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Construção de concepções e suas intencionalidades: reflexões a partir do documentário “Marias: a fé no feminino” ADAILTON ANTÔNIO GALIZA NUNES * Resumo Partindo de Maria, personagem do catolicismo, o presente artigo reflete como representações históricas e religiosas deste feminino divinizado são provenientes de memórias institucionalizadas pela Igreja Católica Apostólica Romana, de crenças relativas a deusas ancestrais, de relações sociais ordinárias e de práticas culturais. Como fonte para discutirmos o processo de construção de concepções marianas, o documentário "Marias: a fé no feminino" é abordado, levando em consideração a multiplicidade de sujeitos envolvidos, seu cotidiano e os grupos aos quais estão vinculados. E é entre espaços sagrados e profanos, entre distintas temporalidades e espacialidades e entre Igreja e cinema que algumas intencionalidades cerceadoras de concepções marianas são evidenciadas. Palavras-chave: construção de concepções; intencionalidades; Maria * UNICAMP, doutorando em Educação, apoio CNPq.

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Construção de concepções e suas intencionalidades: reflexões a partir do documentário

“Marias: a fé no feminino”

ADAILTON ANTÔNIO GALIZA NUNES*

Resumo

Partindo de Maria, personagem do catolicismo, o presente artigo reflete como representações

históricas e religiosas deste feminino divinizado são provenientes de memórias

institucionalizadas pela Igreja Católica Apostólica Romana, de crenças relativas a deusas

ancestrais, de relações sociais ordinárias e de práticas culturais. Como fonte para discutirmos o

processo de construção de concepções marianas, o documentário "Marias: a fé no feminino" é

abordado, levando em consideração a multiplicidade de sujeitos envolvidos, seu cotidiano e os

grupos aos quais estão vinculados. E é entre espaços sagrados e profanos, entre distintas

temporalidades e espacialidades e entre Igreja e cinema que algumas intencionalidades

cerceadoras de concepções marianas são evidenciadas.

Palavras-chave: construção de concepções; intencionalidades; Maria

* UNICAMP, doutorando em Educação, apoio CNPq.

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Introdução

Maria somos todas nós... Maria é essa mulher que está no morro... que tem seus

filhos... o marido abandona e pega outra da metade da idade... e ela cria esses filhos...

e ela vai buscar um outro parceiro... e ela tem o sorriso... E a força da mulher é isso...

essa capacidade de dar a volta todos os dias (MARIAS: a fé no feminino, 2015).

O trecho acima é parte de uma das narrativas de experiência sobre “quem é Maria?” encontradas

no documentário Marias: a fé no feminino (2015). A diretora Joana Mariani compila diversas

outras vozes para exibir uma “Maria plural”, realizando um movimento que descrevemos como

construção de concepção. As filmagens foram realizadas em diferentes países da América

Latina e é inegável como cada pessoa responde à pergunta “quem é Maria?” baseando seus

discursos em outros provenientes da doutrina oficial da Igreja Católica Apostólica Romana, de

crenças relativas a deusas ancestrais, de relações sociais ordinárias e de práticas culturais.

A fim de demonstrar como algumas concepções marianas são construídas, este artigo

será dividido em três partes, a saber: Documentário, vozes e construção de concepções

marianas, momento em que descreveremos algumas cenas do documentário e como este

movimento se assemelha à construção de concepções; em seguida, passaremos à Imagem

mental mariana, sua relação com a Igreja e como esta Instituição a constrói, fazendo com que

se torne uma referência sobre quem é a personagem bíblica Maria; após, no item

Intencionalidades, apontamos como uma concepção construída, quando comparada à imagem

mental institucionalizada, revela-se portadora de certas intenções, evidenciadas em

proximidades e distanciamentos discursivos.

