re
vis
ta direitos
humanos
junho 2009
02
NavaNEthEm Pillay
BoavENtura dE SouSa SaNtoS
lEoNardo Sakamoto marcuS BarBEriNo
Paulo Srgio PiNhEiro
Silvia PimENtEl
Nilmrio miraNda
JoS gEraldo dE
SouSa JNior
horcio coSta
Joo roBErto riPPEr
Paulo BEtti
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A forma como os Direitos Humanos
se transformaram, nas duas ltimas
dcadas, na linguagem da poltica
progressista, em quase sinnimo de eman-
cipao social causa alguma perplexidade.
De fato, durante muitos anos, aps a Se-
gunda Guerra Mundial, os Direitos Humanos
foram parte integrante da poltica da guerra
fria, e como tal foram considerados pelas
foras polticas de esquerda. Duplos crit-
rios na avaliao das violaes dos Direitos
Humanos, complacncia para com ditadores
amigos do Ocidente, defesa do sacrifcio dos
Direitos Humanos em nome dos objetivos
do desenvolvimento tudo isso tornou os
Direitos Humanos suspeitos enquanto roteiro
emancipatrio.
Quer nos pases centrais, quer em todo
o mundo em desenvolvimento, as foras
progressistas preferiram a linguagem da re-
voluo e do socialismo para formular uma
poltica emancipatria. E no entanto, perante
a crise aparentemente irreversvel desses pro-
jetos de emancipao, so essas mesmas for-
as que recorrem hoje aos Direitos Humanos
para reinventar a linguagem da emancipao.
como se os Direitos Humanos fossem in-
vocados para preencher o vazio deixado pelo
Socialismo ou, mais em geral, pelos projetos
emancipatrios. Podero realmente os Direi-
tos Humanos preencher tal vazio? A minha
resposta um sim muito condicional.
O meu objetivo neste trabalho identifi-
car as condies em que os Direitos Huma-
nos podem ser colocados a servio de uma
Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade
BoavENtura dE SouSa SaNtoS professor
catedrtico da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, distinguished legal
scholar da Faculdade de Direito da Universidade
de Wisconsin-Madison e global legal scholar da
Universidade de Warwick. diretor do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
diretor do Centro de Documentao 25 de Abril da
mesma universidade e coordenador cientfico do
Observatrio Permanente da Justia Portuguesa.
BoavENtura dE SouSa SaNtoS
Este artigo foi resumido de um ensaio maior por Erasto Fortes Mendona, com autorizao do autor
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Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade BoavENtura dE SouSa SaNtoS
poltica progressista e emancipatria. Tal ta-
refa exige que sejam claramente entendidas
as trs tenses dialticas que informam a
modernidade ocidental. A primeira ocorre en-
tre regulao social e emancipao social. A
segunda ocorre entre o Estado e a sociedade
civil. A terceira ocorre entre o Estado Nao e
o que designamos por globalizao.
A primeira tenso dialtica entre regula-
o social simbolizada pela crise do Estado
intervencionista e do Estado-providncia e
emancipao social simbolizada pela crise
da revoluo social e do Socialismo como
transformao radical deixou de ser, nes-
te incio de sculo, tenso criativa. As crises
de regulao e emancipao sociais so si-
multneas e alimentam-se uma da outra. A
poltica de Direitos Humanos, que pode ser
simultaneamente uma poltica regulatria e
uma poltica emancipatria, est armadilhada
nessa dupla crise, ao mesmo tempo em que
sinal do desejo de a ultrapassar.
A segunda tenso dialtica que ocorre
entre o Estado e a sociedade civil, apesar
de considerado o dualismo fundador da
modernidade ocidental, aponta como pro-
blemticas e contraditrias a distino e a
relao entre ambos.
Nas ltimas dcadas, tornou-se mais
claro que a distino entre o Estado e a so-
ciedade civil, longe de ser um pressuposto
da luta poltica moderna, o resultado dela.
A tenso deixa, assim, de ser entre Estado
e sociedade civil para ser entre interesses
e grupos sociais que se reproduzem sob a
forma de Estado e interesses e grupos so-
ciais que se reproduzem melhor sob a forma
de sociedade civil, tornando o mbito efe-
tivo dos Direitos Humanos inerentemente
problemtico. Historicamente, nos pases
do Atlntico Norte, a primeira gerao dos
Direitos Humanos, dos direitos civis e pol-
ticos, foi concebida como luta da sociedade
civil contra o Estado, considerado principal
violador potencial dos Direitos Humanos.
