Universidade Estadual de Maringá 07 a 09 de Maio de 2012
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RAQUEL, MARIA E INÊS: TRÊS MULHERES NO COTIDIANO
EDUCACIONAL DE CLARA DE ASSIS
DIAS, Ivone Aparecida (UEM)1
OLIVEIRA, Terezinha (UEM)2
O objetivo deste texto é refletir sobre a importância educacional que Raquel,
esposa de Jacó – personagens do Antigo Testamento –, Maria, a mãe de Jesus, e Inês3,
mártir da Igreja cristã primitiva, exerceram na vida de Clara de Assis no século XIII,
influenciando-a em suas atitudes, em seu comportamento e, portanto, em sua prática
educativa.
Um dos pressupostos para esta reflexão é que os homens nunca vivem
completamente imersos em seu presente, mas transitam por diferentes temporalidades:
pela memória, no passado; pela vivência, no presente; pela expectativa, no futuro, como
insiste Santo Agostinho:
[...] Existem na minha alma estas três espécies de tempo e não as vejo em outro lugar: memória presente respeitante às coisas passadas, visão presente respeitante às coisas presentes, expectação presente respeitante às coisas futuras. Se me permitem dizê-lo, vejo e afirmo três tempos, são três (SANTO AGOSTINHO, 2008, XI, XX, 26).
Analisando os escritos de Clara verificamos que ela não desconsidera essas três
dimensões de temporalidade registradas por Santo Agostinho: guarda na memória a
atuação histórica de grandes personagens bíblicas – toma-os como exemplos; atua, age a
partir da consideração de sua realidade presente, das situações com as quais se defronta;
vive na expectativa de uma vida futura, a vida eterna, motivação maior para sua atuação
1 Doutoranda em Educação / PPP-UEM. 2 Professora Orientadora / PPE-UEM. 3 É importante atentar para o fato de que, no texto, nos referiremos a Inês e a Inês de Praga. A primeira, mártir da Igreja cristã primitiva, é tomada por Clara de Assis como modelo de fé, de fortaleza, de perseverança para ensinar a Inês de Praga, sua contemporânea, como se comportar diante de algumas dificuldades que enfrentava em relação à cúria romana.
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em seu presente. Nesse sentido, mulheres do Antigo Testamento (Raquel), do Novo
Testamento (Maria) e da Igreja cristã primitiva (Inês) são consideradas por ela como
exemplos, já que teriam vivido de tal forma que se tornaram memoráveis para os
homens, devido à sua fé e ao seu comportamento, sendo este, expressão daquela.
No período medieval era comum a consideração de personagens bíblicas como
modelos. Se percorrermos as páginas das obras dos autores daquele tempo, facilmente
observaremos tal fato, tanto em obras de autores leigos como em escritos de mulheres e
homens religiosos. Objetivava-se, com a propagação do modo de ser das personagens
de épocas anteriores, a produção e desenvolvimento de um modus vivendi. No século
IX, Dhuoda, por exemplo, uma dama da casa dos carolíngios, ao escrever o “Manuel
pour mon fils”, retirou da Bíblia trechos das histórias de personagens que poderiam
contribuir com o processo educacional de seu filho, Guilherme. Ela apresenta a
Guilherme o exemplo de personagens que ele deveria imitar, assim como lhe narra
histórias de figuras cujo modo de ser seu primogênito não deveria seguir. Para a nobre
Dhuoda, o filho obediente e respeitoso para com o pai, como Sem, filho de Noé, era
premiado com vida longa e muitos bens. Ao contrário, o filho rebelde sofria uma morte
horrenda além de ser privado da glória do Reino (DHUODA, 1975).
Nos primeiros séculos do cristianismo, nas Regras e obras dirigidas
especialmente às mulheres e homens religiosos, seus autores também fundamentavam
seus ensinamentos tomando como exemplos os modelos de vida de personagens das
Sagradas Escrituras. Ora consideravam suas histórias, ora simplesmente utilizavam
trechos de suas falas para referendar a mensagem desejada ou o ensinamento a ser
transmitido. Ou seja, a vida virtuosa e exemplar de homens e mulheres do passado e
suas relações com Deus, transmitida de geração em geração e registrada na Bíblia, era
considerada como fonte educacional. A Bíblia era, em suma, a autoridade que
sustentava a atividade educacional; seus ensinamentos davam respaldo àquilo que os
homens da Igreja desejavam ensinar por meio de seus escritos ou de suas pregações.
