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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO: CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA CRIMINAL Porto Alegre 2011

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PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM CIEcircNCIAS CRIMINAIS MESTRADO EM CIEcircNCIAS CRIMINAIS

DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE

PUNICcedilAtildeO RETRIBUICcedilAtildeO E COMUNICACcedilAtildeO CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA

CRIMINAL

Porto Alegre

2011

2

DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE

PUNICcedilAtildeO RETRIBUICcedilAtildeO E COMUNICACcedilAtildeO CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA

CRIMINAL

Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias Criminais da Faculdade de Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Orientador Prof Dr Fabio Roberto DrsquoAvila

Porto Alegre

2011

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Ao meu tio Luiz Olavo Motta Saldanha o ldquoMariardquo tambeacutem conhecido como ldquoo homem mais bonito do Alegreterdquo

Agrave minha voacute Lula Motta Saldanha Na casa do Pai haacute muitas moradas

e estou certo que ela reside em uma delas Meu bisavocirc Alfredo Motta na ocasiatildeo da morte de sua esposa Luciana Theodora Motta

escreveu estas palavras que agora dedico para minha voacute

Viver sem aquela a quem ama Eacute rolar sobre a terra jaacute sem norte

Eacute cumprir as leis de nosso Deus Desejando sem temor que venha a morte

Agrave minha matildee Liacutegia Saldanha Cavalcante cuja bondade e retidatildeo satildeo

atestadas por todas as accedilotildees de sua vida Para vocecirc matildee queria dedicar palavras de conforto mas natildeo as tenho

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RESUMO

O presente trabalho vinculado agrave Linha de Pesquisa Sistemas Juriacutedico-

Penais Contemporacircneos tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a

compreensatildeo do problema da puniccedilatildeo criminal Para tanto pretende-se buscar um novo

olhar sobre o tema historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas Em

primeiro lugar busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados assim evitando equiacutevocos na

anaacutelise do objeto em questatildeo Em segundo lugar analisam-se as teorias retributivas

oriundas da common law dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff estudada

no terceiro capiacutetulo

Palavras-chave puniccedilatildeo criminal retribuiccedilatildeo negativa retribuiccedilatildeo positiva teorias

preventivas teorias mistas consequencialismo e natildeo-consequencialismo merecimento

teorias comunicativas penitecircncia secular arrependimento

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ABSTRACT

This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary

Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal

punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically

divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the

concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly

analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs

communicative theory studied in the third chapter

Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive

theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular

penance repentance

6

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 08

CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19

121 Kant o paradigma 25

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28

CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34

212 Criacutetica 35

213 Formulaccedilatildeo atual 37

214 Consideraccedilotildees finais 39

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41

221 Criacutetica 47

222 Consideraccedilotildees finais 51

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67

323 Recapitulando 70

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76

7

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86

333 A penitecircncia e o Estado 90

CONCLUSAtildeO 96

REFEREcircNCIAS 99

8

INTRODUCcedilAtildeO

Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas

e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc

Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem

nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos

perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a

atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas

formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este

estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto

eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena

O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se

divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo

manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de

problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se

mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento

teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-

se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e

retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo

apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas

novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das

teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina

com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente

trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria

Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute

porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na

common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se

propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este

utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo

9

Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da

justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em

contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas

Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O

aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu

como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a

pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo

eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o

criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela

conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo

mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura

e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam

justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como

retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes

elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o

autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser

justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para

uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal

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CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado

Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja

imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel

pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo

encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias

preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute

identificado na puniccedilatildeo mesma

Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas

finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)

ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos

(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo

geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo

especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-

lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma

miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes

com as teorias retributivas

O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de

preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia

1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001

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ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao

lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as

palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo

adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas

consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa

A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5

A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a

justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga

seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber

de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela

responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais

3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73

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velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes

estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas

ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada

disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se

trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes

Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)

apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo

estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado

independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa

razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente

correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que

justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio

O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima

torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo

punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no

caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que

ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo

podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que

nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos

anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes

mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo

Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260

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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7

Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega

que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo

dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente

(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta

nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees

morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas

sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor

noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos

empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em

algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9

A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a

puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas

seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo

maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado

em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave

verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila

que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de

quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de

todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser

verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta

de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol

das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que

fossem os dados apresentados

7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160

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A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras

consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas

que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo

puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras

palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos

efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de

merecimento das retribuiccedilotildees negativas11

Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao

inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves

objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve

explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse

sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute

ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante

sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias

consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)

Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14

do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades

preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser

imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais

desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15

Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime

entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos

variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo

direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes

11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97

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materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante

caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades

preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo

teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo

em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que

nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia

Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-

86) Diz-se entatildeo ao autor

A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16

Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria

Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na

mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada

tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais

e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas

direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los

como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados

Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque

tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis

16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010

16

como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas

anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17

Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam

outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre

aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a

diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao

desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a

junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute

muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19

consequencialistas e deontoloacutegicas

Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo

feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral

positiva

A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber

uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre

outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente

naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e

17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347

17

assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o

alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda

ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees

desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias

retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido

conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo

encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se

harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda

Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar

de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja

limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram

a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue

incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo

funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim

conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar

nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que

enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para

validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral

certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23

Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por

essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele

apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se

importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim

Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho

21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93

18

benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da

metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)

poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar

uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta

O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias

preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente

nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado

a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada

prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a

anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma

O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28

Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode

ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer

que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa

todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo

vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para

chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste

trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem

mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar

a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para

garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma

violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz

que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia

25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22

19

quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material

aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo

efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos

provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um

sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)

Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute

aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem

identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo

eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de

prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser

admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar

nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a

puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o

bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de

alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que

existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by

default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e

castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos

para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado

independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste

trabalho

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS

Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas

conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees

Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam

20

batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez

de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia

ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na

criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante

Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que

focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido

Tolstoy Ressurreiccedilatildeo

Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste

estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em

apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como

delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir

sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

teorias

O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma

uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados

porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute

buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do

crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as

teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da

perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as

teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas

29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231

21

remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas

delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila

Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das

teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa

sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas

retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees

biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar

com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave

puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo

de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se

comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila

em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse

restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois

soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna

em nome e no lugar do homem pecador por natureza33

Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a

natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas

31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455

22

aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando

provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35

Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a

passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de

proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar

que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o

marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um

recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima

gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo

sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um

equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36

Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a

narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no

tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e

dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua

face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)

Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo

embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo

Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a

com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da

raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que

aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010

23

importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso

porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa

porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem

ofendido inocentemente sofreurdquo39

Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave

incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa

racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e

dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou

outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os

como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar

essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio

pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser

administrada

Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se

que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo

Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41

O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na

distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da

puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente

38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238

24

eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo

ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da

admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a

sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz

que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas

preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do

cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja

a meta-geral justificante da puniccedilatildeo

Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a

compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na

interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute

distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma

igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas

previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca

equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade

aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se

que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a

coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo

positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda

que posteriormente seraacute comutada

Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta

a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos

punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo

Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou

mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo

42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62

25

negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso

ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a

balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao

criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo

de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias

retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e

castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral

pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados

em um bemrdquo45

Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam

as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela

voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo

corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a

justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do

sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou

moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa

e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo

soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a

sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais

beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela

qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas

121 Kant o paradigma

Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente

neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que

44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235

26

pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar

todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo

adequada da puniccedilatildeo criminal

Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por

exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar

pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo

ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina

do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas

proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma

minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar

transcreve-se apenas um dos argumentos

Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49

De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da

puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem

bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples

meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50

Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no

entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma

perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51

47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006

27

Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias

retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil

Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser

morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia

ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo

um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a

sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute

difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe

o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute

evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem

disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida

em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant

esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute

visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia

simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os

culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo

aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)

Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a

demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance

da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a

proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que

natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o

sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento

daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como

agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas

52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX

28

demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo

eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se

torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o

conhecemos

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico

Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do

pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa

tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55

Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena

justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do

dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico

kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia

entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado

ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se

racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos

O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo

de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes

seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar

do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua

fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o

sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a

54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20

29

compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito

lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute

realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na

neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os

ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade

poliacutetica

Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo

livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem

que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma

manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na

culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim

as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de

alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60

Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo

que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em

grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres

soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos

iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou

semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61

Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem

punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um

58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984

30

decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da

pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que

a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63

Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de

fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo

nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa

para segundo plano

Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria

retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo

Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada

com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo

crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa

ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que

diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam

de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo

explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto

nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a

coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo

Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele

reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito

de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo

aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio

da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute

63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91

31

por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo

uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66

Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos

movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por

inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda

a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o

porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo

de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O

maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter

livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado

que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto

esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver

toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas

para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico

da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos

65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89

32

CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)

Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se

comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos

lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza

Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos

Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo

(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque

restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime

Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas

enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas

apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais

defensores

Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo

falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico

sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos

culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais

(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se

retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro

Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas

consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo

dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir

69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq

33

Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista

que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre

suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute

consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a

autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a

puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de

infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado

apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance

A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos

cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o

benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada

indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela

apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos

outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos

- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual

possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72

Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo

(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos

outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um

ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de

qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o

fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos

outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e

fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de

constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele

cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida

obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do

71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007

34

deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair

balance73

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade

Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras

tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem

obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles

ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um

valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia

individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode

ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o

criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em

ser punido

A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o

indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o

estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos

importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem

bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo

aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta

contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu

da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua

proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a

73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas

35

justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei

universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a

decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute

respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou

desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria

puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido

a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as

outras leis sociais adotadas77

Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja

formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas

marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo

entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras

sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma

forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para

com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da

obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir

com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de

natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute

poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada

de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem

homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78

212 Criacutetica

O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo

empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas

76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq

36

principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede

e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores

de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de

privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam

recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um

bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse

caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo

interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade

A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso

merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem

indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a

essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre

os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo

que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que

realmente podemos ver o crime dessa forma

A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se

todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo

natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe

sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios

que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria

das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que

eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do

sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala

prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar

algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que

constitui verdadeiro mala in se

79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211

37

Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave

integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre

terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos

estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos

nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a

natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a

viacutetima sofreu80

Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas

quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um

consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a

maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se

constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal

Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso

consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma

vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de

crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida

com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em

verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de

essa coisa ser a puniccedilatildeo

213 Formulaccedilatildeo Atual

80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq

38

Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais

Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o

conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a

ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o

dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo

e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em

uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem

esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o

segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes

um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa

beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo

levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84

O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a

argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo

ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro

nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de

iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de

benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular

Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas

ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a

autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar

determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles

e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos

Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o

indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente

escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e

83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq

39

reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento

de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo

daqueles que natildeo obedecemrdquo86

Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode

quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para

marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em

qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a

regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O

mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -

de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim

como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a

lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais

severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras

consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por

conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria

da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a

conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e

doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88

214 Consideraccedilotildees finais

86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272

40

A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo

consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com

o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias

retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para

fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais

variados tipos de crimes

Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade

poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto

mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir

quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras

ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se

violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou

convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que

precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem

ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples

distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a

versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade

Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees

convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um

estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio

o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente

estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada

mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta

89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280

41

E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples

poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave

teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico

Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91

Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias

eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para

punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles

merecem sofrer

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL

San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through

You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold

San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell

May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good

Johnny Cash San Quentin

Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica

desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso

comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o

processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim

como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio

autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -

91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14

42

apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -

poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele

merece sofrer92

Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular

a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas

proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao

comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental

para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93

Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora

normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute

diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a

violaccedilatildeo de qualquer lei

Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo

deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute

sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da

puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem

para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes

componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa

moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido

empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as

implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em

segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo

errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja

experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para

com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente

ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a

disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a

92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97

43

ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo

autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa

que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95

E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser

empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso

entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado

Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de

reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a

presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de

estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que

promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da

puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica

principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97

Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado

entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e

compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho

sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este

deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a

desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos

quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer

Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave

95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir

44

resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98

Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo

se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha

do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o

que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades

paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez

que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido

e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores

tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100

Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo

moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris

explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo

cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel

ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao

menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute

necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de

prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes

apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira

que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo

98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896

45

consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro

a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica

condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma

mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir

sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para

sua liberdade103 Sendo assim

Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104

A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que

aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de

transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de

refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a

escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de

apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira

de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem

razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma

inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107

Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a

aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo

Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados

com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou

103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq

46

material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo

do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece

consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de

liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus

desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute

proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe

uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as

pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a

ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo

comunicado por aquele que o estaacute punindo109

Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da

puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas

substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo

estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de

comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles

possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido

utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas

usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a

ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute

semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente

doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma

mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas

accedilotildees111

E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria

afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os

cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas

satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam

108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215

47

o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve

ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino

ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o

estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada

porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e

imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa

aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114

Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a

puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria

realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo

estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se

possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas

das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi

erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo

esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115

221 Criacutetica

Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo

satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com

uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais

maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de

obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma

poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja

112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985

48

racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo

estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo

inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo

noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base

nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo

compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre

os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria

liberal de Estado117

O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo

Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que

de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e

puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o

criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido

o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa

se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos

alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar

ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a

permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas

que as justificam isso requer outro argumento119

Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma

poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do

liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral

assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios

limitadores da liberdade120

117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277

49

Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees

poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum

momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de

atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo

argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em

sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm

principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre

que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido

natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a

puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca

causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se

torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo

a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem

voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em

torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre

as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122

Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem

moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso

perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos

rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito

senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias

contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria

convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila

sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica

previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa

relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente

pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo

121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304

50

poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos

natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais

sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os

outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e

oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra

serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125

Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo

possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo

comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de

prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele

recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor

que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma

ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio

para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do

modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a

incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais

exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum

benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre

ele contra sua vontade127

E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy

direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma

percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo

conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do

sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para

125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352

51

submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee

amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim

uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia

ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a

capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se

torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um

tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a

capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo

esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129

222 Consideraccedilotildees finais

As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos

do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das

formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo

de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma

teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos

ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo

Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e

(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos

que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada

em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para

mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada

Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte

Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir

crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo

qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo

128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359

52

de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas

boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos

ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter

cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a

maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem

um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles

conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo

mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral

De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela

influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por

que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir

iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria

para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute

precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de

uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave

para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes

filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e

pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos

apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute

mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas

indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131

130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209

53

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA

Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e

portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre

sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de

puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de

alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria

completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos

do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em

outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de

que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida

Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica

especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o

contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal

normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade

acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de

comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma

pretensatildeo de esgotaacute-lo

Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e

liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos

cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute

claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual

eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute

legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses

sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a

enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no

54

fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se

encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na

qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo

do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133

O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas

teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes

teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode

olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg

Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134

Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas

preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos

individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os

132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82

55

criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os

bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade

no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa

sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode

ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135

Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais

caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos

membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades

comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um

apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns

devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem

compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens

individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma

vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da

comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros

(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que

135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos

56

aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que

aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137

E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes

devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de

em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da

liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui

eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses

bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes

possibilite e lhes confira significado e sentido138

Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal

dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro

que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do

conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees

Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara

quais dessas condutas erradas constituem crimes

A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139

Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar

que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua

137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33

57

perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos

respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder

(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que

natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave

autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se

forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais

forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos

ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio

vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos

autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute

desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei

natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -

se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142

Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas

sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo

ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo

criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os

valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar

suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para

o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem

muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade

moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)

140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34

58

Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como

membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto

de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim

como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada

indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os

membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser

persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no

reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo

pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei

contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido

um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa

Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa

como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como

depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da

Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da

comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra

ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a

puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do

sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um

144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003

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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias

de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute

porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode

interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir

ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute

podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar

o dano e reconciliar os membros da comunidade148

Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de

certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a

qual pertencemos

Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149

146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71

60

Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente

por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo

percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos

tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores

decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou

ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do

indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da

tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala

Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo

comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a

mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150

Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo

em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o

criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo

moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros

cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas

cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria

natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites

para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado

como membro integral dela151

Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores

comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em

comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos

crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de

carreirardquo (III) ataques terroristas152

150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306

61

Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute

espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem

se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a

puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor

queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente

admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada

nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz

de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos

conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo

consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar

dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer

nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o

que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado

determinar a extensatildeo da comunidade

Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos

criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva

afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para

evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a

comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais

se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem

poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute

importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que

os culpados merecem sofrer155

153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79

62

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)

Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de

comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo

privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou

qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios

puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute

necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de

censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e

condutas corretos

A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos

como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de

cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de

Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo

simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser

buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma

pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute

crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a

concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von

n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute

63

Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar

satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que

o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159

Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva

da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas

entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo

privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um

determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico

especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de

ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou

da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160

Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas

negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio

autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo

demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a

iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic

nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o

sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo

(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse

enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)

ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns

indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e

informalmente absolvidos desse mesmo crime161

necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80

64

Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo

qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo

convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como

o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro

mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da

puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o

trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem

inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade

criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a

dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo

A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser

transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados

de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo

naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa

senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e

ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute

meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo

condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal

finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e

adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165

Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita

somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por

exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas

preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo

162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306

65

mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria

mensagem166

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)

No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e

a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o

conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo

de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente

daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para

algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada

pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse

miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a

existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168

A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees

legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes

violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento

uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente

desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute

socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o

sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da

166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51

66

vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e

encargos

O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de

puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo

dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta

errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para

desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela

inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em

conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral

deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do

medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente

comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na

linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor

A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172

A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles

entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute

170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41

67

uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento

ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser

subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o

sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse

nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo

denominadas de expressionismo extriacutenseco

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)

Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do

chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma

convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime

desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos

Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que

A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173

Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja

arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente

formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou

natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que

criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade

natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo

173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517

68

cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios

interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo

entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem

que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174

Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute

endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos

valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente

simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma

severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses

mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute

porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que

uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo

proibida175

Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida

seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute

assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a

seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa

aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim

entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas

menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida

humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem

proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar

penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a

prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de

prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela

eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao

ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado

174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521

69

Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees

histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos

Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a

achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo

dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais

com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os

senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito

havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo

dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a

privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo

encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua

liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado

multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas

falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo

universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o

pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a

conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido

quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou

quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um

preccedilo para fazer negoacutecios179

De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando

como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A

questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial

eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a

lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E

isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo

177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq

70

expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo

sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180

323 Recapitulando

Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a

puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma

mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para

aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado

responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um

todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que

o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a

puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o

repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da

lei

Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas

impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na

sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo

serem comunicadas apenas verbalmente

Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira

denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos

criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura

pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o

efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente

que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa

(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um

180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522

71

meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -

poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos

A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema

como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados

ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual

dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu

uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre

como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se

esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a

gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar

como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem

Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento

externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo

Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181

Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos

anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento

severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute

desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto

central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento

comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se

que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente

correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de

partida pelas razotildees que seguiratildeo

181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296

72

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura

A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser

evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria

absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas

as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos

em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta

intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo

distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve

comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)

legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para

dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente

quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184

O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos

ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser

crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber

que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como

errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma

comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo

nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito

natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque

afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta

seja considerada errada e portanto criminosa

182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211

73

Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve

explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui

diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou

extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente

dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute

diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo

prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente

compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que

frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para

ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que

eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser

bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por

humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute

necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que

uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa

injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e

terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso

prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo

pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem

nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma

sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente

contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle

eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que

podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei

criminalrdquo190

185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165

74

Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute

entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo

decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia

ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca

limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de

censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que

satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno

estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos

consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita

(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado

-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave

conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito

Nas palavras de Duff

Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o

191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295

75

foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192

Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute

um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos

valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para

demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)

quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo

eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente

errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os

vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal

consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e

sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio

senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com

atos moralmente louvaacuteveis ou neutros

A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima

Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas

de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura

adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente

apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja

perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam

apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo

(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute

responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por

causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta

moralmente adequada agrave viacutetima196

192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170

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Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente

adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade

ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta

moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um

comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como

penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA

Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio

conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que

seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma

pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do

Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal

O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada

197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010

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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199

Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso

mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito

eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de

retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito

penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito

anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas

teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)

E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes

de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a

secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar

na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor

simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem

adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados

aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente

da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do

direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200

Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro

capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela

justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas

normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc

199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13

78

Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside

exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema

em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado

O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado

enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora

decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e

obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal

que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses

27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo

elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma

desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em

conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o

tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel

incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio

unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais

dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203

Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo

Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo

com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma

reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para

isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai

(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a

conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo

reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da

penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de

conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute

201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado

79

autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo

para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206

Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem

penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para

o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante

explicaccedilatildeo a respeito

Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207

Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro

do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas

transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-

culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de

seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome

de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo

pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando

a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por

quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso

206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678

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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de

caminho210

Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a

ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto

conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o

problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia

ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado

um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o

objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse

senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da

comunidaderdquo212

Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha

importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as

pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como

penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio

de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc

assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de

lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a

delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal

de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como

membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa

situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de

Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e

reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas

acima por exemplo)

210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855

81

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)

Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento

Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento

O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que

este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo

deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos

sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres

de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as

teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes

podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela

se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de

arrependimento

O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215

214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010

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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo

Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto

soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode

arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos

moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de

algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento

constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa

de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi

flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma

atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o

que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir

desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro

podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217

Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo

poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e

ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva

pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas

falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra

do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de

accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute

natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo

arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo

continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade

de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)

Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo

216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17

83

consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219

A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou

melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente

a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro

devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida

natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da

necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa

a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser

persuadido pela mensagem

Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a

reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem

uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja

mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre

ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o

crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo

(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e

por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta

tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada

219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246

84

Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela

pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao

processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa

ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo

(hurt) eacute a seguinte

(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor

Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas

e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo

uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que

estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um

jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees

com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida

do que ele fezrdquo223

(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram

prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O

criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo

ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar

meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira

adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma

material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora

carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225

A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e

justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma

resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira

adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem

uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se

222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado

85

houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade

Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades

que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias

consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir

agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo

apropriado para persegui-lo

Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -

arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para

obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta

em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar

alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas

tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e

Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu

simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila

fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em

consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu

sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha

amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse

respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu

arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute

errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora

se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual

a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e

responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se

com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis

mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade

por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a

tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada

226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo

86

por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se

engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227

Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia

secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se

arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas

que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na

pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar

deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender

Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se

arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o

criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive

reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros

perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia

No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar

o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de

puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a

comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter

puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a

questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no

acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um

processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o

arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se

que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave

227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121

87

gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-

nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute

verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa

redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso

que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas

consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo

do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma

do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada

ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria

portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida

Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se

arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena

Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum

deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo

Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a

pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade

intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica

que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute

assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A

resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se

alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute

contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da

mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte

devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos

levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo

moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da

comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230

229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123

88

John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento

distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas

razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do

que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele

merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo

de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos

primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento

determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando

instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a

mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o

ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como

penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que

esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233

O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia

secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a

toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que

o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de

puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia

merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a

ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von

Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e

portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia

exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia

Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente

sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de

prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos

poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa

231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84

89

comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e

a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo

apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a

igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas

demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser

detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo

justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o

criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da

misericoacuterdia

Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila

comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila

criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto

desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo

moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute

tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender

O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237

Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o

Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre

certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a

comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos

outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do

criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas

ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte

236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418

90

dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico

221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como

penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch

333 A penitecircncia e o Estado

Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre

a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral

adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo

punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a

caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um

processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de

penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a

privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a

formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de

transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida

externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos

internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente

apropriada para responder agrave mensagem de censura238

E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute

arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto

com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239

Em razatildeo disso o autor indaga

Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa

238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120

91

indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240

Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de

Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as

poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo

importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas

tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou

daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto

o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar

respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a

um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado

Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda

que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a

teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os

temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal

embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241

Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a

criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das

pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um

momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva

240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009

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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a

exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com

a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com

Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que

se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase

inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar

juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode

ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato

injustordquo245

Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute

um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da

natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses

elementos natildeo uma separaccedilatildeo247

Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente

corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade

sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas

respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute

as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez

tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo

242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129

93

criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem

punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato

Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito

[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250

Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a

intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no

ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se

salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou

tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o

preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o

criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo

devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um

nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela

mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que

ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de

249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491

94

certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido

pago254

Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar

um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch

com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria

Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta

que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no

processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter

assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas

quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute

receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer

saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para

natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute

preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos

agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo

somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser

moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-

la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se

efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na

comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida

Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como

penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de

seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a

respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para

entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma

caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas

podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a

254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437

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reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais

preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257

256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440

96

CONCLUSAtildeO

Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho

Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de

consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a

accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias

(prevenccedilatildeo de crimes)

Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em

tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a

construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem

mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa

injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal

Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o

merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem

justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees

suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis

Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois

equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e

designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em

segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os

teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal

ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo

que o merecimento pretende capturar

Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo

explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-

97

perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)

Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal

Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo

criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute

convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma

vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute

sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo

Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como

educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria

dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo

compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos

Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que

definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta

seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da

comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer

pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada

criminosa

Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio

autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo

se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a

puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo

Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O

traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica

desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o

crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel

98

Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se

entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave

autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada

daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de

autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como

forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada

no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento

Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e

a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa

aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido

99

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Page 2: PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO ...repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/1749/1...2 DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO: CONTRIBUTO

2

DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE

PUNICcedilAtildeO RETRIBUICcedilAtildeO E COMUNICACcedilAtildeO CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA

CRIMINAL

Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias Criminais da Faculdade de Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Orientador Prof Dr Fabio Roberto DrsquoAvila

Porto Alegre

2011

3

Ao meu tio Luiz Olavo Motta Saldanha o ldquoMariardquo tambeacutem conhecido como ldquoo homem mais bonito do Alegreterdquo

Agrave minha voacute Lula Motta Saldanha Na casa do Pai haacute muitas moradas

e estou certo que ela reside em uma delas Meu bisavocirc Alfredo Motta na ocasiatildeo da morte de sua esposa Luciana Theodora Motta

escreveu estas palavras que agora dedico para minha voacute

Viver sem aquela a quem ama Eacute rolar sobre a terra jaacute sem norte

Eacute cumprir as leis de nosso Deus Desejando sem temor que venha a morte

Agrave minha matildee Liacutegia Saldanha Cavalcante cuja bondade e retidatildeo satildeo

atestadas por todas as accedilotildees de sua vida Para vocecirc matildee queria dedicar palavras de conforto mas natildeo as tenho

4

RESUMO

O presente trabalho vinculado agrave Linha de Pesquisa Sistemas Juriacutedico-

Penais Contemporacircneos tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a

compreensatildeo do problema da puniccedilatildeo criminal Para tanto pretende-se buscar um novo

olhar sobre o tema historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas Em

primeiro lugar busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados assim evitando equiacutevocos na

anaacutelise do objeto em questatildeo Em segundo lugar analisam-se as teorias retributivas

oriundas da common law dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff estudada

no terceiro capiacutetulo

Palavras-chave puniccedilatildeo criminal retribuiccedilatildeo negativa retribuiccedilatildeo positiva teorias

preventivas teorias mistas consequencialismo e natildeo-consequencialismo merecimento

teorias comunicativas penitecircncia secular arrependimento

5

ABSTRACT

This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary

Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal

punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically

divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the

concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly

analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs

communicative theory studied in the third chapter

Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive

theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular

penance repentance

6

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 08

CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19

121 Kant o paradigma 25

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28

CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34

212 Criacutetica 35

213 Formulaccedilatildeo atual 37

214 Consideraccedilotildees finais 39

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41

221 Criacutetica 47

222 Consideraccedilotildees finais 51

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67

323 Recapitulando 70

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76

7

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86

333 A penitecircncia e o Estado 90

CONCLUSAtildeO 96

REFEREcircNCIAS 99

8

INTRODUCcedilAtildeO

Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas

e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc

Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem

nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos

perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a

atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas

formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este

estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto

eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena

O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se

divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo

manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de

problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se

mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento

teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-

se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e

retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo

apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas

novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das

teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina

com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente

trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria

Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute

porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na

common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se

propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este

utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo

9

Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da

justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em

contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas

Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O

aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu

como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a

pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo

eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o

criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela

conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo

mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura

e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam

justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como

retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes

elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o

autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser

justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para

uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal

10

CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado

Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja

imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel

pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo

encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias

preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute

identificado na puniccedilatildeo mesma

Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas

finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)

ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos

(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo

geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo

especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-

lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma

miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes

com as teorias retributivas

O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de

preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia

1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001

11

ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao

lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as

palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo

adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas

consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa

A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5

A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a

justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga

seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber

de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela

responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais

3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73

12

velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes

estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas

ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada

disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se

trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes

Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)

apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo

estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado

independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa

razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente

correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que

justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio

O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima

torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo

punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no

caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que

ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo

podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que

nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos

anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes

mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo

Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260

13

destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7

Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega

que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo

dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente

(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta

nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees

morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas

sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor

noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos

empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em

algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9

A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a

puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas

seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo

maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado

em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave

verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila

que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de

quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de

todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser

verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta

de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol

das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que

fossem os dados apresentados

7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160

14

A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras

consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas

que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo

puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras

palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos

efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de

merecimento das retribuiccedilotildees negativas11

Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao

inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves

objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve

explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse

sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute

ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante

sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias

consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)

Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14

do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades

preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser

imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais

desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15

Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime

entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos

variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo

direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes

11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97

15

materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante

caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades

preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo

teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo

em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que

nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia

Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-

86) Diz-se entatildeo ao autor

A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16

Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria

Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na

mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada

tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais

e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas

direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los

como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados

Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque

tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis

16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010

16

como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas

anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17

Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam

outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre

aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a

diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao

desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a

junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute

muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19

consequencialistas e deontoloacutegicas

Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo

feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral

positiva

A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber

uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre

outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente

naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e

17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347

17

assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o

alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda

ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees

desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias

retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido

conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo

encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se

harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda

Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar

de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja

limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram

a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue

incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo

funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim

conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar

nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que

enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para

validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral

certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23

Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por

essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele

apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se

importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim

Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho

21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93

18

benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da

metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)

poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar

uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta

O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias

preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente

nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado

a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada

prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a

anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma

O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28

Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode

ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer

que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa

todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo

vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para

chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste

trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem

mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar

a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para

garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma

violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz

que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia

25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22

19

quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material

aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo

efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos

provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um

sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)

Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute

aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem

identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo

eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de

prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser

admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar

nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a

puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o

bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de

alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que

existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by

default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e

castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos

para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado

independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste

trabalho

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS

Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas

conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees

Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam

20

batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez

de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia

ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na

criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante

Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que

focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido

Tolstoy Ressurreiccedilatildeo

Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste

estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em

apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como

delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir

sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

teorias

O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma

uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados

porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute

buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do

crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as

teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da

perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as

teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas

29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231

21

remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas

delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila

Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das

teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa

sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas

retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees

biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar

com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave

puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo

de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se

comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila

em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse

restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois

soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna

em nome e no lugar do homem pecador por natureza33

Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a

natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas

31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455

22

aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando

provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35

Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a

passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de

proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar

que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o

marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um

recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima

gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo

sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um

equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36

Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a

narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no

tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e

dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua

face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)

Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo

embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo

Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a

com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da

raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que

aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010

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importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso

porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa

porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem

ofendido inocentemente sofreurdquo39

Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave

incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa

racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e

dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou

outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os

como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar

essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio

pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser

administrada

Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se

que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo

Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41

O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na

distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da

puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente

38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238

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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo

ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da

admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a

sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz

que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas

preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do

cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja

a meta-geral justificante da puniccedilatildeo

Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a

compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na

interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute

distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma

igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas

previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca

equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade

aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se

que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a

coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo

positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda

que posteriormente seraacute comutada

Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta

a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos

punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo

Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou

mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo

42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62

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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso

ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a

balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao

criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo

de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias

retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e

castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral

pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados

em um bemrdquo45

Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam

as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela

voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo

corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a

justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do

sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou

moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa

e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo

soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a

sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais

beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela

qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas

121 Kant o paradigma

Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente

neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que

44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235

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pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar

todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo

adequada da puniccedilatildeo criminal

Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por

exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar

pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo

ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina

do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas

proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma

minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar

transcreve-se apenas um dos argumentos

Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49

De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da

puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem

bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples

meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50

Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no

entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma

perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51

47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006

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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias

retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil

Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser

morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia

ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo

um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a

sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute

difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe

o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute

evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem

disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida

em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant

esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute

visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia

simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os

culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo

aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)

Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a

demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance

da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a

proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que

natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o

sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento

daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como

agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas

52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX

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demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo

eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se

torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o

conhecemos

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico

Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do

pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa

tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55

Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena

justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do

dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico

kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia

entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado

ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se

racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos

O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo

de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes

seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar

do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua

fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o

sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a

54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20

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compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito

lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute

realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na

neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os

ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade

poliacutetica

Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo

livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem

que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma

manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na

culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim

as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de

alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60

Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo

que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em

grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres

soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos

iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou

semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61

Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem

punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um

58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984

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decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da

pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que

a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63

Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de

fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo

nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa

para segundo plano

Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria

retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo

Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada

com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo

crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa

ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que

diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam

de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo

explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto

nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a

coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo

Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele

reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito

de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo

aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio

da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute

63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91

31

por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo

uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66

Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos

movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por

inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda

a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o

porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo

de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O

maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter

livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado

que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto

esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver

toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas

para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico

da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos

65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89

32

CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)

Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se

comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos

lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza

Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos

Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo

(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque

restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime

Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas

enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas

apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais

defensores

Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo

falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico

sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos

culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais

(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se

retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro

Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas

consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo

dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir

69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq

33

Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista

que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre

suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute

consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a

autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a

puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de

infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado

apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance

A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos

cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o

benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada

indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela

apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos

outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos

- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual

possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72

Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo

(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos

outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um

ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de

qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o

fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos

outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e

fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de

constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele

cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida

obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do

71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007

34

deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair

balance73

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade

Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras

tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem

obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles

ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um

valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia

individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode

ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o

criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em

ser punido

A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o

indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o

estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos

importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem

bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo

aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta

contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu

da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua

proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a

73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas

35

justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei

universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a

decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute

respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou

desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria

puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido

a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as

outras leis sociais adotadas77

Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja

formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas

marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo

entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras

sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma

forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para

com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da

obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir

com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de

natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute

poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada

de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem

homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78

212 Criacutetica

O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo

empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas

76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq

36

principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede

e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores

de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de

privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam

recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um

bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse

caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo

interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade

A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso

merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem

indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a

essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre

os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo

que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que

realmente podemos ver o crime dessa forma

A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se

todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo

natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe

sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios

que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria

das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que

eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do

sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala

prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar

algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que

constitui verdadeiro mala in se

79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211

37

Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave

integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre

terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos

estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos

nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a

natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a

viacutetima sofreu80

Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas

quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um

consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a

maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se

constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal

Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso

consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma

vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de

crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida

com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em

verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de

essa coisa ser a puniccedilatildeo

213 Formulaccedilatildeo Atual

80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq

38

Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais

Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o

conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a

ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o

dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo

e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em

uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem

esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o

segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes

um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa

beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo

levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84

O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a

argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo

ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro

nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de

iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de

benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular

Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas

ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a

autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar

determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles

e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos

Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o

indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente

escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e

83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq

39

reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento

de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo

daqueles que natildeo obedecemrdquo86

Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode

quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para

marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em

qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a

regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O

mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -

de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim

como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a

lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais

severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras

consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por

conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria

da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a

conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e

doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88

214 Consideraccedilotildees finais

86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272

40

A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo

consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com

o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias

retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para

fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais

variados tipos de crimes

Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade

poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto

mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir

quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras

ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se

violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou

convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que

precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem

ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples

distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a

versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade

Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees

convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um

estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio

o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente

estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada

mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta

89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280

41

E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples

poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave

teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico

Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91

Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias

eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para

punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles

merecem sofrer

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL

San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through

You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold

San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell

May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good

Johnny Cash San Quentin

Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica

desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso

comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o

processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim

como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio

autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -

91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14

42

apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -

poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele

merece sofrer92

Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular

a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas

proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao

comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental

para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93

Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora

normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute

diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a

violaccedilatildeo de qualquer lei

Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo

deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute

sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da

puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem

para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes

componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa

moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido

empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as

implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em

segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo

errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja

experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para

com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente

ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a

disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a

92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97

43

ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo

autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa

que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95

E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser

empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso

entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado

Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de

reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a

presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de

estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que

promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da

puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica

principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97

Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado

entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e

compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho

sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este

deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a

desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos

quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer

Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave

95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir

44

resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98

Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo

se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha

do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o

que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades

paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez

que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido

e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores

tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100

Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo

moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris

explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo

cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel

ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao

menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute

necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de

prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes

apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira

que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo

98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896

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consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro

a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica

condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma

mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir

sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para

sua liberdade103 Sendo assim

Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104

A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que

aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de

transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de

refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a

escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de

apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira

de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem

razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma

inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107

Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a

aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo

Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados

com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou

103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq

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material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo

do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece

consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de

liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus

desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute

proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe

uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as

pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a

ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo

comunicado por aquele que o estaacute punindo109

Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da

puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas

substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo

estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de

comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles

possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido

utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas

usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a

ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute

semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente

doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma

mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas

accedilotildees111

E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria

afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os

cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas

satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam

108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215

47

o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve

ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino

ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o

estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada

porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e

imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa

aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114

Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a

puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria

realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo

estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se

possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas

das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi

erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo

esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115

221 Criacutetica

Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo

satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com

uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais

maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de

obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma

poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja

112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985

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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo

estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo

inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo

noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base

nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo

compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre

os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria

liberal de Estado117

O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo

Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que

de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e

puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o

criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido

o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa

se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos

alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar

ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a

permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas

que as justificam isso requer outro argumento119

Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma

poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do

liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral

assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios

limitadores da liberdade120

117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277

49

Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees

poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum

momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de

atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo

argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em

sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm

principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre

que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido

natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a

puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca

causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se

torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo

a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem

voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em

torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre

as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122

Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem

moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso

perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos

rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito

senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias

contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria

convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila

sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica

previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa

relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente

pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo

121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304

50

poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos

natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais

sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os

outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e

oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra

serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125

Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo

possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo

comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de

prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele

recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor

que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma

ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio

para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do

modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a

incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais

exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum

benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre

ele contra sua vontade127

E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy

direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma

percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo

conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do

sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para

125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352

51

submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee

amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim

uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia

ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a

capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se

torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um

tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a

capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo

esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129

222 Consideraccedilotildees finais

As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos

do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das

formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo

de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma

teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos

ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo

Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e

(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos

que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada

em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para

mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada

Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte

Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir

crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo

qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo

128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359

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de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas

boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos

ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter

cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a

maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem

um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles

conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo

mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral

De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela

influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por

que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir

iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria

para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute

precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de

uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave

para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes

filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e

pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos

apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute

mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas

indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131

130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209

53

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA

Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e

portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre

sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de

puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de

alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria

completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos

do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em

outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de

que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida

Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica

especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o

contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal

normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade

acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de

comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma

pretensatildeo de esgotaacute-lo

Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e

liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos

cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute

claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual

eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute

legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses

sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a

enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no

54

fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se

encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na

qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo

do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133

O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas

teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes

teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode

olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg

Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134

Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas

preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos

individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os

132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82

55

criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os

bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade

no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa

sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode

ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135

Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais

caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos

membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades

comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um

apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns

devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem

compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens

individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma

vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da

comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros

(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que

135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos

56

aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que

aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137

E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes

devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de

em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da

liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui

eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses

bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes

possibilite e lhes confira significado e sentido138

Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal

dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro

que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do

conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees

Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara

quais dessas condutas erradas constituem crimes

A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139

Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar

que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua

137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33

57

perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos

respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder

(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que

natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave

autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se

forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais

forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos

ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio

vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos

autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute

desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei

natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -

se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142

Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas

sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo

ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo

criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os

valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar

suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para

o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem

muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade

moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)

140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34

58

Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como

membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto

de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim

como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada

indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os

membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser

persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no

reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo

pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei

contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido

um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa

Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa

como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como

depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da

Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da

comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra

ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a

puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do

sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um

144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003

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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias

de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute

porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode

interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir

ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute

podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar

o dano e reconciliar os membros da comunidade148

Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de

certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a

qual pertencemos

Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149

146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71

60

Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente

por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo

percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos

tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores

decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou

ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do

indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da

tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala

Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo

comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a

mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150

Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo

em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o

criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo

moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros

cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas

cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria

natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites

para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado

como membro integral dela151

Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores

comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em

comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos

crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de

carreirardquo (III) ataques terroristas152

150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306

61

Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute

espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem

se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a

puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor

queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente

admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada

nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz

de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos

conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo

consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar

dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer

nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o

que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado

determinar a extensatildeo da comunidade

Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos

criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva

afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para

evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a

comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais

se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem

poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute

importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que

os culpados merecem sofrer155

153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79

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32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)

Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de

comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo

privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou

qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios

puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute

necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de

censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e

condutas corretos

A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos

como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de

cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de

Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo

simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser

buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma

pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute

crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a

concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von

n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute

63

Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar

satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que

o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159

Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva

da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas

entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo

privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um

determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico

especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de

ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou

da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160

Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas

negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio

autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo

demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a

iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic

nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o

sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo

(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse

enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)

ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns

indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e

informalmente absolvidos desse mesmo crime161

necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80

64

Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo

qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo

convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como

o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro

mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da

puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o

trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem

inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade

criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a

dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo

A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser

transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados

de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo

naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa

senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e

ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute

meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo

condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal

finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e

adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165

Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita

somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por

exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas

preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo

162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306

65

mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria

mensagem166

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)

No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e

a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o

conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo

de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente

daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para

algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada

pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse

miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a

existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168

A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees

legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes

violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento

uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente

desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute

socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o

sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da

166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51

66

vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e

encargos

O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de

puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo

dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta

errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para

desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela

inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em

conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral

deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do

medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente

comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na

linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor

A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172

A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles

entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute

170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41

67

uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento

ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser

subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o

sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse

nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo

denominadas de expressionismo extriacutenseco

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)

Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do

chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma

convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime

desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos

Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que

A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173

Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja

arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente

formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou

natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que

criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade

natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo

173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517

68

cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios

interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo

entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem

que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174

Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute

endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos

valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente

simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma

severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses

mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute

porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que

uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo

proibida175

Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida

seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute

assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a

seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa

aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim

entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas

menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida

humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem

proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar

penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a

prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de

prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela

eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao

ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado

174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521

69

Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees

histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos

Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a

achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo

dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais

com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os

senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito

havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo

dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a

privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo

encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua

liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado

multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas

falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo

universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o

pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a

conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido

quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou

quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um

preccedilo para fazer negoacutecios179

De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando

como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A

questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial

eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a

lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E

isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo

177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq

70

expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo

sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180

323 Recapitulando

Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a

puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma

mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para

aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado

responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um

todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que

o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a

puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o

repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da

lei

Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas

impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na

sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo

serem comunicadas apenas verbalmente

Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira

denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos

criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura

pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o

efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente

que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa

(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um

180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522

71

meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -

poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos

A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema

como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados

ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual

dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu

uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre

como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se

esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a

gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar

como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem

Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento

externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo

Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181

Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos

anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento

severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute

desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto

central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento

comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se

que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente

correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de

partida pelas razotildees que seguiratildeo

181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296

72

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura

A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser

evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria

absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas

as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos

em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta

intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo

distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve

comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)

legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para

dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente

quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184

O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos

ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser

crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber

que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como

errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma

comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo

nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito

natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque

afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta

seja considerada errada e portanto criminosa

182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211

73

Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve

explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui

diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou

extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente

dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute

diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo

prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente

compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que

frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para

ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que

eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser

bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por

humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute

necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que

uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa

injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e

terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso

prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo

pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem

nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma

sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente

contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle

eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que

podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei

criminalrdquo190

185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165

74

Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute

entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo

decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia

ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca

limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de

censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que

satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno

estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos

consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita

(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado

-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave

conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito

Nas palavras de Duff

Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o

191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295

75

foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192

Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute

um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos

valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para

demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)

quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo

eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente

errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os

vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal

consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e

sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio

senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com

atos moralmente louvaacuteveis ou neutros

A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima

Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas

de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura

adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente

apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja

perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam

apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo

(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute

responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por

causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta

moralmente adequada agrave viacutetima196

192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170

76

Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente

adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade

ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta

moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um

comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como

penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA

Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio

conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que

seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma

pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do

Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal

O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada

197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010

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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199

Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso

mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito

eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de

retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito

penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito

anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas

teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)

E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes

de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a

secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar

na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor

simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem

adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados

aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente

da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do

direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200

Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro

capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela

justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas

normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc

199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13

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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside

exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema

em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado

O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado

enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora

decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e

obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal

que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses

27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo

elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma

desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em

conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o

tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel

incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio

unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais

dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203

Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo

Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo

com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma

reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para

isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai

(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a

conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo

reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da

penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de

conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute

201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado

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autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo

para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206

Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem

penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para

o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante

explicaccedilatildeo a respeito

Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207

Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro

do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas

transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-

culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de

seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome

de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo

pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando

a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por

quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso

206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678

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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de

caminho210

Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a

ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto

conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o

problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia

ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado

um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o

objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse

senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da

comunidaderdquo212

Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha

importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as

pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como

penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio

de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc

assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de

lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a

delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal

de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como

membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa

situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de

Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e

reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas

acima por exemplo)

210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855

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331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)

Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento

Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento

O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que

este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo

deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos

sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres

de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as

teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes

podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela

se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de

arrependimento

O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215

214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010

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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo

Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto

soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode

arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos

moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de

algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento

constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa

de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi

flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma

atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o

que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir

desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro

podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217

Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo

poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e

ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva

pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas

falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra

do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de

accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute

natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo

arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo

continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade

de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)

Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo

216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17

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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219

A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou

melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente

a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro

devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida

natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da

necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa

a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser

persuadido pela mensagem

Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a

reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem

uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja

mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre

ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o

crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo

(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e

por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta

tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada

219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246

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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela

pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao

processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa

ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo

(hurt) eacute a seguinte

(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor

Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas

e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo

uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que

estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um

jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees

com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida

do que ele fezrdquo223

(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram

prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O

criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo

ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar

meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira

adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma

material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora

carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225

A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e

justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma

resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira

adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem

uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se

222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado

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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade

Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades

que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias

consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir

agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo

apropriado para persegui-lo

Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -

arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para

obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta

em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar

alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas

tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e

Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu

simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila

fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em

consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu

sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha

amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse

respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu

arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute

errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora

se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual

a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e

responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se

com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis

mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade

por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a

tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada

226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo

86

por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se

engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227

Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia

secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se

arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas

que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na

pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar

deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender

Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se

arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o

criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive

reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros

perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia

No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar

o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de

puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a

comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter

puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a

questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no

acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um

processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o

arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se

que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave

227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121

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gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-

nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute

verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa

redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso

que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas

consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo

do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma

do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada

ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria

portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida

Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se

arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena

Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum

deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo

Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a

pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade

intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica

que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute

assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A

resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se

alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute

contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da

mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte

devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos

levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo

moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da

comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230

229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123

88

John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento

distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas

razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do

que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele

merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo

de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos

primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento

determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando

instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a

mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o

ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como

penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que

esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233

O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia

secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a

toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que

o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de

puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia

merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a

ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von

Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e

portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia

exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia

Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente

sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de

prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos

poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa

231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84

89

comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e

a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo

apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a

igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas

demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser

detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo

justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o

criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da

misericoacuterdia

Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila

comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila

criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto

desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo

moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute

tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender

O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237

Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o

Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre

certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a

comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos

outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do

criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas

ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte

236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418

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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico

221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como

penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch

333 A penitecircncia e o Estado

Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre

a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral

adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo

punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a

caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um

processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de

penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a

privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a

formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de

transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida

externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos

internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente

apropriada para responder agrave mensagem de censura238

E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute

arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto

com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239

Em razatildeo disso o autor indaga

Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa

238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120

91

indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240

Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de

Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as

poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo

importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas

tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou

daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto

o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar

respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a

um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado

Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda

que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a

teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os

temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal

embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241

Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a

criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das

pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um

momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva

240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009

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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a

exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com

a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com

Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que

se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase

inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar

juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode

ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato

injustordquo245

Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute

um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da

natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses

elementos natildeo uma separaccedilatildeo247

Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente

corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade

sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas

respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute

as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez

tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo

242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129

93

criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem

punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato

Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito

[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250

Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a

intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no

ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se

salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou

tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o

preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o

criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo

devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um

nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela

mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que

ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de

249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491

94

certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido

pago254

Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar

um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch

com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria

Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta

que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no

processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter

assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas

quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute

receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer

saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para

natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute

preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos

agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo

somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser

moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-

la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se

efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na

comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida

Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como

penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de

seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a

respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para

entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma

caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas

podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a

254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437

95

reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais

preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257

256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440

96

CONCLUSAtildeO

Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho

Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de

consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a

accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias

(prevenccedilatildeo de crimes)

Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em

tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a

construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem

mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa

injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal

Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o

merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem

justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees

suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis

Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois

equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e

designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em

segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os

teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal

ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo

que o merecimento pretende capturar

Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo

explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-

97

perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)

Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal

Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo

criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute

convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma

vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute

sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo

Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como

educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria

dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo

compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos

Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que

definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta

seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da

comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer

pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada

criminosa

Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio

autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo

se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a

puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo

Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O

traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica

desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o

crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel

98

Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se

entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave

autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada

daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de

autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como

forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada

no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento

Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e

a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa

aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido

99

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Page 3: PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO ...repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/1749/1...2 DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO: CONTRIBUTO

3

Ao meu tio Luiz Olavo Motta Saldanha o ldquoMariardquo tambeacutem conhecido como ldquoo homem mais bonito do Alegreterdquo

Agrave minha voacute Lula Motta Saldanha Na casa do Pai haacute muitas moradas

e estou certo que ela reside em uma delas Meu bisavocirc Alfredo Motta na ocasiatildeo da morte de sua esposa Luciana Theodora Motta

escreveu estas palavras que agora dedico para minha voacute

Viver sem aquela a quem ama Eacute rolar sobre a terra jaacute sem norte

Eacute cumprir as leis de nosso Deus Desejando sem temor que venha a morte

Agrave minha matildee Liacutegia Saldanha Cavalcante cuja bondade e retidatildeo satildeo

atestadas por todas as accedilotildees de sua vida Para vocecirc matildee queria dedicar palavras de conforto mas natildeo as tenho

4

RESUMO

O presente trabalho vinculado agrave Linha de Pesquisa Sistemas Juriacutedico-

Penais Contemporacircneos tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a

compreensatildeo do problema da puniccedilatildeo criminal Para tanto pretende-se buscar um novo

olhar sobre o tema historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas Em

primeiro lugar busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados assim evitando equiacutevocos na

anaacutelise do objeto em questatildeo Em segundo lugar analisam-se as teorias retributivas

oriundas da common law dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff estudada

no terceiro capiacutetulo

Palavras-chave puniccedilatildeo criminal retribuiccedilatildeo negativa retribuiccedilatildeo positiva teorias

preventivas teorias mistas consequencialismo e natildeo-consequencialismo merecimento

teorias comunicativas penitecircncia secular arrependimento

5

ABSTRACT

This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary

Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal

punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically

divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the

concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly

analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs

communicative theory studied in the third chapter

Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive

theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular

penance repentance

6

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 08

CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19

121 Kant o paradigma 25

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28

CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34

212 Criacutetica 35

213 Formulaccedilatildeo atual 37

214 Consideraccedilotildees finais 39

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41

221 Criacutetica 47

222 Consideraccedilotildees finais 51

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67

323 Recapitulando 70

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76

7

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86

333 A penitecircncia e o Estado 90

CONCLUSAtildeO 96

REFEREcircNCIAS 99

8

INTRODUCcedilAtildeO

Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas

e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc

Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem

nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos

perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a

atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas

formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este

estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto

eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena

O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se

divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo

manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de

problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se

mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento

teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-

se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e

retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo

apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas

novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das

teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina

com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente

trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria

Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute

porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na

common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se

propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este

utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo

9

Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da

justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em

contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas

Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O

aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu

como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a

pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo

eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o

criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela

conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo

mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura

e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam

justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como

retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes

elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o

autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser

justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para

uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal

10

CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado

Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja

imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel

pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo

encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias

preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute

identificado na puniccedilatildeo mesma

Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas

finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)

ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos

(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo

geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo

especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-

lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma

miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes

com as teorias retributivas

O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de

preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia

1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001

11

ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao

lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as

palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo

adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas

consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa

A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5

A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a

justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga

seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber

de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela

responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais

3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73

12

velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes

estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas

ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada

disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se

trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes

Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)

apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo

estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado

independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa

razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente

correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que

justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio

O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima

torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo

punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no

caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que

ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo

podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que

nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos

anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes

mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo

Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260

13

destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7

Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega

que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo

dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente

(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta

nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees

morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas

sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor

noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos

empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em

algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9

A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a

puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas

seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo

maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado

em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave

verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila

que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de

quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de

todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser

verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta

de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol

das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que

fossem os dados apresentados

7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160

14

A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras

consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas

que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo

puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras

palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos

efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de

merecimento das retribuiccedilotildees negativas11

Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao

inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves

objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve

explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse

sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute

ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante

sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias

consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)

Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14

do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades

preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser

imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais

desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15

Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime

entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos

variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo

direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes

11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97

15

materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante

caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades

preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo

teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo

em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que

nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia

Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-

86) Diz-se entatildeo ao autor

A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16

Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria

Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na

mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada

tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais

e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas

direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los

como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados

Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque

tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis

16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010

16

como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas

anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17

Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam

outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre

aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a

diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao

desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a

junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute

muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19

consequencialistas e deontoloacutegicas

Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo

feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral

positiva

A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber

uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre

outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente

naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e

17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347

17

assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o

alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda

ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees

desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias

retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido

conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo

encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se

harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda

Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar

de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja

limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram

a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue

incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo

funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim

conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar

nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que

enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para

validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral

certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23

Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por

essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele

apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se

importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim

Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho

21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93

18

benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da

metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)

poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar

uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta

O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias

preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente

nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado

a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada

prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a

anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma

O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28

Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode

ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer

que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa

todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo

vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para

chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste

trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem

mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar

a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para

garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma

violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz

que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia

25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22

19

quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material

aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo

efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos

provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um

sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)

Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute

aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem

identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo

eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de

prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser

admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar

nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a

puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o

bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de

alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que

existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by

default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e

castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos

para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado

independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste

trabalho

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS

Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas

conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees

Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam

20

batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez

de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia

ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na

criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante

Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que

focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido

Tolstoy Ressurreiccedilatildeo

Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste

estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em

apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como

delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir

sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

teorias

O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma

uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados

porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute

buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do

crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as

teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da

perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as

teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas

29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231

21

remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas

delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila

Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das

teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa

sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas

retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees

biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar

com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave

puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo

de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se

comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila

em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse

restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois

soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna

em nome e no lugar do homem pecador por natureza33

Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a

natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas

31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455

22

aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando

provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35

Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a

passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de

proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar

que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o

marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um

recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima

gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo

sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um

equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36

Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a

narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no

tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e

dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua

face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)

Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo

embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo

Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a

com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da

raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que

aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010

23

importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso

porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa

porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem

ofendido inocentemente sofreurdquo39

Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave

incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa

racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e

dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou

outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os

como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar

essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio

pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser

administrada

Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se

que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo

Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41

O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na

distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da

puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente

38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238

24

eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo

ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da

admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a

sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz

que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas

preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do

cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja

a meta-geral justificante da puniccedilatildeo

Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a

compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na

interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute

distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma

igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas

previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca

equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade

aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se

que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a

coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo

positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda

que posteriormente seraacute comutada

Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta

a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos

punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo

Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou

mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo

42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62

25

negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso

ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a

balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao

criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo

de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias

retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e

castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral

pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados

em um bemrdquo45

Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam

as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela

voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo

corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a

justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do

sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou

moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa

e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo

soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a

sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais

beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela

qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas

121 Kant o paradigma

Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente

neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que

44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235

26

pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar

todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo

adequada da puniccedilatildeo criminal

Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por

exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar

pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo

ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina

do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas

proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma

minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar

transcreve-se apenas um dos argumentos

Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49

De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da

puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem

bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples

meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50

Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no

entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma

perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51

47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006

27

Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias

retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil

Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser

morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia

ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo

um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a

sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute

difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe

o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute

evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem

disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida

em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant

esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute

visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia

simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os

culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo

aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)

Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a

demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance

da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a

proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que

natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o

sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento

daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como

agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas

52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX

28

demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo

eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se

torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o

conhecemos

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico

Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do

pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa

tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55

Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena

justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do

dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico

kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia

entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado

ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se

racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos

O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo

de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes

seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar

do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua

fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o

sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a

54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20

29

compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito

lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute

realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na

neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os

ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade

poliacutetica

Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo

livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem

que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma

manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na

culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim

as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de

alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60

Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo

que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em

grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres

soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos

iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou

semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61

Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem

punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um

58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984

30

decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da

pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que

a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63

Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de

fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo

nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa

para segundo plano

Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria

retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo

Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada

com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo

crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa

ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que

diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam

de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo

explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto

nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a

coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo

Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele

reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito

de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo

aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio

da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute

63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91

31

por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo

uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66

Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos

movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por

inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda

a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o

porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo

de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O

maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter

livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado

que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto

esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver

toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas

para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico

da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos

65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89

32

CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)

Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se

comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos

lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza

Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos

Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo

(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque

restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime

Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas

enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas

apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais

defensores

Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo

falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico

sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos

culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais

(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se

retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro

Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas

consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo

dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir

69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq

33

Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista

que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre

suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute

consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a

autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a

puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de

infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado

apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance

A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos

cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o

benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada

indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela

apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos

outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos

- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual

possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72

Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo

(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos

outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um

ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de

qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o

fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos

outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e

fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de

constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele

cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida

obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do

71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007

34

deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair

balance73

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade

Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras

tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem

obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles

ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um

valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia

individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode

ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o

criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em

ser punido

A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o

indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o

estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos

importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem

bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo

aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta

contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu

da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua

proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a

73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas

35

justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei

universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a

decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute

respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou

desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria

puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido

a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as

outras leis sociais adotadas77

Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja

formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas

marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo

entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras

sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma

forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para

com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da

obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir

com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de

natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute

poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada

de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem

homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78

212 Criacutetica

O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo

empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas

76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq

36

principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede

e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores

de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de

privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam

recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um

bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse

caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo

interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade

A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso

merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem

indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a

essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre

os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo

que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que

realmente podemos ver o crime dessa forma

A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se

todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo

natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe

sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios

que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria

das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que

eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do

sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala

prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar

algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que

constitui verdadeiro mala in se

79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211

37

Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave

integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre

terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos

estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos

nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a

natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a

viacutetima sofreu80

Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas

quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um

consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a

maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se

constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal

Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso

consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma

vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de

crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida

com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em

verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de

essa coisa ser a puniccedilatildeo

213 Formulaccedilatildeo Atual

80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq

38

Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais

Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o

conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a

ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o

dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo

e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em

uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem

esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o

segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes

um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa

beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo

levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84

O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a

argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo

ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro

nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de

iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de

benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular

Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas

ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a

autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar

determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles

e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos

Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o

indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente

escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e

83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq

39

reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento

de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo

daqueles que natildeo obedecemrdquo86

Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode

quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para

marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em

qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a

regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O

mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -

de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim

como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a

lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais

severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras

consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por

conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria

da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a

conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e

doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88

214 Consideraccedilotildees finais

86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272

40

A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo

consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com

o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias

retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para

fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais

variados tipos de crimes

Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade

poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto

mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir

quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras

ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se

violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou

convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que

precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem

ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples

distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a

versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade

Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees

convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um

estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio

o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente

estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada

mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta

89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280

41

E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples

poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave

teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico

Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91

Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias

eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para

punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles

merecem sofrer

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL

San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through

You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold

San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell

May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good

Johnny Cash San Quentin

Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica

desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso

comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o

processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim

como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio

autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -

91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14

42

apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -

poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele

merece sofrer92

Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular

a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas

proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao

comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental

para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93

Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora

normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute

diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a

violaccedilatildeo de qualquer lei

Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo

deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute

sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da

puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem

para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes

componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa

moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido

empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as

implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em

segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo

errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja

experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para

com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente

ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a

disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a

92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97

43

ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo

autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa

que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95

E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser

empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso

entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado

Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de

reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a

presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de

estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que

promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da

puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica

principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97

Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado

entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e

compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho

sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este

deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a

desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos

quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer

Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave

95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir

44

resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98

Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo

se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha

do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o

que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades

paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez

que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido

e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores

tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100

Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo

moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris

explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo

cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel

ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao

menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute

necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de

prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes

apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira

que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo

98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896

45

consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro

a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica

condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma

mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir

sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para

sua liberdade103 Sendo assim

Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104

A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que

aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de

transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de

refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a

escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de

apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira

de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem

razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma

inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107

Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a

aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo

Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados

com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou

103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq

46

material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo

do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece

consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de

liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus

desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute

proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe

uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as

pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a

ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo

comunicado por aquele que o estaacute punindo109

Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da

puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas

substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo

estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de

comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles

possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido

utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas

usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a

ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute

semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente

doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma

mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas

accedilotildees111

E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria

afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os

cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas

satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam

108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215

47

o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve

ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino

ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o

estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada

porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e

imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa

aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114

Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a

puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria

realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo

estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se

possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas

das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi

erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo

esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115

221 Criacutetica

Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo

satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com

uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais

maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de

obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma

poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja

112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985

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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo

estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo

inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo

noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base

nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo

compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre

os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria

liberal de Estado117

O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo

Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que

de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e

puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o

criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido

o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa

se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos

alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar

ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a

permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas

que as justificam isso requer outro argumento119

Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma

poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do

liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral

assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios

limitadores da liberdade120

117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277

49

Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees

poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum

momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de

atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo

argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em

sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm

principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre

que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido

natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a

puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca

causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se

torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo

a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem

voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em

torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre

as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122

Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem

moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso

perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos

rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito

senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias

contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria

convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila

sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica

previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa

relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente

pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo

121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304

50

poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos

natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais

sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os

outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e

oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra

serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125

Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo

possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo

comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de

prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele

recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor

que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma

ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio

para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do

modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a

incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais

exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum

benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre

ele contra sua vontade127

E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy

direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma

percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo

conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do

sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para

125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352

51

submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee

amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim

uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia

ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a

capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se

torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um

tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a

capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo

esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129

222 Consideraccedilotildees finais

As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos

do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das

formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo

de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma

teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos

ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo

Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e

(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos

que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada

em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para

mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada

Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte

Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir

crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo

qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo

128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359

52

de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas

boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos

ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter

cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a

maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem

um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles

conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo

mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral

De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela

influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por

que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir

iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria

para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute

precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de

uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave

para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes

filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e

pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos

apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute

mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas

indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131

130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209

53

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA

Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e

portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre

sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de

puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de

alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria

completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos

do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em

outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de

que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida

Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica

especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o

contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal

normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade

acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de

comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma

pretensatildeo de esgotaacute-lo

Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e

liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos

cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute

claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual

eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute

legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses

sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a

enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no

54

fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se

encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na

qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo

do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133

O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas

teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes

teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode

olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg

Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134

Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas

preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos

individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os

132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82

55

criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os

bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade

no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa

sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode

ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135

Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais

caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos

membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades

comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um

apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns

devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem

compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens

individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma

vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da

comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros

(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que

135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos

56

aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que

aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137

E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes

devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de

em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da

liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui

eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses

bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes

possibilite e lhes confira significado e sentido138

Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal

dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro

que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do

conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees

Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara

quais dessas condutas erradas constituem crimes

A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139

Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar

que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua

137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33

57

perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos

respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder

(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que

natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave

autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se

forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais

forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos

ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio

vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos

autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute

desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei

natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -

se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142

Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas

sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo

ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo

criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os

valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar

suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para

o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem

muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade

moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)

140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34

58

Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como

membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto

de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim

como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada

indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os

membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser

persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no

reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo

pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei

contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido

um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa

Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa

como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como

depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da

Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da

comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra

ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a

puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do

sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um

144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003

59

processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias

de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute

porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode

interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir

ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute

podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar

o dano e reconciliar os membros da comunidade148

Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de

certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a

qual pertencemos

Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149

146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71

60

Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente

por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo

percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos

tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores

decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou

ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do

indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da

tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala

Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo

comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a

mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150

Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo

em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o

criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo

moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros

cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas

cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria

natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites

para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado

como membro integral dela151

Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores

comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em

comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos

crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de

carreirardquo (III) ataques terroristas152

150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306

61

Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute

espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem

se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a

puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor

queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente

admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada

nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz

de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos

conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo

consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar

dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer

nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o

que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado

determinar a extensatildeo da comunidade

Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos

criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva

afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para

evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a

comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais

se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem

poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute

importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que

os culpados merecem sofrer155

153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79

62

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)

Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de

comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo

privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou

qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios

puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute

necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de

censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e

condutas corretos

A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos

como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de

cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de

Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo

simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser

buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma

pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute

crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a

concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von

n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute

63

Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar

satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que

o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159

Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva

da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas

entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo

privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um

determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico

especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de

ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou

da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160

Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas

negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio

autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo

demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a

iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic

nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o

sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo

(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse

enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)

ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns

indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e

informalmente absolvidos desse mesmo crime161

necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80

64

Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo

qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo

convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como

o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro

mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da

puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o

trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem

inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade

criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a

dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo

A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser

transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados

de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo

naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa

senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e

ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute

meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo

condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal

finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e

adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165

Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita

somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por

exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas

preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo

162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306

65

mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria

mensagem166

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)

No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e

a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o

conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo

de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente

daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para

algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada

pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse

miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a

existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168

A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees

legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes

violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento

uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente

desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute

socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o

sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da

166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51

66

vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e

encargos

O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de

puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo

dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta

errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para

desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela

inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em

conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral

deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do

medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente

comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na

linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor

A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172

A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles

entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute

170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41

67

uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento

ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser

subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o

sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse

nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo

denominadas de expressionismo extriacutenseco

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)

Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do

chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma

convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime

desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos

Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que

A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173

Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja

arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente

formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou

natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que

criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade

natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo

173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517

68

cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios

interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo

entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem

que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174

Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute

endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos

valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente

simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma

severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses

mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute

porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que

uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo

proibida175

Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida

seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute

assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a

seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa

aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim

entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas

menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida

humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem

proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar

penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a

prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de

prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela

eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao

ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado

174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521

69

Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees

histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos

Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a

achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo

dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais

com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os

senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito

havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo

dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a

privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo

encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua

liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado

multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas

falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo

universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o

pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a

conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido

quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou

quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um

preccedilo para fazer negoacutecios179

De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando

como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A

questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial

eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a

lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E

isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo

177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq

70

expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo

sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180

323 Recapitulando

Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a

puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma

mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para

aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado

responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um

todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que

o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a

puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o

repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da

lei

Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas

impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na

sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo

serem comunicadas apenas verbalmente

Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira

denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos

criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura

pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o

efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente

que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa

(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um

180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522

71

meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -

poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos

A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema

como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados

ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual

dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu

uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre

como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se

esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a

gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar

como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem

Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento

externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo

Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181

Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos

anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento

severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute

desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto

central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento

comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se

que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente

correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de

partida pelas razotildees que seguiratildeo

181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296

72

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura

A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser

evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria

absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas

as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos

em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta

intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo

distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve

comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)

legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para

dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente

quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184

O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos

ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser

crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber

que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como

errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma

comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo

nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito

natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque

afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta

seja considerada errada e portanto criminosa

182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211

73

Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve

explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui

diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou

extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente

dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute

diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo

prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente

compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que

frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para

ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que

eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser

bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por

humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute

necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que

uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa

injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e

terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso

prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo

pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem

nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma

sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente

contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle

eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que

podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei

criminalrdquo190

185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165

74

Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute

entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo

decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia

ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca

limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de

censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que

satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno

estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos

consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita

(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado

-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave

conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito

Nas palavras de Duff

Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o

191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295

75

foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192

Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute

um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos

valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para

demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)

quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo

eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente

errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os

vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal

consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e

sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio

senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com

atos moralmente louvaacuteveis ou neutros

A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima

Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas

de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura

adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente

apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja

perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam

apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo

(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute

responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por

causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta

moralmente adequada agrave viacutetima196

192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170

76

Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente

adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade

ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta

moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um

comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como

penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA

Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio

conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que

seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma

pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do

Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal

O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada

197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010

77

numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199

Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso

mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito

eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de

retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito

penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito

anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas

teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)

E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes

de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a

secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar

na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor

simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem

adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados

aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente

da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do

direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200

Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro

capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela

justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas

normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc

199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13

78

Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside

exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema

em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado

O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado

enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora

decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e

obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal

que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses

27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo

elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma

desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em

conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o

tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel

incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio

unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais

dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203

Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo

Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo

com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma

reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para

isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai

(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a

conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo

reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da

penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de

conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute

201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado

79

autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo

para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206

Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem

penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para

o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante

explicaccedilatildeo a respeito

Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207

Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro

do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas

transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-

culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de

seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome

de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo

pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando

a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por

quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso

206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678

80

resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de

caminho210

Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a

ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto

conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o

problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia

ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado

um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o

objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse

senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da

comunidaderdquo212

Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha

importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as

pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como

penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio

de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc

assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de

lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a

delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal

de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como

membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa

situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de

Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e

reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas

acima por exemplo)

210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855

81

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)

Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento

Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento

O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que

este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo

deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos

sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres

de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as

teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes

podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela

se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de

arrependimento

O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215

214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010

82

O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo

Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto

soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode

arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos

moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de

algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento

constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa

de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi

flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma

atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o

que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir

desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro

podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217

Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo

poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e

ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva

pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas

falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra

do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de

accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute

natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo

arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo

continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade

de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)

Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo

216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17

83

consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219

A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou

melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente

a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro

devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida

natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da

necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa

a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser

persuadido pela mensagem

Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a

reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem

uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja

mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre

ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o

crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo

(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e

por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta

tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada

219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246

84

Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela

pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao

processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa

ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo

(hurt) eacute a seguinte

(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor

Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas

e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo

uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que

estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um

jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees

com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida

do que ele fezrdquo223

(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram

prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O

criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo

ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar

meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira

adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma

material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora

carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225

A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e

justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma

resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira

adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem

uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se

222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado

85

houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade

Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades

que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias

consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir

agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo

apropriado para persegui-lo

Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -

arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para

obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta

em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar

alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas

tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e

Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu

simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila

fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em

consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu

sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha

amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse

respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu

arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute

errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora

se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual

a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e

responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se

com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis

mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade

por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a

tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada

226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo

86

por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se

engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227

Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia

secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se

arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas

que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na

pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar

deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender

Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se

arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o

criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive

reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros

perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia

No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar

o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de

puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a

comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter

puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a

questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no

acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um

processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o

arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se

que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave

227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121

87

gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-

nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute

verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa

redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso

que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas

consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo

do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma

do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada

ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria

portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida

Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se

arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena

Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum

deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo

Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a

pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade

intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica

que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute

assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A

resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se

alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute

contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da

mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte

devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos

levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo

moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da

comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230

229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123

88

John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento

distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas

razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do

que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele

merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo

de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos

primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento

determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando

instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a

mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o

ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como

penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que

esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233

O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia

secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a

toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que

o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de

puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia

merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a

ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von

Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e

portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia

exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia

Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente

sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de

prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos

poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa

231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84

89

comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e

a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo

apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a

igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas

demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser

detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo

justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o

criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da

misericoacuterdia

Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila

comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila

criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto

desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo

moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute

tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender

O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237

Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o

Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre

certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a

comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos

outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do

criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas

ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte

236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418

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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico

221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como

penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch

333 A penitecircncia e o Estado

Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre

a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral

adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo

punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a

caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um

processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de

penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a

privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a

formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de

transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida

externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos

internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente

apropriada para responder agrave mensagem de censura238

E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute

arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto

com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239

Em razatildeo disso o autor indaga

Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa

238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120

91

indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240

Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de

Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as

poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo

importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas

tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou

daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto

o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar

respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a

um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado

Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda

que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a

teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os

temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal

embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241

Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a

criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das

pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um

momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva

240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009

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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a

exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com

a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com

Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que

se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase

inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar

juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode

ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato

injustordquo245

Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute

um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da

natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses

elementos natildeo uma separaccedilatildeo247

Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente

corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade

sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas

respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute

as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez

tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo

242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129

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criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem

punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato

Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito

[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250

Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a

intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no

ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se

salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou

tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o

preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o

criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo

devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um

nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela

mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que

ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de

249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491

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certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido

pago254

Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar

um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch

com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria

Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta

que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no

processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter

assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas

quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute

receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer

saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para

natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute

preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos

agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo

somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser

moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-

la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se

efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na

comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida

Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como

penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de

seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a

respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para

entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma

caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas

podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a

254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437

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reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais

preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257

256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440

96

CONCLUSAtildeO

Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho

Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de

consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a

accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias

(prevenccedilatildeo de crimes)

Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em

tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a

construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem

mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa

injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal

Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o

merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem

justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees

suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis

Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois

equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e

designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em

segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os

teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal

ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo

que o merecimento pretende capturar

Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo

explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-

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perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)

Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal

Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo

criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute

convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma

vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute

sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo

Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como

educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria

dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo

compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos

Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que

definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta

seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da

comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer

pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada

criminosa

Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio

autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo

se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a

puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo

Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O

traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica

desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o

crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel

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Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se

entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave

autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada

daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de

autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como

forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada

no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento

Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e

a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa

aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido

99

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Page 4: PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO ...repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/1749/1...2 DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO: CONTRIBUTO

4

RESUMO

O presente trabalho vinculado agrave Linha de Pesquisa Sistemas Juriacutedico-

Penais Contemporacircneos tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a

compreensatildeo do problema da puniccedilatildeo criminal Para tanto pretende-se buscar um novo

olhar sobre o tema historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas Em

primeiro lugar busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados assim evitando equiacutevocos na

anaacutelise do objeto em questatildeo Em segundo lugar analisam-se as teorias retributivas

oriundas da common law dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff estudada

no terceiro capiacutetulo

Palavras-chave puniccedilatildeo criminal retribuiccedilatildeo negativa retribuiccedilatildeo positiva teorias

preventivas teorias mistas consequencialismo e natildeo-consequencialismo merecimento

teorias comunicativas penitecircncia secular arrependimento

5

ABSTRACT

This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary

Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal

punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically

divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the

concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly

analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs

communicative theory studied in the third chapter

Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive

theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular

penance repentance

6

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 08

CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19

121 Kant o paradigma 25

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28

CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34

212 Criacutetica 35

213 Formulaccedilatildeo atual 37

214 Consideraccedilotildees finais 39

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41

221 Criacutetica 47

222 Consideraccedilotildees finais 51

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67

323 Recapitulando 70

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76

7

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86

333 A penitecircncia e o Estado 90

CONCLUSAtildeO 96

REFEREcircNCIAS 99

8

INTRODUCcedilAtildeO

Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas

e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc

Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem

nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos

perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a

atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas

formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este

estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto

eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena

O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se

divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo

manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de

problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se

mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento

teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-

se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e

retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo

apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas

novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das

teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina

com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente

trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria

Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute

porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na

common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se

propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este

utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo

9

Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da

justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em

contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas

Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O

aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu

como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a

pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo

eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o

criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela

conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo

mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura

e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam

justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como

retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes

elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o

autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser

justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para

uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal

10

CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado

Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja

imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel

pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo

encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias

preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute

identificado na puniccedilatildeo mesma

Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas

finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)

ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos

(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo

geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo

especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-

lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma

miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes

com as teorias retributivas

O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de

preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia

1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001

11

ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao

lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as

palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo

adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas

consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa

A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5

A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a

justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga

seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber

de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela

responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais

3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73

12

velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes

estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas

ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada

disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se

trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes

Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)

apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo

estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado

independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa

razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente

correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que

justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio

O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima

torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo

punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no

caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que

ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo

podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que

nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos

anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes

mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo

Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260

13

destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7

Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega

que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo

dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente

(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta

nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees

morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas

sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor

noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos

empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em

algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9

A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a

puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas

seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo

maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado

em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave

verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila

que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de

quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de

todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser

verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta

de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol

das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que

fossem os dados apresentados

7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160

14

A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras

consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas

que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo

puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras

palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos

efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de

merecimento das retribuiccedilotildees negativas11

Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao

inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves

objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve

explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse

sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute

ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante

sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias

consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)

Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14

do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades

preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser

imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais

desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15

Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime

entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos

variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo

direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes

11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97

15

materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante

caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades

preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo

teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo

em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que

nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia

Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-

86) Diz-se entatildeo ao autor

A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16

Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria

Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na

mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada

tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais

e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas

direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los

como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados

Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque

tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis

16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010

16

como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas

anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17

Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam

outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre

aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a

diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao

desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a

junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute

muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19

consequencialistas e deontoloacutegicas

Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo

feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral

positiva

A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber

uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre

outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente

naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e

17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347

17

assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o

alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda

ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees

desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias

retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido

conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo

encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se

harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda

Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar

de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja

limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram

a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue

incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo

funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim

conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar

nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que

enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para

validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral

certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23

Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por

essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele

apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se

importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim

Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho

21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93

18

benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da

metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)

poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar

uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta

O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias

preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente

nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado

a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada

prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a

anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma

O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28

Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode

ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer

que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa

todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo

vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para

chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste

trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem

mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar

a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para

garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma

violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz

que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia

25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22

19

quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material

aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo

efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos

provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um

sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)

Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute

aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem

identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo

eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de

prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser

admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar

nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a

puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o

bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de

alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que

existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by

default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e

castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos

para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado

independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste

trabalho

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS

Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas

conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees

Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam

20

batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez

de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia

ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na

criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante

Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que

focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido

Tolstoy Ressurreiccedilatildeo

Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste

estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em

apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como

delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir

sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

teorias

O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma

uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados

porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute

buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do

crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as

teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da

perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as

teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas

29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231

21

remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas

delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila

Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das

teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa

sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas

retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees

biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar

com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave

puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo

de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se

comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila

em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse

restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois

soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna

em nome e no lugar do homem pecador por natureza33

Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a

natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas

31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455

22

aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando

provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35

Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a

passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de

proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar

que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o

marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um

recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima

gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo

sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um

equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36

Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a

narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no

tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e

dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua

face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)

Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo

embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo

Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a

com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da

raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que

aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010

23

importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso

porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa

porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem

ofendido inocentemente sofreurdquo39

Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave

incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa

racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e

dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou

outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os

como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar

essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio

pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser

administrada

Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se

que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo

Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41

O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na

distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da

puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente

38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238

24

eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo

ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da

admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a

sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz

que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas

preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do

cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja

a meta-geral justificante da puniccedilatildeo

Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a

compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na

interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute

distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma

igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas

previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca

equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade

aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se

que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a

coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo

positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda

que posteriormente seraacute comutada

Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta

a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos

punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo

Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou

mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo

42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62

25

negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso

ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a

balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao

criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo

de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias

retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e

castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral

pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados

em um bemrdquo45

Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam

as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela

voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo

corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a

justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do

sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou

moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa

e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo

soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a

sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais

beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela

qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas

121 Kant o paradigma

Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente

neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que

44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235

26

pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar

todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo

adequada da puniccedilatildeo criminal

Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por

exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar

pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo

ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina

do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas

proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma

minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar

transcreve-se apenas um dos argumentos

Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49

De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da

puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem

bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples

meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50

Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no

entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma

perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51

47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006

27

Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias

retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil

Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser

morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia

ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo

um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a

sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute

difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe

o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute

evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem

disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida

em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant

esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute

visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia

simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os

culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo

aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)

Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a

demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance

da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a

proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que

natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o

sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento

daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como

agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas

52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX

28

demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo

eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se

torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o

conhecemos

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico

Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do

pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa

tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55

Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena

justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do

dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico

kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia

entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado

ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se

racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos

O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo

de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes

seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar

do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua

fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o

sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a

54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20

29

compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito

lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute

realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na

neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os

ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade

poliacutetica

Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo

livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem

que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma

manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na

culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim

as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de

alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60

Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo

que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em

grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres

soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos

iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou

semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61

Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem

punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um

58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984

30

decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da

pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que

a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63

Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de

fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo

nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa

para segundo plano

Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria

retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo

Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada

com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo

crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa

ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que

diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam

de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo

explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto

nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a

coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo

Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele

reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito

de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo

aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio

da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute

63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91

31

por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo

uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66

Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos

movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por

inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda

a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o

porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo

de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O

maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter

livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado

que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto

esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver

toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas

para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico

da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos

65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89

32

CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)

Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se

comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos

lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza

Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos

Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo

(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque

restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime

Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas

enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas

apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais

defensores

Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo

falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico

sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos

culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais

(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se

retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro

Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas

consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo

dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir

69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq

33

Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista

que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre

suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute

consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a

autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a

puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de

infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado

apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance

A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos

cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o

benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada

indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela

apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos

outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos

- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual

possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72

Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo

(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos

outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um

ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de

qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o

fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos

outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e

fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de

constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele

cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida

obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do

71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007

34

deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair

balance73

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade

Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras

tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem

obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles

ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um

valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia

individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode

ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o

criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em

ser punido

A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o

indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o

estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos

importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem

bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo

aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta

contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu

da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua

proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a

73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas

35

justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei

universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a

decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute

respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou

desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria

puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido

a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as

outras leis sociais adotadas77

Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja

formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas

marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo

entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras

sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma

forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para

com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da

obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir

com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de

natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute

poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada

de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem

homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78

212 Criacutetica

O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo

empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas

76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq

36

principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede

e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores

de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de

privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam

recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um

bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse

caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo

interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade

A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso

merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem

indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a

essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre

os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo

que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que

realmente podemos ver o crime dessa forma

A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se

todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo

natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe

sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios

que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria

das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que

eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do

sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala

prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar

algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que

constitui verdadeiro mala in se

79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211

37

Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave

integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre

terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos

estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos

nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a

natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a

viacutetima sofreu80

Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas

quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um

consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a

maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se

constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal

Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso

consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma

vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de

crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida

com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em

verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de

essa coisa ser a puniccedilatildeo

213 Formulaccedilatildeo Atual

80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq

38

Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais

Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o

conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a

ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o

dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo

e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em

uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem

esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o

segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes

um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa

beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo

levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84

O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a

argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo

ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro

nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de

iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de

benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular

Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas

ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a

autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar

determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles

e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos

Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o

indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente

escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e

83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq

39

reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento

de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo

daqueles que natildeo obedecemrdquo86

Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode

quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para

marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em

qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a

regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O

mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -

de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim

como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a

lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais

severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras

consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por

conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria

da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a

conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e

doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88

214 Consideraccedilotildees finais

86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272

40

A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo

consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com

o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias

retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para

fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais

variados tipos de crimes

Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade

poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto

mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir

quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras

ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se

violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou

convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que

precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem

ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples

distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a

versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade

Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees

convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um

estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio

o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente

estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada

mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta

89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280

41

E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples

poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave

teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico

Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91

Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias

eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para

punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles

merecem sofrer

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL

San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through

You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold

San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell

May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good

Johnny Cash San Quentin

Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica

desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso

comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o

processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim

como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio

autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -

91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14

42

apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -

poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele

merece sofrer92

Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular

a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas

proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao

comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental

para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93

Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora

normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute

diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a

violaccedilatildeo de qualquer lei

Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo

deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute

sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da

puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem

para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes

componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa

moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido

empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as

implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em

segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo

errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja

experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para

com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente

ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a

disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a

92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97

43

ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo

autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa

que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95

E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser

empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso

entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado

Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de

reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a

presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de

estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que

promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da

puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica

principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97

Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado

entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e

compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho

sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este

deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a

desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos

quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer

Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave

95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir

44

resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98

Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo

se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha

do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o

que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades

paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez

que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido

e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores

tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100

Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo

moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris

explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo

cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel

ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao

menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute

necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de

prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes

apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira

que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo

98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896

45

consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro

a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica

condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma

mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir

sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para

sua liberdade103 Sendo assim

Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104

A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que

aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de

transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de

refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a

escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de

apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira

de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem

razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma

inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107

Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a

aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo

Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados

com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou

103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq

46

material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo

do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece

consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de

liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus

desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute

proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe

uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as

pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a

ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo

comunicado por aquele que o estaacute punindo109

Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da

puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas

substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo

estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de

comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles

possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido

utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas

usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a

ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute

semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente

doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma

mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas

accedilotildees111

E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria

afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os

cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas

satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam

108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215

47

o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve

ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino

ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o

estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada

porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e

imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa

aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114

Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a

puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria

realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo

estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se

possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas

das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi

erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo

esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115

221 Criacutetica

Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo

satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com

uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais

maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de

obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma

poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja

112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985

48

racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo

estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo

inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo

noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base

nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo

compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre

os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria

liberal de Estado117

O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo

Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que

de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e

puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o

criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido

o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa

se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos

alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar

ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a

permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas

que as justificam isso requer outro argumento119

Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma

poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do

liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral

assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios

limitadores da liberdade120

117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277

49

Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees

poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum

momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de

atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo

argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em

sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm

principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre

que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido

natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a

puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca

causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se

torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo

a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem

voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em

torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre

as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122

Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem

moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso

perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos

rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito

senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias

contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria

convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila

sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica

previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa

relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente

pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo

121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304

50

poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos

natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais

sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os

outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e

oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra

serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125

Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo

possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo

comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de

prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele

recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor

que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma

ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio

para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do

modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a

incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais

exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum

benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre

ele contra sua vontade127

E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy

direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma

percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo

conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do

sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para

125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352

51

submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee

amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim

uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia

ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a

capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se

torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um

tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a

capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo

esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129

222 Consideraccedilotildees finais

As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos

do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das

formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo

de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma

teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos

ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo

Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e

(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos

que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada

em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para

mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada

Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte

Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir

crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo

qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo

128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359

52

de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas

boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos

ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter

cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a

maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem

um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles

conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo

mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral

De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela

influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por

que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir

iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria

para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute

precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de

uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave

para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes

filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e

pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos

apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute

mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas

indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131

130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209

53

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA

Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e

portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre

sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de

puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de

alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria

completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos

do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em

outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de

que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida

Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica

especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o

contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal

normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade

acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de

comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma

pretensatildeo de esgotaacute-lo

Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e

liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos

cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute

claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual

eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute

legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses

sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a

enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no

54

fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se

encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na

qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo

do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133

O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas

teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes

teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode

olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg

Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134

Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas

preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos

individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os

132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82

55

criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os

bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade

no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa

sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode

ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135

Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais

caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos

membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades

comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um

apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns

devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem

compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens

individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma

vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da

comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros

(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que

135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos

56

aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que

aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137

E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes

devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de

em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da

liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui

eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses

bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes

possibilite e lhes confira significado e sentido138

Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal

dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro

que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do

conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees

Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara

quais dessas condutas erradas constituem crimes

A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139

Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar

que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua

137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33

57

perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos

respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder

(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que

natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave

autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se

forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais

forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos

ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio

vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos

autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute

desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei

natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -

se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142

Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas

sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo

ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo

criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os

valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar

suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para

o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem

muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade

moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)

140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34

58

Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como

membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto

de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim

como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada

indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os

membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser

persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no

reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo

pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei

contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido

um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa

Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa

como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como

depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da

Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da

comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra

ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a

puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do

sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um

144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003

59

processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias

de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute

porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode

interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir

ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute

podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar

o dano e reconciliar os membros da comunidade148

Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de

certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a

qual pertencemos

Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149

146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71

60

Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente

por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo

percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos

tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores

decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou

ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do

indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da

tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala

Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo

comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a

mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150

Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo

em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o

criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo

moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros

cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas

cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria

natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites

para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado

como membro integral dela151

Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores

comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em

comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos

crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de

carreirardquo (III) ataques terroristas152

150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306

61

Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute

espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem

se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a

puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor

queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente

admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada

nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz

de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos

conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo

consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar

dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer

nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o

que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado

determinar a extensatildeo da comunidade

Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos

criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva

afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para

evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a

comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais

se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem

poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute

importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que

os culpados merecem sofrer155

153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79

62

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)

Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de

comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo

privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou

qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios

puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute

necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de

censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e

condutas corretos

A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos

como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de

cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de

Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo

simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser

buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma

pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute

crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a

concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von

n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute

63

Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar

satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que

o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159

Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva

da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas

entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo

privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um

determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico

especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de

ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou

da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160

Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas

negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio

autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo

demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a

iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic

nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o

sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo

(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse

enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)

ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns

indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e

informalmente absolvidos desse mesmo crime161

necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80

64

Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo

qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo

convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como

o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro

mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da

puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o

trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem

inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade

criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a

dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo

A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser

transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados

de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo

naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa

senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e

ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute

meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo

condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal

finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e

adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165

Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita

somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por

exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas

preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo

162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306

65

mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria

mensagem166

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)

No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e

a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o

conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo

de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente

daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para

algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada

pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse

miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a

existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168

A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees

legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes

violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento

uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente

desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute

socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o

sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da

166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51

66

vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e

encargos

O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de

puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo

dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta

errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para

desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela

inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em

conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral

deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do

medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente

comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na

linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor

A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172

A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles

entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute

170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41

67

uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento

ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser

subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o

sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse

nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo

denominadas de expressionismo extriacutenseco

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)

Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do

chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma

convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime

desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos

Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que

A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173

Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja

arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente

formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou

natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que

criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade

natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo

173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517

68

cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios

interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo

entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem

que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174

Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute

endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos

valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente

simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma

severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses

mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute

porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que

uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo

proibida175

Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida

seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute

assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a

seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa

aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim

entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas

menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida

humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem

proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar

penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a

prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de

prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela

eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao

ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado

174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521

69

Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees

histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos

Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a

achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo

dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais

com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os

senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito

havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo

dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a

privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo

encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua

liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado

multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas

falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo

universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o

pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a

conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido

quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou

quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um

preccedilo para fazer negoacutecios179

De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando

como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A

questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial

eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a

lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E

isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo

177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq

70

expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo

sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180

323 Recapitulando

Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a

puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma

mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para

aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado

responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um

todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que

o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a

puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o

repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da

lei

Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas

impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na

sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo

serem comunicadas apenas verbalmente

Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira

denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos

criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura

pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o

efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente

que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa

(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um

180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522

71

meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -

poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos

A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema

como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados

ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual

dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu

uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre

como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se

esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a

gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar

como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem

Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento

externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo

Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181

Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos

anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento

severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute

desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto

central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento

comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se

que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente

correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de

partida pelas razotildees que seguiratildeo

181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296

72

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura

A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser

evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria

absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas

as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos

em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta

intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo

distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve

comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)

legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para

dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente

quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184

O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos

ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser

crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber

que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como

errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma

comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo

nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito

natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque

afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta

seja considerada errada e portanto criminosa

182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211

73

Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve

explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui

diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou

extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente

dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute

diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo

prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente

compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que

frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para

ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que

eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser

bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por

humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute

necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que

uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa

injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e

terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso

prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo

pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem

nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma

sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente

contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle

eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que

podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei

criminalrdquo190

185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165

74

Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute

entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo

decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia

ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca

limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de

censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que

satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno

estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos

consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita

(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado

-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave

conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito

Nas palavras de Duff

Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o

191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295

75

foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192

Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute

um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos

valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para

demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)

quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo

eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente

errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os

vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal

consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e

sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio

senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com

atos moralmente louvaacuteveis ou neutros

A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima

Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas

de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura

adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente

apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja

perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam

apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo

(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute

responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por

causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta

moralmente adequada agrave viacutetima196

192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170

76

Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente

adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade

ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta

moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um

comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como

penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA

Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio

conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que

seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma

pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do

Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal

O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada

197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010

77

numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199

Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso

mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito

eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de

retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito

penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito

anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas

teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)

E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes

de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a

secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar

na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor

simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem

adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados

aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente

da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do

direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200

Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro

capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela

justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas

normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc

199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13

78

Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside

exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema

em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado

O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado

enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora

decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e

obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal

que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses

27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo

elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma

desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em

conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o

tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel

incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio

unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais

dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203

Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo

Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo

com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma

reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para

isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai

(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a

conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo

reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da

penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de

conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute

201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado

79

autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo

para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206

Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem

penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para

o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante

explicaccedilatildeo a respeito

Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207

Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro

do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas

transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-

culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de

seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome

de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo

pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando

a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por

quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso

206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678

80

resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de

caminho210

Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a

ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto

conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o

problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia

ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado

um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o

objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse

senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da

comunidaderdquo212

Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha

importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as

pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como

penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio

de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc

assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de

lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a

delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal

de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como

membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa

situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de

Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e

reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas

acima por exemplo)

210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855

81

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)

Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento

Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento

O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que

este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo

deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos

sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres

de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as

teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes

podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela

se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de

arrependimento

O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215

214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010

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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo

Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto

soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode

arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos

moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de

algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento

constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa

de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi

flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma

atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o

que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir

desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro

podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217

Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo

poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e

ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva

pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas

falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra

do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de

accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute

natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo

arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo

continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade

de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)

Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo

216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17

83

consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219

A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou

melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente

a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro

devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida

natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da

necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa

a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser

persuadido pela mensagem

Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a

reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem

uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja

mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre

ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o

crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo

(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e

por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta

tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada

219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246

84

Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela

pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao

processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa

ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo

(hurt) eacute a seguinte

(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor

Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas

e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo

uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que

estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um

jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees

com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida

do que ele fezrdquo223

(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram

prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O

criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo

ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar

meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira

adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma

material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora

carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225

A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e

justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma

resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira

adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem

uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se

222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado

85

houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade

Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades

que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias

consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir

agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo

apropriado para persegui-lo

Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -

arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para

obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta

em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar

alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas

tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e

Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu

simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila

fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em

consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu

sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha

amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse

respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu

arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute

errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora

se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual

a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e

responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se

com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis

mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade

por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a

tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada

226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo

86

por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se

engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227

Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia

secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se

arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas

que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na

pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar

deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender

Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se

arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o

criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive

reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros

perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia

No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar

o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de

puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a

comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter

puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a

questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no

acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um

processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o

arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se

que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave

227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121

87

gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-

nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute

verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa

redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso

que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas

consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo

do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma

do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada

ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria

portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida

Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se

arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena

Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum

deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo

Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a

pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade

intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica

que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute

assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A

resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se

alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute

contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da

mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte

devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos

levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo

moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da

comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230

229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123

88

John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento

distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas

razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do

que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele

merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo

de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos

primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento

determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando

instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a

mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o

ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como

penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que

esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233

O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia

secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a

toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que

o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de

puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia

merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a

ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von

Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e

portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia

exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia

Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente

sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de

prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos

poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa

231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84

89

comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e

a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo

apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a

igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas

demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser

detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo

justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o

criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da

misericoacuterdia

Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila

comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila

criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto

desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo

moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute

tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender

O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237

Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o

Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre

certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a

comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos

outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do

criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas

ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte

236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418

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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico

221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como

penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch

333 A penitecircncia e o Estado

Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre

a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral

adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo

punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a

caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um

processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de

penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a

privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a

formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de

transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida

externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos

internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente

apropriada para responder agrave mensagem de censura238

E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute

arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto

com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239

Em razatildeo disso o autor indaga

Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa

238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120

91

indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240

Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de

Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as

poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo

importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas

tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou

daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto

o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar

respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a

um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado

Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda

que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a

teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os

temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal

embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241

Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a

criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das

pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um

momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva

240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009

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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a

exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com

a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com

Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que

se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase

inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar

juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode

ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato

injustordquo245

Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute

um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da

natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses

elementos natildeo uma separaccedilatildeo247

Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente

corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade

sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas

respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute

as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez

tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo

242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129

93

criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem

punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato

Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito

[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250

Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a

intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no

ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se

salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou

tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o

preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o

criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo

devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um

nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela

mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que

ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de

249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491

94

certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido

pago254

Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar

um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch

com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria

Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta

que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no

processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter

assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas

quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute

receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer

saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para

natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute

preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos

agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo

somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser

moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-

la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se

efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na

comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida

Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como

penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de

seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a

respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para

entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma

caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas

podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a

254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437

95

reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais

preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257

256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440

96

CONCLUSAtildeO

Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho

Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de

consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a

accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias

(prevenccedilatildeo de crimes)

Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em

tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a

construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem

mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa

injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal

Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o

merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem

justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees

suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis

Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois

equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e

designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em

segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os

teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal

ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo

que o merecimento pretende capturar

Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo

explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-

97

perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)

Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal

Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo

criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute

convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma

vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute

sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo

Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como

educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria

dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo

compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos

Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que

definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta

seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da

comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer

pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada

criminosa

Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio

autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo

se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a

puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo

Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O

traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica

desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o

crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel

98

Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se

entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave

autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada

daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de

autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como

forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada

no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento

Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e

a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa

aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido

99

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5

ABSTRACT

This work linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary

Systems aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal

punishment To this end intends to seek a new perspective on the subject historically

divided between preventive and retributive theories Firstly seeks to be rigorist in the

concepts used thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question Secondly

analyzes the retributive theories derived of the common law among which stands out Duffs

communicative theory studied in the third chapter

Key-words criminal punishment negative retribution positive retribution preventive

theories mixed theories consequentialism and non-consequentialism desert secular

penance repentance

6

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 08

CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19

121 Kant o paradigma 25

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28

CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34

212 Criacutetica 35

213 Formulaccedilatildeo atual 37

214 Consideraccedilotildees finais 39

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41

221 Criacutetica 47

222 Consideraccedilotildees finais 51

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67

323 Recapitulando 70

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76

7

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86

333 A penitecircncia e o Estado 90

CONCLUSAtildeO 96

REFEREcircNCIAS 99

8

INTRODUCcedilAtildeO

Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas

e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc

Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem

nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos

perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a

atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas

formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este

estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto

eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena

O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se

divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo

manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de

problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se

mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento

teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-

se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e

retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo

apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas

novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das

teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina

com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente

trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria

Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute

porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na

common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se

propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este

utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo

9

Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da

justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em

contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas

Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O

aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu

como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a

pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo

eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o

criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela

conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo

mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura

e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam

justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como

retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes

elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o

autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser

justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para

uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal

10

CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado

Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja

imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel

pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo

encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias

preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute

identificado na puniccedilatildeo mesma

Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas

finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)

ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos

(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo

geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo

especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-

lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma

miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes

com as teorias retributivas

O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de

preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia

1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001

11

ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao

lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as

palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo

adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas

consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa

A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5

A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a

justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga

seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber

de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela

responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais

3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73

12

velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes

estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas

ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada

disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se

trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes

Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)

apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo

estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado

independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa

razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente

correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que

justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio

O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima

torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo

punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no

caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que

ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo

podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que

nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos

anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes

mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo

Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260

13

destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7

Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega

que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo

dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente

(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta

nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees

morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas

sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor

noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos

empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em

algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9

A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a

puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas

seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo

maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado

em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave

verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila

que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de

quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de

todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser

verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta

de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol

das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que

fossem os dados apresentados

7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160

14

A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras

consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas

que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo

puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras

palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos

efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de

merecimento das retribuiccedilotildees negativas11

Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao

inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves

objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve

explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse

sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute

ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante

sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias

consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)

Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14

do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades

preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser

imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais

desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15

Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime

entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos

variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo

direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes

11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97

15

materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante

caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades

preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo

teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo

em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que

nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia

Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-

86) Diz-se entatildeo ao autor

A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16

Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria

Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na

mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada

tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais

e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas

direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los

como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados

Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque

tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis

16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010

16

como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas

anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17

Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam

outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre

aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a

diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao

desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a

junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute

muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19

consequencialistas e deontoloacutegicas

Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo

feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral

positiva

A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber

uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre

outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente

naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e

17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347

17

assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o

alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda

ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees

desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias

retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido

conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo

encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se

harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda

Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar

de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja

limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram

a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue

incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo

funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim

conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar

nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que

enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para

validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral

certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23

Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por

essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele

apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se

importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim

Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho

21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93

18

benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da

metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)

poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar

uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta

O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias

preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente

nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado

a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada

prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a

anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma

O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28

Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode

ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer

que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa

todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo

vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para

chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste

trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem

mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar

a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para

garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma

violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz

que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia

25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22

19

quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material

aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo

efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos

provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um

sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)

Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute

aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem

identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo

eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de

prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser

admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar

nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a

puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o

bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de

alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que

existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by

default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e

castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos

para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado

independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste

trabalho

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS

Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas

conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees

Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam

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batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez

de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia

ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na

criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante

Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que

focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido

Tolstoy Ressurreiccedilatildeo

Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste

estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em

apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como

delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir

sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

teorias

O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma

uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados

porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute

buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do

crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as

teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da

perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as

teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas

29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231

21

remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas

delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila

Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das

teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa

sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas

retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees

biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar

com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave

puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo

de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se

comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila

em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse

restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois

soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna

em nome e no lugar do homem pecador por natureza33

Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a

natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas

31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455

22

aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando

provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35

Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a

passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de

proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar

que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o

marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um

recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima

gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo

sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um

equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36

Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a

narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no

tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e

dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua

face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)

Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo

embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo

Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a

com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da

raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que

aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010

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importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso

porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa

porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem

ofendido inocentemente sofreurdquo39

Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave

incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa

racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e

dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou

outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os

como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar

essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio

pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser

administrada

Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se

que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo

Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41

O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na

distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da

puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente

38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238

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eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo

ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da

admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a

sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz

que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas

preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do

cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja

a meta-geral justificante da puniccedilatildeo

Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a

compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na

interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute

distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma

igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas

previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca

equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade

aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se

que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a

coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo

positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda

que posteriormente seraacute comutada

Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta

a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos

punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo

Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou

mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo

42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62

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negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso

ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a

balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao

criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo

de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias

retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e

castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral

pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados

em um bemrdquo45

Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam

as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela

voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo

corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a

justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do

sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou

moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa

e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo

soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a

sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais

beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela

qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas

121 Kant o paradigma

Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente

neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que

44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235

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pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar

todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo

adequada da puniccedilatildeo criminal

Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por

exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar

pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo

ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina

do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas

proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma

minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar

transcreve-se apenas um dos argumentos

Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49

De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da

puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem

bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples

meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50

Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no

entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma

perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51

47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006

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Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias

retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil

Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser

morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia

ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo

um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a

sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute

difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe

o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute

evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem

disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida

em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant

esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute

visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia

simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os

culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo

aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)

Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a

demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance

da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a

proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que

natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o

sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento

daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como

agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas

52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX

28

demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo

eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se

torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o

conhecemos

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico

Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do

pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa

tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55

Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena

justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do

dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico

kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia

entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado

ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se

racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos

O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo

de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes

seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar

do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua

fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o

sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a

54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20

29

compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito

lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute

realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na

neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os

ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade

poliacutetica

Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo

livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem

que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma

manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na

culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim

as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de

alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60

Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo

que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em

grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres

soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos

iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou

semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61

Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem

punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um

58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984

30

decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da

pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que

a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63

Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de

fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo

nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa

para segundo plano

Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria

retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo

Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada

com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo

crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa

ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que

diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam

de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo

explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto

nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a

coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo

Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele

reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito

de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo

aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio

da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute

63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91

31

por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo

uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66

Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos

movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por

inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda

a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o

porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo

de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O

maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter

livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado

que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto

esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver

toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas

para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico

da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos

65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89

32

CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)

Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se

comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos

lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza

Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos

Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo

(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque

restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime

Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas

enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas

apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais

defensores

Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo

falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico

sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos

culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais

(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se

retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro

Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas

consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo

dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir

69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq

33

Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista

que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre

suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute

consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a

autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a

puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de

infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado

apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance

A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos

cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o

benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada

indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela

apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos

outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos

- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual

possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72

Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo

(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos

outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um

ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de

qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o

fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos

outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e

fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de

constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele

cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida

obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do

71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007

34

deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair

balance73

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade

Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras

tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem

obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles

ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um

valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia

individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode

ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o

criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em

ser punido

A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o

indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o

estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos

importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem

bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo

aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta

contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu

da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua

proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a

73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas

35

justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei

universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a

decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute

respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou

desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria

puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido

a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as

outras leis sociais adotadas77

Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja

formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas

marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo

entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras

sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma

forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para

com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da

obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir

com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de

natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute

poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada

de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem

homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78

212 Criacutetica

O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo

empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas

76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq

36

principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede

e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores

de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de

privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam

recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um

bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse

caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo

interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade

A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso

merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem

indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a

essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre

os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo

que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que

realmente podemos ver o crime dessa forma

A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se

todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo

natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe

sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios

que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria

das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que

eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do

sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala

prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar

algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que

constitui verdadeiro mala in se

79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211

37

Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave

integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre

terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos

estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos

nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a

natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a

viacutetima sofreu80

Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas

quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um

consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a

maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se

constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal

Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso

consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma

vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de

crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida

com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em

verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de

essa coisa ser a puniccedilatildeo

213 Formulaccedilatildeo Atual

80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq

38

Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais

Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o

conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a

ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o

dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo

e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em

uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem

esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o

segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes

um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa

beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo

levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84

O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a

argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo

ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro

nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de

iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de

benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular

Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas

ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a

autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar

determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles

e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos

Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o

indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente

escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e

83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq

39

reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento

de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo

daqueles que natildeo obedecemrdquo86

Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode

quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para

marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em

qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a

regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O

mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -

de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim

como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a

lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais

severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras

consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por

conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria

da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a

conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e

doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88

214 Consideraccedilotildees finais

86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272

40

A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo

consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com

o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias

retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para

fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais

variados tipos de crimes

Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade

poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto

mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir

quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras

ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se

violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou

convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que

precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem

ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples

distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a

versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade

Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees

convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um

estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio

o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente

estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada

mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta

89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280

41

E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples

poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave

teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico

Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91

Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias

eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para

punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles

merecem sofrer

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL

San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through

You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold

San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell

May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good

Johnny Cash San Quentin

Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica

desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso

comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o

processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim

como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio

autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -

91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14

42

apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -

poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele

merece sofrer92

Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular

a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas

proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao

comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental

para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93

Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora

normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute

diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a

violaccedilatildeo de qualquer lei

Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo

deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute

sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da

puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem

para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes

componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa

moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido

empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as

implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em

segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo

errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja

experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para

com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente

ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a

disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a

92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97

43

ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo

autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa

que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95

E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser

empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso

entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado

Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de

reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a

presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de

estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que

promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da

puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica

principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97

Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado

entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e

compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho

sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este

deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a

desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos

quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer

Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave

95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir

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resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98

Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo

se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha

do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o

que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades

paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez

que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido

e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores

tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100

Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo

moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris

explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo

cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel

ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao

menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute

necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de

prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes

apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira

que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo

98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896

45

consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro

a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica

condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma

mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir

sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para

sua liberdade103 Sendo assim

Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104

A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que

aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de

transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de

refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a

escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de

apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira

de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem

razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma

inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107

Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a

aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo

Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados

com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou

103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq

46

material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo

do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece

consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de

liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus

desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute

proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe

uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as

pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a

ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo

comunicado por aquele que o estaacute punindo109

Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da

puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas

substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo

estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de

comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles

possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido

utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas

usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a

ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute

semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente

doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma

mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas

accedilotildees111

E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria

afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os

cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas

satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam

108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215

47

o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve

ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino

ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o

estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada

porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e

imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa

aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114

Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a

puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria

realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo

estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se

possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas

das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi

erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo

esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115

221 Criacutetica

Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo

satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com

uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais

maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de

obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma

poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja

112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985

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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo

estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo

inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo

noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base

nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo

compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre

os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria

liberal de Estado117

O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo

Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que

de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e

puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o

criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido

o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa

se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos

alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar

ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a

permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas

que as justificam isso requer outro argumento119

Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma

poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do

liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral

assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios

limitadores da liberdade120

117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277

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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees

poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum

momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de

atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo

argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em

sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm

principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre

que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido

natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a

puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca

causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se

torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo

a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem

voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em

torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre

as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122

Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem

moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso

perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos

rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito

senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias

contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria

convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila

sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica

previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa

relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente

pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo

121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304

50

poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos

natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais

sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os

outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e

oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra

serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125

Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo

possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo

comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de

prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele

recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor

que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma

ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio

para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do

modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a

incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais

exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum

benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre

ele contra sua vontade127

E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy

direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma

percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo

conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do

sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para

125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352

51

submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee

amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim

uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia

ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a

capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se

torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um

tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a

capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo

esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129

222 Consideraccedilotildees finais

As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos

do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das

formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo

de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma

teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos

ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo

Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e

(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos

que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada

em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para

mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada

Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte

Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir

crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo

qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo

128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359

52

de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas

boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos

ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter

cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a

maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem

um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles

conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo

mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral

De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela

influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por

que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir

iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria

para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute

precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de

uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave

para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes

filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e

pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos

apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute

mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas

indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131

130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209

53

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA

Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e

portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre

sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de

puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de

alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria

completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos

do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em

outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de

que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida

Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica

especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o

contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal

normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade

acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de

comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma

pretensatildeo de esgotaacute-lo

Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e

liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos

cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute

claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual

eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute

legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses

sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a

enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no

54

fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se

encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na

qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo

do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133

O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas

teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes

teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode

olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg

Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134

Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas

preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos

individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os

132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82

55

criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os

bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade

no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa

sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode

ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135

Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais

caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos

membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades

comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um

apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns

devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem

compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens

individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma

vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da

comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros

(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que

135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos

56

aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que

aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137

E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes

devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de

em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da

liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui

eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses

bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes

possibilite e lhes confira significado e sentido138

Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal

dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro

que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do

conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees

Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara

quais dessas condutas erradas constituem crimes

A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139

Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar

que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua

137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33

57

perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos

respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder

(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que

natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave

autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se

forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais

forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos

ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio

vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos

autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute

desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei

natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -

se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142

Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas

sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo

ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo

criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os

valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar

suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para

o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem

muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade

moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)

140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34

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Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como

membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto

de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim

como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada

indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os

membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser

persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no

reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo

pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei

contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido

um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa

Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa

como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como

depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da

Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da

comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra

ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a

puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do

sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um

144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003

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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias

de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute

porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode

interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir

ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute

podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar

o dano e reconciliar os membros da comunidade148

Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de

certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a

qual pertencemos

Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149

146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71

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Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente

por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo

percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos

tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores

decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou

ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do

indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da

tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala

Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo

comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a

mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150

Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo

em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o

criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo

moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros

cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas

cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria

natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites

para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado

como membro integral dela151

Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores

comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em

comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos

crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de

carreirardquo (III) ataques terroristas152

150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306

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Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute

espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem

se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a

puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor

queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente

admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada

nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz

de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos

conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo

consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar

dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer

nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o

que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado

determinar a extensatildeo da comunidade

Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos

criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva

afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para

evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a

comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais

se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem

poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute

importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que

os culpados merecem sofrer155

153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79

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32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)

Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de

comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo

privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou

qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios

puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute

necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de

censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e

condutas corretos

A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos

como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de

cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de

Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo

simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser

buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma

pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute

crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a

concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von

n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute

63

Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar

satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que

o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159

Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva

da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas

entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo

privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um

determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico

especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de

ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou

da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160

Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas

negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio

autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo

demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a

iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic

nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o

sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo

(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse

enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)

ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns

indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e

informalmente absolvidos desse mesmo crime161

necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80

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Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo

qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo

convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como

o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro

mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da

puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o

trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem

inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade

criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a

dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo

A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser

transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados

de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo

naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa

senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e

ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute

meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo

condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal

finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e

adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165

Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita

somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por

exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas

preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo

162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306

65

mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria

mensagem166

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)

No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e

a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o

conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo

de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente

daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para

algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada

pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse

miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a

existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168

A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees

legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes

violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento

uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente

desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute

socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o

sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da

166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51

66

vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e

encargos

O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de

puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo

dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta

errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para

desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela

inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em

conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral

deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do

medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente

comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na

linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor

A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172

A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles

entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute

170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41

67

uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento

ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser

subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o

sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse

nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo

denominadas de expressionismo extriacutenseco

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)

Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do

chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma

convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime

desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos

Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que

A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173

Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja

arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente

formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou

natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que

criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade

natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo

173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517

68

cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios

interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo

entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem

que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174

Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute

endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos

valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente

simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma

severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses

mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute

porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que

uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo

proibida175

Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida

seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute

assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a

seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa

aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim

entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas

menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida

humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem

proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar

penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a

prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de

prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela

eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao

ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado

174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521

69

Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees

histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos

Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a

achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo

dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais

com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os

senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito

havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo

dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a

privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo

encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua

liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado

multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas

falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo

universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o

pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a

conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido

quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou

quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um

preccedilo para fazer negoacutecios179

De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando

como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A

questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial

eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a

lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E

isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo

177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq

70

expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo

sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180

323 Recapitulando

Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a

puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma

mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para

aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado

responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um

todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que

o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a

puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o

repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da

lei

Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas

impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na

sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo

serem comunicadas apenas verbalmente

Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira

denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos

criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura

pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o

efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente

que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa

(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um

180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522

71

meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -

poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos

A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema

como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados

ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual

dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu

uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre

como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se

esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a

gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar

como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem

Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento

externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo

Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181

Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos

anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento

severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute

desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto

central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento

comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se

que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente

correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de

partida pelas razotildees que seguiratildeo

181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296

72

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura

A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser

evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria

absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas

as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos

em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta

intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo

distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve

comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)

legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para

dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente

quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184

O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos

ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser

crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber

que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como

errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma

comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo

nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito

natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque

afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta

seja considerada errada e portanto criminosa

182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211

73

Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve

explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui

diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou

extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente

dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute

diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo

prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente

compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que

frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para

ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que

eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser

bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por

humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute

necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que

uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa

injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e

terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso

prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo

pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem

nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma

sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente

contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle

eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que

podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei

criminalrdquo190

185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165

74

Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute

entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo

decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia

ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca

limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de

censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que

satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno

estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos

consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita

(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado

-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave

conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito

Nas palavras de Duff

Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o

191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295

75

foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192

Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute

um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos

valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para

demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)

quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo

eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente

errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os

vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal

consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e

sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio

senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com

atos moralmente louvaacuteveis ou neutros

A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima

Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas

de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura

adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente

apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja

perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam

apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo

(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute

responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por

causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta

moralmente adequada agrave viacutetima196

192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170

76

Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente

adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade

ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta

moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um

comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como

penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA

Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio

conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que

seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma

pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do

Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal

O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada

197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010

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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199

Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso

mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito

eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de

retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito

penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito

anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas

teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)

E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes

de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a

secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar

na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor

simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem

adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados

aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente

da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do

direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200

Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro

capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela

justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas

normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc

199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13

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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside

exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema

em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado

O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado

enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora

decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e

obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal

que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses

27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo

elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma

desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em

conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o

tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel

incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio

unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais

dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203

Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo

Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo

com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma

reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para

isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai

(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a

conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo

reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da

penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de

conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute

201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado

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autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo

para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206

Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem

penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para

o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante

explicaccedilatildeo a respeito

Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207

Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro

do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas

transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-

culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de

seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome

de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo

pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando

a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por

quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso

206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678

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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de

caminho210

Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a

ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto

conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o

problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia

ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado

um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o

objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse

senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da

comunidaderdquo212

Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha

importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as

pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como

penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio

de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc

assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de

lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a

delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal

de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como

membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa

situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de

Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e

reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas

acima por exemplo)

210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855

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331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)

Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento

Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento

O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que

este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo

deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos

sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres

de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as

teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes

podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela

se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de

arrependimento

O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215

214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010

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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo

Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto

soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode

arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos

moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de

algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento

constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa

de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi

flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma

atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o

que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir

desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro

podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217

Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo

poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e

ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva

pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas

falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra

do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de

accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute

natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo

arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo

continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade

de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)

Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo

216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17

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consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219

A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou

melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente

a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro

devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida

natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da

necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa

a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser

persuadido pela mensagem

Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a

reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem

uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja

mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre

ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o

crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo

(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e

por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta

tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada

219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246

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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela

pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao

processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa

ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo

(hurt) eacute a seguinte

(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor

Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas

e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo

uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que

estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um

jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees

com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida

do que ele fezrdquo223

(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram

prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O

criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo

ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar

meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira

adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma

material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora

carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225

A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e

justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma

resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira

adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem

uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se

222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado

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houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade

Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades

que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias

consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir

agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo

apropriado para persegui-lo

Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -

arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para

obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta

em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar

alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas

tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e

Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu

simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila

fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em

consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu

sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha

amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse

respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu

arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute

errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora

se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual

a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e

responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se

com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis

mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade

por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a

tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada

226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo

86

por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se

engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227

Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia

secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se

arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas

que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na

pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar

deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender

Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se

arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o

criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive

reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros

perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia

No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar

o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de

puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a

comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter

puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a

questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no

acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um

processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o

arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se

que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave

227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121

87

gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-

nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute

verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa

redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso

que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas

consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo

do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma

do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada

ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria

portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida

Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se

arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena

Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum

deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo

Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a

pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade

intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica

que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute

assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A

resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se

alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute

contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da

mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte

devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos

levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo

moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da

comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230

229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123

88

John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento

distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas

razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do

que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele

merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo

de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos

primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento

determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando

instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a

mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o

ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como

penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que

esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233

O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia

secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a

toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que

o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de

puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia

merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a

ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von

Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e

portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia

exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia

Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente

sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de

prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos

poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa

231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84

89

comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e

a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo

apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a

igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas

demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser

detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo

justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o

criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da

misericoacuterdia

Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila

comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila

criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto

desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo

moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute

tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender

O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237

Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o

Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre

certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a

comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos

outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do

criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas

ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte

236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418

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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico

221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como

penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch

333 A penitecircncia e o Estado

Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre

a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral

adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo

punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a

caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um

processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de

penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a

privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a

formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de

transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida

externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos

internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente

apropriada para responder agrave mensagem de censura238

E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute

arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto

com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239

Em razatildeo disso o autor indaga

Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa

238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120

91

indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240

Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de

Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as

poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo

importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas

tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou

daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto

o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar

respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a

um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado

Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda

que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a

teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os

temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal

embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241

Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a

criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das

pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um

momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva

240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009

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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a

exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com

a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com

Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que

se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase

inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar

juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode

ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato

injustordquo245

Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute

um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da

natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses

elementos natildeo uma separaccedilatildeo247

Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente

corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade

sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas

respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute

as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez

tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo

242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129

93

criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem

punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato

Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito

[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250

Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a

intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no

ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se

salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou

tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o

preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o

criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo

devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um

nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela

mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que

ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de

249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491

94

certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido

pago254

Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar

um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch

com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria

Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta

que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no

processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter

assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas

quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute

receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer

saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para

natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute

preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos

agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo

somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser

moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-

la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se

efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na

comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida

Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como

penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de

seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a

respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para

entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma

caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas

podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a

254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437

95

reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais

preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257

256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440

96

CONCLUSAtildeO

Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho

Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de

consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a

accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias

(prevenccedilatildeo de crimes)

Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em

tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a

construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem

mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa

injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal

Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o

merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem

justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees

suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis

Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois

equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e

designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em

segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os

teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal

ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo

que o merecimento pretende capturar

Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo

explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-

97

perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)

Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal

Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo

criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute

convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma

vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute

sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo

Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como

educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria

dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo

compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos

Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que

definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta

seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da

comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer

pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada

criminosa

Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio

autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo

se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a

puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo

Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O

traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica

desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o

crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel

98

Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se

entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave

autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada

daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de

autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como

forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada

no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento

Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e

a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa

aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido

99

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Page 6: PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO ...repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/1749/1...2 DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO: CONTRIBUTO

6

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 08

CAPIacuteTULO I ndash BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS) 10

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN) 10

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS 19

121 Kant o paradigma 25

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico 28

CAPIacuteTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS 32

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS) 32

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade 34

212 Criacutetica 35

213 Formulaccedilatildeo atual 37

214 Consideraccedilotildees finais 39

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL 41

221 Criacutetica 47

222 Consideraccedilotildees finais 51

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF 53

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA 53

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT) 62

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco) 65

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco) 67

323 Recapitulando 70

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura 72

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA 76

7

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86

333 A penitecircncia e o Estado 90

CONCLUSAtildeO 96

REFEREcircNCIAS 99

8

INTRODUCcedilAtildeO

Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas

e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc

Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem

nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos

perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a

atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas

formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este

estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto

eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena

O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se

divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo

manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de

problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se

mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento

teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-

se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e

retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo

apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas

novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das

teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina

com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente

trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria

Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute

porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na

common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se

propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este

utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo

9

Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da

justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em

contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas

Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O

aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu

como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a

pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo

eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o

criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela

conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo

mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura

e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam

justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como

retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes

elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o

autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser

justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para

uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal

10

CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado

Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja

imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel

pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo

encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias

preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute

identificado na puniccedilatildeo mesma

Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas

finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)

ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos

(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo

geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo

especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-

lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma

miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes

com as teorias retributivas

O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de

preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia

1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001

11

ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao

lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as

palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo

adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas

consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa

A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5

A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a

justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga

seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber

de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela

responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais

3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73

12

velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes

estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas

ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada

disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se

trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes

Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)

apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo

estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado

independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa

razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente

correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que

justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio

O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima

torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo

punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no

caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que

ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo

podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que

nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos

anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes

mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo

Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260

13

destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7

Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega

que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo

dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente

(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta

nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees

morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas

sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor

noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos

empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em

algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9

A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a

puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas

seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo

maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado

em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave

verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila

que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de

quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de

todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser

verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta

de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol

das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que

fossem os dados apresentados

7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160

14

A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras

consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas

que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo

puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras

palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos

efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de

merecimento das retribuiccedilotildees negativas11

Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao

inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves

objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve

explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse

sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute

ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante

sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias

consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)

Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14

do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades

preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser

imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais

desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15

Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime

entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos

variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo

direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes

11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97

15

materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante

caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades

preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo

teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo

em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que

nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia

Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-

86) Diz-se entatildeo ao autor

A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16

Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria

Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na

mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada

tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais

e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas

direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los

como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados

Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque

tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis

16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010

16

como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas

anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17

Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam

outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre

aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a

diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao

desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a

junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute

muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19

consequencialistas e deontoloacutegicas

Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo

feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral

positiva

A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber

uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre

outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente

naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e

17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347

17

assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o

alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda

ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees

desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias

retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido

conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo

encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se

harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda

Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar

de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja

limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram

a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue

incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo

funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim

conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar

nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que

enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para

validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral

certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23

Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por

essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele

apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se

importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim

Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho

21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93

18

benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da

metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)

poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar

uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta

O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias

preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente

nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado

a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada

prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a

anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma

O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28

Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode

ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer

que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa

todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo

vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para

chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste

trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem

mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar

a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para

garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma

violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz

que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia

25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22

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quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material

aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo

efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos

provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um

sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)

Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute

aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem

identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo

eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de

prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser

admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar

nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a

puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o

bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de

alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que

existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by

default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e

castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos

para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado

independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste

trabalho

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS

Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas

conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees

Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam

20

batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez

de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia

ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na

criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante

Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que

focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido

Tolstoy Ressurreiccedilatildeo

Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste

estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em

apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como

delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir

sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

teorias

O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma

uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados

porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute

buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do

crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as

teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da

perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as

teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas

29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231

21

remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas

delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila

Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das

teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa

sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas

retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees

biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar

com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave

puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo

de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se

comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila

em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse

restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois

soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna

em nome e no lugar do homem pecador por natureza33

Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a

natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas

31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455

22

aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando

provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35

Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a

passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de

proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar

que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o

marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um

recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima

gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo

sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um

equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36

Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a

narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no

tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e

dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua

face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)

Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo

embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo

Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a

com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da

raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que

aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010

23

importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso

porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa

porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem

ofendido inocentemente sofreurdquo39

Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave

incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa

racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e

dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou

outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os

como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar

essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio

pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser

administrada

Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se

que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo

Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41

O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na

distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da

puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente

38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238

24

eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo

ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da

admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a

sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz

que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas

preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do

cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja

a meta-geral justificante da puniccedilatildeo

Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a

compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na

interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute

distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma

igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas

previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca

equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade

aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se

que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a

coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo

positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda

que posteriormente seraacute comutada

Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta

a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos

punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo

Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou

mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo

42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62

25

negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso

ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a

balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao

criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo

de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias

retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e

castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral

pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados

em um bemrdquo45

Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam

as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela

voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo

corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a

justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do

sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou

moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa

e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo

soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a

sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais

beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela

qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas

121 Kant o paradigma

Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente

neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que

44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235

26

pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar

todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo

adequada da puniccedilatildeo criminal

Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por

exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar

pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo

ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina

do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas

proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma

minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar

transcreve-se apenas um dos argumentos

Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49

De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da

puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem

bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples

meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50

Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no

entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma

perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51

47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006

27

Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias

retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil

Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser

morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia

ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo

um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a

sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute

difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe

o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute

evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem

disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida

em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant

esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute

visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia

simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os

culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo

aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)

Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a

demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance

da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a

proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que

natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o

sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento

daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como

agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas

52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX

28

demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo

eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se

torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o

conhecemos

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico

Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do

pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa

tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55

Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena

justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do

dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico

kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia

entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado

ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se

racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos

O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo

de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes

seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar

do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua

fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o

sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a

54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20

29

compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito

lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute

realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na

neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os

ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade

poliacutetica

Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo

livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem

que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma

manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na

culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim

as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de

alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60

Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo

que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em

grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres

soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos

iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou

semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61

Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem

punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um

58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984

30

decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da

pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que

a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63

Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de

fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo

nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa

para segundo plano

Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria

retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo

Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada

com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo

crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa

ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que

diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam

de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo

explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto

nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a

coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo

Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele

reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito

de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo

aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio

da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute

63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91

31

por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo

uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66

Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos

movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por

inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda

a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o

porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo

de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O

maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter

livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado

que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto

esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver

toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas

para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico

da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos

65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89

32

CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)

Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se

comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos

lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza

Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos

Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo

(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque

restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime

Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas

enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas

apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais

defensores

Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo

falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico

sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos

culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais

(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se

retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro

Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas

consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo

dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir

69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq

33

Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista

que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre

suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute

consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a

autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a

puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de

infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado

apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance

A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos

cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o

benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada

indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela

apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos

outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos

- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual

possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72

Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo

(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos

outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um

ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de

qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o

fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos

outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e

fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de

constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele

cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida

obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do

71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007

34

deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair

balance73

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade

Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras

tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem

obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles

ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um

valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia

individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode

ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o

criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em

ser punido

A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o

indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o

estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos

importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem

bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo

aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta

contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu

da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua

proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a

73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas

35

justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei

universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a

decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute

respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou

desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria

puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido

a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as

outras leis sociais adotadas77

Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja

formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas

marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo

entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras

sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma

forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para

com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da

obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir

com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de

natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute

poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada

de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem

homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78

212 Criacutetica

O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo

empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas

76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq

36

principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede

e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores

de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de

privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam

recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um

bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse

caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo

interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade

A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso

merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem

indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a

essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre

os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo

que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que

realmente podemos ver o crime dessa forma

A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se

todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo

natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe

sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios

que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria

das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que

eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do

sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala

prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar

algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que

constitui verdadeiro mala in se

79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211

37

Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave

integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre

terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos

estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos

nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a

natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a

viacutetima sofreu80

Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas

quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um

consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a

maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se

constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal

Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso

consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma

vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de

crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida

com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em

verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de

essa coisa ser a puniccedilatildeo

213 Formulaccedilatildeo Atual

80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq

38

Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais

Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o

conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a

ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o

dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo

e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em

uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem

esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o

segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes

um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa

beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo

levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84

O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a

argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo

ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro

nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de

iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de

benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular

Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas

ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a

autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar

determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles

e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos

Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o

indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente

escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e

83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq

39

reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento

de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo

daqueles que natildeo obedecemrdquo86

Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode

quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para

marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em

qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a

regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O

mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -

de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim

como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a

lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais

severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras

consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por

conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria

da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a

conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e

doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88

214 Consideraccedilotildees finais

86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272

40

A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo

consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com

o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias

retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para

fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais

variados tipos de crimes

Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade

poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto

mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir

quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras

ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se

violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou

convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que

precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem

ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples

distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a

versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade

Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees

convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um

estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio

o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente

estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada

mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta

89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280

41

E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples

poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave

teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico

Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91

Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias

eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para

punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles

merecem sofrer

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL

San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through

You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold

San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell

May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good

Johnny Cash San Quentin

Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica

desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso

comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o

processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim

como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio

autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -

91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14

42

apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -

poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele

merece sofrer92

Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular

a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas

proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao

comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental

para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93

Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora

normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute

diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a

violaccedilatildeo de qualquer lei

Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo

deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute

sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da

puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem

para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes

componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa

moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido

empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as

implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em

segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo

errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja

experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para

com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente

ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a

disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a

92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97

43

ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo

autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa

que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95

E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser

empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso

entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado

Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de

reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a

presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de

estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que

promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da

puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica

principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97

Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado

entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e

compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho

sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este

deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a

desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos

quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer

Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave

95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir

44

resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98

Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo

se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha

do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o

que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades

paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez

que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido

e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores

tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100

Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo

moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris

explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo

cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel

ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao

menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute

necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de

prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes

apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira

que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo

98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896

45

consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro

a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica

condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma

mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir

sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para

sua liberdade103 Sendo assim

Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104

A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que

aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de

transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de

refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a

escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de

apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira

de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem

razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma

inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107

Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a

aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo

Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados

com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou

103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq

46

material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo

do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece

consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de

liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus

desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute

proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe

uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as

pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a

ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo

comunicado por aquele que o estaacute punindo109

Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da

puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas

substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo

estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de

comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles

possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido

utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas

usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a

ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute

semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente

doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma

mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas

accedilotildees111

E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria

afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os

cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas

satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam

108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215

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o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve

ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino

ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o

estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada

porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e

imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa

aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114

Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a

puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria

realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo

estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se

possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas

das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi

erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo

esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115

221 Criacutetica

Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo

satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com

uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais

maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de

obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma

poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja

112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985

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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo

estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo

inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo

noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base

nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo

compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre

os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria

liberal de Estado117

O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo

Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que

de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e

puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o

criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido

o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa

se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos

alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar

ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a

permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas

que as justificam isso requer outro argumento119

Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma

poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do

liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral

assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios

limitadores da liberdade120

117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277

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Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees

poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum

momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de

atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo

argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em

sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm

principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre

que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido

natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a

puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca

causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se

torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo

a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem

voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em

torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre

as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122

Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem

moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso

perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos

rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito

senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias

contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria

convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila

sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica

previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa

relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente

pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo

121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304

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poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos

natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais

sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os

outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e

oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra

serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125

Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo

possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo

comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de

prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele

recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor

que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma

ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio

para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do

modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a

incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais

exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum

benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre

ele contra sua vontade127

E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy

direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma

percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo

conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do

sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para

125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352

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submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee

amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim

uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia

ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a

capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se

torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um

tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a

capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo

esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129

222 Consideraccedilotildees finais

As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos

do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das

formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo

de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma

teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos

ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo

Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e

(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos

que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada

em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para

mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada

Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte

Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir

crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo

qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo

128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359

52

de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas

boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos

ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter

cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a

maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem

um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles

conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo

mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral

De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela

influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por

que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir

iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria

para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute

precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de

uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave

para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes

filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e

pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos

apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute

mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas

indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131

130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209

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CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA

Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e

portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre

sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de

puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de

alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria

completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos

do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em

outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de

que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida

Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica

especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o

contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal

normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade

acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de

comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma

pretensatildeo de esgotaacute-lo

Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e

liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos

cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute

claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual

eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute

legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses

sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a

enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no

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fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se

encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na

qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo

do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133

O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas

teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes

teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode

olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg

Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134

Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas

preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos

individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os

132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82

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criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os

bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade

no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa

sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode

ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135

Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais

caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos

membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades

comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um

apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns

devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem

compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens

individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma

vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da

comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros

(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que

135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos

56

aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que

aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137

E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes

devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de

em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da

liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui

eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses

bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes

possibilite e lhes confira significado e sentido138

Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal

dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro

que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do

conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees

Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara

quais dessas condutas erradas constituem crimes

A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139

Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar

que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua

137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33

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perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos

respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder

(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que

natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave

autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se

forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais

forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos

ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio

vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos

autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute

desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei

natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -

se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142

Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas

sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo

ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo

criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os

valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar

suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para

o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem

muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade

moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)

140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34

58

Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como

membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto

de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim

como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada

indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os

membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser

persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no

reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo

pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei

contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido

um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa

Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa

como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como

depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da

Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da

comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra

ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a

puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do

sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um

144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003

59

processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias

de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute

porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode

interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir

ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute

podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar

o dano e reconciliar os membros da comunidade148

Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de

certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a

qual pertencemos

Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149

146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71

60

Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente

por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo

percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos

tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores

decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou

ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do

indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da

tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala

Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo

comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a

mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150

Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo

em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o

criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo

moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros

cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas

cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria

natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites

para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado

como membro integral dela151

Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores

comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em

comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos

crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de

carreirardquo (III) ataques terroristas152

150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306

61

Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute

espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem

se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a

puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor

queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente

admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada

nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz

de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos

conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo

consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar

dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer

nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o

que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado

determinar a extensatildeo da comunidade

Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos

criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva

afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para

evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a

comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais

se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem

poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute

importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que

os culpados merecem sofrer155

153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79

62

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)

Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de

comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo

privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou

qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios

puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute

necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de

censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e

condutas corretos

A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos

como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de

cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de

Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo

simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser

buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma

pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute

crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a

concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von

n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute

63

Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar

satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que

o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159

Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva

da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas

entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo

privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um

determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico

especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de

ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou

da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160

Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas

negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio

autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo

demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a

iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic

nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o

sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo

(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse

enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)

ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns

indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e

informalmente absolvidos desse mesmo crime161

necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80

64

Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo

qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo

convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como

o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro

mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da

puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o

trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem

inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade

criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a

dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo

A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser

transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados

de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo

naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa

senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e

ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute

meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo

condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal

finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e

adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165

Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita

somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por

exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas

preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo

162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306

65

mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria

mensagem166

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)

No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e

a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o

conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo

de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente

daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para

algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada

pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse

miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a

existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168

A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees

legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes

violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento

uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente

desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute

socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o

sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da

166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51

66

vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e

encargos

O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de

puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo

dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta

errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para

desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela

inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em

conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral

deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do

medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente

comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na

linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor

A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172

A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles

entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute

170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41

67

uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento

ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser

subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o

sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse

nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo

denominadas de expressionismo extriacutenseco

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)

Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do

chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma

convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime

desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos

Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que

A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173

Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja

arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente

formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou

natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que

criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade

natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo

173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517

68

cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios

interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo

entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem

que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174

Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute

endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos

valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente

simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma

severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses

mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute

porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que

uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo

proibida175

Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida

seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute

assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a

seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa

aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim

entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas

menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida

humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem

proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar

penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a

prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de

prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela

eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao

ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado

174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521

69

Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees

histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos

Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a

achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo

dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais

com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os

senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito

havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo

dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a

privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo

encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua

liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado

multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas

falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo

universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o

pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a

conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido

quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou

quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um

preccedilo para fazer negoacutecios179

De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando

como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A

questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial

eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a

lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E

isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo

177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq

70

expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo

sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180

323 Recapitulando

Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a

puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma

mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para

aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado

responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um

todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que

o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a

puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o

repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da

lei

Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas

impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na

sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo

serem comunicadas apenas verbalmente

Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira

denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos

criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura

pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o

efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente

que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa

(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um

180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522

71

meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -

poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos

A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema

como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados

ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual

dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu

uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre

como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se

esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a

gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar

como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem

Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento

externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo

Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181

Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos

anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento

severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute

desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto

central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento

comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se

que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente

correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de

partida pelas razotildees que seguiratildeo

181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296

72

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura

A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser

evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria

absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas

as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos

em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta

intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo

distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve

comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)

legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para

dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente

quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184

O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos

ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser

crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber

que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como

errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma

comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo

nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito

natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque

afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta

seja considerada errada e portanto criminosa

182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211

73

Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve

explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui

diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou

extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente

dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute

diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo

prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente

compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que

frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para

ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que

eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser

bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por

humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute

necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que

uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa

injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e

terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso

prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo

pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem

nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma

sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente

contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle

eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que

podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei

criminalrdquo190

185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165

74

Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute

entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo

decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia

ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca

limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de

censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que

satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno

estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos

consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita

(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado

-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave

conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito

Nas palavras de Duff

Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o

191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295

75

foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192

Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute

um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos

valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para

demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)

quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo

eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente

errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os

vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal

consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e

sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio

senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com

atos moralmente louvaacuteveis ou neutros

A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima

Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas

de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura

adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente

apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja

perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam

apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo

(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute

responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por

causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta

moralmente adequada agrave viacutetima196

192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170

76

Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente

adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade

ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta

moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um

comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como

penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA

Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio

conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que

seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma

pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do

Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal

O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada

197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010

77

numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199

Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso

mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito

eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de

retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito

penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito

anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas

teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)

E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes

de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a

secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar

na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor

simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem

adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados

aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente

da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do

direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200

Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro

capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela

justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas

normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc

199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13

78

Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside

exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema

em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado

O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado

enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora

decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e

obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal

que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses

27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo

elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma

desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em

conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o

tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel

incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio

unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais

dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203

Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo

Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo

com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma

reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para

isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai

(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a

conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo

reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da

penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de

conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute

201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado

79

autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo

para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206

Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem

penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para

o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante

explicaccedilatildeo a respeito

Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207

Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro

do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas

transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-

culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de

seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome

de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo

pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando

a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por

quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso

206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678

80

resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de

caminho210

Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a

ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto

conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o

problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia

ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado

um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o

objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse

senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da

comunidaderdquo212

Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha

importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as

pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como

penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio

de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc

assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de

lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a

delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal

de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como

membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa

situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de

Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e

reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas

acima por exemplo)

210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855

81

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)

Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento

Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento

O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que

este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo

deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos

sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres

de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as

teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes

podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela

se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de

arrependimento

O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215

214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010

82

O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo

Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto

soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode

arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos

moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de

algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento

constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa

de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi

flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma

atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o

que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir

desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro

podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217

Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo

poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e

ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva

pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas

falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra

do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de

accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute

natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo

arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo

continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade

de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)

Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo

216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17

83

consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219

A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou

melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente

a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro

devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida

natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da

necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa

a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser

persuadido pela mensagem

Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a

reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem

uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja

mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre

ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o

crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo

(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e

por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta

tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada

219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246

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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela

pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao

processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa

ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo

(hurt) eacute a seguinte

(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor

Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas

e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo

uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que

estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um

jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees

com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida

do que ele fezrdquo223

(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram

prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O

criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo

ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar

meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira

adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma

material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora

carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225

A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e

justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma

resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira

adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem

uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se

222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado

85

houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade

Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades

que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias

consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir

agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo

apropriado para persegui-lo

Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -

arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para

obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta

em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar

alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas

tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e

Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu

simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila

fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em

consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu

sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha

amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse

respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu

arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute

errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora

se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual

a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e

responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se

com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis

mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade

por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a

tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada

226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo

86

por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se

engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227

Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia

secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se

arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas

que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na

pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar

deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender

Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se

arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o

criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive

reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros

perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia

No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar

o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de

puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a

comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter

puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a

questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no

acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um

processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o

arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se

que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave

227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121

87

gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-

nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute

verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa

redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso

que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas

consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo

do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma

do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada

ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria

portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida

Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se

arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena

Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum

deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo

Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a

pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade

intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica

que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute

assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A

resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se

alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute

contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da

mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte

devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos

levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo

moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da

comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230

229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123

88

John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento

distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas

razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do

que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele

merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo

de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos

primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento

determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando

instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a

mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o

ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como

penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que

esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233

O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia

secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a

toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que

o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de

puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia

merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a

ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von

Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e

portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia

exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia

Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente

sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de

prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos

poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa

231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84

89

comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e

a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo

apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a

igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas

demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser

detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo

justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o

criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da

misericoacuterdia

Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila

comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila

criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto

desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo

moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute

tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender

O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237

Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o

Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre

certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a

comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos

outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do

criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas

ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte

236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418

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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico

221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como

penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch

333 A penitecircncia e o Estado

Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre

a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral

adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo

punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a

caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um

processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de

penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a

privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a

formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de

transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida

externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos

internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente

apropriada para responder agrave mensagem de censura238

E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute

arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto

com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239

Em razatildeo disso o autor indaga

Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa

238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120

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indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240

Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de

Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as

poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo

importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas

tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou

daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto

o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar

respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a

um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado

Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda

que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a

teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os

temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal

embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241

Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a

criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das

pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um

momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva

240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009

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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a

exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com

a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com

Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que

se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase

inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar

juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode

ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato

injustordquo245

Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute

um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da

natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses

elementos natildeo uma separaccedilatildeo247

Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente

corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade

sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas

respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute

as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez

tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo

242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129

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criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem

punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato

Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito

[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250

Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a

intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no

ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se

salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou

tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o

preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o

criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo

devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um

nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela

mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que

ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de

249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491

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certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido

pago254

Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar

um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch

com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria

Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta

que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no

processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter

assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas

quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute

receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer

saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para

natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute

preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos

agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo

somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser

moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-

la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se

efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na

comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida

Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como

penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de

seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a

respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para

entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma

caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas

podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a

254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437

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reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais

preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257

256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440

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CONCLUSAtildeO

Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho

Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de

consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a

accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias

(prevenccedilatildeo de crimes)

Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em

tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a

construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem

mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa

injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal

Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o

merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem

justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees

suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis

Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois

equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e

designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em

segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os

teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal

ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo

que o merecimento pretende capturar

Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo

explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-

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perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)

Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal

Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo

criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute

convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma

vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute

sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo

Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como

educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria

dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo

compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos

Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que

definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta

seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da

comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer

pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada

criminosa

Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio

autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo

se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a

puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo

Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O

traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica

desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o

crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel

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Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se

entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave

autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada

daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de

autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como

forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada

no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento

Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e

a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa

aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido

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Page 7: PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO ...repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/1749/1...2 DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO: CONTRIBUTO

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331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo) 81

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender 86

333 A penitecircncia e o Estado 90

CONCLUSAtildeO 96

REFEREcircNCIAS 99

8

INTRODUCcedilAtildeO

Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas

e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc

Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem

nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos

perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a

atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas

formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este

estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto

eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena

O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se

divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo

manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de

problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se

mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento

teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-

se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e

retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo

apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas

novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das

teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina

com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente

trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria

Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute

porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na

common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se

propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este

utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo

9

Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da

justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em

contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas

Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O

aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu

como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a

pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo

eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o

criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela

conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo

mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura

e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam

justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como

retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes

elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o

autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser

justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para

uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal

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CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado

Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja

imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel

pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo

encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias

preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute

identificado na puniccedilatildeo mesma

Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas

finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)

ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos

(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo

geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo

especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-

lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma

miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes

com as teorias retributivas

O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de

preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia

1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001

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ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao

lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as

palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo

adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas

consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa

A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5

A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a

justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga

seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber

de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela

responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais

3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73

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velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes

estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas

ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada

disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se

trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes

Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)

apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo

estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado

independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa

razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente

correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que

justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio

O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima

torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo

punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no

caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que

ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo

podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que

nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos

anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes

mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo

Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260

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destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7

Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega

que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo

dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente

(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta

nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees

morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas

sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor

noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos

empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em

algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9

A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a

puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas

seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo

maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado

em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave

verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila

que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de

quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de

todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser

verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta

de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol

das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que

fossem os dados apresentados

7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160

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A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras

consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas

que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo

puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras

palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos

efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de

merecimento das retribuiccedilotildees negativas11

Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao

inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves

objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve

explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse

sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute

ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante

sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias

consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)

Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14

do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades

preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser

imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais

desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15

Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime

entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos

variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo

direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes

11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97

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materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante

caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades

preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo

teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo

em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que

nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia

Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-

86) Diz-se entatildeo ao autor

A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16

Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria

Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na

mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada

tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais

e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas

direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los

como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados

Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque

tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis

16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010

16

como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas

anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17

Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam

outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre

aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a

diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao

desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a

junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute

muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19

consequencialistas e deontoloacutegicas

Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo

feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral

positiva

A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber

uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre

outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente

naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e

17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347

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assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o

alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda

ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees

desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias

retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido

conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo

encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se

harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda

Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar

de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja

limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram

a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue

incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo

funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim

conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar

nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que

enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para

validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral

certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23

Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por

essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele

apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se

importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim

Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho

21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93

18

benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da

metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)

poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar

uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta

O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias

preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente

nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado

a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada

prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a

anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma

O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28

Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode

ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer

que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa

todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo

vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para

chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste

trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem

mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar

a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para

garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma

violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz

que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia

25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22

19

quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material

aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo

efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos

provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um

sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)

Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute

aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem

identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo

eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de

prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser

admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar

nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a

puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o

bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de

alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que

existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by

default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e

castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos

para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado

independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste

trabalho

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS

Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas

conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees

Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam

20

batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez

de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia

ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na

criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante

Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que

focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido

Tolstoy Ressurreiccedilatildeo

Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste

estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em

apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como

delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir

sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

teorias

O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma

uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados

porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute

buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do

crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as

teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da

perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as

teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas

29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231

21

remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas

delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila

Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das

teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa

sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas

retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees

biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar

com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave

puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo

de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se

comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila

em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse

restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois

soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna

em nome e no lugar do homem pecador por natureza33

Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a

natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas

31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455

22

aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando

provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35

Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a

passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de

proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar

que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o

marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um

recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima

gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo

sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um

equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36

Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a

narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no

tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e

dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua

face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)

Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo

embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo

Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a

com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da

raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que

aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010

23

importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso

porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa

porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem

ofendido inocentemente sofreurdquo39

Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave

incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa

racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e

dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou

outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os

como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar

essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio

pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser

administrada

Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se

que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo

Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41

O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na

distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da

puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente

38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238

24

eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo

ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da

admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a

sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz

que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas

preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do

cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja

a meta-geral justificante da puniccedilatildeo

Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a

compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na

interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute

distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma

igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas

previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca

equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade

aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se

que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a

coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo

positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda

que posteriormente seraacute comutada

Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta

a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos

punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo

Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou

mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo

42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62

25

negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso

ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a

balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao

criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo

de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias

retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e

castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral

pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados

em um bemrdquo45

Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam

as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela

voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo

corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a

justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do

sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou

moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa

e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo

soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a

sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais

beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela

qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas

121 Kant o paradigma

Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente

neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que

44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235

26

pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar

todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo

adequada da puniccedilatildeo criminal

Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por

exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar

pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo

ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina

do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas

proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma

minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar

transcreve-se apenas um dos argumentos

Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49

De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da

puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem

bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples

meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50

Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no

entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma

perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51

47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006

27

Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias

retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil

Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser

morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia

ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo

um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a

sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute

difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe

o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute

evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem

disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida

em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant

esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute

visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia

simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os

culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo

aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)

Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a

demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance

da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a

proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que

natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o

sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento

daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como

agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas

52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX

28

demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo

eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se

torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o

conhecemos

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico

Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do

pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa

tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55

Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena

justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do

dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico

kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia

entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado

ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se

racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos

O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo

de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes

seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar

do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua

fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o

sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a

54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20

29

compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito

lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute

realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na

neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os

ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade

poliacutetica

Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo

livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem

que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma

manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na

culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim

as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de

alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60

Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo

que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em

grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres

soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos

iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou

semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61

Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem

punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um

58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984

30

decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da

pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que

a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63

Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de

fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo

nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa

para segundo plano

Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria

retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo

Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada

com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo

crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa

ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que

diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam

de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo

explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto

nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a

coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo

Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele

reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito

de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo

aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio

da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute

63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91

31

por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo

uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66

Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos

movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por

inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda

a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o

porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo

de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O

maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter

livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado

que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto

esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver

toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas

para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico

da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos

65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89

32

CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)

Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se

comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos

lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza

Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos

Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo

(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque

restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime

Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas

enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas

apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais

defensores

Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo

falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico

sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos

culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais

(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se

retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro

Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas

consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo

dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir

69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq

33

Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista

que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre

suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute

consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a

autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a

puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de

infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado

apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance

A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos

cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o

benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada

indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela

apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos

outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos

- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual

possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72

Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo

(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos

outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um

ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de

qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o

fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos

outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e

fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de

constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele

cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida

obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do

71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007

34

deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair

balance73

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade

Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras

tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem

obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles

ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um

valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia

individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode

ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o

criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em

ser punido

A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o

indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o

estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos

importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem

bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo

aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta

contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu

da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua

proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a

73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas

35

justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei

universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a

decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute

respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou

desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria

puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido

a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as

outras leis sociais adotadas77

Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja

formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas

marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo

entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras

sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma

forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para

com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da

obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir

com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de

natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute

poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada

de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem

homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78

212 Criacutetica

O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo

empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas

76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq

36

principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede

e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores

de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de

privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam

recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um

bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse

caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo

interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade

A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso

merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem

indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a

essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre

os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo

que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que

realmente podemos ver o crime dessa forma

A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se

todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo

natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe

sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios

que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria

das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que

eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do

sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala

prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar

algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que

constitui verdadeiro mala in se

79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211

37

Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave

integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre

terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos

estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos

nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a

natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a

viacutetima sofreu80

Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas

quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um

consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a

maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se

constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal

Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso

consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma

vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de

crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida

com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em

verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de

essa coisa ser a puniccedilatildeo

213 Formulaccedilatildeo Atual

80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq

38

Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais

Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o

conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a

ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o

dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo

e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em

uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem

esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o

segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes

um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa

beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo

levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84

O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a

argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo

ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro

nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de

iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de

benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular

Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas

ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a

autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar

determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles

e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos

Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o

indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente

escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e

83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq

39

reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento

de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo

daqueles que natildeo obedecemrdquo86

Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode

quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para

marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em

qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a

regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O

mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -

de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim

como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a

lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais

severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras

consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por

conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria

da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a

conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e

doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88

214 Consideraccedilotildees finais

86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272

40

A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo

consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com

o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias

retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para

fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais

variados tipos de crimes

Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade

poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto

mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir

quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras

ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se

violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou

convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que

precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem

ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples

distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a

versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade

Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees

convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um

estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio

o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente

estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada

mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta

89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280

41

E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples

poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave

teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico

Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91

Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias

eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para

punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles

merecem sofrer

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL

San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through

You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold

San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell

May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good

Johnny Cash San Quentin

Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica

desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso

comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o

processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim

como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio

autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -

91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14

42

apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -

poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele

merece sofrer92

Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular

a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas

proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao

comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental

para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93

Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora

normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute

diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a

violaccedilatildeo de qualquer lei

Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo

deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute

sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da

puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem

para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes

componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa

moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido

empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as

implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em

segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo

errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja

experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para

com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente

ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a

disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a

92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97

43

ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo

autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa

que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95

E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser

empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso

entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado

Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de

reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a

presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de

estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que

promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da

puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica

principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97

Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado

entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e

compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho

sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este

deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a

desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos

quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer

Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave

95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir

44

resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98

Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo

se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha

do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o

que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades

paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez

que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido

e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores

tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100

Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo

moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris

explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo

cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel

ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao

menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute

necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de

prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes

apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira

que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo

98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896

45

consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro

a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica

condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma

mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir

sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para

sua liberdade103 Sendo assim

Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104

A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que

aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de

transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de

refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a

escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de

apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira

de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem

razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma

inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107

Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a

aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo

Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados

com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou

103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq

46

material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo

do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece

consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de

liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus

desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute

proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe

uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as

pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a

ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo

comunicado por aquele que o estaacute punindo109

Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da

puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas

substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo

estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de

comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles

possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido

utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas

usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a

ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute

semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente

doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma

mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas

accedilotildees111

E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria

afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os

cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas

satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam

108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215

47

o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve

ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino

ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o

estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada

porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e

imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa

aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114

Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a

puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria

realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo

estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se

possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas

das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi

erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo

esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115

221 Criacutetica

Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo

satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com

uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais

maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de

obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma

poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja

112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985

48

racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo

estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo

inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo

noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base

nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo

compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre

os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria

liberal de Estado117

O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo

Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que

de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e

puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o

criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido

o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa

se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos

alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar

ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a

permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas

que as justificam isso requer outro argumento119

Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma

poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do

liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral

assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios

limitadores da liberdade120

117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277

49

Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees

poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum

momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de

atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo

argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em

sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm

principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre

que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido

natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a

puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca

causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se

torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo

a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem

voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em

torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre

as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122

Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem

moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso

perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos

rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito

senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias

contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria

convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila

sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica

previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa

relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente

pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo

121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304

50

poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos

natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais

sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os

outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e

oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra

serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125

Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo

possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo

comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de

prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele

recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor

que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma

ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio

para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do

modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a

incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais

exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum

benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre

ele contra sua vontade127

E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy

direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma

percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo

conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do

sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para

125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352

51

submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee

amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim

uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia

ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a

capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se

torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um

tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a

capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo

esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129

222 Consideraccedilotildees finais

As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos

do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das

formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo

de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma

teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos

ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo

Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e

(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos

que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada

em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para

mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada

Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte

Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir

crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo

qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo

128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359

52

de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas

boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos

ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter

cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a

maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem

um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles

conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo

mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral

De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela

influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por

que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir

iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria

para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute

precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de

uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave

para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes

filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e

pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos

apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute

mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas

indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131

130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209

53

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA

Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e

portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre

sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de

puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de

alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria

completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos

do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em

outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de

que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida

Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica

especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o

contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal

normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade

acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de

comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma

pretensatildeo de esgotaacute-lo

Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e

liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos

cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute

claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual

eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute

legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses

sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a

enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no

54

fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se

encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na

qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo

do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133

O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas

teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes

teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode

olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg

Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134

Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas

preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos

individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os

132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82

55

criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os

bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade

no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa

sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode

ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135

Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais

caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos

membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades

comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um

apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns

devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem

compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens

individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma

vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da

comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros

(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que

135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos

56

aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que

aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137

E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes

devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de

em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da

liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui

eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses

bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes

possibilite e lhes confira significado e sentido138

Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal

dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro

que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do

conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees

Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara

quais dessas condutas erradas constituem crimes

A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139

Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar

que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua

137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33

57

perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos

respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder

(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que

natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave

autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se

forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais

forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos

ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio

vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos

autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute

desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei

natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -

se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142

Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas

sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo

ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo

criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os

valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar

suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para

o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem

muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade

moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)

140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34

58

Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como

membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto

de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim

como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada

indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os

membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser

persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no

reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo

pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei

contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido

um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa

Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa

como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como

depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da

Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da

comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra

ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a

puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do

sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um

144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003

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processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias

de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute

porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode

interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir

ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute

podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar

o dano e reconciliar os membros da comunidade148

Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de

certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a

qual pertencemos

Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149

146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71

60

Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente

por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo

percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos

tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores

decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou

ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do

indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da

tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala

Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo

comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a

mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150

Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo

em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o

criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo

moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros

cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas

cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria

natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites

para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado

como membro integral dela151

Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores

comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em

comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos

crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de

carreirardquo (III) ataques terroristas152

150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306

61

Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute

espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem

se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a

puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor

queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente

admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada

nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz

de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos

conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo

consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar

dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer

nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o

que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado

determinar a extensatildeo da comunidade

Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos

criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva

afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para

evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a

comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais

se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem

poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute

importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que

os culpados merecem sofrer155

153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79

62

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)

Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de

comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo

privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou

qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios

puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute

necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de

censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e

condutas corretos

A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos

como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de

cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de

Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo

simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser

buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma

pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute

crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a

concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von

n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute

63

Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar

satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que

o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159

Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva

da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas

entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo

privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um

determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico

especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de

ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou

da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160

Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas

negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio

autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo

demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a

iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic

nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o

sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo

(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse

enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)

ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns

indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e

informalmente absolvidos desse mesmo crime161

necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80

64

Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo

qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo

convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como

o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro

mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da

puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o

trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem

inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade

criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a

dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo

A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser

transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados

de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo

naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa

senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e

ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute

meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo

condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal

finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e

adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165

Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita

somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por

exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas

preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo

162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306

65

mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria

mensagem166

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)

No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e

a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o

conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo

de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente

daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para

algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada

pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse

miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a

existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168

A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees

legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes

violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento

uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente

desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute

socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o

sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da

166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51

66

vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e

encargos

O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de

puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo

dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta

errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para

desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela

inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em

conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral

deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do

medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente

comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na

linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor

A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172

A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles

entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute

170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41

67

uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento

ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser

subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o

sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse

nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo

denominadas de expressionismo extriacutenseco

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)

Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do

chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma

convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime

desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos

Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que

A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173

Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja

arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente

formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou

natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que

criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade

natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo

173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517

68

cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios

interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo

entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem

que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174

Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute

endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos

valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente

simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma

severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses

mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute

porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que

uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo

proibida175

Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida

seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute

assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a

seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa

aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim

entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas

menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida

humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem

proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar

penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a

prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de

prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela

eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao

ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado

174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521

69

Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees

histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos

Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a

achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo

dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais

com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os

senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito

havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo

dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a

privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo

encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua

liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado

multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas

falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo

universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o

pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a

conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido

quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou

quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um

preccedilo para fazer negoacutecios179

De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando

como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A

questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial

eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a

lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E

isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo

177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq

70

expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo

sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180

323 Recapitulando

Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a

puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma

mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para

aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado

responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um

todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que

o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a

puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o

repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da

lei

Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas

impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na

sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo

serem comunicadas apenas verbalmente

Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira

denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos

criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura

pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o

efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente

que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa

(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um

180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522

71

meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -

poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos

A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema

como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados

ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual

dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu

uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre

como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se

esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a

gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar

como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem

Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento

externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo

Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181

Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos

anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento

severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute

desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto

central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento

comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se

que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente

correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de

partida pelas razotildees que seguiratildeo

181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296

72

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura

A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser

evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria

absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas

as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos

em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta

intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo

distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve

comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)

legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para

dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente

quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184

O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos

ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser

crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber

que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como

errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma

comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo

nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito

natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque

afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta

seja considerada errada e portanto criminosa

182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211

73

Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve

explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui

diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou

extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente

dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute

diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo

prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente

compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que

frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para

ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que

eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser

bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por

humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute

necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que

uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa

injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e

terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso

prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo

pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem

nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma

sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente

contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle

eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que

podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei

criminalrdquo190

185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165

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Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute

entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo

decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia

ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca

limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de

censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que

satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno

estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos

consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita

(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado

-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave

conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito

Nas palavras de Duff

Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o

191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295

75

foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192

Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute

um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos

valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para

demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)

quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo

eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente

errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os

vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal

consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e

sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio

senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com

atos moralmente louvaacuteveis ou neutros

A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima

Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas

de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura

adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente

apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja

perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam

apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo

(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute

responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por

causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta

moralmente adequada agrave viacutetima196

192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170

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Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente

adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade

ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta

moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um

comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como

penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA

Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio

conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que

seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma

pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do

Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal

O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada

197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010

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numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199

Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso

mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito

eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de

retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito

penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito

anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas

teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)

E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes

de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a

secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar

na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor

simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem

adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados

aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente

da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do

direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200

Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro

capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela

justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas

normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc

199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13

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Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside

exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema

em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado

O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado

enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora

decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e

obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal

que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses

27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo

elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma

desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em

conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o

tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel

incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio

unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais

dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203

Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo

Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo

com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma

reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para

isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai

(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a

conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo

reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da

penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de

conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute

201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado

79

autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo

para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206

Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem

penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para

o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante

explicaccedilatildeo a respeito

Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207

Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro

do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas

transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-

culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de

seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome

de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo

pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando

a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por

quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso

206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678

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resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de

caminho210

Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a

ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto

conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o

problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia

ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado

um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o

objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse

senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da

comunidaderdquo212

Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha

importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as

pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como

penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio

de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc

assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de

lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a

delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal

de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como

membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa

situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de

Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e

reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas

acima por exemplo)

210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855

81

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)

Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento

Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento

O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que

este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo

deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos

sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres

de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as

teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes

podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela

se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de

arrependimento

O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215

214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010

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O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo

Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto

soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode

arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos

moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de

algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento

constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa

de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi

flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma

atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o

que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir

desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro

podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217

Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo

poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e

ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva

pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas

falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra

do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de

accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute

natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo

arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo

continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade

de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)

Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo

216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17

83

consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219

A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou

melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente

a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro

devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida

natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da

necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa

a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser

persuadido pela mensagem

Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a

reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem

uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja

mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre

ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o

crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo

(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e

por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta

tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada

219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246

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Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela

pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao

processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa

ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo

(hurt) eacute a seguinte

(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor

Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas

e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo

uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que

estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um

jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees

com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida

do que ele fezrdquo223

(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram

prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O

criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo

ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar

meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira

adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma

material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora

carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225

A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e

justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma

resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira

adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem

uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se

222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado

85

houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade

Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades

que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias

consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir

agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo

apropriado para persegui-lo

Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -

arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para

obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta

em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar

alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas

tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e

Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu

simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila

fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em

consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu

sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha

amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse

respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu

arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute

errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora

se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual

a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e

responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se

com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis

mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade

por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a

tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada

226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo

86

por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se

engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227

Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia

secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se

arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas

que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na

pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar

deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender

Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se

arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o

criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive

reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros

perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia

No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar

o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de

puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a

comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter

puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a

questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no

acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um

processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o

arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se

que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave

227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121

87

gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-

nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute

verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa

redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso

que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas

consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo

do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma

do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada

ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria

portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida

Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se

arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena

Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum

deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo

Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a

pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade

intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica

que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute

assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A

resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se

alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute

contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da

mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte

devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos

levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo

moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da

comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230

229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123

88

John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento

distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas

razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do

que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele

merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo

de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos

primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento

determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando

instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a

mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o

ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como

penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que

esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233

O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia

secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a

toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que

o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de

puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia

merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a

ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von

Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e

portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia

exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia

Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente

sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de

prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos

poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa

231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84

89

comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e

a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo

apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a

igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas

demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser

detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo

justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o

criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da

misericoacuterdia

Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila

comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila

criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto

desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo

moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute

tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender

O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237

Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o

Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre

certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a

comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos

outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do

criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas

ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte

236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418

90

dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico

221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como

penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch

333 A penitecircncia e o Estado

Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre

a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral

adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo

punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a

caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um

processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de

penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a

privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a

formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de

transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida

externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos

internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente

apropriada para responder agrave mensagem de censura238

E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute

arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto

com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239

Em razatildeo disso o autor indaga

Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa

238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120

91

indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240

Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de

Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as

poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo

importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas

tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou

daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto

o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar

respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a

um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado

Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda

que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a

teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os

temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal

embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241

Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a

criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das

pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um

momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva

240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009

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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a

exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com

a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com

Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que

se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase

inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar

juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode

ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato

injustordquo245

Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute

um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da

natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses

elementos natildeo uma separaccedilatildeo247

Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente

corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade

sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas

respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute

as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez

tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo

242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129

93

criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem

punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato

Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito

[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250

Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a

intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no

ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se

salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou

tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o

preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o

criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo

devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um

nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela

mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que

ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de

249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491

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certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido

pago254

Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar

um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch

com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria

Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta

que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no

processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter

assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas

quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute

receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer

saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para

natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute

preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos

agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo

somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser

moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-

la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se

efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na

comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida

Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como

penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de

seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a

respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para

entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma

caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas

podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a

254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437

95

reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais

preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257

256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440

96

CONCLUSAtildeO

Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho

Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de

consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a

accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias

(prevenccedilatildeo de crimes)

Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em

tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a

construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem

mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa

injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal

Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o

merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem

justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees

suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis

Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois

equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e

designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em

segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os

teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal

ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo

que o merecimento pretende capturar

Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo

explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-

97

perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)

Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal

Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo

criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute

convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma

vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute

sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo

Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como

educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria

dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo

compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos

Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que

definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta

seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da

comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer

pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada

criminosa

Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio

autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo

se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a

puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo

Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O

traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica

desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o

crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel

98

Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se

entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave

autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada

daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de

autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como

forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada

no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento

Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e

a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa

aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido

99

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INTRODUCcedilAtildeO

Todos os dias em razatildeo dos mais variados crimes pessoas satildeo condenadas

e punidas seja para prestarem serviccedilos agrave comunidade pagarem multa serem presas etc

Crime e castigo historicamente estatildeo conectados e essa ligaccedilatildeo sempre instigou o homem

nas mais variadas aacutereas do conhecimento Filoacutesofos juristas poliacuteticos e pedagogos

perguntam sobre o que justifica a puniccedilatildeo criminal O problema eacute antigo mas nunca perde a

atualidade Prisotildees lotadas poliacuteticas de encarceramento novas condutas criminalizadas

formas alternativas de punir tudo isso revela a dimensatildeo e a importacircncia do tema que este

estudo pretende analisar A reflexatildeo aqui natildeo obstante a transdisciplinariedade do assunto

eacute principalmente filosoacutefica ndash e centrada nas teorias retributivas da pena

O presente estudo tendo em vista o objetivo acima delineado encontra-se

divido em trecircs capiacutetulos No primeiro buscou-se rigorismo nos conceitos que seratildeo

manejados em todo o desenvolver da investigaccedilatildeo assim evitando um sem-nuacutemero de

problemas que decorrem da inobservacircncia desse cuidado Com essa incursatildeo pretendeu-se

mediante a experiecircncia dos autores da common law espaccedilo em que o desenvolvimento

teoacuterico encontra-se em estaacutegio avanccedilado contrastar distintas tradiccedilotildees juriacutedicas colocando-

se sobre o problema da puniccedilatildeo um novo olhar criacutetico Entatildeo as teorias preventivas e

retributivas contendedoras histoacutericas acerca da justificaccedilatildeo da pena criminal satildeo

apresentadas com um enfoque ineacutedito revisitado e reformulado com base no aporte dessas

novas formulaccedilotildees O capiacutetulo comeccedila com algumas linhas em relaccedilatildeo agrave denominaccedilatildeo das

teorias preventivas avanccedila em direccedilatildeo ao problema da puniccedilatildeo dos inocentes e termina

com um panorama dos equiacutevocos associados agraves formulaccedilotildees retributivas geralmente

trabalhadas como se fossem uma uacutenica teoria

Esse novo olhar criacutetico informa todo o restante do presente estudo Daiacute

porque no segundo capiacutetulo realiza-se um escorccedilo sobre as teorias de destaque na

common law tradiccedilatildeo em que avultam teorias eminentemente retributivas Buscou-se

propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento este

utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexatildeo natural entre crime e castigo

9

Para tanto ofereceu-se uma exposiccedilatildeo criacutetica das diversas propostas agrave soluccedilatildeo da

justificaccedilatildeo criminal informada por essa nova retribuiccedilatildeo denominada positiva em

contraste com as claacutessicas teorias retributivas chamadas agora de negativas

Chegado ateacute aqui pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

enfrentadas por ambas as teorias preventivas e retributivas na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo O

aparente impasse entre as antagocircnicas e provavelmente irreconciliaacuteveis posiccedilotildees serviu

como contexto para o nascimento das teorias comunicativas nas quais a questatildeo sobre a

pena criminal eacute observada a partir de um prisma completamente diferente nelas a puniccedilatildeo

eacute vista como um processo de comunicaccedilatildeo moral entre a comunidade a viacutetima e o

criminoso sendo este o destinataacuterio de uma mensagem de reprovaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo pela

conduta tomada Os elementos estudados anteriormente satildeo retomados nesta discussatildeo

mas com base em outras categorias O problema entatildeo reside nas classificaccedilotildees de censura

e tratamento severo tomadas como funccedilotildees caracteriacutesticas da pena criminal que reclamam

justificaccedilatildeo a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraccedilotildees preventivas como

retributivas Para o desenvolvimento e compreensatildeo da problemaacutetica as proeminentes

elaboraccedilotildees de Duff serviram como fio condutor em razatildeo da posiccedilatildeo de destaque que o

autor possui entre os filoacutesofos da common law Segundo ele a pena criminal poderia ser

justificada se entendida como forma de penitecircncia secular cuja finalidade eacute o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

Feitas essas anaacutelises espera-se contribuir com o presente estudo para

uma nova e criacutetica reflexatildeo sobre o antigo e instigante problema da puniccedilatildeo criminal

10

CAPIacuteTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELACcedilAtildeO AgraveS TEORIAS PREVENTIVAS MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

11 CONSEQUENCIALISMO E ANAacuteLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

O fim justifica os meios Eacute possiacutevel Mas quem justificaraacute o fim A esta questatildeo que o pensamento histoacuterico deixe pendente a revolta responde os meios Albert Camus O Homem Revoltado

Nenhuma formulaccedilatildeo das teorias preventivas seraacute mostrada embora seja

imprescindiacutevel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1 A ausecircncia eacute justificaacutevel

pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas objeto central deste estudo

encontraratildeo espaccedilo nas paacuteginas deste trabalho Mostrar-se-atildeo aqui as criacuteticas que as teorias

preventivas enfrentam naquilo que tecircm de unidade a busca por um bem que natildeo estaacute

identificado na puniccedilatildeo mesma

Pune-se argumentam os teoacutericos da prevenccedilatildeo e cada uma destas

finalidades possui uma formulaccedilatildeo proacutepria para incapacitar (prevenccedilatildeo especial negativa)

ou reformar o criminoso (prevenccedilatildeo especial positiva) dissuadir potenciais criminosos

(prevenccedilatildeo geral negativa) ou reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico (prevenccedilatildeo

geral positiva) Em cada uma dessas propostas haacute peculiaridades Na teoria de prevenccedilatildeo

especial positiva por exemplo pune-se natildeo para reformar o criminoso mas para socializaacute-

lo ou melhor para evitar que ocorra sua dessocializaccedilatildeo2 Aleacutem disso existe uma

miscelacircnea de combinaccedilotildees entre cada um desses objetivos bem como uma mistura destes

com as teorias retributivas

O que deve ser dito inicialmente no entanto eacute que chamar as teorias de

preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificaccedilatildeo Em um dicionaacuterio de filosofia

1 Cf RAMIacuteREZ Juan Bustos et al Prevencion y teoria de la pena Santiago de Chile Juriacutedica ConoSur 1995 p 21-72 E FALCOacuteN Y TELLA Maria Joseacute FALCOacuteN Y TELLA Fernando Fundamento e finalidade da sanccedilatildeo existe um direito de castigar Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 203-236 MARQUES Oswaldo Henrique Duek Fundamentos da pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 p 79-161 2 RODRIGUES Anabela Miranda Novo olhar sobre a questatildeo penitenciaacuteria Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2001

11

ou mesmo em um dicionaacuterio comum facilmente se sabe do que se trata a retribuiccedilatildeo ao

lermos seu respectivo verbete3 Natildeo eacute provaacutevel entretanto que aqueles que buscam as

palavras prevenccedilatildeo e relativo tenham a mesma sorte Na common law utiliza-se o termo

adequado para classificar as teorias que satildeo conhecidas por preventivas ou relativas

consequencialismo4 Em filosofia a palavra designa

A ideia de que o valor de uma accedilatildeo proveacutem inteiramente do valor de suas consequecircncias Opotildee-se tanto agrave noccedilatildeo de que o valor de uma accedilatildeo pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa justa moderada etc) como agrave ideia de que seu valor pode ser intriacutenseco pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade de cumprir promessas etc A primeira eacute a opccedilatildeo explorada pela eacutetica da virtude e a uacuteltima pela eacutetica deontoloacutegica O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequecircncias cujo valor natildeo seja derivado das accedilotildees residindo antes por exemplo em estados de prazer ou de felicidade considerados como fins para os quais as accedilotildees satildeo meios () Os criacuteticos tambeacutem fazem notar o modo como uma parte significativa da vida eacutetica consiste em ldquoolhar para traacutesrdquo (vendo se a accedilatildeo falta agrave promessa abusa do poder trai a confianccedila de algueacutem etc) mais do que exclusivamente em ldquoolhar para a frenterdquo como o consequencialismo implica5

A simples utilizaccedilatildeo do termo correto jaacute torna a controveacutersia sobre a

justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo mais transparente Imaginemos por exemplo que uma matildee castiga

seu filho trancando-o no quarto por ter batido em sua irmatildezinha O pai da crianccedila ao saber

de tudo isso pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente ao que ela

responde ldquonatildeo sei depende se ele natildeo bater mais em nossa filha menor se os irmatildeos mais

3 O debate da puniccedilatildeo jaacute estaacute saturado de classificaccedilotildees diferentes para o mesmo conceito e pior ainda de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor Manteacutem-se o termo retribuiccedilatildeo ao inveacutes de substituiacute-lo por teoria deontoloacutegica porque aquele eacute utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa Por outro lado o termo prevenccedilatildeo em regra natildeo eacute usado em ambas as tradiccedilotildees juriacutedicas nem designa corretamente as teorias que define conforme explicado no corpo do texto Entatildeo propotildee-se o termo consequencialismo Esse rigorismo acredita-se soacute traz benefiacutecios 4 Conhecer as discussotildees entre consequencialismo e deontologismo travadas no acircmbito da filosofia moral eacute essencial para a compreensatildeo dos problemas que as teorias de puniccedilatildeo enfrentam sobretudo quando misturadas Natildeo se iraacute falar das variantes de consequencialismo das relaccedilotildees deste com a moralidade e o senso da comum das dificuldades da deontologia das formas de natildeo-consequencialismo etc Tais assuntos satildeo importantes mas natildeo cabem neste trabalho Nesse quadro ver CANTO-SPERBER Monique (org) Dicionaacuterio de eacutetica e filosofia moral Ediccedilatildeo brasileira Satildeo Leopoldo Unisinos 2003 v 1 p 327-334 e 405-411 O consequencialismo eacute tratado com profundidade em MOORE Michael S Patrolling the borders of consequentialist justifications the scope of agent-relative restrictions Law and Philosophy n 27 p 35-92 2007 5 BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 73

12

velhos perceberem que natildeo devem fazer a mesma coisa se eles acreditarem que noacutes

estamos falando seacuterio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeccedilam a nossas

ordens entatildeo fiz a escolha certa ao colocaacute-lo de castigordquo Mas o genitor retruca ldquoe se nada

disso ocorrerrdquo A genitora soacute pode responder desta forma ldquoentatildeo agi injustamenterdquo Natildeo se

trata portanto de asseverar que seria desejaacutevel que a puniccedilatildeo prevenisse crimes

Definitivamente natildeo eacute isso O consequencialista vecirc a justiccedila da accedilatildeo escolhida (puniccedilatildeo)

apenas na produccedilatildeo do bem almejado (prevenccedilatildeo) Logo o valor da puniccedilatildeo criminal natildeo

estaria nela mesma natildeo seria intriacutenseco ndash ele reside em bem identificado

independentemente cuja relaccedilatildeo com a accedilatildeo eacute contingente ou instrumental Eacute por essa

razatildeo diga-se de passagem que o argumento central dos abolicionistas eacute formalmente

correto se natildeo alcanccedilamos ou natildeo sabemos se alcanccedilamos as finalidades boas que

justificam a puniccedilatildeo entatildeo ela natildeo tem razatildeo de ser devemos substituiacute-la por outro meio

O problema das teorias preventivas com base na consideraccedilatildeo acima

torna-se claro se justificamos a puniccedilatildeo em razatildeo de suas consequecircncias por que natildeo

punimos caso valha a pena os inocentes O exemplo poderia ser inteiramente ficcional no

caso em que com o dom da presciecircncia tiveacutessemos a oportunidade de prevenir crimes que

ainda estivessem dentro da esfera de cogitaccedilatildeo do indiviacuteduo Mas saindo do absurdo

podemos pensar em uma situaccedilatildeo bastante plausiacutevel Se tiveacutessemos dados empiacutericos que

nos dessem a certeza cientiacutefica de que determinados criminosos de carreira apoacutes tantos

anos ou tantos crimes natildeo iriam parar de delinquir por que natildeo poderiacuteamos puni-los antes

mesmo de o proacuteximo crime ocorrer6 Para ressaltar a questatildeo traz-se outro exemplo

Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular natildeo foi melhorado pela puniccedilatildeo e tambeacutem que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa isso provaria que a puniccedilatildeo foi injusta Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor apoacutes sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da ldquopericulosidaderdquo (dangerousness) A literatura aliaacutes eacute bastante extensa BOTTOMS A E BROWNSWORD Roger The dangerousness debate after the floud report Tambeacutem LACEY Nicolas Dangerousness and criminal justice the justification of preventive detention Ambos In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 243-268 e 269-288 E ver MORRIS Norval Dangerousness and incapacitation In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 238-260

13

destino soacute que aquele ldquocriminosordquo foi punido por algo que ele nunca fez esses excelentes resultados provariam que a puniccedilatildeo foi justa7

Satildeo trecircs as respostas para a antiga questatildeo A primeira de espanto nega

que exista aiacute qualquer problema pois as justificaccedilotildees consequencialistas soacute entram em jogo

dentro do contexto da lei criminal depois de descoberto quem eacute culpado e quem eacute inocente

(apenas eacute puniccedilatildeo aquilo que por definiccedilatildeo recaia sobre os culpados) Mas uma resposta

nesses termos explicou Hart impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaccedilotildees

morais que nos levaram a escolher uma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo que impotildee medidas dolorosas

sobre os indiviacuteduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8 Por que indaga o autor

noacutes preferimos isso em detrimento ldquode outras formas de higiene social que noacutes poderiacuteamos

empregar para prevenir comportamentos antissociais e que noacutes realmente empregamos em

algumas circunstacircncias especiais algumas vezes com relutacircnciardquo9

A segunda resposta aparentemente tambeacutem deixada para traacutes eacute que a

puniccedilatildeo dos inocentes seria inadequada porque isso feitas algumas pesquisas empiacutericas

seria ao final das contas menos vantajoso Assim proceder diria um utilitarista natildeo

maximizaria a felicidade global das pessoas No entanto convenhamos haacute algo de errado

em admitir a puniccedilatildeo dos inocentes como uma ldquopossibilidade moral abertardquo10 sujeita agrave

verificaccedilatildeo posterior de suas consequecircncias Eacute-nos intuitivo um senso comum de justiccedila

que a puniccedilatildeo de inocentes seja intrinsicamente inapropriada independentemente de

quaisquer efeitos beneacuteficos que possam daiacute advir Mas ndash poderatildeo objetar ndash natildeo seria de

todo injusto o ato daquele que para salvar cem pessoas mata um inocente Isso pode ser

verdade natildeo se sabe Contudo algueacutem duvidaria de que rejeitariacuteamos in limine a proposta

de uma instituiccedilatildeo criminal que vez por outra arbitrariamente puniria inocentes em prol

das consequecircncias Acredita-se que ningueacutem aceitaria tal proposta por mais confiaacuteveis que

fossem os dados apresentados

7 MABBOT J D Punishment Mind New Series v 48 n 190 p 152-167 apr 1939 p 154 8 HART Herbert Lionel Adolphus Punishment and responsibility essays in the philosophy of Law 2 ed New York Oxford 2008 p 6 9 Ibidem p 6 10 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 160

14

A terceira resposta que persiste ateacute hoje consiste em afirmar que outras

consideraccedilotildees podem servir na justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo Surgiram entatildeo as teorias mistas

que incorporam a noccedilatildeo de merecimento agraves finalidades preventivas pois assim natildeo

puniriacuteamos os inocentes (nem puniriacuteamos excessivamente ou minimamente) Em outras

palavras a razatildeo positiva para punirmos ainda eacute consequencialista poreacutem a busca pelos

efeitos beneacuteficos eacute limitada por uma restriccedilatildeo natildeo-consequencialista ndash a noccedilatildeo de

merecimento das retribuiccedilotildees negativas11

Particularmente acredita-se que ldquocosturarrdquo uma formulaccedilatildeo na outra ao

inveacutes de dissipar as complicaccedilotildees apenas as agrega Assim o teoacuterico deve responder agraves

objeccedilotildees costumeiras das teorias consequencialistas deve conceituar o merecimento e deve

explicar em especial como as duas coisas se ligam submetendo-se uma agrave outra12 Nesse

sentido para exemplificar a teoria unificadora preventiva dialeacutetica de Roxin13 eacute

ldquoescorregadiardquo pois apertada de um lado escora-se no outro A criacutetica aqui seraacute bastante

sucinta parcial poreacutem serviraacute para ressaltar mais uma objeccedilatildeo comum agraves teorias

consequencialistas (consideraccedilotildees ainda seratildeo feitas sobre a teoria deste autor)

Segundo ele ldquolsquomerecidarsquo eacute soacute uma pena de acordo com a culpabilidaderdquo14

do agente e esta impotildee um limite superior agrave puniccedilatildeo sejam quais forem as finalidades

preventivas elas natildeo podem ultrapassar a culpabilidade A puniccedilatildeo contudo pode ser

imposta aqueacutem da culpabilidade agrave medida que atenda aos interesses preventivos especiais

desde que resguardado um miacutenimo preventivo geral15

Ora a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime

entretanto o tempo e a qualidade da pena quando se buscam interesses preventivos

variam conforme a maior ou menor chance de alcanccedilar determinadas metas (natildeo haacute relaccedilatildeo

direta com a gravidade do crime) Imaginemos agora dois homicidas cujos crimes

11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY Legal Punishment Disponiacutevel emlt httpplatostanfordeduentrieslegal-punishmentgt Acesso em 15 dez 2010 12 Cf DOLINKO David Retributivism consequentialism and the intrinsic goodness of punishment Law and Philosophy n 16 p 507-528 1997 13 ROXIN Claus Derecho Penal parte general tomo I Madrid Civitas 1997 14 Ibidem p 100 15 Ibidem p 96-97

15

materialmente idecircnticos delimitam uma pena maacutexima em dez anos Ao primeiro mediante

caacutelculos preventivos recomenda-se a pena de um ano a qual atenderaacute agraves finalidades

preventivas especiais sem no entanto ferir o miacutenimo preventivo geral Jaacute o segundo natildeo

teve tamanha sorte com as estatiacutesticas e as contas determinam que sua pena fique mesmo

em dez anos Logo a pena daquele eacute imerecida e a deste eacute merecida mas por razotildees que

nada tem a ver com a culpabilidade ndash no segundo caso houve apenas uma coincidecircncia

Roxin instrumentaliza a norma retributiva tornando-a vazia de conteuacutedo portanto (ver p 85-

86) Diz-se entatildeo ao autor

A teoria humanitaacuteria remove da puniccedilatildeo o conceito de merecimento Mas o conceito de merecimento eacute o uacutenico elo entre a puniccedilatildeo e a justiccedila Eacute apenas como merecida ou imerecida que uma sentenccedila pode ser justa ou injusta Eu natildeo afirmo aqui que a questatildeo lsquoeacute merecidarsquo eacute a uacutenica que noacutes razoavelmente possamos perguntar sobre a puniccedilatildeo Noacutes podemos apropriadamente perguntar se eacute possiacutevel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso Mas nenhuma destas duas uacuteltimas questotildees eacute uma questatildeo sobre justiccedila Natildeo haacute nenhum sentido em falar sobre uma ldquodissuasatildeo justardquo ou ldquocura justardquo Noacutes demandamos de uma dissuasatildeo natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai dissuadir Noacutes demandamos de uma cura natildeo se ela vai ser justa mas se ela vai ser bem-sucedida Entatildeo quando noacutes deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos soacute aquilo que iraacute curaacute-lo ou dissuadir outros noacutes tacitamente removemos ele da esfera da justiccedila de modo geral ao inveacutes de uma pessoa sujeito de direitos noacutes temos agora um mero objeto um paciente um ldquocasordquo16

Existem tantos outros exemplos todos a indicar a artificialidade da teoria

Poderiacuteamos esperar com a formulaccedilatildeo de Roxin que estupradores sejam punidos na

mesma medida do que ladrotildees de carteira uma vez que a graduaccedilatildeo inferior das penas nada

tem a ver com a gravidade do crime mas com a atenccedilatildeo aos interesses preventivos especiais

e o miacutenimo preventivo geral E a partir daiacute retornam grande parte dos problemas

direcionados agraves teorias consequencialistas sobre instrumentalizar os indiviacuteduos usaacute-los

como um meio para atingir determinados fins etc Aliaacutes a retribuiccedilatildeo ressurgiu nos Estados

Unidos natildeo apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam mas porque

tambeacutem puniam muito menos do que elas mereciam criando situaccedilotildees insustentaacuteveis

16 CS Lewis Humanitarian Theory of Punishment Disponiacutevel emlt httpwwwangelfirecomprolewiscshumanitarianhtmlgt Acesso em 15 dez 2010

16

como as expostas em que penas muito distintas recaiacuteam sobre crimes anaacutelogos ou penas

anaacutelogas que recaiacuteam sobre crimes muito distintos17

Feitos esses apontamentos anota-se que as teorias mistas comportam

outras variaccedilotildees ora a retribuiccedilatildeo prepondera sobre prevenccedilatildeo ora esta prepondera sobre

aquela e por vezes as duas satildeo revestidas da mesma importacircncia mas para responder a

diferentes perguntas em relaccedilatildeo agrave justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo18 Nenhuma delas entretanto ao

desmembrar partes da teoria antagocircnica nos oferecem uma explicaccedilatildeo coerente para a

junccedilatildeo dos princiacutepios que elas combinam Ateacute em filosofia moral aacuterea em que o debate eacute

muito parecido ldquopersiste no entanto uma certa irredutibilidade das posiccedilotildeesrdquo19

consequencialistas e deontoloacutegicas

Encerrada a criacutetica agrave teoria de Roxin no que ela tem de mista agora seratildeo

feitos dois ligeiros poreacutem procedentes comentaacuterios ao que ela tem de prevenccedilatildeo geral

positiva

A objeccedilatildeo familiar eacute que Roxin criou ao final das contas e sem perceber

uma teoria retributiva disfarccedilada20 Isso porque embora sua teoria esteja assentada entre

outras coisas na recusa da retribuiccedilatildeo o autor natildeo deixou ldquode continuar a ver exatamente

naquela mesma retribuiccedilatildeo de culpa contudo o melhor meio para alcanccedilar a prevenccedilatildeo e

17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota datada de 1980 em que como exemplo o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homiciacutedio culposo O autor apenas queria explicar como eacute difiacutecil estipular a igualdade horizontal ndash cada criminoso e cada crime satildeo tatildeo peculiares que a comparaccedilatildeo entre eles eacute complicada Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que eacute levar em conta para aleacutem da culpabilidade metas preventivas Isso porque no caso quatro condenaccedilotildees anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave sobretudo para frear a escala delitiva A culpabilidade e sua natural ligaccedilatildeo com a gravidade do crime em um modelo assim evidentemente satildeo deixadas de lado Ver TONRY M Proportionality parsimony and interchangeability of punishments In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 133-160 18 Cf WOOD David Retribution crime reduction and the justification of punishment Oxford Journal of Legal Studies n 2 v 22 p 301-321 2002 19 CANTO-SPERBER Monique (org) op cit [n 4] p 409 20 RODRIGUES Anabela Miranda A determinaccedilatildeo da medida da pena privativa de liberdade Coimbra Coimbra 1995 p 335-347

17

assim a limitarrdquo21 Entretanto acredita-se que sobre esse aspecto a criacutetica natildeo acerta o

alvo Lendo-se com atenccedilatildeo a teoria unificadora preventiva dialeacutetica percebe-se que toda

ela eacute orientada agraves consequecircncias ao passo que sentindo necessidade de restringir puniccedilotildees

desmedidas Roxin importa um elemento de fora a noccedilatildeo de merecimento das teorias

retributivas Contudo ao fazecirc-lo transfigura-a em uma figura desprovida de sentido

conforme explicado algures Em outras palavras a coerecircncia mesma da formulaccedilatildeo

encontra-se no que ela tem de prevenccedilatildeo sendo o elemento retributivo o que natildeo se

harmoniza ao conjunto natildeo ao contraacuterio de acordo com a criacutetica de Anabela Miranda

Mas os apontamentos mais interessantes satildeo os seguintes porque apesar

de direcionados agrave Roxin servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva seja

limitadora seja fundamentadora Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

americanos ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas retornaram ou reconstruiacuteram

a retribuiccedilatildeo os alematildees responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

prevenccedilatildeo mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado se a puniccedilatildeo natildeo consegue

incapacitar os criminosos ao menos ela serve para reformar alguns deles se isto natildeo

funciona quem sabe potenciais ofensores satildeo dissuadidos poreacutem se natildeo for assim

conseguiremos pelo menos reafirmar a confianccedila no ordenamento juriacutedico ou estabilizar

nossa comunidade22 Eacute neste uacuteltimo elo da sequecircncia que reside o problema uma vez que

enquanto todos os outros satildeo (e foram) suscetiacuteveis de pesquisa empiacuterica algo essencial para

validar as teorias consequencialistas ldquoos aspectos negativos e positivos da prevenccedilatildeo geral

certamente satildeo pouco claros empiricamente e difiacuteceis de determinar de forma confiaacutevelrdquo23

Palavras do proacuteprio Roxin que em vez de ver nisso uma falha assevera ldquojustamente por

essa razatildeo a hipoacutetese de que a praacutetica punitiva estatal executa um papel fundamental nele

apenas eacute falseaacutevelrdquo24 Ora a criacutetica familiar agrave retribuiccedilatildeo natildeo eacute exatamente que ela natildeo se

importa com os fins E natildeo estaacute o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

despeito da hipoacutetese mesma de conseguirmos provar a prevenccedilatildeo de crimes Sendo assim

Dubber tem razatildeo ao afirmar ldquonatildeo-falseabilidade pode aparecer como um estranho

21 Ibidem p 337 22 DUBBER Markus Dirk Theories of crime and punishment in german criminal law Buffalo Legal Studies Research Paper n 2005-02 p 18 23 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 24 ROXIN Claus op cit [n 13] p 93

18

benefiacutecio de uma teoria de puniccedilatildeo que foi designada para combater a natildeo-falseabilidade da

metafiacutesica da retribuiccedilatildeordquo25 Nisto a teoria de Roxin assemelha-se agrave retribuiccedilatildeo (negativa)

poreacutem na parte em que ela realmente estava errada aquela em que se punia para saciar

uma justiccedila em abstrato sem qualquer interesse na experiecircncia concreta

O mais importante contudo ainda natildeo foi dito Uma vez que as teorias

preventivas gerais positivas colocam menos ecircnfase sobre os efeitos insistindo justamente

nas consequecircncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado

a confianccedila e a pacificaccedilatildeo decorrentes da reafirmaccedilatildeo da norma ou seja a chamada

prevenccedilatildeo integradora26) elas deixam de tentar justificar a puniccedilatildeo passando apenas para a

anaacutelise de uma de suas funccedilotildees27 Nesse quadro Dubber afirma

O problema com a prevenccedilatildeo geral positiva como uma teoria expressiva de puniccedilatildeo entatildeo natildeo eacute apenas que elas natildeo podem justificar a puniccedilatildeo como um modo de expressatildeo Talvez o mais importante eacute que elas podem justificar qualquer modo de expressatildeo que por acaso ndash ou na ausecircncia de falseabilidade empiacuterica como eacute dito ndash significa solidariedade comunitaacuteria em sujeiccedilatildeo a normas comuns por intermeacutedio da condenaccedilatildeo puacuteblica28

Em outras palavras a vindicaccedilatildeo da lei uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo pode

ocorrer com qualquer coisa que seguir agrave violaccedilatildeo da norma Se por exemplo eu prometer

que darei um punhado de doces para quem cometer crime e se eu cumprir minha promessa

todas as vezes que algueacutem comete um crime entatildeo a norma ldquonatildeo cometa crimes se natildeo

vocecirc receberaacute docesrdquo seraacute reafirmada A hipoacutetese evidentemente eacute absurda mas serve para

chamar atenccedilatildeo ao fato de que toda a problemaacutetica delineada no capiacutetulo terceiro deste

trabalho passa ao largo dos teoacutericos da prevenccedilatildeo geral positiva Se natildeo eacute provado nem

mesmo que a escolha da puniccedilatildeo ocorreu por causa de esta accedilatildeo ser a melhor para alcanccedilar

a consequecircncia beneacutefica que eacute a prevenccedilatildeo por que natildeo utilizamos outros meios para

garantir o aprendizado a confianccedila e a pacificaccedilatildeo que se seguem da reafirmaccedilatildeo da norma

violada Nesse sentido adianta-se uma formulaccedilatildeo consistente eacute a de von Hirsch ele diz

que a puniccedilatildeo serve a todas essas funccedilotildees comuns agraves prevenccedilotildees integradas todavia

25 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 19 26 ROXIN Claus op cit [n 13] p 91 27 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 20 28 DUBBER Markus Dirk op cit [n 22] p 22

19

quando explica por que impomos o sofrimento o tratamento severo e a privaccedilatildeo material

aos criminosos afirma que ao final das contas eacute provado que a puniccedilatildeo tem um miacutenimo

efeito preventivo Mas o autor admite que se isso natildeo eacute provado ou se natildeo conseguimos

provaacute-lo poderiacuteamos abolir a puniccedilatildeo como a conhecemos mantendo-se apenas um

sistema puramente simboacutelico e formal de condenaccedilatildeo (ver toacutepico 321)

