8/9/2019 Paulo Pacha Relacoes pessoais de dependecia e subordinacao a dominacao no alto-medievo ibrico
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RELAES PESSOAIS DE DEPENDNCIA E SUBORDINAO: A DOMINAONO ALTO-MEDIEVO IBRICO (SCS. VI-VIII)
Paulo Henrique de Carvalho Pach1(UFF)
I - Introduo
Permitam-me comear por uma breve digresso terico-metodolgica: a despeito desse
evento tomar com temtica geral o pr-capitalismo, no se enganem, trata-se de um evento
sobre histria contempornea. Os historiadores do futuro, em condies que nos escapam
imaginao, tero seu acesso ao passado (nosso presente) franqueado em parte porque no?
pelos vestgios desse evento que sobreviverem ao do tempo. Encontraro a uma
fotografia da produo historiogrfica brasileira acerca do pr-capitalismo e podero se
interrogar se essa produo diz mais sobre o medievo e a antiguidade ou sobre a primeiradcada do sculo XXI. Eu argumento que esses vestgios falam com a mesma eloquncia
sobre ambas as questes o pr-capitalismo e nosso mundo contemporneo , mas a
percepo disso depende, fundamentalmente, desse historiador no futuro. O que estou
enfatizando aqui, como primeira e primordial questo de minha apresentao, o mesmo que
Crocce eternizou na clssica passagem cuja eternizao deve-se, no tenho dvidas, ao
resgate e difuso de Marc Bloch e Lucien Febvre: toda histria histria contempornea2.
O ouvinte impaciente poderia questionar a relevncia de tanta nfase em uma passagem que, dizem os entendidos, tornou-se lugar-comum em nossa estranha tribo de
historiadores. Tais questes, conhecidas por qualquer aluno de primeiro perodo, constituiriam
assim um pressuposto de qualquer investigao histrica que conste deste evento e no
precisaria ser explicitada por qualquer um que almeje veicular qualquer novidade.
justamente desse ponto, contudo, que retiro a justificativa requisitada: em primeiro lugar,
penso que muito facilmente esquecemos dos nossos pressupostos originais e rapidamente
adotamos verses mais ou menos deformadas, seja por comodidade, seja por uma prtica em
meio a um campo que favorece essas deformaes no apenas por isso, mas principalmente
porque tende a rotular como indesejvel qualquer considerao que seja levemente terica;
segundo, em tempos de suposta hegemonia do ps-modernismo, o pressuposto em questo foi
1 Mestrando em Histria pela Universidade Federal Fluminense e bolsista CAPES sob orientao do Prof. Dr.Mrio Jorge da Motta Bastos.2 CROCE, Benedeto. Histria como Histria da Liberdade, Rio de Janeiro, Topbooks, 2006
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torcido e travestido em suas caractersticas mais importantes e existe hoje como justificativa
para uma historiografia reacionria e anticientfica. Resgatar o real sentido dessa expresso
uma tarefa que deveria orientar qualquer investigao em histria.
De maneira geral, o segundo ponto resgate do real sentido da expresso toda histria histrica contempornea , se bem empreendido, contm em seu interior o primeiro
anlise dos pressupostos que orientam a investigao histrica. Com essas questes em mente,
passo ento a uma considerao mais plenamente historiogrfica das questes que indiquei no
resumo desse trabalho, isto , uma anlise da forma, dinmica e desenvolvimento histrico das
relaes pessoais de dependncia e subordinao no medievo, bem como de seu papel
estrutural nessa sociedade. Enquadro meu objeto nos primeiros sculos da Alta Idade Mdia,
aquele perodo sem lei e sem Deus, o qual, segundo os antiquistas s pode ser medieval, dado
o seu barbarismo extremo e, segundo os medievalistas, pelos mesmos motivos, s pode ser
antigo, fruto do desmoronamento trgico do Imprio Romano e em nada semelhante gloriosa
Idade da F que encontramos alguns sculos depois e que constitui o foco prioritrio das
anlises em histria medieval. Geograficamente, a Hispania, em especial o reino visigtico,
o terreno por excelncia para a considerao de tais questes, dado o desenvolvimento precoce
e acelerado do processo de emergncia e difuso das relaes pessoais de dependncia e
subordinao nessa regio.
