diferente
daquela na qual fora formado. Assim, ele afasta-se gradualmente da
concepção evangélica tradicional que vê a fé cristã como a única possibilidade
de salvação. Ao mesmo tempo em que cresce seu respeito pela cultura e
religiosidade indígena, aumentam suas críticas a um cristianismo desvinculado
da vivência. Reconhece esse distanciamento da visão tradicional e sectária: “O
choque entre uma religião professada e uma vivida, para mim foi sempre
embaraçoso. Pode até ser uma heresia, mas para mim, os índios são ovelhas
de um outro aprisco.”156
5. Os Escritos de Scilla Franco
Outra importante forma de ação de Scilla Franco foi através dos inúmeros
textos que escreveu (ANEXO 6). São textos geralmente curtos nos quais usa
uma linguagem direta e simples, carregada de imagens do cotidiano. Neles,
aborda diversos temas relacionados à vivência da fé cristã, predominando um
chamado ao compromisso com os que sofrem. A maioria deles trata de temas
missionários e indígenas e são publicados após sua saída da Missão
Tapeporã. É a forma que encontra de ainda estar ligado à Missão e à causa
indígena.
Scilla Franco assume uma postura profética através de seus textos
publicados, em sua maioria, no Expositor Cristão. Por meio deles, tenta
demonstrar as incoerências do discurso da Igreja, a Metodista em particular,
em relação à sua prática. Preocupada com seu crescimento numérico157, com a
construção e manutenção de seus templos e a ampliação de suas escolas,
geralmente voltadas para atender a classe média, a Igreja pouco fazia em favor
das classes mais pobres. A partir de sua experiência com o índio aculturado do
Mato Grosso do Sul, ele procura despertar a Igreja para o envolvimento com as
156 Ibidem. 157 Nesse tempo, a Igreja Metodista brasileira está empenhada em uma campanha para alcançar o número de 100 mil membros. Contava, até então, com aproximadamente 65 mil metodistas arrolados. Scilla Franco ironiza essa meta em momentos que aponta para a negligência da Igreja com outros aspectos da vida social do país e, particularmente, dos índios.
84
pessoas sofridas e a ações efetivas no combate às forças que geravam o
sofrimento e a discriminação.
Usa de ironia muitas vezes para revelar a hipocrisia do discurso religioso
predominante. Usa o humor como ferramenta para prender a atenção de seus
ouvintes e, ao mesmo tempo, levá-los à reflexão sobre questões muito sérias
que envolviam a missão da Igreja no contexto brasileiro. Ao mesmo tempo, a
iminência da morte (segundo os médicos, ele viveria pouco por conta de uma
infecção hepática e renal), conferiu força ao seu discurso. “A sua palavra
chegou a assumir traços de irrevogabilidade e desafio permanente.”158
Scilla Franco, em seus textos, pouco menciona os índios Terena, com os
quais inicia seu trabalho missionário enquanto pastor em Dourados. A maioria
de suas reflexões tem como centro os Kaiowá, com os quais inicia o projeto de
Roça Comunitária. É da FUNAI a iniciativa do trabalho com os Kaiowá,
considerando os bons resultados obtidos por Scilla Franco entre os Terena
(conforme Anexo 2). A partir daí, a atenção se volta para os Kaiowá e é entre
eles que se forma a Missão Tapeporã que, ainda hoje, está localizada na parte
da reserva habitada por eles, a aldeia Bororó (ver Mapa 4).
As razões dessa escolha não são claras. Foi um processo, cujos
acontecimentos parecem ter levado a isso. Há que se considerar, também, o
fato dos Kaiowá serem, dentre os índios da reserva, os mais pobres159. O modo
de organização dos Terena, com uma estrutura mais sofisticada que os
Guarani, e o fato de terem sido levados para a reserva, vindos de Aquidauana,
para ensinar técnicas agrícolas para os Kaiowá, criou as condições de um
domínio Terena.
Scilla Franco fala sobre a situação dos Kaiowá dentro da reserva:
O Kaiowá nunca foi de opor resistência,sempre fugiu todas vez que
foi molestado. Hoje se encontram no extremo da aldeia e só
permanecem lá porque não têm para onde ir. Ainda é comum que,
em caso de opressão ou calamidade, eles se mudem para outro
posto abandonando o seu, ou simplesmente se matam. Por isso não 158 SOUZA – 1992, p. 17. 159 Documento da FUNAI (anexo 2) aponta que o interesse em iniciar o projeto da Roça Comunitária é exatamente para diminuir a pobreza entre os Kaiowá.
85
acredito que eles tenham sido escravizados ou reduzidos. Se se
escravizar um Kaiowá, ele simplesmente se deita numa estiva e
morre da mesma forma que nasceu.160
Scilla Franco também aborda as políticas do governo em relação aos
índios apontando suas fragilidades e contradições, inclusive, a incapacidade de
lidar com as particularidades de cada povo. Fala, por exemplo, das reservas
como um aprisionamento: “Fomos peregrinos em nossa própria terra e
terminamos confinados numa reserva como pássaros engaiolados.”161
Sobre a proposta da integração dos índios à sociedade branca é,
também, crítico: “O que chamam de integração, é como se alguém adotasse
um rico herdeiro e depois descobrisse que a riqueza já se esvaiu e quisesse
ficar livre do compromisso. Hipócritas! Devolvam as nossas terras, reflorestem
as matas devastadas e verão que estamos perfeitamente integrados na
natureza como Deus criou.”162 E ainda: “Não queremos esmolas, não
queremos ser profissionalizados para sermos empregados dos brancos.
Queremos viver da terra de onde viemos e para onde certamente
voltaremos.”163
Do mesmo modo, Scilla Franco é crítico das políticas do poder público de
demarcação e emancipação164 dos índios. Para ele, as políticas e ações do
Estado, pretensamente para protegê-los, ignoravam as peculiaridades de cada
povo com toda a diversidade que os caracterizam.
160 FRANCO, Scilla. Reflexões sobre o povo Kaiowá. Boletim do GTME, nº1,1980 161 FRANCO, Scilla.Carta aos Kaiowá. Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de dezembro de 1977. 162 FRANCO, Scilla. Carta a um amigo dos índios. Expositor Cristão. São Paulo:1ª quinzena de outubro de 1978, p. 16. 163 Ibidem. 164 FRANCO – 1992. p.78.
CAPÍTULO III
CONVIVÊNCIA, CONTEXTUALIZAÇÃO E
COLABORAÇÃO ECUMÊNICA: A PRÁTICA
MISSIONÁRIA DE SCILLA FRANCO E OS DESAFIOS DA
MISSÃO NA ATUALIDADE
Nos capítulos anteriores, procurou-se, primeiro, apresentar os povos
Kaiwoá e Terena e os principais acontecimentos que envolveram a região de
Dourados dando a ela a configuração social, econômica e religiosa que tinha
na década de 1970. Em segundo lugar, buscou-se apresentar Scilla Franco,
descrevendo sua trajetória pessoal e ministerial, como se deu seu
envolvimento com os índios e a natureza de seu trabalho.
Neste capítulo, busca-se apontar elementos na ação missionária de Scilla
Franco que possam indicar caminhos para uma práxis missionária na
atualidade. Casiano Floristan165, a partir de referenciais marxistas, conceitua
práxis como atividade humana transformadora do mundo. Desenvolve os
seguintes traços característicos da práxis: primeiramente, “a práxis é ação
criadora e não meramente reiterativa”, ou seja, é uma ação que cria novas
realidades e não apenas repete ou imita o que já está posto. Práxis, é,
portanto, uma ação que exige criatividade e, ao mesmo tempo, consciência
crítica.
Em segundo lugar, “a práxis é ação reflexiva e não exclusivamente
espontânea.” A necessária consciência crítica para avaliar os contextos e
apontar caminhos pede alto grau de reflexão.
165 FLORISTÁN, Casiano. Teologia Práctica. Salamanca: Editora Síguime, 2002.
87
A terceira característica da práxis é que ela “é ação libertadora e de
nenhum modo alienante”. Essa é a finalidade de toda atividade que seja práxis,
a transformação do mundo para uma realidade mais humana e mais livre. Por
fim, “a práxis é ação radical e não meramente reformista”. Numa sociedade
dividida em classes e geradora de desigualdades e injustiça, se faz necessária
uma práxis radical, “a saber, a que intenta transformar a raiz das bases
econômicas e sociais em que se assenta o poder das classes dominantes para
construir uma sociedade nova.” 166
Práxis Religiosa, portanto, é toda ação promovida pelas religiões que
promova transformações de situações limitadoras da vida. Este conceito de
práxis torna-se importante para a avaliação das ações da Igreja e no
direcionamento de suas ações. No caso de Sciila Franco, sua ação, como
apontado no capítulo anterior, caracterizou-se por ser uma “pastoral de
convivência”. A convivência pressupõe respeito e valorização da cultura do
outro; exige proximidade e sensibilidade para compreender e solidarizar-se
com as realidades que marcam a vida do outro e leva, necessariamente, a uma
vivência ecumênica.
1. A prática missionária de Scilla Franco e como ele vê as
relações entre religião e cultura
1.1. Um encontro em torno da terra
Movido pela compaixão, Scilla Franco aproxima-se de um grupo indígena
na tentativa de ajudá-lo a superar a miséria e a exploração. Faz isso em nome
da fé cristã. Primeiramente, num aspecto pessoal: é a sua maneira de entender
a vida cristã e os compromissos que ela pede que o move intimamente. Em
segundo lugar, institucionalmente: empreende um trabalho a partir de sua
condição de pastor metodista e recebe da Igreja o suporte para isso, tanto no
sentido material, provendo os recursos para seu sustento e para a realização
de seu trabalho, quanto na legitimação de seu ministério pastoral.
166 Ibidem, p. 179-180.
88
Os índios, por sua vez, especialmente os Kaiowá, ainda preservam
aspectos de sua religiosidade. Apesar de anos de dominação cristã e de
catequese, resistem. O trabalho de Scilla Franco tem a ver com o cultivo da
terra. Na cultura e religiosidade Guarani, a terra é um elemento sagrado. A
religiosidade, portanto, está fortemente presente nessa atividade. De inicio,
Scilla Franco parece não se dar conta da complexidade que isso envolve.
Diferentemente da cultura ocidental, que concebe a natureza seguindo as
leis da física e os seres humanos exteriores e superiores a ela, as sociedades
indígenas, “concedem à natureza características humanas e incluem-na num
sistema social único. Assim, para os grupos indígenas aqui estudados (povos
guarani), a terra tem as faculdades dos humanos. É como um corpo
murmurante, que se alarga e se estende. Ela vê, ouve, fala, sente e é
enfeitada. É viva.”167 Para os índios Guarani, não se concebe a terra como
propriedade de alguém, antes, eles é que pertencem à terra e os rituais que
realizam apontam para isso.
Essa caracterização da terra como expressão da palavra, que é divina,
aparece fortemente nos rituais que se realizam nas festas do milho. Scilla
Franco percebe isso e, em 1982, escreve um artigo com o título “Avati
Moroti”168 em que descreve o que aprendeu sobre a cultura do milho e os
rituais que a acompanhavam, desde a preparação da terra até a colheita. Este
texto, segundo ele, tem a intenção de despertar um estudo mais aprofundado,
por parte dos antropólogos, das consequências da introdução do “milho
civilizado” entre os índios. E, da parte dos missionários, despertá-los para
entender melhor e “agir com cautela no trato com as tradições indígenas”.
Como motivação, aponta o fato dele mesmo não ter compreendido bem essas
questões.169
Scilla Franco assim descreve esses rituais:
167 CHAMORRO – 2008, p. 161. 168 FRANCO, Scilla. Avati Moroti. Estudos do GTME, caderno nº 1, 1982. 169 Ibidem, p. 60 e 61.
89
Já se disse que os índios são povos do milho170 e na verdade, assim
o são. Para quem vive das incertezas da caça e da coleta, a roça de
milho é o celeiro certo. Além disso, a vida comunitária era mais ou
menos organizada seguindo o ciclo do milho, desde o roçado coletivo
feito através de mutirão-puchirrão-adjutória, e que culminava com
festas e a dança da chicha171 onde a bebida servida também era feita
do milho e todo o trabalho era feito em ritmo de festa e não como
castigo, feito com riqueza, ritual e simbolismo, que nós civilizados
ignorantemente chamamos superstição. 172
Scilla Franco destaca o caráter festivo presente no trabalho de plantio.
Trabalho e festa se misturam numa sociedade em que o trabalho não é castigo
ou mão-de-obra a ser vendida. Para os índios, trabalhar a terra é participar de
uma ritual e é executado, então, com a reverência e a alegria de uma
celebração cultual.
Da mesma forma, com os Terena, o encontro se dá em torno da
agricultura. Como já dito acima, Scilla Franco fala pouco sobre o seu trabalho
entre eles, que quase não aparecem em seus escritos. Todavia, o povo Terena
está fortemente ligado à agricultura e ao cultivo da terra se ligam, como
apontado no primeiro capítulo, os rituais religiosos.
Portanto, o encontro entre o pastor Scilla e os povos indígenas Terena e
Kaiowá em torno da terra representa um encontro entre duas expressões
religiosas diferentes. É importante destacar isso porque a religião é um aspecto
fundamental da cultura de um povo e, neste caso, leva o pastor protestante à
percepção de diferenças fundamentais entre a religião praticada entre os índios
e a sua própria tradição.
1.2. A Relação entre Fé Cristã e Cultura Ocidental
Cultura pode ser entendida como a forma do ser humano construir seu
mundo e suas relações. Neste processo, a religião ocupa lugar destacado. O 170 Essa caracterização é feita em relação aos índios guarani, também, por Egon Schaden in: SCHADEN – 1974. 171 Chicha é uma bebida de milho fermentada consumida nos rituais religiosos. 172 FRANCO, Scilla. Carta aos Kaiowá. Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de dezembro de 1977.
90
estudo das diferentes culturas humanas revela que um sistema religioso está
presente em todas elas. “Toda sociedade humana é um empreendimento de
construção do mundo. A religião ocupa um lugar destacado nesse
empreendimento.”173.
Segundo Severino Croatto,
Todas as culturas e todos os povos tiveram e têm uma expressão
religiosa. Dizer ‘expressão’ é falar de manifestações de ordem
religiosa que têm seu veículo na simbologia, na linguagem, na
literatura, na arte, em rituais variadíssimos, nos corpos doutrinários,
em modelos de vida.174
A religiosidade é uma experiência tipicamente humana e condicionada
pela maneira do ser humano existir e de se relacionar no mundo. Ao mesmo
tempo em que é determinada pelo contexto histórico e social, ajuda a formá-lo.
Ela é fornecedora de elementos que definem a cosmovisão de um povo e
ajudam a definir sua identidade.
A religião, assim, é um fenômeno que ajuda a formar a cultura humana e
moldar seu modo de interagir com o ambiente e com as pessoas. Este caráter
relacional da religião é destacado por Croatto “como experiência humana
propriamente dita, ela é uma vivência relacional: com o mundo, com o outro
indivíduo e com o grupo humano [...] Essa característica da vida humana tem
uma grande influência na ‘socialização’ da experiência religiosa.”175
Aldo Natale Terrin estabelece uma forte ligação entre cultura e religião no
Ocidente. Como apontado acima, a religião e a cultura estão intimamente
ligadas em todas as sociedades humanas. No caso específico do Ocidente,
baseia-se no monoteísmo. O fato de o monoteísmo religioso prevalecer como
um modelo verdadeiro ajuda a moldar um modo de ser em sociedade.
Na conquista do Brasil, essa mentalidade ocidental foi sendo incorporada
e, ainda hoje, uma parte significativa da população e, certamente, a grande
173 BERGER, Peter L.. O Dossel Sagrado – Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985, p. 15. 174 CROATTO – 2001, p. 9. 175 Ibidem, p. 42.
91
maioria das Igrejas Cristãs atuando no país, inclusive a Metodista, seguem
seus conceitos básicos. Isso é descrito por Terrin:
O Ocidente é monoteísta por destino e por opção e todos somos
defensores convictos de que a crença num único Deus é uma forma
de pensamento triunfante no plano religioso, mas também no plano
político, econômico e social. A religião se aliou então à nossa
cultura, e as duas componentes – cultura e religião – formam assim
o nosso destino. Porque afirmar que existe um só Deus significa ao
mesmo tempo reconhecer que existe uma só verdade, uma só
justiça, um só valor universal.176
Numa cultura pluralista como se configura o mundo ocidental, torna-se
necessária uma revisão deste modelo monoteísta. Todavia, não do
monoteísmo religioso, que deve ser visto como uma expressão legítima de
religiosidade como todas as outras, mas, de um “monoteísmo cultural”. O
monoteísmo religioso acabou por criar um “monoteísmo cultural” uma vez que
a religião cristã se apresenta como a verdadeira expressão religiosa ou como a
legítima expressão religiosa. No Brasil, a colonização feita pelos portugueses a
partir de 1500 foi acompanhada e legitimada pela fé cristã. Impôs-se, assim,
uma cultura cristã e ocidental.