A segunda e terceira geraes, dos direi-
tos econmicos, sociais e culturais e da
qualidade de vida foram concebidas como
atuaes do Estado, considerado principal
garantidor dos Direitos Humanos.
Por fim, a terceira tenso ocorre entre
o Estado Nao e o que designamos por
globalizao. Hoje, a eroso seletiva do Es-
tado Nao, imputvel intensificao da
globalizao, coloca a questo de saber se,
quer a regulao social, quer a emancipa-
o social, devero ser deslocadas para o
nvel global. nesse sentido que se come-
a a falar em sociedade civil global, gover-
nana global, equidade global e cidadania
ps-nacional. A efetividade dos Direitos
Humanos tem sido conquistada em pro-
cessos polticos de mbito nacional, e por
isso a fragilizao do Estado Nao pode
trazer consigo a fragilizao dos Direitos
Humanos. Por outro lado, os Direitos Hu-
manos aspiram hoje a um reconhecimento
mundial e podem mesmo ser considerados
como um dos pilares fundamentais de uma
emergente poltica ps-nacional. A ree-
mergncia dos Direitos Humanos hoje
entendida como sinal do regresso do cultu-
ral e at mesmo do religioso. Ora, falar de
cultura e de religio falar de diferena, de
fronteiras, de particularismos. Como pode-
ro os Direitos Humanos ser uma poltica
simultaneamente cultural e global?
Nessa ordem de ideias, o meu objetivo
desenvolver um quadro analtico capaz de
reforar o potencial emancipatrio da poltica
dos Direitos Humanos no duplo contexto da
globalizao, por um lado, e da fragmentao
cultural e da poltica de identidades, por ou-
tro. Pretendo apontar as condies que per-
mitem conferir aos Direitos Humanos, tanto
como se os Direitos Humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo Socialismo ou, mais em geral, pelos projetos emancipatrios
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o escopo global como a legitimidade local,
para fundar uma poltica progressista de Di-
reitos Humanos Direitos Humanos concebi-
dos como a energia e a linguagem de esferas
pblicas locais, nacionais e transnacionais
atuando em rede para garantir novas e mais
intensas formas de incluso social.
acErca daS gloBalizaES
Muitas definies de globalizao cen-
tram-se na economia. Privilegio, no entanto,
uma definio mais sensvel s dimenses
sociais, polticas e culturais. No existe es-
tritamente uma entidade nica chamada glo-
balizao, mas, em vez disso, globalizaes,
termo que, a rigor, s deveria ser usado no
plural e que, como feixes de relaes sociais,
envolvem conflitos, vencedores e vencidos.
Frequentemente, o discurso sobre globaliza-
o a histria dos vencedores.
Proponho, pois, a seguinte definio: a
globalizao o processo pelo qual deter-
minada condio ou entidade local estende
a sua influncia a todo o globo e, ao faz-lo,
desenvolve a capacidade de designar como
local outra condio social ou entidade rival.
Aquilo que chamamos globalizao
sempre a globalizao bem-sucedida de
determinado localismo. Em termos ana-
lticos, seria correta a utilizao do termo
localizao em vez de globalizao para
designar a presente situao. O motivo da
preferncia para o ltimo termo basica-
mente porque o discurso cientfico hege-
mnico tende a privilegiar a histria do
mundo na verso dos vencedores.
Distingo quatro modos de produo da
globalizao, os quais, em meu entender,
do origem a quatro formas de globalizao.