Documentário, vozes e construção de concepções marianas

O documentário Marias: a fé no feminino (2015) inicia-se com uma cena expressiva:

uma fábrica que produz imagens de gesso. Um funcionário retira de fôrmas ou moldes, com um

certo cuidado, imagens que possuem um tom branco intenso. Além da sutil trilha sonora, a criar

uma expectativa em segundo plano, o que se ouve são somente os ruídos dos moldes sendo

desencaixados do gesso, por meio das mãos de um funcionário habilidoso, que se esforça para

não causar dano às imagens, enquanto estas são postas de volta à bancada de trabalho.

Intencionalmente ou não, o funcionário volta uma das imagens em direção à câmera, justamente

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onde o foco, daquela cena, está mais nítido, fazendo-nos então perceber que aquela imagem de

gesso é a de Nossa Senhora Aparecida, já institucionalizada pela Igreja Católica.

A primeira cena finaliza e, subitamente, o som de cordas de violão rompe a trilha sonora,

antes suave. Nenhuma cena se vê, além de uma tela preta. Ouvimos arpejos de violão que

aumentam em intensidade e que se misturarão com o som de um violino e depois de um teclado.

A palavra “Maria” surge na tela. Em seguida, uma letra “s” é adicionada, pluralizando a palavra

em “Marias”. Após, em uma nova cena, a imagem de gesso de Nossa Senhora Aparecida

aparece, totalmente branca. Ela é filmada em destaque na fábrica, sugerindo uma espécie de

protagonista onisciente de tudo o que iremos assistir. Poucos segundos, e agora em diferentes

países, artesãos executam suas habilidades à sua própria maneira: um deles utiliza um

compressor com tinta azul para desenhar uma imagem mariana em uma camiseta branca. Em

outro país, uma artesã esculpe em madeira a imagem de Maria. Talvez no México, outros

artesãos aplicam miçangas em tecidos com desenhos de Nossa Senhora de Guadalupe. Já em

um outro país, alguns artesãos fabricam mini oratórios. Todos estão em um movimento de

constante construção.

Adicionalmente, nestas primeiras cenas do documentário, à medida em que se

intensifica a trilha sonora, surgem vozes de mulheres e de homens não identificados, narrando

quem seria Maria para eles:

A Virgem é a intermediária... que as pessoas usam... para pedir algo a Jesus... ou a

Deus (MARIAS: a fé no feminino, 2015).

E não tem o que um filho não peça pra uma mãe que uma mãe não faça. E vice-versa (ibid.).

Em geral, em toda a América Latina... a mulher... nas famílias... tem um peso maior...

e a Virgem representa a mãe. A mãe... a mãe é a mãe... é Maria Patrícia... Maria

Eugênia... (ibid.).

Ela que se manifesta em vários lugares e... acham que são várias Nossas Senhoras...

é uma só... é a energia poderosa e pura de Maria... que é a Nossa Senhora dos

Remédios... a dos Prazeres... é a aquela Conceição... é Nazaré... é Fátima... é

aquela... é a força geradora (ibid.).

Eu penso que Nossa Senhora... ela... ela aparece justamente com as características de cada povo... ou de cada época também... tem isso... justamente para falar mais

perto do coração... porque ela é mãe... né? A mãe fala todas as línguas... é como

Deus... Deus não tem religião... nós é que temos religião (ibid.).

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Estas vozes se entrelaçam e, sem que uma pessoa termine, uma outra já está a dizer qual sua

própria concepção mariana. Em paralelo às vozes, os trabalhos dos artistas tomam forma,

cores, luzes, sombras, adornos preciosos.

O ritmo da música, das respostas e dos trabalhos artísticos, antes intenso, torna-se cada

vez mais suaves e concentrados, convergindo naquela fábrica citada no início. A cena volta-se

à imagem de gesso já pintada com tom de pele preta, com manto azul e detalhes dourados.

Como se tudo – vozes, cores, músicas – convergisse à imagem institucionalizada de Nossa

Senhora Aparecida.

Joana Mariani foi quem dirigiu este documentário. Ela é nascida em Londres, Reino

Unido, mas cresceu no Rio de Janeiro e é filha de mãe judia e pai católico (MARIANI, 2016a).