A respeito disso, Riolando Azzi177 faz um estudo das principais
formulações teóricas que contribuíram para a organização da vida colonial no
Brasil, demonstrando como a cosmologia que prevalecia entre os
colonizadores europeus, particularmente, entre os portugueses foi um
importante instrumento na fundação e estruturação da colônia brasileira.
A exploração do continente americano, segundo Azzi, teve como base,
por um lado, a “dessacralização da natureza”178 e, por outro e
simultaneamente, a “sacralização do homem”. Gradativamente, a natureza foi
176 TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado – culturas e religiões. São Paulo: Paulus, 2004, p. 334. 177 AZZI, Riolando. Razão e Fé – O discurso da dominação colonial. São Paulo: Paulinas, 2001. 178 Hoje, há uma fase na discussão desse tema: se a modernidade trouxe a dessacralização da terra, hoje percebe-se uma re-divinizaçao da terra a partir do conceito de mãe-terra. Helmut Renders avalia esse tema e demonstra como a compreensão da Terra Mãe pode ser integrada na fé cristã, não no sentido de uma “Deusa”, mas, de uma criadora da vida e criada por Deus. RENDERS, Helmut. Graça, Salvação e Teologia da sustentabilidade como tema da Teologia – discussões, acentos e contribuições in:Teocomunicação, vol, 40, nº2, 2010, p. 213-237.
92
sendo destituída de seu caráter divino e o ser humano revestido. “Assim sendo,
ao desencanto do mundo natural correspondia um processo de encantamento
do próprio homem.”179
Azzi procura mostrar como o pensamento grego clássico, especialmente
com Platão e Aristóteles, foi o responsável pela construção de uma cosmologia
que afirma a superioridade do ser humano sobre a natureza. Com base nela,
também, o povo grego – ou, pelo menos, a classe dominante – afirma sua
superioridade: “dos gregos sobre os demais povos, a superioridade dos livres
sobre os escravos e a superioridade do sexo masculino sobre o feminino.”180
De acordo com Azzi, esse pensamento foi difundido na Idade Média,
principalmente, por Agostinho e por Tomás de Aquino numa perspectiva cristã.
Sendo que Agostinho se aproxima mais de Platão e Tomás de Aquino de
Aristóteles. Assim ele sintetiza as diferenças entre as duas concepções: “Na
antropologia platônico-agostiniana, enfatiza-se a fragilidade do homem diante
das amarras do corpo. Já na perspectiva da antropologia aristotélico-tomista,
prevalece a confiança no poder da razão humana enquanto reguladora das
forças físicas.”181 Ambas, porém, têm em comum a idéia da superioridade da
pessoa humana sobre a natureza.
É essa cosmovisão que prevalece entre os colonizadores portugueses e
que lhes dá a base para afirmarem-se superiores e, portanto, dominadores da
natureza. E, a exemplo dos gregos em relação aos “bárbaros”, superiores aos
povos indígenas. Segundo Azzi,
Essa afirmação de superioridade, aliás, era essencial para o seu
projeto imperialista, que supunha não só o domínio sobre a natureza,
mas também sobre os habitantes da nova terra. Dessa forma, o
conceito de superioridade dos lusitanos como seres plenamente
racionais garantia-lhes o exercício da conquista material e espiritual
tanto do território como dos povos nele existentes.182
179 AZZI – 2002, p. 45. 180 Ibidem, p.53. 181 Ibidem, p.55. 182 Ibidem, p.56.
93
Para evidenciar essa superioridade era necessário destacar as diferenças
entre as culturas européia e indígena, atribuindo à européia uma “superioridade
estrutural”. Nesse processo, reduziu-se as diversas expressões culturais dos
diferentes povos que aqui habitavam a uma só cultura.
Esse processo de redução dos povos indígenas e, posteriormente, dos
negros trazidos da África, serviu de justificativa para, pelo lado econômico, a
escravização ou extermínio por parte dos colonos brancos e, pelo lado
religioso, para a afirmação da importância da atividade missionária. “Quanto
mais fosse ressaltada a selvageria dos indígenas, mais patenteada ficava a
necessidade de promotores da fé no novo território colonial”.
Azzi sintetiza esse processo da seguinte forma:
... de início o religioso, homem dotado de fé e razão,se defronta com
grupos indígenas, considerados sem fé e sem uso da racionalidade.
Cria-se assim uma oposição bem nítida: de um lado a fé e a razão do
missionário; de outro, a descrença e a desrazão do indígena. Daí a
justificação da dominação, seja através da coação física,seja através
do intimidamento moral. Este processo de dominação passa a ser
conhecido como “redução” do gentio. É por meio da ação missionária
que o indígena é transformado num ser verdadeiramente humano,
dotado de fé e razão. Por conseguinte, está apto a ser declarado fiel
da Igreja e súdito da Coroa, ou seja, integrado no serviço do Estado
lusitano.183
Essa maneira de ver os indígenas é a responsável pela descaracterização
dessas pessoas como seres humanos e abriu caminho para a destruição de
sua cultura e o extermínio de povos inteiros.
Raúl Fornet-Betancourt184 concorda que o cristianismo, como se expressa
hoje, é resultado de um processo histórico de expansão do Ocidente e do
avanço, muitas vezes violento, da cultura que gerou. Para ele, o cristianismo
terá relevância no futuro se libertar-se da pretensão de ser a única
possibilidade de expressão da fé cristã e empreender um respeitoso e genuíno
183 Ibidem, p.61. 184 FORNET-BETANCOURT, Raúl. Religião e Interculturalidade. São Leopoldo: Sinodal/Nova Harmonia, 2007.
94
diálogo com religiões não-cristãs. Para isso, segundo Fornet-Betancourt, é
necessária uma autocrítica intra-religiosa e intra-cristã, “entendendo por isso o
momento reflexivo pelo qual o cristianismo confronta-se a si mesmo com esse
reverso de sua história e questiona seu próprio processo de constituição
cultural e teológica.”185
É preciso, também, uma interculturalidade que exige do cristianismo
ocidental “humildade” para reconhecer seus limites como expressão cultural
contingente e uma abertura para ver no outro – e em sua cultura – legítima
expressão cultural humana capaz de gerar novas formas de expressão da fé
cristã, todas igualmente válidas.
Assim, encarregando-se de seus próprios limites culturais, poderia o
cristianismo abrir-se para outras culturas sem intolerâncias, sem
complexo de superioridade; e entrar em uma dinâmica dialógica que
poderia conduzi-lo para uma radical transfiguração, porquanto que
dessa dinâmica poderiam gerar-se novas formas de cristianismo.186
O desenvolvimento desse processo de autocrítica, de abertura para
considerar outras formas da fé cristã se expressar e de disposição para o
diálogo inter-religioso exige, por parte do cristianismo ocidental, certa renúncia.
Renúncia em ser a única expressão possível da fé cristã e de ser o cristianismo
a única religião verdadeira. Considerar a interculturalidade, renunciando à
pretensão de ser a única possibilidade de compreensão correta de Deus e de
seus projetos de vida é um caminho possível para a construção de uma práxis
missionária relevante.
1.3. Religião e cultura nos textos de Scilla Franco
A prática missionária de Scilla Franco deve ser entendida a partir dessa
relação entre religião e cultura e entre fé cristã e cultura ocidental. Ele é
representante dessa cultura religiosa cristã e de sua pretensão de ser a única
legítima. Encontra-se com um povo que tem uma cosmovisão própria e um
185 Ibidem, p. 29. 186 Ibidem, p. 31.
95
jeito particular de ser, fruto de sua cultura que ainda permanece resistindo a
um longo tempo de dominação e aculturação.
Ao analisar-se a ação missionária de Scilla Franco, é importante
considerar essa relação entre cultura e religião e, em particular, o modo como
se dá a relação Cultura Ocidental e Cristianismo. Representante de um ramo
do cristianismo ocidental, o protestantismo, o trabalho de Scilla Franco insere-
se nessa relação.
Scilla Franco aponta para o problema da identificação do Evangelho com
a cultura cristã ocidental. Para ele, a mensagem do Evangelho é fundamental.
É ela quem o inspira e impulsiona à ação em favor do outro. Entretanto, é
preciso desvincular a essência do Evangelho das culturas que a envolvem. Diz
ele,
... o índio pra ser cristão, não precisa deixar de ser índio. Porque no
fundo, o fundamentalismo tem pra mim uma grande desvantagem,
porque segundo eles, o índio é tão mais crente quanto menos índio
ele for. Quer dizer, o índio crente é aquele que não dança, que não
bebe haxixe, que não freqüenta nada na sua tribo, que não usa mais
colares, que não fura o beiço, esse é o bom índio cristão. E nós
entendemos que ele pode ter todos os seus traços culturais e ser um
bom cristão.187
Scilla Franco entende que a identificação da religião cristã com a
conquista da terra pelos europeus nega a essência do Evangelho. Quando o
governo devolveu uma pequena parte das terras aos índios Pataxó, em 1981,
Scilla Franco escreveu o texto: De um Pataxó ao Deus dos brancos188. Nele,
contrapõe a atitude de auto-doação de Jesus à busca de privilégios dos
sacerdotes que foram coniventes e até participantes da exploração da terra e
dos índios.
Na Carta aos Kaiowá189, Scilla Franco descreve uma visão dos céus e do
juízo utilizando imagens da cultura e do cotidiano indígena para descrever os
céus. Nele, intercede pelos índios junto ao Trono de Deus. Entretanto, fala à
187 Jornal Contexto. Campinas: abril de 1994, p. 7. 188 Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de abril de1981. 189 Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de dezembro de 1977.
96
Igreja cristã, particularmente à Metodista, mostrando seus equívocos na
evangelização dos índios. Cita os missionários e põe-se como um deles numa
auto-crítica que revela as fragilidades da ação missionária da Igreja. Equívocos
que são, na verdade, uma violência à sua cultura e valores.
Em Como cantar em terra estranha?190, ele descreve a humilhação
imposta aos índios numa apresentação “folclórica” na cidade no dia do índio.
Um índio por nome Ara’i (nome indígena substituído por um nome cristão),
personagem do conto, “com o rosto pintado por guache ao invés do urucum
sagrado, sob aplausos entrava no meio de um círculo, palco improvisado num
grotesco espetáculo tragicômico do aviltamento de uma raça” Como reação à
violência a que é submetido e ao deboche do povo, faz uma paráfrase do
Salmo 137:
Nas calçadas de suas ruas tenho chorado lembrando de minha terra,
do tempo que ela era minha, e em seus postes tenho pendurado
minhas flautas, vocês nos fizeram dependentes e ainda pedem
canções e danças. Vocês nos oprimem e pedem que sejamos
alegres e têm a audácia de me pedir uma dança de meu povo. Como
posso dançar ou cantar uma canção de meu povo se sou estrangeiro
em minha própria terra... Ah! Se eu trocar a maior alegria da cidade
por minha mata... Que eu me seque como uma árvore do castelo
atingida pelo raio...191
Scilla Franco procura separar o “Evangelho” da prática cristã. Quando
perguntado sobre como conciliar o anúncio do evangelho com a religião dos
índios, responde: “A princípio gostaria de definir o que entendo por Evangelho.
Evangelho é a proclamação da boa-nova, que é anunciado para a libertação
dos povos. Eu nunca neguei que não se deva pregar o Evangelho para o índio.
Agora eu sempre me pergunto o que é o Evangelho para o índio, como e
quando pregá-lo.”192 Para ele, o Evangelho tem como fundamento a vivência
do amor e a forma como foi anunciado aos índios negou esse fundamento.193
190 Boletim do GTME, setembro de 1982. 191 Ibidem. 192 FRANCO, Scilla. Missões protestantes foram coniventes na exploração do índio.Jornal Evangélico. 1ª quinzena de fevereiro de 1981. 193 FRANCO, Scilla. Uma vida dedicada à Missão.Boletim do GTME, Nº5, 1984.
97
Entende que há na culura indígena muitos elementos que serviriam como
pontes para o anúncio do Evangelho. Mas, uma “pretensa superioridade de
cultura e civilização cria um hiato muito grande, que impede a verdadeira
comunicação com os índios.”194 Essa auto percepção de superioridade, por
parte dos missionários, não apenas impede a comunicação, mas, representa
uma violência à cultura indígena: “muitos missionários sem saberem nada da
cultura do índio, sem saberem até o que era religioso, o que era folclore,
fizeram um paralelo: nós temos a religião certa e tudo o que eles têm é
fetichismo, é culto do demônio, e assim não aproveitam absolutamente nada do
que os índios têm na sua cultura.”195
Para Scilla Franco, a classificação dos rituais religiosos indígenas como
paganismo, adoração aos demônios e feitiçaria, por parte dos missionários
protestantes e católicos, foi um grande erro. Ele descreve atos de violência de
missionários contra a religião indígena movidos pela incompreensão e
pretensão de superioridade.
A falta de compreensão de seus valores levou a diversas formas de
repressão, desde proibir os crentes de participarem de certas
cerimônias até atitudes de certo chefe de posto, ‘zeloso’, que
chegava a interromper a chicha e derramara bebida, com a intenção
de proteger os crentes... Essa evangelização de sequestro poderia
produzir tudo, menos cristãos... Suspendam os benfícios e vejam
quantos cristãos sobram.196
Segundo Scilla Franco, essa atitude dos missionários protestantes leva os
índios a disfarçar ou mascarar seus rituais quando estão perto dos brancos.
Perdem a noção de seu valor próprio, de sua dignidade e do valor de sua
cultura e religião, sentindo-se diminuídos em relação aos brancos. Como
exemplo, pode-se citar os rituais que acompanhavam o processo de plantio do
milho, identificado pelos missionários como feitiçaria e superstição. Scilla
Franco relata que, quando os acompanhou nesse processo, de início, eles
194 FRANCO, Scilla. Missões protestantes foram coniventes na exploração do índio.Jornal Evangélico. 1ª quinzena de fevereiro de 1981. 195 Ibidem. 196 Ibidem.
98
disfarçavam e escondiam dele os rituais.197 Os índios não queriam deixar seus
rituais, mas, por outro lado, não queriam desagradar os missionários.
Outro erro dos missionários, segundo ele, foi a cultura de dependência
criada pelo assistencialismo paternalista. Para ele, uma evangelização ligada
ao assistencialismo cria uma relação entre religião e a assistência que
descaracteriza a evangelização. Tornam-se cristãos pelos benefícios. Vivem
um impasse: não querem ser cristãos e deixar suas tradições, mas, também,
não querem perder os benefícios. Scilla Franco chama isso de “evangelização
de sequestro.”198
Na avaliação de Scilla Franco, apenas os pentecostais conseguem
“sucesso” de adesão entre os índios e aponta as razões:
Talvez o único grupo que alcançou sucesso entre eles sem lhes
oferecer bens materiais, e até conseguido receber deles, são os
pentecostais. A razão disso é que os pentecostais apelam para o
fanatismo e oferecem bênçãos imediatas, como cura, proteção
contra o mau olhado e obras de feitiçaria, colheita abundante, sorte
nos negócios e outras bênçãos espirituais de ordem prática, além,
naturalmente, do ambiente místico, dos cânticos espirituais, das
revelações e línguas, tão comum às crenças originais dos Kaiowá.199
Essa percepção de Scilla Franco encontra apoio em estudo feito por
Vietta e Brandt200. Segundo eles, “os processos de cura atribuídos aos
neopentecostais extrapolam as questões de ordem meramente orgânica e,
nesse caso, estão mais próximos das concepções kaiowá e guarani sobre
saúde e doença.”201 Principalmente, remetem a um aspecto fundamental
relacionado à construção da pessoa, isto é, à concepção sobre a dualidade da
alma humana.
Entre as Igrejas pentecostais e neopentecostais presentes nas aldeias os
pastores são pessoas da própria tribo e esses pastores índios conseguem, de
197 FRANCO, Scilla. Avati Moroti. Boletim do GTME, nº 1, 1982. 198 FRANCO, Scilla. Reflexões sobre o povo Kaiowá. Boletim do GTME nº1, Cadernos do CEDI nº 5, 1980. 199 Ibidem. 200 VIETTA; BRAND – 2004. 201 Ibidem, p. 248.
99
algum modo, recompor alguns aspectos fundamentais da cultura Kaiowá: os
vínculos com o sobrenatural, através dos rituais, e elementos da ordem social,
como o papel de conselheiros que exercem e a reunião de todos numa “família
extensa” – na Igreja, são irmãos na fé.
2. Proximidade, contextualização e compaixão
2.1. Proximidade e sensibilidade
O envolvimento de Scilla Franco com os índios Terena e Kaiowá se deu
pela proximidade com esse grupo. Estão à sua porta e ele não pôde deixar de
ver sua miséria e sofrimento. A visão do “outro” em seu sofrimento o perturba e
essa perturbação o leva ao envolvimento. No caso de Scilla Franco, religioso já
envolvido em projetos sociais de ajuda a colonos pobres, a proximidade o leva
a considerar um grupo até então ignorado por ele. Sensibiliza-se porque vê o
outro como “próximo”.
