SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos Humanos - o Desafio Da Interculturalidad (2009)

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REVISTA DIREITOS HUMANOS JUNHO 2009 02 NAVANETHEM PILLAY BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS LEONARDO SAKAMOTO MARCUS BARBERINO PAULO SéRGIO PINHEIRO SILVIA PIMENTEL NILMáRIO MIRANDA JOSé GERALDO DE SOUSA JúNIOR HORáCIO COSTA JOãO ROBERTO RIPPER PAULO BETTI

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos - o desafio da interculturalidad (2009)

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    vis

    ta direitos

    humanos

    junho 2009

    02

    NavaNEthEm Pillay

    BoavENtura dE SouSa SaNtoS

    lEoNardo Sakamoto marcuS BarBEriNo

    Paulo Srgio PiNhEiro

    Silvia PimENtEl

    Nilmrio miraNda

    JoS gEraldo dE

    SouSa JNior

    horcio coSta

    Joo roBErto riPPEr

    Paulo BEtti

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    A forma como os Direitos Humanos

    se transformaram, nas duas ltimas

    dcadas, na linguagem da poltica

    progressista, em quase sinnimo de eman-

    cipao social causa alguma perplexidade.

    De fato, durante muitos anos, aps a Se-

    gunda Guerra Mundial, os Direitos Humanos

    foram parte integrante da poltica da guerra

    fria, e como tal foram considerados pelas

    foras polticas de esquerda. Duplos crit-

    rios na avaliao das violaes dos Direitos

    Humanos, complacncia para com ditadores

    amigos do Ocidente, defesa do sacrifcio dos

    Direitos Humanos em nome dos objetivos

    do desenvolvimento tudo isso tornou os

    Direitos Humanos suspeitos enquanto roteiro

    emancipatrio.

    Quer nos pases centrais, quer em todo

    o mundo em desenvolvimento, as foras

    progressistas preferiram a linguagem da re-

    voluo e do socialismo para formular uma

    poltica emancipatria. E no entanto, perante

    a crise aparentemente irreversvel desses pro-

    jetos de emancipao, so essas mesmas for-

    as que recorrem hoje aos Direitos Humanos

    para reinventar a linguagem da emancipao.

    como se os Direitos Humanos fossem in-

    vocados para preencher o vazio deixado pelo

    Socialismo ou, mais em geral, pelos projetos

    emancipatrios. Podero realmente os Direi-

    tos Humanos preencher tal vazio? A minha

    resposta um sim muito condicional.

    O meu objetivo neste trabalho identifi-

    car as condies em que os Direitos Huma-

    nos podem ser colocados a servio de uma

    Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade

    BoavENtura dE SouSa SaNtoS professor

    catedrtico da Faculdade de Economia da

    Universidade de Coimbra, distinguished legal

    scholar da Faculdade de Direito da Universidade

    de Wisconsin-Madison e global legal scholar da

    Universidade de Warwick. diretor do Centro de

    Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,

    diretor do Centro de Documentao 25 de Abril da

    mesma universidade e coordenador cientfico do

    Observatrio Permanente da Justia Portuguesa.

    BoavENtura dE SouSa SaNtoS

    Este artigo foi resumido de um ensaio maior por Erasto Fortes Mendona, com autorizao do autor

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    Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade BoavENtura dE SouSa SaNtoS

    poltica progressista e emancipatria. Tal ta-

    refa exige que sejam claramente entendidas

    as trs tenses dialticas que informam a

    modernidade ocidental. A primeira ocorre en-

    tre regulao social e emancipao social. A

    segunda ocorre entre o Estado e a sociedade

    civil. A terceira ocorre entre o Estado Nao e

    o que designamos por globalizao.

    A primeira tenso dialtica entre regula-

    o social simbolizada pela crise do Estado

    intervencionista e do Estado-providncia e

    emancipao social simbolizada pela crise

    da revoluo social e do Socialismo como

    transformao radical deixou de ser, nes-

    te incio de sculo, tenso criativa. As crises

    de regulao e emancipao sociais so si-

    multneas e alimentam-se uma da outra. A

    poltica de Direitos Humanos, que pode ser

    simultaneamente uma poltica regulatria e

    uma poltica emancipatria, est armadilhada

    nessa dupla crise, ao mesmo tempo em que

    sinal do desejo de a ultrapassar.

    A segunda tenso dialtica que ocorre

    entre o Estado e a sociedade civil, apesar

    de considerado o dualismo fundador da

    modernidade ocidental, aponta como pro-

    blemticas e contraditrias a distino e a

    relao entre ambos.