Estudou em um colégio confessional de orientação cristã católica. Embora educada em

princípios católicos, Mariani afirma que sua formação escolar mais a afastou do que a

aproximou das práticas religiosas. Em outra entrevista, a diretora comentou também que, em

certo sentido, o processo de produção do documentário pode ser compreendido como uma

forma de conciliar sua racionalidade com a fé (MARIANI, 2016b).

A busca de Joana Mariani por novos sentidos de vida e para o desenvolvimento do

projeto cinematográfico confluem na questão central do documentário: “quem é Maria?”. A

resposta, Mariani a procurou em diferentes manifestações dos devotos de padroeiras católicas

em regiões do Brasil, do México, do Peru, de Cuba e da Nicarágua. A diretora afirma que os

“entrevistados contam como veem Maria, e as imagens descritas variam bastante” (MARIANI,

2016a). No documentário há diferentes representações femininas, marianas ou não. Algumas

delas são: Nossa de Aparecida, Iemanjá, Nossa Senhora da Caridade do Cobre, Ochún1, Nossa

Senhora do Rosário de Talpa, Pacha-Mama2, Virgem da Candelária, Nossa Senhora de

1 Nossa Senhora da Caridade do Cobre, na santería cubana, pode ser chamada de Ochún. Decidi manter esta grafia

pelo fato de que, no documentário, durante uma cerimônia, aparece um bolo confeitado escrito “Felicidades

Ochún”.

2 Pacha Mama, Pacha-Mama, Pachamama ou Mama Pacha referem-se a uma deusa de indígenas andinos. O mito

de Pacha-Mama, deve se referir primitivamente ao tempo, talvez vinculado com a terra; o tempo cura as maiores

dores e também extingue as mais intensas alegrias, distribui as estações, fecunda a terra, sua companheira; dá e

absorve a vida dos seres no universo. Pacha significa originalmente tempo em linguagem kolla. Porém, ao longo

dos anos, de adulterações da língua e do predomínio de outras raças, o tempo foi confundido com a terra

(PAREDES, 1920:38, tradução nossa).

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Guadalupe, Tonantzin3. Joana Mariani, a partir dessa massa de representações e de respostas

sobre Maria, organizou o conteúdo de seu documentário:

foram seis anos de trabalho para lançar Marias [documentário]... editei a série

razoavelmente rápido, porque os tempos de televisão são rápidos. [Levou] dois ou três meses... A gente queria ter tempo, já que não tínhamos dinheiro. Mas [a razão

do longo tempo de produção é que] o documentário dirige você, e não o contrário.

Tive de aprender a abrir mão dessa teimosia. Acho que fiz um documentário na minha

cabeça e saí para filmá-lo, mas ele se apresentou como outra coisa. Fiquei teimando

na ilha de edição que ele era o que estava na minha cabeça, até que aceitei que ele

me dissesse o que era. Esse processo foi longo. Montei durante um ano, joguei o

material inteiro fora e voltei a montar do zero... Originalmente, saí para fazer um

filme sobre fé, mas ele se colocou como um filme sobre a questão do feminino, dos

valores femininos, da fé no feminino, do motivo pelo qual a mulher, a figura feminina,

é importante. E eu fiquei um pouco travada nisso. Quando joguei tudo no lixo e

comecei de novo, [a nova perspectiva] veio muito naturalmente. Talvez tenha ajudado a troca de um montador homem por uma montadora mulher. Talvez isso tenha

mudado a percepção das coisas (MARIANI, 2016a).

De certa forma, a organização de todo esse conteúdo em documentário torna-se uma das

infinitas concepções marianas possíveis que a diretora pode construir, como se Mariani

tivesse em mãos diferentes peças a serem arranjadas e rearranjadas, à própria maneira, dando o

formato que lhe parecer mais conveniente. Como determinar o que é uma concepção? Neste

artigo, utilizaremos algumas ideias do físico e fisiólogo alemão Hermann Ludwig Ferdinand

von Helmholtz, encontradas em seu livro Science and Culture: Popular and Philosophical

Essays (1995).