Paulo Suess202 utiliza a imagem da casa para descrever o que entende
por missão: quando uma comunidade religiosa decide enviar missionários para
um território de missão, o faz na perspectiva de “abrir uma casa”. Assim é
entendida a missão: a abertura de uma casa, de um espaço do grupo religioso
no lugar da missão. Essa concepção de missão de início cria barreiras: “uma
casa pressupõe um terreno com muros, privacidade, segurança e estabilidade.”
Delimita os espaços e evidencia a distância. Suess recorre ao relato dos
Evangelhos sobre o envio dos discípulos em “missão” e a recomendação para
hospedarem-se nas casas do povo. Jesus
enviou seus discípulos como portadores da paz, despojados do
poder, sem ouro e sem bastão, prudentes como as serpentes e
simples como as pombas. Na Palestina de Jesus – e isso não é
apenas um dado cultural ou histórico, mas um indicador evangélico –
o referencial da missão não é a casa própria, mas a gratuidade da
202 SUESS, Paulo. Evangelizar a partir dos projetos históricos dos outros – Ensaio de Missiologia. São Paulo: Paulus, 1995, p. 5.
100
hospedagem na casa dos outros e a experiência pascal no
caminho.203
No caso dos índios, a posse de uma propriedade não faz sentido para
eles. A terra é de todos e deve ser aproveitada comunitariamente.
A imagem da construção de uma casa no espaço do outro representa
bem um conceito de missão não-encarnacional ou não-vivencial. A casa, o
templo ou o salão de cultos aponta para a existência de algo novo e diferente
do lugar. Estranho porque veio de fora. Tem o sentido da auto-proteção e,
também, do que é diferente. Geralmente, apresenta-se como o melhor. O
hospedar-se na casa dos outros, ao contrário, aponta para a proximidade, para
a convivência. Descarta o temor pela auto-preservação. Não apenas oferece,
mas, recebe. Estar entre os índios implica nessa relação e com eles há muito o
que se aprender: são, por natureza, hospitaleiros. Usando outra imagem da
história da salvação:
Ser comunidade missionária significa arriscar-se na travessia com o
povo. E nesta travessia, a comunidade missionária não é apenas um
grupo a mais a bordo. Ela é catalisadora de transformações
profundas. É companheira dos Outros em sua solidão, angústia e ira.
É articuladora da utopia do Reino com a realidade que oprime os
pobres e destrói a identidade dos Outros.204
É possível dizer que Scilla Franco viveu este tipo de missão. Esteve junto
dos índios e implementou uma pastoral da convivência. Não abriu um
“trabalho” metodista na reserva. Não fez adeptos do Metodismo, nem fundou
uma Igreja. Conviveu com eles e se tornou, através de seus textos, porta-voz
de suas aspirações e angústias. Assumiu a causa deles como se fosse sua,
demonstrando profundo respeito por sua religiosidade e cultura. E era dessa
forma, um seguidor de Jesus, aceito nas suas casas e em seus rituais.
A proximidade possibilita o conhecimento do outro, de suas necessidades
e dores e, também, de suas virtudes e riquezas. Ao mesmo tempo, leva ao
auto-conhecimento que desencadeia um processo de auto-avaliação e
203 Ibidem, p. 6. 204 Ibidem, p. 8.
101
crescimento. O ser humano se reconhece no contato e nas relações com
outras pessoas. Segundo Suess, não apenas numa dimensão pessoal, mas,
também enquanto um povo ou um grupo social. “Sabemos quem somos a partir
daquilo que os outros acham que somos e o que nós achamos deles e de nós
mesmos.” 205
2.2. A necessária contextualização
Para romper com um modelo de missão vinculado ao anúncio de uma
determinação cultural específica ou de uma religião em detrimento de outras é
preciso considerar a missão como Missio Dei. David Bosch206, ao descrever os
novos paradigmas da teologia da missão, demonstra como ela, ao longo da
história do cristianismo, foi entendida de maneiras diversas e, muitas vezes, até
conflitantes. Já foi vista em termos soteriológicos, como “salvar indivíduos da
condenação eterna”; em termos culturais, como expansão do Ocidente Cristão
com suas “bênçãos e privilégios”; também foi compreendida em categorias
eclesiásticas, como a expansão da Igreja ou de uma denominação
específica.207 Mas, foi na Conferência de CoMin em Willingen no ano de 1942,
por influência de Karl Barth, que a idéia de missão como Missio Dei surgiu de
maneira clara. Foi nesse momento, segundo Bosch que:
Compreendeu-se a missão como derivada da própria natureza de
Deus. Ela foi colocada, pois, no contexto da doutrina da Trindade,
não da eclesiologia nem da soteriologia. A doutrina clássica da
missio Dei como Deus, o Pai, enviando o Filho, e Deus, o e o Filho,
enviando o Espírito foi expandida no sentido de incluir ainda outro
“movimento”: Pai, Filho e Espírito Santo enviando a igreja para
dentro do mundo.208
Bosch vê, também, de maneira positiva a interpretação de salvação que
surgiu do movimento missionário nas últimas décadas, uma compreensão mais
ampla do que uma dimensão meramente pessoal e individualista. A salvação,
205 Ibidem, p.10. 206 BOSCH – 2007. 207 Ibidem, p. 467. 208 Ibidem, p. 467.
102
conteúdo da missão cristã, acontece sempre no contexto da sociedade
humana. Para ele,
Num mundo em que as pessoas dependem umas das outras e cada
indivíduo existe em uma rede de relacionamentos inter-humanos, é
de todo inviável limitar a salvação ao indivíduo e a seu
relacionamento pessoal com Deus. Ódio, injustiça, opressão, guerra
e outras formas de violência constituem manifestações do mal; a
preocupação com a humanidade, a vitória sobre a fome, a doença e
a falta de sentido fazem parte da salvação pela qual esperamos e
trabalhamos. Os cristãos oram que o reino de Deus venha e que a
vontade de Deus seja feita assim na terra como no céu (MT 6.10);
conclui-se daí que a terra é o locus da vocação e santificação da
pessoa cristã.209
Assim, há uma estreita relação entre testemunho e contexto. Embora a
evangelização tenha uma dimensão pessoal importante, ela não está
desvinculada da história e da sociedade; deve ser um testemunho
contextualizado.
O contexto deve ser considerado na proclamação do Evangelho fugindo
da tendência do discurso religioso autoritário com respostas prontas que
servem para qualquer situação. A necessária contextualização exige
aproximação com as pessoas, compreensão de suas necessidades e ações
que promovam transformação. “Sem tornar-se relevante no contexto social,
cultural, político, econômico, a partir de uma vivência profunda da fé em Cristo,
o evangelho pode servir para aliviar a consciência e como experiência de
salvação pessoal, mas, não terá maior penetração na sociedade.”210
A compreensão de que a mensagem do evangelho deve ser
contextualizada tem uma dimensão profética que não é apenas de denúncia
das forças que produzem o sofrimento e a morte, mas, também, é marcada
pela luta por justiça e por transformações sociais estruturais. É possível
enxergar essa dimensão profética nos discursos de Scilla Franco dirigidos à
209 Ibidem p.475 210 ZWETSCH, Roberto E., Missão como com-paixão – Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana. Sinodal: São Leopoldo; CLAI: Quito, 2008, p. 398.
103
Igreja e à sociedade e no seu esforço real de eliminar o sofrimento do índio.
Embora não tenha sido capaz de elaborar uma crítica contundente em relação
à ditadura militar.
Na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, há que se
considerar as pessoas que sofrem à margem de uma sociedade desigual e
excludente. Entretanto, não como uma ação que vem de cima, revestida por
uma pretensa superioridade, mas, como uma ação em favor da própria Igreja e
daquele ou daquela que faz missão. Uma práxis missionária contextualizada
traz vitalidade à Igreja, possibilita sua renovação e lhe confere relevância nos
tempos em que vivemos. A Igreja participa da Missão que não é sua, é de
Deus (Missio Dei) e ao realizá-la encontra o espaço de sua renovação e, ao
mesmo tempo, de “reafirmação de uma identidade cristã dinâmica, desafiadora
e solidária com a humanidade, sobretudo a partir do compromisso com as
pessoas mais sofredoras e necessitadas de apoio, compreensão e
possibilidades de vida digna.”211
Roberto Zwetsch propõe, em resposta aos desafios da sociedade atual e
como uma dimensão central para a contextualização do evangelho, uma
compreensão de missão como com-paixão. Para ele, missão como com-paixão
denota a ação compassiva de Deus para com a humanidade, através
da qual ele a convoca para participar de sua missio em direção ao
reinado de paz e justiça. A igreja-em-missão participa da missio Dei
através da proclamação do evangelho, da vivência da fé e do amor,
do serviço libertador e da solidariedade evangélica, que ultrapassa
fronteiras geográficas, culturais, de gênero, de gerações, com vistas
a uma nova experiência de comunidade livre e libertadora (Gálatas
3.28).212
Essa compreensão de missão afasta a igreja de seu eclesiocentrismo e
amplia sua visão de evangelização. Num tempo marcado pela insegurança e
por contradições, esse é caminho que ele aponta para Igreja manter-se viva e
relevante. O protestantismo tem demonstrado uma forte tendência
eclesiocêntrica, com a instituição adquirindo mais importância do que o clamor 211 Ibidem, p. 398. 212 Ibidem, p. 401.
104
das pessoas. Corre-se, assim, o risco da prática missionária perder a sua
dimensão evangélica e tornar-se preservadora da instituição. Para Zwetsch
“não é mais possível concordar com uma presença cristã em meio aos outros
que não assuma suas culturas, seus projetos históricos de libertação e
sobrevivência digna.”213
Scilla Franco demonstra preocupação com uma pregação cristã vinculada
ao contexto que a cerca. No texto Que tens, dormente?214, a partir da história
bíblica do profeta Jonas, aponta para distância que havia entre o discurso e
prática da Igreja do contexto social brasileiro. Esse distanciamento tornava a
Igreja despreparada para entender as necessidades do povo e, portanto, para
ajudar. A mensagem da Igreja pregada fora de contexto torna-se infrutífera. Diz
ele,
Então me ocorre que, muitas vezes, os pseudoprofetas de nossos
dias vociferam loquazmente de seus púlpitos sem resultados,
simplesmente porque pregam em Tarsis o que deveria ser pregado
em Nínive. E nem é de admirar que haja uma defasagem de suas
vidas com o que pregam, e nem que tenham por ouvintes uns
poucos crentes piedosos, muitos bancos vazios e alguns bocejantes
engolidores de homilias.215
Essa preocupação com uma missão contextualizada aparece em outros
de seus textos. Em Por uma teologia nativa216, Scilla Franco discute a
importância da teologia para a práxis missionária da Igreja. Defende uma
teologia nativa, próxima do povo e que considere seus problemas reais e
concretos.
Por que precisamos de uma teologia nativa? Porque a teologia
orienta o pensamento e este o comportamento da Igreja ante o
mundo. A distância existente entre a base e a cúpula é produto de
uma orientação teológica divorciada do povo, ou melhor, que não
213 Ibidem, p. 59. 214 FRANCO, Scilla. Que Tens Dormente? Expositor Cristão. São Paulo: 1979. 215 Ibidem,p.9. 216 Publicado no Expositor Cristão. São Paulo: 2ª quinzena de junho de 1981, p. 15.
105
leva em conta sequer as manifestações culturais e até mesmo a
religiosidade popular, nem mesmo regionais.217
Scilla Franco defende que essa teologia nativa, feita por cristãos, leve em
consideração os valores culturais das pessoas que pretendem alcançar,
inclusive, seus valores religiosos. Demonstra, assim, respeito pela religião que
não é a sua e considera que há o que aprender com outras expressões
religiosas. Para ele, aceitar o senhorio de Cristo “é ser capaz de admitir que ele
é o todo-poderoso e pode se manifestar em outras formas culturais que não
aquelas bitoladas por nós, e que Ele tem ovelhas em outro aprisco.”218
3. Missão e ecumenismo
3.1. O Ecumenismo como uma exigência da Missão
Scilla Franco entende que o Ecumenismo é uma exigência evangélica e
uma necessidade para a Missão. Entretanto, não deixa de observar fragilidades
no discurso ecumênico. O que aponta como falha é o distanciamento entre
discurso e prática.
Existe ecumenismo e ecomania. O verdadeiro ecumenismo para mim
não é opção, mas imposição, ou então Cristo teria orado em vão, ou
Deus não teria respondido a oração de Cristo, quando Ele orou: ‘Pai,
que ele seja... ’ O que é um absurdo imaginar. É mais próprio admitir
que nós é que somos desobedientes. O ecumenismo trabalha nos
pontos e propósitos que temos em comum reconhecendo as
divergências e respeitando-as. Fora disso, é sincretismo, é modismo,
é querer fazer as coisas para a sociedade ver. O grande beneficiado
com este procedimento esdrúxulo é o inimigo do Evangelho, quer
seja o comunismo ateu, quer o capitalismo sem Deus.219
Scilla Franco assume que sem ecumenismo não é possível realizar a
“obra de Deus”. Com ironia, denuncia um ecumenismo de fachada e defende a
unidade e cooperação entre as Igrejas. Ajuda a criar o GTME, organismo
217 Ibidem, p.15. 218 Ibidem p. 15. 219 Boletim do GTME nª 5, 1984.
106
ecumênico, que tem por objetivo estabelecer um diálogo e promover ações
conjuntas dos missionários de diversas denominações em favor dos índios,
como descrito no capítulo anterior. Denuncia as divisões e até disputas entre
frentes missionárias como escândalos que comprometem a verdadeira práxis
missionária. Aponta a vaidade e soberba dos que se sentem “donos” da missão
e dos próprios índios e agem em favor se si mesmos e conclui: “... o problema
dos índios é que os inimigos deles são unidos, e os ‘amigos’, desunidos.
Algumas vezes, até competem uns com os outros”.220
A aproximação de Scilla Franco com representantes de outras Igrejas
Cristãs acontece, na maioria das vezes, com os de tradição protestante. Mas,
não se limita a eles. Empreende, também, ações conjuntas com representantes
da Igreja Católica em favor dos indígenas. Em 26 de março de 1979, por
exemplo, une-se ao bispo católico da diocese de Dourados, Dom Teodardo
Leitz, em uma solicitação ao presidente da FUNAI, Ademar Ribeiro da Silva,
para que alguma coisa seja feita para evitar conflitos dentro da reserva
indígena Francisco Horta Barbosa (ANEXO 7).
Scilla Franco, também, usa imagens do cotidiano das tribos para falar de
temas cristãos e até paráfrases de textos bíblicos. Toca num tema fundamental
na discussão ecumênica: a salvação. Para ele, não precisariam tornar-se
cristãos para serem salvos. Ao contrário, descreve a visão do paraíso indígena
como o lugar onde não há cristãos brancos. Há, portanto, nos textos de Scilla
Franco, intuições sobre temas fundamentais para a caminhada ecumênica e a
relação entre evangelização e ecumenismo.
Todavia, é possível perceber certa ambiguidade no discurso de Scilla
Franco sobre o tema “missão e ecumenismo”. Algumas vezes parece indicar a
necessidade do índio ser cristão; em outras, enxerga a evangelização em
oposição à prática ecumênica. Entretanto, essa ambiguidade é própria de
alguém que experimenta um processo de mudança pessoal em questões que
são fundamentais. Prevalece, ao final, seu apelo à unidade.
Portanto, o estudo da práxis missionária de Scilla Franco leva à
discussão do tema Missão e Ecumenismo. O movimento ecumênico tem suas 220 Ibidem.
107
origens no movimento missionário protestante. A unidade cristã surge como
uma necessidade diante do escândalo que representava a divisão e, em alguns
casos, disputa entre cristãos frente ao mundo “pagão”. Mesmo assim, reações
contrárias ao ecumenismo apontam para uma aparente contradição entre
evangelização e ecumenismo. Segundo essa visão, o diálogo entre as Igrejas
protestantes e católicas e, ainda mais, entre Igrejas cristãs e religiões não-
cristãs eliminariam a necessidade de missão.
A respeito desse tema e a partir das considerações sobre a história
missionária da Igreja e dos fundamentos teológicos que a sustentaram, José
Maria Vigil coloca a questão da seguinte forma: “É necessária a ação
missionária?” 221 Para ele, respondendo a pergunta, a ação missionária não é
necessária para a salvação dos destinatários – ou seja, fora da Igreja há
salvação, nem é necessária para a plenitude da salvação dos destinatários. Há
posições teológicas que admitem a possibilidade de salvação fora da Igreja,
mas, essa salvação precisa ser purificada ou plenificada pelo cristianismo. Para
Vigil, essa visão, igualmente, distorce gravemente a mensagem cristã. Numa
perspectiva ecumênica, a ação missionária é uma necessidade da própria
Igreja. Nela, se chega à plenitude da salvação e do conhecimento:
Ainda que de sua parte Deus se revele e se entregue
completamente, de nossa parte nenhuma religião é capaz de acolhê-
lo e recebê-lo devidamente. Por outro lado, Deus se manifesta de
modo tão variado e multiforme a tantos povos que se torna
inimaginável uma religião capaz de acumular sozinha o mesmo
conteúdo captado pelo conjunto das religiões. É impensável em
princípio que uma religião consiga abarcar todo o mistério de Deus e
não tenha nada a aprender das outras.222
Assim, segundo Vigil, a ação missionária “tem sentido e é necessária para
a plenitude salvífica tanto de missionários como de missionados, tanto de uma
religião como de outra”. Esta é justificativa tanto para a Missão quanto para o
diálogo inter-religioso.