    Nas ltimas dcadas, tornou-se mais

    claro que a distino entre o Estado e a so-

    ciedade civil, longe de ser um pressuposto

    da luta poltica moderna, o resultado dela.

    A tenso deixa, assim, de ser entre Estado

    e sociedade civil para ser entre interesses

    e grupos sociais que se reproduzem sob a

    forma de Estado e interesses e grupos so-

    ciais que se reproduzem melhor sob a forma

    de sociedade civil, tornando o mbito efe-

    tivo dos Direitos Humanos inerentemente

    problemtico. Historicamente, nos pases

    do Atlntico Norte, a primeira gerao dos

    Direitos Humanos, dos direitos civis e pol-

    ticos, foi concebida como luta da sociedade

    civil contra o Estado, considerado principal

    violador potencial dos Direitos Humanos.

    A segunda e terceira geraes, dos direi-

    tos econmicos, sociais e culturais e da

    qualidade de vida foram concebidas como

    atuaes do Estado, considerado principal

    garantidor dos Direitos Humanos.

    Por fim, a terceira tenso ocorre entre

    o Estado Nao e o que designamos por

    globalizao. Hoje, a eroso seletiva do Es-

    tado Nao, imputvel intensificao da

    globalizao, coloca a questo de saber se,

    quer a regulao social, quer a emancipa-

    o social, devero ser deslocadas para o

    nvel global. nesse sentido que se come-

    a a falar em sociedade civil global, gover-

    nana global, equidade global e cidadania

    ps-nacional. A efetividade dos Direitos

    Humanos tem sido conquistada em pro-

    cessos polticos de mbito nacional, e por

    isso a fragilizao do Estado Nao pode

    trazer consigo a fragilizao dos Direitos

    Humanos. Por outro lado, os Direitos Hu-

    manos aspiram hoje a um reconhecimento

    mundial e podem mesmo ser considerados

    como um dos pilares fundamentais de uma

    emergente poltica ps-nacional. A ree-

    mergncia dos Direitos Humanos hoje

    entendida como sinal do regresso do cultu-

    ral e at mesmo do religioso. Ora, falar de

    cultura e de religio falar de diferena, de

    fronteiras, de particularismos. Como pode-

    ro os Direitos Humanos ser uma poltica

    simultaneamente cultural e global?

    Nessa ordem de ideias, o meu objetivo

    desenvolver um quadro analtico capaz de

    reforar o potencial emancipatrio da poltica

    dos Direitos Humanos no duplo contexto da

    globalizao, por um lado, e da fragmentao

    cultural e da poltica de identidades, por ou-

    tro. Pretendo apontar as condies que per-

    mitem conferir aos Direitos Humanos, tanto

    como se os Direitos Humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo Socialismo ou, mais em geral, pelos projetos emancipatrios

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    o escopo global como a legitimidade local,

    para fundar uma poltica progressista de Di-

    reitos Humanos Direitos Humanos concebi-

    dos como a energia e a linguagem de esferas

    pblicas locais, nacionais e transnacionais

    atuando em rede para garantir novas e mais

    intensas formas de incluso social.

    acErca daS gloBalizaES

    Muitas definies de globalizao cen-

    tram-se na economia. Privilegio, no entanto,

    uma definio mais sensvel s dimenses

    sociais, polticas e culturais. No existe es-

    tritamente uma entidade nica chamada glo-

    balizao, mas, em vez disso, globalizaes,

    termo que, a rigor, s deveria ser usado no

    plural e que, como feixes de relaes sociais,

    envolvem conflitos, vencedores e vencidos.

    Frequentemente, o discurso sobre globaliza-

    o a histria dos vencedores.

    Proponho, pois, a seguinte definio: a

    globalizao o processo pelo qual deter-

    minada condio ou entidade local estende

    a sua influncia a todo o globo e, ao faz-lo,

    desenvolve a capacidade de designar como

    local outra condio social ou entidade rival.

    Aquilo que chamamos globalizao

    sempre a globalizao bem-sucedida de

    determinado localismo. Em termos ana-

    lticos, seria correta a utilizao do termo

    localizao em vez de globalizao para

    designar a presente situao. O motivo da

    preferncia para o ltimo termo basica-

    mente porque o discurso cientfico hege-

    mnico tende a privilegiar a histria do

    mundo na verso dos vencedores.

    Distingo quatro modos de produo da

    globalizao, os quais, em meu entender,

    do origem a quatro formas de globalizao.