Todos sabemos que em histria sempre procedemos de forma retroativa. Nunca temoso passado em si, mas sempre um passado determinado, no apenas pelas traas, mas sempre
circunscrito por um quadro limitado de questes que nos so socialmente relevantes ou mesmo
compreensveis (e essa circunscrio pode ser consciente ou no, mas sempre se impe). A
proposta, supostamente revolucionria, de Alain Guerreau3, necessariamente esbarra nessas
questes j que, por mais que fale latim fluentemente, o medievalista no pode jamais tornar-
se medieval. Esse mais um aspecto da histria em sua radical e ineliminvel
contemporaneidade.
Se estou correto at aqui, posso argumentar que qualquer anlise histrica nasce de
alguma questo posta pelo presente, de algum aspecto da vida social contempornea cuja
historicidade buscamos e analisamos. As razes para tal busca podem ser diversas, mas o
3 GUERREAU, Alain. El futuro de un pasado. La Edad Media en el siglo XXI. Barcelona: Crtica, 2002.
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movimento da historiografia toma, necessariamente, essa forma.
O limite primeiro de minha investigao , portanto, uma considerao do estatuto da
fora de trabalho sob o capitalismo. As consideraes que seguem encontram aqui, contudo,
no apenas um limite, mas tambm suas condies de possibilidade: apenas porquecaracterizo o estatuto da fora de trabalho sob o capitalismo que, retroativamente, sou capaz
de enfocar o estatuto da fora de trabalho no medievo.
II Fora de trabalho livre
Para considerar essas questes, tomo apoio inicialmente na anlise de Marx
especialmente em O Capital4. Segundo Marx, no processo de transformao do dinheiro em
capital, necessrio que o possuidor do dinheiro encontre, no mercado, o trabalhador livre e,
sempre bom lembrar, livre em dois sentidos, quais sejam: o de dispor, como pessoa livre, de
sua fora de trabalho como sua mercadoria, e o de estar livre, inteiramente despojado de todas
as coisas necessrias materializao de sua fora de trabalho, no tendo, alm desta, outra
mercadoria para vender5. Em outra passagem, Marx pontua interessante considerar o
quanto h a de ironia ou no que a esfera da circulao um
verdadeiro paraso dos direitos inatos do homem. S reinam a liberdade,igualdade, propriedade e Bentham. Liberdade, pois o comprador e ovendedor de uma mercadoria a fora de trabalho por exemplo, sodeterminados apenas pela sua vontade livre. Contratam como pessoas iguais, juridicamente iguais. [...] Igualdade, pois estabelecem relaes mtuasapenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente porequivalente. Propriedade, pois cada um s dispe do que seu. Bentham,pois cada um s cuida de si mesmo6.
importante destacar, contudo, que tal caracterizao encontra-se num elevado nvel
de abstrao, orientada para as formas de manifestao do fenmeno a aparncia. Em outros
momentos da obra Marx encontramos consideraes que decorrem diretamente dessa primeiraaproximao mas que, em seu desenvolvimento, desvelam o vu da aparncia e demonstram
como estas so as formas de manifestao socialmente necessrias de relaes causais outras,
4 MARX, Karl. O Capital: Crtica da Economia Poltica. Livro I. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004.5 Idem, p. 199.6 Idem, p. 206.
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mais profundas.
Assim, englobando e superando as anlises da economia politica clssica, Marx
demonstra como o reino da liberdade, igualdade, propriedade e Bentham, isto , o reino da
pura individualidade, deve, ao contrrio, ser caracterizado pela dependncia multilateral dosprodutores entre si. Segundo o autor, no s a produo de cada indivduo dependente da
produo de todos os outros; como [tambm] a transformao de seu produto em meios de
vida para si prprio torna-se dependente do consumo de todos os outros7. Que o mercado, ou
mais propriamente o valor, seja a forma de efetivar essa dependncia generalizada, portanto
uma efetivao estranhada, no decorre da qualquer independncia, muito embora essa seja
constituinte das formas de manifestao desse processo, portanto, real em determinado
aspecto.
III Relaes pessoais de dependncia
de conhecimento geral a frase de Marx que une smios e homens, qual seja, a
anatomia do homem uma chave para a anatomia do macaco8. O processo aqui,
supostamente invertido, explicita apenas como a forma mais desenvolvida contm uma chave
outras so possveis, ningum o negaria para o entendimento da forma menos
desenvolvida. A suposta inverso decorre de nosso hbito intelectual, historicista de certa
forma, de pensar o mundo como escatologia ou teleologia do tipo ruim, como se a formamenos desenvolvida redundasse, necessariamente, na forma mais desenvolvida. Um tipo de
iluso biogrfica universal9. O processo racional, claro est, analisar a forma mais
desenvolvida como um caminho possvel dentre outros, plenamente efetivado e que, como tal,
nos arma com as ferramentas para compreender a forma menos evoluda em suas mltiplas
determinaes.