221 VIGIL, José Maria. Teologia do pluralismo religioso – para uma releitura pluralista do cristianismo. São Paulo, Paulus, 2006, p. 409. 222 Ibidem, p.410.
108
Paulo Suess223, na mesma linha, discute a respeito da necessidade da
missão a partir de uma compreensão ecumênica. A Igreja, de modo geral, vê a
missão como uma “necessidade salvífica” para o outro. Essa é a justificativa:
evangelizar para salvar os outros.
Suess sugere que a necessidade da missão diz respeito mais à saúde e
vitalidade da Igreja do que à necessidade de salvação dos outros. Ele toma
como ilustração a prática de alguns povos tribais de procurar em outras tribos
mulheres para o casamento. Essa prática evita casamentos incestuosos e a
maior probabilidade de deformações biológicas. Segundo ele,
A Missão é algo semelhante. Ela representa a radical necessidade
da Igreja de deslocar-se permanentemente para garantir a saúde e
vitalidade da “tribo”. A Missão é seguimento de Jesus que se diz e
fez Caminho. A Igreja Missionária – povo de Deus em peregrinação –
garante a vitalidade de toda a Igreja.224
A missão, então, é uma necessidade da Igreja para manter-se com
saúde. “Uma Igreja cuja energia se esgota em problemas caseiros ou rixas
institucionais seria uma Igreja doente.” Conclui Suess:
A Missão, nesta perspectiva, não é um favor que prestamos ao outro,
mas é um favor do outro que nos recebe como hóspede em sua
casa. A graça da nossa fé em Jesus crucificado e ressuscitado que
vivemos no meio dos povos é nossa dádiva gratuita. A nossa
presença é gratuita. A gratuidade transforma o mundo, não a
cobrança ou a ameaça.225
Pode-se dizer, também, que Scilla Franco faz, como sugere Fornet-
Betancourt, uma crítica intra-religiosa, necessária tanto para o futuro do
cristianismo na América Latina, quanto para as outras religiões como legítimas
expressões da cultura humana.
223 SUESS, Paulo (organizador). Os confins do mundo no meio de nós – Simpósio Missiológico
Internacional. São Paulo, Paulinas, 1999. 224Ibidem, p. 96. 225Ibidem, p. 97.
109
3.2. Missio Dei, compaixão e vivência ecumênica
Segundo Zwetsch, “as relações entre missão e ecumenismo são tensas,
polêmicas e, por vezes, até de antagonismo.” E essa tensão existe exatamente
em decorrência da compreensão que se tem do que seja a missão da Igreja.
Se a entendermos como o chamado à conversão a uma denominação ou
religião, não há espaço para a relação ecumênica, mas, prevalecem o
exclusivismo confessional e o separatismo. Mas, por outro lado, se a
entendermos, a partir do conceito de missio Dei, como um testemunho histórico
que anuncia e vive a salvação para a libertação das pessoas das coisas que as
desumanizam e lhes roubam a dignidade e a vida, o “ecumenismo – como
busca da unidade no testemunho do evangelho de Deus para que o mundo
creia – torna-se convite e compromisso que convoca cristãos e Igrejas de
maneira integral e desafiadora. 226
Zwetsch define como missão da Igreja a tarefa de reinterpretar a
mensagem transformadora e solidária do evangelho em cada contexto
humano. Na América Latina, isso implica num compromisso inadiável com os
pobres e com os que sofrem. Na direção deles deve caminhar a Igreja,
compassivamente. Para uma teologia da missão entendida como com-paixão,
como propõe Zwetsch, a dimensão ecumênica é fundamental. “Missão e
ecumenismo são realidades concomitantes e mutuamente condicionantes. Por
essa razão é que afirmo ser necessário compreender a vocação cristã em
chave ecumênica.”227
Para isso, torna-se necessário uma definição de missão que não seja o
compromisso com o avanço da fé cristã como expressa no cristianismo
ocidental, seja ele católico ou protestante. Um conceito de missão que evoque
os princípios evangélicos de Reino de Deus e de promoção da vida humana.
Essa compreensão de missão afasta a Igreja de seu eclesiocentrismo e amplia
sua visão de evangelização.
Entender a missão e evangelização numa dimensão ecumênica implica
numa renúncia da compreensão de evangelização como avanço confessional e
226 ZWETSCH – 2008, p. 362. 227 Ibidem, p. 362.
110
proselitismo. A missão da Igreja não se restringe a fazer novos adeptos e não
pode estar centrada em si mesma. A sua razão de ser reside no serviço ao
próximo, em particular, ao pobre. O serviço é um elo que deve ligar as
diferentes denominações cristãs, que deve levá-las a relativizarem suas
próprias doutrinas e rituais e se unirem em torno daquilo que, de fato, é
essencial: a defesa da vida e da dignidade humana.
Nesse sentido, mais uma vez, a compreensão da Missão como Missio
Dei aparece como um referencial fundamental. A compreensão de que a Igreja
não é possuidora da verdade e nem proprietária da Missão, mas, parceira de
Deus numa causa que é maior do que ela e “maior do que o próprio movimento
ecumênico, movimento que vamos construindo com grandes dificuldades,
renovadas esperanças, mas também sem ilusões” 228, ajudará a Igreja a corrigir
seus equívocos, especialmente uma visão estreita de missão, e inserir-se no
debate ecumênico.
Ao tratar desse tema, Paulo Suess229 relativiza a universalidade de
qualquer cultura e não apenas a ocidental e cristã. Ele parte do pressuposto de
que as expressões culturais serão sempre particulares e finitas e a expressão
religiosa que a acompanha também. Desse modo, como parte de uma
expressão cultural humana, a religião, seja ela qual for, não pode se pretender
universalmente válida. A tendência ou pretensão de universalidade acompanha
as religiões de culturas hegemônicas. A sua imposição, entretanto, representa
uma violência em relação às outras expressões religiosas e culturais. A partir
disso, Suess propõe um diálogo que não se restrinja às “grandes religiões”,
mas, que inclua as religiões indígenas e africanas. Um diálogo que não seja
proselitismo ou competição, mas, um enriquecimento do próprio caminho, “a
partir da complementaridade antropológica”.230
A compreensão dessa dimensão da missão leva a uma necessária
abertura para aprender com o outro e enriquecer a própria experiência. Nesse
sentido, “conversão” torna-se uma via de duplo sentido. A experiência de Scilla 228 ZWETSCH, Roberto E. Prática da missão em perspectiva ecumênica in: SINNER, Rudolf Von. (org.) Missão e ecumenismo na América Latina. São Leopoldo: Sinodal, 2009, p. 59. 229 SUESS, Paulo. Introdução à Teologia da Missão – Convocar e enviar: servos e testemunhas do Reino. Petrópolis: Vozes, 2007. 230 SUESS – 2007, p. 202.
111
Franco também nos revela isso: em seus sete anos de atuação juntos aos
índios não fez nenhum deles um cristão metodista, mas, ele próprio viveu um
processo de conversão à cultura deles. Sua experiência missionária, como
convivência, o levou a um diálogo com expressões religiosas que, muitas vezes
ainda hoje, apesar de todo o desenvolvimento da caminhada ecumênica, não
são consideradas no diálogo ecumênico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história da colonização do território brasileiro foi marcada pela
identificação da civilização Ocidental com a religião cristã. Nesse processo
violento de ocupação de territórios e avanço sobre as terras indígenas, a fé
cristã teve um papel legitimador importante. Elementos da filosofia platônica e
aristotélica adquiriram uma perspectiva cristã nos pensamentos,
principalmente, de Agostinho e Tomás de Aquino e ajudaram a formar uma
cosmologia e uma antropologia que afirmavam a superioridade da cultura cristã
européia sobre as demais. Esta visão forneceu os elementos ideológicos que
justificaram a conquista e, aliada a ela, uma “missão” evangelizadora cujo
centro era a Igreja.
Outros movimentos de ocupação e exploração econômica das terras
indígenas ocorreram no Brasil. Neste traballho, apresentou-se, particularmente,
o avanço sobre as terras indígenas onde é hoje o Mato Grosso do Sul e as
consequências negativas para os nativos da região. Em todos esses
movimentos, de alguma forma, a presença cristã evidenciava-se. Missionários
acompanham esses movimentos. No caso do Mato Grosso do Sul, primeiro os
católicos, com o jesuítas, e depois os protestantes. É no contexto da atuação
do SPI sob a direção da figura marcante do Marechal Rondon, que surge a
Missão Evangélica Caiuá.
Vale ressaltar que há boas intenções, com ações concretas que visam
amenizar o sofrimento dos índios. Entretanto, boas intenções não são
suficientes. Essas ações, marcadas pelo assistencialismo e protecionismo,
tinham um objetivo maior: a pregação e a catequese cristãs. O anúncio da fé
cristã, entendida como a única expressão da verdade, relativizava as
expressões religiosas e culturais dos índios. Assim, ao mesmo tempo em que
queriam ajudar, os missionários acabavam contribuindo para desvalorização
desses povos, que tem na cultura e religião um importante elemento de
afirmação de sua dignidade e valor, como todo povo. Sendo a religião e a
cultura importantes elementos de resistência à dominação, como afirma
113
Suess231, missionários – católicos e protestantes – participaram do processo de
desarticulação de relações sociais entre os índios, o que facilitou a dominação
e exploração.
Deste processo, fizeram parte os índios das etnias Kaiowá e Terena, aos
quais se dirigiu a ação missionária de Scilla Franco. Em anos de convívio com
os brancos, foram submetidos a um processo de aculturação violento que lhes
roubou a dignidade, tornando-se alvo de preconceitos e exploração de diversas
maneiras. O avanço da “civilização” em sua terras foi motivado pela procura de
riquezas materiais. Os conflitos, a Guerra, os empreendimentos econômicos e
a devastação da natureza, provocados por esse avanço, representaram grande
sofrimento e morte para essas pessoas.
O fator religioso foi fundamental no processo de aculturação. A
empreitada colonizadora é acompanhada e legitimada pelo cristianismo. A
religião, portanto, foi importante instrumento na conquista da terra e na
submissão dos povos. Todavia, há nessa mesma religião potencial para o
caminho reverso: o de reafirmar a dignidade natural de todo ser humano e, com
base nisso, empreender ações concretas de reafirmação dessa dignidade e,
em consequência, de preservação da cultura, religião e da vida desses povos.
Uma tradição religiosa adquire importância na medida em que consiga se
traduzir numa mensagem que tenha sentido para o presente; enquanto consiga
ser uma diferença que faça diferença.232 Apelar para a tradição e a herança
doutrinária ou manter a memória de fatos passados, ainda que significativos,
pouco acrescentam à experiência humana se não se traduzirem em motivação
que gere ações novas em favor do mundo, particularmente dos pobres. Foi o
que aconteceu com Scilla Franco.
Nesse sentido, a religião não apenas é um fator de motivação de ações
em favor dos outros, mas, encontra, também, o espaço de sua renovação. A
tradição, os dogmas, os rituais e ações que deles decorrem são reavaliados e
resignificados no encontro com outras maneiras de entender a vida e a
231 SUESS – 1995, p.19. 232 SEGUNDO, Juan Luis. O dogma que liberta – Fé, revelação e magistério dogmático. São Paulo: Paulinas, 2000.
114
revelação divina. Nesse processo de ir ao encontro dos outros e procurar fazer
diferença no mundo, a religião encontra sua “verdade”. Segundo Jung Mo
Sung,233 “revelação que não nos leva à conversão constante,
mudança/aprimoramento constante das nossas vidas, não é revelação no
sentido cristão”.234
A “verdade da revelação de Deus” está na “diferença” que pode produzir
no mundo. Pela sua proximidade com a pobreza, Scilla Franco foi compungido
a agir em favor de um grupo de pessoas pobres e tenta conferir um sentido aos
princípios doutrinários que, para ele, eram caros. A “verdade” da doutrina que o
inspirava em sua ação pastoral e missionária apareceu nos efeitos de sua ação
em favor dos índios. A doutrina tornou-se “verdade” ou “revelação de Deus” na
medida em que “fez diferença” na vida das pessoas das quais se aproximou.235
Mais do que isso, a diferença também se fez em sua própria vida. A
princípio, pretendia “evangelizar” os índios e compreendia essa missão como a
tarefa de “convertê-los” à fé cristã. No convívio com eles e diante dos males
que esse tipo de “missão” já havia produzido, no entanto, foi levado a reavaliar
suas próprias convicções religiosas e mudou. Experimentou um processo de
“conversão” à cultura e religiosidade do outro.
Em anos de convívio com os brancos, o índio aculturado perdeu sua
dignidade e tornou-se alvo de preconceitos e exploração. Para Scilla Franco, o
papel da Igreja é resgatar essa dignidade e acreditar nas suas potencialidades.
A ação das Igrejas até esse momento era, predominantemente, de pregação
da Palavra, mas, uma palavra desconectada da vida e dos problemas dos
índios; de um evangelho que tinha muita mais de cultura ocidental do que de
Cristo.
Em seus textos, Scilla Franco assume a defesa dos índios: sua
sobrevivência, sua cultura, sua religião; procura desmitificar preconceitos e
visões sobre o índio e sua religião: “adorador de demônios”, “idólatra”,
233 Ibidem, p. 396. 234 SUNG, Jung Mo. Sementes de esperança – A fé em um mundo em crise. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 72 235 SEGUNDO - 2000, p 404.
115
“feiticeiro” ou insolente, preguiçoso. Tenta com isso, reafirmar a dignidade
fundamental daqueles como seres humanos, criados à imagem de Deus.
Assume, em contrapartida, uma postura crítica em relação ao cristianismo
ou, pelo menos, à sua forma apresentada aos índios. Com ironia, aponta
contradições no discurso religioso cristão. Discutiu, em seus textos, temas
como evangelização, salvação, missão e demonstrou uma postura nova e
diferente do grupo religioso que representava. Afirma, através de seus textos,
que a salvação será dada a povos não cristãos. Discute a validade da
pregação cristã. Não faz adeptos do cristianismo ou da denominação que
representa e tem consciência de que essa não é sua tarefa. Não converte
índios à fé crista, mas, converte-se à cultura que serve.
Entretanto, percebe-se limites na prática de Scilla Franco. No início, não
demonstra conhecer bem a história, a cultura e as peculiriadades dos povos
aos quais propõe-se a ajudar. O conhecimento vai se dando à medida que vive
e convive entre eles. Essa falta de conhecimento leva a cometer alguns
equívocos, como ele mesmo admite ao falar da plantação do milho e todo o
ritual que o acompanha, segundo a tradição indígena. Embora crescente, este
entendimento nunca foi muito profundo e ele, algumas vezes, chega a repetir
conceitos que estão no senso comum.
Missionários católicos e protestantes, de modo geral, e o próprio Scilla
Franco, particularmente, revelam desconhecimento da complexidade cultural
que marca os povos indígenas. Isso é característica do cristianismo ocidental,
como aponta Fornet-Betancourt. Está presente, consciente ou
inconscientemente nas ações missionárias cristãs.
Scilla Franco é crítico de uma evangelização que se aproveita da
dependência criada através do assistencialismo. Entretanto, não consegue ir
muito além disso, na prática. É possível perceber, em seus textos, declarações
e ações sinais de paternalismo. De certa forma, é vencido pelas muitas
dificuldades que cercavam seu trabalho: uma cultura de dependência criada ao
longo dos anos; o poder econômico de um sistema que cerca a reserva e se
aproveita da exploração dos seus recursos naturais e da mão-de-obra
indígena; o isolamento, tanto geográfico quanto no recebimento de recursos; a
116
concepção de uma evangelização conversionista e o apelo pelo crescimento
institucional.
Ainda assim, produziu resultados dignos de nota: prevaleceu o exemplo
de sensibilidade, compaixão e serviço; a capacidade de auto-crítica, pessoal e
religiosa; a identificação com um povo sofrido e marginalizado; a confrontação
pedagógica da Igreja que o mantém e que ele representa; a sensibilidade para
com os pobres,de modo geral; o espírito ecumênico,tanto na tentativa de reunir
forças para a Missão quanto no respeito e valorização do povo a quem serve.
Importante para o processo de crescimento de Scilla Franco foi, também,
o encontro com outros missionários em torno do GTME. Nesse grupo
ecumênico, encontra um espaço para superar o isolamento. Ainda que tenha
sido pouco o tempo passado nele, Scilla Franco cresce, aprende, se auto-
avalia, compreende melhor as questões complexas que envolvem a Missão
Indígena. Todavia, já estava fora da reserva, vencido, desta vez, pela doença.
Scilla Franco é uma pessoa de seu tempo. Reflete ideias, conceitos,
preconceitos e valores de sua época e da religiosidade na qual foi formado.