    A primeira forma de globalizao o localis-

    mo globalizado. Consiste no processo pelo

    qual determinado fenmeno local globali-

    zado com sucesso, seja a atividade mundial

    das multinacionais, a transformao da ln-

    gua inglesa em lngua franca, a globalizao

    do fast food americano ou da sua msica

    popular, ou seja a adoo mundial das leis

    de propriedade intelectual ou de telecomu-

    nicaes dos EUA.

    segunda forma de globalizao chamo

    globalismo localizado. Consiste no impacto

    especfico de prticas e imperativos transna-

    cionais nas condies locais. Tais globalis-

    mos localizados incluem: desflorestamento

    e destruio macia dos recursos naturais

    para pagamento da dvida externa; tesouros

    histricos, lugares ou cerimnias religio-

    sos, artesanato e vida selvagem postos

    disposio da indstria global do turismo;

    compra pelos pases do Terceiro Mundo

    de lixos txicos produzidos nos pases capi-

    talistas centrais para gerar divisas externas;

    converso da agricultura de subsistncia

    em agricultura para exportao como parte

    do ajustamento estrutural; alteraes le-

    gislativas e polticas impostas pelos pases

    centrais ou pelas agncias multilaterais que

    eles controlam; uso de mo de obra local

    por parte de empresas multinacionais sem

    qualquer respeito por parmetros mnimos

    de trabalho (labor standards). A diviso in-

    ternacional da produo da globalizao as-

    sume o seguinte padro: os pases centrais

    especializam-se em localismos globaliza-

    dos, enquanto aos pases perifricos cabe

    to s a escolha entre vrias alternativas de

    globalismos localizados. O sistema-mundo

    uma trama de globalismos localizados e

    localismos globalizados.

    terceira forma de globalizao de-

    signo por cosmopolitismo, conjunto muito vasto e heterogneo de iniciativas, movi-

    mentos e organizaes que partilham a luta

    contra a excluso e a discriminao sociais

    e a destruio ambiental produzidas pelos

    localismos globalizados e pelos globalis-

    mos localizados, recorrendo a articulaes

    transnacionais tornadas possveis pela

    artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade

    A globalizao o processo pelo qual

    determinada condio ou entidade local estende

    a sua influncia a todo o globo

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    nica. Localismos globalizados e globalismos

    localizados so a globalizao de-cima-para-

    baixo, neoliberal ou hegemnica; cosmopo-

    litismo e patrimnio comum da humanidade

    so a globalizao de-baixo-para-cima, soli-

    dria ou contra-hegemnica.

    oS dirEitoS humaNoS como

    rotEiro EmaNciPatrio

    A complexidade dos Direitos Humanos

    reside em que eles podem ser concebidos

    e praticados, quer como forma de localis-

    mo globalizado, quer como forma de cos-

    mopolitismo ou, por outras palavras, quer

    como globalizao hegemnica, quer como

    globalizao contra-hegemnica. O meu

    objetivo especificar as condies culturais

    para que os Direitos Humanos constituam

    forma de globalizao contra-hegemnica.

    A minha tese que, enquanto forem conce-

    bidos como direitos humanos universais, os

    Direitos Humanos tendero a operar como

    localismo globalizado e, portanto, como

    forma de globalizao hegemnica. Para

    poder operar como forma de cosmopolitis-

    mo, como globalizao contra-hegemnica,

    os Direitos Humanos tm de ser reconcei-

    tualizados como multiculturais. Concebidos

    como direitos universais, como tem sucedi-

    do, os Direitos Humanos tendero sempre

    a ser instrumento do choque de civiliza-

    es, tal como o concebe Samuel Hunting-

    ton (1993), ou seja, como arma do Ocidente

    contra o resto do mundo. sabido que os

    Direitos Humanos no so universais na sua

    aplicao. Sero os direitos humanos uni-

    versais, enquanto artefato cultural, um tipo

    de invarivel cultural ou transcultural, parte

    de uma cultura global? A minha resposta

    no. Apenas a cultura ocidental tende a

    formul-los como universais. Por outras pa-

    lavras, a questo da universalidade uma

    questo particular, uma questo especfica

    da cultura ocidental.

    revoluo das tecnologias de informao e

    de comunicao. As atividades cosmopoli-

    tas incluem dilogos e articulaes Sul-Sul;

    novas formas de intercmbio operrio; redes

    transnacionais de lutas ecolgicas, pelos

    direitos da mulher, pelos direitos dos po-

    vos indgenas, pelos Direitos Humanos em

    geral; solidariedade anticapitalista entre o

    Norte e o Sul. O Frum Social Mundial que

    se reuniu em Porto Alegre a partir de 2001

    hoje a mais pujante afirmao de cosmopo-

    litismo no sentido aqui adotado.