Para concluir relembra-se que a accedilatildeo justa para um consequencialista eacute

aquela que dentre as escolhas produz as melhores consequecircncias em relaccedilatildeo ao bem

identificado Era isso aliaacutes que antigamente os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos diziam a puniccedilatildeo

eacute justa porque de tudo que poderiacuteamos fazer a um criminoso esta eacute a forma mais eficaz de

prevenir crimes seja reformando-o intimidando potenciais ofensores etc A ideia deve ser

admitido era bastante atraente Hoje em dia contudo e foi isso que se pretendeu mostrar

nas linhas desenvolvidas os teoacutericos da prevenccedilatildeo nos pedem para aceitarmos que a

puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem demonstrou que existe outra escolha de accedilatildeo que atinja o

bem prevenccedilatildeo Ou seja antes a puniccedilatildeo era justa porque nenhuma accedilatildeo era capaz de

alcanccedilar como ela os efeitos beneacuteficos agora a puniccedilatildeo eacute justa porque ningueacutem provou que

existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja a prevenccedilatildeo atualmente wins by

default ganha por WO) Particularmente acredita-se ser difiacutecil que a instituiccedilatildeo de crime e

castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo Existem fortes argumentos

para acreditarmos que a puniccedilatildeo mesma tem algo de justo e moralmente adequado

independente de atingir um bem identificado fora dela e eacute isso que seraacute analisado neste

trabalho

12 A RETRIBUICcedilAtildeO NEGATIVA E POSITIVA DOIS EQUIacuteVOCOS E CARATERIacuteSTICAS GERAIS

Nekhludov no comeccedilo teve esperanccedilas de encontrar respostas nos livros e comprou todas as obras que tratavam do assunto Leu com atenccedilatildeo Lombroso Garofalo Ferri Maudsley Tarde e outros criminologistas

conhecidos Mas a leitura soacute lhe valeu amargas decepccedilotildees

Entretanto a questatildeo era a mais simples de todas Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam torturavam exilavam

20

batiam e executavam os outros homens quando eles mesmos eram semelhantes agravequeles a quem torturavam batiam e matavam Mas em vez

de responder a esta questatildeo os criminologistas consultados indagavam uns se a vontade humana seria livre ou natildeo outros se um homem poderia

ser declarado criminoso simplesmente pela forma do cracircnio e ainda outros se o instinto da imitaccedilatildeo natildeo teria papel importante na

criminalidade Indagavam o que eacute a moralidade a degenerescecircncia o temperamento a sociedade e assim por diante

Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

que voltava da escola Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar ldquoClaro que seirdquo ndash respondeu a crianccedila ndash Entatildeo soletre ldquofocinhordquo ndash ldquoMas que

focinho Focinho de cachorro ou de boirdquo ndash replicou o menino com ar entendido

Tolstoy Ressurreiccedilatildeo

Existem diversas teorias retributivas da puniccedilatildeo Natildeo eacute o propoacutesito deste

estudo todavia apresentaacute-las de forma exaustiva29 A preocupaccedilatildeo principal consiste em

apontar os temas recorrentes que as unem expor as formulaccedilotildees atuais bem como

delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam Mas natildeo se pode prosseguir

sem antes apontar dois equiacutevocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

teorias

O primeiro deles eacute considerar as teorias retributivas como se fossem uma

uacutenica Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que eacute justo punir os culpados

porque eles merecem puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido poreacutem cada uma delas iraacute

buscar uma fonte diferente para explicar o que eacute justo a funccedilatildeo do Estado a natureza do

crime etc30 Incorre nesse equiacutevoco por exemplo Anabela Miranda ao asseverar que as

teorias da retribuiccedilatildeo caiacuteram em decliacutenio por causa da secularizaccedilatildeo do direito penal ou da

perda de um referencial metafiacutesico pois aquela causa soacute pode servir para confrontar as

teorias retributivas que buscam a justiccedila na lei divina esta apenas se aplica quando elas

29 Cf DAVIS Michael Punishment theoryrsquos golden half century a survey of developments from (about) 1957 to 2007 The Journal Ethics v 13 n 1 p 73-100 2009 E RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 157-235 30 Hart cometera o primeiro equiacutevoco mas ldquoagora vecirc que tambeacutem eacute necessaacuterio atentar ao fato de que ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuiccedilatildeo existem vaacuterias respostas diferentes para cada uma dessas questotildees que podem ser designadas lsquoretributivarsquo e geralmente tem recebido o tiacutetulo de lsquoretributivarsquo em razatildeo da teoria a qual elas fazem parte mesmo se a teoria tambeacutem conteacutem elementos reformativos ou de detenccedilatildeo normalmente contrastados com a retribuiccedilatildeordquo HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 231

21

remetem a uma justiccedila que requer um elemento transcendente31 Como seraacute visto algumas

delas natildeo se ancoram em nenhuma dessas fontes de justiccedila

Para que a secularizaccedilatildeo do direito penal tenha determinado a queda das

teorias retributivas eacute pressuposto loacutegico que elas correspondam agrave perspectiva religiosa

sobre a puniccedilatildeo Marshall nesse quadro assevera que certamente existem temas

retributivos na Biacuteblia poreacutem isso natildeo quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

coerente de pleno direito ainda mais no sentido claacutessico ocidental Vaacuterias consideraccedilotildees

biacuteblicas e teoloacutegicas levaram-no a concluir que o retribucionismo eacute inadequado para lidar

com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos biacuteblicos em relaccedilatildeo agrave

puniccedilatildeo32 Por outro lado tambeacutem a doutrina da expiaccedilatildeo contida na obra Cur Deus Homo

de Santo Anselmo tatildeo influente no direito penal acabou sendo distorcida tornou-se

comum acreditar que a reparaccedilatildeo do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

um crime no reino temporal natildeo apenas a Adatildeo e Eva Entatildeo a pessoa que violou a justiccedila

em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma puniccedilatildeo a fim de que a justiccedila fosse

restabelecida Esse raciociacutenio todavia natildeo condiz com a explicaccedilatildeo de Santo Anselmo pois

soacute a morte expiatoacuteria de Jesus Cristo Deus-Homem poderia oferecer uma reparaccedilatildeo digna

em nome e no lugar do homem pecador por natureza33

Contudo em verdade eacute a Lei do Taliatildeo que eacute usada para resumir a

natureza retributiva da justiccedila nas sagradas escrituras Mas embora pareccedila chocante ldquoas

31 RODRIGUES Anabela Miranda op cit [n 20] p 218 et seq Anabela Miranda serve como ilustraccedilatildeo de um equiacutevoco cometido ateacute mesmo em grandes obras Ela admite inicialmente que existem diversas e variadas formulaccedilotildees retributivas entretanto acredita erroneamente que ldquoa ruptura com a transcendecircncia teoloacutegica e metafiacutesicardquo trazida pelo seacuteculo iluminista possa dar conta de solapar de uma vez soacute todas essas teorias 32 MARSHALL Christopher D Beyond retribution a testament vision for justice crime and punishment Grand Rapid Eerdmans Lime Grove House Parnell 2001 p 122 et seq A versatildeo aqui apresentada eacute apenas um recorte e natildeo captura toda a riqueza do trabalho deste teoacutelogo Em siacutentese ele explica que a justiccedila divina conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus eacute essencialmente uma justiccedila redentora 33 WOODS JUNIOR Thomas E Como a igreja catoacutelica construiu a civilizaccedilatildeo ocidental Satildeo Paulo Quadrante 2008 p 85 Em relaccedilatildeo agrave adequada compreensatildeo da doutrina de Santo Anselmo ver MARTINES Paulo Ricardo Por que um Deus-Homem Liberdade e justiccedila na cristologia de S Anselmo In XAVIER Maria Leonor L O (Coord) A questatildeo de Deus na histoacuteria da filosofia Sintra Zeacutefiro 2008 2 v p 447-455

22

aparecircncias enganam quando se trata de olho por olhordquo34 uma vez que estamos tratando

provavelmente do mais conhecido e incompreendido texto biacuteblico sobre crime e puniccedilatildeo35

Em siacutentese na tradiccedilatildeo judaica pode-se dizer que ao contraacuterio da percepccedilatildeo popular a

passagem nunca pretendeu sancionar vinganccedila pelo contraacuterio pois era uma lei de

proporccedilatildeo soacute um olho por olho nada mais do que isso E mais haacute fortes razotildees para duvidar

que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal no Ecircxodo 423 por exemplo o

marido da mulher que sofreu aborto espontacircneo em razotildees de agressotildees deveria exigir um

recompensa monetaacuteria natildeo uma proibiccedilatildeo que a parte culpada tivesse sua proacutexima

gestaccedilatildeo terminada como um tratamento tit for tat exigiria Parece claro que o taliatildeo

sempre foi entendido no senso de vindicaccedilatildeo moral no sentido de que a puniccedilatildeo fosse um

equivalente moral e material proporcional agrave ofensa cometida natildeo uma retribuiccedilatildeo fiacutesica36

Vale lembrar tambeacutem que a percepccedilatildeo comum da lex contraria simplesmente toda a

narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor piedade e misericoacuterdia Jaacute no

tocante agrave tradiccedilatildeo cristatilde nada precisa ser explicado ldquoOuviste o que foi dito olho por olho e

dente por dente Eu poreacutem vos digo que natildeo resistais ao mal mas se qualquer bater na tua

face direita oferece-lhe tambeacutem a outrardquo (Mateus 5 38-39)

Acrescenta-se que essa interpretaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao ldquoolho por olhordquo

embora mostrada com base em trabalhos recentes37 de forma alguma eacute novidade Santo

Agostinho explicou que natildeo eacute faacutecil achar quem recebendo um golpe se contente apenas a

com o retorno do golpe porque aquele que eacute ofendido agiraacute desmedidamente em razatildeo da

raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agressatildeo maior do que

aquela que causou E a lei restringiu esse espiacuterito de vinganccedila servindo como um 34 ZEHR HOWARD Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiccedila Satildeo Paulo Palas Athena 2008 p 120 et seq Segundo o autor a rejeiccedilatildeo da justiccedila do ldquoolho por olhordquo perpassa todo o relato da Biacuteblia Ele explica que o erro no entendimento da justiccedila biacuteblica deu-se em razatildeo de um curto-circuito histoacuterico no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao inveacutes de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e alianccedila 35 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 78 36 MARSHALL Christopher D op cit [n 32] p 80 et seq 37 Cf FISH Morris J An eye for an eye proportionality as moral principle of punishment Oxford Journal of Legal Studies v 28 n 1 p 57ndash71 2008 Aliaacutes eacute interessante notar que uma retribuiccedilatildeo adequadamente compreendida ou seja diferente do ataque fiacutesico da mutilaccedilatildeo ou da vinganccedila eacute a principal motivaccedilatildeo que as pessoas leigas datildeo para a puniccedilatildeo Nesse sentido ver esta detalhada e recente pesquisa KELLER Livia B et al A closer look at an eye for an eye laypersonsrsquo punishment decisions are primarily driven by retributive motives Social Justice Research v 23 n 2-3 p 99-116 2010

23

importante passo embora seja apenas um caminho intermediaacuterio em direccedilatildeo agrave paz38 Isso

porque ldquoaquele que paga de volta apenas agrave medida que recebeu jaacute perdoa alguma coisa

porque a pessoa que ofendeu natildeo merece como puniccedilatildeo apenas a medida que o homem

ofendido inocentemente sofreurdquo39

Enfim satildeo por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

sofreram maacute publicidade ou foram confundidas por natildeo mais que um apelo agrave vinganccedila agrave

incompreendida Lei do Taliatildeo ao desapego com a dignidade humana Roxin imbuiacutedo dessa

racionalidade nos diz que o atraso do sistema da execuccedilatildeo penal alematildeo reside na longa e

dominante influecircncia da teoria da retribuiccedilatildeo40 Verdade seja dita ele reconhece um ou

outro avanccedilo que essas formulaccedilotildees trouxeram agraves ciecircncias criminais todavia descarta-os

como algo do passado assim como tantos outros doutrinadores Mas natildeo se pode aceitar

essa afirmaccedilatildeo que carece de qualquer fundamentaccedilatildeo ou dado empiacuterico comprobatoacuterio

pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuccedilatildeo penal deve ser

administrada

Esse equiacutevoco jaacute foi denunciado com precisatildeo por Cottingham Pensa-se

que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

tema e utilizam a palavra retribuiccedilatildeo

Uma das funccedilotildees da filosofia eacute combater ambiguidade e confusatildeo Contudo nas discussotildees sobre a justificaccedilatildeo da puniccedilatildeo filoacutesofos continuam falando de ldquoretribuiccedilatildeordquo e ldquoteoria da retribuiccedilatildeordquo como se esses roacutetulos significassem algo simples e direto O fato eacute que o termo ldquoretributivordquo como usado em filosofia tornou-se tatildeo impreciso e multivocal que eacute duvidoso se ainda serve a algum propoacutesito vantajoso41

O segundo equiacutevoco consiste no que Hart chamou de retribuiccedilatildeo na

distribuiccedilatildeo Segundo ele uma coisa eacute explicar a Retribuiccedilatildeo como meta-geral justificante da

puniccedilatildeo ndash Retribuiccedilatildeo nesse sentido com ldquoRrdquo maiuacutesculo ndash outra completamente diferente

38 AUGUSTINE On the sermon of the mountain Book I Disponiacutevel emlt httpwwwnewadventorgfathers16011htmgt Acesso em 23 dez 2010 39 Ibidem Natildeo paginado 40 ROXIN Claus op cit [n 13] p 85 41 COTTINGHAM John Varieties of Retribution In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 238

24

eacute usar a palavra para responder agrave pergunta ldquopara quem a puniccedilatildeo pode ser aplicadardquo

ldquoapenas para um criminoso em razatildeo do crime cometidordquo eacute a resposta dada Ou seja da

admissatildeo do princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo se retira o porquecirc da puniccedilatildeo nem a

sua severidade ou quantidade42 Pode ser reconhecido como a maioria dos autores o faz

que desde dentro dos limites traccedilados pela retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo vicejem metas

preventivas De qualquer forma grande parte dos autores natildeo consegue reconhecer que do

cometimento ao princiacutepio de retribuiccedilatildeo na distribuiccedilatildeo natildeo decorre que a Retribuiccedilatildeo seja

a meta-geral justificante da puniccedilatildeo

Acima se percebe aspiraccedilatildeo aristoteacutelica e a analogia facilita a

compreensatildeo das categorias delimitadas por Hart De acordo com Aristoacuteteles na

interpretaccedilatildeo dada por Villey a primeira funccedilatildeo da justiccedila para alcanccedilar a igualdade eacute

distribuir as coisas entre os membros da polis uma distribuiccedilatildeo que resguarda uma

igualdade geomeacutetrica uma proporccedilatildeo entre fraccedilotildees Depois de distribuiacutedas as coisas

previamente estabelecidas a justiccedila deve zelar pela retidatildeo das trocas uma troca

equivalente uma comutaccedilatildeo Nesta etapa a funccedilatildeo do juiz eacute estabelecer a igualdade

aritmeacutetica para que senhor seja restituiacutedo do dano que sofreu43 No caso entatildeo conclui-se

que a maioria das teorias retributivas pressupotildee injustificadamente que a puniccedilatildeo seria a

coisa devida aos criminosos em razatildeo do crime cometido Falta a elas uma explicaccedilatildeo

positiva para assumirmos que a puniccedilatildeo eacute esta coisa previamente estabelecida e distribuiacuteda

que posteriormente seraacute comutada

Ateacute o renascimento das teorias retributivas ocorrido na deacutecada de setenta

a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto Elas nos diziam que noacutes poderiacuteamos

punir ou que natildeo era injusto punir mas natildeo nos davam uma razatildeo positiva para fazecirc-lo

Funcionavam portanto como uma ldquorestriccedilatildeo lateralrdquo (side-constraint) ao poder punitivo ou

mesmo como parte da loacutegica interna do sistema de puniccedilatildeo Eacute dizer uma retribuiccedilatildeo

42 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 7 et seq A liccedilatildeo principal a ser apreendida ndash explica Hart ndash eacute que depois de afirmar quais satildeo as metas-gerais ou valores que a manutenccedilatildeo de uma determinada instituiccedilatildeo social fomenta noacutes devemos perquirir se existem e quais satildeo os princiacutepios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor 43 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 p 38-62

25

negativa Atualmente entretanto nasceram retribuiccedilotildees positivas as quais afirmam nosso

ldquodever de punirrdquo (ought punish) os culpados porque eles merecem seja para restaurar a

balanccedila de benefiacutecios e fardos que o crime perturba expressar a censura devida ao

criminoso em razatildeo do crime cometido ou induzir o arrependimento mediante um processo

de comunicaccedilatildeo moral Seja como for o fundamental para qualquer uma das teorias

retributivas - negativas ou positivas - eacute explicar a suposta conexatildeo moral entre crime e

castigo que o merecimento pretende capturar44 Nas palavras de Hart ldquoa alquimia moral

pela qual a combinaccedilatildeo dos dois males de perversatildeo moral e sofrimento satildeo transmutados

em um bemrdquo45

Esclarecidos os dois equiacutevocos Hart mostra os trecircs requisitos que unificam

as teorias que se pretendem retributivas (I) que uma pessoa seja punida se e apenas se ela

voluntariamente cometeu algo moralmente errado (II) que a severidade da sua puniccedilatildeo

corresponda ou equivalha de alguma maneira agrave perversidade de sua ofensa (III) que a

justificaccedilatildeo para punir os homens sobre essas condiccedilotildees eacute aquela em que o retorno do

sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido seja em si mesmo justo ou

moralmente bom46 A caracteriacutestica geral das visotildees retributivas entatildeo eacute que a justificativa

e o sentido de punir ocorrem em relaccedilatildeo com uma ofensa passada Assim responde-se natildeo

soacute sobre quem a puniccedilatildeo pode ser aplicada mas tambeacutem o porquecirc da puniccedilatildeo bem como a

sua severidade e quantidade Acrescenta-se que geralmente as consequecircncias sociais

beneacuteficas natildeo fazem parte ou tecircm um papel reduzido nas teorias retributivas razatildeo pela

qual entre os autores da civil law elas satildeo conhecidas como absolutas

121 Kant o paradigma

Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas Atualmente

neste campo a repercussatildeo de suas ideias ocorre menos pelo conteuacutedo especiacutefico do que

44 DUFF Antony R op cit [n 10] p 12 45 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 234 46 HART Herbert Lionel Adolphus op cit [n 8] p 235

26

pela influecircncia do proacuteprio autor no pensamento juriacutedico moderno Natildeo haacute como negar

todavia que algumas de suas formulaccedilotildees facilitaram aos autores de hoje a compreensatildeo

adequada da puniccedilatildeo criminal

Mas natildeo se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

teoria de puniccedilatildeo desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva Murphy por

exemplo afirmou que ldquonatildeo eacute mais claro para mim ateacute que extensatildeo eacute apropriado continuar

pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da puniccedilatildeordquo47 Segundo

ele o motivo eacute simples em alguns momentos ao expor sua teoria de puniccedilatildeo na ldquoDoutrina

do direitordquo (Rechtslehre) parece que Kant simplesmente se esqueceu da essecircncia de suas

proacuteprias doutrinas em filosofia moral filosofia da mente e epistemologia48 O autor faz uma

minuciosa anaacutelise de toda a obra do filoacutesofo prussiano poreacutem para exemplificar

transcreve-se apenas um dos argumentos

Dada a radical (e em minha visatildeo indefensaacutevel) distinccedilatildeo que Kant pretende delinear entre accedilatildeo externa (interesse da justiccedila) e motivo interno (interesse da virtude) e dada a fundaccedilatildeo dessa distinccedilatildeo em sua sombria metafiacutesica e epistemoloacutegica doutrina de phenomena e noumena torna-se difiacutecil se natildeo impossiacutevel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria49

De qualquer sorte Kant deixou importantes consideraccedilotildees a respeito da

puniccedilatildeo independente da maneira como pretendemos classificaacute-las Uma passagem

bastante famosa eacute a seguinte a pena ldquo() natildeo pode nunca ser aplicada como um simples

meio de se obter um outro bem nem ainda em benefiacutecio do culpado ou da sociedaderdquo50

Tradicionalmente usou-se dessa argumentaccedilatildeo contra as teorias consequencialistas no

entanto haacute quem defenda que teorias preventivas possam ser construiacutedas desde uma

perspectiva kantiana e sem infringir tal postulado51

47 MURPHY Jeffrie G Does Kant have a theory of punishment Columbia Law Review n 87 p 509 48 Ibidem p 512 et seq 49 Ibidem p 523 50 KANT Immanuel Doutrina do direito Satildeo Paulo Iacutecone 2003 p 176 51 Cf MERLE Jean-Christophe Uma alternativa kantiana para a prevenccedilatildeo geral e a retribuiccedilatildeo Veritas v 47 n 2 p 237-247 jun 2002 Cf CHIAVERINI Tatiana Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant Phroacutenesis v 8 n 2 jul - dez 2006

27

Outra passagem bem conhecida que explica a razatildeo pela qual as teorias

retributivas satildeo chamadas de absolutas eacute da eventual dissoluccedilatildeo da sociedade civil

Segundo Kant se um povo debandasse de uma ilha o uacuteltimo assassino preso deveria ser

morto para que sobre o povo natildeo recaiacutesse o crime de homiciacutedio ldquo() porque entatildeo poderia

ser considerado como cuacutemplice de tal violaccedilatildeo puacuteblica da justiccedilardquo52 Retira-se desse exemplo

um desligamento dos impactos que a puniccedilatildeo possa ter sobre o proacuteprio homem e a

sociedade apenas para que se restaure a justiccedila assim como ela eacute entendida pelo filoacutesofo Eacute

difiacutecil sustentar todavia que noacutes ldquotemos que punirrdquo (must punish) todos os culpados custe

o que custar essa eacute uma imposiccedilatildeo irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

humano pois devemos lembrar que nenhuma instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo criminal conseguiraacute

evitar a puniccedilatildeo de alguns inocentes nem alcanccedilaraacute a puniccedilatildeo de todos os culpados53 Aleacutem

disso a passagem supracitada tambeacutem reflete ainda que em germe a intuiccedilatildeo embebida

em nosso senso comum de que a puniccedilatildeo tem uma funccedilatildeo simboacutelica Feinberg credita agrave Kant

esse avanccedilo embora ressalte que ele tenha exagerado sua importacircncia Conforme seraacute

visto o primeiro afirma que uma das funccedilotildees expressivas da puniccedilatildeo eacute a ldquonatildeo-aquiescecircncia

simboacutelicardquo a lei ao condenar fala em nome de todos os cidadatildeos ao expressar que os

culpados merecem ser condenados portanto natildeo nos tornamos cuacutemplices ou melhor natildeo

aquiescemos com a conduta criminosa (ver toacutepico 32)

Acredita-se no entanto que uma das principais contribuiccedilotildees kantianas - a

demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

de Duff conforme seraacute visto no terceiro capiacutetulo Ainda que natildeo saibamos o exato alcance

da afirmaccedilatildeo de natildeo tratar os homens como simples meio ou ainda que natildeo capturemos a

proacutepria visatildeo de Kant sobre noccedilotildees de autonomia e dignidade permaneceu a liccedilatildeo de que

natildeo devemos manipular os culpados Em Duff essa liccedilatildeo vai traduzir-se no insight de que o

sentido da puniccedilatildeo deve ser contiacutenuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

penal empreendimentos comunicativos os quais buscam a participaccedilatildeo e o consentimento

daqueles a que elas se dirigem sendo que a lei deveria buscar a alianccedila dos cidadatildeos como

agentes morais racionais pelo apelo agraves razotildees morais relevantes que justificam suas

52 KANT Immanuel op cit [n 50] p 178 53 DUFF Antony R op cit [n 10] p XII-XIX

28

demandas54 Eacute dizer quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a puniccedilatildeo

eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razotildees pelas quais uma conduta se

torna crime e por que julgamos as pessoas por intermeacutedio do processo penal como o

conhecemos

122 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico

Para Faria Costa inicialmente temos que escapar dos chavotildees do

pensamento que nada explicam e embotam a discussatildeo que retribuiccedilatildeo representa

tradiccedilatildeo passado e conservadorismo que prevenccedilatildeo eacute futuro progresso e mente aberta55

Vencido esse obstaacuteculo entatildeo ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

fundamento onto-antropoloacutegico Em sua argumentaccedilatildeo assevera que o direito a uma pena

justa fundada na retribuiccedilatildeo em nada se confunde com as formulaccedilotildees claacutessicas seja do

dialeacutetico direito agrave pena de Hegel ou de uma manifestaccedilatildeo do imperativo categoacuterico

kantiano56 Aqui esta neorretribuiccedilatildeo ndash diferente da percepccedilatildeo arcaica de correspondecircncia

entre o mal do crime e o mal da pena que soacute demonstra o paradoxo geneticamente ligado

ao direito penal ndash assume a caracteriacutestica de um bem e por conseguinte acerta-se

racionalmente em horizontes onto-antropoloacutegicos

O direito penal nasce como ordem relacional fundado na primeira relaccedilatildeo

de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropoloacutegica e o crime eacute uma perversatildeo desta Noacutes

seres humanos por sermos fraacutegeis devemos cuidar uns dos outros Assim ldquoeurdquo ao cuidar

do ldquooutrordquo estou cuidando de mim mesmo57 Essa relaccedilatildeo justamente em razatildeo de sua

fragilidade pode romper-se e muitas vezes se rompe A pena nesse iacutenterim repotildee o

sentido primevo da relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo assim ldquodaacute-se o desnudamento que exige a

54 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 passim 55 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal lugar de encontro sobre o sentido da pena In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 205-235 56 Ibidem p 231-233 57 FARIA COSTA Noccedilotildees fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis) introduccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2007 p 20

29

compensaccedilatildeo de uma pena para que o equiliacutebrio se refaccedila Porque tambeacutem soacute desse jeito

lsquoeursquo posso ver olhar e amar o lsquooutrorsquordquo58 Por consequecircncia conclui o autor que haacute

realmente um direito a uma pena justa que eacute adequadamente encontrado na

neorretribuiccedilatildeo de fundamento onto-antropoloacutegico meio pelo qual tambeacutem se realizam os

ideais de responsabilidade e igualdade baluartes onde se assentam qualquer comunidade

poliacutetica

Responsabilidade porque a pena aplicada ao recair sobre um indiviacuteduo

livre e autocircnomo o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto liacutecito e iliacutecito tem

que ser envolvida por um olhar ao preteacuterito uma vez que ela eacute indiscutivelmente uma

manifestaccedilatildeo de sua responsabilidade59 O fundamento da puniccedilatildeo entatildeo eacute encontrado na

culpa daquele que no lugar passado rompeu a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo Sendo assim

as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

puniccedilatildeo de inocentes bem como deveriam admitir penas concretas que com intuito de

alcanccedilar tal ou qual efeito preventivo ultrapassem efetivamente o limite da culpa60

Igualdade porque seria absurdo conceber na adjudicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo

que possam recair sobre comportamentos materialmente idecircnticos penas diferentes em

grau e qualidade Isso porque como indiviacuteduos nossa comunidade de homens e mulheres

soacute adquire um sentido comunitaacuterio se assentada na ideia forte da confianccedila ndash que sejamos

iguais na dimensatildeo da igualdade horizontal uns aos outros que aos nossos atos iguais ou

semelhantes agora na assunccedilatildeo vertical seja aplicado tratamento igual ou semelhante61

Prosseguindo nesse raciociacutenio indaga o autor se os cidadatildeos natildeo tecircm direito a serem

punidos com uma pena justa62 Mas um direito natildeo no sentido hegeliano ao reveacutes um

58 FARIA COSTA op cit [n 55] p 224 et seq 59 FARIA COSTA op cit [n 55] p 226 60 FARIA COSTA op cit [n 55] p 227 61 FARIA COSTA op cit [n 55] p 228-229 62 Eacute difiacutecil acreditar que as pessoas tenham ldquodireito de serem punidasrdquo (right to be punished) A afirmaccedilatildeo pode ser verdadeira mas no sentido que as pessoas tenham ldquodireito a puniccedilatildeordquo (right to punishment) isto eacute uma instituiccedilatildeo justa que natildeo as manipule Para o primeiro ser verdadeiro deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a puniccedilatildeo mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdatildeo Ou seja que o perdatildeo iria ferir algum direito fundamental do criminoso sua dignidade por exemplo Ver DEIGH John On the right to be punished some doubts Ethics v 94 n 2 p 191-211 jan 1984

30

decorrente daquilo que eacute o Estado Democraacutetico de Direito e assentado na dignidade da

pessoa humana Um direito agrave pena que eacute indisponiacutevel que encontra seu sentido no bem que

a execuccedilatildeo concreta da pena proporcional e cumprida integralmente pode propiciar63

Feitos esses apontamentos percebe-se que o neorretribucionismo de

fundamentaccedilatildeo onto-antropoloacutegica reforccedila alguns dos alicerces do presente estudo

nomeadamente na noccedilatildeo de que natildeo se capta a natureza da puniccedilatildeo deslocando-se a culpa

para segundo plano

Falta agrave formulaccedilatildeo no entanto explicaccedilatildeo fundamental a qualquer teoria

retributiva por que eacute o sofrimento da puniccedilatildeo que restaura a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo

Natildeo poderia ser outra coisa A relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo natildeo poderia ser restaurada

com uma resposta puramente verbal ou formal que comunicasse a censura merecida pelo

crime poreacutem natildeo envolvesse a privaccedilatildeo material caracteriacutestica da puniccedilatildeo (ver p 64) Eacute essa

ausecircncia de explicaccedilatildeo da alquimia moral entre culpa merecimento e castigo que

diferencia as retribuiccedilotildees negativas das retribuiccedilotildees positivas As primeiras embora sirvam

de criacutetica para as teorias consequencialistas como eacute o caso da teoria de Faria Costa natildeo

explicam por que retribuiacutemos puniccedilatildeo Nas segundas por outro lado conforme seraacute visto

nos dois proacuteximos capiacutetulos os autores oferecem razotildees positivas para afirmarmos que a

coisa retribuiacuteda deve ser puniccedilatildeo

Contudo natildeo se pode olvidar que o autor ateacute apresente tal questatildeo Ele

reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas com o intuito

de evitar o mal do crime impusessem o mal da pena sem justificaacute-la tambeacutem sobre certo

aspecto como um bem64 Nesse quadro indaga-se se natildeo eacute estranho educar para o exerciacutecio

da liberdade justamente com a privaccedilatildeo da liberdade ldquoque metaacutefora argumentativa estaacute

63 FARIA COSTA op cit [n 55] p 230 et seq 64 FARIA COSTA Joseacute Francisco de Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapaacutevel do homo dolens enquanto corpo-proacuteprio com o direito penal) In FARIA COSTA Joseacute Francisco de Linhas de direito penal e de filosofia alguns cruzamentos reflexivos Coimbra Coimbra Editora 2005 p 69-91

31

por detraacutes de tudo istordquo65 Prossegue entatildeo e pergunta ldquoou natildeo seraacute o proacuteprio paradoxo

uma forma de pensar e aprofundar a vida vividardquo66

Ao que parece Faria Costa rascunha uma resposta Diz que quando nos

movemos amamos quando realizamos qualquer ato de liberdade noacutes o realizamos por

inteiro com todo nosso ldquocorpo-proacutepriordquo e nosso ldquotempo-comrdquo67 E eacute isso que a prisatildeo ainda

a pena principal dos sistemas europeus tira68 Mas daiacute natildeo se infere de forma alguma o

porquecirc de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime menos ainda qual o motivo

de essa ser a forma de restaurar os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-perigo O

maacuteximo que se pode dizer com base nessa fundamentaccedilatildeo eacute que o criminoso por ter

livremente escolhido cometer o crime subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

que calhasse restaurar o equiliacutebrio Ou ainda agora especulando poderia ser argumentado

que a presente formulaccedilatildeo assemelha-se agrave teoria de puniccedilatildeo como equidade entretanto

esta tambeacutem natildeo nos confere uma justificaccedilatildeo convincente para retribuirmos puniccedilatildeo (ver

toacutepico 214) Mas os teoacutericos eminentemente retributivos oferecem algumas razotildees positivas

para a imposiccedilatildeo do sofrimento da privaccedilatildeo material do tratamento severo caracteriacutestico

da puniccedilatildeo Eacute isso que seraacute analisado nos proacuteximos capiacutetulos

65 Ibidem p 79 66 Ibidem p 79 67 Ibidem p 87 et seq 68 Ibidem p 89

32

CAPIacuteTULO II - AS RETRIBUICcedilOtildeES (POSITIVAS) CONTEMPORAcircNEAS

21 PUNICcedilAtildeO COMO ldquoEQUIDADErdquo (FAIRNESS)

Todos os delitos e talvez os crimes tecircm por princiacutepio um raciociacutenio incorreto ou o excesso de egoiacutesmo A sociedade soacute pode existir graccedilas aos sacrifiacutecios individuais exigidos pelas leis Aceitar suas vantagens natildeo eacute se

comprometer a manter as condiccedilotildees que a fazem subsistir Ora os infelizes sem patildeo obrigados a respeitar a propriedade natildeo devem ser menos

lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza

Honoreacute de Balzac A mulher de 30 anos

Examina-se agora a teoria de puniccedilatildeo conhecida como ldquoequidaderdquo

(fairness) a qual nos oferece uma justificaccedilatildeo retributiva a puniccedilatildeo eacute devida porque

restaura a balanccedila de ldquobenefiacutecios e fardosrdquo (benefits and burdens) perturbada pelo crime

Vaacuterios foram os autores que a desenvolveram sendo tambeacutem diversas as criacuteticas

enfrentadas por ela inclusive por seus proponentes iniciais69 Entretanto seratildeo analisadas

apenas as formulaccedilotildees de Murphy um dos criadores da teoria e Dagger um de seus atuais

defensores

Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a puniccedilatildeo

falharam em enxergar que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas no toacutepico

sobre a puniccedilatildeo dos inocentes surgem do mesmo modo no que diz respeito agrave puniccedilatildeo dos

culpados Para um consequencialista a puniccedilatildeo eacute justificada com base nos resultados sociais

(prevenccedilatildeo de crimes) Os homens culpados satildeo punidos pelo valor instrumental que se

retira de sua puniccedilatildeo ou seja satildeo utilizados como meio para obtenccedilatildeo de um bem futuro

Aqueles de orientaccedilatildeo kantiana objetam entatildeo que embora sejam importantes essas

consequecircncias beneacuteficas natildeo se estaacute vislumbrando o ponto moralmente crucial a questatildeo

dos direitos70 Tem o Estado o direito de punir

69 MURPHY Jeffrie G Marxism and Retribution In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 44-71 70 Ibidem p 48 et seq

33

Tal indagaccedilatildeo deve ser respondida pelos retribucionistas Tendo em vista

que a puniccedilatildeo eacute entendida como accedilatildeo moralmente adequada sem ser feita menccedilatildeo sobre

suas consequecircncias sua justificaccedilatildeo soacute pode ocorrer se for mostrado que a coerccedilatildeo eacute

consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor Como reconciliar a

autonomia individual com a coerccedilatildeo estatal legiacutetima Dito de outro modo ldquoainda que a

puniccedilatildeo tenha maravilhosas consequecircncias sociais o quecirc daacute a qualquer um o direito de

infringi-la sobre mimrdquo 71 Esse ponto seraacute deixado de lado por enquanto mas seraacute retomado

apoacutes a explicaccedilatildeo do conceito de fair balance

A lei permite que vivamos em sociedade A lei criminal confere aos

cidadatildeos uma proteccedilatildeo aos bens juriacutedicos mais relevantes oferece-lhes portanto o

benefiacutecio da seguranccedila da paz e da liberdade Ao mesmo tempo ela coloca sobre cada

indiviacuteduo um ldquofardo de autoconstriccedilatildeordquo (self-constraint) que os benefiacutecios providos por ela

apenas satildeo alcanccedilados quando cada um se absteacutem de realizar condutas prejudiciais aos

outros Em uma sociedade justa os benefiacutecios e os fardos estatildeo igualitariamente distribuiacutedos

- a todos eacute concedida a proteccedilatildeo e sobre todos recai o fardo de autoconstriccedilatildeo o qual

possibilita em primeiro lugar essa proteccedilatildeo72

Nesse esquema aquele que infringe a lei obteacutem uma ldquovantagem indevidardquo

(unfair advantage) pois recebe os benefiacutecios que fluem do fardo de autoconstriccedilatildeo dos

outros sem entretanto pagar o preccedilo devido por eles o criminoso torna-se entatildeo um

ldquoparasitardquo (free-rider) Mas a vantagem indevida que esse indiviacuteduo recebe natildeo decorre de

qualquer ganho material produto de seu crime ela consiste na proacutepria escusa em aceitar o

fardo de autoconstriccedilatildeo Algo como uma ldquocarga maior de liberdaderdquo obtida agrave custa dos

outros aqueles que respeitam a lei Ou seja o crime perturba a balanccedila entre benefiacutecios e

fardos O propoacutesito da puniccedilatildeo entatildeo eacute restaurar o equiliacutebrio uma carga extra de

constriccedilatildeo eacute imposta ao criminoso um impedimento a sua liberdade para que agora ele

cumpra o fardo que havia evitado Ao proceder assim a puniccedilatildeo retira a vantagem indevida

obtida pelo descumprimento da lei De certa forma ela funciona como uma cobranccedila do

71 Ibidem p 51 72 MURPHY Jeffrie G Legal moralism and retribution revisited Criminal Law and Philosophy v 1 n 5 p 5-20 2007

34

deacutebito devido para com os outros cidadatildeos Consumada a puniccedilatildeo restaura-se a fair

balance73

211 Coerccedilatildeo autonomia e liberdade

Natildeo haacute como formar um Estado sem o uso da coerccedilatildeo Uma das primeiras

tarefas a serem cumpridas - e sem ela natildeo haacute Estado - eacute estabelecer quem manda e quem

obedece esse eacute um princiacutepio de ordem74 Mas isso coloca um problema para aqueles

ligados a uma tradiccedilatildeo individualista que como Kant valorizam liberdade humana como um

valor primordial Retomemos a pergunta de que forma pode ser reconciliada a autonomia

individual e a coerccedilatildeo estatal legiacutetima A resposta resumidamente eacute que a coerccedilatildeo pode

ser moralmente justificada sem violar a autonomia individual se puder ser mostrado que o

criminoso racionalmente desejou sua proacutepria puniccedilatildeo a despeito de seu dissenso atual em

ser punido

A ideia remete inicialmente agraves teorias do contrato social - de que o

indiviacuteduo contratou com seus pares no momento da transiccedilatildeo do estado de natureza para o

estado civil as regras que iriam estabelecer a convivecircncia e consentiu no ponto que nos

importa com a eventual intervenccedilatildeo em sua liberdade Em razatildeo de essas teorias serem

bem conhecidas e fortemente criticadas absteacutem-se de analisaacute-las para dar maior atenccedilatildeo

aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75 O segundo explica que a invasatildeo violenta

contra a liberdade individual eacute justificada porque cada um na posiccedilatildeo original detraacutes do veacuteu

da ignoracircncia acordou sobre uma rule of law que poderaacute verter futuramente contra sua

proacutepria vontade manifesta O primeiro anteriormente e em sentido parecido aponta que a

73 Ibidem p 13 74 ORTEGA Y GASSET Del Imperio Romano Obras Complestas Tomo VI 75 Os contratualistas Kant e Rawls diferem em alguns aspectos e natildeo eacute propoacutesito deste estudo estabelecer uma distinccedilatildeo exata de cada um deles Rawls por exemplo explica que de sua posiccedilatildeo original retiram-se os princiacutepios primeiros de justiccedila natildeo uma forma de governo como em Locke A posiccedilatildeo original dele tambeacutem eacute mais abstrata pois o acordo deve ser visto como hipoteacutetico e ahistoacuterico RAWLS John Justiccedila como equidade uma reformulaccedilatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes p 20-25 Por outro lado entre esses autores existe uma continuidade e convergecircncia e eacute isso que se tentou expor em poucas linhas

35

justiccedila eacute a agregaccedilatildeo das forccedilas em que a vontade de todos eacute regida de acordo com uma lei

universal de liberdade - um imperativo categoacuterico O que importa nesses dois modelos eacute a

decisatildeo racional ldquorespeitar a autonomia de um homem ao menos nesta perspectiva natildeo eacute

respeitar o que agora ele acriticamente deseja ao inveacutes eacute respeitar o que ele deseja (ou

desejaria) como um homem racionalrdquo76 Assim pode-se dizer que eu desejei a minha proacutepria

puniccedilatildeo porque em uma posiccedilatildeo antecedente eu e meus companheiros teriacuteamos escolhido

a instituiccedilatildeo de puniccedilatildeo como a coisa mais racional a ser feita quando forem quebradas as

outras leis sociais adotadas77

Murphy no entanto conclui que embora esse esquema retributivo seja

formalmente correto ele eacute materialmente inadequado - e aqui satildeo levantados temas

marxistas como a luta econocircmica de classes A teoria exposta necessita de que a relaccedilatildeo

entre homem e sociedade funcione como um ldquoclube de cavalheirosrdquo em que as regras

sociais beneficiam todos os participantes igualmente e eles compartilham valores da mesma

forma Na realidade como poderiacuteamos insistir em falar no pagamento de um deacutebito para

com a sociedade Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefiacutecios que advecircm da

obediecircncia das regras e portanto natildeo poderiam escolher na posiccedilatildeo inicial em consentir

com sua proacutepria puniccedilatildeo A concordacircncia racional com a obediecircncia das regras - no caso de

natildeo cometer crimes - pressupotildee o recebimento dos benefiacutecios Talvez finaliza o autor soacute

poderiacuteamos justificar a puniccedilatildeo quando tiveacutessemos uma sociedade melhor reestruturada

de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto que fossem

homens autocircnomos e recebessem os benefiacutecios alardeados78

212 Criacutetica

O problema da inadequaccedilatildeo material necessita de uma investigaccedilatildeo

empiacuterica para ser trabalhado adequadamente Decerto que a maioria das pessoas

76 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 55 77 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 56 78 MURPHY Jeffrie G op cit [n 69] p 62 et seq

36

principalmente no Brasil encontra-se privada dos benefiacutecios que a obediecircncia agrave lei concede

e justamente por isso suas escolhas natildeo seriam feitas de forma autocircnoma - eg moradores

de rua e habitantes de favela Entretanto poder-se-ia objetar que apesar da situaccedilatildeo de

privaccedilatildeo a escolha dessas pessoas continua livre e de alguma forma elas sempre acabam

recebendo um ou outro benefiacutecio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxiacutelio-doenccedila um

bolsa-famiacutelia o devido processo legal etc Aleacutem do levante de dados a incursatildeo nesse

caminho levaria necessariamente agrave discussatildeo sobre livre-arbiacutetrio e determinismo que natildeo

interessa ao estudo Outras criacuteticas satildeo feitas agrave teoria da puniccedilatildeo como equidade

A teoria mostrada eacute retributiva pois apela para a noccedilatildeo de que o criminoso

merece a puniccedilatildeo em razatildeo do crime cometido o crime lhe concede uma vantagem

indevida e a puniccedilatildeo a retira Conforme foi anteriormente exposto percebe-se que a

essecircncia do crime como algo errado eacute dada pela obtenccedilatildeo de uma vantagem indevida sobre

os cidadatildeos que respeitam a lei o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstriccedilatildeo

que os outros aceitam ele natildeo paga o preccedilo pelo benefiacutecio recebido Mas seraacute que

realmente podemos ver o crime dessa forma

A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos ldquoe se

todos noacutes fizeacutessemos istordquo O que eacute errado nos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal por exemplo

natildeo eacute propriamente o dano aos outros mas a vantagem indevida que um indiviacuteduo recebe

sobre eles aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefiacutecios

que fluem dela os quais soacute satildeo possiacuteveis de serem custeados pelo Estado porque a maioria

das pessoas contribui corretamente A obediecircncia agrave lei nesses casos deve ocorrer por que

eu aceito o fardo de autoconstriccedilatildeo como um preccedilo justo pelos benefiacutecios que recebo do

sistema Enfim a concepccedilatildeo mostrada ateacute descreve a natureza de grande parte dos mala

prohibita accedilotildees que satildeo erradas porque a lei assim as define que satildeo crimes para assegurar

algum benefiacutecio social79 Agora poderiacuteamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro que

constitui verdadeiro mala in se

79 DUFF Antony R Trials and punishments New York Cambridge 1986 p 211

37

Ora o que eacute errado no crime de estupro eacute o ataque injustificado agrave

integridade sexual da viacutetima natildeo um recebimento de uma vantagem indevida sobre

terceiros Ningueacutem explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos

estuprar eacute errado porque vocecirc recebe uma vantagem indevida sobre noacutes que refreamos

nossos impulsos de cometer este crime ao contraacuterio chamariacuteamos a atenccedilatildeo dele para a

natureza moralmente errada da accedilatildeo bem como para o sofrimento injustificado que a

viacutetima sofreu80

Por um lado a teoria nos daacute uma explicaccedilatildeo implausiacutevel das razotildees pelas

quais esta conduta passa de um erro moral para um crime Por outro ela pressupotildee um

consenso inatingiacutevel sobre a natureza humana e suas inclinaccedilotildees pois eacute difiacutecil crer que a

maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que proiacutebe o estupro ou tenha que se

constranger de tal crime81 Eacute portanto um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

nos satildeo mais caros aqueles que estatildeo inscritos na lei criminal

Ademais como aceitariacuteamos conforme nos foi proposto que o criminoso

consentiu racionalmente com a sua proacutepria puniccedilatildeo Se ele realmente obteacutem uma

vantagem com sua conduta por que ele escolheria na posiccedilatildeo inicial uma instituiccedilatildeo de

crime e castigo como a que noacutes temos Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

querida pelo agente seria mais correto dizer que ele natildeo obteacutem uma vantagem indevida

com o crime tendo em vista que ele estaacute contrariando sua proacutepria vontade racional82 Em

verdade a teoria de puniccedilatildeo como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

com aqueles que violam a lei poreacutem ela nos daacute uma explicaccedilatildeo tortuosa sobre o porquecirc de

essa coisa ser a puniccedilatildeo

213 Formulaccedilatildeo Atual

80 Ibidem p 212 81 Ibidem p 213 82 Ibidem p 217 et seq

38

Dagger atualiza a teoria e a defende das objeccedilotildees tradicionais

Inicialmente ele nos direciona para o ponto em conjunccedilatildeo de alguns autores que utilizam o

conceito de equidade ldquosob todas estas afirmaccedilotildees - de Hart de Rawls e de Morris - jaz a

ideia de que a sociedade ou a ordem poliacutetica ou legal eacute um empenho cooperativo Isto eacute o

dever de fair play soacute se aplica agravequeles engajados no que Hart chama de lsquoiniciativa-conjuntarsquo

e Rawls de lsquosistema de cooperaccedilatildeorsquordquo 83 Para o primeiro quando um nuacutemero de pessoas em

uma iniciativa-conjunta se submete a algumas regras de restriccedilatildeo de liberdade elas podem

esperar a mesma submissatildeo daqueles que se beneficiam com sua submissatildeo Para o

segundo em um sistema de cooperaccedilatildeo no qual eacute requerido de cada um dos participantes

um pouco de restriccedilatildeo de liberdade os benefiacutecios muacutetuos soacute seratildeo mantidos se cada pessoa

beneficiada estiver ligada por um dever de fair play que consiste em fazer sua parte e natildeo

levar vantagem dos outros ao natildeo cooperar84

O autor faz essa retomada com um propoacutesito especiacutefico combater a

argumentaccedilatildeo de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa Segundo

ele todos os crimes de certa forma satildeo crimes de ldquoiniquidaderdquo (unfairness) Um estupro

nesse sentido difere dos crimes de sonegaccedilatildeo fiscal porque aleacutem de ser um crime de

iniquidade tambeacutem constitui uma ofensa agrave pessoa violentada O princiacutepio da equidade de

benefiacutecios e fardos diz respeito ao sistema de leis natildeo de uma ou outra lei em particular

Em um sistema de cooperaccedilatildeo todos recebem os benefiacutecios ndash viver sob a eacutegide de leis justas

ndash e todos compartilham o dever de obedecer agrave lei quando a obediecircncia requer a

autoconstriccedilatildeo85 Natildeo importa entatildeo que os indiviacuteduos natildeo achem um fardo respeitar

determinadas leis pois a obediecircncia de uma ou outra lei acabaraacute sendo um fardo para eles

e os benefiacutecios totais por sua vez ainda assim seratildeo usufruiacutedos por todos

Aleacutem disso ele esclarece que a teoria prescinde das perquiriccedilotildees de se o

indiviacuteduo consentiu com a proacutepria puniccedilatildeo ou se as leis criminais foram racionalmente

escolhidas O importante eacute que o dever de fair play pressupotildee a comunidade e

83 DAGGER Richard Punishment as fair play Res Publica n 14 p 259-275 Nov 2008 84 Ibidem p 260 85 Ibidem p 263 et seq

39

reconhecendo isso ldquonoacutes devemos tambeacutem reconhecer que eacute a comunidade ou o sentimento

de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obediecircncia agrave lei e a puniccedilatildeo

daqueles que natildeo obedecemrdquo86

Para exemplificar Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

em um jogo87 No futebol por exemplo existem vaacuterias formas pelas quais um jogador pode

quebrar as regras para receber uma vantagem indevida Ele pode estar impedido para

marcar um gol ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversaacuterio em

qualquer dos casos estamos defronte a violaccedilotildees ao fair play No segundo caso a violaccedilatildeo a

regra eacute mais severa e atenta diretamente contra a integridade fiacutesica do outro jogador O

mesmo se passa com os crimes mala in se Todos os jogadores recebem o mesmo benefiacutecio -

de um jogo seguro - e todos satildeo submetidos ao mesmo fardo - de natildeo cometer faltas Assim

como os jogadores satildeo iguais no futebol os membros da comunidade satildeo iguais perante a

lei e justamente por isso eacute que toda a ofensa criminal eacute um crime de iniquidade umas mais

severas outras menos Depois de fixado que todos os crimes satildeo de iniquidade outras

consideraccedilotildees podem influenciar na determinaccedilatildeo da gravidade da conduta e por

conseguinte da correspondente severidade da puniccedilatildeo Portanto conclui o autor a teoria

da puniccedilatildeo como equidade captura a essecircncia da instituiccedilatildeo crime e castigo tal qual a

conhecemos seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

outros seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e

doravante possam comunicar o senso de variaccedilatildeo na gravidade de cada crime88

214 Consideraccedilotildees finais

86 Ibidem p 267 A posiccedilatildeo do autor sobre o dever de obediecircncia decorrer exclusivamente do sentido de fair play parece natildeo ser muito clara pois o proacuteprio Rawls esclarece que ldquo() seria incorreto dizer que o nosso dever em natildeo cometer qualquer das ofensas legais especificamente crimes de violecircncia eacute baseado no dever de fair play ao menos inteiramente () nosso fazecirc-los eacute errado independente da existecircncia de um sistema legal de benefiacutecios o qual noacutes aceitamos voluntariamenterdquo RAWLS John Legal obligation and the duty of fair play In RAWLS John Collected Papers 3 ed Massachusetts Harvard 1999 p 118 87 DAGGER Richard op cit [n 83] p 270 No original o jogo exemplificado eacute o baseball 88 DAGGER Richard op cit [n 83] p 272

40

A teoria de puniccedilatildeo como equidade mesmo em sua formulaccedilatildeo atual natildeo

consegue capturar em sua essecircncia o que existe de tatildeo especial na puniccedilatildeo que a ligue com

o crime Natildeo eacute o caso entretanto de ela incorrer no segundo equiacutevoco das teorias

retributivas pois efetivamente nos eacute mostrada uma razatildeo positiva para punirmos Mas para

fazer isso a explicaccedilatildeo dada distorce e natildeo captura corretamente a natureza dos mais

variados tipos de crimes

Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes satildeo crimes de iniquidade

poreacutem natildeo haacute razotildees para aceitar essa planificaccedilatildeo que engloba tanto mala in se quanto

mala prohibita Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

natureza na primeira noacutes jaacute sabemos que algumas coisas satildeo erradas e devemos decidir

quais delas passaratildeo a ser crimes na segunda noacutes comeccedilamos com a necessidade de regras

ou convenccedilotildees para que possamos viver em sociedade e doravante escolhemos se

violaccedilotildees a elas satildeo erros que devem contar como crimes89 Natildeo se precisa de regras ou

convenccedilotildees para determinar que o estupro e o homiciacutedio sejam crimes ao passo que

precisamos fazer um esforccedilo consideraacutevel para saber por exemplo quais condutas devem

ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente Em outras palavras essa simples

distinccedilatildeo eacute mais afinada com a natureza pluraliacutestica dos diversos crimes existentes do que a

versatildeo apresentada pela teoria de puniccedilatildeo como equidade

Por outro lado o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

relaccedilatildeo normativa entre crime merecimento e castigo - tambeacutem carece de explicaccedilotildees

convincentes Para aceitarmos a teoria em sua integralidade deveriacuteamos entender que um

estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador porque em princiacutepio

o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relaccedilatildeo ao segundo90 Novamente

estariacuteamos entatildeo dando uma justificaccedilatildeo tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

consequente severidade da puniccedilatildeo pois a descriccedilatildeo desses dois elementos pode ser dada

mais naturalmente se apelarmos para a perversidade de cada conduta

89 DUFF Antony R The incompleteness of ldquopunishment as fair playrdquo a response to Dagger Res Publica n 14 p 277-281 Nov 2008 90 Ibidem p 280

41

E Murphy que outrora foi um defensor da teoria mostra-nos uma simples

poreacutem concisa criacutetica final agrave puniccedilatildeo como equidade Aleacutem de reforccedilar a criacutetica material agrave

teoria agora o autor tambeacutem a abandona em um niacutevel teoacuterico

Finalmente aconteceu-me que a teoria do balanccedilo moral ao menos flerta em explicar o oacutebvio nos termos do controverso Se algueacutem me perguntar por que um assassino merece ser punido eu estaria mais inclinado em responder a essa questatildeo simplesmente asseverando com ecircnfase ldquoporque ele eacute um assassinordquo ao inveacutes de dizer ldquoporque ele eacute um parasitardquo91

Feitas essas consideraccedilotildees apresentar-se-atildeo duas outras teorias

eminentemente retributivas sendo que ambas tentam apresentar razotildees positivas para

punirmos os culpados e explicar porque eles merecem sofrer e exatamente o que eles

merecem sofrer

22 TEORIA PATERNALIacuteSTICA DE PUNICcedilAtildeO E PUNICcedilAtildeO COMO EDUCACcedilAtildeO MORAL

San Quentin what good do you think you do Do you think Irsquoll be different when yoursquore through

You bent my heart and mind and you warp my soul And your stone walls turn my blood a little cold

San Quentin may you rot and burn in hell May your walls falls and may I live to tell

May all the world forget you ever stood And may all the world regret you did no good

Johnny Cash San Quentin

Diferentemente da puniccedilatildeo como equidade a teoria paternaliacutestica

desenvolvida por Morris apela para uma noccedilatildeo faacutecil de ser apreendida por nosso senso

comum a disciplina em uma famiacutelia Por essa analogia eacute mostrado que em uacuteltima anaacutelise o

processo de puniccedilatildeo visa a fazer com que o criminoso conheccedila a natureza do bem assim

como o pai amoroso guia e ensina seu filho nas escolhas da vida De acordo com o proacuteprio

autor existe uma loacutegica sobreposiccedilatildeo entre sua teoria e os temas familiares da retribuiccedilatildeo -

91 MURPHY Jeffrie G op cit [n 72] p 14

42

apenas os culpados podem ser punidos a puniccedilatildeo infligida reflete a graduaccedilatildeo da culpa -

poreacutem tambeacutem haacute uma tentativa de explicar porque o criminoso merece sofrer e o que ele

merece sofrer92

Chama-se de paternalismo aquelas situaccedilotildees em que o Estado para regular

a vida de adultos os trata como se crianccedilas fossem ensinando-lhes quais satildeo as condutas

proibidas da maneira como um pai ensina um filho Se as respostas estatais ao

comportamento dos cidadatildeos ocorrerem de forma intrusiva conforme a solicitude parental

para promover o proacuteprio bem deste entatildeo podemos dizer que essa accedilatildeo eacute paternaliacutestica93

Como eacute sabido o tema eacute de grande interesse para as ciecircncias criminais embora

normalmente seja relacionado agrave proibiccedilatildeo de legislaccedilotildees especiacuteficas Aqui o enfoque eacute

diferente pois importa descobrir se podemos justificar um sistema de puniccedilatildeo apoacutes a

violaccedilatildeo de qualquer lei

Ao comeccedilar a apresentaccedilatildeo da teoria o autor ressalta que a puniccedilatildeo

deve ser aplicada para mostrar ao criminoso e a todas as pessoas igualmente que ela estaacute

sendo aplicada por causa de um crime Eacute um elemento fundamental portanto a ideia da

puniccedilatildeo como um ldquoum ato de comunicaccedilatildeo complexordquo com intuito de promover algum bem

para atuais ou potenciais ofensores A natureza desse bem eacute divida em vaacuterias partes

componentes mas pode ser resumida na ldquoidentidade do indiviacuteduo como pessoa

moralmente autocircnoma ligada ao bemrdquo94 Em primeiro lugar nesse esforccedilo eacute requerido

empatia colocar-se na posiccedilatildeo do outro a capacidade imaginativa de compreender as

implicaccedilotildees do mal causado para os outros e para si mesmo em razatildeo da conduta errada Em

segundo lugar eacute parte desse bem sentir-se tatildeo culpado e dolorido por ter cometido algo

errado que isso faccedila o indiviacuteduo querer restaurar o que foi danificado pois caso tal natildeo seja

experimentado podemos concluir que o sentimento de indiferenccedila e de separaccedilatildeo para

com os outros soacute pode diminuiacute-lo como pessoa Em terceiro lugar estaacute intrinsicamente

ligado agrave atitude de perdatildeo proacuteprio de renunciar agrave culpa isto eacute que o indiviacuteduo rejeite a

disposiccedilatildeo ao que eacute errado abstendo-se disso no futuro Finalmente tambeacutem compotildee a

92 MORRIS Herbert A paternalistic theory of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 92-111 93 Ibidem p 96 94 Ibidem p 97

43

ideia desse bem que o criminoso vividamente retenha sua imagem como indiviacuteduo

autocircnomo digno de respeito que se sinta culpado em proporccedilatildeo ao erro que se arrependa

que se perdoe e reforce sua proacutepria concepccedilatildeo de ser responsaacutevel95

E o bem coloca amarras loacutegicas e morais nos meios que podem ser

empregados para sua realizaccedilatildeo Conforme enfatizado eacute importante que o criminoso

entenda o porquecirc de ele estar sendo punido Esse eacute o aspecto comunicativo mencionado

Sendo assim seria um contrassenso tentar ensinaacute-lo ultrapassando a capacidade humana de

reflexatildeo compelindo-o a aceitar a mensagem transmitida96 Essa preocupaccedilatildeo jaacute distingue a

presente teoria das formulaccedilotildees consequencialistas de cunho reformativo pois aleacutem de

estas buscarem aquilo que promove um valor para a sociedade em geral ao inveacutes do que

promove o bem de atuais ou potenciais ofensores elas natildeo nos dizem como a instituiccedilatildeo da

puniccedilatildeo pode fomentar um bem moral especiacutefico e eacute justamente essa a caracteriacutestica

principal proposta na teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo97

Ateacute o momento parece que a teoria natildeo faz jus ao nome que lhe foi dado

entretanto e aqui reside a explicaccedilatildeo crucial eacute pela puniccedilatildeo que a crianccedila adquire e

compreende o sentido de um limite para suas condutas A dor experimentada pelo filho

sujeito agrave raiva ou agrave desaprovaccedilatildeo do pai soacute teraacute o sentido de puniccedilatildeo se este

deliberadamente infligir tal dor por causa do erro percebido A raiva espontacircnea e a

desaprovaccedilatildeo embora possam motivar culpa e obediecircncia futura natildeo satildeo os meios pelos

quais a crianccedila obteacutem o conceito de proibiccedilatildeo Eacute dizer

Uma resposta punitiva transmite para as crianccedilas a profundidade da ligaccedilatildeo parental aos valores subjacentes ao limite Assim como as crianccedilas sabem pela experiecircncia que eles estatildeo dispostos a atacar quando eles ou aquilo que eles se importam eacute ferido tambeacutem elas passam a apreciar a seriedade da ligaccedilatildeo de seus pais ao limite e aos valores suportados por sua existecircncia por intermeacutedio dos pais imporem alguma dor sobre elas A graduaccedilatildeo da puniccedilatildeo entatildeo transmite ao filho a importacircncia que os pais atribuem agrave

95 Ibidem p 98 et seq 96 Ibidem p 100 97 Ibidem p 97 As diferenccedilas entre a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e as teorias reformativas natildeo foram detalhadamente expostas pelo autor Contudo podemos notaacute-las com maior clareza na formulaccedilatildeo da Hampton a seguir

44

resposta de seu filho ao limite e promove neles natildeo apenas a apreciaccedilatildeo de que algo eacute errado mas o quatildeo gravemente errado eacute98

Morris considera algumas possiacuteveis acusaccedilotildees agrave teoria como por exemplo

se ela falha ao respeitar o indiviacuteduo como ser autocircnomo A resposta eacute natildeo porque a escolha

do indiviacuteduo eacute respeitada em toda a narrativa e o status como pessoa moral eacute exatamente o

que ela procura afirmar99 Sendo assim eacute inaceitaacutevel a busca desenfreada pelas finalidades

paternaliacutesticas propostas ou um condicionamento agrave capacidade de escolha do ser uma vez

que a puniccedilatildeo aplicada em razatildeo da transgressatildeo deve refletir a gravidade do erro cometido

e deve haver liberdade para a desobediecircncia ldquoo que deve ser visado eacute que os ofensores

tornem-se autocircnomos natildeo autocircmatosrdquo100

Hampton por sua vez proponente da teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo

moral cujas concepccedilotildees aperfeiccediloam e aclaram os desenvolvimentos dados por Morris

explica que a ameaccedila de puniccedilatildeo daacute agraves pessoas incentivos natildeo-morais para que elas natildeo

cometam a accedilatildeo proibida na lei criminal Como a ameaccedila feita na lei tem esse papel

ldquodissuasoacuteriordquo efetivar a ameaccedila ou seja punir algueacutem quando a lei eacute quebrada eacute ao

menos em parte um jeito de ldquofazer valerrdquo a ameaccedila101 Mas afirmar que a puniccedilatildeo estatal eacute

necessaacuteria para dissuadir criminosos natildeo significa que se estaacute aceitando uma teoria de

prevenccedilatildeo geral negativa pois como Hegel disse caso intentaacutessemos prevenir crimes

apenas por meio de ameaccedila noacutes estariacuteamos tratando seres humanos da mesma maneira

que tratamos cachorros102 A autora nos pede entatildeo para imaginarmos a seguinte situaccedilatildeo

98 Ibidem p 101-102 Conforme seraacute visto e eacute isto que liga as duas teorias apresentadas neste ponto do trabalho a analogia da puniccedilatildeo imposta pelos pais sobre os filhos transmite mutatis mutandis a mesma mensagem do exemplo da cerca eletrificada na teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral 99 Ibidem p 105 100 Ibidem p 106 101 HAMPTON Jean The moral education theory of punishment Philosophy and Public Affairs v 13 n 03 p 208-238 summer 1984 102 Essa foi a resposta dada pelo filoacutesofo alematildeo agrave teoria de puniccedilatildeo de Feuerbach na qual a puniccedilatildeo era justificada como uma ameaccedila aos cidadatildeos visando a prevenir crimes pela intimidaccedilatildeo Mas indagou Hegel ldquoeacute certo fazer ameaccedilas Uma ameaccedila assume que um homem natildeo eacute livre e iraacute compeli-lo atraveacutes de vividamente apresentando um mal Direito e justiccedila entretanto devem ter seus lugares na liberdade e na vontade e natildeo na restriccedilatildeo contida ameaccedila Nessa visatildeo de puniccedilatildeo eacute a mesma coisa quando o indiviacuteduo levanta uma vara contra um cachorro um homem natildeo eacute tratado de acordo com sua dignidade e honra mas como um cachorrordquo HEGEL G W F Philosophy of Rights Batoche Books Kitchener 2001 p 91 Em relaccedilatildeo agrave teoria de puniccedilatildeo em Hegel ver MCTAGGART Ellis J Hegelrsquos theory of punishment International Journal of Ethics v 6 n 4 p 479-502 jul 1896

45

consideremos a liccedilatildeo que um animal recebe quando ao tentar sair do pasto vai de encontro

a uma cerca eletrificada Ele experimenta dor e apoacutes alguns encontros com a cerca fica

condicionado a permanecer longe dela Um ser humano no mesmo pasto receberia a mesma

mensagem e aprenderia a mesma liccedilatildeo todavia diverso do animal ele tambeacutem iria refletir

sobre as razotildees pelas quais a cerca estava ali o porquecirc da existecircncia de uma barreira para

sua liberdade103 Sendo assim

Puniccedilatildeo funciona como cercas eletrificadas Ao menos elas ensinam as pessoas por intermeacutedio da dor que existe uma ldquobarreirardquo agrave accedilatildeo que ela quer fazer e entatildeo no miacutenimo elas visam agrave dissuasatildeo Mas uma vez que ldquocercasrdquo de puniccedilatildeo estatildeo marcando limites morais a dor que essas ldquocercasrdquo administram (ou ameaccedilam administrar) transmite uma mensagem maior aos seres capazes de refletir sobre as razotildees das barreiras existirem elas transmitem uma mensagem de que existe uma barreira a essas accedilotildees por causa de elas serem moralmente erradas104

A comparaccedilatildeo da puniccedilatildeo com uma cerca eletrificada nos faz perceber que

aleacutem da mensagem dissuasoacuteria existe outra maior de cunho moral ldquoA dor eacute maneira de

transmitir a mensagemrdquo ldquoA dor diz natildeordquo105 e daacute ao humano ofensor a oportunidade de

refletir sobre as razotildees morais que fizeram a barreira ser erguida portanto ele pode fazer a

escolha em rejeitar a conduta proibida por outros motivos aleacutem da vontade egoiacutesta de

apenas evitar dor Na teoria da educaccedilatildeo moral a puniccedilatildeo eacute justificada como uma maneira

de prevenir o crime somente quando ensina aos ofensores e a todas as pessoas que existem

razotildees morais para escolherem natildeo praticar um crime106 Percebe-se nessa narrativa uma

inspiraccedilatildeo platocircnica sobre o apropriado sentido da coerccedilatildeo estatal107

Entatildeo como infligir dor pode ser moralmente educacional Por que a

aplicaccedilatildeo de uma experiecircncia prazerosa natildeo poderia fazer o mesmo em termos de puniccedilatildeo

Em suma certas coisas satildeo aprendidas apenas por contraste quando somos confrontados

com a dor que causamos aos outros visitada em noacutes por algum representativo moral ou

103 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 211 104 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 105 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 212 106 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 213 107 A autora mesma afirma que poderiacuteamos ateacute ter razotildees para acreditar que Platatildeo aceitaria algo como sua teoria Para uma discussatildeo aprofundada sobre a puniccedilatildeo em Platatildeo conferir MACKENZIE Mary Margaret Plato on Punishment Cambridge Press Cambridge 1981 p 179 et seq

46

material Eacute claro que a resposta eacute muito mais complexa do que isso e requereria descriccedilatildeo

do que satildeo conceitos morais como o ser humano os adquire etc Ainda assim a autora tece

consideraccedilotildees a respeito As pessoas natildeo gostam de puniccedilatildeo porque ela envolve perda de

liberdade ou melhor ldquoruptura na liberdade de o indiviacuteduo perseguir a satisfaccedilatildeo de seus

desejosrdquo108 E a mensagem que tentamos passar por meio da dor eacute de que a accedilatildeo errada eacute

proibida fora dos limites Portanto a maneira para comunicarmos agraves pessoas de que existe

uma barreira especial contra essas accedilotildees seria vinculando tais accedilotildees agravequilo com que as

pessoas mais se importam - a perseguiccedilatildeo de seus proacuteprios interesses Soacute quando ocorre a

ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses o ofensor perceberaacute a forccedila especial do ldquonatildeordquo

comunicado por aquele que o estaacute punindo109

Ao que parece a teoria de educaccedilatildeo moral assim como a paternaliacutestica da

puniccedilatildeo muito se assemelha agraves teorias de reabilitaccedilatildeo Contudo existem diferenccedilas

substanciais que as distinguem Em primeiro lugar na concepccedilatildeo de Hampton o Estado natildeo

estaria utilizando de violecircncia para coercitivamente eliminar certos tipos de

comportamento ao contraacuterio a preocupaccedilatildeo consiste em educar os cidadatildeos para que eles

possam ter a escolha de natildeo cometer determinada conduta Ademais natildeo eacute permitido

utilizar a puniccedilatildeo do criminoso para a promoccedilatildeo de qualquer finalidade social beneacutefica mas

usaacute-la para beneficiar o proacuteprio indiviacuteduo que iraacute experimentaacute-la ldquono sentido de ajudaacute-lo a

ganhar conhecimento moral se ele escolher escutarrdquo110 Em segundo lugar natildeo haacute

semelhanccedila com as teorias de reabilitaccedilatildeo nas quais o sujeito eacute visto como um paciente

doente que precisa ser tratado porque aqui a puniccedilatildeo serve como meio de enviar uma

mensagem moral agrave pessoa que agiu de forma imoral e deve ser responsaacutevel por suas

accedilotildees111

E a autora prossegue Alguns criacuteticos poderiam objetar que a teoria estaria

afirmando que eacute interesse do Estado decidir e forccedilar o conteuacutedo da moralidade sobre os

cidadatildeos (um paternalismo ou moralismo legal) Sim eacute exatamente esse o ponto tais coisas

satildeo de interesse do Estado ainda que de maneira bem limitada Quando os autores rejeitam

108 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 224 109 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 226 110 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 214 111 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 215

47

o paternalismo eles rejeitam certa posiccedilatildeo sobre o que deveria ser lei mas natildeo o que deve

ser feito ao indiviacuteduo depois que ele violou essa lei112 Soaria absurdo ouvir de um assassino

ou estuprador ldquoVocecirc o Estado natildeo tem direito de me dizer que o homiciacutedio eacute errado ou o

estupro eacute imoral Quem eacute vocecirc para me ensinar essa liccedilatildeordquo113 A puniccedilatildeo estatal eacute justificada

porque homicidas e estupradores natildeo conseguem fazer uma escolha entre accedilotildees morais e

imorais cujos resultados constituem uma ofensa a um membro da comunidade Natildeo eacute essa

aliaacutes a preocupaccedilatildeo dos coraccedilotildees liberais114

Enfim Hampton pretendeu demonstrar que sobre certo aspecto a

puniccedilatildeo eacute algo de bom No primeiro estaacutegio do processo de comunicaccedilatildeo o ofensor deveria

realizar que a sociedade natildeo soacute proiacutebe a conduta mas tambeacutem a condena No segundo

estaacutegio as razotildees morais para a condenaccedilatildeo viriam agrave tona seriam compreendidas e se

possiacutevel aceitas A puniccedilatildeo que envolve a ruptura na perseguiccedilatildeo dos interesses egoiacutestas

das pessoas ajuda ao ofensor chegar agrave conclusatildeo moral final entender por que a cerca foi

erigida Logo aquele que pune deve comunicar ao criminoso que a viacutetima dele sofreu entatildeo

esse pode apreciar a mensagem moral pela dor vicaacuteria sobre a ofensividade de sua accedilatildeo115

221 Criacutetica

Apesar de conterem detalhes especiacuteficos as duas formulaccedilotildees ao cabo

satildeo muito parecidas E a primeira duacutevida que surge eacute se essas teorias satildeo compatiacuteveis com

uma defensaacutevel teoria poliacutetica de Estado Ou melhor se essas finalidades morais

maravilhosas satildeo de interesse legiacutetimo do Estado em perseguir E caso sejam o meio de

obtenccedilatildeo deve ser a lei criminal116 No miacutenimo podemos perceber uma tensatildeo entre uma

poliacutetica liberal e tatildeo sofisticadas teorias de puniccedilatildeo pois embora a busca de valores seja

112 MILL John Stuart On Liberty Batoche Books Kitchener 2001 p 85 et seq 113 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 218-219 114 HAMPTON Jean op cit [n 101] p 219-220 115 HAMPTON Jean op cit [n 101] passim 116 MURPHY Jeffrie G Retributivism moral education and the liberal state Criminal Justice Ethics p 3-11 winterspring 1985

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racional ou aceitaacutevel eacute difiacutecil afirmar que eacute convincente o bastante para justificar a intrusatildeo

estatal na liberdade dos cidadatildeos Se aceitaacutessemos a concepccedilatildeo de Rawls sobre a posiccedilatildeo

inicial e a formaccedilatildeo do Estado veriacuteamos que quando surgiu a instituiccedilatildeo de crime e puniccedilatildeo

noacutes natildeo tiacutenhamos uma compreensatildeo rica do que era o bem para construirmos com base

nele um programa de educaccedilatildeo moral natildeo havia - e ainda hoje natildeo haacute - motivaccedilatildeo

compartilhada das pessoas sobre o que eacute o bem moral Impor para elas um programa sobre

os padrotildees de uma vida boa e honesta Murphy conclui significa abandonar uma teoria

liberal de Estado117

O autor faz outros dois apontamentos mais pertinentes para este estudo

Se uma pessoa precisa ser educada conectada aos valores corretos isso deve significar que

de alguma forma ela eacute ignorante desses valores Logo seria injusto tornaacute-la responsaacutevel e

puni-la quando suas accedilotildees contrariam tais valores (pois ela natildeo os conhece) Contudo se o

criminoso eacute responsaacutevel ele deveria saber que a conduta eacute errada daiacute natildeo resta esclarecido

o motivo de ele precisar educaccedilatildeo Ao que parece seria mais acertado dizer que ele precisa

se arrepender ao inveacutes de ser educado118 Em segundo lugar natildeo obstante todos aceitarmos

alguns valores nucleares que estatildeo inscritos na lei criminal como natildeo matar e natildeo roubar

ordenar submissatildeo a certas regras natildeo daacute ao Estado em adiccedilatildeo agrave obediecircncia dessas regras a

permissatildeo de educar os cidadatildeos para que eles compreendam e aceitem as razotildees internas

que as justificam isso requer outro argumento119

Mas a criacutetica de Murphy sobre a incompatibilidade das teorias com uma

poliacutetica de Estado defensaacutevel parece errar o alvo Feinberg um dos maiores defensores do

liberalismo ao fazer algumas anotaccedilotildees sobre a teoria de puniccedilatildeo da educaccedilatildeo moral

assevera que ela eacute bem consistente com a rejeiccedilatildeo ao perfeccionismo um dos princiacutepios

limitadores da liberdade120

117 Ibidem p 8 118 Ibidem p 10 119 Ibidem p 11 120 Perfeccionistas legais afirmam que a finalidade adequada da lei criminal eacute aperfeiccediloar a pessoa e elevar o gosto dos cidadatildeos sujeitos a ela Nesse caso sempre seria uma boa e relevante razatildeo em suporte agrave proibiccedilatildeo criminal de que ela tornaraacute os cidadatildeos pessoas melhores FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 277

49

Para Hampton a puniccedilatildeo eacute justificada para reforccedilarmos nossas proibiccedilotildees

poreacutem natildeo nos eacute dito qual seria o conteuacutedo legiacutetimo dessas proibiccedilotildees Em nenhum

momento a autora pretendeu responder a ldquoo que deve ser leirdquo ou a ldquoquais satildeos as aacutereas de

atuaccedilatildeo da lei criminalrdquo121 Em verdade segundo Feinberg poderiacuteamos ateacute mesmo

argumentar que a teoria de puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral rejeita o perfeccionismo legal em

sua integralidade ou ao menos rejeita-o como fonte uacutenica de incriminaccedilatildeo quando o harm

principle natildeo se faz presente Se no exemplo pastoral de Hampton o indiviacuteduo descobre

que a uacutenica razatildeo para a cerca estar ali eacute para fazecirc-lo uma pessoa melhor e o ato proibido

natildeo eacute daqueles que cause ldquoprejuiacutezo a terceirosrdquo (harm to others) entatildeo a condenaccedilatildeo que a

puniccedilatildeo pretende comunicar seria vazia e sem base Agora se o indiviacuteduo ultrapassa a cerca

causando assim prejuiacutezo a terceiros o Estado tem legitimidade para responder ldquovocecirc se

torna uma pessoa pior ao entrar no terreno proibido porque acabou causando um prejuiacutezo

a terceiros e eacute parte do ideal do Estado de pessoas virtuosas que elas natildeo causem

voluntariamente prejuiacutezo a terceirosrdquo Nessa narrativa a mensagem pedagoacutegica gira em

torno do mal de sofrer um prejuiacutezo e a importacircncia de respeitar direitos e o assunto sobre

as virtudes pessoais eacute secundaacuterio ou deixado de lado122

Contudo o que intriga o autor eacute de que maneira uma potente mensagem

moral estaria impliacutecita na puniccedilatildeo como apenas um ato de condenaccedilatildeo faria o criminoso

perceber que a conduta natildeo apenas foi desobediente como imoral123 Eacute claro que atos

rituais realmente transmitem algumas mensagens entretanto uma coisa eacute a puniccedilatildeo estrito

senso outra satildeo as teacutecnicas suplementares utilizadas durante a puniccedilatildeo ou as consequecircncias

contingentes que ela pode alcanccedilar dadas as circunstacircncias Como a pessoa punida seria

convencida dos valores morais que justificam a proibiccedilatildeo por meio da dor Uma crianccedila

sendo espancada por seus pais consegue aprender uma liccedilatildeo moral porque identifica

previamente neles fonte de autoridade moral mas com certeza os cidadatildeos natildeo tecircm essa

relaccedilatildeo de respeito e de confianccedila com o Estado124 A puniccedilatildeo em estrito senso realmente

pode ser uacutetil para o criminoso que jaacute estaacute consciente do erro cometido e entatildeo

121 Ibidem p 301-302 Por outro lado em toda sua obra Feinberg quer saber o porquecirc da cerca ter sido eletrificada e colocada em determinado lugar 122 Ibidem p 302 123 Ibidem p 303 124 Ibidem p 304

50

poderiacuteamos falar de uma teoria de puniccedilatildeo de reforma moral Mas a maioria dos criminosos

natildeo estaacute predisposta ao arrependimento fanaacuteticos revolucionaacuterios calculistas amorais

sociopatas etc Prender e infligir dor nesses indiviacuteduos pode ser necessaacuterio para proteger os

outros ldquomas os efeitos mais provaacuteveis nos proacuteprios presos seraacute a confirmaccedilatildeo do cinismo e

oacutedio das pessoas ou a convicccedilatildeo de que eles devem tomar maiores precauccedilotildees contra

serem descobertos da proacutexima vez - dificilmente lsquomensagens moraisrsquordquo125

Por outro lado Dolinko acrescenta que a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo

possui interpretaccedilotildees conflitantes em situaccedilotildees concretas Imaginemos que um indiviacuteduo

comete um crime de baixo potencial ofensivo uma ameaccedila Alguns poucos meses de

prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade serviriam para retirar a vantagem indevida que ele

recebeu mas levaria anos e uma quantidade maior de puniccedilatildeo para fazecirc-lo perceber a dor

que causou buscando sua proacutepria identidade como uma pessoa moralmente autocircnoma

ligada ao bem126 Impor esse grau maior de puniccedilatildeo iria muito aleacutem do que seria necessaacuterio

para restaurar a balanccedila de benefiacutecios e fardos portanto haveria violaccedilatildeo dos preceitos do

modelo retributivista que o proacuteprio Morris ofereceu anteriormente Resolver a

incompatibilidade entre justificaccedilotildees retributivas e paternaliacutesticas envolveria saber mais

exatamente o que constitui uma justificaccedilatildeo paternaliacutestica pois o simples fato de que algum

benefiacutecio possa servir ao criminoso natildeo nos daacute o direito de justificar a puniccedilatildeo imposta sobre

ele contra sua vontade127

E o autor prossegue com uma criacutetica parecida com aquela que Murphy

direcionou a Hampton Uma pessoa que cometeu um crime seacuterio pode muito bem ter uma

percepccedilatildeo debilitada sobre os valores que ligam a comunidade bem como pode natildeo

conseguir reconhecer ou natildeo querer reconhecer a realidade da ilicitude da conduta e do

sofrimento dos outros O que nos justifica entatildeo na insistecircncia em compeli-la para

125 Ibidem p 305 As teorias apresentadas tentaram responder como educar ou inserir valores naqueles que natildeo querem ser educados ou satildeo mudos aos valores poreacutem as respostas satildeo insuficientes No entanto com a contribuiccedilatildeo de Feinberg um passo eacute dado em direccedilatildeo agrave proposiccedilatildeo de Duff em que devemos entender a puniccedilatildeo como se fosse uma penitecircncia secular E a puniccedilatildeo dessas categorias de criminosos ainda assim deve ocorrer como forma de reparaccedilatildeo apologeacutetica natildeo como educaccedilatildeo 126 DOLINKO David Morris on paternalism and punishment Law and Philosophy n 18 p 345-361 1999 127 Ibidem p 352

51

submeter-se agrave puniccedilatildeo128 Ademais natildeo fica suficientemente claro como o bem impotildee

amarras loacutegicas agrave persecuccedilatildeo das finalidades paternaliacutesticas Poderiacuteamos assumir que o fim

uacuteltimo buscado pelo Estado - indiviacuteduos moralmente autocircnomos ligados ao bem - poderia

ser conseguido mediante um processo que natildeo apele para a autonomia individual e para a

capacidade de reflexatildeo e de mudanccedila porquanto nossas esperanccedilas satildeo que o criminoso se

torne moralmente autocircnomo e ligado ao bem depois da puniccedilatildeo ser imposta Um

tratamento puramente fisioloacutegico que natildeo envolve o chamado para a autonomia e para a

capacidade de reflexatildeo do indiviacuteduo pode natildeo obstante resultar em um indiviacuteduo

esplendidamente autocircnomo e ligado ao bem129

222 Consideraccedilotildees finais

As teorias desenvolvidas por Morris e Hampton contecircm diversos elementos

do que atualmente estaacute sendo discutido sobre a puniccedilatildeo criminal Embora cada uma das

formulaccedilotildees apresente complicaccedilotildees internas seja para explicar como fazer a comunicaccedilatildeo

de um ato moral complexo com quem natildeo quer ouvir seja para assentar bases em uma

teoria poliacutetica que as possibilite justificar a intervenccedilatildeo estatal na liberdade dos cidadatildeos

ambas possuem um argumento poderoso sobre a natureza da instituiccedilatildeo de crime e castigo

Foi-nos mostrado que deve haver continuidade entre (a) razotildees para uma accedilatildeo ser proibida e

(b) razotildees pelas quais uma pessoa eacute punida caso cometa a accedilatildeo proibida Se admitirmos

que ao menos em parte a justificativa para a criminalizaccedilatildeo de uma conduta eacute encontrada

em sua natureza moralmente errada entatildeo devemos admitir que a puniccedilatildeo deve servir para

mostrar ao indiviacuteduo por que a conduta eacute moralmente errada

Nesse sentido o exemplo da cerca eletrificada eacute bastante forte

Claramente existe uma mensagem moral maior na lei criminal do que apenas prevenir

crimes A prevenccedilatildeo de crimes eacute uma consequecircncia desejada natildeo um fato contingente pelo

qual justificamos e medimos a quantidade de puniccedilatildeo A puniccedilatildeo possui algo de educativo

128 Ibidem p 357 129 Ibidem p 359

52

de ligar pessoas aos valores corretos sejam eles quais forem Essa eacute uma de suas facetas

boas Natildeo podemos esquecer poreacutem que na puniccedilatildeo geralmente encontramos

ressentimento e alienaccedilatildeo ao inveacutes de reconciliaccedilatildeo e reforma moral portanto devemos ter

cautela com as finalidades paternaliacutesticas Ademais como jaacute mencionado eacute difiacutecil vermos a

maioria dos criminosos como pessoas ligadas aos valores da comunidade os quais possuem

um sentimento de empatia com os outros Ao contraacuterio eacute mais faacutecil aceitarmos que eles

conhecem tais valores poreacutem os ignoram E sendo assim a imposiccedilatildeo de ldquoeducaccedilatildeordquo

mediante a puniccedilatildeo raramente serviria como uma mensagem moral

De qualquer sorte a contribuiccedilatildeo dessas teorias eacute importante tanto pela

influecircncia nas teorias que delas seguem quanto pelo esforccedilo seacuterio em tentar explicar por

que os criminosos merecem sofrer a dor da puniccedilatildeo Segundo Morris ldquoa falha em punir

iliacutecitos graves e a puniccedilatildeo de iliacutecitos em circunstacircncias onde o erro estaacute ausente soacute serviria

para desorientar nosso conhecimento moral e ameaccedilar aquilo que tantas vezes jaacute eacute

precaacuteriordquo130 Assim embora pareccedila suspeita a comparaccedilatildeo com o desenvolvimento moral de

uma crianccedila natildeo haacute duacutevida de que a analogia eacute frutiacutefera e nela encontramos uma chave

para decifrar essa complexa instituiccedilatildeo que eacute a puniccedilatildeo estatal Como disse Lucas noacutes

filosofamos sobre a puniccedilatildeo em isolamento dos outros males que podem nos afligir e

pensamos que a vida eacute um mar de rosas cujos espinhos do sofrimento satildeo introduzidos

apenas pelos criminoacutelogos mas ldquoa vida eacute cheia de cruzes e a exata natureza da puniccedilatildeo eacute

mais bem compreendida se puder ser comparada e contrastada com as outras coisas

indesejaacuteveis que noacutes somos incapazes de evitarrdquo131

130 MORRIS Herbert Some further reflections on guilty and punishment Law and Philosophy n 18 p 363-378 1999 Este artigo eacute uma resposta agraves criacuteticas feitas por Dolinko entretanto natildeo importa ao presente estudo prosseguir em pormenores da teoria como por exemplo a reacuteplica do autor agrave indagaccedilatildeo se em sua formulaccedilatildeo seriam aceitos meacutetodos de ultrapassar a autonomia do indiviacuteduo com a finalidade de ainda assim tornaacute-lo uma pessoa livre e ligada ao bem Com efeito nestas paacuteginas apenas constaram as ideias mais importantes para uma compreensatildeo adequada da puniccedilatildeo 131 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 209

53

CAPIacuteTULO III - PUNICcedilAtildeO COMUNICACcedilAtildeO E COMUNIDADE A PERSPECTIVA DE DUFF

31 COMUNIDADE POLIacuteTICA

Uma teoria de puniccedilatildeo pressupotildee uma concepccedilatildeo do que eacute o crime e

portanto dos limites da lei criminal Pressupotildee tambeacutem uma concepccedilatildeo de Estado sobre

sua legitimidade e poder bem como sua relaccedilatildeo com os indiviacuteduos Logo qualquer teoria de

puniccedilatildeo constitui apenas o uacuteltimo andar de todo um edifiacutecio normativo que lhe serve de

alicerce Sendo assim percebe-se o esforccedilo monumental que eacute desenvolver uma teoria

completa pois ruindo um dos pilares que a sustentam seja sobre a natureza dos indiviacuteduos

do crime do Estado e do poder eacute possiacutevel que toda uma formulaccedilatildeo se desmorone Em

outras palavras ao teorizarmos sobre a puniccedilatildeo criminal natildeo podemos nos esquecer de

que abaixo da ponta do iceberg jaz submersa sua base geacutelida

Mas neste estudo natildeo seraacute desenvolvida nem adotada uma teoria poliacutetica

especiacutefica embora conste aqui e ali no segundo capiacutetulo algumas consideraccedilotildees sobre o

contrato social e a posiccedilatildeo original de Rawls Todavia porque Duff delineia um ideal

normativo de comunidade baseando-o na analogia com um modelo de comunidade

acadecircmica para servir de fundamento agrave sua teoria de puniccedilatildeo como empreendimento de

comunicaccedilatildeo moral um breve rascunho seraacute traccedilado sobre o assunto ndash sem nenhuma

pretensatildeo de esgotaacute-lo

Teorias liberais por um lado importam-se sobretudo com direitos e

liberdades individuais e veem no Estado a aparelhagem necessaacuteria para garantir aos

cidadatildeos o maacuteximo de liberdade para perseguirem seus proacuteprios interesses desde que eacute

claro essa busca natildeo resulte em ofensa a terceiros Nesse quadro natildeo haacute imposiccedilatildeo de qual

eacute o bem especiacutefico que os indiviacuteduos devem almejar porquanto o poder estatal soacute estaacute

legitimado porque ao punir protege a liberdade de todos para irem atraacutes de seus interesses

sem a ameaccedila do crime Teorias comunitaacuterias por outro lado estatildeo menos inclinadas a

enxergar os indiviacuteduos isolados uns dos outros e nelas o Estado assume papel mais ativo no

54

fomento de um bem coletivo e na manutenccedilatildeo de valores sociais132 Pode-se dizer que aiacute se

encontram as duas linhas gerais do pensamento juriacutedico uma tradicional aristoteacutelica na

qual o homem naturalmente eacute animal poliacutetico outra moderna baseada no direito subjetivo

do indiviacuteduo fundamentado principalmente em Hobbes133

O quadro geral acima descrito eacute uma reduccedilatildeo simpliacutessima de problemas

teoacutericos infinitamente maiores poreacutem a anotaccedilatildeo eacute feita para assinalar que diferentes

teorias poliacuteticas geraratildeo diferentes justificaccedilotildees para a puniccedilatildeo Contudo natildeo se pode

olvidar para evitar logomaquias infrutiacuteferas do aviso de Feinberg

Por vezes cada partidaacuterio define a posiccedilatildeo do outro na forma mais extrema para que a sua proacutepria apresentada como a uacutenica possibilidade frente ao absurdo wins by default Comunitarismo por exemplo frequentemente eacute apresentado como alternativa ao ldquoindividualismordquo que eacute definido em doutrinas completamente absurdas nas quais cada pessoa eacute um aacutetomo uma ilha cujo caraacuteter essencial eacute formado independentemente das influecircncias de grupos sociais e que eacute em princiacutepio inteiramente autossuficiente Em verdade cada uma destas visotildees eacute correta ldquoindividualismordquo ou ldquocomunitarismordquo tudo depende da questatildeo que se espera a resposta e como satildeo tantas as questotildees eacute possiacutevel que uma doutrina seja a resposta para algumas delas e a outra para outras E certas questotildees podem ser formuladas de maneira tatildeo enganosa que comunitarismo e individualismo natildeo se apresentem como respostas conflitantes de forma alguma134

Dito isso a retoacuterica penal de comunidade por vezes levanta diversas

preocupaccedilotildees liberais porque ela parece possibilitar uma subordinaccedilatildeo dos direitos

individuais aos bens comunitaacuterios E mais parece tambeacutem legitimar um discurso no qual os

132 DUFF Antony R GARLAND David Introduction thinking about punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 1-44 133 VILLEY Michel A formaccedilatildeo do pensamento juriacutedico moderno Satildeo Paulo Martins Fontes 2009 passim Interessa ao presente estudo saber da existecircncia de toda uma linguagem juriacutedica e visatildeo do direito ndash muito fora de moda ndash que natildeo partem da noccedilatildeo moderna de direito subjetivo encabeccedilada por Hobbes Natildeo que a ideia do direito extraiacutedo do indiviacuteduo ou melhor como qualidade proacutepria do sujeito separado de toda a ordem social preexistente seja invenccedilatildeo exclusiva do autor pois formulaccedilotildees teoacutericas desse tipo satildeo encontradas nos estoicos e nominalistas Mas eacute ele quem inverte a concepccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles do homem naturalmente poliacutetico das sociedades serem naturais de uma visatildeo em conjunto a respeito da ordem que compotildee a polis de o direito ser um objeto uma fraccedilatildeo das coisas sociais que correspondem a cada um etc E a comunidade poliacutetica esboccedilada por Duff sem a menor duacutevida inclina-se agrave tradiccedilatildeo claacutessica de Aristoacuteteles e sua linhagem 134 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1990 v4 Harmless wrongdoing p 82

55

criminosos sejam excluiacutedos da comunidade dos respeitadores da lei ou seja de ldquonoacutesrdquo os

bons moccedilos contra ldquoelesrdquo os inimigos Mas se formos levar a seacuterio a ideia de comunidade

no contexto da lei criminal e puniccedilatildeo argumenta Duff devemos ter em mente a nossa

sociedade moderna complexa e pluraliacutestica na qual a aspiraccedilatildeo a valores comuns soacute pode

ocorrer dentro dos limites impostos pelos princiacutepios liberais da autonomia e da liberdade135

Para o autor assim como ocorre na academia dois aspectos centrais

caracterizam a ideia de comunidade primeiro um comprometimento compartilhado pelos

membros da comunidade a certos valores definidores que estruturam suas atividades

comuns segundo um apreccedilo muacutetuo como companheiros membros da comunidade um

apreccedilo que eacute ele mesmo estruturado por aqueles valores definidores E esses bens comuns

devem ser os ldquonossosrdquo bens e sua proacutepria natureza de bens depende de eles serem

compartilhados Decerto que existem bens individuais nesse quadro mas tais bens

individuais soacute assumem sua caracteriacutestica de bens internos agraves praacuteticas da comunidade uma

vez que contribuem ou satildeo entendidos por contribuiacuterem aos valores compartilhados da

comunidade136 Entatildeo os membros da comunidade relativos estranhos uns para os outros

(ver p 58) constituem uma verdadeira comunidade agrave medida que aspiram e sabem que

135 DUFF Antony R Penal communities Punishment and Society v 1 n 1 p 27-43 1999 136 Ibidem p 29 et seq Natildeo eacute necessaacuterio descer agraves minuacutecias da analogia feita por Duff entre a comunidade poliacutetica e a comunidade acadecircmica basta entender as linhas gerais Na academia existem praacuteticas internas orientadas para a busca do conhecimento seu bem comum E nela tambeacutem haacute bens individuais uma vez que cada membro tem as suas proacuteprias ideias e publicaccedilotildees poreacutem eles soacute satildeo entendidos como bens internos agrave praacutetica acadecircmica se eles estiverem mais ou menos em conformidade com os bens comuns Nela pode haver desentendimentos ferozes acerca do que satildeo os valores e como alcanccedilaacute-los ainda que todos tenham acordado sobre os valores estruturantes poreacutem nem todos esses desentendimentos mesmo se profundos tecircm forccedila para destruir a comunidade Academias possuem estruturas formais de hierarquia e poder cujas regras devem ser entendidas por seus membros como justificadas para regular a busca dos bens que os definem todos como comunidade acadecircmica que almeja conhecimento e compreensatildeo E contiguidade geograacutefica natildeo eacute necessaacuteria para a comunidade pois eacute suficiente que cada um se veja engajado em uma praacutetica comum e que cada um reconheccedila no outro um companheiro reconhecimento este manifestado no respeito ao trabalho do outro Ademais comunidades acadecircmicas satildeo parciais natildeo totais existem limites para o meu interesse nas atividades dos outros membros pois algumas coisas satildeo privadas e outras puacuteblicas E essa distinccedilatildeo mesma eacute feita com base na importacircncia de determinadas condutas em relaccedilatildeo aos valores comuns e estruturantes Por fim embora o registro na comunidade acadecircmica seja normalmente voluntaacuterio comunidades em que o ingresso natildeo eacute voluntaacuterio tambeacutem ligam seus membros como ocorre na famiacutelia e nos paiacuteses em que nascemos

56

aspiram a compartilhar os valores definidores da autonomia e da liberdade e agrave medida que

aspiram e sabem que aspiram ao devido apreccedilo muacutetuo sob a luz desses valores137

E ele natildeo quer dizer como defensor de um comunitarismo-liberal que noacutes

devemos comeccedilar pensando metafisicamente ou moralmente em comunidades ao inveacutes de

em indiviacuteduos esse raciociacutenio nos levaria aceitar uma subordinaccedilatildeo da autonomia da

liberdade ou da privacidade individual a um misterioso bem comum Natildeo eacute isso A nota aqui

eacute outra de que devemos comeccedilar nos vendo como indiviacuteduos na comunidade onde esses

bens comuns satildeo bens porque constituiacutedos dentro de um contexto social que lhes

possibilite e lhes confira significado e sentido138

Tudo isso foi desenvolvido para ao final chegar-se ao papel da lei criminal

dentro dessa comunidade Nela a lei criminal natildeo eacute um decreto do soberano estrangeiro

que se vale de sua autoridade oferecendo aos cidadatildeos ldquorazotildees independentes do

conteuacutedordquo (content-independent reasons) para que estes natildeo cometam determinadas accedilotildees

Ao inveacutes de proibir condutas erradas a ldquonossardquo lei como membros da comunidade declara

quais dessas condutas erradas constituem crimes

A lei deveria encarnar os valores aos quais noacutes jaacute estamos comprometidos como membros da comunidade ela deveria nesse sentido ser genuinamente common law Mas se eacute a ldquonossardquo lei suas especificaccedilotildees de certas condutas como criminosas natildeo nos oferecem novas razotildees independentes do conteuacutedo para abstermo-nos de tal conduta porque esta eacute uma conduta a qual noacutes jaacute deveriacuteamos ter reconhecido como errada nos termos dos valores compartilhados que a lei encarna139

Dizer que a lei criminal proiacutebe por exemplo o estupro consiste em aceitar

que nossas razotildees para natildeo cometermos tal conduta satildeo independentes de sua

137 Ibidem p 32 138 DUFF Antony R Punishment communication and community New York Oxford 2001 p 51-52 Duff e Faria Costa convergem mutatis mutandis em respeito aos traccedilos comunitaacuterios que embasam suas respectivas teorias de puniccedilatildeo Em ambos os autores haacute esta ldquoaspiraccedilatildeordquo a valores comuns a autonomia e a liberdade sem os quais natildeo existira uma comunidade poliacutetica Mas digno de nota natildeo eacute exatamente a afinidade entre eles nem mesmo a acuidade de suas concepccedilotildees o importante eacute a rejeiccedilatildeo ao menos aparente com a noccedilatildeo de direito subjetivo dos indiviacuteduos a qual tomou conta do pensamento juriacutedico moderno Neles a sociedade humana eacute vista como algo natural mais ou menos nos termos da tradiccedilatildeo aristoteacutelica 139 DUFF Antony R op cit [n 135] p 33

57

perversidade preacute-legal Essas razotildees tecircm a ver ou com a autoridade da lei (os cidadatildeos

respeitam a lei porque reconhecem uma obrigaccedilatildeo de fazecirc-lo) ou com seu poder

(obedecem por causa do medo da sanccedilatildeo)140 Entretanto satildeo pouquiacutessimas as pessoas que

natildeo reconhecendo o caraacuteter nocivo do estupro deixam de cometecirc-lo por respeito agrave

autoridade da lei Em verdade aqueles que natildeo datildeo o devido valor agrave dignidade sexual se

forem deixar de cometer esse crime seraacute em razatildeo da ameaccedila de puniccedilatildeo Sejam quais

forem essas opccedilotildees o importante eacute a maneira como a lei deve se endereccedilar aos cidadatildeos

ldquoAja assim porque vocecirc tem uma obrigaccedilatildeo para com a leirdquo ou ldquoaja assim caso contraacuterio

vocecirc sofreraacute sanccedilotildeesrdquo natildeo eacute maneira como a nossa lei deve nos tratar indiviacuteduos

autocircnomos e responsaacuteveis membros da comunidade que somos141 Logo e nas linhas jaacute

desenvolvidas no exemplo da cerca eletrificada de Hampton percebe-se que o papel da lei

natildeo eacute apenas ou principalmente prevenir crimes mas lembrar os membros da comunidade -

se eacute que eles precisam lembrar - o porquecirc de aquela determinada conduta ser errada142

Por outro lado eacute justamente por termos valores definidores comuns mas

sermos relativos estranhos uns aos outros que a lei criminal tem limites estritos em relaccedilatildeo

ao seu alcance e sua profundidade Quanto ao alcance estabelece-se que soacute seratildeo

criminalizadas determinadas condutas ofensivas a terceiros e aquelas que ameaccedilam os

valores baacutesicos ou as condiccedilotildees miacutenimas de vida social assim os cidadatildeos podem buscar

suas proacuteprias e variadas concepccedilotildees do bem Quanto agrave profundidade cuja importacircncia para

o estudo eacute acentuada a lei criminal se preocuparaacute com accedilotildees as quais embora signifiquem

muito mais do que mero movimento corporal envolvem menos do que a personalidade

moral inteira da pessoa143 (ver p 91-94)

140 DUFF Antony R op cit [n 138] p 56-59 141 DUFF Antony R op cit [n 138] p 58 142 DUFF Antony R op cit [n 138] passim Poderatildeo objetar que o papel da lei como declaraccedilatildeo que deve nos recordar do caraacuteter errado dos crimes eacute verdadeiro apenas nos mala in se nos quais eacute evidente a perversidade preacute-legal o que natildeo aconteceria na maioria nos mala prohibita como por exemplo nos crimes contra o meio ambiente Contudo todos os crimes necessariamente contecircm desvalor eacutetico-social pois caso contraacuterio seriam outra coisa concernente ao direito civil ou administrativo Logo no segundo caso a lei criminal tambeacutem tem a funccedilatildeo de lembrar os cidadatildeos do caraacuteter errado de determinadas condutas embora aqui tenha que ser um pouco mais persuasiva De qualquer sorte o ponto eacute que a lei criminal por ser a nossa lei que incorpora os nossos valores natildeo seja obedecida simplesmente por sua autoridade ou forccedila mas porque os cidadatildeos veem suas demandas como justificadas 143 DUFF Antony R op cit [n 135] p 31-34

58

Igualmente a puniccedilatildeo tem seus limites que existem porque afinal como

membros da comunidade somos proacuteximos uns aos outros poreacutem natildeo tatildeo proacuteximos a ponto

de sermos considerados amigos ou parentes144 Queremos o bem para noacutes mesmos assim

como queremos ao outro entretanto resguardamos um nuacutecleo de intimidade onde cada

indiviacuteduo possa escolher o seu proacuteprio bem Em razatildeo dessa distacircncia adequada entre os

membros da comunidade a pessoa punida manteacutem sua autonomia ao natildeo querer ser

persuadida pela mensagem moral que a puniccedilatildeo tenta comunicar145 De outra banda no

reconhecimento do criminoso como o proacuteximo reconhece-se tambeacutem que a puniccedilatildeo natildeo

pode ser uma atividade de exclusatildeo cuja operaccedilatildeo eacute feita por ldquonoacutesrdquo os respeitadores da lei

contra ldquoelesrdquo os criminosos - entatildeo membros da comunidade os quais por terem cometido

um crime deram adeus aos seus direitos de pessoa

Mas afirmar que a puniccedilatildeo natildeo pode ser uma atividade de exclusatildeo soa

como hipocrisia porque notadamente a realidade eacute outra na qual a prisatildeo serve como

depoacutesito de miseraacuteveis Do mesmo modo tornou-se notoacuteria a poliacutetica excludente da

Califoacuternia onde em three strikes and yoursquore out trecircs crimes e vocecirc estaacute fora fora da

comunidade Contudo a ideia desenvolvida por Duff ao rejeitar o discurso de ldquonoacutesrdquo contra

ldquoelesrdquo e insistir que os criminosos mantecircm seu status de membros da comunidade eacute que a

puniccedilatildeo natildeo precisa nem deveria ser assim Ela pode ser dentro do limitado contexto do

sistema de justiccedila criminal uma resposta de inclusatildeo visando a engajar o ofensor em um

144 Admitir que somos relativamente estranhos representa por um lado um limite em profundidade agrave lei criminal e por outro o repuacutedio ao nosso discurso contra o deles conforme jaacute desenvolvido A consequecircncia disso eacute que a puniccedilatildeo como empreendimento de comunicaccedilatildeo moral deveria ser uma atividade de inclusatildeo Eacute possiacutevel e bastante frutiacutefera a analogia com a formulaccedilatildeo de Barzotto que viu na paraacutebola do bom samaritano e na regra de ouro a base para uma eacutetica da fraternidade O samaritano de acordo com o autor natildeo pergunta quem eacute seu proacuteximo ele simplesmente se aproxima e reconhece o outro enchendo-se de compaixatildeo e ldquocriando as condiccedilotildees para que ele possa assumir-se como fimrdquo Reconhecer o outro como pessoa eacute reconhecer sua dignidade e a atitude do samaritano ao aproximar-se do outro ldquoeacute de inclusatildeo e natildeo de exclusatildeo como a do legista cuja pergunta tem a finalidade de obter um criteacuterio de natildeo-reconhecimento de outremrdquo BARZOTTO Luiz Fernando Pessoa fraternidade e direito Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=13gt Acesso em 06 dez 2010 Ver LORENZO Wambert Gomes Pluralismo cultura e reconhecimento Disponiacutevel em lthttpwwwmaritaincombrindex2phpp=productMoreampiProduct=78gt Acesso em 06 dez 2010 145 DUFF Antony R Inclusion exclusion and the role of the criminal law Policy Futures in Education v 1 n 4 p 699-715 2003