Mas, em alguns aspectos, consegue avançar: na capacidade de entender o
“outro”, no caso os povos indígenas, em sua realidade e valorizá-los pelo que
são e não pelo que podem vir a ser, através de um processo de conversão ao
cristianismo. Eles, em si mesmos, em sua cultura e religiosidade, são
importantes.
A Igreja Metodista, como apontado no início deste trabalho, vê no
testemunho de Scilla Franco um referencial para sua ação missionária
indigenista. Na elaboração dos documentos norteadores desse ação,
especialmente “As Diretrizes para a Ação Missionária Indigenista”, utilizou-se
como base documentos produzidos pelo GTI sob a coordenação de Scilla
Franco. Dentre as contribuições da prática e da reflexão de Scilla Franco,
destacam-se, primeiramente, a “pastoral da convivência” como um modelo de
fazer missão desvestido da pretensão de superioridade e fundada no convívio,
onde a interação entre os diferentes beneficia a ambos.
117
Em segundo lugar, a capacidade que Scilla Franco demonstra de
enxergar no outro o seu valor e a riqueza de suas expressões culturais e
religiosas. Isso leva ao estudo e ao esforço de uma compreensão mais
profunda. Diferentemente dos primeiros colonizadores e de muitos outros que
os sucederam, desde religiosos a governantes, Scilla Franco percebe a
complexidade e a diversidade entre os povos indígenas e se esforça para
entendê-las.
Em decorrência disso, Scilla Franco é capaz de elaborar auto crítica e
uma crítica do grupo religioso a que pertence. Esta é outra contribuição
importante. O modo de ser do índio e a forma como o cristinianismo se
aproximou dos povos indígenas o faz perceber as contradições do discurso e
da prática cristãs. Em seus textos, procura mostrar isso à Igreja Metodista.
Scilla Franco contribui, também, no rompimento com um modelo
conversionista de missão. Em sete anos de trabalho missionário, não
pretendeu e não fez nenhum índio um cristão metodista. Não se põe ao lado
dos índios para convertê-los ao cristianismo, mas, como ato de solidariedade e
compaixão. Do mesmo modo, é crítico do paternalismo que cria dependência,
tanto por parte de organizações civis, quanto por agências missionárias.
Avança, também, e lembra as razões das primeiras conferências
missionárias mundiais que marcaram o início do movimento ecumênico
moderno, ao empenhar-se na formação do GTME para ser um espaço de
encontro, aprendizado, troca de experiências e auxílio mútuo. Contribui,
portanto, na compreensão de que é necessária uma vivência ecumênica no
exercício da missão.
A dimensão ecumênica na prática e reflexão de Scilla Franco está
presente em duas frentes: primeiro, ao buscar unir forças das diferentes
tradições em favor dos índios e, em segundo lugar, na relação que estabelece
com a da religião dos índios. Contribui, assim, para o diálogo inter-religioso no
respeito que demonstra à religião indígena. Um dos temas fundamentais para o
diálogo inter-religioso hoje é o da salvação. Ao discutir esse assunto, Scilla
Franco afirma crer na salvação para além dos limites do cristianismo. É uma
intuição que deve ser considerada.
118
Do exemplo de Scilla Franco surge o desafio de que a Igreja, em cada
contexto em que está inserida, encontre meios de ser uma presença relevante.
Uma práxis missionária relevante, necessariamente, terá de considerar o tema
do ecumenismo. O desenvolvimento do ecumenismo entre os protestantes na
América Latina aconteceu em meio a tensões e crises. Tensões e crises
superadas quando temas como solidariedade, esperança e paz estiveram em
pauta.
Assim, o testemunho de Scilla Franco enquanto missionário metodista
entre os índios Kaiowá e Terena é um exemplo de uma práxis missionária que,
evoluindo ao longo do tempo, pode perceber o valor da cultura do outro e com
ela avaliar sua própria fé. Uma práxis missionária que pretenda ser relevante
entre esses povos precisa trilhar um caminho de humildade e da convivência. A
convivência desveste da pretensão de superioridade e leva, naturalmente, à
vivência ecumênica. A convivência implica uma relação de igualdade onde há
vontade de oferecer e de aprender.
Hoje, quase quarenta anos depois do início da obra missionária de Scilla
Franco entre os índios Kaiowá e Terena, enriquecida por uma caminhada
missionária e pelo testemunho dos que vieram depois de Scilla Franco e por
relevantes reflexões e contribuições do estudo sistemático de Missiologia, a
Igreja Metodista, que elegeu Scilla Franco como um modelo de missão
indigenista, tem condições de efetuar uma práxis missionária mais efetiva e
menos limitada do que aquela que Scilla Franco conseguiu empreender.
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127
ANEXO 1
14/03/78
CHEFE P.I. DOURADOS
ILMO SR. JOEL DE OLIVEIRA
D.D. DELEGADO 9ª DR / FUNAI
Projeto para Roça Comunitária Caiuá
Senhor Delegado
Em relação ao Projeto para Lavoura Comunitária do SR. Scilla
Franco, da Associação da Igreja Metodista, informo a V.Sª que:
1 – Esta Chefia esta de pleno acordo com o proposto no presente Projeto, pois
o mesmo visa criar melhores condições para o tão carente grupo caiuá.
2 – Deve também ser considerado a experiência do referido Senhor com o
trabalho indígena, tendo em vista o excelente resultado obtido em Projeto semelhante
no Posto Indígena Panambi.
3 – Dentro do referido Projeto e Posto Indígena Dourados, esta em condições
auxiliar o mesmo em:
a – Empréstimo do arado marca “John Desta”, tendo em vista que o mesmo
praticamente não está sendo utilizado nas atividades agrícolas do P.I.
b – Sempre que necessário, o Posto poderá deslocar um trator e uma
semeadeira para melhor continuidade das lavouras coletivas.
c – Considerando-se a verba prevista no Projeto Indígena do P.I. Dourados para
a movimentação da Cantina, o P.I. Dourados terá condições de manutenção de 40 a
50 famílias, no período de 04 a 05 meses, para a melhor execução do Projeto da Roça
Comunitária.
Atenciosamente,
Vandelino Bravim
Chefe do P.I. Dourados
128
ANEXO 2
MINISTÉRIO DO INTERIOR - FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - 9ª DR
A U T O R I Z A Ç Ã O
Visando atender sob caráter prioritário, a Comunidade Indígena Caiuá do PI.
Dourados, cuja situação é bem mais carente, com relação a outros agrupamentos
indígenas também ali radicados, por isto mesmo criando seríssimas dificuldades à
Chefia do Posto e consequentemente à FUNAI e, considerando que o melhor trabalho
que se enquadra a atividade Caiuá é o de lavouras coletivas, como exemplo, o bem
sucedido PI. Panambi e assim, por julgar perfeitamente viável a execução do Projeto
para a roça comunitária apresentado pelo Sr. SCILLA FRANCO, da Associação da
Igreja Metodista, esta Delegacia Regional da FUNAI, com sede nesta Cidade, autoriza
a Equipe de trabalho da Associação mencionada, para junto à Comunidade Caiuá da
Aldeia de Bororó (PI. Dourados), a desenvolver o trabalho proposto, obedecendo às
seguintes ressalvas:
1ª) Que os 40.000,00 (conf. Projeto anexo), sejam transformados para
aquisição de sementes;
2ª) Ao PI. Dourados caberá o custeio das despesas com alimentação, através
da Cantina, para 40 a 50 famílias indígenas no período de 04 a 05 meses de trabalho;
3ª) Ao PI. Dourados caberá contribuir com o empréstimo de um arado que não
vem sendo utilizado, bem como a semeadeira quando forem necessários;
4ª) Que seja fornecido à Delegacia da FUNAI, um relatório mensal de atividades;
5ª) Que haja participação de servidores da FUNAI (Delegacia, Chefia de Posto),
havendo assim vinculação ao Projeto Integrado do PI. Dourados/FUNAI;
6ª) A validade desta Autorização corresponde a um ano agrícola, isto é, até o fim
da safra de 1.979, e, de acordo com o resultado obtido, será revalidado, tendo em
vista o interesse das partes.
Campo Grande, 15 de março de 1978
SCILLA FRANCO JOEL DE OLIVEIRA VANDELINO BRAVIM
Igreja Metodista Del. Reg. 9ª DR/FUNAI Ch. PI. Dourados
129
ANEXO 3
ASSOCIAÇÃO DA IGREJA METODISTA
PLANO DE PROMOÇÃO SOCIAL
Rua Hilda Bergo Duarte, 315 Caixa Postal, 85 – Fone 2227
CEP 79.800 – DOURADOS – MT
Dourados, 16 de maio de 1978.
EXMO. SR. DELEGADO REGIONAL DA FUNAI
CAMPO GRANDE
REF.: AO CHEFE DO P.I. DE DOURADOS PARA ENCAMINHAR
Prezado Senhor,
“Morrer se preciso for... “ (Mal. Rondon)
Conforme estabelecido em compromisso conjunto dessa Delegacia com a
Associação da Igreja Metodista, estamos enviando nosso primeiro relatório
referente ao Projeto Roça Comunitária Posto Indígena de Dourados,
correspondente aos trinta primeiros dias úteis de trabalho (10/abril a 16/maio/78).
O convite para participação foi estendido a todos, entretanto, respeitando o
princípio cooperativo de adesão livre, apenas trinta pessoas estão participando,
sendo vinte e sete de maneira ativa e três com colaboração parcial. Os resultados
são bastante animadores já pela motivação do grupo, pelo volume de serviço
apresentado, embora não fizesse parte do esquema proposto a título de incentivo
fizemos algumas plantações de inverno, sabendo dos riscos, especialmente por
estar um pouco atrasado dado à falta de chuva, plantamos trigo, algodão, cebola,
ervilha e lentilha, temos uma boa quantia de terra já preparada e estamos iniciando
o trabalho de drenagem no varjão, ressaltamos o apoio da Chefia do Posto o que
nos possibilitou adiantar o cronograma proposto.
AS DIFICULDADES
Soma-se ao descrédito dos Caiuás com relação a Projetos, o interesse de
indivíduos, muitos apenas teleguiados que procuram desencorajá-los,
especialmente explorando o fato de que o Projeto não distribui dinheiro, louvado
em todas minhas experiências anteriores mantenho a opinião de que realmente
130
não devemos fazê-lo. Acredito que devamos manter um grupo ainda que pequeno
para servir de amostragem.
SUGESTÕES PARA SANAR ESTAS DIFICULDADES
a) a curto prazo o que poderia ser feito era ampliar a Cantina,
acrescentando especialmente alguns suprimentos de proteína de origem animal
(carne, carne seca, peixe, etc.). Sei da dificuldade para atender a demanda em
geral, especialmente de um financiamento a prazo de safra, entretanto, tenho
observado que a alimentação dos trabalhadores é de fato insuficiente e reflete no
rendimento do serviço, sem falar em outras conseqüências. Tão logo receba o
material para concluir o galpão pretendo dar um suprimento de proteína de origem
vegetal baseado na soja (leite, farinha, bife de soja, etc.).
b) a médio prazo estou aguardando os arames para iniciar uma criação
de ovinos e caprinos, aproveitando a característica do pasto natural existente, e
com isto pelo menos uma vez por semana, fornecer um suprimento de carne.
c) A longo prazo esperamos ter milho suficientemente armazenado em
instalações adequadas para o desenvolvimento da suinocultura e que também eles
cheguem a um estágio de desenvolvimento que já tenham reservas próprias.
PREOCUPAÇÕES
O sistema de destoca manual com quanto eu entendo ser o mais educativo,
pois a mecanização total junto aquele grupo seria uma violência e a anulação do
último reduto da cultura indígena do P.I. de Dourados, pois este grupo ainda
conserva suas tradições (língua, religião, danças, autoridade do capitão, etc.),
entretanto, este processo numa agricultura competitiva e altamente mecanizada
como da comunidade envolvente (uma máquina para cada quatro habitantes) fará
com que nosso Projeto saia demasiado caro e que eles não tenham condições de
saldar o compromisso no primeiro ano, seja qual for os resultados é preciso que
seja garantido desde já que eles receberam um retorno mesmo que as
financiadoras, FUNAI e Associação da Igreja Metodista arquem com o ônus.
Algumas horas com o trator de esteira talvez estimulasse um pouco mais,
entretanto fica a critério da FUNAI esta decisão.
Preocupa-se ainda o fato de que a cultura de soja exige muita terra o que
fatalmente vai causar as derrubadas das matas, em muitos casos feita
131
indiscriminadamente em solos que por sua topografia e composição não se presta
para a agricultura a não ser com alto índice de técnica, colhe-se então uma safra
magra no primeiro ano e logo a seguir vem a invasão das ervas daninhas.
Especialmente o grupo que faz parte do nosso Projeto a única possibilidade que
tem de conseguir algum dinheiro é “fazendo lenha” o que fazem nos sábados e
domingos, dias que o Projeto não trabalha, se uma medida urgente não for
tomada, mais cedo do que esperamos a FUNAI ou alguém terá que fornecer gás
aos índios o que, aliás, será a conseqüência menor.
DEMONSTRAÇÃO DE DESPESAS
FUNAI: Cr$ 13.022,00 (alimentação na Cantina)
ASSOCIAÇÃO DA IGREJA METODISTA:
Cr$ 4.000,00 ( construção de um depósito para sementes)
Cr$ 10.000,00 (aquisição de sementes de soja)
Cr$ 1.400,00 (aquisição de sementes de trigo)
Cr$ 4.728,00 (despesas gerais – tinta, prego, ferramentas, sementes de
hortaliças, etc.)
TOTAL GERAL ....... R$ 33.150,00
Convém observar que não estão incluídos os serviços de trator executado
pelo P.I. e nem as despesas relativas ao mês de maio e nem as despesas que não
são reembolsadas pelo Plano.
Submetemos o nosso relatório a apreciação de V.Sª e aguardamos
quaisquer sugestões que possam melhorar o desenvolvimento do Projeto.
Atenciosamente,
SCILLA FRANCO
Supervisor do Plano de Promoção Social da Associação da Igreja Metodista
132
ANEXO 4
ASSOCIAÇÃO DA IGREJA METODISTA
PLANO DE PROMOÇÃO SOCIAL
Rua Hilda Bergo Duarte, 315 Caixa Postal, 85 – Fone 2227
CEP 79.800 – DOURADOS – MT
Exmo Diretor da ASPLAN
Fundação Nacional do Índio
Brasília – Distrito Federal
Conforme combinado reunião pastoral missionária em Aquidauana estou enviando relatório e subsídios para um possível convênio entre a Associação da Igreja Metodista e FUNAI. Anexo segue fotografias, relatórios financeiros, um exemplar da Doutrina Social da Igreja Metodista e sugestões a fim de serem estudados pelo Departamento especializado desta Fundação.
RETROSPECTO
Pelo acordo entre eu e o General Bandeira então Presidente da FUNAI
que se faz por intermédio da 9ª D.R., iniciamos um trabalho de Promoção
Social através da agricultura no P.I. de Dourados, os detalhes estão em poder
dessa Fundação desde aquela data. Aquele projeto está totalmente superado,
pois as condições são bem outras no momento.
SITUAÇÃO ATUAL
Estamos cooperando com o projeto integrado P.I. Dourados tendo
responsabilidade da roça comunitária na área Caiuá que iniciamos através de
uma autorização recebida de Brasília e um acordo feito com a 9ª D.R. Nossa
participação é de administração (gerência de campo) feita através de um
Técnico Agrícola contratado pela Associação com dedicação exclusiva,
fornecemos ainda a maquinária necessária para o preparo do solo,
financiamento para semente e outros insumos e pequenas despesas colaterais.
A FUNAI fornece alimentação através da cantina, além dessas despesas que
pretendemos que sejam reembolsadas pelo projeto caso seja bem sucedido,
há outras despesas não reembolsáveis que a Igreja Metodista considera ônus
133
da posição assumida, entre elas salário de pessoal, manutenção de veículos e
máquinas etc... Pretendemos fique bem claro, caso seja bem sucedida a
lavoura, as entidades financiadora Igreja Metodista e FUNAI deverão lançar a
fundos perdidos o numerário aplicado e garantir novo financiamento, esta é
uma condição sine qua non para se firmar um convênio até que o projeto se
emancipe e seja auto financiado.
OS PROBLEMAS
Os Caiuás até poucos esquecidos e acuados numa extremidade da
reserva especialmente os mais velhos não acreditam nos civilizados
especialmente na FUNAI e na IGREJA, até onde posso perceber que tem
terríveis preconceitos contra missionários e antropólogos. Aos missionários
talvez por considerar inoperante no ponto de vista prático ou até mesmo um
inconsciente sistema de auto defesa de sua religião e aos antropólogos pelos
inúmeros e aborrecíveis levantamentos de cujos resultados práticos ainda não
tiveram conhecimento. Os demais jovens, entretanto talvez por um processo de
descaracterização ou imitativo estão mais dispostos a tentar novas
experiências apesar de uma embaraçante desconfiança.