    No uso cosmopolitismo no sentido mo-

    derno convencional. Para mim, cosmopolitis-

    mo a solidariedade transnacional entre gru-

    pos explorados, oprimidos ou excludos pela

    globalizao hegemnica. O cosmopolitismo

    que defendo o cosmopolitismo do subalter-

    no em luta contra a sua subalternizao.

    A quarta forma de globalizao refere-

    se emergncia de temas que, por sua

    natureza, so to globais como o prprio

    planeta e aos quais eu chamaria, recorren-

    do ao Direito internacional, o patrimnio

    comum da humanidade. Trata-se de temas

    como a sustentabilidade da vida humana na

    Terra, por exemplo, ou temas ambientais

    como a proteo da camada de oznio, a

    preservao da Antrtica, da biodiversida-

    de ou dos fundos marinhos. Incluo, ainda,

    nessa categoria, a explorao do espao,

    da Lua e de outros planetas, dadas as inte-

    raes globais, fsicas e simblicas, entre

    eles e o planeta Terra. A preocupao com

    o cosmopolitismo e com o patrimnio co-

    mum da humanidade conheceu grande de-

    senvolvimento nas ltimas dcadas, mas

    tambm fez surgir poderosas resistncias.

    Em face da anlise precedente, fun-

    damental distinguir entre globalizao de-

    cima-para-baixo e globalizao de-baixo-

    para-cima, entre globalizao neoliberal e

    globalizao solidria ou entre globalizao

    hegemnica e globalizao contra-hegem-

    A globalizao o processo pelo qual

    determinada condio ou entidade local estende

    a sua influncia a todo o globo

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    O conceito de Direitos Humanos assenta

    num bem-conhecido conjunto de pressupos-

    tos, todos claramente ocidentais e facilmente

    distinguveis de outras concepes de digni-

    dade humana em outras culturas.

    A marca ocidental liberal do discurso

    dominante dos Direitos Humanos pode

    ser facilmente identificada em muitos ou-

    tros exemplos: na Declarao Universal

    de 1948, elaborada sem a participao da

    maioria dos povos do mundo; no reconhe-

    cimento exclusivo de direitos individuais,

    com a nica exceo do direito coletivo

    autodeterminao; na prioridade concedida

    aos direitos civis e polticos sobre os direi-

    tos econmicos, sociais e culturais; e no

    reconhecimento do direito de propriedade

    como o primeiro e, durante muitos anos, o

    nico direito econmico.

    A histria dos Direitos Humanos no pe-

    rodo imediatamente posterior Segunda

    Guerra Mundial nos leva a concluir que as

    polticas de Direitos Humanos estiveram em

    geral a servio dos interesses econmicos e

    geopolticos dos Estados capitalistas hege-

    mnicos. Um discurso generoso e sedutor

    sobre os Direitos Humanos coexistiu com

    atrocidades indescritveis, as quais foram

    avaliadas de acordo com revoltante duplici-

    dade de critrios.

    A dualidade entre uma poltica de invisi-

    bilidade e uma poltica de supervisibilida-

    de correlacionadas aos imperativos da pol-

    tica externa norte-americana foi denunciada

    por Richard Falk (1981), ao citar a ocultao

    total pela mdia das notcias sobre o geno-

    cdio do povo maubere em Timor Leste ou a

    situao dos cerca de duzentos milhes de

    intocveis na ndia, bem como a exubern-

    cia com que os atropelos ps-revolucionrios

    dos Direitos Humanos no Ir e no Vietn fo-

    ram relatados nos Estados Unidos.

    Mas essa no toda a histria das polti-

    cas dos Direitos Humanos. Muitas pessoas e

    organizaes no governamentais tm luta-

    do pelos Direitos Humanos, correndo riscos

    em defesa de grupos oprimidos vitimizados

    por Estados autoritrios, por prticas econ-

    micas excludentes ou por polticas culturais

    discriminatrias. Tais lutas emancipatrias

    so, por vezes, explcita ou implicitamente

    anticapitalistas. Creio que a tarefa central da

    poltica emancipatria do nosso tempo con-

    siste em transformar a conceitualizao e a

    prtica dos Direitos Humanos, de um loca-

    lismo globalizado num projeto cosmopolita.

    Identifico trs premissas dessa transfor-

    mao. A primeira premissa a superao

    do debate intrinsecamente falso e prejudicial

    para uma concepo emancipatria dos Di-

    reitos Humanos sobre universalismo e rela-

    tivismo cultural. Todas as culturas so relati-

    vas, mas o relativismo cultural, como posio

    filosfica, incorreto. Por outro lado, todas

    as culturas aspiram a preocupaes e valores

    vlidos independentemente do contexto de

    seu enunciado, mas o universalismo cultural,

    como posio filosfica, incorreto.