A primeira forma de globalizao o localis-
mo globalizado. Consiste no processo pelo
qual determinado fenmeno local globali-
zado com sucesso, seja a atividade mundial
das multinacionais, a transformao da ln-
gua inglesa em lngua franca, a globalizao
do fast food americano ou da sua msica
popular, ou seja a adoo mundial das leis
de propriedade intelectual ou de telecomu-
nicaes dos EUA.
segunda forma de globalizao chamo
globalismo localizado. Consiste no impacto
especfico de prticas e imperativos transna-
cionais nas condies locais. Tais globalis-
mos localizados incluem: desflorestamento
e destruio macia dos recursos naturais
para pagamento da dvida externa; tesouros
histricos, lugares ou cerimnias religio-
sos, artesanato e vida selvagem postos
disposio da indstria global do turismo;
compra pelos pases do Terceiro Mundo
de lixos txicos produzidos nos pases capi-
talistas centrais para gerar divisas externas;
converso da agricultura de subsistncia
em agricultura para exportao como parte
do ajustamento estrutural; alteraes le-
gislativas e polticas impostas pelos pases
centrais ou pelas agncias multilaterais que
eles controlam; uso de mo de obra local
por parte de empresas multinacionais sem
qualquer respeito por parmetros mnimos
de trabalho (labor standards). A diviso in-
ternacional da produo da globalizao as-
sume o seguinte padro: os pases centrais
especializam-se em localismos globaliza-
dos, enquanto aos pases perifricos cabe
to s a escolha entre vrias alternativas de
globalismos localizados. O sistema-mundo
uma trama de globalismos localizados e
localismos globalizados.
terceira forma de globalizao de-
signo por cosmopolitismo, conjunto muito vasto e heterogneo de iniciativas, movi-
mentos e organizaes que partilham a luta
contra a excluso e a discriminao sociais
e a destruio ambiental produzidas pelos
localismos globalizados e pelos globalis-
mos localizados, recorrendo a articulaes
transnacionais tornadas possveis pela
artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
A globalizao o processo pelo qual
determinada condio ou entidade local estende
a sua influncia a todo o globo
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nica. Localismos globalizados e globalismos
localizados so a globalizao de-cima-para-
baixo, neoliberal ou hegemnica; cosmopo-
litismo e patrimnio comum da humanidade
so a globalizao de-baixo-para-cima, soli-
dria ou contra-hegemnica.
oS dirEitoS humaNoS como
rotEiro EmaNciPatrio
A complexidade dos Direitos Humanos
reside em que eles podem ser concebidos
e praticados, quer como forma de localis-
mo globalizado, quer como forma de cos-
mopolitismo ou, por outras palavras, quer
como globalizao hegemnica, quer como
globalizao contra-hegemnica. O meu
objetivo especificar as condies culturais
para que os Direitos Humanos constituam
forma de globalizao contra-hegemnica.
A minha tese que, enquanto forem conce-
bidos como direitos humanos universais, os
Direitos Humanos tendero a operar como
localismo globalizado e, portanto, como
forma de globalizao hegemnica. Para
poder operar como forma de cosmopolitis-
mo, como globalizao contra-hegemnica,
os Direitos Humanos tm de ser reconcei-
tualizados como multiculturais. Concebidos
como direitos universais, como tem sucedi-
do, os Direitos Humanos tendero sempre
a ser instrumento do choque de civiliza-
es, tal como o concebe Samuel Hunting-
ton (1993), ou seja, como arma do Ocidente
contra o resto do mundo. sabido que os
Direitos Humanos no so universais na sua
aplicao. Sero os direitos humanos uni-
versais, enquanto artefato cultural, um tipo
de invarivel cultural ou transcultural, parte
de uma cultura global? A minha resposta
no. Apenas a cultura ocidental tende a
formul-los como universais. Por outras pa-
lavras, a questo da universalidade uma
questo particular, uma questo especfica
da cultura ocidental.
revoluo das tecnologias de informao e
de comunicao. As atividades cosmopoli-
tas incluem dilogos e articulaes Sul-Sul;
novas formas de intercmbio operrio; redes
transnacionais de lutas ecolgicas, pelos
direitos da mulher, pelos direitos dos po-
vos indgenas, pelos Direitos Humanos em
geral; solidariedade anticapitalista entre o
Norte e o Sul. O Frum Social Mundial que
se reuniu em Porto Alegre a partir de 2001
hoje a mais pujante afirmao de cosmopo-
litismo no sentido aqui adotado.
No uso cosmopolitismo no sentido mo-
derno convencional. Para mim, cosmopolitis-
mo a solidariedade transnacional entre gru-
pos explorados, oprimidos ou excludos pela
globalizao hegemnica. O cosmopolitismo
que defendo o cosmopolitismo do subalter-
no em luta contra a sua subalternizao.