Ao discutir sobre a enorme massa de materiais acumulados pela ciência, Helmholtz

escreve sobre a necessidade de organização que consiste, em primeiro lugar, em um arranjo

mecânico dos materiais, como o que se encontra em nossos catálogos, léxicos, registros, índices,

resumos, anuários científicos e literários, sistemas de história e semelhantes (HELMHOLTZ,

1995:82-83). A partir desta organização, é preciso descobrir cada fato por meio de uma

observação cuidadosa, depois verificá-los e reuni-los, separando então o que é importante do

que não é (HELMHOLTZ, 1995:83).

Mariani também realiza esse movimento de organização, a saber: produção, filmagens,

edição. Para isso, é imprescindível compreender o objeto a ser compilado – que é o

3 O nome Tonantzin, em língua náhuatl, provém da cultura asteca, denotando a “Mãe Venerável”. Após 1521,

colonizadores espanhóis destruíram seu templo em Tepeyac, construindo uma capela de culto mariano

(BRADING, 2001).

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documentário em si e sua diretriz que, neste caso em particular, podemos dizer que é a pergunta

“quem é Maria?” – e compreender também os métodos utilizados – como realizar uma

produção, as filmagens e a alocação de cenas e de trilhas sonoras. O fato de conhecer o conteúdo

e os métodos que constroem o documentário – que constroem sua concepção – demonstra o

significado e o interesse especial que a diretora atribui a ele4.

Como descrito por Helmholtz, Mariani demonstra compreender seu objeto de

compilação ao mencionar sobre “os tempos de televisão” serem “rápidos”; sobre “o

documentário” dirigir você; sobre fazer o documentário em sua “cabeça” e sair “para filmá-lo”;

sobre montar o documentário “durante um ano” e jogar “o material inteiro fora”, voltando então

“a montar do zero” (MARIANI, 2016a). Em especial, a uma diretora é necessário conhecer os

processos, as limitações e quais materiais estão disponíveis para se chegar ao resultado final.

Quando Mariani conecta ou compila todas as respostas dos entrevistados, suas histórias

de vida, as imagens e os sons em um mesmo documentário, conforme sua compreensão do

objeto e do conteúdo, ela constrói sua própria concepção sobre quem é Maria. Talvez não

seja sua resposta estritamente pessoal, mas uma das possíveis concepções daquele espaço – o

cinema – e daquele tempo – o ano de 2015 – em que ela se encontra. Os movimentos realizados

por Mariani ao construir sua concepção mariana podem ser comparados em Helmholtz, no

trecho:

Nossos materiais devem ser trabalhados por um processo lógico; e o primeiro passo

é conectar-se com o semelhante e elaborar uma concepção geral que abranja todos

eles. Tal concepção, como o nome indica, toma um certo número de elementos

juntos e permanece como seu representante em nossa mente. Nós a chamamos de

concepção geral, ou a concepção de um gênero, quando ela abrange um número de

objetos existentes (HELMHOLTZ, 1995:83, grifo nosso).

A concepção mariana da diretora inclui um grande número de outras concepções marianas

vindas da Igreja Católica, de crenças em deusas ancestrais, das relações ordinárias e de práticas

culturais. Compiladas no documentário, de certa forma, representam sua interpretação pessoal

da imagem mental de Maria que também habita em sua memória. Em resumo, a concepção

de Mariani é o que ela mesma diz sobre o documentário; ele é “sobre a questão do feminino,

4 A fim de se realize uma organização sistemática dos materiais científicos, Helmholtz (1995:83) cita: “All this

requires a man with a thorough grasp, both of the object of the compilation, and of the matter and methods of the

science; and for such a man every detail has its bearing on the whole, and its special interest”.

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dos valores femininos, da fé no feminino, do motivo pelo qual a mulher, a figura feminina, é

importante”. Estas questões mencionadas pela diretora, enfatizadas na mesma personagem, não

exprimem “uma só Maria”, mas “Marias” ou uma “Maria plural”.