    A segunda premissa da transformao

    cosmopolita dos Direitos Humanos que

    todas as culturas possuem concepes de

    dignidade humana, mas nem todas elas a

    concebem em termos de Direitos Humanos.

    A terceira premissa que todas as cultu-

    ras so incompletas e problemticas nas suas

    concepes de dignidade humana. Se cada

    cultura fosse to completa como se julga,

    existiria apenas uma s cultura. Aumentar a

    conscincia de incompletude cultural uma

    das tarefas prvias construo de uma con-

    cepo multicultural de Direitos Humanos.

    A quarta premissa que todas as culturas

    tm verses diferentes de dignidade humana,

    algumas mais amplas do que outras, algumas

    com um crculo de reciprocidade mais largo

    do que outras, algumas mais abertas a outras

    culturas do que outras.

    Por ltimo, a quinta premissa que

    todas as culturas tendem a distribuir as

    pessoas e os grupos sociais entre dois

    artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade

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    princpios competitivos de pertena hierr-

    quica. O princpio da igualdade e o princ-

    pio da diferena. Embora na prtica os dois

    princpios se sobreponham frequentemente,

    uma poltica emancipatria dos Direitos

    Humanos deve saber distinguir entre a luta

    pela igualdade e a luta pelo reconhecimen-

    to igualitrio das diferenas, a fim de poder

    travar ambas as lutas eficazmente.

    Essas so as premissas de um dilogo

    intercultural sobre a dignidade humana que

    pode levar, eventualmente, a uma concepo

    mestia de Direitos Humanos, uma concep-

    o que, em vez de recorrer a falsos univer-

    salismos, se organiza como uma constelao

    de sentidos locais, mutuamente inteligveis,

    e que se constitui em rede de referncias nor-

    mativas capacitantes.

    a hErmENutica diatPica

    Podemos compreender topoi como

    lugares comuns retricos mais abrangen-

    tes de determinada cultura, que funcionam

    como premissas de argumentao que, por

    sua evidncia, no se discutem e tornam

    possveis a produo e a troca de argu-

    mentos. Compreender determinada cultura

    a partir dos topoi de outra cultura tarefa muito difcil, para a qual proponho uma her-

    menutica diatpica.

    A hermenutica diatpica baseia-se na

    ideia de que os topoi de uma dada cultura,

    por mais fortes que sejam, so to incom-

    pletos quanto a prpria cultura a que perten-

    cem. Tal incompletude no visvel a partir

    do interior dessa cultura, uma vez que a as-

    pirao totalidade induz a que se tome a

    parte pelo todo. O objetivo da hermenutica

    diatpica no , porm, atingir a completude

    objetivo inatingvel mas, pelo contrrio,

    ampliar ao mximo a conscincia de incom-

    pletude mtua, por meio de um dilogo que

    se desenrola, por assim dizer, com um p

    numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o

    seu carter dia-tpico.

    Um exemplo de hermenutica diatpi-

    ca a que pode ter lugar entre o topos dos

    Direitos Humanos na cultura ocidental, o to-

    pos do dharma na cultura hindu e o topos

    da umma na cultura islmica. Vistos a partir

    do topos do dharma, os Direitos Humanos

    so incompletos, na medida em que no

    estabelecem a ligao entre a parte (o indi-

    vduo) e o todo (o cosmos). Vista a partir do

    dharma, a concepo ocidental dos Direitos

    Humanos est contaminada por uma simetria

    muito simplista e mecanicista entre direitos

    e deveres. Apenas garante direitos queles a

    quem pode exigir deveres. Por outro lado e

    inversamente, visto a partir do topos dos Di-

    reitos Humanos, o dharma tambm incom-

    pleto, dado o seu enviesamento fortemente

    no dialtico a favor da harmonia, ocultando,

    assim, injustias e negligenciando totalmen-

    te o valor do conflito como caminho para

    uma harmonia mais rica. Alm disso, o dhar-

    ma no est preocupado com os princpios

    da ordem democrtica, com a liberdade e a

    autonomia, e tende a esquecer que o sofri-

    mento humano possui uma dimenso indi-

    vidual irredutvel: no so as sociedades que

    sofrem, mas sim os indivduos.