Essa tradição de buscar nas personagens bíblicas os modelos desejados de
comportamento, de vida virtuosa – e também de apresentar aqueles que não deviam ser
imitados, como Eva, por exemplo, por terem tido um comportamento reprovado –
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permaneceu viva em todos os séculos medievais4. Assim, no século XIII, na Itália,
encontramos nos escritos de Clara de Assis a presença marcante de três mulheres que
sustentaram sua atuação como educadora: Raquel, Maria e Inês. Dessas três, a mais
citada é, seguramente, Maria. Entretanto, é importante ressaltar que, além da referência
direta a essas pessoas, nas Cartas de Clara a Inês de Praga, também encontramos muitas
citações de falas que nos remetem a outras figuras bíblicas, como Ana, Jó e Paulo de
Tarso (ou São Paulo). Assim, por exemplo, ao expressar sua alegria pela opção de Inês,
utiliza palavras que se aproximam muito daquelas ditas por Ana em seu cântico de
louvor (cf. I Sm 2,1-10); quando respondeu a Inês sobre os jejuns, aconselhando-lhe
prudência, Clara cita uma passagem do livro de Jó (cf. Jó 6, 12) ao dizer o seguinte:
“Entretanto, como não temos carne de bronze nem a robustez de uma rocha [...]” (3 CtI
38, grifos na obra). Quanto a Paulo de Tarso, são muitos os trechos de suas cartas que
são utilizados por Clara para validar sua ação educativa.
Em todos os escritos de Clara, ou seja, na Regra, no Testamento, na Bênção e
em suas Cartas, é possível observar uma grande preocupação e uma clareza evidente
sobre a importância de ser exemplo, tanto para as Irmãs quanto para as pessoas que nem
sequer integravam diretamente a sua comunidade. No Testamento ela afirma o seguinte:
“Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os
outros, mas também para nossas irmãs, que ele vai chamar para nossa vocação, para que
também elas sejam espelho para os que vivem no mundo” (TestC 3).
Em outro trecho também podemos observar a preocupação de Clara em relação à
necessidade da abadessa ser exemplar para as outras integrantes da comunidade. Para
ela, aquela que estivesse a serviço das demais Irmãs – como se refere à abadessa
(BARTOLI, 1998) – devia “[...] estar à frente das outras Irmãs mais por virtudes e
santos costumes do que pelo ofício, de forma que suas Irmãs, provocadas por seu
exemplo, não obedeçam tanto por dever como por amor” (TestC 61-62).
Também em outros textos do período e referentes à Clara – como a Bula e o
Processo de Canonização e as Legendas – o destaque que aqueles que falaram dela 4 Aliás, em todas as épocas históricas recorre-se a exemplos de homens reais ou lendários para modelar o comportamento de seus pares. O que representam as personagens de Homero, por exemplo, na Antiguidade grega?
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deram à sua preocupação com a exemplaridade é significativo quando intencionamos
compreender seu papel como educadora em seu tempo. Irmã Filipa, a terceira das
testemunhas ouvidas em seu processo de canonização, se refere ao comportamento
exemplar de Clara como mulher de oração e como serva das demais:
Era assídua na oração, e tanto seu comportamento como seu falar eram sobre coisas de Deus, tanto que nunca prestava seus ouvidos às coisas mundanas. [...] Punha as outras Irmãs à sua frente, fazendo-se inferior a todas, servindo-as, derramando água em suas mãos e até lavando os pés das serviçais (ProcC 3, 3; 9).
A leitura que fazemos da preocupação de Clara com a exemplaridade é de que a
mesma buscava os fundamentos de sua prática educativa nas figuras bíblicas que lhe
eram acessíveis e que lhe serviram como modelos em seu próprio processo de formação
como religiosa. Ou seja, Clara, mulher que expressa de maneira muito viva as
características de seu tempo, ao se comprometer intensamente com a educação “dos
outros e de suas Irmãs” (TestC 3), busca os fundamentos de sua formação pessoal e de
sua prática educativa nos elementos legados pela tradição cristã e, portanto, na Sagrada
Escritura.