59

processo de comunicaccedilatildeo moral146 Mas natildeo uma inclusatildeo conforme proposta pelas teorias

de puniccedilatildeo reformistas as quais buscavam transformar todo o ser moral do criminoso Ateacute

porque sendo a comunidade formada por indiviacuteduos natildeo tatildeo proacuteximos o Estado soacute pode

interferir de forma muito limitada no caraacuteter moral deles sob pena de restringir

ilegitimamente a autonomia e liberdade individual147 Buscam-se aqui e os exemplos jaacute

podem ser vistos em diversos lugares iniciativas como a pena de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade e aquelas tomadas pelos defensores da justiccedila restaurativa cujo foco eacute reparar

o dano e reconciliar os membros da comunidade148

Para sintetizar os argumentos de Duff aos dissensores justificando que de

certa forma todos estamos ligados em maior ou menor grau aos valores da comunidade a

qual pertencemos

Isso [a puniccedilatildeo] envolve um apelo para que eles reconheccedilam os outros como companheiros em uma comunidade que eles natildeo escolheram se afiliar mas na qual eles se encontram e envolve que eles aceitem como seus os valores desta comunidade - como valores dignos de sua aceitaccedilatildeo Tais apelos podem como qualquer apelo moral falhar Aqueles aos quais noacutes apelamos podem permanecer surdos ou natildeo persuadidos e noacutes natildeo podemos tentar fazecirc-los crer que satildeo irracionais por causa disso Noacutes devemos lamentar tal falha poreacutem isso natildeo torna ilegiacutetima ou injustificada nossa insistecircncia que eles devem ser persuadidos - que eles devem reconhecer esta sociedade e estes valores () Enquanto apelarmos ao entendimento moral deles sua imaginaccedilatildeo e sensibilidade enquanto natildeo usarmos meacutetodos ilegiacutetimos de enganaccedilatildeo manipulaccedilatildeo ou coerccedilatildeo para tentar persuadi-los enquanto noacutes deixarmos ao final para eles a escolha entre reconhecimento e aceitaccedilatildeo ou refutaccedilatildeo daquilo que noacutes os instigamos noacutes natildeo estamos tentando indevidamente impor nada sobre eles Ao reveacutes noacutes estamos nos endereccedilando a eles - como deveriacuteamos - como agentes morais responsaacuteveis buscando atraveacutes de meios apropriados a persuasatildeo deles para o que entendemos ser verdadeiro149

146 Ibidem p 711 147 Conforme visto em Feinberg e Hampton Aleacutem disso na teoria de Duff a puniccedilatildeo natildeo eacute orientada em busca da educaccedilatildeo do indiviacuteduo Nela pretende-se engajar o criminoso em um processo moral de comunicaccedilatildeo possibilitando se ele escolher escutar a mensagem que estaacute sendo passada o arrependimento a reconciliaccedilatildeo e a reforma 148 Alguns resultados obtidos na praacutetica pela Justiccedila Restaurativa no Rio Grande do Sul podem ser vistos emlthttpwwwjustica21orgbrinternophpativo=BIBLIOTECAampsub_ativo=PRgt Acesso em 06 dez 2010 149 DUFF Antony R op cit [n 138] p 71

60

Enfim deve-se entender que existem valores que nos unem simplesmente

por sermos ldquoo proacuteximordquo uns dos outros Se o indiviacuteduo natildeo simpatiza com outro natildeo

percebe suas necessidades e natildeo enxerga o sofrimento que seu crime causou devemos

tentar fazecirc-lo reconhecer e aceitar as demandas morais que nos impotildeem os valores

decorrentes de sermos todos pessoas ndash como ldquoum samaritano que ia de viagem chegou

ao peacute dele e vendo-o moveu-se de iacutentima compaixatildeordquo (Lucas 1025-37) E a compreensatildeo do

indiviacuteduo na comunidade ao inveacutes de apartado ou subordinado a ela nos termos da

tradiccedilatildeo claacutessica do pensamento juriacutedico facilita o desvendar da alquimia moral de que fala

Hart entre culpa merecimento e castigo porque ldquoo lsquodireitorsquo assim pensado () natildeo

comporta ao indiviacuteduo apenas um ativo vantagens meu direito o que deve corresponder a

mim o que mereccedilo pessoalmente pode tambeacutem ser uma puniccedilatildeordquo150

Por derradeiro um uacuteltimo toacutepico deve ser abordado Como visto a puniccedilatildeo

em uma comunidade assim entendida eacute atividade inclusionaacuteria porque visa a engajar o

criminoso membro que violou valores supostamente seus em um processo de comunicaccedilatildeo

moral mediante o qual ele pode reparar a ofensa e reconciliar-se com seus companheiros

cidadatildeos fortalecendo-se portanto os laccedilos da comunidade danificados por seu crime Mas

cabe perguntar seraacute que existem crimes tatildeo graves tatildeo hediondos que sua proacutepria

natureza torna a exclusatildeo legiacutetima e ateacute mesmo necessaacuteria A questatildeo eacute se existem limites

para a comunidade se haacute um tal ponto a partir do qual o ofensor natildeo pode mais ser tratado

como membro integral dela151

Trecircs exemplos de ofensas que violam tatildeo profundamente os valores

comunitaacuterios tornando impossiacutevel a continuaccedilatildeo ou a restauraccedilatildeo do criminoso na vida em

comum suscitam a indagaccedilatildeo acima (I) crimes singulares extremamente crueacuteis (II) diversos

crimes graves cometidos pelo mesmo ofensor persistente e perigoso ldquocriminoso de

carreirardquo (III) ataques terroristas152

150 VILLEY Michel op cit [n 133] p 691 151 DUFF Antony R Penance punishment and the limits of community Punishment and Society v 5 n 3 p 295-312 2003 152 Ibidem p 306

61

Quanto ao primeiro Duff afirma que ldquonatildeordquo Com crimes horrendos haacute

espaccedilo para a duacutevida sobre a proacutepria responsabilidade do indiviacuteduo e sua sanidade poreacutem

se ele eacute responsaacutevel devemos trataacute-lo como tal possibilitando uma chance mediante a

puniccedilatildeo para o arrependimento Em relaccedilatildeo aos ldquocriminosos de carreirardquo embora o autor

queira dar uma resposta negativa ele acha difiacutecil fazecirc-lo pois natildeo consegue honestamente

admitir que a condiccedilatildeo de membro da comunidade eacute absoluta e irrevogaacutevel - de que nada

nem mesmo a persistecircncia do indiviacuteduo em violar os nossos valores mais caros seja capaz

de destruir os laccedilos comunitaacuterios153 Por fim a questatildeo sobre terroristas envolve tantos

conceitos como a lei criminal internacional e a teoria da guerra justa a que Duff natildeo

consegue dar uma resposta adequada No entanto ele pergunta ldquose podemos encontrar

dentro de uma visatildeo secular de mundo os meios natildeo apenas para entender mas para fazer

nosso esse respeito incondicional pela humanidade de todo e qualquer ser humano seja o

que for que ele tenha feitordquo154 Percebe-se para dizer menos que eacute bastante complicado

determinar a extensatildeo da comunidade

Nota-se em razatildeo do explicado acima sobretudo ao pensar-se nos

criminosos perigosos e persistentes que a puniccedilatildeo deveria ter uma natureza preventiva

afinal o proacuteprio direito penal parece desenhado desta maneira ameaccedilas de castigo para

evitar as condutas descritas nos tipos penais Sendo assim o discurso de Duff sobre a

comunidade e o respeito aos agentes morais responsaacuteveis soaria um tanto pueril ainda mais

se considerarmos que se o fundamento da puniccedilatildeo eacute a comunicaccedilatildeo moral tal mensagem

poderia ser transmitida em termos puramente simboacutelicos ou formais O ponto eacute

importantiacutessimo e pode tambeacutem ser desenvolvido com base na seguinte pergunta por que

os culpados merecem sofrer155

153 Ibidem p 307-308 154 Ibidem p 309 155 Se ainda natildeo ficou claro repita-se a pergunta mais adequada natildeo eacute ldquopor que punirrdquo mas ldquoo que fazer com aquele que cometeu um crimerdquo ou melhor se vamos retribuir alguma coisa ldquopor que retribuir puniccedilatildeordquo Naquela primeira pergunta assumimos de antematildeo (jaacute sabemos) que a resposta adequada ao crime deve ser uma punitiva que envolve sofrimento tratamento severo privaccedilatildeo material Enquanto na segunda e na terceira buscamos a razatildeo mesma de impor uma resposta ao crime que envolva tudo disso (estamos procurando saber) Ademais tambeacutem natildeo podemos nos contentar com a resposta ldquoporque o criminoso merece sofrerrdquo ao reveacutes devemos indagar ldquopor que o criminoso merece sofrerrdquo e mais precisamente ldquoo que o criminoso merece sofrerrdquo Nesse sentido ver BURGH Richard W Do the guilty deserve punishment The Journal of Philosophy v 79

62

32 CENSURA E ldquoTRATAMENTO SEVEROrdquo (HARD TREATMENT)

Aqueles que veem na puniccedilatildeo um empreendimento de expressatildeo ou de

comunicaccedilatildeo devem justificar a razatildeo pela qual essa funccedilatildeo envolve ldquotratamento severo

privaccedilatildeo material sofrimentordquo (hard treatment)156 Isso porque censura reprovaccedilatildeo ou

qualquer outra mensagem contida na puniccedilatildeo podem ser em tese transmitidas por meios

puramente simboacutelicos ou formais Antes de essa questatildeo essencial ser analisada eacute

necessaacuterio dar um primeiro passo mostrar que a puniccedilatildeo efetivamente possui tal caraacuteter de

censura por um comportamento errado e por consequecircncia de reafirmaccedilatildeo dos valores e

condutas corretos

A qualidade expressiva da puniccedilatildeo natildeo eacute novidade alguns socioacutelogos

como Durkheim157 jaacute teorizaram a respeito do aspecto simboacutelico e comunicativo de

cerimocircnias penais E no quanto importa ao estudo essa faceta jaacute foi esboccedilada na teoria de

Hampton (ver p 44-47) pois as condutas que satildeo consideradas crimes natildeo o satildeo

simplesmente porque queremos evitar um comportamento uma vez que isso pode ser

buscado pelo direito civil ou administrativo Um furto por exemplo pode prejudicar uma

pessoa tanto quanto ser vencido em uma concorrecircncia comercial Contudo apenas o furto eacute

crime porque ele expressa desrespeito pelo direito da viacutetima agrave propriedade enquanto a

concorrecircncia comercial em regra natildeo tem esse significado158 Eacute dizer nas palavras de von

n 4 p 193-210 apr 1982 AacuteRDAL Paacutell S Does anyone ever deserve to suffer In DUFF Antony R (org) Punishment Dartmouth Darmouth 1993 p 85-101 HUSAK Douglas Why punish the deserving Noucircs v 26 n 4 p 447-464 dec 1992 156 O termo hard treatment foi cunhado por Feinberg em oposiccedilatildeo a censure Ateacute hoje essas categorias satildeo trabalhadas quando se fala em teorias comunicativas da puniccedilatildeo Neste estudo natildeo haacute distinccedilatildeo entre as trecircs expressotildees utilizadas para traduzir hard treatment todas tecircm o mesmo sentido Sofrimento foi a palavra utilizada na traduccedilatildeo espanhol do livro de von Hirsch Privaccedilatildeo material eacute o termo anaacutelogo usado por alguns autores para falar do hard treatment Por fim tratamento severo eacute a traduccedilatildeo literal 157 No contexto da educaccedilatildeo infantil Durkheim explicou que ldquoa puniccedilatildeo eacute apenas o siacutembolo palpaacutevel atraveacutes da qual um estado interno eacute representado eacute um apontamento uma linguagem atraveacutes da qual ou a consciecircncia geral social ou o professor escolar expressa o sentimento inspirado pelo comportamento desaprovadordquo DURKHEIM Emilie Moral Education New York Free Press of Glencoe 1961 p 176 158 KAHAN Dan M What do alternative sanctions means University of Chicago Law Review n 63 p 591-653 Em resumo a autora explicou com esse exemplo que o objeto do direito penal natildeo estaacute

63

Hirsch que ldquonem todas as condutas que aparecem ao Estado como dignas de desencorajar

satildeo assunto apropriado para puniccedilatildeo Para criminalizar uma conduta deve ser mostrado que

o comportamento de certa forma eacute repreensiacutevelrdquo159

Haacute contudo uma maneira mais faacutecil para demonstrar a funccedilatildeo expressiva

da puniccedilatildeo distinguindo-a de meras penalidades Decerto que existem vaacuterias semelhanccedilas

entre uma puniccedilatildeo e por exemplo uma multa por estacionar no lugar errado Ambas satildeo

privaccedilotildees autoritaacuterias decorrentes de uma falha visando sobretudo a evitar que um

determinado comportamento ocorra Mas a puniccedilatildeo tem um significado simboacutelico

especiacutefico ldquoela eacute um dispositivo convencional para a expressatildeo de atitudes de

ressentimento e indignaccedilatildeo e de julgamentos de desaprovaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo por parte ou

da proacutepria autoridade punitiva ou daqueles lsquoem cujo nomersquo a puniccedilatildeo eacute impostardquo160

Ademais prossegue Feinberg a puniccedilatildeo possui quatro funcotildees especiacuteficas

negligenciadas no debate tradicional entre teorias retributivas e preventivas (I) ldquorepuacutedio

autoritaacuteriordquo (authoritative disavowal) em que o Estado quando impotildee uma puniccedilatildeo

demonstra que reconhece os direitos da viacutetima e portanto demonstra que reconhece a

iniquidade da conduta do ofensor (II) ldquonatildeo-aquiecircsciencia simboacutelicardquo (symbolic

nonacquiescence) eacute a lei falando em nome do povo cuja demanda por puniccedilatildeo representa o

sentimento de que os criminosos merecem ser condenados (III) ldquovindicaccedilatildeo da leirdquo

(vindication of the law) significa que a lei natildeo seria levada a seacuterio se natildeo fosse

enfaticamente reafirmada ou seja se aqueles que a violassem natildeo fossem punidos (IV)

ldquoabsolviccedilatildeo de terceirosrdquo (absolution of others) ocorre porque quando algum ou alguns

indiviacuteduos satildeo punidos por determinado crime todos os outros satildeo liberados de suspeita e

informalmente absolvidos desse mesmo crime161

necessariamente no interesse prejudicado da pessoa o patrimocircnio nem mesma na intensidade que esse interesse foi prejudicado uma vez que resultados idecircnticos foram ocasionados por condutas distintas - uma crime e a outra natildeo E o elemento que torna o furto crime eacute a injusticcedila de tomar o patrimocircnio da viacutetima o que denota um descaso para com os direitos dela Haacute uma semelhanccedila em tal problemaacutetica com as discussotildees sobre a diferenccedila entre o crime e o iliacutecito administrativo 159 VON HIRSCH Andrew Past or futures crimes deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals Manchester Manchester 1985 p 56 160 FEINBERG JOEL The expressive function of punishment In DUFF Antony R GARLAND David (Comp) A reader on punishment New York Oxford 1994 p 74 161 Ibidem p 77-80

64

Mas da asserccedilatildeo de diversas funccedilotildees simboacutelicas natildeo se retira o modo pelo

qual elas devem ser transmitidas Afinal segundo o autor a puniccedilatildeo eacute um dispositivo

convencional como ldquoo champagne eacute a bebida alcooacutelica usada em grandes eventos ou como

o preto eacute a cor do lutordquo162 Logo a sociedade poderia convencionar qualquer outro

mecanismo como um ritual puacuteblico elaborado que preservaria a funccedilatildeo condenatoacuteria da

puniccedilatildeo no entanto dispensaria o tratamento severo atualmente utilizado ldquonatildeo poderia o

trabalho ser feito de forma mais ecomocircmica natildeo haacute uma maneira de estigmatizar sem

inflingir qualquer dor adicional (e sem sentido) ao corpo agrave famiacutelia agrave capacidade

criativardquo163 Conforme visto anteriormente ele natildeo consegue entender a ligaccedilatildeo entre a

dor o sofrimento e qualquer mensagem moral que se pretende passar mediante a puniccedilatildeo

A questatildeo entatildeo permanece sem resposta por que a censura deve ser

transmitida mediante o sofrimento Ora sentimentos podem ser expressos ou comunicados

de vaacuterias maneiras ldquoum rosto ruborizado expressa raiva assim como um ataque a um lsquoalvo

naturalrsquo O primeiro natildeo desafoga a raiva No entanto os dois demonstram como a pessoa

senterdquo164 Pode-se fazer doravante uma distinccedilatildeo entre ldquoexpressionismo extriacutensecordquo e

ldquoexpressionismo intriacutensecordquo No primeiro a condenaccedilatildeo expressa pela puniccedilatildeo eacute

meramente um meio necessaacuterio para atingir determinado fim Sendo assim poderiacuteamos natildeo

condenar um crime ou melhor poderiacuteamos ateacute louvaacute-lo se com isso atingiacutessemos tal

finalidade No segundo por outro lado a puniccedilatildeo eacute o meio intrinsicamente correto e

adequado para expressar a condenaccedilatildeo que o crime merece165

Contudo antes de prosseguir ressalta-se que a distinccedilatildeo acima foi feita

somente para facilitar a anaacutelise do objeto Natildeo se pretende olhar o modo da puniccedilatildeo por

exemplo o encarceramento como simples veiacuteculo de proclamadas intenccedilotildees - retributivas

preventivas ou da expressatildeo da condenccedilatildeo pela comunidade - sem perguntar a questatildeo

162 Ibidem p 76 163 Ibidem p 87 164 SKILLEN A J How to say things with walls Philosophy n 55 p 509-523 1980 165 PRIMORATZ Igor Punishment as language In DUFF Antony R (org) Punishment Aldershot Dartmouth 1993 p 55-74 Ibidem p 306

65

mesma sobre a ldquofilosofiardquo da instituiccedilatildeo Pode ser que o meio possua sua proacutepria

mensagem166

321 Explicaccedilatildeo de von Hirsch (expressionismo extriacutenseco)

No livro Doing Justice do ano de 1976 von Hirsch questiona se a ameaccedila e

a imposiccedilatildeo de pena eacute suficiente para justificarmos um sistema de sanccedilatildeo criminal como o

conhecemos se a puniccedilatildeo ou melhor este efeito preventivo geral negativo tem o condatildeo

de diminuir ao menos um pouco a criminalidade A conclusatildeo nem um pouco diferente

daquilo que os criminologistas jaacute advertiam eacute que a puniccedilatildeo em alguns crimes e para

algumas pessoas tem um miacutenimo de efeito dissuasoacuterio ldquose a proibiccedilatildeo natildeo fosse apoiada

pela sanccedilatildeo violaccedilotildees seriam lugar-comumrdquo167 Assumindo-se que a puniccedilatildeo tem esse

miacutenimo efeito preventivo percebe-se facilmente porque a prevenccedilatildeo ajuda a justificar a

existecircncia de sanccedilotildees criminais Mas seraacute isso uma razatildeo suficiente168

A resposta eacute natildeo Decerto que a base loacutegica para a criaccedilatildeo de proibiccedilotildees

legais eacute orientada ao futuro entretanto ocorrido o crime seria a prevenccedilatildeo de subsquentes

violaccedilotildees a uacutenica razatildeo para punir o criminoso Natildeo haveria por acaso neste momento

uma justificaccedilatildeo retrospectiva para a puniccedilatildeo Segundo ele na linha posteriormente

desenvolvida por Murphy e tantos outros embora a prevenccedilatildeo explique por que a puniccedilatildeo eacute

socialmente uacutetil o merecimento eacute necessaacuterio para explicar a razatildeo pela qual eacute justo impor o

sofrimento a um criminoso169 Eacute com o sofrimento portanto que o indiviacuteduo eacute tolhido da

166 SKILLEN A J op cit [n 164] 167 VON HIRSCH Andrew Doing justice the choice of punishments New York Hill and Wang 1976 p 44 O livro eacute fruto do trabalho de quatro anos do Comitecirc pelo Estudo do Encarceramento Sua importacircncia histoacuterica eacute notaacutevel pois com base nele ressurgiram as teorias retributivas ante o quadro de descontentamento com os efeitos da prisatildeo e o pensamento dominante da eacutepoca de que as sentenccedilas deveriam servir para reabilitar o ofensor ou isolaacute-lo da sociedade caso fosse perigoso No livro o conceito de ldquomerecimentordquo (desert) foi recuperado e com isso chegou-se agrave conclusatildeo muito diferente do pensamento da eacutepoca que fazer menos seria a forma de ldquofazer justiccedilardquo diminuir a severidade das penas utilizar menos a prisatildeo etc 168 Ibidem p 36-44 169 Ibidem p 51

66

vantagem indevida produto de seu crime restaurando-se assim a balanccedila de benefiacutecios e

encargos

O autor todavia abandonou essa loacutegica radicada parcialmente na teoria de

puniccedilatildeo como equidade Em 1985 no livro Past or Future Crimes ele sugere uma explicaccedilatildeo

dual de castigo A puniccedilatildeo merecida pelo indiviacuteduo tem a funccedilatildeo de censuraacute-lo pela conduta

errada entretanto o sofrimento em uacuteltima anaacutelise eacute garantido por razotildees preventivas para

desencorajar ofensas ldquose a puniccedilatildeo natildeo tivesse valor preventivo o sofrimento que ela

inflige seria injustificadordquo170 Mas essa racionalidade argumenta von Hirsch estava em

conflito Se a pessoa agente moral responsaacutevel natildeo eacute sensiacutevel ao chamamento moral

deveriacuteamos trataacute-la com ameaccedilas como se fosse um tigre a ser condicionado em razatildeo do

medo de consequecircncias desagradaacuteveis171 Natildeo eacute bem assim natildeo eacute que inicialmente

comeccedilamos com o apelo moral da lei poreacutem acabamos deixando-o de lado para falar na

linguagem de ameaccedilas Argumenta o autor

A funccedilatildeo preventiva da sanccedilatildeo consiste penso em fornecer razotildees prudenciais razotildees que estatildeo vinculadas e complementam as razotildees normativas expressadas na censura penal O direito penal mediante a censura impliacutecita em suas sanccedilotildees expressa que a conduta estaacute mal e com isso fornece ao agente razotildees morais para desistir De todos os meios (dada a falibilidade humana) ele pode sentir-se tentado O que o desincentivo prudencial pode fazer eacute fornecer-lhe uma razatildeo adicional - a prudecircncia - para resistir agrave tentaccedilatildeo Com efeito um agente que jaacute aceitou a mensagem de que natildeo deveria ofender e que reconhece a possibilidade deveria favorecer a existecircncia deste desincentivo prudencial como maneira de ajudar-lhe a comportar-se de uma forma que ele mesmo entende correta172

A explicaccedilatildeo dada por von Hirsch segue a linha de Feinberg Para eles

entre a mensagem moral que a puniccedilatildeo pretende comunicar e o sofrimento imposto natildeo haacute

170 VON HIRSCH Andrew op cit [n 159] p 54 Ele ressalta que em sua visatildeo a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo natildeo eacute justificada unicamente em busca de benefiacutecios sociais Eacute o elemento de censura e reprovaccedilatildeo intriacutenseco na natureza mesma da puniccedilatildeo que justifica sua distribuiccedilatildeo aos que merecem Os argumentos consequencialistas satildeo explicados em parte porque a ameaccedila e a aplicaccedilatildeo de puniccedilatildeo ao cabo conseguem prevenir um ou outro crime Caso contraacuterio poderiacuteamos abolir a instituiccedilatildeo da puniccedilatildeo reduzindo-se assim o sofrimento que ela impotildee Poderiacuteamos ter entatildeo um sistema puramente simboacutelico ou formal para condenar a conduta errada do criminoso 171 VON HIRSCH Andrew Censurar y castigar Madrid Trotta 1998 p 34-41 172 Ibidem p 41

67

uma ligaccedilatildeo natural Embora o segundo ao final natildeo justifique a imposiccedilatildeo do sofrimento

ele admite que a puniccedilatildeo eacute apenas um siacutembolo convencional e como tal poderia ser

subsituiacutedo E o primeiro nessa mesma linha afirma que seria possiacutevel expressar o

sentimento de indignaccedilatildeo e censura de outra forma caso a privaccedilatildeo material natildeo tivesse

nenhum efeito preventivo Justamente por isso que essas linhas de pensamento satildeo

denominadas de expressionismo extriacutenseco

322 Como falar com as paredes (expressionismo intriacutenseco)

Pode ser argumentado e eacute exatamente isso que fazem os teoacutericos do

chamado expressionismo intriacutenseco que a puniccedilatildeo natildeo eacute apenas um siacutembolo uma

convencionalidade para expressar as atitudes de ressentimento e indignaccedilatildeo que o crime

desperta Ou seja nossos sentimentos teriam uma maneira proacutepria de serem expressos

Skillen expotildee em resposta agrave Feinberg que

A relaccedilatildeo entre o assim chamado ldquosiacutembolordquo e a atitude expressada eacute por mais que muitos faccedilam esta abordagem dificilmente apenas convencional () Ao passo que o preto eacute indiscutivelmente neutro em si mesmo e soacute contextualmente e convencionalmente constituiacutedo como traje de luto () eacute bastante claro que perder dinheiro anos de liberdade ou partes do corpo eacute dificilmente neutro nesse sentido Isso sugere uma radical inadequaccedilatildeo na descriccedilatildeo de Feinberg Feinberg vastamente subestima a adequaccedilatildeo natural natildeo arbitraacuteria de algumas formas de sofrimento como expressatildeo ou comunicaccedilatildeo das atitudes moraliacutesticas e punitivas Tais praacuteticas incorporam hostilidade punitiva elas natildeo apenas as ldquosimbolizamrdquo173

Todavia mesmo que a ligaccedilatildeo entre crime e puniccedilatildeo dificilmente seja

arbitraacuteria ou convencional por que natildeo insisitir em expressar censura por meios puramente

formais Natildeo poderiacuteamos encontrar uma maneira que embora natildeo tatildeo apropriada ou

natural ainda assim pudesse transmitir a mensagem A resposta disse Primoratz eacute que

criminosos satildeo surdos a meras palavras eles natildeo se importam com padrotildees da sociedade

natildeo tecircm respeito com os outros e satildeo deficientes em simpatia humana caso contraacuterio natildeo

173 SKILLEN A J op cit [n 164] p 517

68

cometeriam crimes Mas eles satildeo dotados de uma viacutevida apreciaccedilatildeo de seus proacuteprios

interesses assim como todo mundo Entatildeo a condenaccedilatildeo soacute iraacute alcanccedilaacute-los e eles soacute iratildeo

entender como a accedilatildeo deles eacute errada ldquose a mensagem for traduzida para a uacutenica linguagem

que eles certamente entenderatildeo a linguagem do interesse proacutepriordquo174

Ademais a mensagem que a puniccedilatildeo pretende comunicar natildeo eacute

endereccedilada apenas aos criminosos ela tambeacutem alcanccedila a viacutetima e toda a comunidade cujos

valores foram violados (afinal os crimes satildeo puacuteblicos) Uma condenaccedilatildeo meramente

simboacutelica por mais puacuteblica e elaborada que fosse natildeo seria convincente Haveria uma

severa desproporcionalidade se as sanccedilotildees que seguem as violaccedilotildees dos nossos interesses

mais caros (vida dignidade sexual e propriedade) fossem comunicadas soacute verbalmente Ateacute

porque em regra os crimes tecircm resultados bastante palpaacuteveis Natildeo se poderia mostrar que

uma conduta eacute crime se sua resposta a puniccedilatildeo guardasse tamanha disparidade com a accedilatildeo

proibida175

Mas daiacute ndash poderatildeo objetar ndash a expressatildeo natural da censura ao homicida

seria o homiciacutedio ao estuprador o estupro ao ladratildeo que suas posses fossem tomadas Soacute

assim mostrariacuteamos o porquecirc de essas condutas serem crimes soacute assim a lei seria levada a

seacuterio No entanto tal linha de raciociacutenio eacute apressada Isso porque a puniccedilatildeo na narrativa

aqui desenvolvida incorpora os valores de comunidade e portanto uma comunicaccedilatildeo assim

entendida contrariaria a proacutepria mensagem transmitida ldquolsquo(Bang) Natildeo bata em crianccedilas

menores que vocecircrsquo lsquoExecute-o Noacutes devemos mostrar o valor que damos agrave vida

humanarsquordquo176 Em verdade a insistecircncia de que o modo da puniccedilatildeo possui uma mensagem

proacutepria nos daacute argumentos explorados atualmente pela justiccedila restaurativa para justificar

penas alternativas Natildeo precisaria ser empiricamente demonstrado por exemplo que a

prestaccedilatildeo de servicos agrave comunidade traraacute maiores efeitos preventivos do que a pena de

prisatildeo nos casos de crimes menos graves Ao inveacutes poderiacuteamos simplesmente expor que ela

eacute adequada para incorporar e comunicar nossos valores comunitaacuterios para mostrar ao

ofensor seu erro para reconciliaacute-lo com a viacutetima mediante a reparaccedilatildeo do dano causado

174 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 67 175 PRIMORATZ Igor op cit [n 165] p 68 176 SKILLEN A J op cit [n 164] p 521

69

Para tornar isso mais claro traz-se a explicaccedilatildeo de Kahan sobre as razotildees

histoacuterico-sociais que fizeram a puniccedilatildeo corporal ser trocada pelo encarceramento nos

Estados Unidos Segundo a autora isso natildeo aconteceu porque as pessoas comeccedilaram a

achar que chicotadas e choques eram muito custosos ou ineficientes Ocorreu que a puniccedilatildeo

dessa forma comunicava a mensagem errada sobre a relaccedilatildeo entre cidadatildeos livres e iguais

com seu paiacutes uma vez que os supliacutecios corporais estavam ligados agrave maneira como os

senhores tratavam seus escravos - hierarquia social a partir de entatildeo repudiada Com efeito

havia ateacute uma superposiccedilatildeo entre os movimentos pela aboliccedilatildeo da escravatura eliminaccedilatildeo

dos castigos corporais e a instituiccedilatildeo de penitenciaacuterias177 Agrave eacutepoca as pessoas viam a

privaccedilatildeo da liberdade como um meio natural de disciplinar uma ordem social igualitaacuteria ldquoo

encarceramento expressava o que os cidadatildeos de uma repuacuteblica compartilhavam - sua

liberdade - ao inveacutes daquilo que separa o que pune e o que eacute punidordquo178 Por outro lado

multas natildeo satildeo preferidas em detrimento do encarceramento pela mesma razatildeo elas

falham em comunicar a condenaccedilatildeo moral ao criminoso As multas natildeo possuem o apelo

universal que a perda de liberdade tem pois significam uma coisa para o rico e outra para o

pobre Ademais e principalmente elas mais se parecem com uma taxa para realizar a

conduta do que propriamente uma condenaccedilatildeo ateacute um observador casual fica enfurecido

quando os criminosos compram seu ticket de saiacuteda das consequecircncias de seu crime ou

quando no contexto da criminalidade econocircmica a puniccedilatildeo eacute vista simplesmente como um

preccedilo para fazer negoacutecios179

De qualquer sorte devemos indagar sobre o que estamos comunicando

como estamos comunicando quem eacute o remetente e quem eacute o destinataacuterio da mensagem A

questatildeo natildeo eacute se a puniccedilatildeo previne eficazmente ou retribui proporcionalmente o essencial

eacute saber se o sofrimento que impomos incorpora e comunica nossos valores ldquose levarmos a

lsquoexpressividadersquo a seacuterio entatildeo teremos que perguntar como os valores satildeo expressados E

isso nos leva ao pensamento de que o meio pelo qual os valores proclamados satildeo

177 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 607 et seq 178 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 613 179 KAHAN Dan M op cit [n 158] p 617 et seq

70

expressados incluindo aiacute a maneira como os ofensores satildeo tratados exibe algo profundo

sobre os valores que realmente estatildeo em jogordquo180

323 Recapitulando

Antes de prosseguir eacute preciso recapitular Explicou-se acima que a

puniccedilatildeo em uma comunidade ideal cujos valores satildeo compartilhados transmite uma

mensagem para criminosos e viacutetimas bem como para todos os membros comunitaacuterios Para

aqueles comunica-se censura condenaccedilatildeo reprovaccedilatildeo do comportamento tomado

responsabilizando-os pela ofensa causada Para as viacutetimas e para a comunidade como um

todo (inclusive o criminoso) comunica-se que os valores violados realmente importam que

o Estado ldquofala seacuteriordquo quando criminaliza e prevecirc puniccedilatildeo para algumas condutas Eacute dizer a

puniccedilatildeo natildeo eacute um ato desprovido de sentido pois ela expressa como mostrou Feinberg o

repuacutedio autoritaacuterio a absolviccedilatildeo de terceiros a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica e a vindicaccedilatildeo da

lei

Mas entatildeo surgiu um problema por que tais funccedilotildees satildeo satisfeitas apenas

impondo privaccedilatildeo material aos criminosos Natildeo poderia o processo penal acabar na

sentenccedila condenatoacuteria Natildeo poderiam todas essas funccedilotildees que caracterizam a puniccedilatildeo

serem comunicadas apenas verbalmente

Com base nessas indagaccedilotildees duas respostas foram dadas Na primeira

denominada expressionismo extriacutenseco explicou-se que acabamos impondo sofrimento aos

criminosos porque esse eacute siacutembolo que convencionamos utilizar para comunicar censura

pelas mais variadas razotildees sendo uma dessas razotildees conforme argumentou von Hirsch o

efeito preventivo que a privaccedilatildeo material possui Nessa narrativa percebe-se claramente

que os elementos satildeo distintos (censura e privaccedilatildeo material) e a ligaccedilatildeo entre eles eacute externa

(prevenccedilatildeo) Natildeo tivesse o sofrimento efeitos preventivos caso pudeacutessemos encontrar um

180 SKILLEN A J op cit [n 164] p 522

71

meio mais eficaz para comunicar censura - um que natildeo envolvesse privaccedilatildeo material -

poderiacuteamos ateacute mesmo sustentar a aboliccedilatildeo da justiccedila criminal como a conhecemos

A segunda resposta implica necessariamente a extinccedilatildeo do problema

como ele foi desenvolvido Censura e privaccedilatildeo material natildeo satildeo elementos separados

ligados por uma razatildeo externa trata-se apenas de uma gradaccedilatildeo na maneira pela qual

dizemos que uma conduta eacute errada Por exemplo imaginemos que uma crianccedila cometeu

uma travessura O pai dela pode dizer com um semblante seacuterio algumas palavras sobre

como aquela accedilatildeo estaacute mal bem como pode colocaacute-la de castigo trancada no quarto Se

esse genitor escolhe o castigo mais severo porque acredita ser o meio correto para refletir a

gravidade da travessura de seu filho entatildeo natildeo haacute distinccedilatildeo entre os elementos tanto falar

como colocar de castigo satildeo formas intrinsecamente adequadas para trasmitir a mensagem

Ou seja para justificar a privaccedilatildeo material natildeo eacute necessaacuterio apelar para um elemento

externo (o efeito preventivo) Nesse quadro John Tasioulas fez uma importante observaccedilatildeo

Ateacute censura puramente formal constitui tratamento severo pois se espera que condenaccedilatildeo seja experimentada como algo que natildeo eacute bem-vindo um ldquobringing up shortrdquo do ofensor um chamar atenccedilatildeo para e uma denunciaccedilatildeo de seu iliacutecito moral () Entatildeo natildeo eacute que devemos negociar um enorme golfo entre a justificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo formal e justificaccedilatildeo do tratamento severo Ao inveacutes a questatildeo precisa ser reformulada porque deve a censura tomar a forma de condenaccedilatildeo que envolve tratamento severo para aleacutem e acima o tratamento severo jaacute propiciado pelos meios mais lenientes de comunicar censura181

Com a pergunta refinada pode-se ateacute mesmo descartar os termos

anteriormente utilizados censura oposta ao sofrimento privaccedilatildeo material tratamento

severo expressionismo extriacutenseco ou intriacutenseco Agora toda a problemaacutetica seraacute

desenvolvida novamente - acredita-se que sem nenhum prejuiacutezo - pois esse eacute o ponto

central para entender a puniccedilatildeo como processo comunicativo Soacute que neste momento

comeccedila-se pouco mais a fundo qual eacute a resposta moralmente adequada ao crime Sabe-se

que geralmente natildeo nos colocamos tal indagaccedilatildeo uma vez que nos parece institivamente

correto condenar aquele que cometeu um crime Contudo esse eacute um importante ponto de

partida pelas razotildees que seguiratildeo

181 TASIOULAS John Punishment and repetance Philosophy n 81 p 279-322 2006 p 295-296

72

324 ldquoPrejuiacutezos errosrdquo (harms and wrongs) e a censura

A puniccedilatildeo eacute feita para ser algo que natildeo eacute bem-vindo que deveria ser

evitado algo que a pessoa natildeo iria fazer se tivesse a oportunidade de escolher Seria

absurdo impor algo como puniccedilatildeo que a pessoa faria de qualquer forma182 Mas nem todas

as coisas desagradaacuteveis que recaem sobre as pessoas constituem uma puniccedilatildeo Pensemos

em um desastre natural ou um acidente Entatildeo para ser puniccedilatildeo ela deve ser imposta

intencionalmente Aleacutem disso a puniccedilatildeo deve ser imposta por algo que foi feito o traccedilo

distintivo eacute que quando for perguntado ldquoPor quecircrdquo a resposta necessariamente deve

comeccedilar com ldquoPorque vocecirc fez issordquo183 E o que foi feito deve ser algo ldquoerradordquo (wrong)

legalmente ou moralmente ldquoa natildeo ser que quem esteja me punindo esteja preparado para

dizer que estaacute me punindo por algo que eacute - em certo sentido - errado ele eacute tatildeo incoerente

quanto se estivesse me dizendo que estaacute me punindo por nadardquo184

O ponto central dessa narrativa desenvolvida por Lucas eacute que soacute podemos

ser punidos por algo que eacute errado Mas ainda natildeo se estaacute dizendo com isso que para ser

crime a conduta deve ser ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) Aqui o importante eacute saber

que para ser assunto da lei criminal de alguma maneira a conduta deveria ser vista como

errada indepedente da fonte seja legal ou moral Conforme desenvolvido algures em uma

comunidade cujos valores satildeo compartilhados os membros deveriam respeitar a lei mesmo

nos crimes mala prohibita porque entendem como justificadas suas demandas ndash o respeito

natildeo deveria advir pelo medo da ameaccedila da sanccedilatildeo ou da autoridade da lei mas porque

afinal entendemos que um argumento vaacutelido foi levantado para que determinada conduta

seja considerada errada e portanto criminosa

182 LUCAS J R Or else Proceedings of the Aristotelian Society v 69 p 207-222 1968-1969 p 208 183 Ibidem p 210 184 Ibidem p 211

73

Para tornar mais simples o toacutepico anterior seraacute traccedilado uma breve

explicaccedilatildeo de Feinberg O autor explica que a palavra harm (ldquoprejuiacutezordquo) eacute ambiacutegua e possui

diversos significados trecircs deles satildeo importantes185 O primeiro sentido eacute derivativo ou

extenso o qual eacute mencionado apenas para ser descartado Natildeo podemos propriamente

dizer que prejudicamos uma janela pois janelas satildeo quebradas ou danificadas O que eacute

diretamente prejudicado em verdade satildeo os interesses do proprietaacuterio pois janelas soacute satildeo

prejudicadas em um sentido derivativo ou extenso186 Dito isso podemos agora facilmente

compreender o segundo sentido de harm este sim genuiacuteno quando dizemos que

frustramos impedimos ou derrotamos um interesse O termo interesse entretanto eacute para

ser usado no sentido de que algo esteja em jogo correndo risco Satildeo todas coisas com que

eu me importo e delas depende meu proacuteprio bem-estar E os meus interesses podem ser

bloqueados ou derrotados por eventos naturais mas eles soacute podem ser invadidos por

humanos187 O terceiro sentido fundamental para o presente estudo cuja presenccedila eacute

necessaacuteria em qualquer formulaccedilatildeo do harm principle pode ser expresso ao falarmos que

uma pessoa foi wronged (ldquoinjusticcedilada que algo errado foi feito a elardquo)188 Uma pessoa

injusticcedila a outra quando sua conduta inescusaacutevel viola os direitos desta Embora o segundo e

terceiro sentidos sejam parecidos pode-se distingui-los da seguinte da forma eu posso

prejudicar uma pessoa colocando um contratempo para seus interesses mas minha accedilatildeo

pode ter sido escusaacutevel ou em relaccedilatildeo a esses interesses invadidos a pessoa natildeo tem

nenhum direito a ser respeitado Entatildeo o significado preciso de harm eacute composto por uma

sobreposiccedilatildeo do segundo e do terceiro sentido eu prejudico algueacutem quando injustamente

contrario seus interesses189 Em siacutentese eacute isto que natildeo se pode esquecer ldquoo harm principle

eacute obviamente um tipo de princiacutepio moral direcionado a determinar os valores morais que

podem propriamente serem regulados pelo aparato modelador de moralidade da lei

criminalrdquo190

185 FEINBERG Joel The moral limits of the criminal law New York Oxford 1987 v1 Harm to others p 30-36 186 Ibidem p 32-33 187 Ibidem p 33-34 e 37 et seq 188 Ibidem p 34 e 105-106 189 Ibidem p 35 190 FEINBERG Joel op cit [n 134] p 13 Ver tambeacutem p 144-165

74

Mas por que tudo isso eacute importante A resposta eacute que se o crime natildeo eacute

entendido como algo que eacute necessariamente ldquoerradordquo (wrong) e se esta caracteriacutestica natildeo

decorre do que achamos ser moralmente errado entatildeo de forma alguma a puniccedilatildeo poderia

ser um processo comunicativo afinal a comunicaccedilatildeo eacute moral Se a lei criminal natildeo demarca

limites morais entatildeo a mensagem transmitida natildeo pode ser uma mensagem moral - nem de

censura nem de arrependimento Daiacute a insistecircncia de Duff ao afirmar que as condutas que

satildeo consideradas crimes natildeo nos satildeo impostas como se fossem um decreto de um soberno

estrangeiro sobre certo aspecto elas satildeo crimes justamente porque noacutes mesmos

consideramos que elas satildeo erradas tanto nos crimes mala in se quanto nos mala prohibita

(ver p 56-57) Nem tudo que eacute moralmente errado deve ser crime mas - agora seraacute afirmado

-tudo que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado191 Se falta tal qualidade agrave

conduta criminalizada ela poderia muito bem ser regulada por outra aacuterea do direito

Nas palavras de Duff

Dizer que a lei criminal lida com algo que eacute ldquoerradordquo (wrongdoing) natildeo eacute ainda dizer que lida com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) um sistema de lei poderia definir como erros legais (legal wrongs) condutas que violam suas regras sem implicar que tal conduta eacute ldquomoralmente erradardquo (morally wrong) De fato insistir que a lei criminal lida ou deveria lidar com algo que eacute ldquomoralmente erradordquo (moral wrongdoing) poderia ser entendido como um tipo de moralismo legal segundo o qual o objetivo apropriado da lei criminal eacute condenar e punir perversidade moral o que muitos liberais contemporacircneos rejeitariam Agora eu realmente penso que o moralismo legal assenta-se sobre uma importante verdade sobre a natureza da lei criminal como um tipo distintivo de regulaccedilatildeo legal o que eacute definido como crime deve assim ser definido porque se acredita ser moralmente errado O ponto natildeo eacute apenas que como ateacute mesmo um convicto oponente do moralismo legal poderia concordar ldquoincorreccedilatildeo moralrdquo (moral wrongfulness) deveria ser uma necessaacuteria condiccedilatildeo para a criminalizaccedilatildeo eacute que mais ambiciosamente o

191 Conforme Eric Voeglin ldquomas o que eacute crime nunca pode ser inferido da ordem legal ao contraacuterio vem da eacutetica em geral Entatildeo o que eacute um crime no sentido eacutetico pode ser tambeacutem classificado como crime pelo Direito penal mas o Direito Penal natildeo eacute fonte para o entendimento do que eacute um crime ()rdquo Mais importante ainda eacute conclusatildeo cujo enunciado sintetiza o que se pretendeu explicar quando foi dito aqui e acolaacute que devemos entender a demandas da lei como justificadas porque ela incorpora nossos valores ldquopois no Direito Penal soacute se pode trabalhar com a pressuposiccedilatildeo que a definiccedilatildeo de crime seja conhecida ndash e na verdade corretamente conhecida ndash fora da esfera do Direito Penalrdquo VOEGLIN Eric Hitler e os alematildees Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2008 p 295

75

foco da lei criminal deveria ser a incorreccedilatildeo moral (moral wrongfulness) da conduta criminalizada ndash esse eacute o objeto proacuteprio da criminalizaccedilatildeo192

Dito isso podem-se agora colocar as bases para entender que a censura eacute

um mensagem moralmente adequada para atos moralmente errados Desta vez pensemos

valendo-se da visatildeo da pessoa censurada Ele poderia levantar trecircs objeccedilotildees para

demonstrar que a censura natildeo eacute justificada (a) que ela natildeo eacute responsaacutevel pela conduta (b)

quem a estaacute censurando natildeo tem autoridade para tanto (c) que a conduta em questatildeo natildeo

eacute moralmente errada193 Este uacuteltimo item eacute o importante pois seria ldquobizarro e moralmente

errado receber censura por atos moralmente louvaacuteveis ou neutros ndash digamos ajudar os

vizinhos ou sair para uma caminhadardquo194 Mas agora no contexto da lei criminal

consideremos que o criminoso confessou que o Estado tem a autoridade para puni-lo e

sobretudo que o crime eacute moralmente errado conforme se argumentou Entatildeo contraacuterio

senso da citaccedilatildeo acima seria inadequado responder ao crime algo moralmente errado com

atos moralmente louvaacuteveis ou neutros

A questatildeo torna-se mais niacutetida se visualizada na condiccedilatildeo de viacutetima

Imaginemos por exemplo que o Estado demonstra simpatia e assiste materialmente viacutetimas

de crimes reparando quaisquer prejuiacutezos que elas tiveram natildeo seria essa a postura

adequada Segundo Narayan simpatia puacuteblica e auxiacutelio seriam respostas moralmente

apropriadas quando algueacutem sofre por causa de um acidente ou desastre natural ou seja

perdas que natildeo satildeo resultado de um iliacutecito195 Viacutetimas de crimes entretanto natildeo reclamam

apenas de seu sofrimento ou de perdas materiais elas lamentam terem sido ldquoinjusticcediladasrdquo

(wronged) E mais a lamentaccedilatildeo delas eacute direcionada agrave pessoa do ofensor pois soacute ele poderaacute

responder pela injusticcedila que causou Natildeo reconhecer que a injuacuteria da viacutetima ocorreu por

causa de uma conduta errada de determinado indiviacuteduo eacute falhar em dar uma resposta

moralmente adequada agrave viacutetima196

192 DUFF Antony R Responsibility restoration and retribution In TONRY M (org) Retribution has a past does it have a future Oxford Oxford No prelo 193 NARAYAN Uma Appropriate responses and preventive benefits justifying censure and hard treatment in legal punishment Oxford Journal of Legal Studies v 13 n 2 p 166-182 1993 194 Ibidem 167 195 Ibidem 169 196 Ibidem 170

76

Sendo assim conclui-se que a censura eacute a mensagem moralmente

adequada tanto do ponto de vista do criminoso quanto da viacutetima e de toda a comunidade

ldquocensura comunica ao ator natildeo apenas que a conduta dele eacute errada mas que uma resposta

moral (eg vergonha ou arrependimento) eacute esperada dele por ter engajado em um

comportamento iliacutecitordquo197 Feitas essas consideraccedilotildees seraacute explicada a puniccedilatildeo como

penitecircncia religiosa e apoacutes como penitecircncia secular

33 PUNICcedilAtildeO COMO PENITEcircNCIA

Antes de adentrar na explicaccedilatildeo sobre a penitecircncia secular eacute necessaacuterio

conceituar o que eacute penitecircncia no contexto religioso que lhe deu origem198 Nas paacuteginas que

seguem abordar-se-aacute resumidamente apenas a doutrina da igreja catoacutelica com uma

pequena referecircncia agrave tradiccedilatildeo e filosofia judaica Uma boa descriccedilatildeo para comeccedilar eacute a do

Papa Joatildeo Paulo II proferida como exortaccedilatildeo apostoacutelica poacutes-sinodal

O termo e o proacuteprio conceito de penitecircncia satildeo bastante complexos Se a relacionarmos com a metaacutenoia a que se referem os Sinoacutepticos a penitecircncia significa entatildeo a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo sob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do Reino Mas penitecircncia quer dizer tambeacutem mudar de vida em coerecircncia com a mudanccedila do coraccedilatildeo e neste sentido o fazer penitecircncia completa-se com o produzir frutos condignos de arrependimento eacute a existecircncia toda que se torna penitencial aplicada

197 Ibidem 172 Eacute necessaacuterio perquirir se o arrependimento eacute a resposta moralmente adequada que se espera do criminoso Isso porque natildeo raras vezes os magistrados norte-americanos erroneamente chancelaram com a ideia da comunicaccedilatildeo moral em mente puniccedilotildees que visavam a causar ldquovergonhardquo (shame) que o ladratildeo ficasse o dia inteiro prostrado com um cartaz em punho denunciando seu crime na frente da loja em que furtou alguns itens que pedoacutefilos fossem permanentemente identificados por cartazes na vizinhanccedila onde moram e tantas outras criativas maneiras de envergonhar Sobre essa discussatildeo ver GARVEY Stephen P Can shaming punishment educate University of Chicago Law Review n 65 p 733-794 1998 Tambeacutem KAHAN Dan M Whats really wrong with shaming sanctions Yale Law School Research Paper n 125 No entanto argumentou-se tambeacutem que a vergonha moral eacute uma resposta natural daquele que sente a culpa de ter cometido um crime e as puniccedilotildees citadas como exemplo em verdade apenas buscavam degradar ou humilhar o criminoso Ver MURPHY Jeffrie G Shame creeps through guilty and feels like retribution Law amp Philosophy v 18 p 327-344 1999 198 Para uma definiccedilatildeo exata da penitecircncia na doutrina catoacutelica ver ORIGINAL CATHOLIC ENCYCLOPEDIA Disponiveacutel em lthttpocecatholiccomindexphptitle=Penancegt Acesso em 15 dez 2010

77

numa contiacutenua caminhada em tensatildeo para o que eacute melhor Fazer penitecircncia no entanto soacute seraacute algo de autecircntico e eficaz se traduzir em atos e gestos de penitecircncia Neste sentido penitecircncia significa no vocabulaacuterio cristatildeo teoloacutegico e espiritual a ascese isto eacute o esforccedilo concreto e quotidiano do homem amparado pela graccedila de Deus por perder a proacutepria vida por Cristo como uacutenico modo de a ganhar esforccedilo por se despojar do homem velho e revestir-se do novo por superar em si mesmo o que eacute carnal para que prevaleccedila o que eacute espiritual e esforccedilo por se elevar continuamente das coisas de caacute de baixo para as laacute do alto onde estaacute Cristo A penitecircncia portanto eacute a conversatildeo que passa do coraccedilatildeo as obras e por conseguinte agrave vida toda do cristatildeo199

Mas o que uma noccedilatildeo cristatilde acrescentaria agrave justiccedila criminal de nosso

mundo secular pluraliacutestico e multicultural Ademais caacute se estaacute trazendo um conceito

eminentemente religioso para fundamentar uma teoria de puniccedilatildeo que muito tem de

retributiva No entanto foi argumentado no segundo capiacutetulo que a secularizaccedilatildeo do direito

penal natildeo teria o condatildeo de solapar todas as teorias retributivas Pois bem foi dito

anteriormente que o testemunho biacuteblico eacute muito rico e complexo para ser capturado pelas

teorias retributivas como elas eram propostas (ou por qualquer teoria de puniccedilatildeo criminal)