Por outro lado interesses inconfessáveis de todos quantos serão
prejudicados pela libertação do índio minam o projeto pelos mais estranhos
processos, desde suborno até o emprego de imbecis úteis, promoção de
intrigas e difamação do representante local da FUNAI, entre eles se alistam
corifeus de todos os naipes que sobre o manto de defender o índio, na verdade
procuram a própria promoção ou a mão de obra quase escrava ou a
exploração de sua última e caquética riqueza que é a lenha, cuja venda
representa combustível barato para cerâmicas vizinhas da aldeia e sem dúvida
alguma o suicídio do índio. Não se pode coibir este abuso, pois ele fere os
interesses dos ricos e poderosos que ainda ousam dizer que estão sustentando
o índio comprando a sua própria destruição à R$ 20,00 o metro.
Além dos inconvenientes óbvios a derrubada sem nenhuma orientação
muitas vezes é feita em terrenos que por sua textura e topografia são
134
imprestáveis à agricultura sem um alto investimento. O antropólogo da FUNAI
Sr. Marinho teve oportunidade de constatar este fato com seus próprios olhos.
Assim o projeto das roças comunitárias tão bem estudado por essa
Assessoria e na opinião do antropólogo Rubens Almeida “opção única de
sobrevivência para os Caiuás”, não tem podido desenvolver toda sua
potencialidade, não tem condições de competir com os “gateiros” que tentam o
imediatismo do Caiuá oferecendo diária de Cr$ 40,00 a Cr$ 50,00 que quase
sempre resulta muito menos pelos acertos duvidosos, pela comida e
alojamento barato que oferecem e pela libertação de todos compromissos de
ordem previdenciária que teriam com os trabalhadores civilizados, quase
sempre tal aliciamento de mão de obra é feito sem conhecimento do P.I. e do
Capitão, o que é facilitado pelas inúmeras vias “públicas” que cortam a aldeia,
ainda a mentalidade capitalista que se desenvolve entre os índios de maior
estágio de aculturação diluem o sentimento de cooperação dos Caiuás.
Vemos apenas duas possibilidades de atingirmos o alvo a médio prazo.
1) Ou que dispuséssemos de recursos para que a cantina pudesse
fornecer privilégios aos que trabalham no projeto. Não sei como se faria isto
mais se os que não trabalham tem os mesmos direitos dos que trabalham
raciocínio lógico para que trabalhar? Por outro lado o precedente aberto aos do
Projeto Araporã receberem ajuda em dinheiro, fica difícil de convencer os
demais em receber fornecimento, isto se agrava porque durante as crises do
Projeto Araporã seus participantes compraram a crédito na cantina apesar de
receberem para comprar a vista. Como o índio não guarda nada especialmente
segredo fica difícil uma explicação convincente.
Se todo projeto da ASPLAM viesse a falir e sobrasse apenas a cantina
teria sem dúvida alguma, justificado os gastos e compensados os esforços. De
tudo que se já inventou parece ser essa a coisa mais legítima; como o índio
não está acostumado a ter responsabilidades financeiras é possível que haja
alguns furos, mais a cantina é uma Instituição que precisa ser estudada com
maior carinho e maiores recursos.
135
2) A devastação das matas seja quais forem as razões é coisa que tem
que ser impedida a qualquer custo. A venda de lenha feita quase sempre por
intermediários além dos motivos óbvios é uma espoliação uma vez que o preço
é ridículo. As desculpas apresentadas são várias: que se derruba para fazer
roça, nada mais vem verossímil pois os terrenos de baixa calagem
desenvolvem vegetação característica, que vai fornecer as lenhas cobiladas
pelas cerâmicas por sua quase uniformidade, e por ser mais ou menos reta
(cabe muito mais no metro) do ponto de vista do índio facilita a derrubada e
rende muito mais. Na prática tais terras são imprestáveis à agricultura,
produzindo apenas no primeiro ano enquanto resta apenas um pouco de
húmus resultante da decomposição da folhagem, do segundo ano em diante, é
invadida pelo colonião e outras gramíneas e abandonadas. Segundo o
levantamento feito já temos 1.500 hectares nessas condições. O antropólogo
da FUNAI Sr. Marinho verificou isso em lócus. Sei que será preciso muita
coragem para tomar uma medida severa, pois os interessados em tais recursos
se não tem escrúpulos em explorar os índios em sua caquética riqueza não
terão igualmente de subvertê-lo contra o representante da FUNAI a fim de
conseguir seus intentos que é aumentar o seu capital não importa a que preço.
Tal assunto precisa ser estudado com a máxima urgência ou então
reformular toda a filosofia de trabalho da FUNAI ou do próprio Governo para
ser pelos menos coerente, pois enquanto uma lauda propaganda é feita por
todos os meios de comunicação para preservar as árvores, uma área tutelada
pelo um Órgão do Governo ela é devastada impiedosamente. Se por razões
política ou de outra ordem que desconheço não se pode coibir tal abuso então
é melhor que se inicie um rápido e eficiente projeto de reflorestamento.
Apesar de pessoalmente não aprovar o processo de plena mecanização
porque ela faz do índio um mero expectador e alínea do empreendimento, acho
que ainda é melhor do que permitir a devastação da mata sobre o protesto de
fazer roça, nesse caso seria melhor que conseguisse uma patrulha mecanizada
de outros Órgãos do Governo e destocasse os 1.500 hectares já derrubados,
para ser redistribuídos para os que de fato quisesse lavrar a lavoura. Ainda
sobre este aspecto não entendo que o mato seja propriedade de um indivíduo,
136
pois já temos aquele que por terem recebido lotes devastados já tem que
comprar madeira e lenha de outros índios.
O QUE JÁ SE FEZ
Já destocamos aproximadamente 10 alqueires nos quais já foram
plantados e colhido trigo, numa parte já esta plantada em arroz, plantamos
milho, cebola e alho e também uma pequena horta para consumo. O trigo, a
cabelo e alho são opções válidas para lavoura de inverno, o que seria preciso é
que para o próximo ano a FUNAI conseguisse também para o índio Proagro ou
dispusesse de recursos para arriscar, pois sendo a lavoura de alto risco o índio
não pode aventurar-se.
Este ano por causa da seca plantamos 15 sacos e colhemos 35, mais
pelo menos a semente já esta garantida.
SUGESTÃO PARA ALTERAÇÃO DO PROJETO ATUAL
A – Seja alterado o critério para aquisição de sementes e inseticidas. Sei
que a concorrência é uma exigência legal, entretanto em matéria de semente e
adubo quase sempre o mais barato é pior.
B – Entendemos que a Gerência de Campo deva ser mais atuante, até
agora o acúmulo de serviço burocrático, a falta de condução, as distâncias que
ficam as roças individuais, os problemas constantes, que tais roças criam
(disputa de lotes, prioridades de serviços) não tem permitido ao Técnico da
FUNAI dar a cobertura necessária ao desenvolvimento do projeto.
MÁQUINAS
É preciso com urgência uma condução adequada que possa chegar às
roças mesmo quando as condições não são favoráveis.
Entendemos que apesar de três tratores da FUNAI e 2 da Associação da
Igreja Metodista, não conseguiremos diminuir os atritos e as brigas por causa
de máquina, pois todos querem ao mesmo tempo e a bem da verdade salvo
raríssimas exceções os índios querem que as máquinas faça tudo.
137
Por outro lado, o CBT está sem hidráulico, sem grade niveladora e sem
arado na prática é apenas um consumidor de óleo. É urgente que se troque
esse trator por um 85 da Massey Ferguson, com seus respectivos implementos
e que esse trator seja empregado numa área de campo ou cerrado o qual ele é
adequado ou então que se adquira uma grade niveladora de um arado de
arrasto próprio para tal máquina.
FINANCIAMENTO PARA TRATOS CULTURAIS
O atual sistema consiste em levantar em firmas quem tem interesse em
comprar os produtos. Na ocasião da venda estabelece seja concorrência e
duas coisas acontecem: primeiro ou ficamos comprometidos com a firma,
segundo ou as firmas inescrupulosas procuram desviar a produção deixando o
chefe do posto em situação difícil que por força dos compromissos assumidos
tem que entregar o produto de onde financiou. Ou a FUNAI faz ela própria este
financiamento, ou permite que o índio faça diretamente ou simplesmente
cancela, pois se a cantina estiver suficientemente abastecida tal financiamento
é dispensável e inconveniente.
ÁREA DE EDUCAÇÃO
Para que uma escola funcione duas coisas são essenciais, primeiro
alunos, segundo professor o resto tudo é improvisável.
Sei que foi designada uma verba para construção de uma escola no
bororó, área em que estamos operando, mais se não for providenciado um
meio de locomoção para a professora de maneira a garantir a sua presença
será de todo inútil.
Dada as péssimas condições da estrada quando chove acredito que a
melhor solução será uma charrete, o que não custará além de Cr$ 15.000,00 e
sem o que de todo resto do capital aplicado não será boa mordomia e nem a
FNAI poderá exigir da professora sua presença se não há condições.
Considerando que a professora é uma índia e que pelo menos em
palavras diz estar interessada no desenvolvimento global de seus alunos, isto
possibilitaria a educação das mesmas, talvez por pequenos projetos de hortas
138
escolares e preparação de plantas ornamentais que por iniciativas deles já
fazem de maneira imperfeita.
Visando ainda a preservação do verde, viveiros de mudas dariam bom
resultados, para que qualquer destes projetos a Associação da Igreja Metodista
está disposta a dar a sua colaboração.
Para suprir as deficiências de proteína animal duas coisas poderiam ser
feitas: primeira criação de pequenos animais, suínos, caprinos e ovinos, para
os quais necessitaríamos apenas do arame e materiais para construções de
abrigos já que mão de obra e mourões seriam usados da própria área.
Segundo a aquisição de matrizes seria fornecida pela Associação da Igreja
Metodista. Quem sabe não seria esta uma boa aplicação para a madeira
desvitalizada.
CENTRO COMUNITÁRIO
Junto à escola do bororó poderia se estabelecer um Centro Comunitário
o que os pedagogos chamam de extensão da escola na comunidade. Apesar
das broncas dos missionários a construção se um de reuniões, ranchão para
dança da chicha ou simplesmente para os índios sentarem embaixo como é
seu costume, forneceria oportunidade para alguém com o conhecimento de
antropologia e psicologia do índio comunicar ensinos sem violência.
MELHOR APROVEITAMENTO DA TERRA
O conseqüente desenvolvimento pela aplicação do projeto agravará sem
dúvida o problema da terra especialmente em se tratando da cultura de soja do
sistema de lavoura individual.
A experiência da Colônia Federal diziam que 30 hectares eram
suficientes para cada família, hoje está provado não ser possível dentro da
estrutura agrária vigente tanto assim que os lotes estão sendo agrupados em
unidades maiores.
Do lado do índio o ideal seria lavoura comunitária, entretanto o resultado
já alcançado por alguns impedirá que se generalize essa solução.
139
Uma segunda opção seria a produção de sementes para o que temos
todas as condições: 1) terra boa de qualidade, 2) podemos controlar as
variedades a serem plantadas, 3) podemos evitar cruzamentos indesejados, 4)
temos três Técnicos Agrícolas atuando dentro da área. A princípio faltaria
apenas uma máquina de pré limpeza, que deve custar mais ou menos Cr$
20.000,00 já que enquanto a produção fosse pequena a secagem poderia ser
feita por processo natural.
Entre outras vantagens teríamos: 1) que plantaríamos uma semente cuja
qualidade seria indubitável, 2) que o índio venderia mais caro a sua produção e
a FUNAI gastaria muito menos com semente, 3) não haveria perigo de atrasar
o plantio, 4) o índio poderia atingir o mesmo resultado financeiro com menos
quantidade de terra, já que mesmo sendo vendidas por selecionar ela ainda é
vendida 25% mais caro.
O próximo mês o Presidente Geral do Conselho da Igreja Metodista
deverá ir à Brasília a fim de discutir com quem d direito sobre a elaboração do
convênio.
Continuará insistindo que só um estudo aprofundado e in loco poderá
produzir os resultados propostos pelo projeto.
No caso de se pretender tais estudos ofereço a minha modesta
colaboração pelo menos para transportar e acompanhar as pessoas em suas
pesquisas, que, por favor, sejam pessoas que possam escultar as aspirações
dos índios sem lápis e prancheta na mão, pois a presença de tais instrumentos
inibem completamente, apenas alguns parladores já programados falarão de
acordo com os interesses do entrevistador e nisso são muito hábeis sendo
capazes de explorar nossas menores falhas e cochilos.
Dourados, 13 de setembro de 1978.
Atenciosamente,
Scilla Franco
140
ANEXO 5
MISSÃO METODISTA TAPEPORÃ
PROPOSTAS:
1. DEFINIÇÃO DE UMA POLÍTICA INDIGENISTA
(aprovada, em seus princípios pelo Colégio Episcopal em 16/04/83 e a ser
elaborada em maior profundidade).
2. ALTERAÇÃO DO PROJETO TAPEPORÃ
(aprovada, em sua totalidade, pelo Conselho Geral da Igreja Metodista, em
17/04/83).
APRESENTAÇÃO
A Equipe de Apoio da Missão Metodista Tapeporã, em sua reunião dos dias 10
e 11 de dezembro de 1982, percebeu a necessidade de reavaliar e redirecionar
o trabalho na Reserva Indígena de Dourados. Esta percepção decorreu dos
seguintes fatores:
- O Projeto proposto e aprovado ao final de 1981 demonstrou-se por demais
ambicioso e pouco realista em relação às possibilidades de ação a nível local.
- O contrato com as agências financiadoras evidenciou a falta de uma definição
política da parte da Igreja Metodista em relação à questão da terra indígena e
uma falta de integração pressuposições latentes ou explícitas no projeto acerca
de uma política indigenista e os diversos subprojetos e atividades previstas
pelo projeto da Missão.
- Uma reunião com a comunidade indígena, realizada em fins de julho de 1982
demonstrou a impossibilidade de o projeto e a necessidade de ser simplificado,
tanto em termos de suas atividades, como em termos de redistribuição dos
recursos existentes. Verificou-se que estes deveriam ser estendidos a um
maior número de famílias evitando-se a criação de grupos privilegiados cuja
presença poderia vir a destruir os já frágeis laços da comunidade indígena.
Nesta reunião a comunidade indígena decidiu assumir efetiva participação nas
decisões relativas ao projeto e aceitou a gradual redução deste, na medida em
que estabeleceu o seguinte tipo de assistência, a partir do próximo ano
141
agrícola: a) No primeiro ano, o fornecimento de sementes, alimento (cantina) à
época do plantio, da limpeza da roça e da colheita, e empréstimo do trator; b)
No segundo ano, o fornecimento de sementes e o empréstimo do trator; c) A
partir do terceiro ano, apenas o empréstimo do trator.
- A subdivisão do Projeto em muitos subprojetos desviava o foco da atenção do
mesmo sobre a sua principal atividade econômica, a saber, a roça comunitária
e a cantina, sustentáculos básicos para se alcançar a “Finalidade” definida para
o projeto.
- À vista destes fatos e constatações, a Equipe de Apoio decidiu propor a
reformulação de todo o projeto. Esta proposta encaminha-se em duas direções:
I – Proposta de Definição de uma Política Indigenista para a Igreja Metodista,
que sirva de suporte para o projeto a longo prazo e que sirva também para
todas as vezes e situações em que a Igreja como um todo tenha que se
manifestar ou agir em relação ao índio;
II – Proposta de Alteração nos Subprojetos e Atividades, cancelando alguns,
modificando outros, introduzindo novas metas, de modo a também reduzir o
custo do Projeto Integral. A redução não é mais significativa em termos de
valores porque o que realmente encarece o projeto é a roça, tanto comunitária
como particular que requer a continuidade do uso do trator, exigido pelo grau
de agregação dos terrenos da área e a presença do capim colonião, como se
verá posteriormente. As páginas que se seguem apresentam a referida
proposta de reformulação.
São Paulo, 11 de dezembro de 1982.
Equipe de Apoio da Missão Tapeporã:
Sérgio Marcus Ponto Lopes
Antonio Olímpio de Sant’Ana
Scilla Franco
Lydia dos Santos
(Com a assessoria e participação de Áureo Batista Brianezzi e Paulo da Silva
Costa).
142
I – PROPOSTA PARA DEFINIÇÃO DE UMA POLÍTICA INDIGENISTA
Uma das maiores dificuldades com que o projeto Missão Tapeporã tem se
deparado através de todo o seu desenvolvimento, se localiza na inexistência de
uma definida política indigenista da parte da Igreja Metodista. O surgimento de
oportunidades e as propostas de atividades tanto para a Equipe de Apoio como
para o próprio Coordenador Local, esbarram sempre na pergunta que as obsta:
será esta proposta ou este desenvolvimento condizente com a linha que a
Igreja Metodista defenderia em uma política de ação em relação ao índio
brasileiro? Esta dificuldade será talvez a mesma a ser encontrada também por
outros projetos da Igreja em relação ao índio e talvez ainda por autoridades
eclesiásticas confrontadas com questões relacionadas á sua problemática: a
exploração econômica, o preconceito racial, a tomada da terra, a destruição da
cultura, o assassinato de índios, a prostituição da mulher índia, e a ausência de
autodeterminação que lhes é negada pelas autoridades que tutelam os mais
legítimos proprietários desta terra.