Segundo Rops (1993, p. 57), uma das características da religião cristã nos
grandes séculos medievais – o que certamente inclui o século de Clara (XIII) –, era o
seu “[...] caráter profundamente escriturístico [...]. A Sagrada Escritura, a Bíblia, é sem
dúvida alguma conhecida pela generalidade dos homens, ao menos por alto”.
O autor diz, também, que há uma prova evidente de que a generalidade dos
cristãos conhecia a Bíblia, pelo menos em linhas gerais:
A prova de que os cristãos da Idade Média conheciam as Sagradas Escrituras está nas esculturas e nos vitrais das catedrais. Por que motivo os mestres-de-obras teriam multiplicado as páginas dessas “bíblias de pedras” e desses evangelhos transparentes, se os que freqüentavam esses edifícios só podiam ver nelas um enigma? Já se disse que a catedral “falava aos iletrados”, o que é o mesmo que admitir que estes eram capazes de compreender a sua linguagem (ROPS, 1993, p. 58).
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Tratando da arte dos vitrais, é expressiva a consciência de Teófilo, um monge
alemão do século XII, a respeito da função educacional dessa arte nas igrejas:
[...] Tudo ali deve deslumbrar a vista humana; os tectos devem assemelhar-se a brocados; as paredes lembrarem o Paraíso; a profusão da luz das janelas maravilhar, graças à infinda beleza dos vitrais, a variedade e riqueza da composição. Tratando-se da Paixão do Senhor na arte, é preciso que as almas piedosas dos observadores se sintam, na Sua presença, aguilhoadas pela dor. Se contemplarem os tormentos que os santos sofreram nos corpos e as recompensas de vida eterna que receberam, hão-de resolver-se fàcilmente a ter melhor vida. Se virem como são grandes as alegrias do Céu e tormentosas as chamas do Inferno, hão-de ser animadas pela esperança das suas boas acções, tomadas pelo medo, ao pensar nos seus pecados (apud BROOKE, 1972, p. 112-113)5.
Desse modo, as artes dos vitrais eram inspiradas na narração de acontecimentos
bíblicos, como a Paixão de Cristo e em outros ensinamentos cristãos, como a cultura
hagiográfica. Conforme Gombrich (1995), no século VI o papa Gregório Magno já
havia dito que a pintura podia fazer por aqueles que não eram letrados, o que a escrita
fazia pelos letrados. Desse modo, entende-se que aqueles que não podiam ler a Bíblia
pelas letras, liam-na pelas imagens ricamente trabalhadas nos vitrais das igrejas.
Essas reflexões evidenciam que, de uma forma ou de outra, pela letra ou pela
imagem (pintura ou escultura), os ensinamentos bíblicos direcionavam a vida cotidiana
dos homens, ensinando-lhes os valores cristãos e como vivê-los em sociedade. Assim,
não se pode pensar a História da Educação na Idade Média sem o seu apoio maior, a
Bíblia.
No caso de Clara, a abundância de passagens bíblicas em seus escritos indica a
sua familiaridade – direta ou indiretamente - com a Sagrada Escritura. Esta é uma das
fontes onde ela buscava os elementos necessários para a sua própria formação e a de
suas Irmãs, próximas ou distantes, como é o caso de Inês de Praga (na Boêmia). Ao
saber que esta enfrentava dificuldades com o papado em relação à sua opção por uma
vida de pobreza radical, Clara buscou em Raquel – cuja história é narrada no livro do
5 Nesta passagem é muito nítida a concepção do autor em relação à importância do processo educacional no presente articulado à expectação do futuro, ainda que seja um futuro escatológico, que, para aquele contexto, é muito significativo.
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Gênesis (Gên 29-46) – um modelo para indicar-lhe a necessidade da perseverança, da
firmeza de propósito diante de sua escolha. Desse modo, na Segunda Carta a Inês, Clara
diz:
[...] Lembre-se da sua decisão como uma segunda Raquel6: não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe (cf. Ct 3,4) [...]. Não confie em ninguém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho (cf. Rom 14, 13) [...] (2CtI 11.14, grifos na obra).