A quarta forma de globalizao refere-
se emergncia de temas que, por sua
natureza, so to globais como o prprio
planeta e aos quais eu chamaria, recorren-
do ao Direito internacional, o patrimnio
comum da humanidade. Trata-se de temas
como a sustentabilidade da vida humana na
Terra, por exemplo, ou temas ambientais
como a proteo da camada de oznio, a
preservao da Antrtica, da biodiversida-
de ou dos fundos marinhos. Incluo, ainda,
nessa categoria, a explorao do espao,
da Lua e de outros planetas, dadas as inte-
raes globais, fsicas e simblicas, entre
eles e o planeta Terra. A preocupao com
o cosmopolitismo e com o patrimnio co-
mum da humanidade conheceu grande de-
senvolvimento nas ltimas dcadas, mas
tambm fez surgir poderosas resistncias.
Em face da anlise precedente, fun-
damental distinguir entre globalizao de-
cima-para-baixo e globalizao de-baixo-
para-cima, entre globalizao neoliberal e
globalizao solidria ou entre globalizao
hegemnica e globalizao contra-hegem-
A globalizao o processo pelo qual
determinada condio ou entidade local estende
a sua influncia a todo o globo
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O conceito de Direitos Humanos assenta
num bem-conhecido conjunto de pressupos-
tos, todos claramente ocidentais e facilmente
distinguveis de outras concepes de digni-
dade humana em outras culturas.
A marca ocidental liberal do discurso
dominante dos Direitos Humanos pode
ser facilmente identificada em muitos ou-
tros exemplos: na Declarao Universal
de 1948, elaborada sem a participao da
maioria dos povos do mundo; no reconhe-
cimento exclusivo de direitos individuais,
com a nica exceo do direito coletivo
autodeterminao; na prioridade concedida
aos direitos civis e polticos sobre os direi-
tos econmicos, sociais e culturais; e no
reconhecimento do direito de propriedade
como o primeiro e, durante muitos anos, o
nico direito econmico.
A histria dos Direitos Humanos no pe-
rodo imediatamente posterior Segunda
Guerra Mundial nos leva a concluir que as
polticas de Direitos Humanos estiveram em
geral a servio dos interesses econmicos e
geopolticos dos Estados capitalistas hege-
mnicos. Um discurso generoso e sedutor
sobre os Direitos Humanos coexistiu com
atrocidades indescritveis, as quais foram
avaliadas de acordo com revoltante duplici-
dade de critrios.
A dualidade entre uma poltica de invisi-
bilidade e uma poltica de supervisibilida-
de correlacionadas aos imperativos da pol-
tica externa norte-americana foi denunciada
por Richard Falk (1981), ao citar a ocultao
total pela mdia das notcias sobre o geno-
cdio do povo maubere em Timor Leste ou a
situao dos cerca de duzentos milhes de
intocveis na ndia, bem como a exubern-
cia com que os atropelos ps-revolucionrios
dos Direitos Humanos no Ir e no Vietn fo-
ram relatados nos Estados Unidos.
Mas essa no toda a histria das polti-
cas dos Direitos Humanos. Muitas pessoas e
organizaes no governamentais tm luta-
do pelos Direitos Humanos, correndo riscos
em defesa de grupos oprimidos vitimizados
por Estados autoritrios, por prticas econ-
micas excludentes ou por polticas culturais
discriminatrias. Tais lutas emancipatrias
so, por vezes, explcita ou implicitamente
anticapitalistas. Creio que a tarefa central da
poltica emancipatria do nosso tempo con-
siste em transformar a conceitualizao e a
prtica dos Direitos Humanos, de um loca-
lismo globalizado num projeto cosmopolita.
Identifico trs premissas dessa transfor-
mao. A primeira premissa a superao
do debate intrinsecamente falso e prejudicial
para uma concepo emancipatria dos Di-
reitos Humanos sobre universalismo e rela-
tivismo cultural. Todas as culturas so relati-
vas, mas o relativismo cultural, como posio
filosfica, incorreto. Por outro lado, todas
as culturas aspiram a preocupaes e valores
vlidos independentemente do contexto de
seu enunciado, mas o universalismo cultural,
como posio filosfica, incorreto.
A segunda premissa da transformao
cosmopolita dos Direitos Humanos que
todas as culturas possuem concepes de
dignidade humana, mas nem todas elas a
concebem em termos de Direitos Humanos.