A Equipe de Apoio do Projeto da Missão Tapeporã, concorda em que os seus
objetivos e metas a serem perseguidos e as atividades a serem desenvolvidas
devem basear-se em uma Política Indigenista a ser adotada pela Igreja,
coincidente em seus fundamentos com as doutrinas tradicionais do Metodismo,
o Credo Social, aprovado pelo X Concílio Geral e o Plano para a Vida e a
Missão da Igreja, aprovado pelo XIII Concílio Geral.
A Equipe de Apoio propõe assim que a Igreja Metodista, através de seu
Conselho Geral e seu Colégio Episcopal aprovem as seguintes declarações
básicas como sua Política Indigenista:
1 – A autodeterminação dos povos indígenas
A Igreja Metodista reconhece ser a autodeterminação dos povos indígenas
no Brasil, questão fundamental a ser resolvida para que se encontrem
soluções justas para a problemática do índio brasileiro. Todos os projetos
voltados para os índios deverão servir-lhes de apoio de modo a que tal
questão seja adequadamente equacionada e resolvida.
2 – Os Direitos dos Povos Indígenas
143
Senhores primitivos da terra do Brasil, os índios têm tido os seus mais
comezinhos direitos constantemente desprezados. Não podem os
metodistas, como herdeiros da tradição de João Wesley, deixar de erguer a
sua voz em protesto veemente contra tais violações. O Colégio Episcopal
da Igreja metodista estará sempre atento a toda e qualquer forma de
pisoteio destes direitos e será sempre o porta-voz do Metodismo Brasileiro
na sua interpretação dos atos que continuamente marcam as tentativas que
os poderosos fazem para se aproveitarem dos índios brasileiros.
3 – A posse da Terra
A posse da terra é condição sine qua non para a sobrevivência e
autodeterminação do índio. É necessário, portanto, dar toda atenção à
demarcação das terras indígenas, onde isto ainda não aconteceu. De igual
modo, para que o índio possa crescer como povo e encontrar espaço onde
viver a vida que lhe é própria, há que tomar decidida posição de apoio à
luta pela recuperação das terras indígenas, invadidas e tomadas às suas
reservas. A Igreja Metodista, consciente desta realidade, sustenta que o
índio brasileiro tem direito tanto à segurança decorrente da demarcação da
sua terra, como à devolução daquilo que indevidamente lhe foi tomado.
4 – Uma Pastoral de Convivência
Freqüentes vezes os movimentos religiosos têm abordado a questão
indígena de uma perspectiva paternalista, aculturadora, e integracionalista.
O índio tem sido objeto de uma catequese deformadora, baseada na
pressuposição de que ele desconhece a verdade e que tenta lhe impor
formas de pensamento ou expressão completamente contrárias a sua
cultura e modo de ser. A Igreja Metodista pretende que sua presença
evangelizadora em meio à comunidade indígena se dê em um contexto de
respeito aos valores dos povos índios e através de uma pastoral de
convivência, de maneira tal que ela seja capaz de sinalizar aos índios a
presença do Reino de Deus, sem violentar a sua consciência e destruir a
sua liberdade quer como povo, quer como indivíduos.
5 – Uma Ação Integrada
144
Uma vez que em meio à sociedade brasileira, o índio pode ser considerado
o irmão mais fraco, evidencia-se claramente a insensatez da falta de
concórdia muitas vezes existentes entre as igrejas e agências que
desenvolvem projetos de promoção a seu favor. A Igreja Metodista se sente
chamada a trabalhar em integração com tais igrejas e agências,
promovendo um intercâmbio de experiências e aprendizados e buscando
um fortalecimento comum, de maneira a que o serviço à comunidade
indígena, se desenvolva da maneira a mais eficiente e coordenada
possível.
6 – A Responsabilidade da Igreja
À vista destas pressuposições acredita a Igreja ser sua responsabilidade
cristã oferecer a índio os recursos concretos de que dispõe, para que ele
tome consciência de si como povo, com uma identidade cultural própria e
promova a sua autodeterminação ou seja, a sua auto-afirmação e
autopromoção.
Explicitação de termos
Os seis pontos da política que ora se propõe à Igreja Metodista giram ao redor
de certos termos e expressões que precisam ser explicitados para sua melhor
compreensão. Ei-los:
1 – Autodeterminação dos Povos Indígenas
Entende-se por autodeterminação dos povos indígenas o processo através
do qual o indivíduo e a comunidade definem e redefinem os objetivos de
sua vida, até chegarem a decidir o seu destino, no contexto da comunidade
nacional.
2 – Direitos dos Povos Indígenas
Defende-se serem direitos dos povos indígenas:
a) sua autodeterminação;
b) a inalienabilidade das terras nas quais tradicionalmente os índios têm
vivido e garantia da posse daquelas que foram doadas às comunidades
indígenas, por ato governamental;
145
c) o usufruto exclusivo das riquezas naturais;
d) resguardo da aculturação espontânea;
e) a preservação de sua identidade cultural (isto é, o direito de os índios
serem índios);
f) o serem os índios reconhecidos em todos os lugares como pessoas
humanas e, como tais, de lhes ser respeitada a vida, a liberdade a
segurança pessoal (Êxodo 20.13; Jo 10.10 e Credo Social da Igreja
Metodista).
3 – Pastoral de Convivência
Conceitua-se como pastoral de convivência o estar presente o obreiro da
Igreja na comunidade indígena, participando em todos os seus momentos,
sem uma proposta prévia acabada, mas aprendendo e descobrindo com ela
os caminhos para a formulação de uma pastoral indígena.
Por exemplo:
A prática religiosa na cultura guarani é constante e relacionada a todos os
momentos da vida diária. A dicotomia entre o material e o espiritual não
existe para o guarani. O espiritual preside a todos os seus atos. Tornar-se,
pois, necessário buscar uma pastoral indígena, a ser aprendida em
convivência com o índio, uma vez que as formas tradicionais de
evangelização adotadas na cultura da sociedade maior não alcançam ou
interpretam adequadamente os valores indígenas.
4 – Sinalizar... a presença do Reino de Deus
Esta sinalização do Reino é entendida à luz da afirmações adotadas pelos
Concílios Gerais da Igreja Metodista, em documentos básicos para sua vida
e trabalho, especialmente as seguintes:
a) “O propósito de Deus é reconciliar consigo mesmo o ser humano,
libertando-o de todas as coisas que o escravizam, concedendo-lhe uma
nova vida à imagem de Jesus Cristo, através da ação e poder do
Espírito Santo, a fim de que, como Igreja, constitua neste mundo e neste
146
momento histórico, sinais concretos do Reino de Deus” (Plano para a
Vida e a Missa da Igreja – D-4)
b) “A Igreja, fiel a Jesus Cristo, é sinal e testemunha do Reino de Deus. É
chamada a sair de si mesma e se envolver no trabalho de Deus, na
construção do novo ser humano e do Reino de Deus. Assim, ela realiza
sua tarefa de evangelização (Hb 2.18)” (Idem, D-9).
c) “A Igreja Metodista... orienta a seus membros... (a)... amar efetivamente
as pessoas, caminhando com elas até as últimas conseqüências para a
sua libertação dos problemas e sua autopromoção integral” (Credo
Social, V,13, e).
5 – Os Recursos Concretos de que dispõe a Igreja
A Igreja possui a sua disposição recursos humanos, materiais, financeiros e
institucionais. Por à disposição do índio os recursos humanos da Igreja
significa estar o obreiro presente em sua comunidade, dando-lhe:
a) apoio em meio às crises geradas pela ação de mecanismos estranhos à
realidade indígena;
b) orientação agrícola;
c) suporte para o processo educativo necessário à recuperação e
preservação comunitária das artes e culturas indígenas;
d) meios para que se torne consciente do papel da comunidade indígena
em seu relacionamento com a comunidade nacional mais ampla.
Os recursos materiais de que a Igreja dispõe, incluem sementes,
maquinários agrícolas e outros.
Os recursos financeiros referem-se às verbas que possibilitem a
manutenção de qualquer projeto que se ajuste à linha política ora proposta.
Entendem-se por recursos institucionais da Igreja a sua voz e a sua
atuação, como instituição e através de suas autoridades representativas,
manifestando-se e dando o seu apoio, em todas as circunstâncias e
momentos, àqueles a quem ela comissiona para exercer um ministério junto
ao índio brasileiro.
147
6 – Integração e Intercâmbio
Para se alcançar a integração e o intercâmbio necessário à ação eficiente a
favor do índio, faz-se necessário:
a) um diálogo constante com entidades também envolvidas no processo de
promoção integral do índio e de apoio à sua autodeterminação;
b) a participação em seminários, simpósios, e encontros de qualquer
natureza, onde se discuta a problemática indígena;
c) o apoio a entidades afins, aliadas na luta ela causa indígena, em
situações concretas.
II – PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DO PROJETO TAPEPORÃ
1. Descrição do Projeto
a) Localização: Reserva Indígena de Dourados, Mato Grosso do Sul.
b) População (clientela potencial): 4.400 pessoas.
c) Hipóteses propostas para verificação:
c1) É possível, com estímulos apropriados, conseguir-se do índio que se
dedique a atividades agrícolas como forma de melhorar seu nível de
nutrição e, através dessa melhoria, contribuir para melhor nível de
saúde;
c2) É possível, também, que esses estímulos e orientações, sendo
dados a nível de comunidades, observado o modo de vida e respeitados
os padrões culturais do índio, resultem na melhoria da sua qualidade
geral e de participação sócio-comunitária;
c3) É possível que, estimulado a participar livre e conscientemente de
um processo de auto-educação e de ação comunitária o índio venha a
assumir a longo prazo, a sua luta para ter garantidos os seus direitos.
d) Variáveis
148
d1) Aspectos comportamentais e de relacionamento do órgão federal de
proteção ao índio (FUNAI) no que diz respeito à garantia do uso e posse
da terra e das riquezas naturais a que o índio tem direito;
d2) Aspectos comportamentais do índio, com relação á sua produção
agrícola, aos relacionamentos na comunidade, aos hábitos de higiene
pessoal e ambiental, à qualidade de alimentação a que tem acesso;
d3) Aspectos relacionados com a autonomia do índio, como agricultor,
nas negociações de compra e venda de insumos e produtos agrícolas;
d4) Aspectos relacionados á organização interna e vida da comunidade
indígena;
d5) Aspectos relacionados à participação do índio como cidadão
brasileiro no contexto nacional mais amplo.
2. Definição de Objetivos e Metas
a) Finalidade
Oferecer ao índio recursos concretos, à disposição da Igreja, para que ele
tome consciência de si como povo e de sua identidade cultural, e promova a
sua autodeterminação, ou seja, a sua auto-afirmação, autodefesa e
autopromoção.
b) Objetivos Gerais
b1) Proporcionar ao índio a melhoria e diversificação de sua atividade
coletiva;
b2) Estimular um processo de auto-educação e ação comunitária, de que o
índio participe livre e conscientemente, responsabilizando-se por seu próprio
destino;
b3) Favorecer e incentivar a melhoria dos níveis de alimentação e nutrição,
saúde, habitação e segurança social da comunidade indígena.
c) Objetivos Específicos
c1) Prestar orientação técnico-agrícola aos índios;
149
c2) Possibilitar acesso dos índios a maquinário agrícola indispensável e
exigido pelo tipo de terreno da Reserva de Dourados;
c3) Orientar a aplicação dos resultados obtidos pelos índios em seu
trabalho agrícola;
c4) Incentivar a cooperação entre os índios, que lhes permita maior
rentabilidade na produção e melhores níveis de convivência comunitária;
c5) Estender, na medida do possível, os benefícios deste Projeto ás famílias
indígenas que ainda não recebem qualquer tipo de apoio;
c6) Procurar formas de integração com entidads envolvidas no apoio,
proteção e defesa dos índios, especialmente no que diz respeito á
demarcação de suas terras, ao uso coletivo delas e aproveitamento de suas
riquezas naturais;
c7) Dar continuidade ao processo educativo já iniciado, envolvendo crianças
e adultos, na recuperação e preservação comunitária das artes e cultura
indígena.
d) Metas
d1) Ampliar o atendimento de modo a atingir pelo menos 160 familias em
roças particulares e/ou comunitárias;
d2) Fornecer alimentos, através da cantina, às famílias envolvidas no projeto
nas épocas de plantio, limpeza da roça e colheita;
d3) Manter o subprojeto de Bolsas de Estudo, para atender a 20 estudantes;
d4) Fornecer apoio ao surgimento de lideres entre a comunidade indígena,
capazes de representá-la e defender seus interesses entre a comunidade
não-indígena, por meio do fornecimento de bolsas de estudo, alcançando a
pelo menos 20 alunos;
d5) manter a escola e centro de artes e cultura, de modo a alcançar 30
menores, acompanhados de suas mães;
150
d6) Organizar um grupo de especialistas (em antropologia, sociologia, leis,
serviço social e teologia) e reuni-lo duas vezes, no ano de 1983, se possível
em Dourados;
d7) Proceder à montagem de material de divulgação e documentação do
Projeto e disseminá-lo em toda a Igreja e por entre Igrejas e Agencias
Cooperantes ou Financiadoras;
d8) Facilitar o fluxo dos recursos financeiros recebidos de Agencias
Financiadoras, para o Escritório de Administração Local.
3. Proposta de Atuação para 1983
3.1. Atividades
a) Dar continuidade à roça comunitária e/ou roças particulares;
b) Fornecer alimentos para o desenvolvimento das roças, através da
cantina à época do plantio, limpeza de roças e colheita;
c) Dar continuidade á escola e centro de artes e cultura indígenas;
d) Amiudar contatos entre a Equipe de Apoio e o Executor do projeto a
nível local;
e) Efetivar a organização e atuação do grupo de assessores;
f) Reduzir complicações burocráticas que atrasam a chegada de verbas ao
executor do projeto;
g) Continuar fornecendo Bolsas de Estudo a vinte estudantes selecionados
de acordo com os critérios mencionados na Meta d4);
h) Concluir o material de divulgação e documentação que está em
elaboração;
i) Manter, em nível local, serviço contábil em dia, fornecendo à Tesouraria
Geral um balancete em julho e balanço geral em dezembro e relatórios
bimestrais á Secretaria de Ação Social do Conselho geral;
151
j) Manter, a nível geral, um sistema de informações constantes acerca da
disponibilidade de recursos, para que seja possível programar as
atividades locais.
3.2. Justificativa
A proposta de atuação para 1983 com as alterações incluídas pela Equipe
de Apoio nesta data, se justifica nas próprias reivindicações da comunidade
indígena, na necessidade de selecionar prioridades maiores e mais
fundamentais à própria sobrevivência indígena e nas avaliações alcançadas
com a assessoria de antropólogos, sociólogos e técnicos sugeridos pelas
Agências Financiadoras, conforme mencionado na APRESENTAÇÃO da
presente reavaliação. Justifica-se também na Proposta de Definição de
uma Política Indigenista para a Igreja Metodista e na pressuposição de que
a mesma será aprovada pelo Conselho Geral.
4. SUBPROJETOS – Descrição
4.1. Subprojeto RECURSOS HUMANOS
4.1.1. Elementos: (as mesmas pessoas atualmente contratadas)
a) Agrônomo
b) Ajudante de campo
c) Professora
d) Auxiliar de escritório
4.1.2. Objetivos e Justificativas
a) Agrônomo – O agrônomo é elemento chave no projeto da Missão.
Sua atuação no desenvolvimento das roças, comunitárias ou
particulares, é justificada pela necessidade de se tornarem estas as mais
rendosas possíveis, de modo a permitir ao índio a autonomia
indispensável à sua autovalorização e á sua libertação do sistema de
changa, pelo qual os fazendeiros da região os contratam a baixo custo e
152
que produz efeitos econômicos e sociais danosos a toda a comunidade
indígena.
b) Ajudante de campo – O ajudante de campo é elemento indispensável
para que o Agrônomo possa exercer eficientemente a sua função e
tenha ainda tempo livre para exercer contatos com outras agencias de
serviço, supervisionar o escritório, fazer a provisão e administração da
cantina, etc.
c) Professora – A professora exerce um papel bastante diferente do que
é exercido nas escolas da sociedade mais ampla. Sua função é a de
facilitadora ao autoeducação indígena, o que envolve tanto crianças
como mães em um processo de integração que se esvaziava no estilo
de vida que atualmente estava caracterizando a reserva indígena. Seu
papel será apenas o de servir de foco para o referido processo, de tal
maneira que os índios sejam os seus próprios mestres.
d) Auxiliar de escritório – O escritório já montado exige a presença diária
de uma auxiliar, em regime de tempo parcial, para manter a
correspondência, atender pessoas que procuram o projeto, manter
arquivo em dia, etc.