    A mesma hermenutica diatpica pode

    ser ensaiada entre o topos dos Direitos Huma-

    nos e o topos da umma na cultura islmica,

    que se refere sempre comunidade tnica,

    lingustica ou religiosa de pessoas que so

    o objeto do plano divino de salvao. Vista a

    partir do topos da umma, a incompletude dos

    Direitos Humanos individuais reside no fato

    de, com base neles, ser impossvel fundar os

    laos e as solidariedades coletivas, sem as

    quais nenhuma sociedade pode sobreviver,

    e muito menos prosperar. A dificuldade da

    concepo ocidental de Direitos Humanos

    em aceitar direitos coletivos de grupos so-

    ciais ou povos um exemplo especfico de

    uma dificuldade muito mais ampla: a dificul-

    dade em definir a comunidade como arena

    de solidariedades concretas, campo poltico

    Um discurso generoso e sedutor sobre os Direitos Humanos coexistiu com atrocidades indescritveis

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    dominado por uma obrigao poltica hori-

    zontal. Esta ideia de comunidade, central para

    Rousseau, foi varrida do pensamento liberal,

    que reduziu toda a complexidade societal

    dicotomia Estado/sociedade civil.

    Mas, por outro lado, a partir do to-

    pos dos Direitos Humanos individuais,

    fcil concluir que a umma sublinha de-

    masiadamente os deveres em detrimen-

    to dos direitos e por isso tende a perdoar

    desigualdades que seriam de outro modo

    inadmissveis, como a desigualdade entre

    homens e mulheres ou entre muulmanos e

    no muulmanos. A hermenutica diatpica

    mostra-nos que a fraqueza fundamental da

    cultura ocidental consiste em estabelecer

    dicotomias demasiadamente rgidas entre

    o indivduo e a sociedade, tornando-se,

    assim, vulnervel ao individualismo posses-

    sivo, ao narcisismo, alienao e anomia.

    De igual modo, a fraqueza fundamental das

    culturas hindu e islmica deve-se ao fato de

    nenhuma delas reconhecer que o sofrimen-

    to humano tem uma dimenso individual

    irredutvel, a qual s pode ser adequada-

    mente considerada numa sociedade no

    hierarquicamente organizada.

    O reconhecimento de incompletudes m-

    tuas condio sine qua non de um dilogo

    intercultural.

    Um exemplo de hermenutica diatpica

    entre a cultura islmica e a cultura ociden-

    tal dos Direitos Humanos a proposio de

    Abdullahi An-naim (1990; 1992) de uma

    via per mezzo identificando reas de conflito entre o sistema jurdico religioso do Isl, a

    Sharia, e os critrios ocidentais dos Direitos

    Humanos e, sugerindo uma reconciliao

    ou relao positiva entre os dois sistemas.

    Compreendendo como problemtica na

    Sharia histrica a excluso das mulheres e

    dos no muulmanos do princpio da reci-

    procidade, prope a Reforma Islmica,

    assentada numa reviso evolucionista das

    fontes do Islamismo, que relativiza o con-

    texto histrico especfico em que a Sharia

    foi criada pelos juristas dos sculos VIII e

    IX. No contexto atual, haveria todas as con-

    dies para uma concepo mais alargada

    da igualdade e da reciprocidade a partir das

    fontes cornicas. Estaria inclinado a sugerir

    que, no contexto muulmano, a energia mo-

    bilizadora necessria para um projeto cos-

    mopolita dos Direitos Humanos poder ge-

    rar-se mais facilmente num quadro religioso

    moderado. Se for esse o caso, a abordagem

    de An-naim muito promissora.

    Na ndia, uma via per mezzo semelhante

    est a ser prosseguida por alguns grupos de

    defesa dos Direitos Humanos, particularmen-

    te por aqueles que centram a sua ao na de-

    fesa dos intocveis.

    Por sua prpria natureza, a hermenuti-

    ca diatpica um trabalho de colaborao

    intercultural e no pode ser levada a cabo

    a partir de uma nica cultura ou por uma

    s pessoa. Na minha perspectiva, An-naim

    aceita demasiadamente fcil e acriticamen-

    te a ideia de Direitos Humanos universais.

    Esse autor, ao mesmo tempo em que pro-

    pe uma abordagem evolucionista crtica

    e contextual da tradio islmica, faz uma

    interpretao da Declarao Universal dos

    Direitos Humanos surpreendentemente ana-

    crnica e ingenuamente universalista.