A imagem mental mariana

A construção de uma concepção necessita de uma referência. Mariani menciona que

saiu para fazer um filme sobre fé, acompanhando diferentes celebrações de Nossa Senhora em

países latino-americanos (MARIANI, 2016a). Então, sua referência de concepção mariana se

põe como a Maria institucionalizada no catolicismo, também denominada Nossa Senhora.

Segundo a Igreja Católica, na “missão de santas mulheres”, descritas no Antigo

Testamento, anteviu-se “a missão de Maria” (VATICANO, 2000:138): a de ser a “Mãe do

Salvador” (VATICANO, 1997:181), “a Mãe predestinada” de Jesus (ibid., 1997:180). “Deus

escolheu, para ser a Mãe de Seu Filho [...] uma jovem judia de Nazaré na Galileia, ‘que seria

desposada com um varão chamado José’” (VATICANO, 2000:137). Desde a “fundação do

mundo” (Efésios 1,4), Maria foi a que se sobressaiu entre as mulheres e homens marginalizados

e miseráveis5 que confiavam e esperavam pela “salvação” de Deus (VATICANO, 1997:182).

Além disso, a Igreja atribui a Maria uma “Imaculada Conceição”6, declarando-a como

uma mulher nascida sem pecado: “preservada imune de toda mancha do pecado original”

(VATICANO, 2000:138; DENZINGER, 2005:615). Maria também recebera um “anúncio” de

um anjo que, sem ter relação sexual com homem algum, ela conceberia o “Filho do Altíssimo”

por meio do “Espírito Santo” (VATICANO, 2000:139) e, não somente isso, a Igreja confessa

que Maria é a verdadeira Theotókos, a Mãe de Deus (VATICANO, 2000:140; DENZINGER,

2005, p. 615).

No Concílio de Latrão, afirmou-se que Jesus fora concebido “do Espírito Santo sem

sêmen” e Maria concebeu Jesus e permaneceu Virgem; tudo isso como manifestações da

5 Estas mulheres e homens remontam “à teologia dos chamados ‘anawîm, ‘os pobres de Javé’, que tanto relevo

têm na espiritualidade bíblica. Eles eram realmente pobres, mesmo a nível social [...]. Todavia, a pobreza bíblica

é um conceito “simbólico”, isto é, capaz de conter em si muitas dimensões. O pobre é humilde, doente, oprimido,

é a viúva e o órfão, é o contrário do rico e do poderoso, mas é também e sobretudo aquele que radica a sua confiança

unicamente em Deus e não no poder do homem, no orgulho e na soberba, no ídolo do dinheiro (RAVASI,

2012:172).

6 Imaculada Conceição é o nome do dogma proclamado em 1854 pelo papa Pio IX (DENZINGER, 2005:215).

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“iniciativa absoluta de Deus” (VATICANO, 2000:140-143; DENZINGER, 2005:182). Sua

virgindade é o sinal de sua fé, absolutamente livre de qualquer dúvida, além de ser sinal de sua

doação sem reservas à vontade de Deus (VATICANO, 1997:188; VATICANO, 2000:143, grifo

do autor).

Todas estas características agrupadas, provenientes da doutrina oficial da Igreja,

culminam em uma Maria do catolicismo que consideraremos a referência das construções

de concepções marianas ou a imagem mental mariana7. A partir desta imagem de referência

se baseia a pedagogia católica oficial sobre Maria. Também desta referência formulam-se

terminologias, classificações e hipóteses8. Assim sendo, na Maria do catolicismo, constatamos

algumas terminologias (Hodoghitria9, Panhaghia10), classificações (Nossa Senhora de

Aparecida, de Guadalupe) e hipóteses (ter nascido imaculada, ter permanecido virgem)

formuladas pela Igreja. A Instituição declara que “a Virgem Maria é para a Igreja o modelo da

fé e da caridade” (VATICANO, 2000:273); é um “membro supereminente e absolutamente

singular da Igreja, e também como seu protótipo e modelo11 acabado da mesma [Igreja]”

(VATICANO, 1997:180).