4.1.3 – Custos (para 1983)
a) Agrônomo (tempo integral) Cr$ 2.598.333,00
b) Ajudante de campo (tempo integral) Cr$ 1.241.716,00
c) Professora (tempo parcial) Cr$ 1.241.716,00
d) Auxiliar de escritório (tempo parcial) Cr$ 414.500,00
e) Encargos sociais (previdência, etc) Cr$ 1.782.696,00
Total Cr$ 7.278.961,00
4.2. Subprojeto ADMINISTRAÇÃO
4.2.1. Objetivos e Justificativas
A infra-estrutura para o projeto da Missão Tapeporã exige a manutenção
de seu equipamento, material para o escritório, combustíveis e
153
lubrificantes (um dos itens mais caros) para os veículos, sem o que será
impossível a implementação de todas as atividades.
Os alugueis de casa, os serviços contábeis, as despesas de expediente
e de viagens (incluindo as do pessoal envolvido no projeto e as da
Equipe de Apoio e do Grupo de Assessores), estão, evidentemente,
relacionados aos Recursos Humanos. Foram alistados, no entanto, sob
este Subprojeto, para destacar a razão de ser de sua solicitação.
4.2.2. Detalhamento e custos (para 1983)
Aluguel de casa para o Agrônomo
(Coordenador Local) ................................................ Cr$ 720.000,00
Serviços Contábeis .................................................... Cr$ 90.000,00
Manutenção do escritório ........................................... Cr$ 408.000,00
Manutenção de veículos ............................................ Cr$ 3.600.000,00
Combustível e lubrificantes ........................................ Cr$ 3.000.000,00
Despesas operacionais .............................................. Cr$ 240.000,00
Despesas eventuais ................................................... Cr$ 1.200.000,00
Viagens e expediente ................................................. Cr$ 1.400,000,00
Treinamentos .............................................................. Cr$ 150.000,00
Total .......................................................................... Cr$ 10.808.000,00
4.3 – Subprojeto ROÇAS COMUNITÁRIAS E PARTICULARES
4.3.1. Objetivos e justificativas
As roças, tanto comunitárias como particulares, são o aspecto
econômico mais importante do projeto da Missão Tapeporã. É através
delas que os índios podem alcançar sua subsistência em primeiro lugar
e recursos econômicos em segundo, o que lhes permitirá a autonomia
necessária, em relação ao sistema econômico que os mantém em
constante dependência dos fazendeiros da região.
154
A orientação original visava primordialmente às roças de dimensão
comunitária, como se pode ver no projeto aprovado para o ano de 1982.
A impossibilidade de alcançar todas as famílias com este método,
percebido pelo agrônomo partir de constantes queixas, levou o projeto a
dar também alguma atenção ainda que lateral, ao desenvolvimento de
roças particulares, na terra ao redor das choças dos próprios índios. Isto
estará permitindo a ampliação dos serviços do projeto, que deverão
beneficiar a aproximadamente 160 famílias indígenas.
As roças comunitárias, por outro lado, apresentam oportunidades
laterais excelentes. Em primeiro lugar têm um aspecto educativo, na
medida em que permitem o cultivo do senso de comunidade e o
fortalecimento dos laços tribais. Em segundo lugar porque oferecem
inúmeras ocasiões para troca informal de idéias, oportunidade para a
evangelização e discussão de questões religiosas, bem como momentos
devocionais em contato com a natureza. Tais ocasiões são usadas
também para o diálogo conscientizador, quando podem ser examinadas
e discutidas com os índios as questões relacionadas à sua problemática.
Finalmente a roça comunitária oferece a oportunidade para uma
constante avaliação da organização interna da comunidade e do
desenvolvimento do próprio projeto. É o momento em que decisões
importantes podem ser tomadas, de forma democrática, no
relacionamento das atividades, tendo em vista os próprios interesses e
possibilidades dos índios.
4.3.2. Custos (para 1983)
Aquisição de sementes, pás, enxadas, enxadões, limas e óleo: Cr$
7.643.750,00.
4.4. Subprojeto CANTINA
4.4.1. Objetivos e justificativa
A cantina é um nome dado a uma cooperativa de consumo rudimentar,
cuja finalidade é servir ao subprojeto Roças Comunitárias e Particulares.
Para que o índio possa fixar-se à sua terra e cultivá-la, ele precisa
155
possuir em reserva, alimentos suficientes para o seu sustento e o de sua
família nos períodos em que está em trabalho. Sem este alimento, ele é
obrigado a sair da reserva e ir trabalhar para os fazendeiros, que o
mantém praticamente escravizado. Ainda que ele tenha comida
enquanto está na fazenda sua família passa fome. Ao mesmo tempo, a
demanda de mão-de-obra coincide com a ocasião do preparo da roça.
Fora a sua reserva o índio não pode trabalhar a sua própria roça e
acaba em miséria, em meio a uma terra fértil.
A cantina deverá fornecer ao índio os alimentos básicos e mínimos de
precisa nos períodos em que está ocupada em sua roça, ou na roça
comunitária, isto é, à época do plantio, da limpeza da roça e da colheita.
Para o presente estágio do projeto a cantina já está sendo em parte
desativada (anteriormente funcionava durante todo o ano). Isto reduzirá
em parte os seus custos e evitará também em parte que o índio venha a
cair em um sistema paternalista e que lhe confirme a dependência. O
armazém para a guarda dos cereais da cantina já foi construído, em
plena reserva, no decorrer de 1982.
A questão da cantina é de difícil colocação. Em princípio prevê-se que o
índio, após a colheita, reponha o alimento que lhe foi fornecido,
entretanto, a mentalidade indígena ignora e sujeito da idéia do
empréstimo ou do financiamento, figuras que existem na nossa cultura.
O índio entende apenas a idéia do dar, sem esperar em troca. É assim
que ele age quando possui alguma coisa e vê outro índio em
necessidade. A cantina se apresenta, portanto, como algo estranho a
seu modo de perceber as relações de dar e receber. Ele se sente grato
pelo que se lhe oferece, mas não responsável por pagar o alimento com
cereais em mesma quantidade ou valor e nem na época em que
normalmente se esperaria que fossem pagos. Isto determina uma
situação problemática no que diz respeito à orçamentação do projeto,
pois a cantina deve ser caracterizada em termos de aplicação a fundo
perdido, sem retorno. Qualquer retribuição que se receba do índio será
sempre um dado a mais, ou uma receita extra.
156
4.4.2. Custos (para 1983)
Compra de gêneros alimentícios básicos: Cr$ 3.990.000,00
4.5. Subprojeto BOLSAS DE ESTUDO
4.5.1. Objetivos e Justificativa
Este projeto visa a fornecer apoio ao surgimento líderes entre a
comunidade indígena, capazes de representá-la e defender seus
interesses entre a comunidade não-indígena, por meio do fornecimento
de bolsas de estudo, alcançando a pelo menos vinte alunos.
Embora exista na reserva uma escola do organismo oficial responsável
pela comunidade indígena, esta fornece instrução limitada aos quatro
primeiros anos da formação de 1º grau. Para que os jovens índios
possam continuar seus estudos e alcançarem a educação necessária a
torná-los líderes capazes de bem representar seu povo na comunidade
ao seu redor, é preciso que tenham meios para continuar a freqüentar a
escola oficial gratuita, ainda que fora da reserva. As bolsas de estudo
serão utilizadas para a compra de uniformes exigidos pela escola,
alimentação, compra de livros e para o transporte, da reserva para a
cidade.
O critério de seleção dos bolsistas dá prioridade (mas não exclusividade)
àqueles que são filhos de famílias já reconhecidas como líderes entre a
comunidade índia, de sorte que os jovens venham a ocupar os postos de
maior responsabilidade entre o seu povo, uma vez educados. Trata-se
de aproveitar a liderança tradicional já existente entre os índios,
oferecendo-lhe meramente os recursos da educação, para que possam
exercer esta liderança de maneira mais eficiente e marcante, frente à
comunidade não índia.
4.5.2. Custos (para 1983)
Vinte bolsas de estudo: Cr$ 1.680.000,00.
4.6. Subprojeto PRE-ESCOLA E CENTRO DE ARTES E CULTURA
4.6.1. Objetivo e Justificativa
157
O subprojeto Pré-Escola, implementado já em 1982, visa a princípio
fornecer à criança indígena condições (em termos de alimentação e
preparativos para a alfabetização) para ingressas na Escola da FUNAI
em condições de aprendizado menos desvantajosas do que as
existentes até então. No desenvolver do subprojeto, na medida em que
as mães foram sendo pouco a pouco envolvidas, percebeu-se que era
preciso ampliar e redirecionar todo o subprojeto. Concebido
anteriormente para funcionar nas próprias instalações da escola da
FUNAIS, tornou-se ele a razão da construção de uma casa comunitária,
erigida nos moldes indígenas e feita por eles próprios, que veio a firmar-
se como centro de reuniões, local de aprendizagem de artes e de
produção de outros objetos indígenas, servindo assim como centro
recuperador e conservados da cultura comunitária.
A atividade da professora, portanto, deixou de ser simplesmente de
natureza docente, para tornar-se também a de facilitadora das reuniões
das mães. Ao mesmo tempo, a pré-escola veio preencher uma
necessidade do projeto, até então não detectada, ou seja, a de permitir
aos índios um local comunitário de encontros, nos quais podem eles
discutir os seus próprios problemas e encontrar maior sentido de povo
com cultura e valores próprios, a serem devidamente resguardados.
4.6.2. Custos (para 1983)
Merenda e material escolar: Cr$ 500.000,00
5. PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA
5.1. Recursos Necessários
5.1.1. Recursos Humanos
a) A Nível de Execução
Um Coordenador Executivo-Agrônomo
Um Ajudante de Campo
Uma Professora para a Pré-Escola (tempo parcial)
Uma Auxiliar de Escritório (tempo parcial)
158
b) A Nível de Apoio Administrativo
Equipe de Apoio Administrativo (designada pelo Conselho Geral)
(sem ônus)
c) A Nível de Assessoria
Equipe Multidisciplinar de Assessores
(Apoio voluntário, sem ônus)
Grupo de Trabalho Missionário Evangélico (sem ônus)
5.1.2. Recursos Materiais
a) Instalações
- Casa para o Coordenador-Executivo
- Armazém (cantina)
- Escritório
- Galpão para abrigo de máquinas
b) Equipamentos
- Trator (dois)
- Colhedeira (uma)
- Camionete (uma)
- Projetor de diapositivos (um)
- Máquina de escrever (um)
- Telefone (um)
- Móveis de escritório
c) Material de Consumo
- Sementes
- Combustível
- Lubrificantes
- Adubos
159
- Alimentos para a cantina
- Material pedagógico
- Material de Escritório
5.1.5. Recursos Financeiros
Especificação das Despesas por Atividade
1. PESSOAL Cr$ 7.278.961,00 US$ 30.078,35
2. ADMINISTRAÇÃO
Aluguel de casa 720.000,00 2,975.20
Serviços contábeis 90.000,00 371.90
Manutenção de escritório 408.000,00 1,685.95
Manutenção de Veículos 3.600.000,00 14,876.03
Combustível e Lubrificantes 3.000.000,00 12,396.69
Despesas operacionais 240.000,00 991.73
Despesas eventuais 1.200.000,00 4,958.67
Viagens e Expedientes 1.400.000,00 5,785.12
Treinamentos 150.000,00 619.83
SUBTOTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10.808.000,00 44,661.12
3. SUBPROJETOS
Roças 7.643.750,00 31,585.74
Cantina 3.990.000,00 16,487.00
Bolsas de Estudo 1.680.000,00 6,942.14
Pré-Escola 500.000,00 2,066.71
SUBTOTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13.813.750,00 57,081.59
TOTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31.900.711,00 131,821.06
Cotação do US$ à época em que este Orçamento foi realizado = Cr$ 242,0
160
ANEXO 6
Relação dos textos escritos por Scilla Franco, suas respectivas datas e os
periódicos nos quais foram publicados:
Data Título
Local
Abril de 1977
Minha Prece Expositor Cristão
Dezembro de 1977
Carta aos Kaiowá Expositor Cristão
Abril de 1978 Solilóquio de um missionário Expositor Cristão
Outubro de 1978
Carta a um amigo dos índios Expositor Cristão
Dezembro de 1978
Vendedor de flechas ou Natal do Caiuá
Expositor Cristão
Janeiro de 1979
Eu vos farei pescadores de homens Expositor Cristão
Abril de 1979
Chei Ahai Te Tama
Expositor Cristão
Maio de 1979
Prece Índia
Expositor Cristão
Junho de 1979
Que tens, dormente?
Expositor Cristão
Junho de 1979
O Serão dos animais Expositor Cristão
Julho de 1979 No tempo em que as árvores falavam
Expositor Cristão
Setembro de 1979
O lado amargo do açúcar
Expositor Cristão
Outubro de 1979
A curva da morte
Expositor Cristão
Novembro de 1979
A Evangelização do Índio
Expositor Cristão
Novembro de 1979
O bóia-fria e o Natal
Expositor Cristão
Dezembro de 1979
A flor do porão
Expositor Cristão
1980 Reflexões sobre o povo Kaiowá Boletim do GTME, nº 1
Janeiro de 1980
O cego cantador de tragédias Expositor Cristão
Janeiro de 1980
De um pirangueiro aos metodistas Expositor Cristão
Abril de 1980 Índios: Ovelhas de um outro aprisco
Expositor Cristão
Maio de 1980 Erga Omnes (Perante Todos) Expositor Cristão
161
Data Título
Local
Junho de 1980
Onde está teu irmão?
Expositor Cristão
Julho de 1980 Igreja dos Coronéis
Expositor Cristão
Fevereiro de 1981
Está Doente e não tem cura Expositor Cristão
Abril de 1981 De um Pataxó ao Deus dos brancos
Expositor Cristão
Abril de 1981 Às senhoras de minha Igreja
Expositor Cristão
Junho de 1981
Por uma Teologia Nativa
Expositor Cristão
Outubro de 1981
Confessor de Bugreiro
Expositor Cristão
Outubro de 1981
Depois dos bichos Expositor Cristão
1982 Avati Moroti
Estudos do GTME
Setembro de 1982
Como cantar em terra estranha? Boletim do GTME
Setembro/outubro de 1982
És a Igreja que havia de vir?
Revista Tempo e Presença
Dezembro de 1983
Natal do desempregado Expositor Cristão
Janeiro de 1984
Reflexões sobre pastoral indígena Boletim do GTME, nº 3
Outubro de 1985
Sonido Incerto Expositor Cristão
Dezembro de 1985
A história de um “Zé” da vida
Expositor Cristão
Fevereiro de 1986
Não quero ir para Társis
Expositor Cristão
162
ANEXO 7
Exmo Sr.
Ademar Ribeiro da Silva
DD. Presidente da FUNAI
Brasília/DF
Dourados, 26/03/79
Senhor Presidente,
Nós, representantes da Igreja Católica e Igreja Metodista, profundamente
envolvidos na problemática enfrentada pelas populações indígenas da região, viemos
a V.Excia. para expor a situação em que se encontra o P.I. de Dourados, e pedir mais
uma vez que sejam encaminhadas medidas urgentes e eficazes para a solução.
Histórico: O P.I. de Dourados, distante apenas alguns Km da cidade de
Dourados, enfrenta basicamente dois problemas:
• Problema da terra: vivem neste posto cerca de 2.500 a 3.000 índios
numa área de apenas 3.500 há., que lhes sobrou das constantes
demarcações. Além disto esta terra está muito irregularmente distribuída e
grande parte invadida pelo capim colonião, ficando inaproveitada para os
índios.
• Problema étnico: grande parte da população indígena é do grupo
Guarani, sub-grupo Kaiová e Ñadeva. Mas vive também nesta área um
pequeno grupo de índios Terena, trazidos para este Posto há muitos anos
atrás, pelo órgão tutelar.
Desta forma existe uma divisão clara dentro da área tendo inclusive dois
capitães. Mas o problema é que um dos capitães tem sob sua jurisdição índios de dois
grupos étnicos diversos. E é nesta parte que ocorre a disputa pela chefia e o problema
da distribuição desigual da terra é mais forte.
Há interesse por parte de cada grupo no sentido de que o capitão seja de seu
grupo étnico.
163
Este problema já foi longamente exposto em reuniões da Pastoral Indígena na
região, da qual participou a própria presidência da FUNAI, que na ocasião prometeu
enviar para cá comissão de alto nível para levantamento e estudo do exposto.
Por diversas vezes nossos agentes de pastoral tem impedido que estas
divergências chegassem as vias de fato.
Este problema do conflito étnico, aliado ao problema da pouca terra, está
tomando proporções alarmantes, podendo qualquer fato, por mais insignificante que
seja, provocar conseqüências imprevisíveis, caso não sejam tomadas medidas
urgentes para a sua solução.
Não nos parece justo exigir que a população indígena deva resolver sozinha
problemas não provocados por ela, mas que tem sua origem na ingerência do órgão
tutelar, em épocas passadas.
Tememos que esta situação resulte em conflito com saldo de muitas vidas
humanas das já tão sofridas populações indígenas.
Encarecemos que é urgente um estudo e encaminhamento de uma solução.
Neste sentido oferecemos a nossa sincera colaboração.
Atenciosamente,
Dom Teodardo Leitz
Bispo de Dourados
Pastor Scilla Franco
Igreja Metodista
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