    A hermenutica diatpica conduzida por

    An-naim, a partir da perspectiva da cultura

    islmica e as lutas pelos Direitos Humanos

    organizadas pelos movimentos feministas

    islmicos, seguindo as ideias da Reforma

    islmica por ele propostas, tm de ser

    complementadas por uma hermenutica

    diatpica conduzida a partir da perspectiva

    de outras culturas e, nomeadamente, da

    perspectiva da cultura ocidental dos Direi-

    tos Humanos. Este provavelmente o ni-

    co meio de integrar na cultura ocidental a

    noo de direitos coletivos, os direitos da

    artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade

    No contexto muulmano, a energia mobilizadora necessria para um projeto cosmopolita de Direitos Humanos poder gerar-se mais facilmente num quadro religioso moderado

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    natureza e das futuras geraes, bem como

    a noo de deveres e responsabilidades para

    com entidades coletivas, sejam elas a co-

    munidade, o mundo ou mesmo o cosmos.

    aS dificuldadES da

    iNtErculturalidadE ProgrESSiSta

    Que possibilidades existem para um di-

    logo intercultural quando uma das culturas

    em presena foi moldada por massivas e

    continuadas agresses dignidade humana

    perpetradas em nome da outra cultura? O

    dilema cultural que se levanta o seguinte:

    dado que, no passado, a cultura dominante

    tornou impronunciveis algumas das as-

    piraes dignidade humana por parte da

    cultura subordinada, ser agora possvel

    pronunci-las no dilogo intercultural sem,

    ao faz-lo, justificar e mesmo reforar a

    subordinao?

    Um dos mais problemticos pressupos-

    tos da hermenutica diatpica a concepo

    das culturas como entidades incompletas.

    Pode se argumentar que, pelo contrrio, s

    culturas completas podem participar em di-

    logos interculturais sem correr o risco de

    ser descaracterizadas ou mesmo absorvidas

    por culturas mais poderosas. Uma variante

    desse argumento reside na ideia de que so-

    mente a uma cultura poderosa e historica-

    mente vencedora, como o caso da cultura

    ocidental, pode atribuir-se o privilgio de

    se autodeclarar incompleta, sem, com isso,

    correr o risco de dissoluo. Assim sendo, a

    ideia de incompletude cultural ser, afinal, o

    instrumento perfeito de hegemonia cultural

    e, portanto, uma armadilha quando atribuda

    a culturas subordinadas.

    As culturas dos povos indgenas das

    Amricas, da Austrlia, da Nova Zelndia, da

    ndia, dentre outras, foram to agressivamen-

    te amputadas e descaracterizadas pela cul-

    tura ocidental que, recomendar-lhes agora

    a adoo da ideia de incompletude cultural,

    como pressuposto da hermenutica diatpi-

    ca, um exerccio macabro, por mais eman-

    cipatrias que sejam as suas intenes.

    O dilema da completude cultural pode

    ser assim formulado: se uma cultura se

    considera inabalavelmente completa, ento

    no ter nenhum interesse em envolver-se

    em dilogos interculturais; se, pelo contr-

    rio, admite, como hiptese, a incompletude

    que outras culturas lhe atribuem e aceita

    o dilogo, perde confiana cultural, torna-

    se vulnervel e corre o risco de ser objeto

    de conquista. Por definio no h sadas

    fceis para esse dilema, mas tambm no

    penso que ele seja insupervel. Tendo em

    mente que o fechamento cultural uma es-

    tratgia autodestrutiva, no vejo outra sada

    seno elevar as exigncias do dilogo inter-

    cultural at um nvel suficientemente alto

    para minimizar a possibilidade de conquista

    cultural, mas no to alto que destrua a pr-

    pria possibilidade do dilogo.

    coNdiES Para uma

    iNtErculturalidadE ProgrESSiSta

    As seguintes orientaes e imperativos

    transculturais devem ser aceitos por todos

    os grupos sociais e culturais interessados no

    dilogo intercultural.

    1. Da completude incompletude. O

    verdadeiro ponto de partida do dilogo

    o momento de frustrao ou de desconten-

    tamento com a cultura a que pertencemos.

    Esse sentimento suscita a curiosidade por

    outras culturas. A hermenutica diatpi-

    ca aprofunda, medida que progride, a

    incompletude cultural, transformando a

    conscincia inicial de incompletude, em

    grande medida difusa e pouco articulada,

    numa conscincia autorreflexiva.

    2. Das verses culturais estreitas s ver-

    ses amplas. As culturas tm grande varieda-

    de interna, e a conscincia dessa diversidade

    aprofunda-se medida que a hermenutica

    diatpica progride. Das diferentes verses de

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    uma dada cultura, deve ser escolhida para o

    dilogo intercultural a que representa o crculo

    de reciprocidade mais amplo, a verso que vai

    mais longe no reconhecimento do outro. No

    que respeita s duas verses da cultura ociden-

    tal dos Direitos Humanos, a liberal e a social-

    democrtica, deve ser privilegiada a ltima,

    porque amplia para os domnios econmico e

    social a igualdade que a verso liberal apenas

    considera legtima no domnio poltico.