Observamos, assim, que Inês de Praga e Clara estavam diante de uma situação
que despertava grande apreensão devido a algumas imposições papais em relação à
vivência da pobreza7. Tal como uma diretora espiritual e como alguém que se sentia
responsável pela disseminação de comunidades com o mesmo ideal dela
(ROTZETTER, 1994), visando fortalecer a decisão da amiga, Clara escolhe uma figura
de mulher do Antigo Testamento de grande relevo para os cristãos no período medieval:
Raquel (TRIVIÑO, 1984). Esta, apesar de todos os obstáculos, não vacilou, não
fraquejou até conseguir alcançar seus objetivos: primeiramente, tornar-se esposa de
Jacó, em seguida, conceber, tornar-se mãe, depois de uma longa espera e muitas
humilhações.
Entre as grandes matriarcas cujas histórias são narradas no Antigo Testamento,
Raquel se destaca por sua constância na fé, por seu comportamento perseverante em
busca de seus objetivos (BRUNELLI, 1998).
Sara parece estar conformada com sua sorte e quem deseja filhos é Abraão (cf. Gn 15,2; 16,1s). Também Rebeca é estéril, mas é Isaac quem implora ao Senhor que a torne fecunda (cf. Gn, 25,21). Raquel, ao contrário, busca ativamente realizar seu grande desejo de ser mãe. Suplica a Deus e insiste com Jacó, preferindo a morte a permanecer estéril (cf. Gn 30, 1.22) (BRUNELLI, 1998, p. 141).
6 É interessante observar que Clara apenas menciona o nome de Raquel, sem entrar em pormenores a respeito de sua história Certamente, os contratempos da vida de Raquel narrados no Antigo Testamento eram conhecidos por Inês. Entretanto, relembrada por Clara no contexto de suas próprias vivências, a história de Raquel ganha novo sentido para Inês. 7 Não apresentaremos os pormenores desse debate neste artigo por entendermos que escapa ao objetivo estabelecido.
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Eis, portanto, a razão por que Clara teria citado Raquel e não outra matriarca
para assinalar a Inês como ela também deveria manter-se firme em sua escolha frente a
qualquer adversidade.
Herdeira de uma longa tradição e em sintonia com o seu tempo, essencialmente
marcado pela religiosidade cristã, outra figura feminina citada abundantemente por
Clara em seus escritos é Maria, a mãe de Jesus. Para Rops (1993), o culto à Maria é
uma importante característica da religião medieval. Contudo, para ele, esse culto não se
originou entre os séculos XI e o XIII, ou seja, não foi estruturado nesse contexto, mas
esteve presente desde os primeiros séculos cristãos: “[...] Nascida desde as origens da
Igreja, a devoção a Nossa Senhora não cessou de crescer ao longo dos séculos [...]”
(ROPS, 1993, p. 62).
Santo Agostinho, no século V, em sua obra Acerca de la santa virginidad,
exaltou a figura de Maria como aquela que mais perfeitamente realizara em sua vida a
vontade de Deus, tornando-se, por isso, exemplo para aquelas mulheres que se decidiam
pela vida religiosa. No século VI, ao escrever a Regla o libro de la formacion de las
virgenes y desprecio del mundo, dirigido à sua irmã Florentina, o bispo de Sevilha,
Leandro, apresentou Maria, a mãe de Jesus, como o exemplo maior a ser imitado pelas
mulheres virgens para viverem como esposas de Cristo:
Medita como uma paloma, piadosa virgen, y aviva em tu corazón el pensamiento de la gloria perdurable que te aguarda a ti, que no transigiste con la carne y con la sangre, que no abandonaste a la corrupción esse cuerpo santísimo. [...] con que expectación te aguardará todo el coro de las vírgenes al verte subir apresurada la escalinata altísima que conduce al cielo, por los mismos peldaños por los que ellas llegaron a Cristo! Allí está Santa Maria, la Madre del Señor, que no cabe em sí de gozo. Ella es la cima y el modelo de la virginidad [...] (SAN LEANDRO, 1949, p. 928).