7 Na versão em inglês do texto A “objetividade” do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política, basicamente um tipo ideal é definido também como “uma imagem mental” (WEBER, 2012:125). Imagem mental

foi a tradução do termo alemão Gedankenbilde (WEBER, 1904). Na versão em português Gedankenbilde é descrito

como “pensamento” (WEBER, 2016:252). Ressalto que a imagem mental, assim como na construção de um tipo

ideal, “só pode ser considerado uma ferramenta, nunca um fim [em si]” (WEBER, 2012:xxiv, 126).

8 Ao longo do primeiro capítulo do livro Economia e Sociedade, Weber expressa as funções do tipo ideal.

Especificamente, destacamos um trecho sobre estas funções, em duas traduções diferentes do mesmo livro. Na

versão em inglês, temos: “The more sharply and precisely the ideal type bas been constructed, thus the more

abstract and unrealistic in this sense it is, the better it is able to perform its functions in formulating terminology,

classifications, and hypotheses” (WEBER, 1978:20). Na versão em português, “Quanto mais nítida e

inequivocamente se construam esses tipos ideais, quanto mais alheios do mundo estejam, neste sentido, tanto

melhor prestarão seu serviço, terminológica, classificatória, bem como heuristicamente” (WEBER, 1991:13). Uma discussão sobre tipo ideal, anterior à publicada no livro Economia e Sociedade, pode ser encontrada no ensaio

weberiano de 1904 chamado A “objetividade” do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política (WEBER,

2016:251-272).

9 “Jesus [...] é o Caminho de nossa oração; Maria, sua Mãe e nossa Mãe, é pura transparência dele. Maria ‘mostra

o Caminho’ (‘Hodoghitria’), é seu ‘sinal’” (VATICANO, 2000:686).

10 “Os Padres da tradição oriental chamam a Mãe de Deus ‘a toda santa’ (Pan-hagia) [...]. Pela graça de Deus,

Maria permaneceu pura de todo pecado pessoal ao longo de toda a sua vida” (VATICANO, 2000:139).

11 Na versão latina do documento conciliar Lumen Gentium (VATICANO, 2019:§53), a palavra typus é utilizada

para caracterizar Maria como um tipo humano de Igreja, “a realização exemplar da Igreja” (VATICANO, 2000).

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A Igreja “constrói” Maria como uma referência para os fiéis e faz dela a sua própria

referência. Acentua vários pontos de vista virtuosos fazendo-os culminar na jovem judia de

Nazaré na Galileia. Um destes pontos que mais se acentuam é o de determinar que Maria é a

representante, por excelência, do “arquétipo” da “união com Deus”, sendo [Ele] a “finalidade

da existência” humana (WOJTYłA, 1988:§4).

Podemos apontar por último, o encadeamento de fenômenos difusos e discretos que

fazem parte da construção da imagem mental mariana institucionalizada. Um breve exemplo

desse encadeamento é constatado nos processos de investigação para supostos milagres, como

as 2 mil visões da Virgem Maria alegadas desde o ano 40 d.C. “Para serem dignas de crédito e

do apoio da Igreja, as aparições têm de contar com alto grau de certeza, ser condizentes com a

doutrina religiosa e comprovadamente ter produzido um impacto positivo” (ORTH, 2015: 26).

Intencionalidades

Dada a breve construção anterior, podemos imaginar a Igreja católica como sendo

um pintor e a imagem mental de Maria como seu quadro12. À sua maneira, o pintor pretende

atingir uma similaridade com os objetos externos que está a reproduzir. Essa reprodução se dá

dentro de certos limites, ora imposto por ele, ora por aqueles que encomendam o quadro. Nestas

relações, existem intenções implícitas ou não, tais como o fato de se querer uma imagem mais

ou menos realista, do uso de determinadas cores, do tempo de realização da obra, de qual

perspectiva deve ser representada a imagem, do quão iluminada ou sombreada ela será. De certa

maneira, as intencionalidades estão entrelaçadas naquela pintura mesmo antes de o pintor

iniciá-la.