A terceira premissa que todas as cultu-
ras so incompletas e problemticas nas suas
concepes de dignidade humana. Se cada
cultura fosse to completa como se julga,
existiria apenas uma s cultura. Aumentar a
conscincia de incompletude cultural uma
das tarefas prvias construo de uma con-
cepo multicultural de Direitos Humanos.
A quarta premissa que todas as culturas
tm verses diferentes de dignidade humana,
algumas mais amplas do que outras, algumas
com um crculo de reciprocidade mais largo
do que outras, algumas mais abertas a outras
culturas do que outras.
Por ltimo, a quinta premissa que
todas as culturas tendem a distribuir as
pessoas e os grupos sociais entre dois
artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
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princpios competitivos de pertena hierr-
quica. O princpio da igualdade e o princ-
pio da diferena. Embora na prtica os dois
princpios se sobreponham frequentemente,
uma poltica emancipatria dos Direitos
Humanos deve saber distinguir entre a luta
pela igualdade e a luta pelo reconhecimen-
to igualitrio das diferenas, a fim de poder
travar ambas as lutas eficazmente.
Essas so as premissas de um dilogo
intercultural sobre a dignidade humana que
pode levar, eventualmente, a uma concepo
mestia de Direitos Humanos, uma concep-
o que, em vez de recorrer a falsos univer-
salismos, se organiza como uma constelao
de sentidos locais, mutuamente inteligveis,
e que se constitui em rede de referncias nor-
mativas capacitantes.
a hErmENutica diatPica
Podemos compreender topoi como
lugares comuns retricos mais abrangen-
tes de determinada cultura, que funcionam
como premissas de argumentao que, por
sua evidncia, no se discutem e tornam
possveis a produo e a troca de argu-
mentos. Compreender determinada cultura
a partir dos topoi de outra cultura tarefa muito difcil, para a qual proponho uma her-
menutica diatpica.
A hermenutica diatpica baseia-se na
ideia de que os topoi de uma dada cultura,
por mais fortes que sejam, so to incom-
pletos quanto a prpria cultura a que perten-
cem. Tal incompletude no visvel a partir
do interior dessa cultura, uma vez que a as-
pirao totalidade induz a que se tome a
parte pelo todo. O objetivo da hermenutica
diatpica no , porm, atingir a completude
objetivo inatingvel mas, pelo contrrio,
ampliar ao mximo a conscincia de incom-
pletude mtua, por meio de um dilogo que
se desenrola, por assim dizer, com um p
numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o
seu carter dia-tpico.
Um exemplo de hermenutica diatpi-
ca a que pode ter lugar entre o topos dos
Direitos Humanos na cultura ocidental, o to-
pos do dharma na cultura hindu e o topos
da umma na cultura islmica. Vistos a partir
do topos do dharma, os Direitos Humanos
so incompletos, na medida em que no
estabelecem a ligao entre a parte (o indi-
vduo) e o todo (o cosmos). Vista a partir do
dharma, a concepo ocidental dos Direitos
Humanos est contaminada por uma simetria
muito simplista e mecanicista entre direitos
e deveres. Apenas garante direitos queles a
quem pode exigir deveres. Por outro lado e
inversamente, visto a partir do topos dos Di-
reitos Humanos, o dharma tambm incom-
pleto, dado o seu enviesamento fortemente
no dialtico a favor da harmonia, ocultando,
assim, injustias e negligenciando totalmen-
te o valor do conflito como caminho para
uma harmonia mais rica. Alm disso, o dhar-
ma no est preocupado com os princpios
da ordem democrtica, com a liberdade e a
autonomia, e tende a esquecer que o sofri-
mento humano possui uma dimenso indi-
vidual irredutvel: no so as sociedades que
sofrem, mas sim os indivduos.