Esses dois exemplos são esclarecedores no sentido de evidenciar que o culto a
Maria, quando chegou ao século XIII, já tinha uma longa tradição. Entretanto, como o
próprio Rops (1993) salienta,
[...] A partir do século XI [...] no Ocidente [...] se forma uma verdadeira corrente de amor dirigida à Mãe de Jesus. Por quê? Pela
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mesma razão por que cresceu o culto dos santos e se acentuaram os aspectos humanos de Cristo: o desejo de contar com mediadores entre o homem e a temível majestade de Deus; quem melhor do que a Mãe poderia interceder junto do Filho? (ROPS, 1993, p. 62-63).
Conforme este autor, geralmente se atribui a São Bernardo, a São Boaventura e à
pregação dos mendicantes a responsabilidade pela grandiosa corrente mariana
desenvolvida no “tempo das catedrais e das cruzadas” (ROPS, 1993). Entretanto, para
ele, na verdade, do século XI ao XIII “[...] não há nenhuma figura espiritual [...] que
não tenha trabalhado para reforçá-la e difundi-la” (ROPS, 1993, p. 63). Clara não é
exceção, afinal, em todos os seus escritos a referência à Maria está presente. Do mesmo
modo, também é possível observar o destaque da espiritualidade mariana de Clara em
outros documentos do período, como o seu Processo a Bula de Canonização e a
Legenda.
Um aspecto que tem sido bastante relevante na historiografia referente à Clara é
a consideração feita por ela da maternidade espiritual das religiosas a partir da
maternidade de Maria. É o que podemos observar em Zavalloni (1995), Bartoli (1998),
Brunelli (1998), Triviño (2003), entre outros. Nos estudos desses autores, Clara é
mostrada como exemplar na identificação com Maria. Para a religiosa de São Damião,
assim como Maria gerara Cristo materialmente, as Irmãs deviam imitá-la de tal modo
que fossem capazes de gerá-lo espiritualmente, tornando-se, desse modo, mães
espirituais. Clara entendia, com base no Evangelho que diz “Aquele que fizer a vontade
de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12, 50;
Mc 3, 35), que as religiosas deviam basear suas vidas na escuta da palavra de Deus e na
vivência da mesma, como fizera Maria. Para ela, aquele que escutava a Palavra de Deus
Pai era capaz de gerar em sua vida o Deus Filho pobre.
No Processo de Canonização de Clara, muitas de suas Irmãs falam da maneira
como ela teria concretizado em sua vida, no mosteiro, o exemplo de Maria, em especial,
evidenciara essa exemplaridade no serviço às demais Irmãs. A nosso ver, esse serviço
era compreendido como uma forma de gerar espiritualmente o Cristo, visto que era, ao
mesmo tempo, imitar Maria como a servidora que gerara o filho de Deus que, por sua
vez, também dera o exemplo de serviço.
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Muitos outros aspectos podem ser destacados da espiritualidade mariana de
Clara. Contudo, nosso objetivo neste artigo é tão somente indicar que, se para Clara,
Maria era um modelo a ser imitado, logo, a mãe de Jesus teria desempenhado um papel
de extrema relevância na atividade educacional dela, seja no sentido de procurar imitá-
la, seja na exortação às Irmãs para viverem tal como Maria.
No contexto dessas discussões é fundamental salientar que o aspecto que nos
interessa diretamente no interior dessas reflexões é compreender o sentido educacional
do papel desempenhado por Clara em suas relações concretas com os homens de seu
tempo. Portanto, é preciso atentar para o fato de que a sua devoção à Maria e à segunda
Pessoa da Trindade, o Filho, está diretamente relacionada aos movimentos espirituais de
sua época. Como afirma Le Goff (2010, p. 38), esse período, o século XIII, foi um
século especial no que se refere ao desenvolvimento do culto ao Deus Filho. Embora
durante toda a Idade Média a fé no Deus que se encarnou e viveu entre os homens
tivesse acompanhado as ações humanas, no século XIII, a pessoa do Filho atraiu “[...]
mais as orações e a devoção dos fiéis”. Nesse contexto, coexistiram duas devoções: a do
Cristo sofredor e a do Cristo glorioso da Eucaristia (LE GOFF, 2010). Atuante em seu
mundo, em seus escritos, ao lado da devoção à Maria, Clara expressa também essas
duas devoções às quais se refere Le Goff.