Essas consideraes sobre macacos e homens no devem nublar que estou aqui
7 MARX, Karl. Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy (Rough Draft).Harmondsworth: Penguin Books, 1977, pp. 156-74. Traduo: Mrio Duayer Departamento de Economia /UFF. Verso Preliminar.8 MARX, Karl. Manuscritos econmico-filosficos e outros textos escolhidos. Coleo Os Pensadores. SoPaulo: Abril Cultural, 1978, p. 120.9 Uma exagerada derivao universalizadora das indicaes de BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica In:FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina. Usos e abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV,1996.
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resgatando os pontos iniciais de minha apresentao, isto , temos a histria sempre de forma
retrospectiva e, consequentemente, no devemos ignorar os desenvolvimentos que os
processos do passado desnudam em nosso presente. Dito isso, posso explicitar na sequencia
que a anlise de Marx no caracteriza apenas o estatuto da fora de trabalho no capitalismomas, no movimento descrito acima e, devo lembrar, tambm dialtico, dado que a
compreenso da anatomia do macaco tambm contribui, em um segundo momento, para a
compreenso da anatomia do homem caracteriza tambm o estatuto da fora de trabalho no
pr-capitalismo em geral.
A caracterizao de Marx acerca do estatuto da fora de trabalho no pr-capitalismo (e
o medievo sempre o caso especfico por excelncia) pode ser resumida da seguinte forma: se
no capitalismo reina a aparente independncia geral entre todos os indivduos que vela, j
consideramos, uma efetiva dependncia multilateral , no medievo as relaes sociais so,
prioritariamente, relaes pessoais de dependncia e subordinao, amplas e hierarquicamente
articuladas. So essas relaes que constituem as determinaes mais gerais dessa sociedade e,
ao mesmo tempo, o modelo para outras relaes. A dissoluo dessas relaes, como se v,
pressuposto para o quadro que analisamos anteriormente, a esfera da circulao capitalista.
As indicaes de Marx no que tange esse aspecto so bastante gerais. Trata-se apenas
de demonstrar como a emergncia do modo de produo capitalista pressupe enormes
transformaes nas relaes sociais humanas e, com isso, explicitar sua radical historicidade.A tarefa inconclusa, por outro lado, avanar essas indicaes gerais em consideraes mais
detidas acerca do sociedade medieval, explicitando, contudo, que a orientao da investigao
sempre contribuir no caminho de volta, isto , invertendo a frmula sempre em seu aspecto
dialtico e enquanto segundo momento tomar a anatomia do macaco desvelada como uma
chave para a anatomia do homem.
O primeiro passo de tal considerao detida foi percorrido, entre outros, por Joo
Bernardo, historiador portugus autor de uma sntese Poder e Dinheiro10 cuja extenso e,
ao mesmo tempo, preciso no podem ser louvadas propriamente nos limites dessa
comunicao. Assumindo o risco de parecer exagerado, trata-se, sem nenhuma dvida, de obra
10 BERNARDO, Joo. Poder e dinheiro: Do poder pessoal ao Estado impessoal no regime senhorial Sculos V-XV. Vol. I. Sincronia: Estrutura econmica e social do sculo VI ao sculo IX. Porto:Afrontamento, 1995.
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obrigatria para qualquer medievalista. Segundo Joo Bernardo, qualquer considerao detida
do medievo deve em especial na Alta Idade Mdia sublinhar a distino j presente em
Marx entre as relaes de dependncia e subordinao. Trata-se aqui de distinguir o carter
eminentemente classista das relaes medievais, articulando dois blocos principais que seconstituem durante os primeiros sculos da Idade Mdia, isto , campesinato e aristocracia.
Tal distino no a regra na historiografia que, ao contrrio, pouco trata dessas
questes as v como pano de fundo para outras anlises e, quando o faz, insiste na suposta
indiferenciao entre dependncia e subordinao, como se as relaes senhoriais e servis
apresentassem uma identidade completa em suas lgicas, dinmicas e desenvolvimentos. A
contribuio que esse trabalho objetiva demonstrar como mesmo nas fontes medievais tal
distino aparece, ainda que nunca de forma explcita na clebre imagem de Georges Duby,
h fontes mais carregadas de ideologia que aquelas produzidas no medievo? mas cujos
fundamentos podem ser desvelados pelo historiador.
Na Hispania do sculo VII encontramos uma sociedade, medieval em suas
caractersticas gerais, mas fortemente marcada por um precoce desenvolvimento das
tendncias que s alguns sculos depois sero verificadas em outros ponto da Europa
Ocidental. No termo caro historiografia espanhola, trata-se da protofeudalizao visigtica11.