A mesma hermenutica diatpica pode
ser ensaiada entre o topos dos Direitos Huma-
nos e o topos da umma na cultura islmica,
que se refere sempre comunidade tnica,
lingustica ou religiosa de pessoas que so
o objeto do plano divino de salvao. Vista a
partir do topos da umma, a incompletude dos
Direitos Humanos individuais reside no fato
de, com base neles, ser impossvel fundar os
laos e as solidariedades coletivas, sem as
quais nenhuma sociedade pode sobreviver,
e muito menos prosperar. A dificuldade da
concepo ocidental de Direitos Humanos
em aceitar direitos coletivos de grupos so-
ciais ou povos um exemplo especfico de
uma dificuldade muito mais ampla: a dificul-
dade em definir a comunidade como arena
de solidariedades concretas, campo poltico
Um discurso generoso e sedutor sobre os Direitos Humanos coexistiu com atrocidades indescritveis
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dominado por uma obrigao poltica hori-
zontal. Esta ideia de comunidade, central para
Rousseau, foi varrida do pensamento liberal,
que reduziu toda a complexidade societal
dicotomia Estado/sociedade civil.
Mas, por outro lado, a partir do to-
pos dos Direitos Humanos individuais,
fcil concluir que a umma sublinha de-
masiadamente os deveres em detrimen-
to dos direitos e por isso tende a perdoar
desigualdades que seriam de outro modo
inadmissveis, como a desigualdade entre
homens e mulheres ou entre muulmanos e
no muulmanos. A hermenutica diatpica
mostra-nos que a fraqueza fundamental da
cultura ocidental consiste em estabelecer
dicotomias demasiadamente rgidas entre
o indivduo e a sociedade, tornando-se,
assim, vulnervel ao individualismo posses-
sivo, ao narcisismo, alienao e anomia.
De igual modo, a fraqueza fundamental das
culturas hindu e islmica deve-se ao fato de
nenhuma delas reconhecer que o sofrimen-
to humano tem uma dimenso individual
irredutvel, a qual s pode ser adequada-
mente considerada numa sociedade no
hierarquicamente organizada.
O reconhecimento de incompletudes m-
tuas condio sine qua non de um dilogo
intercultural.
Um exemplo de hermenutica diatpica
entre a cultura islmica e a cultura ociden-
tal dos Direitos Humanos a proposio de
Abdullahi An-naim (1990; 1992) de uma
via per mezzo identificando reas de conflito entre o sistema jurdico religioso do Isl, a
Sharia, e os critrios ocidentais dos Direitos
Humanos e, sugerindo uma reconciliao
ou relao positiva entre os dois sistemas.
Compreendendo como problemtica na
Sharia histrica a excluso das mulheres e
dos no muulmanos do princpio da reci-
procidade, prope a Reforma Islmica,
assentada numa reviso evolucionista das
fontes do Islamismo, que relativiza o con-
texto histrico especfico em que a Sharia
foi criada pelos juristas dos sculos VIII e
IX. No contexto atual, haveria todas as con-
dies para uma concepo mais alargada
da igualdade e da reciprocidade a partir das
fontes cornicas. Estaria inclinado a sugerir
que, no contexto muulmano, a energia mo-
bilizadora necessria para um projeto cos-
mopolita dos Direitos Humanos poder ge-
rar-se mais facilmente num quadro religioso
moderado. Se for esse o caso, a abordagem
de An-naim muito promissora.
Na ndia, uma via per mezzo semelhante
est a ser prosseguida por alguns grupos de
defesa dos Direitos Humanos, particularmen-
te por aqueles que centram a sua ao na de-
fesa dos intocveis.
Por sua prpria natureza, a hermenuti-
ca diatpica um trabalho de colaborao
intercultural e no pode ser levada a cabo
a partir de uma nica cultura ou por uma
s pessoa. Na minha perspectiva, An-naim
aceita demasiadamente fcil e acriticamen-
te a ideia de Direitos Humanos universais.
Esse autor, ao mesmo tempo em que pro-
pe uma abordagem evolucionista crtica
e contextual da tradio islmica, faz uma
interpretao da Declarao Universal dos
Direitos Humanos surpreendentemente ana-
crnica e ingenuamente universalista.