Quando consideramos o aspecto educacional dessas devoções é possível destacar
que, para os homens medievais, a fé era o componente motivacional de suas vidas.
Naquele período o homem era essencialmente um ser religioso ou um homem de fé.
“[...] tudo e todos só existem em função da fé cristã. Ela é a pedra angular do edifício”
(ROPS, 1993, p. 43). Ou, como diz Le Goff (2010, p. 82), referindo-se ao mundo
feudal: “ [...] penso que nada de importante se passa sem que seja relacionado a Deus”.
Nesse sentido, Deus e aqueles que Lhe eram próximos, como Maria e os outros santos,
eram constantemente invocados pelos homens em quaisquer situações, seja para aliviar
as dificuldades de vida, seja para se sair bem em atividades do dia-a-dia, como nas
atividades do comércio, por exemplo. Entretanto, para que fosse assim, o conhecimento,
seja do poder divino ou do poder intercessor dos santos junto a Deus, era fundamental.
E para que tal conhecimento fosse possível, muitas estratégias educacionais eram
utilizadas: a exortação, as pregações, os sermões, as correspondências, entre outras.
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Observamos que Clara, dirigindo-se a Inês, participa desse processo educacional ao
divulgar por meio de suas Cartas, as devoções que se destacavam naquele período.
Portanto, Clara se revela como uma expressiva educadora dos homens de seu tempo ao
se apropriar das devoções constitutivas da religiosidade daquele período e divulgá-las
em seus escritos.
Além dos exemplos de Raquel e de Maria, Clara também foi buscar em Inês8,
mártir da Igreja cristã primitiva, os fundamentos para sua ação educacional. Assim, em
sua quarta Carta a Inês de Praga, Clara diz à sua correspondente: “[...] tal como a outra
virgem, Santa Inês, desposaste o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo [...]” (4
CtI 8). Da mesma forma como na segunda Carta falara de Raquel, referindo-se apenas
ao seu nome, em sua última Carta Clara diz tão somente “[...] a outra virgem, Santa Inês
[...]” (4 CtI 8), sem tratar diretamente da história dessa mártir, indicativo de que sua
Irmã da Boêmia já tinha conhecimento suficiente da vida Inês.
Com base em Migne (1844) e Cremaschi e Acquado (1994), Brunelli (1998)
assinala que conforme o breviário que foi reformado pelo papa Inocêncio III, a Paixão
de Santa Inês era lida inteiramente no dia de sua festa durante a oração do Matutino.
Nas antífonas do Ofício de Santa Inês e durante o rito de consagração das virgens do
Pontifical da cúria romana, alguns trechos de sua Paixão eram retomados. A partir
dessas informações e considerando que Clara – como recordam Tomás de Celano na
Legenda e as testemunhas que depuseram no Processo de Canonização9 – atribuía um
papel de grande relevo à pregação, podemos dizer que sua desenvoltura ao tratar do
tema do martírio de Inês, articulando-a às dificuldades de Inês de Praga em relação às
decisões da cúria romana, deveu-se, em grande parte, a essas pregações. Entretanto, não
podemos afirmar que o martírio de Inês tenha sido conhecido por Clara a partir dos
pregadores, pois, como afirma Bartoli (1998) desde a infância ela esteve exposta à
cultura hagiográfica, isto é, às narrações das vidas de santos.
8 A vida de Santa Inês mártir é narrada brevemente por Santo Ambrósio (1949) na obra “Sobre las vírgenes” (cf. referência). 9 “Por meio de devotos pregadores, cuidava de alimentar as filhas com a palavra de Deus [...]. Quando ouvia a santa pregação [...]” (LSC 37); “[...] Dona Clara gostava muito de ouvir a palavra de Deus [...] ouvia de boa vontade as pregações literatas” (ProcC 10,8).
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[...] Não é possível saber, com certeza, que relatos hagiográficos Clara conheceu em sua juventude. Praticamente é certo que entrou em contato com vários deles. Pode-se supor, sobretudo, que desde muito jovem deve ter conhecido a história de Inês, virgem e mártir, que havia prometido amor ao Senhor e que, para permanecer fiel a este compromisso, recusou o amor de homens ilustres e, ainda muito jovem, enfrentou o martírio (BARTOLI, 1998, p. 38).