Em linhas gerais, o termo refere-se posio hegemnica da aristocracia e ao acelerado
processo de homogeneizao servil, constituindo assim as duas classes fundamentais dessasociedade. A indistino entre aristocracia laica e eclesistica importante para compreender
como a hegemonia aristocrtica dessa sociedade une enquanto classe a comunidade dos
aristocratas, explicitando sua experincia e interesses comuns, alm de uma posio no
processo produtivo absolutamente idntica vivem do trabalho alheio, dos servos.
Caracterizar os santos como parte do mesmo grupo tambm no deve constituir nenhuma
surpresa exceto para aqueles que creem em sua natureza sagrada , dado que os hagigrafos
esforam-se para construir, sem exceo, uma origem aristocrtica para os hagiografados.
A Vida de So Milo12, redigida por Brulio, bispo de Saragoa, aproximadamente em
636, narra em cores vibrantes a trajetria de Milo, santo de origem humilde que , conforme
11 GARCA MORENO, Lus A. Historia de Espaa Visigoda. Madrid: Ctedra, 1998. RUCQUOI, Adeline.Histria Medieval da Pennsula Ibrica. Lisboa, Editorial Estampa, 1995.12 OROZ, Jos (ed.) Sancti Braulionis Caesaraugustani Episcopi. Vita Sancti Aemiliani. Perficit, S/l., SegundaSerie, v. IX, n. 119-120, pp. 165-227, 1978.
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mencionamos, rapidamente alado condio de homem digno, purificado de sua vilania
atravs do contato com o prprio Deus. A Vida profcua em detalhar como o santo, o
escolhido de Deus, hbil em remover ou mesmo destruir os obstculos que se interpe
em seu caminho. Aps um longo perodo em que se isola na regio escarpada ao norte dapennsula, Milo passa a ser procurado e reconhecido por sua capacidade de intercesso ao
sagrado, sendo alvo de assdio por multides que o imploram pela realizao de milagres
diversos como curas, exorcismos e proviso de alimentos.
Segundo o hagigrafo, cada milagre realizado apenas aumentava ainda mais a fama e o
prestgio de Milo, aumentando em torno deste a multido que buscava seu auxlio. A enorme
diversidade dos contatos do santo com grupos sociais vrios salta aos olhos em qualquer
leitura da hagiografia: alm da proviso de alimentos para a multido de famintos que o
seguia, por exemplo, com um pouco de vinho sacia muita gente13, o santo realiza milagres
diversos, devolve a viso a uma ancilla dosenatorSicrio14, livra do demnio o servo de
um tal Tuncio15, cura a outro endemoniado, servo do conde Eugenio16, livra do demnio
o senator Nepociano e sua mulher Proseria17 e mesmo profetiza a destruio da
Cantbria18.Dessa diversidade de contatos, Peter Brown sublinhou o carter no-classista da
santidade19, possibilitando que este transitasse entre as diversas classes sociais e
permanecendo indefinvel, algum poderia dizer que mantm algo de seu carter sagrado, no
mnimo misterioso.Um milagre em especfico relatado na hagiografia, por outro lado, revelador da real
insero do santo nessa sociedade e nos ajuda a entrever como a diferenciao entre
dependncia e subordinao vital para qualquer anlise da sociedade medieval. Narra a
hagiografia que na casa de umsenator, Honrio, habitava um demnio terrvel extremamente
nocivo e promotor de alvoroos20. Por exemplo, durante um banquete misturava na comida
restos e lixo e ovos de animais mortos, ou, durante a noite retirava as roupas de homens e
13 Idem, p. 205.14 Idem, p. 197.15 Idem, p. 199.16 Idem.17 Idem.18 Idem, p. 211.19 BROWN, Peter. The Cult of the Saints - Its Rise and Function in Latin Christianity. Chicago: Universityof Chicago Press, 1996, p. 19.20 OROZ, Jos (ed.). Op. Cit. p. 201.
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mulheres enquanto estes dormia e as pendurava no teto21. Aflito por uma situao to terrvel,
Honrio toma conhecimento da fama de Milo e manda chamar o santo, enviando os meios
para seu transporte. Aps ouvir as splicas dos mensageiros enviados por Honrio, o santo
encaminha-se para a manso dosenator, mas recusa o transporte enviado e caminha por seus prprios meios, segundo Brulio, para demonstrar a potncia de nosso Deus22. No local,
Milo rene os presbterios da regio, decreta o jejum e, ao terceiro dia, exorciza a casa e pe
em fuga o combativo demnio.23
Tal milagre, aparentemente apenas mais um caso de exorcismo dentre os muitos que
constam na hagiografia, revelador se articulado com outro episdio narrado posteriormente.
Cercado por uma multido de famintos e sem qualquer meio para aliment-los, o santo inicia
uma prece Deus: Ainda no havia concludo a orao, quando de repente entram pela porta
algumas carroas abundantemente carregadas, que lhe havia mandado o senatorHonrio. O
amado de Deus recebe a remessa, dando graas ao Criador do mundo por ter escutado a sua
orao24.
A compreenso desses relatos, se pensamos em sua ntima conjugao, s pode ocorrer
no quadro da troca de presentes, ou, conforme a nomenclatura clssica, o dom. Desde que
destacado o potencial conflituoso que essa relao engendra e figura, podemos adotar a breve
caracterizao do dom empreendida por Marcel Mauss25, isto , o encadeamento de trs
obrigaes recprocas: dar, receber e retribuir. Em resumo, deve ser destaca a idia de que tododom obriga um contra-dom, a retribuio. Na impossibilidade desta, torna-se aquele que no
pode retribuir devedor do primeiro doador, elevando este a um patamar superior na relao.
Considerada em tal quadro, a relao entre Milo e Honrio percorre cada um dos
momentos do dom: doao (exorcismo da casa e expulso do demnio), recebimento da
doao (aqui expressa ainda mais fortemente, j que Honrio busca o dom do santo) e
retribuio (o envio das carroas carregadas de alimentos ao santo). A relao aqui
restabelecida em seus termos originais de igualdade, dado que seus participantes so capazes
de cumprir suas obrigaes recprocas. mesmo possvel avanar a hiptese de que a relao,
21 Idem.22 Idem.23 Idem.24 Idem, p. 205.25 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva In:Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac Naify, 2003, p.188.
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aps o contra-dom de Honrio, encontra-se ainda mais fortalecida, j que demonstrou-se a
capacidade de cada participante.
A distino entre dependncia e subordinao aqui vital. A relao entre iguais em
momento algum, como se v, engendra qualquer tipo de dependncia. Ao contrrio, o que sev uma afirmao extrema da independncia de cada participante da relao, dado que o
santo recusa o transporte enviado por Honrio e agradece Deus pela realizao do milagre.
Entre aristocratas institu-se, desde que mantido esse estatuto, uma subordinao que ,
essencialmente poltica, no se imiscu nas relaes fundamentais de produo e reproduo
da vida. A vassalagem o melhor exemplo de tal caso.
Ao contrrio, entre o santo e a multido de famintos que tem suas condies de
reproduo possibilitadas pelo santo atravs da doao de alimentos , nada resta para
retribuir alm de seus prprios corpos e vidas. Institu-se aqui no uma mera subordinao
poltica, mas uma efetiva dependncia econmica, localizada no momento especfico de
produo e reproduo da vida. O exemplo mximo aqui no outro seno a servido.
Considerar a servido como a vassalagem destituda de luxo nublar uma diferena
fundamental que articula e que s assim o pode fazer as classes fundamentais dessa
sociedade e, assim toda a reproduo do edifcio social medieval.
As consideraes acima referem-se, sobretudo, forma das relaes pessoais de
dependncia e subordinao. Quanto s suas dinmicas e evolues histricas, as relaesintra-aristocrticas e entre a aristocracia e o campesinato tenderam a uma evoluo que
possibilitou a completa homogeneizao da classe servil, reduzindo a dependncia os
camponeses pobres e ainda independentes e assentando os antigos escravos em lotes
familiares. Do ponto de vista da aristocracia, o processo de subordinao criou uma estrutura
estatal extremamente hierarquizada e cuja sobrevivncia esteve intimamente ligada ao seu
poder de atrao e dominao do campesinato, consubstanciada no desejo de preservao da
mesma pela aristocracia, ainda que tenha sido alvo de sucessivos golpes dinsticos.
Como bem nos conta Borges, o tormento de Funes, o memorioso26, conhecer os
singulares em suas mltiplas e infinitas determinaes, mas a incapacidade de abstrair e
generalizar o impedem tambm de pensar. Uma historia que no aborda a diferena, a
26 BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso.In: Obras Completas, V. 1. So Paulo: Globo, 2000.
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comparao, a transformao, cujo nico objetivo adicionar elementos descries j bem
estabelecidas uma histria perfeita para Funes, mas irrelevante para qualquer outro.
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