A hermenutica diatpica conduzida por
An-naim, a partir da perspectiva da cultura
islmica e as lutas pelos Direitos Humanos
organizadas pelos movimentos feministas
islmicos, seguindo as ideias da Reforma
islmica por ele propostas, tm de ser
complementadas por uma hermenutica
diatpica conduzida a partir da perspectiva
de outras culturas e, nomeadamente, da
perspectiva da cultura ocidental dos Direi-
tos Humanos. Este provavelmente o ni-
co meio de integrar na cultura ocidental a
noo de direitos coletivos, os direitos da
artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
No contexto muulmano, a energia mobilizadora necessria para um projeto cosmopolita de Direitos Humanos poder gerar-se mais facilmente num quadro religioso moderado
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natureza e das futuras geraes, bem como
a noo de deveres e responsabilidades para
com entidades coletivas, sejam elas a co-
munidade, o mundo ou mesmo o cosmos.
aS dificuldadES da
iNtErculturalidadE ProgrESSiSta
Que possibilidades existem para um di-
logo intercultural quando uma das culturas
em presena foi moldada por massivas e
continuadas agresses dignidade humana
perpetradas em nome da outra cultura? O
dilema cultural que se levanta o seguinte:
dado que, no passado, a cultura dominante
tornou impronunciveis algumas das as-
piraes dignidade humana por parte da
cultura subordinada, ser agora possvel
pronunci-las no dilogo intercultural sem,
ao faz-lo, justificar e mesmo reforar a
subordinao?
Um dos mais problemticos pressupos-
tos da hermenutica diatpica a concepo
das culturas como entidades incompletas.
Pode se argumentar que, pelo contrrio, s
culturas completas podem participar em di-
logos interculturais sem correr o risco de
ser descaracterizadas ou mesmo absorvidas
por culturas mais poderosas. Uma variante
desse argumento reside na ideia de que so-
mente a uma cultura poderosa e historica-
mente vencedora, como o caso da cultura
ocidental, pode atribuir-se o privilgio de
se autodeclarar incompleta, sem, com isso,
correr o risco de dissoluo. Assim sendo, a
ideia de incompletude cultural ser, afinal, o
instrumento perfeito de hegemonia cultural
e, portanto, uma armadilha quando atribuda
a culturas subordinadas.
As culturas dos povos indgenas das
Amricas, da Austrlia, da Nova Zelndia, da
ndia, dentre outras, foram to agressivamen-
te amputadas e descaracterizadas pela cul-
tura ocidental que, recomendar-lhes agora
a adoo da ideia de incompletude cultural,
como pressuposto da hermenutica diatpi-
ca, um exerccio macabro, por mais eman-
cipatrias que sejam as suas intenes.
O dilema da completude cultural pode
ser assim formulado: se uma cultura se
considera inabalavelmente completa, ento
no ter nenhum interesse em envolver-se
em dilogos interculturais; se, pelo contr-
rio, admite, como hiptese, a incompletude
que outras culturas lhe atribuem e aceita
o dilogo, perde confiana cultural, torna-
se vulnervel e corre o risco de ser objeto
de conquista. Por definio no h sadas
fceis para esse dilema, mas tambm no
penso que ele seja insupervel. Tendo em
mente que o fechamento cultural uma es-
tratgia autodestrutiva, no vejo outra sada
seno elevar as exigncias do dilogo inter-
cultural at um nvel suficientemente alto
para minimizar a possibilidade de conquista
cultural, mas no to alto que destrua a pr-
pria possibilidade do dilogo.
coNdiES Para uma
iNtErculturalidadE ProgrESSiSta
As seguintes orientaes e imperativos
transculturais devem ser aceitos por todos
os grupos sociais e culturais interessados no
dilogo intercultural.
1. Da completude incompletude. O
verdadeiro ponto de partida do dilogo
o momento de frustrao ou de desconten-
tamento com a cultura a que pertencemos.
Esse sentimento suscita a curiosidade por
outras culturas. A hermenutica diatpi-
ca aprofunda, medida que progride, a
incompletude cultural, transformando a
conscincia inicial de incompletude, em
grande medida difusa e pouco articulada,
numa conscincia autorreflexiva.
2. Das verses culturais estreitas s ver-
ses amplas. As culturas tm grande varieda-
de interna, e a conscincia dessa diversidade
aprofunda-se medida que a hermenutica
diatpica progride. Das diferentes verses de
18
Revi
sta
Dire
itos
Hum
anos
uma dada cultura, deve ser escolhida para o
dilogo intercultural a que representa o crculo
de reciprocidade mais amplo, a verso que vai
mais longe no reconhecimento do outro. No
que respeita s duas verses da cultura ociden-
tal dos Direitos Humanos, a liberal e a social-
democrtica, deve ser privilegiada a ltima,
porque amplia para os domnios econmico e
social a igualdade que a verso liberal apenas
considera legtima no domnio poltico.