De acordo com Rops (1988), desde as comunidades cristãs dos primeiros séculos
o testemunho dos mártires em defesa da fé cristã era registrado e transmitido. Para ele,
devido ao fato daquelas comunidades considerarem
[...] os dramas ocasionados pela morte de tantos dos seus não apenas como calamidades, mas como brilhantes manifestações de fé, comunicavam sempre aos seus irmãos aquilo que se havia passado, mesmo no meio da tormenta. Expediam umas às outras relatórios, muitas vezes minuciosos, dos “combates” que tinham travado e dos “triunfos” que tinham alcançado aqueles que o Divino Mestre designara para a sua messe (ROPS, 1988, p. 155-6, grifos na obra).
Observamos, assim, que a vida daqueles que haviam sido martirizados em nome
da fé cristã era considerada digna de registro e divulgação. Intencionava-se com esses
escritos o fortalecimento da fé de outros homens e mulheres. Portanto, o martírio era um
componente educacional forte entre os cristãos dos primeiros séculos, embora não se
possa considerá-lo apenas em si mesmo, mas, articulado aos valores, às virtudes a ele
agregados, como a fé, a fortaleza, a coragem, a persistência.
Nos séculos que se seguiram, o martírio em nome da fé diminuiu
consideravelmente. Contudo, a vida dos mártires não deixou de ser considerada como
instrumento modelador de atitudes e de comportamentos. Clara herdou, portanto, essa
tradição e participou ativamente do processo de sua manutenção, e talvez com a certeza
de que as ações dos homens do passado podem orientar muitas decisões no contexto em
que se vive. Por isso é que, para fortalecer a decisão de Inês de Praga em viver a
pobreza tal como a viveram ela e Francisco, e apesar das dificuldades interpostas pela
Cúria romana – não sem suas razões –, Clara se apoiou nos relatos da vida da jovem
mártir romana Inês.
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Considerações Finais
Os homens constroem a sua humanidade na relação com outros homens.
Entretanto, não a fazem imersos tão somente na temporalidade presente. Há uma
necessidade ou dependência das condições produzidas e legadas pelos homens do
passado às novas gerações. De alguma forma, o presente continua vivo entre os homens
do presente. Santo Agostinho já dissera que o homem não é um ser apenas do presente,
mas que, ao contrário disso, articula em si mesmo, devido à sua memória e à sua
capacidade de pensar, uma tríplice dimensão de temporalidade: presente, passada e
futura.
Esses pressupostos nos auxiliaram na reflexão sobre o cotidiano educacional de
Clara de Assis no século XIII. Em seus escritos, observamos que o passado, por meio
do registro da vida de personagens bíblicas e de uma mártir do cristianismo primitivo,
foi invocado por ela para referendar sua ação educativa no período em que viveu. Por
outro lado, as figuras de mulheres por ela retomadas também foram consideradas como
mulheres exemplares em sua fé. Esse elemento indica que, para Clara, aquilo que se
realiza no presente vivido articula-se com a expectação que se tem do futuro. É a partir
dessa perspectiva que ganharam relevância a matriarca do Antigo Testamento – Raquel
–, a mulher símbolo do Novo Testamento – Maria, a mãe de Jesus –, e a mártir romana
– Inês.
Destacamos, por fim, que, neste texto, não era nossa pretensão apresentar as
vidas de santos ou de “heróis” da Bíblia em si mesmas. Personagens bíblicas e aquelas
consideradas santas só têm sentido para nós, pesquisadores da História da Educação, à
medida que contribuem para o entendimento de como os homens constroem a história
ao longo do tempo e, nesse processo, elaboram alguns suportes teóricos que são
validados social e historicamente. Nesse sentido, observamos que, encravada na história
de seu tempo e conforme as condições reais de vida produzidas até então, Clara estava
sintonizada com os processos educacionais de sua época, quando a tradição, a memória
e a história eram entendidas como fundamentais para educar. Foi essa sintonia que lhe
permitiu valer-se das figuras de Raquel, Maria e Inês para sustentar sua ação como
educadora a partir de São Damião.
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