E a palavra retribuiccedilatildeo daacute conta de tantas formulaccedilotildees diversas muitas delas independentes

de qualquer contexto teoloacutegico que seria temeraacuterio para dizer o menos acreditar que a

secularizaccedilatildeo poderia desmantelar todas as teorias retributivas Uma coisa eacute natildeo acreditar

na revelaccedilatildeo outra completamente distinta eacute ignorar qualquer doutrina ou autor

simplesmente porque inserido dentro de uma dimensatildeo religiosa Isso porque como bem

adverte Villey aleacutem de todos os grandes problemas da filosofia do direito estarem ligados

aos da teologia ldquoa filosofia do direito nos teoacutelogos do cristianismo dado o papel eminente

da razatildeo profana na obra deles corresponde praticamente a toda histoacuteria da filosofia do

direito da Europa ateacute o seacuteculo XVIIIrdquo200

Quem sabe foi o conhecimento desse erro denunciado no primeiro

capiacutetulo que possibilitou a nova visatildeo sobre puniccedilatildeo criminal atualmente representada pela

justiccedila restaurativa e pelas teorias comunicativas cujos conteuacutedos dizem respeito a temas

normalmente tratados em um contexto religioso reconciliaccedilatildeo restauraccedilatildeo reforma etc

199 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA Joatildeo Paulo II Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherjohn_paul_iiapost_exhortationsdocumentshf_jp-ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_pohtmlgt Acesso em 10 dez 2010 200 VILLEY Michel op cit [n 133] p 13

78

Contudo natildeo eacute isso que deve ser salientado A importacircncia da analogia natildeo reside

exatamente no que os teoacutelogos disseram mas na maneira como eles concebiam o problema

em primeiro lugar201 E eacute tal problema que agora seraacute mostrado

O homem eacute naturalmente pecador ldquose dissermos que natildeo temos pecado

enganamo-nos a noacutes mesmos e natildeo haacute verdade em noacutesrdquo (1 Joatildeo 18) Mas o pecado embora

decorrente da liberdade humana estaacute envolto por uma miriacuteade de fatores influentes e

obscuros sendo possiacutevel afirmar com Satildeo Paulo que ldquonatildeo faccedilo o bem que quero mas o mal

que natildeo quero esse faccedilordquo (Romanos 719) Esse eacute o ldquomisteacuterio da iniquidaderdquo (2 Tessalonicenses

27) Contudo apesar das causas pecaminosas nos serem parcialmente encobertas no fundo

elas satildeo decorrentes de uma vontade de ruptura ou exclusatildeo com Deus de uma

desobediecircncia agraves normas morais que ele escreveu em nossos coraccedilotildees202 E o homem em

conflito interior cingido em razatildeo da ruptura para com Deus acaba dilacerando tambeacutem o

tecido de suas relaccedilotildees com outros homens como na passagem biacuteblica referente agrave Babel

incapazes de entrarem em consenso e convergecircncia sobre o manto de um princiacutepio

unificador descurados da dimensatildeo vertical radicada em Deus os homens acabaram mais

dispersos do que antes confundidos na linguaguem e dividos entre si203

Nesse quadro a penitecircncia estaacute intimamente ligada com a reconciliaccedilatildeo

Pois sendo o pecado princiacutepio ativo da divisatildeo - seja da relaccedilatildeo do homem consigo mesmo

com seus irmatildeos ou com Deus - ldquosoacute a conversatildeo do pecado eacute capaz de operar uma

reconciliaccedilatildeo profunda e duradoura onde quer que a divisatildeo tenha penetradordquo204 E para

isso o homem precisa como na paraacutebola do filho proacutedigo cair em si voltar agrave casa do pai

(Lucas 1511) O segundo valor da penitecircncia prologamento desse primeiro que eacute a

conversatildeo consiste no arrependimento uma reviravolta na alma ocasionada pelo

reconhecimento de que se estava andando no caminho errado Por fim o terceiro valor da

penitecircncia eacute o ldquofazer penitenterdquo205 isto eacute exteriorizar aquelas atitudes anteriores de

conversatildeo e arrependimento mesmo que agrave custa de sacrifiacutecios ldquoa penitecircncia cristatilde seraacute

201 GARVEY Stephen P Punishment as atonement UCLA Law Review n 46 p 1081-1858 1999 202 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 203 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 204 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 205 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado

79

autecircntica se for inspirada pelo amor e natildeo pelo mero temor se consistir num seacuterio esforccedilo

para crucificar o lsquohomem velhorsquo a fim de que possa renascer o lsquonovorsquo por obra de Cristordquo206

Sobremodo importante eacute essa duplicidade carateriacutestica do homem

penitente que ao mesmo tempo olha para o passado (reconhecimento arrependido) e para

o futuro (reforma e movimento de reconciliaccedilatildeo) Kierkegaard daacute uma interessante

explicaccedilatildeo a respeito

Uma providecircncia zela pelo vagear de cada homem no curso de sua vida Ela lhe providencia dois guias Um chama-o para frente Outro chama-o para traacutes Eles natildeo estatildeo entretanto em oposiccedilatildeo um ao outro esses dois guias nem eles deixam o peregrino estagnado em duacutevida confundido pelo chamado duplo Ao inveacutes os dois estatildeo em eterno entendimento um com o outro Enquanto um acena em frente para o Bem o outro chama de volta para o mal E eles natildeo satildeo guias cegos Por essa razatildeo que existem dois deles Para tornar a jornada segura eles devem olhar tanto para frente quanto para traacutes Ai de mim havia talvez algueacutem que se perdeu por natildeo entender como continuar um bom comeccedilo Pois o curso dele estava posto sobre um caminho falso e ele seguiu tatildeo vigorasamente que o remorso natildeo o podia chamar de volta ao velho caminho Havia talvez algueacutem que se perdeu porque na exaustatildeo do arrependimento ele natildeo conseguia prosseguir entatildeo o guia natildeo podia lhe ajudar a encontrar o caminho em frente207

Na tradiccedilatildeo judaica percebe-se esse olhar para o passado e para o futuro

do homem penitente na ocasiatildeo em que Davi exclama ldquoporque eu conheccedilo as minhas

transgressotildees e o meu pecado estaacute sempre diante de mimrdquo (Salmos 513) Ele natildeo se ldquodes-

culpardquo do pecado como algo que natildeo fosse seu ao reveacutes ele o assume e o potildee agrave frente de

seus olhos como guia para livraacute-lo de sua iniquidade Essa atitude no judaismo tem o nome

de Teshuva (ldquoarrependimentordquo)208 Mas em verdade Teshuva significa todo um processo

pelo qual o homem pode renunciar e reparar as accedilotildees erradas que o desviaram retornando

a Deus ao trilhar o caminho que Ele colocou para noacutes209 Tal jornada moral eacute constituiacuteda por

quatros elementos muito parecidos com aqueles descritos pelos cristatildeos remorso

206 RECONCILIATIO ET PAENITENTIA op cit [n 199] Natildeo paginado 207 KIERKEGAARD Soumlren Purity of heart is to will one thing Ediccedilatildeo desconhecida p 15 208 LEVINE Samuel J Teshuva A look at repentance forgiveness and atonement in jewish law and philosophy and american legal thought Fordham Urban Law Journal v 27 n 5 p 1677-1693 2000 209 Ibidem 1678

80

resoluccedilatildeo de natildeo cometer o erro novamente confissatildeo ou apologia mudanccedila de

caminho210

Com efeito muito mais poderia ser dito sobre a penitecircncia na tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde como por exemplo sobre o papel da viacutetima na reconciliaccedilatildeo e a

ldquoobrigatoriedaderdquo de conceder perdatildeo para aqueles que se arrependeram211 Entretanto

conforme mencionado acima o importante eacute salientar a maneira como eles veem o

problema O homem que pecou afasta-se de Deus e de seu proacuteximo poreacutem pela penitecircncia

ela pode alcanccedilar a reconciliaccedilatildeo Agora no contexto da puniccedilatildeo criminal pode ser traccedilado

um paralelo ldquonoacutes podemos mutatis mutandi derivar uma narrativa secular de expiaccedilatildeo se o

objeto de identificaccedilatildeo natildeo for Deus mas a comunidade () baseada na premissa desse

senso compartilhado de identidade entre os membros - ofensores e viacutetimas - da

comunidaderdquo212

Diante dessas consideraccedilotildees reconhece-se por que Duff deu tamanha

importacircncia para a narrativa sobre a comunidade Se valores compartilhados natildeo ligam as

pessoas se o criminoso eacute para ser visto como excluiacutedo entatildeo a descriccedilatildeo de puniccedilatildeo como

penitecircncia secular natildeo possui sentido Em outras palavras se natildeo existe nenhum princiacutepio

de unidade ou identidade pelo qual o homem pode dizer ldquoestou punindo porque vocecirc

assim como eu deve respeitar determinado valorrdquo seria melhor encontrar outra maneira de

lidar com os crimes E nem eacute preciso concordar com a comunidade assim como o autor a

delinou basta termos em mente que a puniccedilatildeo deveria ser idealmente ldquoum paradoxal sinal

de respeito ao menos na medida em que ela reafirma a continuidade do ofensor como

membro da comunidade mesmo que atualmente ele natildeo seja um membro em boa

situaccedilatildeordquo213 Dito isso a seguir seraacute analisada a penitecircncia secular dentro das categorias de

Duff Ressalta-se entretanto que as divisotildees feitas por ele entre arrependimento reforma e

reconciliaccedilatildeo natildeo satildeo estanques e podem ser arranjadas de outra forma (as que foram vistas

acima por exemplo)

210 Ibidem 1682 et seq 211 Cf MURPHY Jeffrie G Christianity and criminal punishment Punishment and Society v 5 n 3 p 261-277 2003 212 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1810 213 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1855

81

331 Penitecircncia secular (arrependimento autorreforma e reconciliaccedilatildeo)

Mas isso que se diz que o arrependimento segue de perto o pecado parece natildeo dizer respeito ao pecado que estaacute em seu alto galarim que mora dentro de noacutes como em seu proacuteprio domiciacutelio Podemos repudiar e retratar os viacutecios que nos apanham de surpresa e para os quais as paixotildees nos carregam mas esses que por longo haacutebito se enralgaram e ancoraram em uma vontade forte e vigorosa natildeo se sujeitam a contradiccedilatildeo O arrependimento natildeo eacute mais que uma retrataccedilatildeo da nossa vontade e uma contradiccedilatildeo das nossas fantasias que nos passeiam em todos os rumos A este faz renegar sua virtude passada e sua continecircncia Quoe mens est hodie cur eadem non puero fuit Vel cur his animis incolumes non redeunt gence Montaigne Ensaios Do arrependimento

Parece-nos natural atar a necessidade de puniccedilatildeo com o arrependimento

O filho de uma das viacutetimas do homicida italiano Cesare Battisti ao ser indagado disse que

este ldquonatildeo merece perdatildeo porque nunca demonstrou arrependimentordquo214 Manifestaccedilatildeo

deveras comum ainda assim as teorias sobre puniccedilatildeo pouco faziam menccedilatildeo aos

sentimentos que se esperam do indiviacuteduo punido - a resposta moral adequada nos dizeres

de Narayan A distacircncia entre a percepccedilatildeo comum do que entendemos por puniccedilatildeo e as

teorias que nos satildeo apresentadas natildeo eacute justificada uma vez que e isto jaacute foi dito noacutes

podemos captar melhor a natureza da puniccedilatildeo se a analisarmos em todos os lugares que ela

se manifesta Entatildeo para encurtar esse espaccedilo comeccedila-se com uma definiccedilatildeo de

arrependimento

O arrependimento eacute aceitaccedilatildeo pesarosa da responsabilidade pelas accedilotildees ofensivas e erradas do indiviacuteduo o repuacutedio dos aspectos no caraacuteter do indiviacuteduo que geraram tais accedilotildees a resoluccedilatildeo para fazer o possiacutevel para extirpar esses aspectos do caraacuteter do indiviacuteduo e a resoluccedilatildeo de expiar ou consertar o mal causado215

214 VEJA ed 2199 ano 44 n 2 12 de janeiro de 2011 p 69 215 MURPHY Jeffrie G Repentance punishment and mercy Disponiacutevel emlthttphomepageslawasuedu~jeffriemrepentancehtmgt Acesso em 25 dez 2010

82

O arrependimento eacute mais profundo do que uma simples lamentaccedilatildeo

Pode-se lamentar que choveu no uacutenico feriado em que a pessoa viajou agrave praia entretanto

soacute se pode arrepender de coisas pelas quais o indiviacuteduo eacute responsaacutevel E soacute se pode

arrepender do que jaacute foi feito no passado Aleacutem disso pode-se lamentar de acontecimentos

moralmente neutros ou ateacute mesmo louvaacuteveis no entanto a pessoa apenas se arrepende de

algo que acredita ser moralmente errado Esta eacute aliaacutes a razatildeo pela qual o arrependimento

constitui a resposta moral adequada por parte do criminoso espera-se que ele se arrependa

de sua accedilatildeo errada justamente por causa de ela ser errada e natildeo por ele lamentar que foi

flagrado e estaacute preso (isso natildeo eacute arrependimento) O arrependimento portanto eacute uma

atitude ativa pois o ser arrependido coloca seu iliacutecito a sua frente preocupando-se com o

que pode ser feito a partir de entatildeo216 O homem que se arrepende ao inveacutes de querer pedir

desculpa sente a necessidade de abraccedilar sua culpa assumir a responsabilidade por seu erro

podendo doravante expulsaacute-lo por uma reparaccedilatildeo apologeacutetica217

Contudo a antiga questatildeo ressurge novamente por que tudo isso natildeo

poderia ser feito verbalmente Natildeo poderia o criminoso arrependido confessar seu crime e

ir tentar reconciliar-se com a viacutetima pelo diaacutelogo A resposta decerto nos parece intuitiva

pois nem nos atos mais comenzinhos de nosso dia a dia conseguimos nos comunicar apenas

falando Uma mulher traiacuteda natildeo espera do marido arrependido apenas uma ou outra palavra

do quanto aquela accedilatildeo eacute errada ela quer ver mudanccedila de comportamento por meio de

accedilotildees dando a entender que o homem de hoje repudia aquele de ontem E tambeacutem nos eacute

natural que o arrependimento se prolonge no tempo natildeo seja raacutepido demais ldquoo

arrependimento repentino beberia toda a amargura da tristeza em um uacutenico trago e entatildeo

continuaria Ele quer fugir da culpardquo218 Nesse mesmo sentido Duff expressa a necessidade

de que o arrependimento do homem seja ldquooneroso penosordquo (burdesome)

Arrependimento ao menos em ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) seacuterias natildeo pode por sua natureza ser algo que eacute alccedilancado e terminado dentro de um instante por mais intenso que seja o sentimento de culpa nesse instante Ele deve penetrar o ldquomalfeitorrdquo (wrongdoer) e deve a partir de entatildeo ocupar sua atenccedilatildeo seus pensamentos seus sentimentos por um periacuteodo

216 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1814-1815 217 GARVEY Stephen P op cit [n 201] p 1816 et seq 218 KIERKEGAARD Soumlren op cit [n 207] p 17

83

consideraacutevel de tempo Algueacutem que alega ter lamentado profundamente a morte de um ente querido mas que resume sua vida pensamentos e sentimentos normais apoacutes um uacutenico dia entatildeo desmente sua alegaccedilatildeo Do mesmo modo algueacutem que alega ter se arrependido de uma ofensa grave que cometeu mas que rapidamente retoma sua vida normal e natildeo pensa mais naquela injusticcedila entatildeo desmente sua proacutepria alegaccedilatildeo A tarefa de enfrentar arrependido a injusticcedila que eu causei (a ofensa e meu cometer ela) natildeo pode ser alcanccedilada em um instante Ela deve envolver um pensar sobre e um procurar entender o que eu fiz agrave pessoa que ofendi e como eu fiz isso219

A implicaccedilatildeo natural do arrependimento eacute a vontade de reforma ou

melhor autorreforma Conforme jaacute mencionado o homem que toma para si seu erro sente

a necessidade de reformar-se reconhecendo que natildeo deve cometer esse erro no futuro

devendo evitaacute-lo E a diferenccedila dessa narrativa com as teorias reformistas eacute bastante niacutetida

natildeo se visa aqui a moldar o ofensor aos nossos desejos pretende-se persuadi-lo da

necessidade que ele proacuteprio deveria ter em reformar-se220 Em uacuteltima anaacutelise a puniccedilatildeo visa

a auxiliar o criminoso nesse processo entretanto ele estaacute livre para natildeo querer ser

persuadido pela mensagem

Por fim o terceiro aspecto da puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute a

reconciliaccedilatildeo O homem arrependido que pretende reformar sua conduta deve tambeacutem

uma apologia agrave viacutetima e agrave comunidade Ele deve reparar as consequecircncias de seu crime seja

mediante um trabalho em favor da viacutetima seja mediante uma prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave

comunidade ou em casos mais graves submetendo-se a um rito penitencial que demonstre

ldquouma prova persuasiva de sua sinceridaderdquo221 Nesse quadro eacute importante lembrar que o

crime eacute um mistura inseparaacutevel de na falta de melhor traduccedilatildeo um ldquoprejuiacutezo injustordquo

(harmful wrondoing) nas linhas jaacute desenvolvidas por Feinberg E a puniccedilatildeo deve refletir e

por isso eacute onerosa toda a natureza do crime o criminoso deve fazer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica que expressa seu arrependimento e sua vontade de autorreforma dando conta

tanto do prejuiacutezo como da injusticcedila causada

219 DUFF Antony R op cit [n 138] p 108 220 DUFF Antony R op cit [n 138] p 109 221 DUFF Antony R op cit [n 138] p 246

84

Diante dessas ponderaccedilotildees pode-se finalmente responder agravequela

pergunta qualificada de Tasioulas Como a imposiccedilatildeo de uma puniccedilatildeo onerosa pode servir ao

processo comunicativo A correta anaacutelise de Duff que fala em puniccedilatildeo onerosa ou penosa

ao inveacutes de privaccedilatildeo material para natildeo sugerir que a puniccedilatildeo seja algo que ldquomachuquerdquo

(hurt) eacute a seguinte

(I) de um lado a puniccedilatildeo comunica a censura da comunidade ao ofensor

Facilmente puniccedilotildees puramente simboacutelicas ou verbais satildeo esquecidas ignoradas

e assim o criminoso natildeo daacute a correta atenccedilatildeo penosa que o crime merece Logo

uma das funccedilotildees da puniccedilatildeo onerosa eacute persuadir o criminoso da mensagem que

estaacute sendo comunicada fazendo-o contemplar a natureza de sua accedilatildeo222 ldquoeacute um

jeito de ajudaacute-lo a manter sua atenccedilatildeo focada no iliacutecito e nas suas implicaccedilotildees

com a finalidade de induzir a e fortalecer uma devida compreensatildeo arrependida

do que ele fezrdquo223

(II) de outro lado a puniccedilatildeo comunica a apologia do ofensor para aqueles que foram

prejudicados com o erro seja agrave viacutetima direta ou a toda a comunidade O

criminoso deve reparar a injusticcedila que causou e uma apologia verbal pode natildeo

ser suficiente para esse fim Como foi dito palavras natildeo bastam para demonstrar

meu arrependimento e a minha vontade de autorreforma essa natildeo eacute maneira

adequada de mostrar que eu levei a seacuterio o crime224 ldquose eu vou dar uma forma

material ao meu reconhecimento arrependido do peso da culpa que eu agora

carrego essa forma deve ser ela mesma penosardquo225

A narrativa acima eacute eminentemente retributiva pois a puniccedilatildeo eacute focada e

justificada em razatildeo do crime pelo qual ela eacute imposta A puniccedilatildeo eacute fundamentada como uma

resposta apropriada ao crime ao mesmo tempo censurando-o e constituindo uma maneira

adequada puacuteblica e formal de reparaacute-lo Mas tal puniccedilatildeo tambeacutem olha para o futuro tem

uma finalidade que o indiviacuteduo arrependido se reforme e reconcilie-se com a viacutetima se

222 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 223 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 224 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado 225 DUFF Antony R op cit [n 192] Natildeo paginado

85

houver uma restaurando assim os laccedilos que nos unem como membros de uma comunidade

Essa teoria comunicativa natildeo eacute mista jaacute que nela a relaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e as finalidades

que se pretende alccedilanccedilar natildeo eacute contigente e instrumental como ocorre nas teorias

consequencialistas Aqui a ligaccedilatildeo eacute interna uma vez que o objetivo mesmo de persuadir

agentes responsaacuteveis a se arrependerem dos erros cometidos torna a puniccedilatildeo o meacutetodo

apropriado para persegui-lo

Ainda que a puniccedilatildeo possa em tese alcanccedilar todas estas coisas boas -

arrependimento reforma e reconciliaccedilatildeo - eacute preciso ser mostrado se isso eacute suficiente para

obrigar o Estado a colocar seus recursos numa instituiccedilatildeo assim descrita Duff argumenta

em siacutentese que aleacutem de tais finalidades serem desejaacuteveis o Estado tem o dever de tentar

alcanccedilaacute-las Um dever que natildeo diz respeito apenas agraves potenciais viacutetimas de crimes mas

tambeacutem aos potenciais criminosos Por exemplo imaginemos que eu sou amigo de Joatildeo e

Maria e Maria injusticcedilou seriamente Joatildeo226 Seria moralmente inconsistente se eu

simpatizasse com a injusticcedila sofrida por Joatildeo no entanto natildeo permitisse que essa injusticcedila

fizesse nenhuma diferenccedila na minha conduta em relaccedilatildeo agrave Maria Se eu realmente levo em

consideraccedilatildeo minha amizade com Joatildeo entatildeo eu devo natildeo apenas simpatizar com seu

sofrimento mas tambeacutem devo censurar Maria Por outro lado igualmente Maria eacute minha

amiga portanto eu devo respeitaacute-la quando for tentar convencecirc-la de seu erro E esse

respeito eacute manifestado se eu apelar para as razotildees morais relevantes que devem pautar seu

arrependimento Devo dizer ldquoMaria vocecirc natildeo deveria ter feito isso com Joatildeo porque isso eacute

errado veja o sofrimento dele como vocecirc se sentiria se estivesse no lugar dele etcrdquo Agora

se eu trouxer argumentos independentes que natildeo tem a ver com o motivo mesmo pelo qual

a accedilatildeo de Maria eacute considerada errada entatildeo eu natildeo estou a respeitando como pessoa livre e

responsaacutevel Se eu disser ldquoMaria arrependa-se caso contraacuterio vou te bater reconcilie-se

com Joatildeo e eu lhe dou algum dinheirordquo eu natildeo valorizo realmente nossa amizade Mutatis

mutandis essa eacute a finalidade central da puniccedilatildeo conforme Duff a retratou a comunidade

por intermeacutedio de suas instituiccedilotildees estatais deve agrave viacutetima cuja ofensa ela compartilha a

tentativa de fazer o criminoso reconhecer tal ofensa e daiacute efetuar uma apologia apropriada

226 DUFF Antony R op cit [n 138] p 112-115 Alterou-se o exemplo

86

por ela e deve ao ofensor como membro desta comunidade a tentativa de persuadi-lo a se

engajar nesse processo de comunicaccedilatildeo moral sem buscar manipulaacute-lo ou moldaacute-lo227

Mas duas objeccedilotildees podem ser feitas agrave teoria de puniccedilatildeo como penitecircncia

secular A primeira consiste na duacutevida sobre o que fazer com as pessoas que jaacute se

arrependeram de seus crimes antes mesmo de serem punidas e o que fazer com aquelas

que natildeo iratildeo se arrepender pelas mais variadas razotildees A segunda consubstancia-se na

pergunta natildeo estaria o Estado liberal ferindo a privacidade dos cidadatildeos ao tentar buscar

deles o arrependimento A seguir essas objeccedilotildees seratildeo analisadas

332 Os jaacute arrependidos e aqueles que natildeo iratildeo se arrepender

Noacutes podemos imaginar dois casos em que o criminoso tenha se

arrependido antes mesmo de ter sido condenado e punido (I) na hipoacutetese em que o

criminoso voluntariamente tenha atravessado o processo penitencial inclusive

reconciliando-se com a viacutetima (II) ou ainda se ele foi informalmente punido por terceiros

perdendo o emprego por exemplo e encarou isso como uma forma de penitecircncia

No primeiro exemplo o arrependimento pode ter servido para reconciliar

o criminoso com Deus ou ateacute mesmo com sua viacutetima direta entretanto na narrativa de

puniccedilatildeo como processo comunicativo o indiviacuteduo deve tambeacutem reconciliar-se com toda a

comunidade cujos valores e leis ele violou Entender em contraacuterio retiraria todo o caraacuteter

puacuteblico dos crimes e por consequecircncia tambeacutem da puniccedilatildeo228 No segundo exemplo a

questatildeo eacute um pouco mais delicada pois a penitecircncia a que a pessoa foi submetida no

acircmbito privado poderia servir como anaacutelogo do que aconteceria a ela ao final de um

processo criminal formalizado Contudo explica Duff seria moralmente complicado tratar o

arrependimento com um fator mitigante no quantum da pena Isso porque considerando-se

que a severidade da puniccedilatildeo deve guardar uma correspondecircncia proporcional em relaccedilatildeo agrave

227 DUFF Antony R op cit [n 138] p 114 228 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121

87

gravidade do crime a aplicaccedilatildeo de sentenccedila mais leve em um ofensor arrependido levar-

nos-ia a dizer que o arrependimento tornou o crime menos grave o que em regra natildeo eacute

verdadeiro229 Existe uma exceccedilatildeo em nossa lei temos o arrependimento posterior causa

redutora de pena no quanto dispotildee o artigo 16 do Coacutedigo Penal Pode-se aduzir nesse caso

que o arrependimento imediato realmente tornou o crime menos grave uma vez que suas

consequecircncias materiais foram mitigadas assim tambeacutem disciplina o artigo 65 aliacutenea ldquobrdquo

do mesmo diploma legal (a reparaccedilatildeo do dano se feita em tempo reduz a gravidade mesma

do fato e portanto a culpabilidade do agente) De qualquer sorte a questatildeo eacute complicada

ainda mais se considerarmos que o arrependimento como fator mitigador de pena abriria

portas para todo o tipo de desonestidade na busca de uma puniccedilatildeo reduzida

Por outro lado muito mais comum de acontecer eacute que o criminoso natildeo se

arrependa mesmo apoacutes o teacutermino de sua sentenccedila Deveriacuteamos entatildeo aumentar sua pena

Ou ainda se soubeacutessemos de antematildeo que ele natildeo se arrependeraacute de jeito nenhum

deveriacuteamos entatildeo deixar de puni-lo

Em primeiro lugar conforme argumentado acima aumentar ou diminuir a

pena em razatildeo do arrependimento nos levaria a infringir o princiacutepio da proporcionalidade

intriacutenseco na narrativa da puniccedilatildeo comunicativa pois uma sentenccedila mais severa comunica

que aquele crime eacute mais grave e uma sentenccedila menos severa comunica que o crime natildeo eacute

assim tatildeo grave - a censura eacute merecida em relaccedilatildeo ao crime natildeo ao arrependimento A

resposta entatildeo eacute que natildeo devemos estender o tempo de cumprimento da pena ateacute que se

alcance o arrependimento (afinal a ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e suas finalidades natildeo eacute

contingente e instrumental) Em segundo lugar devemos tentar persuadir o criminoso da

mensagem que estaacute sendo comunicada ainda que ele natildeo vaacute se arrepender pois em parte

devemos essa tentativa agrave viacutetima e a toda comunidade uma vez que assim demonstramos

levar a seacuterio aqueles valores que foram violados Outrossim a insistecircncia na comunicaccedilatildeo

moral natildeo manipulativa expressa ao criminoso que o respeitamos como um membro da

comunidade que natildeo estaacute para aleacutem da redenccedilatildeo230

229 DUFF Antony R op cit [n 138] p 120-121 230 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123

88

John Tasioulas a respeito da ligaccedilatildeo entre a puniccedilatildeo e o arrependimento

distingue os teoacutericos da puniccedilatildeo comunicativa em dois grupos os lenientes que tecircm boas

razotildees para diminuir a puniccedilatildeo de um criminoso jaacute arrependido (ou aumentar a puniccedilatildeo do

que natildeo se arrependeraacute) uma vez que o arrependimento alteraria o quanto de puniccedilatildeo ele

merece os estritos que acreditam como Duff que o arrependimento natildeo conduz agrave reduccedilatildeo

de puniccedilatildeo pois aquele estaacute ligado a esta constitutivamente natildeo instrumentalmente231 Aos

primeiros a criacutetica do autor eacute a mesma jaacute assinalada neste trabalho se o arrependimento

determina o grau de merecimento da puniccedilatildeo entatildeo estamos interpretando

instrumentalmente a norma retributiva232 Sendo assim a anaacutelise do segundo grupo seria a

mais adequada pois preserva a integridade da norma retributiva ldquoa puniccedilatildeo permite que o

ofensor se arrependa precisamente atraveacutes de seu submetimento agrave merecida puniccedilatildeo como

penitecircncia o arrependimento natildeo eacute simplesmente algo distinto da puniccedilatildeo merecida que

esta supostamente deve lsquoacarretarrsquordquo233

O problema todavia eacute mais profundo pois a puniccedilatildeo como penitecircncia

secular tambeacutem eacute um veiacuteculo para o arrependimento Imaginemos dois homicidas um a

toda evidecircncia arrependido de seu crime outro pouco se importando Deveriacuteamos dizer que

o primeiro merece uma pena menor que o segundo A resposta eacute natildeo porque a noccedilatildeo de

puniccedilatildeo justificada eacute aquela pela qual o criminoso deve arrepender-se mediante penitecircncia

merecida que eacute determinada proporcionalmente em razatildeo da gravidade do crime234 Mas a

ideia central aqui eacute que dentro de uma gama de penas merecidas - jaacute que lembra von

Hirsch a tarefa de ancorar os pontos cardinais da escala penal eacute uma tarefa nada faacutecil e

portanto precisar o quanto de pena um determinado crime merece natildeo eacute uma ciecircncia

exata235 - a preferecircncia varie de acordo com a as finalidades da puniccedilatildeo como penitecircncia

Por exemplo a severidade de um roubo encontraraacute sua pena proporcional correspondente

sua puniccedilatildeo como penitecircncia merecida seja em seis meses de encarceramento um ano de

prisatildeo domiciliar ou alguns meses de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade Daiacute os objetivos

poderem desempenhar um papel decisivo na escolha preferindo-se a puniccedilatildeo que possa

231 TASIOULAS John op cit [n 181] p 306 et seq 232 TASIOULAS John op cit [n 181] p 308 233 TASIOULAS John op cit [n 181] p 311 234 TASIOULAS John op cit [n 181] passim 235 VON HIRSCH op cit [n 171] p 71-84

89

comunicar a censura apropriada de uma maneira que induza o arrependimento a reforma e

a reconciliaccedilatildeo comunicando-se tambeacutem agrave viacutetima e agrave comunidade a adequada reparaccedilatildeo

apologeacutetica236 De outro lado tais indagaccedilotildees nos levam a refletir sobre a equidade a

igualdade horizontal nos termos de Faria Costa pois eacute bastante complicado admitir penas

demasiadamente distintas para crimes materialmente idecircnticos O presente toacutepico pode ser

detalhado ainda mais porque embora o arrependimento natildeo sirva para mitigar a puniccedilatildeo

justificada merecida em razatildeo da gravidade do crime poderia ser argumentado que o

criminoso arrependido deveria ter sua pena diminuiacuteda nas bases do perdatildeo ou da

misericoacuterdia

Mas tais problemas adentram na proporcionalidade da sentenccedila

comunicativa bem como no papel que o perdatildeo e a misericoacuterdia poderiam ter na justiccedila

criminal questotildees que natildeo seratildeo analisadas neste trabalho Deve ser ressaltado no ponto

desenvolvido que a puniccedilatildeo como penitecircncia secular eacute uma empreitada de comunicaccedilatildeo

moral que eacute devida pela comunidade tanto agrave viacutetima quanto ao ofensor mesmo que este jaacute

tenha se arrependido ou natildeo vaacute se arrepender

O fato de que algueacutem natildeo iraacute escutar o que estaacute sendo comunicado na puniccedilatildeo natildeo torna a puniccedilatildeo inapropriada Algumas vezes as coisas deveriam ser ditas ainda que pessoas sejam impenetraacuteveis a elas Que elas sejam ditas registra a importacircncia que elas tecircm Nem precisa a puniccedilatildeo ser inapropriada caso o criminoso esteja completamente ciente que ele agiu mal O ofensor natildeo iraacute achar isso redundante com efeito ele pode muito bem procurar e aceitar na puniccedilatildeo a confirmaccedilatildeo adequada de sua culpa237

Dito isso pode-se agora enfrentar o segundo problema natildeo estaria o

Estado liberal violando a privacidade das pessoas ao tentar induzir o arrependimento Sobre

certo aspecto algumas respostas jaacute foram dadas no capiacutetulo em que foi retratada a

comunidade segundo Duff Laacute foi desenvolvido que por sermos relativos estranhos uns aos

outros a puniccedilatildeo possui um limite vertical natildeo podendo penetrar em todo o ser moral do

criminoso Explicou-se tambeacutem que podemos forccedilar o criminoso a escutar a mensagem mas

ele natildeo precisa obedecer a ela e estaacute livre para natildeo ser persuadido por ela Ademais parte

236 DUFF Antony R op cit [n 138] p 134-135 237 KLEINIG John Punishment and moral seriousness Israel Law Review v 25 p 401-421 1991 p 418

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dessa problemaacutetica foi analisada na criacutetica agrave teoria da puniccedilatildeo de educaccedilatildeo moral (ver toacutepico

221) Doravante entretanto seratildeo traccedilados os problemas especiacuteficos da puniccedilatildeo como

penitecircncia secular de acordo com a anaacutelise de von Hirsch

333 A penitecircncia e o Estado

Pode-se melhor visualizar a problemaacutetica delimitando-se a diferenccedila entre

a teoria comunicativa de Duff e a de von Hirsch Para ambos a censura eacute mensagem moral

adequada a ser transmitida capaz de suscitar um feixe de respostas morais no indiviacuteduo

punido No entanto cada um dos autores toma um caminho diferente para justificar a

caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo o primeiro explica toda sua teoria baseada em um

processo de comunicaccedilatildeo moral no qual a puniccedilatildeo deve ser entendida como forma de

penitecircncia secular o segundo apela para consideraccedilotildees preventivas argumentando que a

privaccedilatildeo material se justifica como um suplemento prudencial agraves razotildees morais Enquanto a

formulaccedilatildeo de Duff eacute mais ambiciosa identificando natildeo soacute a forma moral adequada de

transmitir a mensagem mas tambeacutem a forma moral adequada de recebecirc-la mediante o

arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo a teoria de Von Hirsch eacute mais comedida

externa segundo ele pois a censura natildeo eacute desenvolvida para suscitar quaisquer sentimentos

internos no indiviacuteduo ou seja em sua narrativa natildeo haacute uma resposta moralmente

apropriada para responder agrave mensagem de censura238

E mais argumenta ainda von Hirsch que o fato de punirmos criminosos jaacute

arrependidos ou aqueles que natildeo vatildeo se arrepender revela que natildeo nos importamos tanto

com a qualidade moral da resposta preferindo portanto uma visatildeo externa da censura239

Em razatildeo disso o autor indaga

Imaginem que a sanccedilatildeo do Estado se impotildee a esta pessoa como uma penitecircncia Uma penitecircncia pretende um acesso mais interno que a mera censura penal para originar uma atitude arrependimento o julgador precisa

238 VON HIRSCH op cit [n 171] p 119 239 VON HIRSCH op cit [n 171] p 120

91

indagar sobre os sentimentos da pessoa ndash ou ao menos adaptar a pena para que possa acessar esses sentimentos Talvez isso natildeo seja demasiadamente excessivo por parte do Estado Com efeito talvez natildeo seja literalmente manipulador a penitecircncia de Duff estaacute pensada unicamente para que a pessoa alcance seu arrependimento natildeo para que diga o que sente Mas natildeo poderia o indiviacuteduo de qualquer forma objetar que a penitecircncia eacute uma forma inapropriada de o Estado intrometer-se de que na medida em que ele deve ser tratado como pessoa capaz de um juiacutezo moral a natureza de sua resposta comportamental agrave censura do Estado eacute coisa sua240

Em verdade a indagaccedilatildeo sobre a compatibilidade entre uma teoria de

Estado e uma teoria de puniccedilatildeo suscita problemas teoacutericos infinitamente maiores e as

poucas consideraccedilotildees que aqui seratildeo feitas natildeo tecircm forccedila para abarcar todos eles Aliaacutes natildeo

importa se a teoria apresentada eacute preventiva retributiva ou comunicativa pois todas elas

tecircm o dever de responder agraves mesmas perguntas pode o Estado punir em razatildeo deste ou

daquele fundamento Respeita-se o indiviacuteduo como ser livre e autocircnomo Ateacute que o ponto

o Estado pode invadir legitimamente a privacidade do criminoso A dificuldade em dar

respostas adequadas para tais perguntas reside mesmo na hercuacutelea tarefa de chegarmos a

um consenso por miacutenimo que seja sobre os limites e as funccedilotildees do Estado

Mas isso natildeo eacute impeditivo para a concessatildeo de algumas respostas ainda

que parciais Existe uma seacuteria discussatildeo sobre a compatibilidade das teorias retributivas (a

teoria comunicativa de Duff eacute eminentemente retributiva) e o Estado liberal poreacutem os

temas nela abordados natildeo seratildeo trazidos para o presente estudo A razatildeo eacute que em tal

embate discute-se menos sobre puniccedilatildeo e mais sobre o que se entende por Estado liberal241

Natildeo eacute esse o foco do trabalho Logo com o intuito de delinear e recortar o problema a

criacutetica de von Hirsch serve perfeitamente pode o Estado ir tatildeo longe na privacidade das

pessoas tentando nelas suscitar o arrependimento a reforma e a reconciliaccedilatildeo

A resposta comeccedila assim eacute impossiacutevel decompor os atos humanos em um

momento interno e outro externo os atos satildeo iacutentegros e unos e sua exteriorizaccedilatildeo nos leva

240 VON HIRSCH op cit [n 171] p 121 241 Cf MURPHY Jefrrie G The states interest in retribution Journal of Contemporary Legal Issues v 5 p 283 1994 METZ Thaddeus How to reconcile liberal politics with retributive punishment Oxford Journal of Legal Studies v 27 n 4 p 683ndash705 2007 HANA Nathan Liberalism and the general justifiability on punishment Philosophical Studies v 145 n 3 p 325-349 2009

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a perquirir sobre os motivos242 Mas um jurista importa-se mais e em primeiro lugar com a

exteriorizaccedilatildeo do que com a intenccedilatildeo enquanto um moralista se interessa sobretudo com

a intenccedilatildeo servindo a exteriorizaccedilatildeo porque facilita a qualificaccedilatildeo daquela243 Eacute dizer com

Miguel Reale ldquoo moralista visa de maneira final agrave intenccedilatildeo porque eacute em funccedilatildeo dela que

se caracteriza eticamente o agente o jurista ao contraacuterio procede de maneira quase

inversa - vai da intenccedilatildeo para o ato a fim de classificaacute-lo e agrave luz dele qualificar

juridicamente o agenterdquo244 E no Direito Penal a mesma coisa se passa pois o ato natildeo pode

ser considerado crime sem referecircncia a intenccedilatildeo eacute a ldquointenccedilatildeo () que faz a maldade do ato

injustordquo245

Eacute a sutileza acima que von Hirsch parece natildeo capturar246 pois Duff natildeo eacute

um moralista e nem sua teoria pode ser considerada como interna uma vez que eacute da

natureza mesma do Direito analisar a relaccedilatildeo de ato e intenccedilatildeo haacute uma ordem entre esses

elementos natildeo uma separaccedilatildeo247

Imaginemos por exemplo um estuprador Seu ato natildeo eacute puramente

corporal um assalto agrave viacutetima nele tambeacutem eacute manifestado o descaso com a dignidade

sexual248 Seria muito estranho se esse criminoso dissesse ldquoeu estuprei aquela moccedila mas

respeito demais sua dignidade sexualrdquo O ato criminoso possui um sentido rico incluindo aiacute

as intenccedilotildees que diretamente ele torna real Natildeo se pode dizer que a intenccedilatildeo uma vez

tornada ato permaneccedila na esfera privada do indiviacuteduo intocaacutevel portanto para a puniccedilatildeo

242 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed Satildeo Paulo Saraiva 2002 p 665 et seq 243 Ibidem 678 244 Ibidem 679 245 Ibidem 667 246 As preocupaccedilotildees de von Hirsch contudo chamam a atenccedilatildeo para uma constataccedilatildeo importante Assim como o direito opera em direccedilatildeo oposta agravequela perseguida pela moral tambeacutem a penitecircncia secular opera em direccedilatildeo oposta agrave penitecircncia religiosa Esta importa-se menos com os frutos condignos do arrependimento do que com a iacutentima mudanccedila do coraccedilatildeo Naquela entretanto a direccedilatildeo eacute inversa o mais importante eacute a reparaccedilatildeo apologeacutetica do que o arrependimento sincero O que natildeo se pode e nem mesmo eacute possiacutevel eacute ldquocortarrdquo a esfera interna sob o fraacutegil argumento de que o Estado sobre ela natildeo pode intervir Natildeo soacute pode intervir como nem poderia fazecirc-lo diferentemente uma vez que os atos humanos conforme exposto satildeo indecomponiacuteveis Mas essa incursatildeo deve ser feita com todas as cautelas e limitaccedilotildees apontadas no corpo do texto 247 Da relaccedilatildeo entre direito e moral no quanto tange agrave interioridade e agrave exterioridade ver RADBRUCH Gustav Filosofia do direito 6 ed Coimbra Armeacutenio Amado 1997 p 97-101 248 DUFF Antony R op cit [n 138] p 125-129

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criminal249 Quando punimos punimos sobretudo o ato mas em certa medida tambeacutem

punimos algumas das caracteriacutesticas que no agente possibilitaram o ato

Duff nos daacute uma acertada explicaccedilatildeo a respeito

[A lei] natildeo estaacute preocupada meramente com ldquocondutasrdquo externamente concebidas em termos de suas atuais ou provaacuteveis consequecircncias mas com accedilotildees dessa maneira ricamente concebidas Sua resposta aos crimes deve ser tambeacutem uma resposta a eles como ldquoinjusticcedilasrdquo (wrongs) de seu tipo natildeo meramente como conduta extrinsecamente ldquoprejudicialrdquo (harmful) mas como accedilotildees injustas Ela deve tal resposta tanto agraves viacutetimas como uma resposta que reconhece a caracteriacutestica do prejuiacutezo que elas sofreram e ao ofensor como uma resposta centrada naquilo que em sua conduta fez ela (a conduta) e ele um apropriado objeto da atenccedilatildeo da lei Igualmente o que os ofensores devem agraves viacutetimas e aos companheiros cidadatildeos satildeo apologias que reconhecem a injusticcedila que eles causaram Compensaccedilatildeo pode ajudar a reparar o prejuiacutezo material causado mas soacute uma apologia uma expressatildeo puacuteblica de arrependimento pode comeccedilar a reparar o erro moral causado250

Todavia embora a puniccedilatildeo criminal possa ir aleacutem do ato e inquirir sobre a

intenccedilatildeo ao fazecirc-lo natildeo precisa abarcar as profundezas do ser moral do indiviacuteduo no

ambiente secular a comunicaccedilatildeo penitencial natildeo precisa ser tatildeo ambiciosa251 Deve-se

salientar ademais que o arrependimento comporta graduaccedilotildees natildeo eacute assunto do tipo ldquoou

tudo ou nadardquo252 O arrependimento que aqui se busca natildeo eacute religioso portanto mesmo o

preenchimento imperfeito de seu complexo processo moral possui relevacircncia253 Se o

criminoso completou sua penitecircncia merecida mas em seu acircmago natildeo se arrependeu natildeo

devemos questionar insistentemente sobre sua sinceridade Isso porque ele possui um

nuacutecleo de privacidade inacessiacutevel e autonomia para escolher natildeo ser persuadido pela

mensagem moral Nesses casos tanto a viacutetima quanto a comunidade podem considerar que

ele atravessou o ritual penitencial o que o criminoso devia a reparaccedilatildeo apologeacutetica de

249 DUFF Antony R op cit [n 138] p 129 250 DUFF Antony R op cit [n 138] p 128 251 DUFF Antony R op cit [n 151] p 303 252 TASIOULAS John Repentance and the liberal state Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 487-521 2007 p 489 et seq 253 Ibidem p 491

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certa forma foi ldquoextraiacutedordquo Sendo assim devemos trataacute-lo como se o ldquodeacutebitordquo tivesse sido

pago254

Por outro lado pode-se ateacute mesmo asseverar que seria paradoxal respeitar

um indiviacuteduo no entanto natildeo se importar com o que ele tem a dizer ndash como quer von Hirsch

com sua teoria comunicativa externa Voltemos agravequele exemplo de Joatildeo e Maria

Imaginemos que eu vou conversar com Maria e ela confessa ter sido a autora da conduta

que ofendeu Joatildeo (ou seja jaacute passamos da parte de saber se ela eacute culpada como se no

processo criminal a sentenccedila condenatoacuteria tivesse transitado em julgado) Apoacutes ela ter

assumido a responsabilidade eu a censuro dizendo o quanto sua accedilatildeo eacute errada Mas

quando ela vai responder eu simplesmente a ignoro pouco me importando como ela iraacute

receber a mensagem enviada Agora se eu levo a seacuterio nossa amizade entatildeo eu vou querer

saber como Maria se sente se ela estaacute arrependida se pretende mudar suas atitudes para

natildeo cometer o mesmo erro se quer reconciliar-se com Joatildeo Para saber dessas coisas eacute

preciso considerar a dimensatildeo interna dos sentimentos e das disposiccedilotildees Consideremos

agora que a ofensa dela eacute considerada crime Como membros da comunidade poliacutetica natildeo

somos amigos daiacute porque natildeo seria admissiacutevel uma tamanha intromissatildeo em todo seu ser

moral Ocorre entretanto que tambeacutem natildeo somos totais estranhos a ponto de eu censuraacute-

la sem conceder relevacircncia devida para a maneira como ela recebe a mensagem Logo se

efetivamente vou trataacute-la como responsaacutevel tenho o dever de escutar a parte dela na

comunicaccedilatildeo moral - ainda que seja para dizer que natildeo foi persuadida

Conclui-se enfim diante de todos esses argumentos que a puniccedilatildeo como

penitecircncia secular eacute compatiacutevel com um Estado que respeite seriamente a privacidade de

seus cidadatildeos Acrescenta-se entretanto que existem seacuterias consideraccedilotildees praacuteticas a

respeito do arrependimento Nem mesmo podemos confiar no Estado satiriza Murphy para

entregar cartas com eficiecircncia o que se diraacute entatildeo sobre a capacidade de julgar uma

caracteriacutestica tatildeo nobre255 Dar creacutedito ao arrependimento eacute um problema pois as pessoas

podem facilmente forjaacute-lo ainda mais se houver alguma recompensa como o perdatildeo ou a

254 DUFF Antony R op cit [n 138] p 123-124 255 MURPHY Jeffrie G Remorse apology and mercy Ohio Journal of Criminal Law v 4 p 423-453 2007 p 437

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reduccedilatildeo na sentenccedila256 Como foi dito para o autor certa vez ldquolsquosinceridade eacute a coisa mais

preciosa do mundo Quando vocecirc aprender a fingi-la vocecirc estaacute com tudordquo257

256 Ibidem p 438 et seq 257 Ibidem p 440

96

CONCLUSAtildeO

Em linhas gerais satildeo estas as consideraccedilotildees retiradas do trabalho

Primeira as teorias preventivas devem ser chamadas de

consequencialistas Este eacute o termo correto utilizado em filosofia moral para designar que a

accedilatildeo justa eacute aquela que dentre todas as escolhas produz as melhores consequecircncias

(prevenccedilatildeo de crimes)

Segunda considerando que a puniccedilatildeo de inocentes poderia ao menos em

tese produzir as melhores consequecircncias (prevenccedilatildeo de crimes) nada impediria a

construccedilatildeo de um sistema de puniccedilatildeo que arbitrariamente puniria pessoas que nem

mesmo cometeram crimes As teorias consequencialistas em razatildeo de permitirem essa

injusticcedila natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal

Terceira ao importar conceitos natildeo-consequencialistas como o

merecimento as teorias consequencialistas se tornam artificiais e portanto natildeo podem

justificar a puniccedilatildeo criminal Tais teorias chamadas de mistas natildeo concedem explicaccedilotildees

suficientes para a combinaccedilatildeo desses princiacutepios que em regra satildeo irredutiacuteveis

Quarta no acircmbito das teorias retributivas deve-se atentar para dois

equiacutevocos comuns Em primeiro lugar anota-se que o termo retribuiccedilatildeo eacute ambiacuteguo e

designa muitas teorias diferentes mas natildeo se confunde com vinganccedila ou retaliaccedilatildeo Em

segundo lugar distinguem-se as teorias retributivas negativas das positivas Naquela os

teoacutericos natildeo explicam por que retribuir puniccedilatildeo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal

ou simboacutelica Nesta os autores efetivamente tentam explicar a ligaccedilatildeo entre crime e castigo

que o merecimento pretende capturar

Quinta o neorretribucionismo de fundamento onto-antropoloacutegico natildeo

explica porque eacute a puniccedilatildeo que restaura os laccedilos comunitaacuterios a relaccedilatildeo de cuidado-de-

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perigo ao inveacutes de uma resposta puramente verbal ou simboacutelica (retribuiccedilatildeo negativa)

Sendo assim a teoria eacute incompleta e portanto natildeo pode justificar a puniccedilatildeo criminal

Sexta a teoria de puniccedilatildeo como equidade natildeo pode justificar a puniccedilatildeo

criminal uma vez que as explicaccedilotildees sobre a natureza do crime e das pessoas natildeo eacute

convincente Natildeo haacute sentido em afirmar por exemplo que um estuprador recebe alguma

vantagem indevida em detrimento dos outros cidadatildeos De outro lado tambeacutem natildeo haacute

sentido em afirmar que a maioria das pessoas ache a lei que proiacutebe o estupro um fardo

Seacutetima a teoria paternaliacutestica de puniccedilatildeo e a teoria de puniccedilatildeo como

educaccedilatildeo moral natildeo podem justificar a puniccedilatildeo criminal Isso porque na realidade a maioria

dos criminosos natildeo precisa ser educada Aleacutem disso natildeo resta claro se essas teorias satildeo

compatiacuteveis com um Estado que realmente respeite a autonomia dos indiviacuteduos

Oitava existem valores compartilhados a liberdade e a autonomia que

definem e unem as comunidades A lei criminal portanto ao determinar que certa conduta

seja crime apenas incorpora aqueles valores que jaacute eram compartilhados pelos membros da

comunidade Consequecircncia disso eacute que a ameaccedila de puniccedilatildeo e a puniccedilatildeo devem ocorrer

pelas razotildees morais relevantes que fizeram a conduta em primeiro lugar ser considerada

criminosa

Nona a puniccedilatildeo criminal possui quatro funccedilotildees especiacuteficas o repuacutedio

autoritaacuterio a natildeo-aquiescecircncia simboacutelica a vindicaccedilatildeo da lei e a absolviccedilatildeo de terceiros Natildeo

se pode esquecer entretanto que tais coisas constituem apenas uma anaacutelise do que eacute a

puniccedilatildeo criminal portanto nada dizem sobre sua justificaccedilatildeo

Deacutecima tudo o que eacute crime deveria ser considerado moralmente errado O

traccedilo distintivo da lei criminal eacute justamente a incorreccedilatildeo moral A puniccedilatildeo comunica

desaprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo de um comportamento portanto natildeo faria sentido punir se o

crime fosse um ato moralmente neutro ou louvaacutevel

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Deacutecima primeira a puniccedilatildeo criminal eacute justificada ao menos em teoria se

entendida como um processo de comunicaccedilatildeo moral que visa ao arrependimento agrave

autorreforma e agrave reconciliaccedilatildeo O arrependimento eacute a resposta moralmente adequada

daquele que sente o peso da culpa Aquele que reconhece o erro sente a necessidade de

autorreforma e em razatildeo disso reconhece tambeacutem que precisa oferecer uma reparaccedilatildeo

apologeacutetica Sendo assim a caracteriacutestica onerosa da puniccedilatildeo deve ser entendida como

forma de penitecircncia secular por um lado a puniccedilatildeo manteacutem a atenccedilatildeo do criminoso focada

no iliacutecito por outro possibilita que este decirc uma forma material ao seu arrependimento

Ademais natildeo haacute incompatibilidade dessa teoria com um Estado que respeite a autonomia e

a privacidade dos indiviacuteduos porque a comunicaccedilatildeo moral por sua natureza mesma deixa

aberta a possibilidade para que o culpado natildeo seja persuadido

99

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