Falar em intencionalidades da imagem mental mariana é falar deste referencial

católico sempre em uma relação com as concepções marianas construídas, é falar sobre

qual o grau de similaridade há entre a concepção e a imagem mental; é falar sobre quais

são os limites estabelecidos pela Igreja quando alguém responde a perguntas como o “quem

é Maria?”. Quando uma pessoa, ao construir sua concepção, tem como referência a imagem

12 O exemplo de como o pintor procura produzir seu quadro ou pintura é descrito por Helmholtz (HELMHOLTZ,

1995:279-308) quando discute a relação da óptica com a pintura.

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mental que a Igreja “pinta”, dizemos que esta construção está próxima do referencial católico,

caso contrário, a concepção apresenta certo distanciamento.

Uma pessoa que, em sua vida, não tenha mantido qualquer contato com ritos, com

tradições, com catequese e com discursos católicos, se quer construir uma concepção mariana

católica, sem possuir referências estritamente católicas, logicamente apresentará dificuldades

em responder quem é Maria, numa perspectiva institucionalizada. Esta pessoa exibiria menor

similaridade em sua construção pessoal quando comparada à imagem mental mariana do

catolicismo, além de que, ao descrever sua concepção mariana, poucos termos e palavras seriam

“adequadamente” utilizados. Uma maior proximidade à imagem mental institucionalizada pode

se dar em consequência da participação em redes de relações em que haja amigos ou familiares

católicos ou mesmo pela vivência em um país cristão. A proximidade será cada vez maior

quanto maior for a imersão ou participação no catolicismo, seja de maneira direta – católico

praticante, por exemplo – ou indireta – de cunho acadêmico, ético-moral, cultural.

Por meio de um exemplo mais amplo, considere o fragmento:

Maria entra portanto na tradição cristã não só com os traços essenciais e puríssimos dos evangelhos canónicos, mas também com elementos deduzidos e filtrados da

massa de memórias e de criações devocionais apócrifas (RAVASI, 2012:297).

Este trecho foi retirado do livro Os rostos de Maria na Bíblia, escrito pelo exegeta e cardeal

católico chamado Gianfranco Ravasi. Ele menciona que o percurso [discussões no livro]

realizado, “procurando traçar com as cores bíblicas trinta e um ícones da Mãe de Deus

confirmou este perfil de Maria de crente perfeita, de bem-aventurada precisamente ‘porque

acreditou’ mesmo quando a obscuridade era predominante e dilacerante” (RAVASI, 2012:299).

A concepção mariana construída pelo autor italiano em todo seu livro é um primeiro ponto de

partida para discutirmos intencionalidades.

O movimento de construção da concepção mariana feita por Ravasi, comum à tradição

cristã católica, é o de uma convergência de interpretações e trechos dos evangelhos canônicos,

da massa de memórias da história da Igreja e também de devoções apócrifas. Podemos dizer

que, a predominância dessa concepção é de característica de proximidade. Na qualidade de

cientista hermenêutico, Ravasi (2012:299) descreve que uma “mariologia” – que aqui

consideramos também uma forma de construção de concepção – pode conter “superafetações

sentimentais” ou “mariolatrias devocionais”. Porém, ao considerar um “estatuto teológico”

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como referência, pode-se “alimentar uma sólida devoção e um genuíno sentimento espiritual”

(ibid.:299). Ou seja, para ele, o âmbito doutrinário teológico garante maior estabilidade e

legitimidade ao falar sobre quem é a Maria institucionalizada.

Considerando ainda o exemplo pintor/quadro e Igreja/imagem mental mariana, Ravasi

seria uma espécie de observador que está próximo, em distância, de um quadro. A visão deste

observador também é presumida como a de uma visão educada. Em outras palavras, o

“observador” Ravasi está “imediatamente diante” da imagem mental mariana “pintada” pela

Igreja. É partir do “local” em que se encontra, que Ravasi constrói sua concepção mariana.