    3. De tempos unilaterais a tempos parti-

    lhados. Pertence a cada comunidade cultural

    decidir quando est pronta para o dilogo

    intercultural. A cultura ocidental, durante s-

    culos, no teve qualquer disponibilidade para

    dilogos interculturais mutuamente acor-

    dados e agora, ao ser atravessada por uma

    conscincia difusa de incompletude, tende a

    crer que todas as outras culturas esto igual-

    mente disponveis para reconhecer a sua

    incompletude e, mais do que isso, ansiosas

    para se envolver em dilogos interculturais

    com o Ocidente.

    O direito pausa antes de avanar para

    uma nova fase, bem como a reversibilidade

    do dilogo so cruciais para impedir que ele

    se perverta e se transforme em conquista

    cultural ou em fechamento cultural recpro-

    co. A ausncia ou a deficiente explicitao

    de regras para o dilogo intercultural podem

    transform-lo na fachada benevolente sob a

    qual se escondem trocas culturais muito desi-

    guais. Da mesma maneira, o estabelecimento

    unilateral do fim do dilogo intercultural di-

    ferente quando tomado por uma cultura do-

    minante ou por uma cultura subordinada. No

    primeiro caso, frequentemente manifestam-

    se objetivos imperiais, como a luta contra

    o terrorismo, enquanto no caso de culturas

    subordinadas trata-se, muitas vezes, de auto-

    defesa ante a impossibilidade de controlar mi-

    nimamente os termos do dilogo. A vigilncia

    poltica, cultural e epistemolgica da herme-

    nutica diatpica , pois, uma condio do

    xito desta. Cabe s foras, aos movimentos

    e s organizaes cosmopolitas defender as

    virtualidades emancipatrias da hermenutica

    diatpica dos desvios reacionrios.

    4. De parceiros e temas unilateralmente

    impostos a parceiros e temas escolhidos

    por mtuo acordo. Talvez a condio mais exigente da hermenutica diatpica seja a

    ideia de que tanto os parceiros como os

    temas do dilogo devem resultar de acor-

    dos mtuos. No que respeita aos temas, a

    convergncia muito difcil de alcanar,

    porque a possibilidade de traduo inter-

    cultural dos temas inerentemente proble-

    mtica e porque em todas as culturas h

    RefeRnCiAs

    AN-NAIM, Abdullahi A. (1990), Toward an Islamic Reformation. Siracusa: Syracuse University Press.

    AN-NAIM, Abdullahi A. (1992) (org.), Human Rights in Cross-Cultural Perspectives. A Quest for Consensus. Filadlfia:

    University of Pennsylvania Press.

    HUNTINGTON, Samuel (1993), The Clash of Civilizations?, Foreign Affairs, 72(3).

    temas demasiadamente importantes para

    ser includos no dilogo com outras cultu-

    ras. Ainda assim, o importante para a her-

    menutica diatpica a direo, a noo e

    o sentimento de incompletude da cultura.

    5. Da igualdade ou diferena igualdade

    e diferena. O multiculturalismo progressista pressupe que o princpio da igualdade seja

    prosseguido de par com o princpio do re-

    conhecimento da diferena. A hermenutica

    diatpica pressupe a aceitao do seguinte

    imperativo transcultural: temos o direito a ser

    iguais quando a diferena nos inferioriza; te-

    mos o direito a ser diferentes quando a igual-

    dade nos descaracteriza.

    coNcluSo

    Na forma como tm sido predominante-

    mente concebidos, os Direitos Humanos so

    um localismo globalizado, uma espcie de

    esperanto que dificilmente se poder trans-

    formar na linguagem quotidiana da dignidade

    humana nas diferentes regies culturais do

    globo. Compete hermenutica diatpica

    aqui proposta transform-los numa poltica

    cosmopolita que ligue, em rede, lnguas dife-

    rentes de emancipao pessoal e social e as

    torne mutuamente inteligveis e traduzveis.

    este o projeto de uma concepo multicultu-

    ral dos Direitos Humanos. Nos tempos que

    correm, esse projeto pode parecer mais do

    que nunca utpico. -o, certamente, to ut-

    pico quanto o respeito universal pela dignida-

    de humana. E nem por isso este ltimo deixa

    de ser uma exigncia tica sria.

    Temos o direito a ser iguais quando a diferena nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.

    artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade