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PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM CIEcircNCIAS CRIMINAIS MESTRADO EM CIEcircNCIAS CRIMINAIS
DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE
PUNICcedilAtildeO RETRIBUICcedilAtildeO E COMUNICACcedilAtildeO CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA
CRIMINAL
Porto Alegre
2011
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DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE
PUNICcedilAtildeO RETRIBUICcedilAtildeO E COMUNICACcedilAtildeO CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA
CRIMINAL
Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias Criminais da Faculdade de Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul
Orientador Prof Dr Fabio Roberto DrsquoAvila
Porto Alegre
2011
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Ao meu tio Luiz Olavo Motta Saldanha o ldquoMariardquo tambeacutem conhecido como ldquoo homem mais bonito do Alegreterdquo
Agrave minha voacute Lula Motta Saldanha Na casa do Pai haacute muitas moradas
e estou certo que ela reside em uma delas Meu bisavocirc Alfredo Motta na ocasiatildeo da morte de sua esposa Luciana Theodora Motta
escreveu estas palavras que agora dedico para minha voacute
Viver sem aquela a quem ama Eacute rolar sobre a terra jaacute sem norte
Eacute cumprir as leis de nosso Deus Desejando sem temor que venha a morte
Agrave minha matildee Liacutegia Saldanha Cavalcante cuja bondade e retidatildeo satildeo
atestadas por todas as accedilotildees de sua vida Para vocecirc matildee queria dedicar palavras de conforto mas natildeo as tenho
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RESUMO
O presente trabalho vinculado agrave Linha de Pesquisa Sistemas Juriacutedico-
Penais Contemporacircneos tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a
compreensatildeo do problema da puniccedilatildeo criminal Para tanto pretende-se buscar um novo
olhar sobre o tema historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas Em
primeiro lugar busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados assim evitando equiacutevocos na
anaacutelise do objeto em questatildeo Em segundo lugar analisam-se as teorias retributivas
oriundas da common law dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff estudada
no terceiro capiacutetulo
Palavras-chave puniccedilatildeo criminal retribuiccedilatildeo negativa retribuiccedilatildeo positiva teorias
preventivas teorias mistas consequencialismo e natildeo-consequencialismo merecimento
teorias comunicativas penitecircncia secular arrependimento
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ABSTRACT
This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary
Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal
punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically
divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the
concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly
analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs
communicative theory studied in the third chapter
Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive
theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular
penance repentance
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SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 08
CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19
121 Kant o paradigma 25
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28
CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34
212 Criacutetica 35
213 Formulaccedilatildeo atual 37
214 Consideraccedilotildees finais 39
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41
221 Criacutetica 47
222 Consideraccedilotildees finais 51
CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67
323 Recapitulando 70
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76
7
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86
333 A penitecircncia e o Estado 90
CONCLUSAtildeO 96
REFEREcircNCIAS 99
8
INTRODUCcedilAtildeO
Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas
e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc
Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem
nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos
perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a
atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas
formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este
estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto
eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena
O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se
divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo
manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de
problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se
mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento
teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-
se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e
retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo
apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas
novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das
teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina
com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente
trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria
Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute
porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na
common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se
propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este
utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo
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Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da
justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em
contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas
Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades
enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O
aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu
como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a
pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo
eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o
criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela
conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo
mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura
e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam
justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como
retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes
elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o
autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser
justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para
uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal
10
CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)
O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado
Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja
imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel
pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo
encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias
preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute
identificado na puniccedilatildeo mesma
Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas
finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)
ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos
(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo
geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo
especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-
lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma
miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes
com as teorias retributivas
O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de
preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia
1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001
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ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao
lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as
palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo
adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas
consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa
A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5
A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a
justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga
seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber
de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela
responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais
3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73
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velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes
estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas
ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada
disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se
trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes
Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)
apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo
estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado
independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa
razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente
correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que
justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio
O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima
torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo
punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no
caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que
ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo
podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que
nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos
anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes
mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo
Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu
6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260
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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7
Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega
que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo
dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente
(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta
nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees
morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas
sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor
noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos
empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em
algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9
A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a
puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas
seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo
maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado
em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave
verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila
que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de
quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de
todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser
verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta
de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol
das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que
fossem os dados apresentados
7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160
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A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras
consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas
que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo
puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras
palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos
efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de
merecimento das retribuiccedilotildees negativas11
Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao
inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves
objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve
explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse
sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute
ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante
sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias
consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)
Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14
do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades
preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser
imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais
desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15
Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime
entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos
variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo
direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes
11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97
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materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante
caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades
preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo
teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo
em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que
nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia
Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-
86) Diz-se entatildeo ao autor
A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16
Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria
Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na
mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada
tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais
e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas
direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los
como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados
Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque
tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis
16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010
16
como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas
anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17
Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam
outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre
aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a
diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao
desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a
junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute
muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19
consequencialistas e deontoloacutegicas
Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo
feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral
positiva
A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber
uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre
outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente
naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e
17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347
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assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o
alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda
ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees
desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias
retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido
conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo
encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se
harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda
Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar
de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja
limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-
americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram
a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de
prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue
incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo
funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim
conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar
nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que
enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para
validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral
certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23
Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por
essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele
apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se
importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a
despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim
Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho
21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93
18
benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da
metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)
poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar
uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta
O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias
preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente
nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado
a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada
prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a
anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma
O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28
Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode
ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer
que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa
todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo
vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para
chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste
trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem
mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar
a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para
garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma
violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz
que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia
25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22
19
quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material
aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo
efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos
provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um
sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)
Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute
aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem
identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo
eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de
prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser
admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar
nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a
puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o
bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de
alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que
existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by
default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e
castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos
para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado
independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste
trabalho
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS
Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas
conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees
Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam
20
batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez
de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia
ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na
criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante
Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto
que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que
focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido
Tolstoy Ressurreiccedilatildeo
Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste
estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em
apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como
delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir
sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas
teorias
O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma
uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados
porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute
buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do
crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as
teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da
perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as
teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas
29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231
21
remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas
delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila
Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das
teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa
sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas
retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva
coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees
biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar
com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave
puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo
de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se
comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia
um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila
em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse
restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois
soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna
em nome e no lugar do homem pecador por natureza33
Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a
natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas
31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455
22
aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando
provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35
Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a
passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de
proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar
que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o
marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um
recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima
gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo
sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um
equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36
Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a
narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no
tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e
dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua
face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)
Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo
embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo
Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a
com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da
raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que
aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010
23
importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso
porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa
porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem
ofendido inocentemente sofreurdquo39
Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas
sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave
incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa
racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e
dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou
outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os
como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar
essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio
pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser
administrada
Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se
que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o
tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo
Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41
O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na
distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da
puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente
38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238
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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo
ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da
admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a
sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz
que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas
preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do
cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja
a meta-geral justificante da puniccedilatildeo
Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a
compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na
interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute
distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma
igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas
previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca
equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade
aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se
que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a
coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo
positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda
que posteriormente seraacute comutada
Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta
a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos
punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo
Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou
mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo
42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62
25
negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso
ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a
balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao
criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo
de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias
retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e
castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral
pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados
em um bemrdquo45
Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam
as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela
voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo
corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a
justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do
sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou
moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa
e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo
soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a
sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais
beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela
qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas
121 Kant o paradigma
Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente
neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que
44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235
26
pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar
todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo
adequada da puniccedilatildeo criminal
Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da
teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por
exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar
pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo
ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina
do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas
proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma
minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar
transcreve-se apenas um dos argumentos
Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49
De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da
puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem
bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples
meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50
Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no
entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma
perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51
47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006
27
Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias
retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil
Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser
morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia
ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo
um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a
sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute
difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe
o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal
humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute
evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem
disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida
em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant
esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute
visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia
simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os
culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo
aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)
Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a
demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra
de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance
da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a
proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que
natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o
sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual
penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento
daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como
agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas
52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX
28
demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo
eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se
torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o
conhecemos
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico
Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do
pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa
tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55
Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de
fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena
justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do
dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico
kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia
entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado
ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se
racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos
O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo
de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes
seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar
do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua
fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o
sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a
54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20
29
compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito
lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute
realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na
neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os
ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade
poliacutetica
Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo
livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem
que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma
manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na
culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim
as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a
puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de
alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60
Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo
que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em
grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres
soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos
iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou
semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61
Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem
punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um
58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984
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decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da
pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que
a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63
Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de
fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo
nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa
para segundo plano
Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria
retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo
Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada
com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo
crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa
ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que
diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam
de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo
explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto
nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a
coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo
Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele
reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito
de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo
aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio
da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute
63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91
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por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo
uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66
Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos
movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por
inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda
a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o
porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo
de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O
maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter
livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal
que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado
que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto
esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver
toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas
para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico
da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos
65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89
32
CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)
Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se
comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos
lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza
Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos
Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo
(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque
restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime
Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas
enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas
apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais
defensores
Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo
falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico
sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos
culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais
(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se
retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro
Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas
consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo
dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir
69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq
33
Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista
que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre
suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute
consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a
autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a
puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de
infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado
apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance
A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos
cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o
benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada
indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela
apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos
outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos
- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual
possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72
Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo
(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos
outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um
ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de
qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o
fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos
outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e
fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de
constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele
cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida
obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do
71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007
34
deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair
balance73
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade
Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras
tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem
obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles
ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um
valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia
individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode
ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o
criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em
ser punido
A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o
indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o
estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos
importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem
bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo
aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta
contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu
da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua
proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a
73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas
35
justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei
universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a
decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute
respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou
desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria
puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido
a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as
outras leis sociais adotadas77
Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja
formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas
marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo
entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras
sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma
forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para
com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da
obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir
com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de
natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute
poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada
de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem
homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78
212 Criacutetica
O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo
empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas
76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq
36
principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede
e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores
de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de
privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam
recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um
bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse
caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo
interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade
A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso
merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem
indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a
essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre
os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo
que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que
realmente podemos ver o crime dessa forma
A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se
todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo
natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe
sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios
que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria
das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que
eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do
sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala
prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar
algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que
constitui verdadeiro mala in se
79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211
37
Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave
integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre
terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos
estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos
nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a
natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a
viacutetima sofreu80
Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas
quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um
consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a
maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se
constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe
uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que
nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal
Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso
consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma
vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de
crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente
querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida
com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em
verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita
com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de
essa coisa ser a puniccedilatildeo
213 Formulaccedilatildeo Atual
80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq
38
Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais
Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o
conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a
ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o
dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo
e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em
uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem
esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o
segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes
um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa
beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo
levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84
O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a
argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo
ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro
nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de
iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de
benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular
Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas
ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a
autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar
determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles
e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos
Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o
indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente
escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e
83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq
39
reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento
de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo
daqueles que natildeo obedecemrdquo86
Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade
em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode
quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para
marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em
qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a
regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O
mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -
de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim
como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a
lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais
severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras
consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por
conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria
da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a
conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que
outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e
doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88
214 Consideraccedilotildees finais
86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272
40
A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo
consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com
o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias
retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para
fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais
variados tipos de crimes
Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade
poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto
mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua
natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir
quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras
ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se
violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou
convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que
precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem
ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples
distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a
versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade
Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa
relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees
convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um
estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio
o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente
estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a
consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada
mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta
89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280
41
E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples
poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave
teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico
Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91
Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias
eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para
punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles
merecem sofrer
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL
San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through
You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold
San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell
May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good
Johnny Cash San Quentin
Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica
desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso
comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o
processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim
como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio
autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -
91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14
42
apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -
poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele
merece sofrer92
Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular
a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas
proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao
comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental
para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93
Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora
normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute
diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a
violaccedilatildeo de qualquer lei
Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo
deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute
sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da
puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem
para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes
componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa
moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido
empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as
implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em
segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo
errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja
experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para
com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente
ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a
disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a
92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97
43
ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo
autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa
que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95
E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser
empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso
entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado
Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de
reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a
presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de
estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que
promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da
puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica
principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97
Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado
entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e
compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho
sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este
deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a
desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos
quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer
Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave
95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir
44
resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98
Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo
se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha
do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o
que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades
paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez
que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido
e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores
tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100
Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo
moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris
explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo
cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel
ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao
menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute
necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de
prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes
apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira
que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo
98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896
45
consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro
a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica
condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma
mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir
sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para
sua liberdade103 Sendo assim
Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104
A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que
aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de
transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de
refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a
escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de
apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira
de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem
razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma
inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107
Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a
aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo
Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados
com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou
103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq
46
material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo
do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece
consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de
liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus
desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute
proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe
uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as
pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a
ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo
comunicado por aquele que o estaacute punindo109
Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da
puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas
substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo
estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de
comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles
possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido
utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas
usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a
ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute
semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente
doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma
mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas
accedilotildees111
E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria
afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os
cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas
satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam
108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215
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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve
ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino
ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o
estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada
porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e
imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa
aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114
Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a
puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria
realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo
estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se
possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas
das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi
erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo
esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115
221 Criacutetica
Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo
satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com
uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais
maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de
obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma
poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja
112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985
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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo
estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo
inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo
noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base
nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo
compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre
os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria
liberal de Estado117
O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo
Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que
de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e
puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o
criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido
o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa
se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos
alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar
ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a
permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas
que as justificam isso requer outro argumento119
Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma
poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do
liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral
assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios
limitadores da liberdade120
117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277
49
Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees
poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum
momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de
atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo
argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em
sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm
principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre
que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido
natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a
puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca
causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se
torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo
a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem
voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em
torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre
as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122
Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem
moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso
perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos
rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito
senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias
contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria
convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila
sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica
previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa
relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente
pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo
121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304
50
poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos
natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais
sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os
outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e
oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra
serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125
Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo
possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo
comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de
prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele
recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor
que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma
ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio
para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do
modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a
incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais
exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum
benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre
ele contra sua vontade127
E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy
direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma
percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo
conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do
sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para
125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352
51
submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee
amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim
uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia
ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a
capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se
torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um
tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a
capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo
esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129
222 Consideraccedilotildees finais
As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos
do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das
formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo
de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma
teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos
ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo
Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e
(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos
que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada
em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para
mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada
Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte
Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir
crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo
qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo
128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359
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de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas
boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos
ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter
cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a
maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem
um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles
conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo
mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral
De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela
influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por
que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir
iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria
para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute
precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de
uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave
para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes
filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e
pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos
apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute
mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas
indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131
130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209
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CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA
Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e
portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre
sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de
puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de
alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria
completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos
do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em
outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de
que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida
Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica
especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o
contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal
normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade
acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de
comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma
pretensatildeo de esgotaacute-lo
Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e
liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos
cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute
claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual
eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute
legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses
sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a
enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no
54
fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se
encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na
qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo
do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133
O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas
teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes
teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode
olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg
Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134
Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas
preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos
individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os
132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82
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criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os
bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade
no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa
sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode
ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135
Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais
caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos
membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades
comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um
apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns
devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem
compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens
individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma
vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da
comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros
(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que
135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos
56
aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que
aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137
E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes
devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de
em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da
liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui
eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses
bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes
possibilite e lhes confira significado e sentido138
Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal
dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro
que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do
conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees
Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara
quais dessas condutas erradas constituem crimes
A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139
Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar
que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua
137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33
57
perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos
respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder
(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que
natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave
autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se
forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais
forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos
ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio
vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos
autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute
desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei
natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -
se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142
Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas
sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo
ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo
criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os
valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar
suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para
o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem
muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade
moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)
140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34
58
Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como
membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto
de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim
como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada
indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os
membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser
persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no
reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo
pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei
contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido
um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa
Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa
como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como
depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da
Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da
comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra
ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a
puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do
sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um
144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003
59
processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias
de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute
porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode
interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir
ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute
podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar
o dano e reconciliar os membros da comunidade148
Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de
certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a
qual pertencemos
Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149
146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71
60
Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente
por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo
percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos
tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores
decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou
ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do
indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da
tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala
Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo
comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a
mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150
Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo
em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o
criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo
moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros
cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas
cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria
natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites
para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado
como membro integral dela151
Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores
comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em
comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos
crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de
carreirardquo (III) ataques terroristas152
150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306
61
Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute
espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem
se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a
puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor
queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente
admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada
nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz
de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos
conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo
consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar
dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer
nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o
que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado
determinar a extensatildeo da comunidade
Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos
criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva
afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para
evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a
comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais
se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem
poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute
importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que
os culpados merecem sofrer155
153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79
62
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)
Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de
comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo
privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou
qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios
puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute
necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de
censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e
condutas corretos
A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos
como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de
cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de
Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo
simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser
buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma
pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute
crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a
concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von
n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute
63
Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar
satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que
o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159
Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva
da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas
entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo
privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um
determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico
especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de
ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou
da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160
Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas
negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio
autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo
demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a
iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic
nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o
sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo
(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse
enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)
ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns
indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e
informalmente absolvidos desse mesmo crime161
necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80
64
Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo
qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo
convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como
o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro
mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da
puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o
trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem
inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade
criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a
dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo
A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser
transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados
de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo
naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa
senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e
ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute
meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo
condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal
finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e
adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165
Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita
somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por
exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas
preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo
162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306
65
mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria
mensagem166
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)
No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e
a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o
conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo
de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente
daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para
algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada
pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse
miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a
existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168
A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees
legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes
violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento
uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente
desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute
socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o
sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da
166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51
66
vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e
encargos
O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de
puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo
dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta
errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para
desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela
inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em
conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral
deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do
medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente
comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na
linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor
A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172
A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles
entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute
170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41
67
uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento
ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser
subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o
sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse
nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo
denominadas de expressionismo extriacutenseco
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)
Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do
chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma
convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime
desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos
Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que
A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173
Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja
arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente
formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou
natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que
criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade
natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo
173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517
68
cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios
interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo
entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem
que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174
Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute
endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos
valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente
simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma
severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses
mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute
porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que
uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo
proibida175
Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida
seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute
assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a
seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa
aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim
entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas
menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida
humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem
proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar
penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a
prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de
prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela
eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao
ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado
174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521
69
Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees
histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos
Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a
achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo
dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais
com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os
senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito
havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo
dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a
privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo
encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua
liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado
multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas
falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo
universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o
pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a
conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido
quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou
quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um
preccedilo para fazer negoacutecios179
De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando
como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A
questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial
eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a
lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E
isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo
177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq
70
expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo
sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180
323 Recapitulando
Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a
puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma
mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para
aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado
responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um
todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que
o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a
puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o
repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da
lei
Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas
impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na
sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo
serem comunicadas apenas verbalmente
Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira
denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos
criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura
pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o
efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente
que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa
(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um
180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522
71
meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -
poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos
A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema
como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados
ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual
dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu
uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre
como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se
esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a
gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar
como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem
Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento
externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo
Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181
Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos
anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento
severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute
desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto
central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento
comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se
que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente
correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de
partida pelas razotildees que seguiratildeo
181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296
72
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura
A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser
evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria
absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas
as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos
em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta
intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo
distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve
comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)
legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para
dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente
quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184
O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos
ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser
crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber
que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como
errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma
comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo
nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito
natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque
afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta
seja considerada errada e portanto criminosa
182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211
73
Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve
explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui
diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou
extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente
dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute
diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo
prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente
compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que
frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para
ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que
eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser
bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por
humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute
necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que
uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa
injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e
terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso
prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo
pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem
nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma
sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente
contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle
eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que
podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei
criminalrdquo190
185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165
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Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute
entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo
decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia
ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca
limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de
censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que
satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno
estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos
consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita
(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado
-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave
conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito
Nas palavras de Duff
Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o
191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295
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foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192
Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute
um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos
valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para
demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)
quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo
eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente
errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os
vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal
consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e
sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio
senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com
atos moralmente louvaacuteveis ou neutros
A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima
Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas
de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura
adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente
apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja
perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam
apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo
(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute
responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por
causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta
moralmente adequada agrave viacutetima196
192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170
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Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente
adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade
ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta
moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um
comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como
penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA
Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio
conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que
seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma
pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do
Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal
O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada
197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010
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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199
Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso
mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito
eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de
retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito
penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito
anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas
teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)
E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes
de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a
secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar
na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor
simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem
adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados
aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente
da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do
direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200
Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro
capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela
justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas
normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc
199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13
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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside
exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema
em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado
O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado
enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora
decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e
obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal
que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses
27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo
elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma
desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em
conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o
tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel
incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio
unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais
dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203
Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo
Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo
com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma
reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para
isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai
(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a
conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo
reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da
penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de
conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute
201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado
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autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo
para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206
Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem
penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para
o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante
explicaccedilatildeo a respeito
Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207
Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro
do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas
transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-
culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de
seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome
de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo
pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando
a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por
quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso
206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678
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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de
caminho210
Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a
ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto
conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o
problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia
ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado
um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o
objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse
senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da
comunidaderdquo212
Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha
importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as
pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como
penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio
de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc
assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de
lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a
delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal
de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como
membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa
situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de
Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e
reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas
acima por exemplo)
210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855
81
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)
Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento
Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento
O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que
este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo
deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos
sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres
de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as
teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes
podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela
se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de
arrependimento
O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215
214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010
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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo
Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto
soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode
arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos
moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de
algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento
constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa
de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi
flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma
atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o
que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir
desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro
podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217
Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo
poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e
ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva
pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas
falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra
do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de
accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute
natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo
arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo
continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade
de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)
Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo
216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17
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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219
A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou
melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente
a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro
devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida
natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da
necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa
a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser
persuadido pela mensagem
Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a
reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem
uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja
mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre
ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o
crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo
(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e
por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta
tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada
219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246
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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela
pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao
processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa
ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo
(hurt) eacute a seguinte
(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor
Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas
e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo
uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que
estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um
jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees
com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida
do que ele fezrdquo223
(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram
prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O
criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo
ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar
meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira
adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma
material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora
carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225
A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e
justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma
resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira
adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem
uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se
222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado
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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade
Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades
que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias
consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir
agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo
apropriado para persegui-lo
Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -
arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para
obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta
em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar
alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas
tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e
Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu
simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila
fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em
consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu
sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha
amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse
respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu
arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute
errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora
se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual
a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e
responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se
com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis
mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade
por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a
tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada
226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo
86
por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se
engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227
Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia
secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se
arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas
que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na
pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar
deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender
Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se
arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o
criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive
reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros
perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia
No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar
o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de
puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a
comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter
puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a
questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no
acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um
processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o
arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se
que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave
227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121
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gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-
nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute
verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa
redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso
que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas
consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo
do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma
do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada
ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria
portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida
Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se
arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena
Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum
deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo
Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a
pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade
intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica
que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute
assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A
resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se
alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute
contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da
mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte
devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos
levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo
moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da
comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230
229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123
88
John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento
distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas
razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do
que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele
merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo
de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos
primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento
determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando
instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a
mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o
ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como
penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que
esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233
O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia
secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a
toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que
o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de
puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia
merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a
ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von
Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e
portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia
exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia
Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente
sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de
prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos
poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa
231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84
89
comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e
a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo
apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a
igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas
demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser
detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo
justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o
criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da
misericoacuterdia
Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila
comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila
criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto
desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo
moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute
tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender
O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237
Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o
Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre
certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a
comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos
outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do
criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas
ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte
236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418
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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico
221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como
penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch
333 A penitecircncia e o Estado
Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre
a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral
adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo
punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a
caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um
processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de
penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a
privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a
formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de
transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida
externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos
internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente
apropriada para responder agrave mensagem de censura238
E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute
arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto
com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239
Em razatildeo disso o autor indaga
Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa
238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120
91
indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240
Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de
Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as
poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo
importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas
tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou
daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto
o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar
respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a
um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado
Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda
que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a
teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os
temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal
embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241
Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a
criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das
pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um
momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva
240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009
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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a
exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com
a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com
Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que
se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase
inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar
juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode
ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato
injustordquo245
Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute
um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da
natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses
elementos natildeo uma separaccedilatildeo247
Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente
corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade
sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas
respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute
as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez
tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo
242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129
93
criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem
punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato
Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito
[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250
Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a
intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no
ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se
salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou
tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o
preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o
criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo
devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um
nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela
mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que
ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de
249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491
94
certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido
pago254
Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar
um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch
com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria
Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta
que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no
processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter
assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas
quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute
receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer
saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para
natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute
preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos
agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo
somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser
moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-
la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se
efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na
comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida
Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como
penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de
seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a
respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para
entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma
caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas
podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a
254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437
95
reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais
preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257
256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440
96
CONCLUSAtildeO
Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho
Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de
consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a
accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias
(prevenccedilatildeo de crimes)
Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em
tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a
construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem
mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa
injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal
Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o
merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem
justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees
suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis
Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois
equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e
designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em
segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os
teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal
ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo
que o merecimento pretende capturar
Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo
explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-
97
perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)
Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal
Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo
criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute
convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma
vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute
sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo
Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como
educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria
dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo
compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos
Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que
definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta
seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da
comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer
pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada
criminosa
Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio
autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo
se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a
puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo
Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O
traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica
desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o
crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel
98
Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se
entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave
autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada
daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de
autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como
forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada
no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento
Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e
a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa
aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido
99
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2
DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE
PUNICcedilAtildeO RETRIBUICcedilAtildeO E COMUNICACcedilAtildeO CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA
CRIMINAL
Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias Criminais da Faculdade de Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul
Orientador Prof Dr Fabio Roberto DrsquoAvila
Porto Alegre
2011
3
Ao meu tio Luiz Olavo Motta Saldanha o ldquoMariardquo tambeacutem conhecido como ldquoo homem mais bonito do Alegreterdquo
Agrave minha voacute Lula Motta Saldanha Na casa do Pai haacute muitas moradas
e estou certo que ela reside em uma delas Meu bisavocirc Alfredo Motta na ocasiatildeo da morte de sua esposa Luciana Theodora Motta
escreveu estas palavras que agora dedico para minha voacute
Viver sem aquela a quem ama Eacute rolar sobre a terra jaacute sem norte
Eacute cumprir as leis de nosso Deus Desejando sem temor que venha a morte
Agrave minha matildee Liacutegia Saldanha Cavalcante cuja bondade e retidatildeo satildeo
atestadas por todas as accedilotildees de sua vida Para vocecirc matildee queria dedicar palavras de conforto mas natildeo as tenho
4
RESUMO
O presente trabalho vinculado agrave Linha de Pesquisa Sistemas Juriacutedico-
Penais Contemporacircneos tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a
compreensatildeo do problema da puniccedilatildeo criminal Para tanto pretende-se buscar um novo
olhar sobre o tema historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas Em
primeiro lugar busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados assim evitando equiacutevocos na
anaacutelise do objeto em questatildeo Em segundo lugar analisam-se as teorias retributivas
oriundas da common law dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff estudada
no terceiro capiacutetulo
Palavras-chave puniccedilatildeo criminal retribuiccedilatildeo negativa retribuiccedilatildeo positiva teorias
preventivas teorias mistas consequencialismo e natildeo-consequencialismo merecimento
teorias comunicativas penitecircncia secular arrependimento
5
ABSTRACT
This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary
Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal
punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically
divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the
concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly
analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs
communicative theory studied in the third chapter
Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive
theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular
penance repentance
6
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 08
CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19
121 Kant o paradigma 25
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28
CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34
212 Criacutetica 35
213 Formulaccedilatildeo atual 37
214 Consideraccedilotildees finais 39
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41
221 Criacutetica 47
222 Consideraccedilotildees finais 51
CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67
323 Recapitulando 70
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76
7
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86
333 A penitecircncia e o Estado 90
CONCLUSAtildeO 96
REFEREcircNCIAS 99
8
INTRODUCcedilAtildeO
Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas
e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc
Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem
nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos
perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a
atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas
formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este
estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto
eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena
O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se
divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo
manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de
problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se
mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento
teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-
se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e
retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo
apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas
novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das
teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina
com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente
trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria
Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute
porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na
common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se
propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este
utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo
9
Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da
justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em
contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas
Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades
enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O
aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu
como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a
pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo
eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o
criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela
conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo
mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura
e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam
justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como
retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes
elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o
autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser
justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para
uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal
10
CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)
O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado
Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja
imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel
pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo
encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias
preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute
identificado na puniccedilatildeo mesma
Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas
finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)
ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos
(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo
geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo
especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-
lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma
miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes
com as teorias retributivas
O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de
preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia
1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001
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ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao
lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as
palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo
adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas
consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa
A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5
A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a
justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga
seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber
de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela
responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais
3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73
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velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes
estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas
ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada
disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se
trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes
Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)
apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo
estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado
independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa
razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente
correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que
justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio
O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima
torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo
punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no
caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que
ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo
podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que
nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos
anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes
mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo
Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu
6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260
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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7
Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega
que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo
dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente
(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta
nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees
morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas
sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor
noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos
empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em
algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9
A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a
puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas
seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo
maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado
em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave
verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila
que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de
quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de
todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser
verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta
de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol
das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que
fossem os dados apresentados
7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160
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A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras
consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas
que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo
puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras
palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos
efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de
merecimento das retribuiccedilotildees negativas11
Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao
inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves
objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve
explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse
sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute
ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante
sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias
consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)
Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14
do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades
preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser
imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais
desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15
Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime
entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos
variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo
direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes
11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97
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materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante
caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades
preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo
teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo
em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que
nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia
Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-
86) Diz-se entatildeo ao autor
A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16
Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria
Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na
mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada
tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais
e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas
direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los
como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados
Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque
tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis
16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010
16
como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas
anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17
Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam
outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre
aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a
diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao
desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a
junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute
muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19
consequencialistas e deontoloacutegicas
Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo
feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral
positiva
A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber
uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre
outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente
naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e
17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347
17
assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o
alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda
ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees
desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias
retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido
conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo
encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se
harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda
Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar
de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja
limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-
americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram
a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de
prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue
incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo
funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim
conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar
nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que
enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para
validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral
certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23
Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por
essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele
apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se
importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a
despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim
Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho
21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93
18
benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da
metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)
poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar
uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta
O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias
preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente
nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado
a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada
prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a
anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma
O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28
Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode
ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer
que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa
todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo
vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para
chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste
trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem
mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar
a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para
garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma
violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz
que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia
25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22
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quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material
aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo
efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos
provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um
sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)
Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute
aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem
identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo
eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de
prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser
admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar
nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a
puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o
bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de
alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que
existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by
default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e
castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos
para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado
independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste
trabalho
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS
Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas
conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees
Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam
20
batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez
de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia
ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na
criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante
Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto
que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que
focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido
Tolstoy Ressurreiccedilatildeo
Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste
estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em
apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como
delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir
sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas
teorias
O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma
uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados
porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute
buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do
crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as
teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da
perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as
teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas
29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231
21
remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas
delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila
Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das
teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa
sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas
retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva
coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees
biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar
com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave
puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo
de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se
comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia
um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila
em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse
restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois
soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna
em nome e no lugar do homem pecador por natureza33
Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a
natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas
31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455
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aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando
provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35
Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a
passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de
proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar
que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o
marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um
recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima
gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo
sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um
equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36
Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a
narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no
tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e
dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua
face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)
Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo
embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo
Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a
com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da
raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que
aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010
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importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso
porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa
porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem
ofendido inocentemente sofreurdquo39
Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas
sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave
incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa
racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e
dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou
outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os
como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar
essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio
pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser
administrada
Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se
que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o
tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo
Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41
O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na
distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da
puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente
38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238
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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo
ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da
admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a
sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz
que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas
preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do
cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja
a meta-geral justificante da puniccedilatildeo
Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a
compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na
interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute
distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma
igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas
previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca
equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade
aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se
que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a
coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo
positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda
que posteriormente seraacute comutada
Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta
a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos
punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo
Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou
mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo
42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62
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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso
ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a
balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao
criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo
de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias
retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e
castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral
pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados
em um bemrdquo45
Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam
as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela
voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo
corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a
justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do
sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou
moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa
e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo
soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a
sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais
beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela
qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas
121 Kant o paradigma
Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente
neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que
44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235
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pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar
todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo
adequada da puniccedilatildeo criminal
Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da
teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por
exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar
pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo
ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina
do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas
proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma
minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar
transcreve-se apenas um dos argumentos
Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49
De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da
puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem
bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples
meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50
Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no
entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma
perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51
47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006
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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias
retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil
Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser
morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia
ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo
um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a
sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute
difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe
o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal
humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute
evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem
disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida
em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant
esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute
visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia
simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os
culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo
aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)
Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a
demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra
de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance
da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a
proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que
natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o
sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual
penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento
daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como
agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas
52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX
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demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo
eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se
torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o
conhecemos
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico
Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do
pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa
tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55
Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de
fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena
justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do
dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico
kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia
entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado
ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se
racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos
O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo
de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes
seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar
do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua
fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o
sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a
54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20
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compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito
lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute
realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na
neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os
ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade
poliacutetica
Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo
livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem
que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma
manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na
culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim
as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a
puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de
alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60
Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo
que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em
grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres
soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos
iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou
semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61
Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem
punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um
58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984
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decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da
pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que
a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63
Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de
fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo
nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa
para segundo plano
Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria
retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo
Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada
com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo
crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa
ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que
diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam
de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo
explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto
nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a
coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo
Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele
reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito
de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo
aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio
da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute
63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91
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por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo
uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66
Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos
movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por
inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda
a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o
porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo
de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O
maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter
livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal
que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado
que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto
esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver
toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas
para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico
da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos
65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89
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CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)
Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se
comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos
lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza
Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos
Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo
(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque
restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime
Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas
enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas
apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais
defensores
Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo
falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico
sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos
culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais
(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se
retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro
Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas
consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo
dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir
69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq
33
Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista
que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre
suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute
consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a
autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a
puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de
infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado
apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance
A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos
cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o
benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada
indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela
apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos
outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos
- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual
possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72
Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo
(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos
outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um
ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de
qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o
fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos
outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e
fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de
constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele
cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida
obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do
71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007
34
deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair
balance73
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade
Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras
tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem
obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles
ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um
valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia
individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode
ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o
criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em
ser punido
A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o
indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o
estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos
importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem
bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo
aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta
contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu
da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua
proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a
73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas
35
justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei
universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a
decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute
respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou
desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria
puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido
a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as
outras leis sociais adotadas77
Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja
formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas
marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo
entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras
sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma
forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para
com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da
obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir
com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de
natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute
poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada
de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem
homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78
212 Criacutetica
O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo
empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas
76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq
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principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede
e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores
de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de
privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam
recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um
bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse
caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo
interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade
A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso
merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem
indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a
essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre
os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo
que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que
realmente podemos ver o crime dessa forma
A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se
todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo
natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe
sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios
que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria
das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que
eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do
sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala
prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar
algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que
constitui verdadeiro mala in se
79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211
37
Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave
integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre
terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos
estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos
nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a
natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a
viacutetima sofreu80
Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas
quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um
consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a
maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se
constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe
uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que
nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal
Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso
consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma
vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de
crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente
querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida
com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em
verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita
com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de
essa coisa ser a puniccedilatildeo
213 Formulaccedilatildeo Atual
80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq
38
Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais
Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o
conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a
ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o
dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo
e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em
uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem
esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o
segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes
um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa
beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo
levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84
O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a
argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo
ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro
nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de
iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de
benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular
Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas
ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a
autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar
determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles
e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos
Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o
indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente
escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e
83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq
39
reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento
de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo
daqueles que natildeo obedecemrdquo86
Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade
em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode
quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para
marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em
qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a
regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O
mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -
de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim
como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a
lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais
severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras
consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por
conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria
da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a
conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que
outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e
doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88
214 Consideraccedilotildees finais
86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272
40
A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo
consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com
o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias
retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para
fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais
variados tipos de crimes
Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade
poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto
mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua
natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir
quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras
ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se
violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou
convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que
precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem
ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples
distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a
versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade
Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa
relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees
convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um
estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio
o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente
estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a
consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada
mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta
89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280
41
E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples
poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave
teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico
Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91
Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias
eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para
punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles
merecem sofrer
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL
San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through
You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold
San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell
May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good
Johnny Cash San Quentin
Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica
desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso
comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o
processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim
como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio
autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -
91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14
42
apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -
poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele
merece sofrer92
Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular
a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas
proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao
comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental
para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93
Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora
normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute
diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a
violaccedilatildeo de qualquer lei
Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo
deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute
sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da
puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem
para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes
componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa
moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido
empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as
implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em
segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo
errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja
experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para
com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente
ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a
disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a
92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97
43
ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo
autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa
que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95
E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser
empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso
entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado
Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de
reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a
presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de
estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que
promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da
puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica
principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97
Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado
entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e
compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho
sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este
deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a
desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos
quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer
Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave
95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir
44
resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98
Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo
se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha
do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o
que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades
paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez
que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido
e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores
tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100
Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo
moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris
explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo
cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel
ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao
menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute
necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de
prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes
apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira
que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo
98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896
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consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro
a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica
condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma
mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir
sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para
sua liberdade103 Sendo assim
Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104
A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que
aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de
transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de
refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a
escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de
apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira
de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem
razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma
inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107
Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a
aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo
Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados
com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou
103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq
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material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo
do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece
consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de
liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus
desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute
proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe
uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as
pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a
ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo
comunicado por aquele que o estaacute punindo109
Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da
puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas
substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo
estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de
comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles
possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido
utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas
usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a
ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute
semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente
doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma
mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas
accedilotildees111
E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria
afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os
cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas
satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam
108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215
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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve
ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino
ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o
estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada
porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e
imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa
aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114
Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a
puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria
realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo
estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se
possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas
das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi
erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo
esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115
221 Criacutetica
Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo
satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com
uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais
maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de
obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma
poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja
112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985
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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo
estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo
inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo
noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base
nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo
compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre
os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria
liberal de Estado117
O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo
Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que
de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e
puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o
criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido
o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa
se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos
alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar
ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a
permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas
que as justificam isso requer outro argumento119
Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma
poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do
liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral
assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios
limitadores da liberdade120
117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277
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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees
poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum
momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de
atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo
argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em
sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm
principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre
que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido
natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a
puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca
causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se
torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo
a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem
voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em
torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre
as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122
Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem
moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso
perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos
rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito
senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias
contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria
convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila
sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica
previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa
relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente
pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo
121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304
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poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos
natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais
sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os
outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e
oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra
serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125
Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo
possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo
comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de
prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele
recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor
que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma
ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio
para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do
modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a
incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais
exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum
benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre
ele contra sua vontade127
E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy
direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma
percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo
conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do
sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para
125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352
51
submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee
amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim
uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia
ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a
capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se
torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um
tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a
capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo
esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129
222 Consideraccedilotildees finais
As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos
do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das
formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo
de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma
teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos
ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo
Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e
(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos
que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada
em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para
mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada
Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte
Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir
crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo
qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo
128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359
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de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas
boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos
ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter
cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a
maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem
um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles
conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo
mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral
De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela
influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por
que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir
iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria
para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute
precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de
uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave
para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes
filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e
pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos
apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute
mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas
indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131
130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209
53
CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA
Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e
portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre
sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de
puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de
alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria
completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos
do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em
outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de
que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida
Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica
especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o
contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal
normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade
acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de
comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma
pretensatildeo de esgotaacute-lo
Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e
liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos
cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute
claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual
eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute
legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses
sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a
enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no
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fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se
encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na
qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo
do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133
O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas
teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes
teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode
olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg
Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134
Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas
preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos
individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os
132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82
55
criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os
bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade
no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa
sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode
ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135
Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais
caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos
membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades
comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um
apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns
devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem
compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens
individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma
vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da
comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros
(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que
135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos
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aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que
aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137
E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes
devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de
em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da
liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui
eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses
bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes
possibilite e lhes confira significado e sentido138
Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal
dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro
que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do
conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees
Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara
quais dessas condutas erradas constituem crimes
A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139
Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar
que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua
137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33
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perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos
respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder
(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que
natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave
autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se
forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais
forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos
ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio
vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos
autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute
desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei
natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -
se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142
Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas
sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo
ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo
criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os
valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar
suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para
o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem
muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade
moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)
140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34
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Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como
membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto
de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim
como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada
indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os
membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser
persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no
reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo
pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei
contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido
um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa
Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa
como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como
depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da
Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da
comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra
ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a
puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do
sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um
144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003
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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias
de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute
porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode
interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir
ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute
podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar
o dano e reconciliar os membros da comunidade148
Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de
certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a
qual pertencemos
Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149
146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71
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Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente
por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo
percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos
tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores
decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou
ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do
indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da
tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala
Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo
comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a
mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150
Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo
em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o
criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo
moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros
cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas
cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria
natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites
para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado
como membro integral dela151
Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores
comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em
comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos
crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de
carreirardquo (III) ataques terroristas152
150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306
61
Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute
espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem
se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a
puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor
queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente
admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada
nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz
de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos
conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo
consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar
dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer
nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o
que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado
determinar a extensatildeo da comunidade
Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos
criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva
afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para
evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a
comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais
se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem
poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute
importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que
os culpados merecem sofrer155
153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79
62
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)
Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de
comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo
privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou
qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios
puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute
necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de
censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e
condutas corretos
A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos
como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de
cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de
Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo
simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser
buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma
pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute
crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a
concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von
n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute
63
Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar
satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que
o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159
Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva
da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas
entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo
privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um
determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico
especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de
ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou
da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160
Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas
negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio
autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo
demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a
iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic
nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o
sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo
(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse
enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)
ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns
indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e
informalmente absolvidos desse mesmo crime161
necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80
64
Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo
qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo
convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como
o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro
mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da
puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o
trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem
inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade
criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a
dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo
A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser
transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados
de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo
naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa
senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e
ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute
meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo
condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal
finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e
adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165
Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita
somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por
exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas
preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo
162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306
65
mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria
mensagem166
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)
No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e
a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o
conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo
de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente
daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para
algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada
pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse
miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a
existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168
A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees
legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes
violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento
uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente
desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute
socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o
sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da
166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51
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vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e
encargos
O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de
puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo
dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta
errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para
desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela
inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em
conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral
deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do
medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente
comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na
linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor
A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172
A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles
entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute
170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41
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uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento
ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser
subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o
sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse
nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo
denominadas de expressionismo extriacutenseco
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)
Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do
chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma
convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime
desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos
Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que
A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173
Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja
arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente
formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou
natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que
criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade
natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo
173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517
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cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios
interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo
entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem
que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174
Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute
endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos
valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente
simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma
severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses
mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute
porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que
uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo
proibida175
Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida
seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute
assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a
seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa
aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim
entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas
menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida
humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem
proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar
penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a
prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de
prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela
eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao
ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado
174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521
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Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees
histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos
Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a
achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo
dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais
com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os
senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito
havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo
dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a
privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo
encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua
liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado
multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas
falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo
universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o
pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a
conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido
quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou
quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um
preccedilo para fazer negoacutecios179
De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando
como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A
questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial
eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a
lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E
isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo
177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq
70
expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo
sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180
323 Recapitulando
Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a
puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma
mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para
aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado
responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um
todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que
o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a
puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o
repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da
lei
Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas
impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na
sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo
serem comunicadas apenas verbalmente
Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira
denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos
criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura
pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o
efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente
que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa
(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um
180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522
71
meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -
poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos
A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema
como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados
ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual
dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu
uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre
como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se
esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a
gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar
como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem
Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento
externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo
Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181
Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos
anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento
severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute
desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto
central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento
comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se
que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente
correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de
partida pelas razotildees que seguiratildeo
181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296
72
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura
A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser
evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria
absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas
as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos
em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta
intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo
distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve
comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)
legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para
dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente
quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184
O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos
ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser
crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber
que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como
errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma
comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo
nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito
natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque
afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta
seja considerada errada e portanto criminosa
182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211
73
Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve
explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui
diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou
extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente
dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute
diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo
prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente
compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que
frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para
ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que
eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser
bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por
humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute
necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que
uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa
injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e
terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso
prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo
pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem
nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma
sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente
contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle
eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que
podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei
criminalrdquo190
185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165
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Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute
entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo
decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia
ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca
limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de
censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que
satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno
estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos
consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita
(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado
-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave
conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito
Nas palavras de Duff
Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o
191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295
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foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192
Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute
um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos
valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para
demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)
quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo
eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente
errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os
vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal
consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e
sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio
senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com
atos moralmente louvaacuteveis ou neutros
A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima
Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas
de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura
adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente
apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja
perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam
apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo
(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute
responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por
causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta
moralmente adequada agrave viacutetima196
192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170
76
Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente
adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade
ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta
moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um
comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como
penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA
Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio
conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que
seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma
pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do
Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal
O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada
197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010
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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199
Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso
mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito
eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de
retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito
penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito
anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas
teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)
E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes
de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a
secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar
na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor
simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem
adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados
aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente
da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do
direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200
Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro
capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela
justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas
normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc
199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13
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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside
exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema
em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado
O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado
enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora
decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e
obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal
que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses
27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo
elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma
desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em
conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o
tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel
incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio
unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais
dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203
Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo
Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo
com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma
reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para
isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai
(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a
conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo
reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da
penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de
conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute
201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado
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autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo
para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206
Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem
penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para
o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante
explicaccedilatildeo a respeito
Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207
Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro
do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas
transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-
culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de
seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome
de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo
pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando
a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por
quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso
206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678
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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de
caminho210
Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a
ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto
conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o
problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia
ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado
um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o
objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse
senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da
comunidaderdquo212
Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha
importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as
pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como
penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio
de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc
assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de
lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a
delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal
de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como
membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa
situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de
Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e
reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas
acima por exemplo)
210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855
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331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)
Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento
Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento
O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que
este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo
deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos
sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres
de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as
teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes
podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela
se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de
arrependimento
O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215
214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010
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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo
Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto
soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode
arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos
moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de
algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento
constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa
de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi
flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma
atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o
que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir
desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro
podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217
Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo
poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e
ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva
pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas
falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra
do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de
accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute
natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo
arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo
continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade
de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)
Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo
216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17
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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219
A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou
melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente
a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro
devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida
natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da
necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa
a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser
persuadido pela mensagem
Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a
reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem
uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja
mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre
ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o
crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo
(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e
por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta
tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada
219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246
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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela
pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao
processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa
ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo
(hurt) eacute a seguinte
(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor
Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas
e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo
uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que
estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um
jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees
com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida
do que ele fezrdquo223
(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram
prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O
criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo
ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar
meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira
adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma
material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora
carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225
A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e
justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma
resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira
adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem
uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se
222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado
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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade
Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades
que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias
consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir
agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo
apropriado para persegui-lo
Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -
arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para
obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta
em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar
alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas
tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e
Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu
simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila
fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em
consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu
sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha
amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse
respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu
arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute
errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora
se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual
a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e
responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se
com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis
mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade
por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a
tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada
226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo
86
por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se
engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227
Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia
secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se
arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas
que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na
pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar
deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender
Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se
arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o
criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive
reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros
perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia
No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar
o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de
puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a
comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter
puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a
questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no
acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um
processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o
arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se
que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave
227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121
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gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-
nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute
verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa
redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso
que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas
consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo
do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma
do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada
ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria
portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida
Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se
arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena
Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum
deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo
Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a
pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade
intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica
que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute
assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A
resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se
alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute
contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da
mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte
devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos
levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo
moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da
comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230
229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123
88
John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento
distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas
razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do
que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele
merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo
de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos
primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento
determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando
instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a
mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o
ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como
penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que
esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233
O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia
secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a
toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que
o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de
puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia
merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a
ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von
Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e
portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia
exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia
Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente
sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de
prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos
poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa
231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84
89
comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e
a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo
apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a
igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas
demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser
detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo
justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o
criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da
misericoacuterdia
Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila
comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila
criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto
desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo
moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute
tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender
O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237
Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o
Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre
certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a
comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos
outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do
criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas
ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte
236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418
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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico
221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como
penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch
333 A penitecircncia e o Estado
Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre
a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral
adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo
punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a
caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um
processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de
penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a
privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a
formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de
transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida
externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos
internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente
apropriada para responder agrave mensagem de censura238
E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute
arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto
com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239
Em razatildeo disso o autor indaga
Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa
238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120
91
indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240
Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de
Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as
poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo
importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas
tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou
daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto
o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar
respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a
um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado
Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda
que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a
teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os
temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal
embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241
Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a
criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das
pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um
momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva
240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009
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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a
exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com
a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com
Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que
se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase
inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar
juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode
ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato
injustordquo245
Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute
um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da
natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses
elementos natildeo uma separaccedilatildeo247
Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente
corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade
sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas
respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute
as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez
tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo
242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129
93
criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem
punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato
Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito
[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250
Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a
intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no
ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se
salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou
tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o
preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o
criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo
devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um
nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela
mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que
ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de
249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491
94
certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido
pago254
Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar
um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch
com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria
Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta
que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no
processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter
assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas
quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute
receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer
saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para
natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute
preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos
agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo
somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser
moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-
la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se
efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na
comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida
Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como
penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de
seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a
respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para
entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma
caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas
podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a
254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437
95
reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais
preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257
256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440
96
CONCLUSAtildeO
Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho
Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de
consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a
accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias
(prevenccedilatildeo de crimes)
Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em
tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a
construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem
mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa
injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal
Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o
merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem
justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees
suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis
Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois
equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e
designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em
segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os
teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal
ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo
que o merecimento pretende capturar
Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo
explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-
97
perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)
Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal
Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo
criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute
convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma
vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute
sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo
Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como
educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria
dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo
compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos
Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que
definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta
seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da
comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer
pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada
criminosa
Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio
autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo
se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a
puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo
Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O
traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica
desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o
crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel
98
Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se
entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave
autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada
daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de
autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como
forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada
no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento
Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e
a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa
aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido
99
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3
Ao meu tio Luiz Olavo Motta Saldanha o ldquoMariardquo tambeacutem conhecido como ldquoo homem mais bonito do Alegreterdquo
Agrave minha voacute Lula Motta Saldanha Na casa do Pai haacute muitas moradas
e estou certo que ela reside em uma delas Meu bisavocirc Alfredo Motta na ocasiatildeo da morte de sua esposa Luciana Theodora Motta
escreveu estas palavras que agora dedico para minha voacute
Viver sem aquela a quem ama Eacute rolar sobre a terra jaacute sem norte
Eacute cumprir as leis de nosso Deus Desejando sem temor que venha a morte
Agrave minha matildee Liacutegia Saldanha Cavalcante cuja bondade e retidatildeo satildeo
atestadas por todas as accedilotildees de sua vida Para vocecirc matildee queria dedicar palavras de conforto mas natildeo as tenho
4
RESUMO
O presente trabalho vinculado agrave Linha de Pesquisa Sistemas Juriacutedico-
Penais Contemporacircneos tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a
compreensatildeo do problema da puniccedilatildeo criminal Para tanto pretende-se buscar um novo
olhar sobre o tema historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas Em
primeiro lugar busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados assim evitando equiacutevocos na
anaacutelise do objeto em questatildeo Em segundo lugar analisam-se as teorias retributivas
oriundas da common law dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff estudada
no terceiro capiacutetulo
Palavras-chave puniccedilatildeo criminal retribuiccedilatildeo negativa retribuiccedilatildeo positiva teorias
preventivas teorias mistas consequencialismo e natildeo-consequencialismo merecimento
teorias comunicativas penitecircncia secular arrependimento
5
ABSTRACT
This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary
Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal
punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically
divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the
concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly
analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs
communicative theory studied in the third chapter
Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive
theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular
penance repentance
6
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 08
CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19
121 Kant o paradigma 25
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28
CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34
212 Criacutetica 35
213 Formulaccedilatildeo atual 37
214 Consideraccedilotildees finais 39
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41
221 Criacutetica 47
222 Consideraccedilotildees finais 51
CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67
323 Recapitulando 70
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76
7
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86
333 A penitecircncia e o Estado 90
CONCLUSAtildeO 96
REFEREcircNCIAS 99
8
INTRODUCcedilAtildeO
Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas
e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc
Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem
nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos
perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a
atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas
formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este
estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto
eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena
O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se
divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo
manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de
problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se
mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento
teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-
se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e
retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo
apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas
novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das
teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina
com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente
trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria
Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute
porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na
common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se
propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este
utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo
9
Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da
justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em
contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas
Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades
enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O
aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu
como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a
pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo
eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o
criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela
conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo
mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura
e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam
justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como
retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes
elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o
autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser
justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para
uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal
10
CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)
O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado
Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja
imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel
pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo
encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias
preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute
identificado na puniccedilatildeo mesma
Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas
finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)
ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos
(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo
geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo
especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-
lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma
miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes
com as teorias retributivas
O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de
preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia
1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001
11
ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao
lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as
palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo
adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas
consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa
A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5
A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a
justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga
seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber
de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela
responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais
3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73
12
velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes
estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas
ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada
disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se
trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes
Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)
apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo
estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado
independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa
razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente
correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que
justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio
O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima
torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo
punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no
caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que
ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo
podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que
nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos
anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes
mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo
Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu
6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260
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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7
Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega
que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo
dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente
(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta
nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees
morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas
sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor
noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos
empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em
algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9
A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a
puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas
seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo
maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado
em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave
verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila
que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de
quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de
todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser
verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta
de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol
das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que
fossem os dados apresentados
7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160
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A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras
consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas
que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo
puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras
palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos
efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de
merecimento das retribuiccedilotildees negativas11
Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao
inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves
objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve
explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse
sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute
ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante
sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias
consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)
Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14
do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades
preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser
imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais
desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15
Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime
entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos
variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo
direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes
11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97
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materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante
caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades
preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo
teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo
em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que
nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia
Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-
86) Diz-se entatildeo ao autor
A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16
Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria
Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na
mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada
tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais
e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas
direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los
como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados
Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque
tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis
16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010
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como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas
anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17
Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam
outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre
aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a
diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao
desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a
junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute
muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19
consequencialistas e deontoloacutegicas
Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo
feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral
positiva
A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber
uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre
outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente
naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e
17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347
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assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o
alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda
ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees
desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias
retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido
conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo
encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se
harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda
Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar
de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja
limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-
americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram
a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de
prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue
incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo
funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim
conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar
nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que
enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para
validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral
certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23
Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por
essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele
apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se
importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a
despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim
Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho
21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93
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benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da
metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)
poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar
uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta
O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias
preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente
nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado
a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada
prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a
anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma
O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28
Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode
ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer
que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa
todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo
vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para
chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste
trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem
mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar
a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para
garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma
violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz
que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia
25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22
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quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material
aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo
efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos
provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um
sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)
Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute
aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem
identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo
eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de
prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser
admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar
nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a
puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o
bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de
alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que
existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by
default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e
castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos
para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado
independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste
trabalho
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS
Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas
conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees
Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam
20
batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez
de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia
ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na
criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante
Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto
que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que
focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido
Tolstoy Ressurreiccedilatildeo
Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste
estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em
apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como
delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir
sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas
teorias
O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma
uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados
porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute
buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do
crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as
teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da
perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as
teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas
29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231
21
remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas
delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila
Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das
teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa
sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas
retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva
coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees
biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar
com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave
puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo
de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se
comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia
um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila
em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse
restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois
soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna
em nome e no lugar do homem pecador por natureza33
Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a
natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas
31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455
22
aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando
provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35
Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a
passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de
proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar
que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o
marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um
recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima
gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo
sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um
equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36
Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a
narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no
tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e
dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua
face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)
Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo
embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo
Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a
com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da
raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que
aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010
23
importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso
porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa
porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem
ofendido inocentemente sofreurdquo39
Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas
sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave
incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa
racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e
dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou
outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os
como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar
essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio
pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser
administrada
Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se
que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o
tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo
Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41
O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na
distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da
puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente
38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238
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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo
ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da
admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a
sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz
que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas
preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do
cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja
a meta-geral justificante da puniccedilatildeo
Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a
compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na
interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute
distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma
igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas
previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca
equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade
aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se
que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a
coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo
positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda
que posteriormente seraacute comutada
Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta
a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos
punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo
Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou
mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo
42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62
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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso
ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a
balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao
criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo
de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias
retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e
castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral
pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados
em um bemrdquo45
Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam
as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela
voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo
corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a
justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do
sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou
moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa
e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo
soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a
sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais
beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela
qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas
121 Kant o paradigma
Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente
neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que
44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235
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pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar
todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo
adequada da puniccedilatildeo criminal
Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da
teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por
exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar
pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo
ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina
do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas
proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma
minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar
transcreve-se apenas um dos argumentos
Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49
De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da
puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem
bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples
meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50
Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no
entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma
perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51
47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006
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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias
retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil
Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser
morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia
ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo
um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a
sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute
difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe
o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal
humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute
evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem
disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida
em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant
esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute
visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia
simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os
culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo
aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)
Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a
demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra
de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance
da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a
proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que
natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o
sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual
penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento
daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como
agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas
52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX
28
demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo
eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se
torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o
conhecemos
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico
Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do
pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa
tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55
Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de
fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena
justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do
dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico
kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia
entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado
ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se
racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos
O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo
de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes
seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar
do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua
fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o
sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a
54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20
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compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito
lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute
realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na
neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os
ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade
poliacutetica
Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo
livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem
que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma
manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na
culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim
as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a
puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de
alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60
Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo
que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em
grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres
soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos
iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou
semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61
Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem
punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um
58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984
30
decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da
pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que
a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63
Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de
fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo
nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa
para segundo plano
Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria
retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo
Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada
com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo
crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa
ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que
diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam
de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo
explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto
nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a
coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo
Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele
reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito
de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo
aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio
da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute
63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91
31
por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo
uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66
Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos
movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por
inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda
a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o
porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo
de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O
maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter
livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal
que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado
que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto
esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver
toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas
para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico
da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos
65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89
32
CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)
Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se
comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos
lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza
Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos
Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo
(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque
restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime
Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas
enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas
apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais
defensores
Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo
falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico
sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos
culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais
(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se
retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro
Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas
consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo
dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir
69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq
33
Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista
que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre
suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute
consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a
autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a
puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de
infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado
apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance
A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos
cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o
benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada
indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela
apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos
outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos
- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual
possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72
Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo
(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos
outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um
ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de
qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o
fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos
outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e
fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de
constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele
cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida
obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do
71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007
34
deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair
balance73
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade
Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras
tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem
obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles
ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um
valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia
individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode
ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o
criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em
ser punido
A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o
indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o
estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos
importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem
bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo
aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta
contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu
da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua
proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a
73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas
35
justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei
universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a
decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute
respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou
desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria
puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido
a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as
outras leis sociais adotadas77
Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja
formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas
marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo
entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras
sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma
forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para
com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da
obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir
com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de
natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute
poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada
de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem
homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78
212 Criacutetica
O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo
empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas
76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq
36
principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede
e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores
de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de
privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam
recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um
bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse
caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo
interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade
A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso
merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem
indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a
essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre
os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo
que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que
realmente podemos ver o crime dessa forma
A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se
todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo
natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe
sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios
que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria
das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que
eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do
sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala
prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar
algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que
constitui verdadeiro mala in se
79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211
37
Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave
integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre
terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos
estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos
nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a
natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a
viacutetima sofreu80
Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas
quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um
consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a
maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se
constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe
uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que
nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal
Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso
consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma
vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de
crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente
querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida
com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em
verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita
com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de
essa coisa ser a puniccedilatildeo
213 Formulaccedilatildeo Atual
80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq
38
Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais
Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o
conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a
ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o
dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo
e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em
uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem
esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o
segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes
um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa
beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo
levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84
O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a
argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo
ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro
nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de
iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de
benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular
Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas
ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a
autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar
determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles
e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos
Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o
indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente
escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e
83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq
39
reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento
de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo
daqueles que natildeo obedecemrdquo86
Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade
em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode
quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para
marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em
qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a
regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O
mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -
de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim
como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a
lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais
severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras
consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por
conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria
da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a
conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que
outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e
doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88
214 Consideraccedilotildees finais
86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272
40
A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo
consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com
o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias
retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para
fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais
variados tipos de crimes
Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade
poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto
mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua
natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir
quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras
ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se
violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou
convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que
precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem
ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples
distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a
versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade
Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa
relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees
convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um
estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio
o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente
estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a
consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada
mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta
89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280
41
E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples
poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave
teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico
Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91
Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias
eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para
punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles
merecem sofrer
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL
San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through
You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold
San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell
May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good
Johnny Cash San Quentin
Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica
desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso
comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o
processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim
como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio
autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -
91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14
42
apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -
poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele
merece sofrer92
Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular
a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas
proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao
comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental
para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93
Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora
normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute
diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a
violaccedilatildeo de qualquer lei
Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo
deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute
sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da
puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem
para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes
componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa
moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido
empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as
implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em
segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo
errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja
experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para
com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente
ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a
disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a
92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97
43
ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo
autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa
que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95
E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser
empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso
entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado
Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de
reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a
presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de
estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que
promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da
puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica
principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97
Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado
entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e
compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho
sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este
deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a
desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos
quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer
Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave
95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir
44
resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98
Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo
se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha
do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o
que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades
paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez
que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido
e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores
tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100
Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo
moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris
explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo
cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel
ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao
menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute
necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de
prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes
apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira
que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo
98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896
45
consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro
a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica
condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma
mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir
sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para
sua liberdade103 Sendo assim
Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104
A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que
aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de
transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de
refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a
escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de
apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira
de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem
razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma
inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107
Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a
aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo
Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados
com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou
103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq
46
material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo
do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece
consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de
liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus
desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute
proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe
uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as
pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a
ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo
comunicado por aquele que o estaacute punindo109
Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da
puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas
substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo
estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de
comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles
possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido
utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas
usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a
ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute
semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente
doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma
mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas
accedilotildees111
E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria
afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os
cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas
satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam
108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215
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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve
ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino
ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o
estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada
porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e
imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa
aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114
Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a
puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria
realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo
estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se
possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas
das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi
erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo
esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115
221 Criacutetica
Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo
satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com
uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais
maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de
obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma
poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja
112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985
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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo
estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo
inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo
noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base
nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo
compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre
os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria
liberal de Estado117
O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo
Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que
de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e
puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o
criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido
o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa
se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos
alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar
ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a
permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas
que as justificam isso requer outro argumento119
Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma
poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do
liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral
assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios
limitadores da liberdade120
117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277
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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees
poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum
momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de
atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo
argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em
sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm
principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre
que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido
natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a
puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca
causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se
torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo
a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem
voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em
torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre
as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122
Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem
moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso
perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos
rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito
senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias
contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria
convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila
sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica
previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa
relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente
pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo
121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304
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poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos
natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais
sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os
outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e
oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra
serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125
Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo
possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo
comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de
prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele
recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor
que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma
ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio
para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do
modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a
incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais
exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum
benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre
ele contra sua vontade127
E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy
direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma
percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo
conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do
sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para
125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352
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submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee
amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim
uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia
ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a
capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se
torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um
tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a
capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo
esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129
222 Consideraccedilotildees finais
As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos
do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das
formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo
de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma
teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos
ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo
Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e
(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos
que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada
em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para
mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada
Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte
Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir
crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo
qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo
128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359
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de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas
boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos
ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter
cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a
maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem
um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles
conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo
mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral
De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela
influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por
que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir
iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria
para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute
precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de
uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave
para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes
filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e
pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos
apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute
mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas
indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131
130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209
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CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA
Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e
portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre
sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de
puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de
alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria
completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos
do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em
outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de
que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida
Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica
especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o
contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal
normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade
acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de
comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma
pretensatildeo de esgotaacute-lo
Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e
liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos
cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute
claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual
eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute
legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses
sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a
enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no
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fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se
encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na
qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo
do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133
O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas
teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes
teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode
olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg
Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134
Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas
preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos
individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os
132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82
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criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os
bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade
no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa
sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode
ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135
Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais
caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos
membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades
comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um
apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns
devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem
compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens
individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma
vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da
comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros
(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que
135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos
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aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que
aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137
E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes
devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de
em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da
liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui
eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses
bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes
possibilite e lhes confira significado e sentido138
Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal
dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro
que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do
conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees
Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara
quais dessas condutas erradas constituem crimes
A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139
Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar
que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua
137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33
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perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos
respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder
(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que
natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave
autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se
forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais
forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos
ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio
vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos
autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute
desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei
natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -
se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142
Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas
sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo
ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo
criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os
valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar
suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para
o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem
muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade
moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)
140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34
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Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como
membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto
de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim
como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada
indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os
membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser
persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no
reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo
pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei
contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido
um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa
Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa
como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como
depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da
Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da
comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra
ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a
puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do
sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um
144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003
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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias
de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute
porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode
interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir
ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute
podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar
o dano e reconciliar os membros da comunidade148
Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de
certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a
qual pertencemos
Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149
146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71
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Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente
por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo
percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos
tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores
decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou
ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do
indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da
tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala
Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo
comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a
mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150
Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo
em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o
criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo
moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros
cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas
cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria
natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites
para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado
como membro integral dela151
Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores
comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em
comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos
crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de
carreirardquo (III) ataques terroristas152
150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306
61
Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute
espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem
se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a
puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor
queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente
admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada
nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz
de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos
conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo
consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar
dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer
nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o
que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado
determinar a extensatildeo da comunidade
Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos
criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva
afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para
evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a
comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais
se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem
poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute
importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que
os culpados merecem sofrer155
153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79
62
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)
Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de
comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo
privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou
qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios
puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute
necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de
censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e
condutas corretos
A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos
como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de
cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de
Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo
simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser
buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma
pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute
crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a
concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von
n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute
63
Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar
satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que
o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159
Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva
da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas
entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo
privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um
determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico
especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de
ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou
da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160
Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas
negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio
autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo
demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a
iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic
nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o
sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo
(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse
enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)
ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns
indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e
informalmente absolvidos desse mesmo crime161
necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80
64
Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo
qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo
convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como
o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro
mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da
puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o
trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem
inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade
criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a
dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo
A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser
transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados
de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo
naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa
senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e
ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute
meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo
condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal
finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e
adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165
Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita
somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por
exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas
preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo
162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306
65
mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria
mensagem166
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)
No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e
a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o
conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo
de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente
daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para
algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada
pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse
miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a
existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168
A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees
legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes
violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento
uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente
desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute
socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o
sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da
166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51
66
vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e
encargos
O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de
puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo
dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta
errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para
desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela
inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em
conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral
deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do
medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente
comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na
linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor
A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172
A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles
entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute
170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41
67
uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento
ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser
subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o
sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse
nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo
denominadas de expressionismo extriacutenseco
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)
Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do
chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma
convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime
desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos
Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que
A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173
Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja
arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente
formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou
natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que
criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade
natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo
173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517
68
cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios
interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo
entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem
que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174
Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute
endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos
valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente
simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma
severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses
mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute
porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que
uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo
proibida175
Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida
seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute
assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a
seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa
aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim
entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas
menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida
humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem
proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar
penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a
prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de
prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela
eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao
ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado
174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521
69
Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees
histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos
Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a
achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo
dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais
com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os
senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito
havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo
dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a
privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo
encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua
liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado
multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas
falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo
universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o
pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a
conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido
quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou
quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um
preccedilo para fazer negoacutecios179
De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando
como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A
questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial
eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a
lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E
isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo
177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq
70
expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo
sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180
323 Recapitulando
Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a
puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma
mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para
aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado
responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um
todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que
o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a
puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o
repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da
lei
Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas
impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na
sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo
serem comunicadas apenas verbalmente
Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira
denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos
criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura
pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o
efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente
que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa
(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um
180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522
71
meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -
poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos
A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema
como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados
ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual
dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu
uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre
como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se
esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a
gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar
como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem
Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento
externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo
Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181
Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos
anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento
severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute
desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto
central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento
comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se
que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente
correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de
partida pelas razotildees que seguiratildeo
181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296
72
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura
A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser
evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria
absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas
as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos
em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta
intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo
distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve
comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)
legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para
dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente
quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184
O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos
ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser
crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber
que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como
errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma
comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo
nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito
natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque
afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta
seja considerada errada e portanto criminosa
182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211
73
Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve
explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui
diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou
extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente
dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute
diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo
prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente
compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que
frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para
ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que
eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser
bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por
humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute
necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que
uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa
injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e
terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso
prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo
pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem
nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma
sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente
contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle
eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que
podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei
criminalrdquo190
185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165
74
Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute
entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo
decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia
ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca
limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de
censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que
satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno
estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos
consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita
(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado
-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave
conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito
Nas palavras de Duff
Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o
191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295
75
foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192
Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute
um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos
valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para
demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)
quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo
eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente
errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os
vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal
consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e
sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio
senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com
atos moralmente louvaacuteveis ou neutros
A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima
Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas
de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura
adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente
apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja
perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam
apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo
(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute
responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por
causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta
moralmente adequada agrave viacutetima196
192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170
76
Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente
adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade
ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta
moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um
comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como
penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA
Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio
conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que
seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma
pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do
Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal
O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada
197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010
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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199
Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso
mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito
eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de
retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito
penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito
anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas
teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)
E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes
de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a
secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar
na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor
simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem
adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados
aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente
da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do
direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200
Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro
capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela
justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas
normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc
199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13
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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside
exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema
em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado
O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado
enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora
decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e
obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal
que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses
27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo
elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma
desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em
conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o
tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel
incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio
unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais
dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203
Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo
Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo
com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma
reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para
isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai
(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a
conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo
reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da
penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de
conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute
201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado
79
autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo
para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206
Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem
penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para
o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante
explicaccedilatildeo a respeito
Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207
Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro
do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas
transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-
culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de
seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome
de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo
pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando
a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por
quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso
206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678
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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de
caminho210
Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a
ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto
conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o
problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia
ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado
um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o
objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse
senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da
comunidaderdquo212
Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha
importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as
pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como
penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio
de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc
assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de
lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a
delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal
de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como
membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa
situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de
Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e
reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas
acima por exemplo)
210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855
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331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)
Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento
Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento
O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que
este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo
deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos
sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres
de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as
teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes
podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela
se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de
arrependimento
O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215
214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010
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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo
Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto
soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode
arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos
moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de
algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento
constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa
de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi
flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma
atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o
que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir
desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro
podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217
Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo
poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e
ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva
pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas
falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra
do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de
accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute
natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo
arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo
continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade
de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)
Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo
216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17
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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219
A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou
melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente
a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro
devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida
natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da
necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa
a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser
persuadido pela mensagem
Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a
reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem
uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja
mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre
ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o
crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo
(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e
por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta
tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada
219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246
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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela
pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao
processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa
ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo
(hurt) eacute a seguinte
(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor
Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas
e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo
uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que
estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um
jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees
com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida
do que ele fezrdquo223
(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram
prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O
criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo
ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar
meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira
adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma
material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora
carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225
A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e
justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma
resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira
adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem
uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se
222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado
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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade
Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades
que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias
consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir
agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo
apropriado para persegui-lo
Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -
arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para
obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta
em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar
alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas
tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e
Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu
simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila
fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em
consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu
sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha
amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse
respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu
arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute
errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora
se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual
a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e
responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se
com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis
mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade
por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a
tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada
226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo
86
por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se
engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227
Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia
secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se
arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas
que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na
pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar
deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender
Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se
arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o
criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive
reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros
perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia
No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar
o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de
puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a
comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter
puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a
questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no
acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um
processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o
arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se
que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave
227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121
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gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-
nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute
verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa
redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso
que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas
consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo
do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma
do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada
ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria
portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida
Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se
arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena
Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum
deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo
Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a
pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade
intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica
que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute
assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A
resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se
alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute
contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da
mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte
devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos
levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo
moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da
comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230
229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123
88
John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento
distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas
razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do
que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele
merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo
de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos
primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento
determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando
instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a
mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o
ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como
penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que
esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233
O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia
secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a
toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que
o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de
puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia
merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a
ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von
Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e
portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia
exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia
Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente
sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de
prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos
poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa
231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84
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comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e
a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo
apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a
igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas
demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser
detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo
justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o
criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da
misericoacuterdia
Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila
comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila
criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto
desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo
moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute
tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender
O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237
Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o
Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre
certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a
comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos
outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do
criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas
ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte
236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418
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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico
221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como
penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch
333 A penitecircncia e o Estado
Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre
a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral
adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo
punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a
caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um
processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de
penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a
privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a
formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de
transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida
externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos
internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente
apropriada para responder agrave mensagem de censura238
E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute
arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto
com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239
Em razatildeo disso o autor indaga
Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa
238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120
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indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240
Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de
Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as
poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo
importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas
tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou
daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto
o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar
respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a
um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado
Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda
que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a
teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os
temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal
embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241
Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a
criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das
pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um
momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva
240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009
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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a
exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com
a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com
Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que
se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase
inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar
juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode
ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato
injustordquo245
Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute
um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da
natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses
elementos natildeo uma separaccedilatildeo247
Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente
corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade
sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas
respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute
as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez
tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo
242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129
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criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem
punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato
Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito
[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250
Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a
intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no
ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se
salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou
tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o
preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o
criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo
devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um
nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela
mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que
ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de
249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491
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certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido
pago254
Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar
um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch
com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria
Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta
que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no
processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter
assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas
quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute
receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer
saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para
natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute
preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos
agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo
somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser
moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-
la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se
efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na
comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida
Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como
penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de
seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a
respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para
entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma
caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas
podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a
254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437
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reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais
preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257
256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440
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CONCLUSAtildeO
Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho
Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de
consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a
accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias
(prevenccedilatildeo de crimes)
Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em
tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a
construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem
mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa
injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal
Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o
merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem
justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees
suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis
Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois
equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e
designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em
segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os
teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal
ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo
que o merecimento pretende capturar
Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo
explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-
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perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)
Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal
Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo
criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute
convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma
vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute
sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo
Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como
educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria
dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo
compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos
Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que
definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta
seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da
comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer
pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada
criminosa
Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio
autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo
se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a
puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo
Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O
traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica
desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o
crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel
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Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se
entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave
autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada
daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de
autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como
forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada
no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento
Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e
a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa
aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido
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4
RESUMO
O presente trabalho vinculado agrave Linha de Pesquisa Sistemas Juriacutedico-
Penais Contemporacircneos tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a
compreensatildeo do problema da puniccedilatildeo criminal Para tanto pretende-se buscar um novo
olhar sobre o tema historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas Em
primeiro lugar busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados assim evitando equiacutevocos na
anaacutelise do objeto em questatildeo Em segundo lugar analisam-se as teorias retributivas
oriundas da common law dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff estudada
no terceiro capiacutetulo
Palavras-chave puniccedilatildeo criminal retribuiccedilatildeo negativa retribuiccedilatildeo positiva teorias
preventivas teorias mistas consequencialismo e natildeo-consequencialismo merecimento
teorias comunicativas penitecircncia secular arrependimento
5
ABSTRACT
This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary
Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal
punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically
divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the
concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly
analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs
communicative theory studied in the third chapter
Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive
theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular
penance repentance
6
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 08
CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19
121 Kant o paradigma 25
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28
CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34
212 Criacutetica 35
213 Formulaccedilatildeo atual 37
214 Consideraccedilotildees finais 39
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41
221 Criacutetica 47
222 Consideraccedilotildees finais 51
CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67
323 Recapitulando 70
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76
7
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86
333 A penitecircncia e o Estado 90
CONCLUSAtildeO 96
REFEREcircNCIAS 99
8
INTRODUCcedilAtildeO
Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas
e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc
Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem
nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos
perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a
atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas
formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este
estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto
eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena
O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se
divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo
manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de
problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se
mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento
teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-
se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e
retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo
apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas
novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das
teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina
com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente
trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria
Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute
porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na
common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se
propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este
utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo
9
Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da
justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em
contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas
Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades
enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O
aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu
como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a
pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo
eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o
criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela
conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo
mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura
e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam
justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como
retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes
elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o
autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser
justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para
uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal
10
CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)
O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado
Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja
imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel
pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo
encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias
preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute
identificado na puniccedilatildeo mesma
Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas
finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)
ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos
(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo
geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo
especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-
lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma
miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes
com as teorias retributivas
O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de
preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia
1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001
11
ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao
lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as
palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo
adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas
consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa
A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5
A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a
justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga
seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber
de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela
responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais
3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73
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velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes
estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas
ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada
disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se
trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes
Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)
apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo
estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado
independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa
razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente
correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que
justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio
O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima
torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo
punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no
caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que
ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo
podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que
nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos
anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes
mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo
Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu
6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260
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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7
Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega
que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo
dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente
(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta
nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees
morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas
sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor
noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos
empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em
algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9
A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a
puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas
seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo
maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado
em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave
verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila
que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de
quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de
todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser
verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta
de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol
das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que
fossem os dados apresentados
7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160
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A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras
consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas
que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo
puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras
palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos
efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de
merecimento das retribuiccedilotildees negativas11
Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao
inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves
objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve
explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse
sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute
ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante
sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias
consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)
Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14
do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades
preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser
imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais
desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15
Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime
entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos
variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo
direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes
11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97
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materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante
caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades
preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo
teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo
em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que
nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia
Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-
86) Diz-se entatildeo ao autor
A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16
Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria
Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na
mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada
tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais
e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas
direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los
como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados
Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque
tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis
16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010
16
como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas
anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17
Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam
outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre
aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a
diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao
desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a
junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute
muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19
consequencialistas e deontoloacutegicas
Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo
feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral
positiva
A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber
uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre
outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente
naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e
17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347
17
assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o
alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda
ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees
desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias
retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido
conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo
encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se
harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda
Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar
de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja
limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-
americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram
a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de
prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue
incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo
funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim
conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar
nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que
enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para
validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral
certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23
Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por
essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele
apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se
importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a
despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim
Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho
21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93
18
benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da
metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)
poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar
uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta
O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias
preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente
nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado
a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada
prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a
anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma
O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28
Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode
ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer
que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa
todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo
vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para
chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste
trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem
mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar
a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para
garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma
violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz
que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia
25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22
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quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material
aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo
efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos
provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um
sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)
Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute
aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem
identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo
eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de
prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser
admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar
nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a
puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o
bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de
alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que
existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by
default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e
castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos
para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado
independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste
trabalho
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS
Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas
conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees
Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam
20
batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez
de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia
ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na
criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante
Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto
que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que
focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido
Tolstoy Ressurreiccedilatildeo
Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste
estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em
apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como
delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir
sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas
teorias
O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma
uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados
porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute
buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do
crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as
teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da
perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as
teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas
29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231
21
remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas
delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila
Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das
teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa
sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas
retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva
coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees
biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar
com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave
puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo
de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se
comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia
um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila
em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse
restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois
soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna
em nome e no lugar do homem pecador por natureza33
Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a
natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas
31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455
22
aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando
provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35
Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a
passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de
proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar
que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o
marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um
recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima
gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo
sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um
equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36
Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a
narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no
tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e
dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua
face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)
Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo
embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo
Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a
com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da
raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que
aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010
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importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso
porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa
porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem
ofendido inocentemente sofreurdquo39
Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas
sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave
incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa
racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e
dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou
outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os
como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar
essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio
pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser
administrada
Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se
que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o
tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo
Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41
O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na
distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da
puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente
38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238
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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo
ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da
admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a
sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz
que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas
preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do
cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja
a meta-geral justificante da puniccedilatildeo
Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a
compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na
interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute
distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma
igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas
previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca
equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade
aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se
que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a
coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo
positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda
que posteriormente seraacute comutada
Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta
a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos
punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo
Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou
mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo
42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62
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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso
ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a
balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao
criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo
de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias
retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e
castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral
pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados
em um bemrdquo45
Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam
as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela
voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo
corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a
justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do
sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou
moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa
e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo
soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a
sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais
beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela
qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas
121 Kant o paradigma
Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente
neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que
44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235
26
pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar
todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo
adequada da puniccedilatildeo criminal
Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da
teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por
exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar
pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo
ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina
do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas
proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma
minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar
transcreve-se apenas um dos argumentos
Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49
De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da
puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem
bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples
meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50
Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no
entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma
perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51
47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006
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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias
retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil
Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser
morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia
ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo
um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a
sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute
difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe
o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal
humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute
evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem
disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida
em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant
esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute
visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia
simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os
culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo
aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)
Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a
demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra
de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance
da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a
proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que
natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o
sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual
penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento
daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como
agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas
52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX
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demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo
eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se
torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o
conhecemos
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico
Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do
pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa
tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55
Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de
fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena
justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do
dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico
kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia
entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado
ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se
racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos
O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo
de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes
seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar
do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua
fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o
sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a
54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20
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compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito
lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute
realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na
neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os
ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade
poliacutetica
Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo
livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem
que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma
manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na
culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim
as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a
puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de
alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60
Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo
que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em
grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres
soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos
iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou
semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61
Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem
punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um
58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984
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decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da
pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que
a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63
Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de
fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo
nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa
para segundo plano
Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria
retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo
Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada
com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo
crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa
ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que
diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam
de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo
explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto
nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a
coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo
Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele
reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito
de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo
aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio
da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute
63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91
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por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo
uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66
Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos
movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por
inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda
a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o
porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo
de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O
maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter
livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal
que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado
que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto
esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver
toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas
para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico
da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos
65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89
32
CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)
Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se
comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos
lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza
Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos
Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo
(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque
restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime
Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas
enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas
apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais
defensores
Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo
falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico
sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos
culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais
(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se
retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro
Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas
consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo
dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir
69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq
33
Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista
que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre
suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute
consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a
autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a
puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de
infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado
apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance
A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos
cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o
benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada
indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela
apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos
outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos
- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual
possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72
Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo
(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos
outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um
ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de
qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o
fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos
outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e
fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de
constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele
cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida
obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do
71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007
34
deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair
balance73
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade
Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras
tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem
obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles
ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um
valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia
individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode
ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o
criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em
ser punido
A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o
indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o
estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos
importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem
bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo
aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta
contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu
da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua
proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a
73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas
35
justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei
universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a
decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute
respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou
desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria
puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido
a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as
outras leis sociais adotadas77
Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja
formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas
marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo
entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras
sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma
forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para
com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da
obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir
com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de
natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute
poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada
de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem
homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78
212 Criacutetica
O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo
empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas
76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq
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principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede
e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores
de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de
privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam
recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um
bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse
caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo
interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade
A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso
merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem
indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a
essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre
os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo
que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que
realmente podemos ver o crime dessa forma
A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se
todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo
natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe
sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios
que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria
das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que
eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do
sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala
prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar
algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que
constitui verdadeiro mala in se
79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211
37
Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave
integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre
terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos
estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos
nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a
natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a
viacutetima sofreu80
Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas
quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um
consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a
maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se
constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe
uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que
nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal
Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso
consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma
vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de
crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente
querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida
com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em
verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita
com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de
essa coisa ser a puniccedilatildeo
213 Formulaccedilatildeo Atual
80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq
38
Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais
Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o
conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a
ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o
dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo
e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em
uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem
esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o
segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes
um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa
beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo
levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84
O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a
argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo
ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro
nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de
iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de
benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular
Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas
ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a
autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar
determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles
e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos
Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o
indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente
escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e
83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq
39
reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento
de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo
daqueles que natildeo obedecemrdquo86
Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade
em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode
quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para
marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em
qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a
regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O
mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -
de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim
como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a
lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais
severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras
consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por
conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria
da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a
conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que
outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e
doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88
214 Consideraccedilotildees finais
86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272
40
A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo
consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com
o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias
retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para
fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais
variados tipos de crimes
Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade
poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto
mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua
natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir
quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras
ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se
violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou
convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que
precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem
ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples
distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a
versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade
Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa
relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees
convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um
estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio
o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente
estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a
consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada
mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta
89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280
41
E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples
poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave
teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico
Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91
Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias
eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para
punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles
merecem sofrer
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL
San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through
You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold
San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell
May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good
Johnny Cash San Quentin
Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica
desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso
comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o
processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim
como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio
autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -
91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14
42
apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -
poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele
merece sofrer92
Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular
a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas
proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao
comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental
para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93
Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora
normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute
diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a
violaccedilatildeo de qualquer lei
Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo
deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute
sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da
puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem
para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes
componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa
moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido
empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as
implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em
segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo
errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja
experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para
com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente
ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a
disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a
92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97
43
ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo
autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa
que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95
E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser
empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso
entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado
Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de
reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a
presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de
estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que
promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da
puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica
principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97
Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado
entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e
compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho
sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este
deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a
desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos
quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer
Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave
95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir
44
resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98
Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo
se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha
do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o
que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades
paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez
que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido
e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores
tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100
Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo
moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris
explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo
cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel
ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao
menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute
necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de
prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes
apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira
que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo
98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896
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consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro
a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica
condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma
mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir
sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para
sua liberdade103 Sendo assim
Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104
A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que
aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de
transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de
refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a
escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de
apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira
de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem
razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma
inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107
Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a
aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo
Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados
com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou
103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq
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material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo
do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece
consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de
liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus
desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute
proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe
uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as
pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a
ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo
comunicado por aquele que o estaacute punindo109
Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da
puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas
substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo
estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de
comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles
possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido
utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas
usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a
ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute
semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente
doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma
mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas
accedilotildees111
E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria
afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os
cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas
satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam
108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215
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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve
ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino
ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o
estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada
porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e
imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa
aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114
Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a
puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria
realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo
estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se
possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas
das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi
erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo
esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115
221 Criacutetica
Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo
satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com
uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais
maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de
obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma
poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja
112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985
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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo
estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo
inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo
noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base
nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo
compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre
os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria
liberal de Estado117
O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo
Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que
de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e
puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o
criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido
o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa
se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos
alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar
ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a
permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas
que as justificam isso requer outro argumento119
Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma
poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do
liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral
assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios
limitadores da liberdade120
117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277
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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees
poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum
momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de
atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo
argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em
sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm
principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre
que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido
natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a
puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca
causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se
torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo
a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem
voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em
torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre
as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122
Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem
moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso
perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos
rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito
senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias
contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria
convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila
sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica
previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa
relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente
pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo
121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304
50
poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos
natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais
sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os
outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e
oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra
serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125
Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo
possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo
comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de
prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele
recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor
que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma
ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio
para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do
modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a
incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais
exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum
benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre
ele contra sua vontade127
E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy
direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma
percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo
conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do
sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para
125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352
51
submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee
amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim
uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia
ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a
capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se
torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um
tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a
capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo
esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129
222 Consideraccedilotildees finais
As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos
do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das
formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo
de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma
teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos
ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo
Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e
(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos
que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada
em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para
mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada
Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte
Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir
crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo
qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo
128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359
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de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas
boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos
ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter
cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a
maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem
um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles
conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo
mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral
De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela
influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por
que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir
iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria
para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute
precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de
uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave
para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes
filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e
pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos
apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute
mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas
indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131
130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209
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CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA
Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e
portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre
sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de
puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de
alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria
completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos
do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em
outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de
que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida
Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica
especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o
contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal
normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade
acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de
comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma
pretensatildeo de esgotaacute-lo
Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e
liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos
cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute
claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual
eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute
legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses
sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a
enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no
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fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se
encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na
qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo
do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133
O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas
teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes
teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode
olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg
Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134
Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas
preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos
individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os
132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82
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criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os
bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade
no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa
sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode
ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135
Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais
caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos
membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades
comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um
apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns
devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem
compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens
individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma
vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da
comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros
(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que
135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos
56
aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que
aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137
E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes
devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de
em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da
liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui
eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses
bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes
possibilite e lhes confira significado e sentido138
Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal
dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro
que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do
conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees
Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara
quais dessas condutas erradas constituem crimes
A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139
Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar
que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua
137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33
57
perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos
respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder
(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que
natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave
autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se
forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais
forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos
ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio
vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos
autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute
desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei
natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -
se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142
Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas
sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo
ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo
criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os
valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar
suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para
o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem
muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade
moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)
140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34
58
Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como
membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto
de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim
como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada
indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os
membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser
persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no
reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo
pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei
contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido
um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa
Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa
como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como
depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da
Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da
comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra
ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a
puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do
sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um
144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003
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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias
de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute
porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode
interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir
ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute
podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar
o dano e reconciliar os membros da comunidade148
Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de
certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a
qual pertencemos
Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149
146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71
60
Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente
por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo
percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos
tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores
decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou
ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do
indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da
tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala
Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo
comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a
mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150
Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo
em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o
criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo
moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros
cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas
cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria
natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites
para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado
como membro integral dela151
Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores
comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em
comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos
crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de
carreirardquo (III) ataques terroristas152
150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306
61
Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute
espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem
se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a
puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor
queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente
admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada
nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz
de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos
conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo
consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar
dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer
nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o
que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado
determinar a extensatildeo da comunidade
Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos
criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva
afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para
evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a
comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais
se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem
poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute
importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que
os culpados merecem sofrer155
153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79
62
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)
Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de
comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo
privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou
qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios
puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute
necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de
censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e
condutas corretos
A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos
como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de
cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de
Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo
simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser
buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma
pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute
crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a
concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von
n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute
63
Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar
satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que
o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159
Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva
da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas
entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo
privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um
determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico
especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de
ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou
da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160
Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas
negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio
autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo
demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a
iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic
nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o
sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo
(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse
enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)
ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns
indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e
informalmente absolvidos desse mesmo crime161
necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80
64
Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo
qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo
convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como
o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro
mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da
puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o
trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem
inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade
criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a
dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo
A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser
transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados
de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo
naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa
senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e
ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute
meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo
condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal
finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e
adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165
Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita
somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por
exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas
preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo
162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306
65
mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria
mensagem166
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)
No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e
a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o
conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo
de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente
daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para
algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada
pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse
miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a
existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168
A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees
legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes
violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento
uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente
desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute
socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o
sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da
166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51
66
vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e
encargos
O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de
puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo
dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta
errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para
desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela
inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em
conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral
deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do
medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente
comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na
linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor
A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172
A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles
entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute
170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41
67
uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento
ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser
subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o
sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse
nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo
denominadas de expressionismo extriacutenseco
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)
Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do
chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma
convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime
desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos
Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que
A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173
Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja
arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente
formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou
natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que
criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade
natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo
173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517
68
cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios
interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo
entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem
que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174
Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute
endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos
valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente
simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma
severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses
mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute
porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que
uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo
proibida175
Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida
seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute
assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a
seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa
aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim
entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas
menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida
humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem
proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar
penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a
prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de
prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela
eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao
ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado
174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521
69
Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees
histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos
Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a
achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo
dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais
com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os
senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito
havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo
dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a
privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo
encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua
liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado
multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas
falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo
universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o
pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a
conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido
quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou
quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um
preccedilo para fazer negoacutecios179
De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando
como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A
questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial
eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a
lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E
isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo
177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq
70
expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo
sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180
323 Recapitulando
Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a
puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma
mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para
aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado
responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um
todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que
o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a
puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o
repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da
lei
Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas
impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na
sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo
serem comunicadas apenas verbalmente
Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira
denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos
criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura
pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o
efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente
que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa
(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um
180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522
71
meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -
poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos
A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema
como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados
ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual
dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu
uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre
como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se
esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a
gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar
como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem
Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento
externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo
Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181
Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos
anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento
severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute
desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto
central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento
comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se
que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente
correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de
partida pelas razotildees que seguiratildeo
181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296
72
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura
A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser
evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria
absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas
as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos
em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta
intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo
distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve
comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)
legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para
dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente
quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184
O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos
ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser
crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber
que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como
errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma
comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo
nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito
natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque
afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta
seja considerada errada e portanto criminosa
182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211
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Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve
explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui
diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou
extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente
dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute
diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo
prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente
compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que
frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para
ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que
eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser
bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por
humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute
necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que
uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa
injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e
terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso
prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo
pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem
nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma
sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente
contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle
eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que
podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei
criminalrdquo190
185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165
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Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute
entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo
decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia
ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca
limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de
censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que
satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno
estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos
consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita
(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado
-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave
conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito
Nas palavras de Duff
Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o
191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295
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foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192
Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute
um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos
valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para
demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)
quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo
eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente
errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os
vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal
consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e
sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio
senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com
atos moralmente louvaacuteveis ou neutros
A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima
Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas
de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura
adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente
apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja
perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam
apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo
(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute
responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por
causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta
moralmente adequada agrave viacutetima196
192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170
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Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente
adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade
ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta
moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um
comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como
penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA
Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio
conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que
seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma
pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do
Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal
O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada
197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010
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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199
Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso
mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito
eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de
retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito
penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito
anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas
teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)
E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes
de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a
secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar
na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor
simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem
adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados
aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente
da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do
direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200
Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro
capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela
justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas
normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc
199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13
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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside
exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema
em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado
O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado
enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora
decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e
obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal
que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses
27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo
elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma
desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em
conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o
tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel
incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio
unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais
dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203
Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo
Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo
com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma
reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para
isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai
(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a
conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo
reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da
penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de
conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute
201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado
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autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo
para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206
Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem
penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para
o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante
explicaccedilatildeo a respeito
Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207
Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro
do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas
transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-
culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de
seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome
de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo
pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando
a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por
quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso
206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678
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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de
caminho210
Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a
ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto
conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o
problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia
ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado
um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o
objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse
senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da
comunidaderdquo212
Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha
importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as
pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como
penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio
de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc
assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de
lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a
delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal
de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como
membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa
situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de
Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e
reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas
acima por exemplo)
210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855
81
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)
Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento
Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento
O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que
este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo
deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos
sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres
de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as
teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes
podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela
se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de
arrependimento
O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215
214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010
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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo
Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto
soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode
arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos
moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de
algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento
constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa
de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi
flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma
atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o
que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir
desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro
podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217
Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo
poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e
ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva
pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas
falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra
do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de
accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute
natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo
arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo
continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade
de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)
Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo
216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17
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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219
A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou
melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente
a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro
devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida
natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da
necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa
a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser
persuadido pela mensagem
Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a
reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem
uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja
mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre
ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o
crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo
(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e
por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta
tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada
219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246
84
Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela
pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao
processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa
ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo
(hurt) eacute a seguinte
(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor
Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas
e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo
uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que
estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um
jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees
com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida
do que ele fezrdquo223
(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram
prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O
criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo
ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar
meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira
adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma
material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora
carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225
A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e
justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma
resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira
adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem
uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se
222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado
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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade
Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades
que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias
consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir
agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo
apropriado para persegui-lo
Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -
arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para
obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta
em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar
alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas
tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e
Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu
simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila
fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em
consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu
sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha
amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse
respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu
arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute
errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora
se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual
a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e
responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se
com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis
mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade
por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a
tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada
226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo
86
por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se
engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227
Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia
secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se
arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas
que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na
pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar
deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender
Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se
arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o
criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive
reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros
perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia
No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar
o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de
puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a
comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter
puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a
questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no
acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um
processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o
arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se
que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave
227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121
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gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-
nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute
verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa
redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso
que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas
consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo
do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma
do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada
ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria
portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida
Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se
arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena
Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum
deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo
Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a
pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade
intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica
que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute
assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A
resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se
alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute
contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da
mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte
devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos
levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo
moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da
comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230
229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123
88
John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento
distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas
razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do
que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele
merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo
de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos
primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento
determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando
instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a
mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o
ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como
penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que
esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233
O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia
secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a
toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que
o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de
puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia
merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a
ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von
Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e
portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia
exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia
Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente
sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de
prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos
poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa
231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84
89
comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e
a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo
apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a
igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas
demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser
detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo
justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o
criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da
misericoacuterdia
Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila
comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila
criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto
desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo
moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute
tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender
O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237
Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o
Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre
certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a
comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos
outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do
criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas
ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte
236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418
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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico
221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como
penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch
333 A penitecircncia e o Estado
Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre
a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral
adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo
punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a
caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um
processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de
penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a
privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a
formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de
transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida
externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos
internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente
apropriada para responder agrave mensagem de censura238
E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute
arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto
com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239
Em razatildeo disso o autor indaga
Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa
238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120
91
indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240
Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de
Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as
poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo
importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas
tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou
daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto
o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar
respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a
um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado
Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda
que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a
teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os
temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal
embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241
Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a
criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das
pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um
momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva
240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009
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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a
exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com
a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com
Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que
se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase
inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar
juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode
ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato
injustordquo245
Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute
um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da
natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses
elementos natildeo uma separaccedilatildeo247
Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente
corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade
sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas
respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute
as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez
tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo
242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129
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criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem
punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato
Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito
[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250
Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a
intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no
ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se
salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou
tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o
preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o
criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo
devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um
nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela
mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que
ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de
249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491
94
certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido
pago254
Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar
um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch
com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria
Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta
que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no
processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter
assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas
quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute
receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer
saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para
natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute
preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos
agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo
somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser
moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-
la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se
efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na
comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida
Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como
penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de
seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a
respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para
entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma
caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas
podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a
254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437
95
reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais
preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257
256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440
96
CONCLUSAtildeO
Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho
Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de
consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a
accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias
(prevenccedilatildeo de crimes)
Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em
tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a
construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem
mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa
injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal
Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o
merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem
justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees
suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis
Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois
equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e
designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em
segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os
teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal
ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo
que o merecimento pretende capturar
Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo
explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-
97
perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)
Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal
Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo
criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute
convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma
vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute
sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo
Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como
educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria
dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo
compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos
Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que
definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta
seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da
comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer
pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada
criminosa
Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio
autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo
se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a
puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo
Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O
traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica
desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o
crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel
98
Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se
entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave
autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada
daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de
autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como
forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada
no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento
Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e
a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa
aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido
99
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5
ABSTRACT
This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary
Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal
punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically
divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the
concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly
analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs
communicative theory studied in the third chapter
Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive
theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular
penance repentance
6
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 08
CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19
121 Kant o paradigma 25
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28
CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34
212 Criacutetica 35
213 Formulaccedilatildeo atual 37
214 Consideraccedilotildees finais 39
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41
221 Criacutetica 47
222 Consideraccedilotildees finais 51
CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67
323 Recapitulando 70
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76
7
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86
333 A penitecircncia e o Estado 90
CONCLUSAtildeO 96
REFEREcircNCIAS 99
8
INTRODUCcedilAtildeO
Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas
e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc
Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem
nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos
perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a
atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas
formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este
estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto
eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena
O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se
divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo
manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de
problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se
mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento
teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-
se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e
retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo
apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas
novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das
teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina
com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente
trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria
Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute
porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na
common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se
propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este
utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo
9
Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da
justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em
contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas
Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades
enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O
aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu
como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a
pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo
eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o
criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela
conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo
mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura
e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam
justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como
retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes
elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o
autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser
justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para
uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal
10
CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)
O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado
Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja
imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel
pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo
encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias
preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute
identificado na puniccedilatildeo mesma
Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas
finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)
ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos
(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo
geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo
especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-
lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma
miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes
com as teorias retributivas
O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de
preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia
1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001
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ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao
lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as
palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo
adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas
consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa
A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5
A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a
justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga
seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber
de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela
responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais
3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73
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velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes
estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas
ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada
disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se
trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes
Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)
apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo
estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado
independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa
razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente
correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que
justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio
O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima
torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo
punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no
caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que
ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo
podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que
nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos
anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes
mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo
Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu
6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260
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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7
Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega
que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo
dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente
(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta
nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees
morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas
sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor
noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos
empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em
algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9
A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a
puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas
seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo
maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado
em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave
verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila
que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de
quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de
todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser
verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta
de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol
das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que
fossem os dados apresentados
7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160
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A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras
consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas
que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo
puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras
palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos
efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de
merecimento das retribuiccedilotildees negativas11
Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao
inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves
objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve
explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse
sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute
ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante
sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias
consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)
Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14
do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades
preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser
imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais
desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15
Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime
entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos
variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo
direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes
11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97
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materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante
caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades
preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo
teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo
em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que
nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia
Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-
86) Diz-se entatildeo ao autor
A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16
Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria
Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na
mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada
tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais
e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas
direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los
como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados
Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque
tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis
16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010
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como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas
anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17
Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam
outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre
aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a
diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao
desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a
junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute
muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19
consequencialistas e deontoloacutegicas
Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo
feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral
positiva
A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber
uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre
outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente
naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e
17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347
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assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o
alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda
ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees
desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias
retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido
conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo
encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se
harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda
Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar
de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja
limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-
americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram
a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de
prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue
incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo
funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim
conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar
nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que
enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para
validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral
certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23
Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por
essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele
apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se
importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a
despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim
Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho
21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93
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benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da
metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)
poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar
uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta
O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias
preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente
nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado
a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada
prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a
anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma
O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28
Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode
ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer
que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa
todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo
vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para
chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste
trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem
mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar
a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para
garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma
violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz
que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia
25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22
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quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material
aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo
efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos
provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um
sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)
Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute
aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem
identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo
eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de
prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser
admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar
nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a
puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o
bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de
alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que
existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by
default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e
castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos
para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado
independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste
trabalho
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS
Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas
conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees
Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam
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batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez
de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia
ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na
criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante
Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto
que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que
focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido
Tolstoy Ressurreiccedilatildeo
Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste
estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em
apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como
delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir
sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas
teorias
O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma
uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados
porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute
buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do
crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as
teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da
perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as
teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas
29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231
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remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas
delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila
Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das
teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa
sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas
retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva
coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees
biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar
com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave
puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo
de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se
comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia
um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila
em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse
restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois
soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna
em nome e no lugar do homem pecador por natureza33
Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a
natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas
31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455
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aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando
provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35
Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a
passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de
proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar
que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o
marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um
recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima
gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo
sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um
equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36
Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a
narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no
tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e
dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua
face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)
Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo
embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo
Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a
com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da
raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que
aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010
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importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso
porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa
porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem
ofendido inocentemente sofreurdquo39
Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas
sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave
incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa
racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e
dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou
outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os
como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar
essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio
pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser
administrada
Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se
que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o
tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo
Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41
O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na
distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da
puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente
38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238
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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo
ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da
admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a
sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz
que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas
preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do
cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja
a meta-geral justificante da puniccedilatildeo
Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a
compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na
interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute
distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma
igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas
previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca
equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade
aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se
que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a
coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo
positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda
que posteriormente seraacute comutada
Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta
a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos
punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo
Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou
mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo
42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62
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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso
ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a
balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao
criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo
de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias
retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e
castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral
pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados
em um bemrdquo45
Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam
as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela
voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo
corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a
justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do
sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou
moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa
e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo
soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a
sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais
beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela
qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas
121 Kant o paradigma
Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente
neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que
44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235
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pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar
todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo
adequada da puniccedilatildeo criminal
Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da
teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por
exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar
pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo
ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina
do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas
proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma
minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar
transcreve-se apenas um dos argumentos
Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49
De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da
puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem
bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples
meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50
Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no
entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma
perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51
47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006
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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias
retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil
Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser
morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia
ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo
um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a
sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute
difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe
o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal
humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute
evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem
disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida
em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant
esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute
visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia
simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os
culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo
aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)
Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a
demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra
de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance
da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a
proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que
natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o
sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual
penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento
daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como
agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas
52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX
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demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo
eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se
torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o
conhecemos
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico
Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do
pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa
tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55
Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de
fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena
justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do
dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico
kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia
entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado
ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se
racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos
O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo
de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes
seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar
do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua
fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o
sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a
54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20
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compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito
lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute
realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na
neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os
ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade
poliacutetica
Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo
livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem
que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma
manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na
culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim
as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a
puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de
alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60
Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo
que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em
grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres
soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos
iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou
semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61
Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem
punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um
58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984
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decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da
pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que
a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63
Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de
fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo
nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa
para segundo plano
Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria
retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo
Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada
com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo
crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa
ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que
diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam
de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo
explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto
nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a
coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo
Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele
reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito
de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo
aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio
da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute
63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91
31
por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo
uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66
Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos
movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por
inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda
a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o
porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo
de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O
maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter
livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal
que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado
que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto
esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver
toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas
para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico
da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos
65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89
32
CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)
Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se
comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos
lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza
Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos
Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo
(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque
restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime
Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas
enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas
apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais
defensores
Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo
falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico
sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos
culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais
(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se
retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro
Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas
consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo
dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir
69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq
33
Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista
que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre
suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute
consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a
autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a
puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de
infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado
apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance
A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos
cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o
benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada
indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela
apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos
outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos
- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual
possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72
Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo
(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos
outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um
ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de
qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o
fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos
outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e
fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de
constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele
cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida
obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do
71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007
34
deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair
balance73
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade
Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras
tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem
obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles
ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um
valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia
individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode
ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o
criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em
ser punido
A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o
indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o
estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos
importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem
bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo
aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta
contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu
da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua
proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a
73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas
35
justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei
universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a
decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute
respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou
desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria
puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido
a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as
outras leis sociais adotadas77
Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja
formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas
marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo
entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras
sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma
forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para
com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da
obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir
com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de
natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute
poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada
de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem
homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78
212 Criacutetica
O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo
empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas
76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq
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principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede
e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores
de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de
privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam
recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um
bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse
caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo
interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade
A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso
merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem
indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a
essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre
os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo
que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que
realmente podemos ver o crime dessa forma
A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se
todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo
natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe
sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios
que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria
das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que
eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do
sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala
prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar
algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que
constitui verdadeiro mala in se
79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211
37
Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave
integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre
terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos
estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos
nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a
natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a
viacutetima sofreu80
Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas
quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um
consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a
maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se
constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe
uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que
nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal
Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso
consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma
vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de
crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente
querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida
com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em
verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita
com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de
essa coisa ser a puniccedilatildeo
213 Formulaccedilatildeo Atual
80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq
38
Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais
Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o
conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a
ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o
dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo
e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em
uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem
esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o
segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes
um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa
beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo
levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84
O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a
argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo
ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro
nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de
iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de
benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular
Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas
ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a
autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar
determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles
e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos
Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o
indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente
escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e
83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq
39
reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento
de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo
daqueles que natildeo obedecemrdquo86
Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade
em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode
quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para
marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em
qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a
regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O
mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -
de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim
como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a
lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais
severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras
consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por
conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria
da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a
conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que
outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e
doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88
214 Consideraccedilotildees finais
86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272
40
A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo
consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com
o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias
retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para
fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais
variados tipos de crimes
Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade
poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto
mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua
natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir
quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras
ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se
violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou
convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que
precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem
ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples
distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a
versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade
Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa
relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees
convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um
estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio
o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente
estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a
consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada
mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta
89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280
41
E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples
poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave
teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico
Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91
Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias
eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para
punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles
merecem sofrer
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL
San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through
You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold
San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell
May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good
Johnny Cash San Quentin
Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica
desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso
comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o
processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim
como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio
autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -
91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14
42
apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -
poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele
merece sofrer92
Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular
a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas
proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao
comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental
para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93
Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora
normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute
diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a
violaccedilatildeo de qualquer lei
Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo
deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute
sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da
puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem
para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes
componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa
moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido
empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as
implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em
segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo
errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja
experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para
com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente
ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a
disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a
92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97
43
ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo
autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa
que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95
E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser
empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso
entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado
Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de
reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a
presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de
estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que
promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da
puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica
principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97
Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado
entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e
compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho
sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este
deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a
desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos
quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer
Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave
95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir
44
resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98
Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo
se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha
do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o
que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades
paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez
que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido
e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores
tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100
Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo
moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris
explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo
cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel
ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao
menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute
necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de
prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes
apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira
que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo
98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896
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consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro
a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica
condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma
mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir
sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para
sua liberdade103 Sendo assim
Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104
A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que
aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de
transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de
refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a
escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de
apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira
de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem
razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma
inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107
Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a
aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo
Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados
com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou
103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq
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material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo
do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece
consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de
liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus
desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute
proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe
uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as
pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a
ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo
comunicado por aquele que o estaacute punindo109
Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da
puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas
substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo
estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de
comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles
possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido
utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas
usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a
ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute
semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente
doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma
mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas
accedilotildees111
E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria
afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os
cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas
satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam
108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215
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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve
ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino
ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o
estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada
porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e
imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa
aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114
Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a
puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria
realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo
estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se
possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas
das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi
erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo
esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115
221 Criacutetica
Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo
satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com
uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais
maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de
obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma
poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja
112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985
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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo
estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo
inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo
noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base
nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo
compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre
os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria
liberal de Estado117
O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo
Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que
de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e
puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o
criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido
o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa
se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos
alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar
ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a
permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas
que as justificam isso requer outro argumento119
Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma
poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do
liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral
assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios
limitadores da liberdade120
117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277
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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees
poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum
momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de
atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo
argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em
sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm
principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre
que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido
natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a
puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca
causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se
torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo
a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem
voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em
torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre
as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122
Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem
moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso
perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos
rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito
senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias
contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria
convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila
sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica
previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa
relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente
pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo
121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304
50
poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos
natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais
sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os
outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e
oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra
serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125
Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo
possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo
comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de
prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele
recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor
que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma
ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio
para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do
modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a
incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais
exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum
benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre
ele contra sua vontade127
E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy
direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma
percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo
conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do
sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para
125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352
51
submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee
amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim
uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia
ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a
capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se
torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um
tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a
capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo
esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129
222 Consideraccedilotildees finais
As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos
do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das
formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo
de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma
teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos
ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo
Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e
(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos
que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada
em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para
mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada
Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte
Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir
crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo
qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo
128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359
52
de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas
boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos
ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter
cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a
maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem
um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles
conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo
mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral
De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela
influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por
que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir
iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria
para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute
precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de
uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave
para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes
filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e
pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos
apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute
mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas
indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131
130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209
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CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA
Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e
portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre
sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de
puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de
alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria
completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos
do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em
outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de
que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida
Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica
especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o
contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal
normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade
acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de
comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma
pretensatildeo de esgotaacute-lo
Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e
liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos
cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute
claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual
eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute
legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses
sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a
enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no
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fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se
encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na
qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo
do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133
O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas
teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes
teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode
olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg
Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134
Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas
preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos
individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os
132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82
55
criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os
bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade
no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa
sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode
ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135
Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais
caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos
membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades
comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um
apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns
devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem
compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens
individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma
vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da
comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros
(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que
135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos
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aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que
aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137
E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes
devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de
em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da
liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui
eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses
bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes
possibilite e lhes confira significado e sentido138
Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal
dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro
que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do
conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees
Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara
quais dessas condutas erradas constituem crimes
A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139
Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar
que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua
137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33
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perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos
respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder
(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que
natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave
autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se
forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais
forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos
ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio
vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos
autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute
desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei
natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -
se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142
Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas
sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo
ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo
criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os
valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar
suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para
o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem
muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade
moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)
140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34
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Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como
membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto
de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim
como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada
indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os
membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser
persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no
reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo
pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei
contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido
um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa
Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa
como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como
depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da
Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da
comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra
ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a
puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do
sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um
144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003
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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias
de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute
porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode
interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir
ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute
podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar
o dano e reconciliar os membros da comunidade148
Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de
certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a
qual pertencemos
Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149
146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71
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Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente
por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo
percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos
tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores
decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou
ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do
indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da
tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala
Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo
comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a
mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150
Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo
em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o
criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo
moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros
cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas
cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria
natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites
para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado
como membro integral dela151
Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores
comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em
comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos
crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de
carreirardquo (III) ataques terroristas152
150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306
61
Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute
espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem
se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a
puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor
queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente
admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada
nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz
de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos
conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo
consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar
dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer
nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o
que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado
determinar a extensatildeo da comunidade
Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos
criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva
afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para
evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a
comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais
se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem
poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute
importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que
os culpados merecem sofrer155
153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79
62
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)
Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de
comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo
privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou
qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios
puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute
necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de
censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e
condutas corretos
A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos
como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de
cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de
Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo
simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser
buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma
pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute
crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a
concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von
n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute
63
Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar
satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que
o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159
Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva
da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas
entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo
privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um
determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico
especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de
ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou
da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160
Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas
negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio
autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo
demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a
iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic
nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o
sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo
(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse
enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)
ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns
indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e
informalmente absolvidos desse mesmo crime161
necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80
64
Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo
qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo
convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como
o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro
mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da
puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o
trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem
inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade
criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a
dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo
A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser
transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados
de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo
naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa
senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e
ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute
meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo
condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal
finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e
adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165
Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita
somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por
exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas
preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo
162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306
65
mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria
mensagem166
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)
No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e
a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o
conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo
de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente
daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para
algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada
pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse
miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a
existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168
A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees
legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes
violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento
uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente
desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute
socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o
sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da
166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51
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vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e
encargos
O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de
puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo
dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta
errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para
desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela
inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em
conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral
deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do
medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente
comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na
linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor
A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172
A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles
entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute
170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41
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uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento
ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser
subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o
sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse
nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo
denominadas de expressionismo extriacutenseco
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)
Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do
chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma
convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime
desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos
Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que
A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173
Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja
arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente
formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou
natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que
criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade
natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo
173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517
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cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios
interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo
entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem
que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174
Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute
endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos
valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente
simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma
severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses
mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute
porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que
uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo
proibida175
Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida
seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute
assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a
seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa
aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim
entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas
menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida
humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem
proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar
penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a
prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de
prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela
eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao
ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado
174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521
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Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees
histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos
Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a
achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo
dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais
com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os
senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito
havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo
dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a
privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo
encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua
liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado
multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas
falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo
universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o
pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a
conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido
quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou
quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um
preccedilo para fazer negoacutecios179
De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando
como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A
questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial
eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a
lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E
isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo
177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq
70
expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo
sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180
323 Recapitulando
Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a
puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma
mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para
aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado
responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um
todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que
o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a
puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o
repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da
lei
Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas
impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na
sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo
serem comunicadas apenas verbalmente
Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira
denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos
criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura
pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o
efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente
que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa
(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um
180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522
71
meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -
poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos
A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema
como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados
ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual
dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu
uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre
como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se
esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a
gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar
como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem
Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento
externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo
Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181
Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos
anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento
severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute
desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto
central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento
comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se
que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente
correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de
partida pelas razotildees que seguiratildeo
181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296
72
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura
A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser
evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria
absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas
as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos
em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta
intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo
distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve
comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)
legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para
dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente
quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184
O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos
ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser
crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber
que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como
errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma
comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo
nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito
natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque
afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta
seja considerada errada e portanto criminosa
182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211
73
Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve
explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui
diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou
extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente
dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute
diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo
prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente
compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que
frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para
ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que
eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser
bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por
humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute
necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que
uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa
injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e
terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso
prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo
pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem
nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma
sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente
contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle
eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que
podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei
criminalrdquo190
185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165
74
Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute
entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo
decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia
ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca
limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de
censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que
satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno
estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos
consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita
(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado
-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave
conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito
Nas palavras de Duff
Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o
191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295
75
foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192
Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute
um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos
valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para
demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)
quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo
eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente
errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os
vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal
consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e
sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio
senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com
atos moralmente louvaacuteveis ou neutros
A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima
Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas
de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura
adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente
apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja
perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam
apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo
(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute
responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por
causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta
moralmente adequada agrave viacutetima196
192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170
76
Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente
adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade
ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta
moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um
comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como
penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA
Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio
conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que
seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma
pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do
Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal
O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada
197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010
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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199
Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso
mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito
eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de
retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito
penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito
anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas
teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)
E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes
de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a
secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar
na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor
simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem
adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados
aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente
da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do
direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200
Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro
capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela
justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas
normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc
199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13
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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside
exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema
em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado
O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado
enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora
decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e
obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal
que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses
27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo
elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma
desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em
conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o
tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel
incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio
unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais
dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203
Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo
Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo
com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma
reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para
isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai
(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a
conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo
reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da
penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de
conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute
201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado
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autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo
para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206
Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem
penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para
o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante
explicaccedilatildeo a respeito
Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207
Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro
do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas
transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-
culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de
seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome
de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo
pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando
a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por
quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso
206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678
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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de
caminho210
Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a
ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto
conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o
problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia
ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado
um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o
objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse
senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da
comunidaderdquo212
Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha
importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as
pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como
penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio
de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc
assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de
lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a
delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal
de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como
membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa
situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de
Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e
reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas
acima por exemplo)
210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855
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331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)
Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento
Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento
O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que
este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo
deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos
sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres
de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as
teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes
podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela
se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de
arrependimento
O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215
214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010
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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo
Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto
soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode
arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos
moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de
algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento
constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa
de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi
flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma
atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o
que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir
desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro
podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217
Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo
poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e
ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva
pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas
falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra
do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de
accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute
natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo
arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo
continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade
de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)
Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo
216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17
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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219
A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou
melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente
a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro
devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida
natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da
necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa
a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser
persuadido pela mensagem
Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a
reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem
uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja
mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre
ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o
crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo
(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e
por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta
tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada
219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246
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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela
pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao
processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa
ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo
(hurt) eacute a seguinte
(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor
Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas
e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo
uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que
estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um
jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees
com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida
do que ele fezrdquo223
(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram
prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O
criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo
ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar
meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira
adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma
material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora
carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225
A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e
justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma
resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira
adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem
uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se
222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado
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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade
Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades
que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias
consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir
agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo
apropriado para persegui-lo
Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -
arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para
obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta
em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar
alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas
tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e
Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu
simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila
fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em
consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu
sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha
amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse
respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu
arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute
errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora
se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual
a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e
responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se
com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis
mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade
por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a
tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada
226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo
86
por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se
engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227
Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia
secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se
arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas
que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na
pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar
deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender
Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se
arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o
criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive
reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros
perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia
No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar
o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de
puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a
comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter
puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a
questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no
acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um
processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o
arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se
que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave
227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121
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gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-
nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute
verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa
redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso
que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas
consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo
do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma
do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada
ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria
portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida
Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se
arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena
Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum
deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo
Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a
pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade
intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica
que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute
assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A
resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se
alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute
contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da
mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte
devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos
levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo
moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da
comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230
229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123
88
John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento
distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas
razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do
que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele
merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo
de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos
primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento
determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando
instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a
mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o
ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como
penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que
esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233
O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia
secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a
toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que
o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de
puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia
merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a
ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von
Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e
portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia
exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia
Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente
sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de
prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos
poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa
231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84
89
comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e
a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo
apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a
igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas
demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser
detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo
justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o
criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da
misericoacuterdia
Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila
comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila
criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto
desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo
moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute
tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender
O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237
Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o
Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre
certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a
comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos
outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do
criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas
ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte
236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418
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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico
221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como
penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch
333 A penitecircncia e o Estado
Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre
a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral
adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo
punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a
caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um
processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de
penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a
privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a
formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de
transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida
externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos
internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente
apropriada para responder agrave mensagem de censura238
E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute
arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto
com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239
Em razatildeo disso o autor indaga
Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa
238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120
91
indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240
Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de
Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as
poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo
importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas
tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou
daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto
o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar
respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a
um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado
Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda
que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a
teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os
temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal
embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241
Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a
criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das
pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um
momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva
240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009
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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a
exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com
a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com
Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que
se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase
inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar
juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode
ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato
injustordquo245
Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute
um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da
natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses
elementos natildeo uma separaccedilatildeo247
Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente
corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade
sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas
respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute
as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez
tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo
242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129
93
criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem
punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato
Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito
[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250
Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a
intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no
ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se
salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou
tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o
preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o
criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo
devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um
nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela
mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que
ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de
249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491
94
certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido
pago254
Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar
um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch
com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria
Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta
que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no
processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter
assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas
quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute
receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer
saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para
natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute
preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos
agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo
somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser
moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-
la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se
efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na
comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida
Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como
penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de
seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a
respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para
entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma
caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas
podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a
254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437
95
reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais
preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257
256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440
96
CONCLUSAtildeO
Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho
Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de
consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a
accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias
(prevenccedilatildeo de crimes)
Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em
tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a
construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem
mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa
injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal
Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o
merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem
justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees
suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis
Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois
equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e
designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em
segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os
teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal
ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo
que o merecimento pretende capturar
Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo
explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-
97
perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)
Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal
Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo
criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute
convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma
vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute
sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo
Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como
educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria
dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo
compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos
Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que
definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta
seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da
comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer
pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada
criminosa
Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio
autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo
se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a
puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo
Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O
traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica
desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o
crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel
98
Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se
entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave
autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada
daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de
autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como
forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada
no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento
Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e
a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa
aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido
99
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6
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 08
CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19
121 Kant o paradigma 25
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28
CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34
212 Criacutetica 35
213 Formulaccedilatildeo atual 37
214 Consideraccedilotildees finais 39
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41
221 Criacutetica 47
222 Consideraccedilotildees finais 51
CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67
323 Recapitulando 70
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76
7
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86
333 A penitecircncia e o Estado 90
CONCLUSAtildeO 96
REFEREcircNCIAS 99
8
INTRODUCcedilAtildeO
Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas
e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc
Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem
nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos
perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a
atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas
formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este
estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto
eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena
O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se
divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo
manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de
problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se
mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento
teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-
se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e
retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo
apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas
novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das
teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina
com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente
trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria
Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute
porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na
common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se
propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este
utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo
9
Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da
justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em
contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas
Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades
enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O
aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu
como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a
pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo
eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o
criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela
conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo
mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura
e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam
justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como
retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes
elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o
autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser
justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para
uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal
10
CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)
O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado
Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja
imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel
pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo
encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias
preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute
identificado na puniccedilatildeo mesma
Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas
finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)
ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos
(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo
geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo
especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-
lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma
miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes
com as teorias retributivas
O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de
preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia
1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001
11
ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao
lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as
palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo
adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas
consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa
A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5
A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a
justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga
seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber
de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela
responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais
3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73
12
velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes
estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas
ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada
disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se
trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes
Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)
apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo
estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado
independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa
razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente
correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que
justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio
O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima
torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo
punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no
caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que
ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo
podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que
nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos
anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes
mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo
Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu
6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260
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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7
Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega
que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo
dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente
(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta
nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees
morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas
sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor
noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos
empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em
algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9
A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a
puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas
seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo
maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado
em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave
verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila
que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de
quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de
todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser
verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta
de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol
das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que
fossem os dados apresentados
7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160
14
A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras
consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas
que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo
puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras
palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos
efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de
merecimento das retribuiccedilotildees negativas11
Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao
inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves
objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve
explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse
sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute
ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante
sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias
consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)
Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14
do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades
preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser
imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais
desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15
Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime
entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos
variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo
direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes
11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97
15
materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante
caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades
preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo
teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo
em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que
nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia
Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-
86) Diz-se entatildeo ao autor
A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16
Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria
Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na
mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada
tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais
e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas
direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los
como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados
Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque
tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis
16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010
16
como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas
anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17
Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam
outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre
aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a
diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao
desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a
junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute
muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19
consequencialistas e deontoloacutegicas
Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo
feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral
positiva
A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber
uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre
outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente
naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e
17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347
17
assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o
alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda
ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees
desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias
retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido
conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo
encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se
harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda
Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar
de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja
limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-
americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram
a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de
prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue
incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo
funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim
conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar
nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que
enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para
validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral
certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23
Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por
essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele
apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se
importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a
despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim
Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho
21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93
18
benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da
metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)
poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar
uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta
O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias
preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente
nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado
a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada
prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a
anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma
O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28
Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode
ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer
que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa
todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo
vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para
chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste
trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem
mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar
a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para
garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma
violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz
que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia
25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22
19
quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material
aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo
efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos
provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um
sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)
Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute
aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem
identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo
eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de
prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser
admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar
nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a
puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o
bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de
alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que
existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by
default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e
castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos
para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado
independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste
trabalho
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS
Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas
conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees
Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam
20
batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez
de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia
ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na
criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante
Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto
que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que
focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido
Tolstoy Ressurreiccedilatildeo
Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste
estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em
apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como
delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir
sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas
teorias
O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma
uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados
porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute
buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do
crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as
teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da
perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as
teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas
29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231
21
remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas
delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila
Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das
teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa
sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas
retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva
coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees
biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar
com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave
puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo
de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se
comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia
um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila
em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse
restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois
soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna
em nome e no lugar do homem pecador por natureza33
Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a
natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas
31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455
22
aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando
provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35
Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a
passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de
proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar
que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o
marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um
recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima
gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo
sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um
equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36
Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a
narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no
tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e
dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua
face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)
Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo
embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo
Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a
com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da
raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que
aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010
23
importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso
porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa
porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem
ofendido inocentemente sofreurdquo39
Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas
sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave
incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa
racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e
dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou
outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os
como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar
essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio
pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser
administrada
Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se
que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o
tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo
Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41
O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na
distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da
puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente
38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238
24
eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo
ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da
admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a
sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz
que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas
preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do
cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja
a meta-geral justificante da puniccedilatildeo
Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a
compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na
interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute
distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma
igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas
previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca
equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade
aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se
que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a
coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo
positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda
que posteriormente seraacute comutada
Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta
a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos
punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo
Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou
mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo
42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62
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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso
ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a
balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao
criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo
de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias
retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e
castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral
pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados
em um bemrdquo45
Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam
as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela
voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo
corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a
justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do
sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou
moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa
e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo
soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a
sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais
beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela
qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas
121 Kant o paradigma
Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente
neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que
44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235
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pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar
todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo
adequada da puniccedilatildeo criminal
Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da
teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por
exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar
pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo
ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina
do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas
proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma
minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar
transcreve-se apenas um dos argumentos
Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49
De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da
puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem
bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples
meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50
Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no
entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma
perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51
47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006
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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias
retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil
Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser
morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia
ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo
um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a
sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute
difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe
o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal
humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute
evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem
disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida
em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant
esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute
visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia
simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os
culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo
aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)
Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a
demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra
de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance
da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a
proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que
natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o
sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual
penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento
daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como
agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas
52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX
28
demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo
eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se
torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o
conhecemos
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico
Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do
pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa
tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55
Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de
fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena
justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do
dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico
kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia
entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado
ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se
racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos
O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo
de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes
seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar
do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua
fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o
sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a
54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20
29
compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito
lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute
realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na
neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os
ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade
poliacutetica
Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo
livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem
que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma
manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na
culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim
as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a
puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de
alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60
Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo
que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em
grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres
soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos
iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou
semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61
Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem
punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um
58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984
30
decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da
pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que
a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63
Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de
fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo
nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa
para segundo plano
Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria
retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo
Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada
com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo
crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa
ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que
diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam
de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo
explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto
nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a
coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo
Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele
reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito
de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo
aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio
da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute
63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91
31
por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo
uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66
Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos
movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por
inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda
a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o
porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo
de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O
maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter
livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal
que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado
que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto
esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver
toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas
para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico
da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos
65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89
32
CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)
Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se
comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos
lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza
Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos
Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo
(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque
restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime
Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas
enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas
apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais
defensores
Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo
falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico
sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos
culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais
(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se
retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro
Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas
consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo
dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir
69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq
33
Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista
que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre
suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute
consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a
autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a
puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de
infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado
apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance
A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos
cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o
benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada
indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela
apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos
outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos
- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual
possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72
Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo
(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos
outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um
ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de
qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o
fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos
outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e
fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de
constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele
cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida
obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do
71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007
34
deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair
balance73
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade
Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras
tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem
obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles
ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um
valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia
individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode
ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o
criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em
ser punido
A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o
indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o
estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos
importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem
bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo
aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta
contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu
da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua
proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a
73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas
35
justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei
universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a
decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute
respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou
desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria
puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido
a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as
outras leis sociais adotadas77
Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja
formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas
marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo
entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras
sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma
forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para
com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da
obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir
com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de
natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute
poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada
de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem
homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78
212 Criacutetica
O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo
empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas
76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq
36
principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede
e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores
de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de
privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam
recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um
bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse
caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo
interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade
A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso
merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem
indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a
essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre
os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo
que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que
realmente podemos ver o crime dessa forma
A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se
todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo
natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe
sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios
que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria
das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que
eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do
sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala
prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar
algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que
constitui verdadeiro mala in se
79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211
37
Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave
integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre
terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos
estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos
nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a
natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a
viacutetima sofreu80
Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas
quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um
consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a
maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se
constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe
uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que
nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal
Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso
consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma
vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de
crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente
querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida
com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em
verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita
com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de
essa coisa ser a puniccedilatildeo
213 Formulaccedilatildeo Atual
80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq
38
Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais
Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o
conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a
ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o
dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo
e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em
uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem
esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o
segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes
um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa
beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo
levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84
O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a
argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo
ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro
nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de
iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de
benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular
Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas
ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a
autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar
determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles
e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos
Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o
indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente
escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e
83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq
39
reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento
de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo
daqueles que natildeo obedecemrdquo86
Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade
em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode
quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para
marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em
qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a
regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O
mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -
de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim
como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a
lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais
severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras
consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por
conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria
da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a
conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que
outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e
doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88
214 Consideraccedilotildees finais
86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272
40
A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo
consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com
o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias
retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para
fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais
variados tipos de crimes
Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade
poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto
mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua
natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir
quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras
ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se
violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou
convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que
precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem
ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples
distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a
versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade
Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa
relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees
convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um
estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio
o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente
estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a
consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada
mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta
89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280
41
E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples
poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave
teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico
Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91
Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias
eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para
punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles
merecem sofrer
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL
San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through
You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold
San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell
May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good
Johnny Cash San Quentin
Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica
desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso
comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o
processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim
como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio
autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -
91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14
42
apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -
poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele
merece sofrer92
Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular
a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas
proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao
comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental
para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93
Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora
normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute
diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a
violaccedilatildeo de qualquer lei
Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo
deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute
sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da
puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem
para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes
componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa
moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido
empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as
implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em
segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo
errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja
experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para
com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente
ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a
disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a
92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97
43
ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo
autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa
que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95
E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser
empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso
entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado
Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de
reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a
presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de
estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que
promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da
puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica
principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97
Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado
entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e
compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho
sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este
deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a
desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos
quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer
Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave
95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir
44
resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98
Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo
se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha
do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o
que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades
paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez
que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido
e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores
tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100
Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo
moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris
explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo
cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel
ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao
menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute
necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de
prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes
apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira
que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo
98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896
45
consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro
a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica
condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma
mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir
sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para
sua liberdade103 Sendo assim
Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104
A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que
aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de
transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de
refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a
escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de
apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira
de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem
razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma
inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107
Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a
aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo
Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados
com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou
103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq
46
material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo
do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece
consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de
liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus
desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute
proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe
uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as
pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a
ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo
comunicado por aquele que o estaacute punindo109
Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da
puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas
substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo
estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de
comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles
possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido
utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas
usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a
ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute
semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente
doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma
mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas
accedilotildees111
E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria
afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os
cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas
satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam
108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215
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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve
ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino
ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o
estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada
porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e
imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa
aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114
Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a
puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria
realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo
estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se
possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas
das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi
erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo
esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115
221 Criacutetica
Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo
satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com
uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais
maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de
obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma
poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja
112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985
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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo
estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo
inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo
noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base
nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo
compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre
os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria
liberal de Estado117
O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo
Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que
de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e
puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o
criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido
o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa
se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos
alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar
ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a
permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas
que as justificam isso requer outro argumento119
Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma
poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do
liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral
assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios
limitadores da liberdade120
117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277
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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees
poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum
momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de
atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo
argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em
sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm
principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre
que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido
natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a
puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca
causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se
torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo
a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem
voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em
torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre
as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122
Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem
moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso
perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos
rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito
senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias
contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria
convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila
sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica
previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa
relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente
pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo
121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304
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poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos
natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais
sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os
outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e
oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra
serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125
Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo
possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo
comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de
prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele
recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor
que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma
ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio
para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do
modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a
incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais
exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum
benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre
ele contra sua vontade127
E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy
direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma
percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo
conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do
sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para
125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352
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submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee
amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim
uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia
ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a
capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se
torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um
tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a
capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo
esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129
222 Consideraccedilotildees finais
As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos
do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das
formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo
de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma
teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos
ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo
Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e
(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos
que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada
em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para
mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada
Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte
Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir
crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo
qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo
128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359
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de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas
boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos
ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter
cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a
maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem
um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles
conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo
mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral
De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela
influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por
que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir
iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria
para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute
precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de
uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave
para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes
filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e
pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos
apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute
mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas
indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131
130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209
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CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA
Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e
portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre
sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de
puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de
alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria
completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos
do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em
outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de
que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida
Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica
especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o
contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal
normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade
acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de
comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma
pretensatildeo de esgotaacute-lo
Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e
liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos
cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute
claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual
eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute
legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses
sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a
enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no
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fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se
encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na
qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo
do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133
O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas
teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes
teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode
olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg
Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134
Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas
preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos
individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os
132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82
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criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os
bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade
no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa
sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode
ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135
Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais
caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos
membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades
comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um
apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns
devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem
compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens
individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma
vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da
comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros
(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que
135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos
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aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que
aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137
E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes
devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de
em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da
liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui
eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses
bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes
possibilite e lhes confira significado e sentido138
Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal
dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro
que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do
conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees
Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara
quais dessas condutas erradas constituem crimes
A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139
Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar
que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua
137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33
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perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos
respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder
(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que
natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave
autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se
forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais
forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos
ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio
vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos
autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute
desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei
natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -
se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142
Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas
sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo
ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo
criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os
valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar
suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para
o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem
muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade
moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)
140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34
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Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como
membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto
de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim
como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada
indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os
membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser
persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no
reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo
pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei
contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido
um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa
Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa
como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como
depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da
Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da
comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra
ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a
puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do
sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um
144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003
59
processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias
de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute
porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode
interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir
ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute
podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar
o dano e reconciliar os membros da comunidade148
Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de
certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a
qual pertencemos
Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149
146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71
60
Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente
por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo
percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos
tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores
decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou
ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do
indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da
tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala
Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo
comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a
mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150
Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo
em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o
criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo
moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros
cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas
cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria
natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites
para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado
como membro integral dela151
Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores
comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em
comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos
crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de
carreirardquo (III) ataques terroristas152
150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306
61
Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute
espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem
se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a
puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor
queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente
admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada
nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz
de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos
conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo
consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar
dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer
nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o
que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado
determinar a extensatildeo da comunidade
Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos
criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva
afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para
evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a
comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais
se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem
poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute
importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que
os culpados merecem sofrer155
153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79
62
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)
Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de
comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo
privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou
qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios
puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute
necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de
censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e
condutas corretos
A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos
como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de
cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de
Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo
simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser
buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma
pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute
crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a
concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von
n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute
63
Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar
satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que
o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159
Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva
da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas
entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo
privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um
determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico
especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de
ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou
da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160
Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas
negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio
autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo
demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a
iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic
nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o
sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo
(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse
enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)
ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns
indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e
informalmente absolvidos desse mesmo crime161
necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80
64
Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo
qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo
convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como
o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro
mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da
puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o
trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem
inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade
criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a
dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo
A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser
transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados
de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo
naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa
senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e
ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute
meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo
condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal
finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e
adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165
Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita
somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por
exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas
preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo
162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306
65
mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria
mensagem166
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)
No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e
a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o
conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo
de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente
daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para
algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada
pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse
miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a
existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168
A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees
legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes
violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento
uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente
desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute
socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o
sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da
166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51
66
vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e
encargos
O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de
puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo
dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta
errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para
desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela
inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em
conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral
deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do
medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente
comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na
linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor
A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172
A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles
entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute
170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41
67
uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento
ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser
subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o
sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse
nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo
denominadas de expressionismo extriacutenseco
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)
Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do
chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma
convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime
desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos
Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que
A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173
Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja
arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente
formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou
natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que
criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade
natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo
173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517
68
cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios
interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo
entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem
que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174
Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute
endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos
valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente
simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma
severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses
mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute
porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que
uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo
proibida175
Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida
seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute
assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a
seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa
aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim
entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas
menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida
humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem
proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar
penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a
prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de
prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela
eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao
ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado
174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521
69
Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees
histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos
Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a
achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo
dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais
com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os
senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito
havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo
dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a
privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo
encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua
liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado
multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas
falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo
universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o
pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a
conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido
quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou
quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um
preccedilo para fazer negoacutecios179
De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando
como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A
questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial
eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a
lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E
isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo
177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq
70
expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo
sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180
323 Recapitulando
Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a
puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma
mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para
aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado
responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um
todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que
o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a
puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o
repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da
lei
Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas
impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na
sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo
serem comunicadas apenas verbalmente
Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira
denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos
criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura
pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o
efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente
que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa
(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um
180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522
71
meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -
poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos
A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema
como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados
ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual
dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu
uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre
como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se
esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a
gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar
como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem
Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento
externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo
Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181
Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos
anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento
severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute
desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto
central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento
comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se
que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente
correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de
partida pelas razotildees que seguiratildeo
181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296
72
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura
A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser
evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria
absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas
as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos
em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta
intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo
distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve
comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)
legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para
dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente
quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184
O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos
ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser
crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber
que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como
errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma
comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo
nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito
natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque
afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta
seja considerada errada e portanto criminosa
182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211
73
Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve
explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui
diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou
extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente
dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute
diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo
prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente
compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que
frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para
ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que
eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser
bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por
humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute
necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que
uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa
injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e
terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso
prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo
pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem
nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma
sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente
contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle
eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que
podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei
criminalrdquo190
185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165
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Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute
entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo
decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia
ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca
limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de
censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que
satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno
estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos
consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita
(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado
-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave
conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito
Nas palavras de Duff
Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o
191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295
75
foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192
Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute
um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos
valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para
demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)
quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo
eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente
errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os
vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal
consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e
sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio
senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com
atos moralmente louvaacuteveis ou neutros
A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima
Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas
de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura
adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente
apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja
perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam
apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo
(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute
responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por
causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta
moralmente adequada agrave viacutetima196
192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170
76
Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente
adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade
ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta
moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um
comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como
penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA
Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio
conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que
seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma
pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do
Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal
O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada
197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010
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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199
Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso
mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito
eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de
retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito
penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito
anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas
teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)
E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes
de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a
secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar
na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor
simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem
adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados
aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente
da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do
direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200
Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro
capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela
justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas
normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc
199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13
78
Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside
exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema
em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado
O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado
enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora
decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e
obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal
que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses
27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo
elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma
desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em
conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o
tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel
incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio
unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais
dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203
Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo
Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo
com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma
reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para
isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai
(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a
conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo
reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da
penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de
conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute
201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado
79
autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo
para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206
Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem
penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para
o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante
explicaccedilatildeo a respeito
Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207
Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro
do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas
transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-
culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de
seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome
de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo
pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando
a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por
quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso
206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678
80
resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de
caminho210
Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a
ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto
conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o
problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia
ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado
um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o
objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse
senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da
comunidaderdquo212
Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha
importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as
pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como
penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio
de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc
assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de
lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a
delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal
de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como
membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa
situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de
Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e
reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas
acima por exemplo)
210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855
81
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)
Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento
Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento
O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que
este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo
deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos
sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres
de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as
teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes
podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela
se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de
arrependimento
O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215
214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010
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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo
Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto
soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode
arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos
moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de
algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento
constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa
de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi
flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma
atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o
que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir
desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro
podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217
Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo
poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e
ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva
pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas
falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra
do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de
accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute
natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo
arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo
continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade
de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)
Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo
216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17
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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219
A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou
melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente
a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro
devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida
natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da
necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa
a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser
persuadido pela mensagem
Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a
reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem
uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja
mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre
ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o
crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo
(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e
por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta
tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada
219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246
84
Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela
pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao
processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa
ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo
(hurt) eacute a seguinte
(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor
Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas
e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo
uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que
estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um
jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees
com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida
do que ele fezrdquo223
(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram
prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O
criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo
ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar
meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira
adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma
material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora
carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225
A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e
justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma
resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira
adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem
uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se
222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado
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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade
Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades
que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias
consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir
agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo
apropriado para persegui-lo
Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -
arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para
obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta
em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar
alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas
tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e
Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu
simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila
fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em
consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu
sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha
amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse
respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu
arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute
errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora
se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual
a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e
responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se
com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis
mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade
por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a
tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada
226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo
86
por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se
engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227
Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia
secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se
arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas
que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na
pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar
deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender
Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se
arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o
criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive
reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros
perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia
No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar
o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de
puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a
comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter
puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a
questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no
acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um
processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o
arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se
que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave
227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121
87
gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-
nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute
verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa
redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso
que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas
consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo
do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma
do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada
ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria
portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida
Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se
arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena
Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum
deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo
Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a
pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade
intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica
que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute
assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A
resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se
alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute
contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da
mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte
devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos
levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo
moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da
comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230
229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123
88
John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento
distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas
razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do
que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele
merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo
de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos
primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento
determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando
instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a
mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o
ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como
penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que
esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233
O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia
secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a
toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que
o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de
puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia
merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a
ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von
Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e
portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia
exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia
Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente
sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de
prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos
poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa
231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84
89
comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e
a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo
apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a
igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas
demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser
detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo
justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o
criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da
misericoacuterdia
Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila
comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila
criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto
desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo
moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute
tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender
O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237
Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o
Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre
certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a
comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos
outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do
criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas
ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte
236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418
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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico
221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como
penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch
333 A penitecircncia e o Estado
Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre
a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral
adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo
punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a
caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um
processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de
penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a
privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a
formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de
transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida
externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos
internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente
apropriada para responder agrave mensagem de censura238
E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute
arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto
com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239
Em razatildeo disso o autor indaga
Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa
238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120
91
indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240
Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de
Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as
poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo
importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas
tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou
daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto
o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar
respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a
um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado
Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda
que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a
teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os
temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal
embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241
Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a
criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das
pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um
momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva
240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009
92
a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a
exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com
a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com
Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que
se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase
inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar
juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode
ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato
injustordquo245
Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute
um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da
natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses
elementos natildeo uma separaccedilatildeo247
Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente
corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade
sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas
respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute
as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez
tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo
242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129
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criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem
punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato
Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito
[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250
Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a
intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no
ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se
salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou
tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o
preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o
criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo
devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um
nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela
mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que
ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de
249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491
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certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido
pago254
Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar
um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch
com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria
Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta
que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no
processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter
assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas
quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute
receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer
saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para
natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute
preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos
agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo
somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser
moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-
la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se
efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na
comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida
Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como
penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de
seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a
respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para
entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma
caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas
podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a
254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437
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reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais
preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257
256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440
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CONCLUSAtildeO
Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho
Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de
consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a
accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias
(prevenccedilatildeo de crimes)
Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em
tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a
construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem
mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa
injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal
Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o
merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem
justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees
suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis
Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois
equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e
designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em
segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os
teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal
ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo
que o merecimento pretende capturar
Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo
explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-
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perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)
Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal
Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo
criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute
convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma
vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute
sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo
Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como
educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria
dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo
compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos
Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que
definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta
seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da
comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer
pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada
criminosa
Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio
autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo
se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a
puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo
Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O
traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica
desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o
crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel
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Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se
entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave
autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada
daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de
autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como
forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada
no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento
Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e
a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa
aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido
99
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331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86
333 A penitecircncia e o Estado 90
CONCLUSAtildeO 96
REFEREcircNCIAS 99
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INTRODUCcedilAtildeO
Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas
e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc
Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem
nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos
perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a
atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas
formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este
estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto
eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena
O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se
divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo
manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de
problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se
mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento
teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-
se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e
retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo
apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas
novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das
teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina
com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente
trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria
Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute
porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na
common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se
propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este
utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo
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Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da
justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em
contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas
Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades
enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O
aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu
como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a
pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo
eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o
criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela
conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo
mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura
e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam
justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como
retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes
elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o
autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser
justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para
uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal
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CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)
O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado
Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja
imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel
pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo
encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias
preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute
identificado na puniccedilatildeo mesma
Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas
finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)
ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos
(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo
geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo
especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-
lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma
miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes
com as teorias retributivas
O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de
preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia
1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001
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ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao
lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as
palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo
adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas
consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa
A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5
A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a
justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga
seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber
de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela
responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais
3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73
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velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes
estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas
ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada
disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se
trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes
Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)
apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo
estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado
independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa
razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente
correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que
justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio
O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima
torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo
punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no
caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que
ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo
podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que
nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos
anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes
mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo
Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu
6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260
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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7
Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega
que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo
dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente
(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta
nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees
morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas
sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor
noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos
empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em
algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9
A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a
puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas
seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo
maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado
em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave
verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila
que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de
quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de
todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser
verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta
de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol
das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que
fossem os dados apresentados
7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160
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A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras
consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas
que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo
puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras
palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos
efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de
merecimento das retribuiccedilotildees negativas11
Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao
inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves
objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve
explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse
sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute
ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante
sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias
consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)
Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14
do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades
preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser
imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais
desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15
Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime
entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos
variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo
direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes
11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97
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materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante
caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades
preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo
teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo
em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que
nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia
Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-
86) Diz-se entatildeo ao autor
A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16
Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria
Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na
mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada
tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais
e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas
direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los
como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados
Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque
tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis
16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010
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como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas
anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17
Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam
outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre
aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a
diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao
desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a
junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute
muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19
consequencialistas e deontoloacutegicas
Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo
feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral
positiva
A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber
uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre
outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente
naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e
17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347
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assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o
alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda
ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees
desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias
retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido
conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo
encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se
harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda
Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar
de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja
limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-
americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram
a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de
prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue
incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo
funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim
conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar
nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que
enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para
validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral
certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23
Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por
essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele
apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se
importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a
despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim
Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho
21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93
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benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da
metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)
poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar
uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta
O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias
preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente
nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado
a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada
prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a
anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma
O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28
Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode
ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer
que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa
todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo
vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para
chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste
trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem
mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar
a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para
garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma
violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz
que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia
25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22
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quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material
aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo
efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos
provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um
sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)
Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute
aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem
identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo
eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de
prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser
admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar
nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a
puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o
bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de
alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que
existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by
default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e
castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos
para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado
independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste
trabalho
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS
Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas
conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees
Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam
20
batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez
de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia
ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na
criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante
Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto
que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que
focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido
Tolstoy Ressurreiccedilatildeo
Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste
estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em
apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como
delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir
sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas
teorias
O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma
uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados
porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute
buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do
crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as
teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da
perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as
teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas
29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231
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remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas
delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila
Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das
teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa
sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas
retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva
coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees
biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar
com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave
puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo
de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se
comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia
um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila
em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse
restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois
soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna
em nome e no lugar do homem pecador por natureza33
Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a
natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas
31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455
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aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando
provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35
Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a
passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de
proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar
que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o
marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um
recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima
gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo
sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um
equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36
Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a
narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no
tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e
dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua
face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)
Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo
embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo
Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a
com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da
raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que
aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010
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importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso
porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa
porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem
ofendido inocentemente sofreurdquo39
Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas
sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave
incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa
racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e
dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou
outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os
como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar
essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio
pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser
administrada
Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se
que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o
tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo
Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41
O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na
distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da
puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente
38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238
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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo
ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da
admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a
sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz
que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas
preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do
cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja
a meta-geral justificante da puniccedilatildeo
Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a
compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na
interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute
distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma
igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas
previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca
equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade
aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se
que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a
coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo
positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda
que posteriormente seraacute comutada
Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta
a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos
punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo
Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou
mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo
42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62
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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso
ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a
balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao
criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo
de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias
retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e
castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral
pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados
em um bemrdquo45
Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam
as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela
voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo
corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a
justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do
sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou
moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa
e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo
soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a
sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais
beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela
qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas
121 Kant o paradigma
Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente
neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que
44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235
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pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar
todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo
adequada da puniccedilatildeo criminal
Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da
teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por
exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar
pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo
ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina
do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas
proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma
minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar
transcreve-se apenas um dos argumentos
Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49
De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da
puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem
bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples
meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50
Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no
entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma
perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51
47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006
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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias
retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil
Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser
morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia
ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo
um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a
sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute
difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe
o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal
humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute
evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem
disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida
em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant
esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute
visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia
simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os
culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo
aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)
Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a
demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra
de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance
da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a
proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que
natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o
sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual
penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento
daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como
agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas
52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX
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demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo
eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se
torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o
conhecemos
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico
Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do
pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa
tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55
Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de
fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena
justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do
dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico
kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia
entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado
ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se
racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos
O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo
de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes
seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar
do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua
fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o
sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a
54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20
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compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito
lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute
realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na
neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os
ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade
poliacutetica
Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo
livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem
que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma
manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na
culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim
as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a
puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de
alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60
Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo
que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em
grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres
soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos
iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou
semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61
Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem
punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um
58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984
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decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da
pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que
a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63
Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de
fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo
nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa
para segundo plano
Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria
retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo
Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada
com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo
crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa
ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que
diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam
de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo
explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto
nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a
coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo
Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele
reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito
de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo
aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio
da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute
63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91
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por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo
uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66
Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos
movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por
inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda
a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o
porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo
de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O
maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter
livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal
que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado
que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto
esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver
toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas
para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico
da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos
65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89
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CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)
Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se
comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos
lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza
Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos
Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo
(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque
restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime
Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas
enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas
apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais
defensores
Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo
falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico
sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos
culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais
(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se
retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro
Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas
consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo
dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir
69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq
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Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista
que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre
suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute
consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a
autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a
puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de
infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado
apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance
A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos
cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o
benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada
indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela
apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos
outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos
- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual
possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72
Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo
(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos
outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um
ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de
qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o
fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos
outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e
fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de
constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele
cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida
obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do
71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007
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deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair
balance73
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade
Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras
tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem
obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles
ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um
valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia
individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode
ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o
criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em
ser punido
A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o
indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o
estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos
importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem
bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo
aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta
contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu
da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua
proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a
73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas
35
justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei
universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a
decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute
respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou
desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria
puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido
a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as
outras leis sociais adotadas77
Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja
formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas
marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo
entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras
sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma
forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para
com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da
obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir
com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de
natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute
poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada
de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem
homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78
212 Criacutetica
O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo
empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas
76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq
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principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede
e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores
de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de
privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam
recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um
bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse
caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo
interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade
A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso
merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem
indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a
essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre
os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo
que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que
realmente podemos ver o crime dessa forma
A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se
todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo
natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe
sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios
que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria
das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que
eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do
sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala
prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar
algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que
constitui verdadeiro mala in se
79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211
37
Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave
integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre
terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos
estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos
nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a
natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a
viacutetima sofreu80
Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas
quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um
consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a
maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se
constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe
uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que
nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal
Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso
consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma
vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de
crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente
querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida
com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em
verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita
com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de
essa coisa ser a puniccedilatildeo
213 Formulaccedilatildeo Atual
80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq
38
Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais
Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o
conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a
ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o
dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo
e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em
uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem
esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o
segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes
um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa
beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo
levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84
O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a
argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo
ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro
nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de
iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de
benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular
Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas
ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a
autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar
determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles
e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos
Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o
indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente
escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e
83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq
39
reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento
de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo
daqueles que natildeo obedecemrdquo86
Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade
em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode
quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para
marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em
qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a
regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O
mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -
de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim
como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a
lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais
severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras
consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por
conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria
da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a
conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que
outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e
doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88
214 Consideraccedilotildees finais
86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272
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A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo
consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com
o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias
retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para
fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais
variados tipos de crimes
Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade
poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto
mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua
natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir
quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras
ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se
violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou
convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que
precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem
ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples
distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a
versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade
Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa
relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees
convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um
estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio
o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente
estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a
consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada
mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta
89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280
41
E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples
poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave
teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico
Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91
Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias
eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para
punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles
merecem sofrer
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL
San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through
You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold
San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell
May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good
Johnny Cash San Quentin
Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica
desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso
comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o
processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim
como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio
autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -
91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14
42
apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -
poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele
merece sofrer92
Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular
a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas
proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao
comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental
para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93
Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora
normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute
diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a
violaccedilatildeo de qualquer lei
Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo
deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute
sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da
puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem
para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes
componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa
moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido
empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as
implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em
segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo
errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja
experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para
com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente
ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a
disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a
92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97
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ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo
autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa
que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95
E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser
empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso
entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado
Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de
reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a
presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de
estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que
promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da
puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica
principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97
Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado
entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e
compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho
sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este
deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a
desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos
quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer
Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave
95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir
44
resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98
Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo
se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha
do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o
que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades
paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez
que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido
e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores
tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100
Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo
moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris
explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo
cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel
ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao
menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute
necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de
prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes
apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira
que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo
98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896
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consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro
a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica
condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma
mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir
sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para
sua liberdade103 Sendo assim
Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104
A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que
aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de
transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de
refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a
escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de
apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira
de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem
razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma
inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107
Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a
aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo
Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados
com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou
103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq
46
material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo
do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece
consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de
liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus
desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute
proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe
uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as
pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a
ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo
comunicado por aquele que o estaacute punindo109
Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da
puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas
substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo
estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de
comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles
possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido
utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas
usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a
ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute
semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente
doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma
mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas
accedilotildees111
E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria
afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os
cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas
satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam
108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215
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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve
ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino
ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o
estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada
porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e
imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa
aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114
Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a
puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria
realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo
estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se
possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas
das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi
erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo
esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115
221 Criacutetica
Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo
satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com
uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais
maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de
obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma
poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja
112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985
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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo
estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo
inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo
noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base
nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo
compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre
os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria
liberal de Estado117
O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo
Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que
de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e
puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o
criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido
o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa
se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos
alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar
ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a
permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas
que as justificam isso requer outro argumento119
Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma
poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do
liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral
assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios
limitadores da liberdade120
117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277
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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees
poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum
momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de
atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo
argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em
sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm
principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre
que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido
natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a
puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca
causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se
torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo
a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem
voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em
torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre
as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122
Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem
moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso
perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos
rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito
senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias
contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria
convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila
sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica
previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa
relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente
pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo
121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304
50
poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos
natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais
sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os
outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e
oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra
serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125
Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo
possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo
comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de
prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele
recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor
que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma
ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio
para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do
modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a
incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais
exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum
benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre
ele contra sua vontade127
E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy
direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma
percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo
conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do
sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para
125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352
51
submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee
amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim
uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia
ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a
capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se
torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um
tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a
capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo
esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129
222 Consideraccedilotildees finais
As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos
do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das
formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo
de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma
teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos
ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo
Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e
(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos
que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada
em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para
mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada
Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte
Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir
crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo
qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo
128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359
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de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas
boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos
ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter
cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a
maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem
um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles
conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo
mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral
De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela
influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por
que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir
iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria
para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute
precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de
uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave
para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes
filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e
pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos
apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute
mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas
indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131
130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209
53
CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA
Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e
portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre
sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de
puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de
alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria
completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos
do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em
outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de
que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida
Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica
especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o
contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal
normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade
acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de
comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma
pretensatildeo de esgotaacute-lo
Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e
liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos
cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute
claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual
eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute
legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses
sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a
enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no
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fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se
encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na
qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo
do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133
O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas
teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes
teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode
olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg
Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134
Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas
preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos
individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os
132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82
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criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os
bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade
no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa
sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode
ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135
Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais
caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos
membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades
comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um
apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns
devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem
compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens
individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma
vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da
comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros
(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que
135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos
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aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que
aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137
E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes
devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de
em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da
liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui
eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses
bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes
possibilite e lhes confira significado e sentido138
Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal
dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro
que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do
conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees
Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara
quais dessas condutas erradas constituem crimes
A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139
Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar
que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua
137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33
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perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos
respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder
(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que
natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave
autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se
forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais
forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos
ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio
vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos
autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute
desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei
natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -
se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142
Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas
sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo
ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo
criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os
valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar
suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para
o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem
muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade
moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)
140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34
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Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como
membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto
de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim
como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada
indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os
membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser
persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no
reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo
pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei
contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido
um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa
Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa
como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como
depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da
Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da
comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra
ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a
puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do
sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um
144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003
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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias
de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute
porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode
interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir
ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute
podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar
o dano e reconciliar os membros da comunidade148
Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de
certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a
qual pertencemos
Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149
146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71
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Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente
por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo
percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos
tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores
decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou
ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do
indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da
tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala
Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo
comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a
mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150
Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo
em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o
criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo
moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros
cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas
cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria
natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites
para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado
como membro integral dela151
Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores
comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em
comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos
crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de
carreirardquo (III) ataques terroristas152
150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306
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Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute
espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem
se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a
puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor
queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente
admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada
nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz
de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos
conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo
consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar
dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer
nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o
que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado
determinar a extensatildeo da comunidade
Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos
criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva
afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para
evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a
comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais
se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem
poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute
importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que
os culpados merecem sofrer155
153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79
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32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)
Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de
comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo
privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou
qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios
puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute
necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de
censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e
condutas corretos
A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos
como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de
cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de
Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo
simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser
buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma
pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute
crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a
concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von
n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute
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Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar
satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que
o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159
Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva
da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas
entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo
privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um
determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico
especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de
ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou
da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160
Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas
negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio
autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo
demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a
iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic
nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o
sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo
(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse
enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)
ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns
indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e
informalmente absolvidos desse mesmo crime161
necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80
64
Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo
qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo
convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como
o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro
mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da
puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o
trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem
inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade
criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a
dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo
A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser
transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados
de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo
naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa
senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e
ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute
meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo
condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal
finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e
adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165
Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita
somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por
exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas
preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo
162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306
65
mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria
mensagem166
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)
No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e
a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o
conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo
de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente
daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para
algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada
pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse
miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a
existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168
A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees
legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes
violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento
uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente
desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute
socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o
sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da
166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51
66
vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e
encargos
O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de
puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo
dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta
errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para
desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela
inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em
conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral
deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do
medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente
comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na
linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor
A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172
A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles
entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute
170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41
67
uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento
ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser
subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o
sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse
nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo
denominadas de expressionismo extriacutenseco
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)
Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do
chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma
convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime
desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos
Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que
A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173
Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja
arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente
formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou
natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que
criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade
natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo
173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517
68
cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios
interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo
entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem
que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174
Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute
endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos
valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente
simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma
severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses
mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute
porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que
uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo
proibida175
Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida
seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute
assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a
seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa
aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim
entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas
menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida
humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem
proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar
penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a
prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de
prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela
eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao
ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado
174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521
69
Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees
histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos
Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a
achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo
dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais
com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os
senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito
havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo
dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a
privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo
encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua
liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado
multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas
falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo
universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o
pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a
conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido
quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou
quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um
preccedilo para fazer negoacutecios179
De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando
como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A
questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial
eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a
lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E
isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo
177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq
70
expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo
sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180
323 Recapitulando
Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a
puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma
mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para
aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado
responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um
todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que
o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a
puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o
repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da
lei
Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas
impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na
sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo
serem comunicadas apenas verbalmente
Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira
denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos
criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura
pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o
efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente
que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa
(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um
180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522
71
meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -
poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos
A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema
como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados
ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual
dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu
uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre
como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se
esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a
gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar
como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem
Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento
externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo
Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181
Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos
anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento
severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute
desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto
central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento
comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se
que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente
correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de
partida pelas razotildees que seguiratildeo
181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296
72
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura
A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser
evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria
absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas
as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos
em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta
intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo
distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve
comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)
legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para
dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente
quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184
O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos
ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser
crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber
que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como
errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma
comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo
nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito
natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque
afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta
seja considerada errada e portanto criminosa
182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211
73
Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve
explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui
diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou
extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente
dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute
diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo
prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente
compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que
frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para
ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que
eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser
bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por
humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute
necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que
uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa
injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e
terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso
prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo
pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem
nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma
sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente
contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle
eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que
podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei
criminalrdquo190
185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165
74
Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute
entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo
decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia
ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca
limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de
censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que
satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno
estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos
consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita
(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado
-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave
conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito
Nas palavras de Duff
Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o
191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295
75
foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192
Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute
um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos
valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para
demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)
quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo
eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente
errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os
vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal
consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e
sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio
senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com
atos moralmente louvaacuteveis ou neutros
A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima
Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas
de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura
adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente
apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja
perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam
apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo
(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute
responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por
causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta
moralmente adequada agrave viacutetima196
192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170
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Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente
adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade
ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta
moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um
comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como
penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA
Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio
conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que
seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma
pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do
Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal
O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada
197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010
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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199
Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso
mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito
eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de
retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito
penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito
anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas
teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)
E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes
de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a
secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar
na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor
simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem
adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados
aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente
da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do
direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200
Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro
capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela
justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas
normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc
199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13
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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside
exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema
em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado
O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado
enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora
decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e
obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal
que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses
27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo
elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma
desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em
conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o
tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel
incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio
unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais
dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203
Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo
Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo
com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma
reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para
isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai
(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a
conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo
reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da
penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de
conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute
201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado
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autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo
para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206
Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem
penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para
o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante
explicaccedilatildeo a respeito
Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207
Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro
do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas
transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-
culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de
seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome
de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo
pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando
a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por
quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso
206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678
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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de
caminho210
Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a
ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto
conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o
problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia
ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado
um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o
objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse
senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da
comunidaderdquo212
Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha
importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as
pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como
penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio
de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc
assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de
lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a
delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal
de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como
membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa
situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de
Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e
reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas
acima por exemplo)
210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855
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331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)
Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento
Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento
O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que
este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo
deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos
sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres
de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as
teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes
podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela
se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de
arrependimento
O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215
214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010
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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo
Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto
soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode
arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos
moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de
algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento
constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa
de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi
flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma
atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o
que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir
desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro
podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217
Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo
poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e
ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva
pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas
falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra
do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de
accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute
natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo
arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo
continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade
de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)
Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo
216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17
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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219
A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou
melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente
a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro
devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida
natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da
necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa
a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser
persuadido pela mensagem
Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a
reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem
uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja
mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre
ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o
crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo
(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e
por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta
tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada
219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246
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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela
pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao
processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa
ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo
(hurt) eacute a seguinte
(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor
Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas
e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo
uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que
estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um
jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees
com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida
do que ele fezrdquo223
(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram
prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O
criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo
ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar
meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira
adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma
material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora
carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225
A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e
justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma
resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira
adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem
uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se
222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado
85
houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade
Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades
que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias
consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir
agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo
apropriado para persegui-lo
Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -
arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para
obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta
em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar
alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas
tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e
Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu
simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila
fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em
consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu
sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha
amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse
respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu
arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute
errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora
se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual
a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e
responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se
com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis
mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade
por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a
tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada
226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo
86
por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se
engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227
Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia
secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se
arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas
que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na
pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar
deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender
Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se
arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o
criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive
reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros
perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia
No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar
o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de
puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a
comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter
puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a
questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no
acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um
processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o
arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se
que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave
227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121
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gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-
nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute
verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa
redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso
que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas
consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo
do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma
do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada
ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria
portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida
Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se
arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena
Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum
deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo
Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a
pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade
intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica
que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute
assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A
resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se
alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute
contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da
mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte
devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos
levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo
moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da
comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230
229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123
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John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento
distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas
razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do
que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele
merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo
de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos
primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento
determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando
instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a
mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o
ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como
penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que
esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233
O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia
secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a
toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que
o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de
puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia
merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a
ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von
Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e
portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia
exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia
Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente
sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de
prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos
poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa
231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84
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comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e
a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo
apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a
igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas
demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser
detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo
justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o
criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da
misericoacuterdia
Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila
comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila
criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto
desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo
moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute
tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender
O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237
Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o
Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre
certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a
comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos
outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do
criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas
ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte
236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418
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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico
221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como
penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch
333 A penitecircncia e o Estado
Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre
a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral
adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo
punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a
caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um
processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de
penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a
privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a
formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de
transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida
externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos
internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente
apropriada para responder agrave mensagem de censura238
E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute
arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto
com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239
Em razatildeo disso o autor indaga
Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa
238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120
91
indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240
Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de
Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as
poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo
importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas
tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou
daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto
o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar
respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a
um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado
Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda
que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a
teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os
temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal
embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241
Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a
criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das
pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um
momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva
240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009
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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a
exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com
a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com
Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que
se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase
inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar
juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode
ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato
injustordquo245
Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute
um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da
natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses
elementos natildeo uma separaccedilatildeo247
Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente
corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade
sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas
respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute
as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez
tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo
242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129
93
criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem
punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato
Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito
[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250
Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a
intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no
ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se
salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou
tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o
preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o
criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo
devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um
nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela
mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que
ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de
249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491
94
certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido
pago254
Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar
um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch
com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria
Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta
que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no
processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter
assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas
quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute
receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer
saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para
natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute
preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos
agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo
somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser
moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-
la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se
efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na
comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida
Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como
penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de
seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a
respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para
entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma
caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas
podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a
254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437
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reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais
preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257
256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440
96
CONCLUSAtildeO
Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho
Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de
consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a
accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias
(prevenccedilatildeo de crimes)
Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em
tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a
construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem
mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa
injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal
Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o
merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem
justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees
suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis
Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois
equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e
designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em
segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os
teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal
ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo
que o merecimento pretende capturar
Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo
explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-
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perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)
Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal
Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo
criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute
convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma
vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute
sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo
Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como
educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria
dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo
compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos
Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que
definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta
seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da
comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer
pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada
criminosa
Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio
autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo
se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a
puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo
Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O
traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica
desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o
crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel
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Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se
entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave
autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada
daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de
autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como
forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada
no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento
Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e
a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa
aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido
99
REFEREcircNCIAS
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INTRODUCcedilAtildeO
Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas
e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc
Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem
nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos
perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a
atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas
formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este
estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto
eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena
O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se
divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo
manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de
problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se
mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento
teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-
se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e
retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo
apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas
novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das
teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina
com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente
trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria
Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute
porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na
common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se
propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este
utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo
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Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da
justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em
contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas
Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades
enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O
aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu
como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a
pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo
eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o
criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela
conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo
mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura
e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam
justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como
retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes
elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o
autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser
justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para
uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal
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CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)
11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)
O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado
Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja
imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel
pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo
encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias
preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute
identificado na puniccedilatildeo mesma
Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas
finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)
ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos
(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo
geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo
especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-
lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma
miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes
com as teorias retributivas
O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de
preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia
1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001
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ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao
lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as
palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo
adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas
consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa
A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5
A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a
justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga
seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber
de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela
responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais
3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73
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velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes
estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas
ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada
disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se
trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes
Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)
apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo
estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado
independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa
razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente
correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que
justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio
O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima
torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo
punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no
caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que
ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo
podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que
nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos
anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes
mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo
Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu
6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260
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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7
Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega
que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo
dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente
(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta
nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees
morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas
sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor
noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos
empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em
algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9
A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a
puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas
seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo
maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado
em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave
verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila
que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de
quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de
todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser
verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta
de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol
das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que
fossem os dados apresentados
7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160
14
A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras
consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas
que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo
puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras
palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos
efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de
merecimento das retribuiccedilotildees negativas11
Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao
inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves
objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve
explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse
sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute
ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante
sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias
consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)
Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14
do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades
preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser
imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais
desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15
Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime
entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos
variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo
direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes
11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97
15
materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante
caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades
preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo
teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo
em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que
nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia
Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-
86) Diz-se entatildeo ao autor
A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16
Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria
Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na
mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada
tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais
e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas
direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los
como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados
Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque
tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis
16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010
16
como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas
anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17
Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam
outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre
aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a
diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao
desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a
junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute
muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19
consequencialistas e deontoloacutegicas
Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo
feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral
positiva
A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber
uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre
outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente
naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e
17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347
17
assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o
alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda
ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees
desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias
retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido
conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo
encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se
harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda
Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar
de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja
limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-
americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram
a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de
prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue
incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo
funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim
conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar
nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que
enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para
validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral
certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23
Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por
essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele
apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se
importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a
despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim
Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho
21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93
18
benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da
metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)
poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar
uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta
O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias
preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente
nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado
a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada
prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a
anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma
O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28
Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode
ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer
que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa
todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo
vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para
chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste
trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem
mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar
a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para
garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma
violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz
que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia
25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22
19
quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material
aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo
efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos
provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um
sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)
Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute
aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem
identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo
eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de
prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser
admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar
nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a
puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o
bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de
alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que
existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by
default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e
castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos
para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado
independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste
trabalho
12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS
Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas
conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees
Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam
20
batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez
de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia
ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na
criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante
Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto
que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que
focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido
Tolstoy Ressurreiccedilatildeo
Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste
estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em
apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como
delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir
sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas
teorias
O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma
uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados
porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute
buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do
crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as
teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da
perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as
teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas
29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231
21
remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas
delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila
Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das
teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa
sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas
retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva
coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees
biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar
com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave
puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo
de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se
comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia
um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila
em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse
restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois
soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna
em nome e no lugar do homem pecador por natureza33
Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a
natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas
31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455
22
aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando
provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35
Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a
passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de
proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar
que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o
marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um
recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima
gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo
sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um
equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36
Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a
narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no
tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e
dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua
face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)
Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo
embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo
Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a
com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da
raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que
aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010
23
importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso
porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa
porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem
ofendido inocentemente sofreurdquo39
Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas
sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave
incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa
racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e
dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou
outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os
como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar
essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio
pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser
administrada
Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se
que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o
tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo
Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41
O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na
distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da
puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente
38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238
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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo
ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da
admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a
sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz
que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas
preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do
cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja
a meta-geral justificante da puniccedilatildeo
Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a
compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na
interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute
distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma
igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas
previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca
equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade
aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se
que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a
coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo
positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda
que posteriormente seraacute comutada
Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta
a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos
punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo
Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou
mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo
42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62
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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso
ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a
balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao
criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo
de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias
retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e
castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral
pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados
em um bemrdquo45
Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam
as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela
voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo
corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a
justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do
sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou
moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa
e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo
soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a
sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais
beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela
qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas
121 Kant o paradigma
Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente
neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que
44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235
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pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar
todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo
adequada da puniccedilatildeo criminal
Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da
teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por
exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar
pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo
ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina
do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas
proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma
minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar
transcreve-se apenas um dos argumentos
Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49
De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da
puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem
bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples
meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50
Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no
entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma
perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51
47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006
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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias
retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil
Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser
morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia
ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo
um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a
sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute
difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe
o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal
humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute
evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem
disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida
em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant
esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute
visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia
simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os
culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo
aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)
Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a
demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra
de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance
da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a
proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que
natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o
sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual
penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento
daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como
agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas
52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX
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demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo
eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se
torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o
conhecemos
122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico
Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do
pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa
tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55
Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de
fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena
justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do
dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico
kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia
entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado
ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se
racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos
O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo
de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes
seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar
do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua
fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o
sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a
54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20
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compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito
lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute
realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na
neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os
ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade
poliacutetica
Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo
livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem
que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma
manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na
culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim
as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a
puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de
alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60
Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo
que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em
grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres
soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos
iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou
semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61
Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem
punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um
58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984
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decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da
pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que
a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63
Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de
fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo
nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa
para segundo plano
Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria
retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo
Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada
com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo
crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa
ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que
diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam
de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo
explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto
nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a
coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo
Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele
reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito
de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo
aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio
da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute
63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91
31
por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo
uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66
Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos
movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por
inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda
a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o
porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo
de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O
maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter
livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal
que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado
que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto
esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver
toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas
para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico
da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos
65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89
32
CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS
21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)
Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se
comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos
lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza
Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos
Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo
(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque
restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime
Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas
enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas
apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais
defensores
Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo
falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico
sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos
culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais
(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se
retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro
Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas
consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo
dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir
69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq
33
Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista
que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre
suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute
consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a
autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a
puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de
infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado
apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance
A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos
cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o
benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada
indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela
apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos
outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos
- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual
possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72
Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo
(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos
outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um
ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de
qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o
fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos
outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e
fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de
constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele
cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida
obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do
71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007
34
deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair
balance73
211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade
Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras
tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem
obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles
ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um
valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia
individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode
ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o
criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em
ser punido
A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o
indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o
estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos
importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem
bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo
aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta
contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu
da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua
proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a
73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas
35
justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei
universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a
decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute
respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou
desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria
puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido
a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as
outras leis sociais adotadas77
Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja
formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas
marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo
entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras
sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma
forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para
com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da
obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir
com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de
natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute
poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada
de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem
homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78
212 Criacutetica
O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo
empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas
76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq
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principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede
e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores
de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de
privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam
recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um
bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse
caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo
interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade
A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso
merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem
indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a
essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre
os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo
que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que
realmente podemos ver o crime dessa forma
A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se
todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo
natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe
sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios
que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria
das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que
eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do
sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala
prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar
algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que
constitui verdadeiro mala in se
79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211
37
Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave
integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre
terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos
estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos
nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a
natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a
viacutetima sofreu80
Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas
quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um
consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a
maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se
constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe
uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que
nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal
Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso
consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma
vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de
crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente
querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida
com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em
verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita
com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de
essa coisa ser a puniccedilatildeo
213 Formulaccedilatildeo Atual
80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq
38
Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais
Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o
conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a
ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o
dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo
e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em
uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem
esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o
segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes
um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa
beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo
levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84
O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a
argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo
ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro
nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de
iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de
benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular
Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas
ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a
autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar
determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles
e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos
Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o
indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente
escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e
83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq
39
reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento
de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo
daqueles que natildeo obedecemrdquo86
Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade
em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode
quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para
marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em
qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a
regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O
mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -
de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim
como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a
lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais
severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras
consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por
conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria
da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a
conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que
outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e
doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88
214 Consideraccedilotildees finais
86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272
40
A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo
consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com
o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias
retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para
fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais
variados tipos de crimes
Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade
poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto
mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua
natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir
quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras
ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se
violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou
convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que
precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem
ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples
distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a
versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade
Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa
relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees
convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um
estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio
o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente
estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a
consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada
mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta
89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280
41
E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples
poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave
teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico
Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91
Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias
eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para
punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles
merecem sofrer
22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL
San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through
You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold
San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell
May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good
Johnny Cash San Quentin
Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica
desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso
comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o
processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim
como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio
autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -
91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14
42
apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -
poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele
merece sofrer92
Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular
a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas
proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao
comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental
para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93
Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora
normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute
diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a
violaccedilatildeo de qualquer lei
Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo
deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute
sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da
puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem
para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes
componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa
moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido
empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as
implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em
segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo
errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja
experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para
com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente
ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a
disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a
92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97
43
ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo
autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa
que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95
E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser
empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso
entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado
Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de
reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a
presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de
estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que
promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da
puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica
principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97
Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado
entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e
compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho
sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este
deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a
desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos
quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer
Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave
95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir
44
resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98
Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo
se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha
do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o
que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades
paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez
que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido
e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores
tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100
Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo
moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris
explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo
cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel
ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao
menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute
necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de
prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes
apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira
que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo
98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896
45
consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro
a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica
condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma
mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir
sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para
sua liberdade103 Sendo assim
Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104
A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que
aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de
transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de
refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a
escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de
apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira
de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem
razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma
inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107
Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a
aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo
Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados
com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou
103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq
46
material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo
do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece
consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de
liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus
desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute
proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe
uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as
pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a
ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo
comunicado por aquele que o estaacute punindo109
Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da
puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas
substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo
estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de
comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles
possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido
utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas
usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a
ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute
semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente
doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma
mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas
accedilotildees111
E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria
afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os
cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas
satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam
108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215
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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve
ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino
ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o
estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada
porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e
imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa
aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114
Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a
puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria
realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo
estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se
possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas
das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi
erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo
esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115
221 Criacutetica
Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo
satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com
uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais
maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de
obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma
poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja
112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985
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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo
estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo
inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo
noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base
nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo
compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre
os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria
liberal de Estado117
O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo
Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que
de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e
puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o
criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido
o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa
se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos
alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar
ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a
permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas
que as justificam isso requer outro argumento119
Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma
poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do
liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral
assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios
limitadores da liberdade120
117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277
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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees
poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum
momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de
atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo
argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em
sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm
principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre
que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido
natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a
puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca
causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se
torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo
a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem
voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em
torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre
as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122
Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem
moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso
perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos
rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito
senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias
contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria
convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila
sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica
previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa
relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente
pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo
121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304
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poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos
natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais
sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os
outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e
oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra
serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125
Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo
possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo
comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de
prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele
recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor
que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma
ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio
para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do
modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a
incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais
exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum
benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre
ele contra sua vontade127
E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy
direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma
percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo
conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do
sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para
125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352
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submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee
amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim
uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia
ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a
capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se
torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um
tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a
capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo
esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129
222 Consideraccedilotildees finais
As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos
do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das
formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo
de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma
teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos
ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo
Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e
(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos
que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada
em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para
mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada
Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte
Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir
crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo
qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo
128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359
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de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas
boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos
ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter
cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a
maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem
um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles
conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo
mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral
De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela
influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por
que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir
iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria
para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute
precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de
uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave
para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes
filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e
pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos
apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute
mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas
indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131
130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209
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CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF
31 COMUNIDADE POLIacuteTICA
Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e
portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre
sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de
puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de
alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria
completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos
do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em
outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de
que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida
Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica
especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o
contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal
normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade
acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de
comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma
pretensatildeo de esgotaacute-lo
Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e
liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos
cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute
claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual
eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute
legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses
sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a
enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no
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fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se
encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na
qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo
do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133
O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas
teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes
teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode
olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg
Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134
Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas
preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos
individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os
132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82
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criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os
bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade
no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa
sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode
ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135
Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais
caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos
membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades
comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um
apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns
devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem
compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens
individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma
vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da
comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros
(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que
135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos
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aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que
aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137
E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes
devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de
em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da
liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui
eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses
bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes
possibilite e lhes confira significado e sentido138
Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal
dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro
que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do
conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees
Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara
quais dessas condutas erradas constituem crimes
A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139
Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar
que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua
137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33
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perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos
respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder
(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que
natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave
autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se
forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais
forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos
ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio
vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos
autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute
desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei
natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -
se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142
Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas
sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo
ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo
criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os
valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar
suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para
o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem
muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade
moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)
140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34
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Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como
membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto
de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim
como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada
indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os
membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser
persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no
reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo
pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei
contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido
um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa
Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa
como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como
depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da
Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da
comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra
ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a
puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do
sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um
144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003
59
processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias
de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute
porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode
interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir
ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute
podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar
o dano e reconciliar os membros da comunidade148
Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de
certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a
qual pertencemos
Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149
146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71
60
Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente
por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo
percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos
tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores
decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou
ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do
indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da
tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala
Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo
comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a
mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150
Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo
em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o
criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo
moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros
cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas
cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria
natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites
para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado
como membro integral dela151
Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores
comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em
comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos
crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de
carreirardquo (III) ataques terroristas152
150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306
61
Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute
espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem
se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a
puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor
queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente
admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada
nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz
de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos
conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo
consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar
dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer
nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o
que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado
determinar a extensatildeo da comunidade
Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos
criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva
afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para
evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a
comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais
se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem
poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute
importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que
os culpados merecem sofrer155
153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79
62
32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)
Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de
comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo
privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou
qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios
puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute
necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de
censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e
condutas corretos
A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos
como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de
cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de
Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo
simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser
buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma
pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute
crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a
concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von
n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute
63
Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar
satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que
o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159
Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva
da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas
entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo
privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um
determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico
especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de
ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou
da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160
Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas
negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio
autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo
demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a
iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic
nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o
sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo
(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse
enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)
ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns
indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e
informalmente absolvidos desse mesmo crime161
necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80
64
Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo
qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo
convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como
o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro
mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da
puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o
trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem
inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade
criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a
dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo
A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser
transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados
de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo
naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa
senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e
ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute
meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo
condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal
finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e
adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165
Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita
somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por
exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas
preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo
162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306
65
mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria
mensagem166
321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)
No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e
a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o
conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo
de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente
daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para
algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada
pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse
miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a
existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168
A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees
legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes
violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento
uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente
desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute
socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o
sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da
166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51
66
vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e
encargos
O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de
puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo
dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta
errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para
desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela
inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em
conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral
deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do
medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente
comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na
linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor
A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172
A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles
entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute
170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41
67
uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento
ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser
subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o
sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse
nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo
denominadas de expressionismo extriacutenseco
322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)
Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do
chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma
convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime
desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos
Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que
A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173
Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja
arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente
formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou
natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que
criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade
natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo
173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517
68
cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios
interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo
entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem
que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174
Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute
endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos
valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente
simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma
severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses
mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute
porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que
uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo
proibida175
Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida
seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute
assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a
seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa
aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim
entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas
menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida
humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem
proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar
penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a
prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de
prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela
eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao
ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado
174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521
69
Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees
histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos
Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a
achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo
dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais
com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os
senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito
havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo
dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a
privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo
encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua
liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado
multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas
falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo
universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o
pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a
conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido
quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou
quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um
preccedilo para fazer negoacutecios179
De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando
como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A
questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial
eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a
lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E
isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo
177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq
70
expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo
sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180
323 Recapitulando
Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a
puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma
mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para
aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado
responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um
todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que
o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a
puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o
repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da
lei
Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas
impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na
sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo
serem comunicadas apenas verbalmente
Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira
denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos
criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura
pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o
efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente
que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa
(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um
180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522
71
meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -
poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos
A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema
como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados
ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual
dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu
uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre
como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se
esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a
gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar
como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem
Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento
externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo
Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181
Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos
anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento
severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute
desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto
central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento
comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se
que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente
correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de
partida pelas razotildees que seguiratildeo
181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296
72
324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura
A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser
evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria
absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas
as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos
em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta
intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo
distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve
comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)
legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para
dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente
quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184
O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos
ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser
crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber
que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como
errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma
comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo
nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito
natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque
afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta
seja considerada errada e portanto criminosa
182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211
73
Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve
explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui
diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou
extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente
dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute
diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo
prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente
compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que
frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para
ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que
eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser
bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por
humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute
necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que
uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa
injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e
terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso
prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo
pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem
nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma
sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente
contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle
eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que
podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei
criminalrdquo190
185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165
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Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute
entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo
decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia
ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca
limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de
censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que
satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno
estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos
consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita
(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado
-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave
conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito
Nas palavras de Duff
Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o
191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295
75
foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192
Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute
um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos
valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para
demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)
quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo
eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente
errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os
vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal
consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e
sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio
senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com
atos moralmente louvaacuteveis ou neutros
A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima
Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas
de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura
adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente
apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja
perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam
apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo
(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute
responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por
causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta
moralmente adequada agrave viacutetima196
192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170
76
Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente
adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade
ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta
moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um
comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como
penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular
33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA
Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio
conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que
seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma
pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do
Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal
O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada
197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010
77
numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199
Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso
mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito
eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de
retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito
penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito
anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas
teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)
E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes
de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a
secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar
na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor
simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem
adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados
aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente
da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do
direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200
Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro
capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela
justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas
normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc
199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13
78
Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside
exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema
em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado
O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado
enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora
decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e
obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal
que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses
27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo
elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma
desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em
conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o
tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel
incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio
unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais
dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203
Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo
Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo
com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma
reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para
isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai
(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a
conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo
reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da
penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de
conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute
201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado
79
autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo
para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206
Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem
penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para
o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante
explicaccedilatildeo a respeito
Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207
Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro
do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas
transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-
culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de
seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome
de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo
pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando
a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por
quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso
206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678
80
resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de
caminho210
Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a
ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto
conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o
problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia
ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado
um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o
objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse
senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da
comunidaderdquo212
Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha
importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as
pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como
penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio
de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc
assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de
lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a
delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal
de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como
membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa
situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de
Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e
reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas
acima por exemplo)
210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855
81
331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)
Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento
Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento
O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que
este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo
deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos
sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres
de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as
teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes
podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela
se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de
arrependimento
O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215
214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010
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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo
Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto
soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode
arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos
moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de
algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento
constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa
de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi
flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma
atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o
que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir
desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro
podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217
Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo
poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e
ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva
pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas
falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra
do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de
accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute
natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo
arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo
continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade
de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)
Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo
216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17
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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219
A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou
melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente
a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro
devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida
natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da
necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa
a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser
persuadido pela mensagem
Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a
reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem
uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja
mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave
comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre
ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o
crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo
(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e
por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta
tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada
219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246
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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela
pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao
processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa
ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo
(hurt) eacute a seguinte
(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor
Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas
e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo
uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que
estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um
jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees
com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida
do que ele fezrdquo223
(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram
prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O
criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo
ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar
meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira
adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma
material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora
carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225
A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e
justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma
resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira
adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem
uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se
222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado
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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade
Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades
que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias
consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir
agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo
apropriado para persegui-lo
Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -
arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para
obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta
em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar
alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas
tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e
Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu
simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila
fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em
consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu
sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha
amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse
respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu
arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute
errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora
se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual
a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e
responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se
com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis
mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade
por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a
tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada
226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo
86
por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se
engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227
Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia
secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se
arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas
que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na
pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar
deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas
332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender
Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se
arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o
criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive
reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros
perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia
No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar
o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de
puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a
comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter
puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a
questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no
acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um
processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o
arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se
que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave
227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121
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gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-
nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute
verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa
redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso
que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas
consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo
do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma
do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada
ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria
portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida
Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se
arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena
Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum
deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo
Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a
pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade
intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica
que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute
assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A
resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se
alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute
contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da
mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte
devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos
levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo
moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da
comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230
229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123
88
John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento
distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas
razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do
que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele
merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo
de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos
primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento
determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando
instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a
mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o
ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como
penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que
esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233
O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia
secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a
toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que
o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de
puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia
merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a
ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von
Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e
portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia
exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia
Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente
sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de
prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos
poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa
231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84
89
comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e
a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo
apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a
igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas
demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser
detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo
justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o
criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da
misericoacuterdia
Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila
comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila
criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto
desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo
moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute
tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender
O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237
Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o
Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre
certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a
comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos
outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do
criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas
ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte
236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418
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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico
221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como
penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch
333 A penitecircncia e o Estado
Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre
a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral
adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo
punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a
caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um
processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de
penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a
privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a
formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de
transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o
arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida
externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos
internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente
apropriada para responder agrave mensagem de censura238
E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute
arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto
com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239
Em razatildeo disso o autor indaga
Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa
238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120
91
indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240
Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de
Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as
poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo
importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas
tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou
daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto
o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar
respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a
um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado
Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda
que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a
teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os
temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal
embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241
Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a
criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das
pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo
A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um
momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva
240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009
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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a
exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com
a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com
Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que
se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase
inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar
juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode
ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato
injustordquo245
Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute
um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da
natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses
elementos natildeo uma separaccedilatildeo247
Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente
corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade
sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas
respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute
as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez
tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo
242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129
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criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem
punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato
Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito
[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250
Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a
intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no
ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se
salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou
tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o
preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o
criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo
devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um
nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela
mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que
ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de
249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491
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certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido
pago254
Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar
um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch
com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria
Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta
que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no
processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter
assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas
quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute
receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer
saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para
natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute
preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos
agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo
somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser
moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-
la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se
efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na
comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida
Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como
penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de
seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a
respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para
entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma
caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas
podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a
254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437
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reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais
preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257
256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440
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CONCLUSAtildeO
Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho
Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de
consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a
accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias
(prevenccedilatildeo de crimes)
Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em
tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a
construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem
mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa
injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal
Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o
merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem
justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees
suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis
Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois
equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e
designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em
segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os
teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal
ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo
que o merecimento pretende capturar
Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo
explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-
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perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)
Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal
Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo
criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute
convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma
vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute
sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo
Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como
educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria
dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo
compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos
Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que
definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta
seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da
comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer
pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada
criminosa
Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio
autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo
se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a
puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo
Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O
traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica
desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o
crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel
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Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se
entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave
autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada
daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de
autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo
apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como
forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada
no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento
Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e
a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa
aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido
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