3. De tempos unilaterais a tempos parti-
lhados. Pertence a cada comunidade cultural
decidir quando est pronta para o dilogo
intercultural. A cultura ocidental, durante s-
culos, no teve qualquer disponibilidade para
dilogos interculturais mutuamente acor-
dados e agora, ao ser atravessada por uma
conscincia difusa de incompletude, tende a
crer que todas as outras culturas esto igual-
mente disponveis para reconhecer a sua
incompletude e, mais do que isso, ansiosas
para se envolver em dilogos interculturais
com o Ocidente.
O direito pausa antes de avanar para
uma nova fase, bem como a reversibilidade
do dilogo so cruciais para impedir que ele
se perverta e se transforme em conquista
cultural ou em fechamento cultural recpro-
co. A ausncia ou a deficiente explicitao
de regras para o dilogo intercultural podem
transform-lo na fachada benevolente sob a
qual se escondem trocas culturais muito desi-
guais. Da mesma maneira, o estabelecimento
unilateral do fim do dilogo intercultural di-
ferente quando tomado por uma cultura do-
minante ou por uma cultura subordinada. No
primeiro caso, frequentemente manifestam-
se objetivos imperiais, como a luta contra
o terrorismo, enquanto no caso de culturas
subordinadas trata-se, muitas vezes, de auto-
defesa ante a impossibilidade de controlar mi-
nimamente os termos do dilogo. A vigilncia
poltica, cultural e epistemolgica da herme-
nutica diatpica , pois, uma condio do
xito desta. Cabe s foras, aos movimentos
e s organizaes cosmopolitas defender as
virtualidades emancipatrias da hermenutica
diatpica dos desvios reacionrios.
4. De parceiros e temas unilateralmente
impostos a parceiros e temas escolhidos
por mtuo acordo. Talvez a condio mais exigente da hermenutica diatpica seja a
ideia de que tanto os parceiros como os
temas do dilogo devem resultar de acor-
dos mtuos. No que respeita aos temas, a
convergncia muito difcil de alcanar,
porque a possibilidade de traduo inter-
cultural dos temas inerentemente proble-
mtica e porque em todas as culturas h
RefeRnCiAs
AN-NAIM, Abdullahi A. (1990), Toward an Islamic Reformation. Siracusa: Syracuse University Press.
AN-NAIM, Abdullahi A. (1992) (org.), Human Rights in Cross-Cultural Perspectives. A Quest for Consensus. Filadlfia:
University of Pennsylvania Press.
HUNTINGTON, Samuel (1993), The Clash of Civilizations?, Foreign Affairs, 72(3).
temas demasiadamente importantes para
ser includos no dilogo com outras cultu-
ras. Ainda assim, o importante para a her-
menutica diatpica a direo, a noo e
o sentimento de incompletude da cultura.
5. Da igualdade ou diferena igualdade
e diferena. O multiculturalismo progressista pressupe que o princpio da igualdade seja
prosseguido de par com o princpio do re-
conhecimento da diferena. A hermenutica
diatpica pressupe a aceitao do seguinte
imperativo transcultural: temos o direito a ser
iguais quando a diferena nos inferioriza; te-
mos o direito a ser diferentes quando a igual-
dade nos descaracteriza.
coNcluSo
Na forma como tm sido predominante-
mente concebidos, os Direitos Humanos so
um localismo globalizado, uma espcie de
esperanto que dificilmente se poder trans-
formar na linguagem quotidiana da dignidade
humana nas diferentes regies culturais do
globo. Compete hermenutica diatpica
aqui proposta transform-los numa poltica
cosmopolita que ligue, em rede, lnguas dife-
rentes de emancipao pessoal e social e as
torne mutuamente inteligveis e traduzveis.
este o projeto de uma concepo multicultu-
ral dos Direitos Humanos. Nos tempos que
correm, esse projeto pode parecer mais do
que nunca utpico. -o, certamente, to ut-
pico quanto o respeito universal pela dignida-
de humana. E nem por isso este ltimo deixa
de ser uma exigncia tica sria.
Temos o direito a ser iguais quando a diferena nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
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