Como teólogo, biblista e cientista, por diversas vezes, ele vincula sua concepção aos estudos da

doutrina católica oficial e à hermenêutica. Ele se utiliza de outras concepções apócrifas e

mesmo profanas que ajudam a interpretar quem é Maria, todavia, constantemente ele pondera

os afastamentos e aponta quais seriam os limites em que a imagem mental mariana católica está

delimitada. Como exemplo desta construção de Ravasi, temos o trecho abaixo

Podemos agora saudar Maria com as multíplices palavras dos Padres da Igreja ou

com as dos escritores, a que muitas vezes fomos beber. Podemos, por exemplo,

percorrer os Mistérios Gloriosos, a primeira obra literária de Luís Santucci (Milão,

1946), sinal de um singelo amor pelo mistério da Virgem Mãe. Podemos colmatar o

clima com o imenso repertório musical mariano. Ou parar estupefactos num texto do

filósofo e escritor ateu francês Jean-Paul Sartre (RAVASI, 2012:300).

É bem provável que a concepção construída por Ravasi será o mais similar possível à imagem

mental mariana institucionalizada, mesmo porque ele é um cardeal em comunhão com a Igreja.

Ele vê o quadro a partir daquilo que ele é.

Retornemos à concepção mariana do documentário de Joana Mariani. A diretora

centralizou a sua construção no questionamento “quem é Maria?”, fez convergir discursos,

crenças em deusas ancestrais, relações cotidianas e práticas culturais diversas em uma Maria

“plural” de notável “fé no feminino”. Deste ponto, consideremos esta concepção mariana como

uma segunda abordagem de discussão sobre intencionalidades. Pelo fato de seu documentário

– sua concepção – ser marcadamente constituído por diferentes concepções, destaquemos três

vozes como contraponto à concepção construída por Ravasi. O destaque inicial é o de uma

primeira entrevistada brasileira que expressa sua concepção mariana:

Foi a primeira feminista do mundo... você imagine que com uns 15... 16 anos... que

ela tinha... ela recebe a notícia que ela vai... engravidar... solteira... numa sociedade

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em que as mulheres eram apedrejadas... não precisa ter muita coragem?

(Entrevistada Maria Helena Chartuni, (MARIAS: a fé no feminino, 2015)).

Na Nicarágua, a segunda entrevistada diz:

A Maria de Nazaré, a Maria Galileia... primeiro é preciso imaginá-la analfabeta,

camponesa... e feia, inclusive, por ser mal alimentada. Seguramente, pastora de

cabras ou ovelhas. Gosto da imagem dela com um vestido cor terra, não azul. Só as

mulheres ricas de Jerusalém se vestiam de azul. Com certeza, Maria nunca se vestiu

de azul. Acho que foi uma mulher trabalhadora... que teve muitos filhos... como era o

esperado das mulheres daquela época. Todas as outras imagens de Maria... faz muito

tempo que não acredito... porque é bonita, mas não me diz nada há muito tempo. Para

mim, é a Maria histórica que faz sentido. Inclusive, eu me esforço para mudar minha linguagem... e jamais dizer Virgem Maria, mas chamá-la de Maria... que é o nome

dela, certo? Creio que Maria pode ser querida sem ser virgem. Acho que é aí que

devemos insistir. Que essa mulher é uma mulher cheia de graça... e irmã, diríamos,

das mulheres que são mães... que são esposas, que são amantes... que são mulheres,

não é? (Entrevistada Maria, (ibid.)).

Já no Peru, uma terceira entrevistada descreve:

À Pacha-Mama chamam-lhe mãe receptora, pois é a terra que recebe a semente e

que origina, digamos... que produz, que gera, que dá a vida. Nesse sentido, a Virgem

Maria é aqui substituída pela Pacha-Mama, pois atribui-se essa qualidade ao

feminino. A Virgem Maria é essa figura maternal, afetuosa, à semelhança da natureza

(Entrevistada não identificada, (ibid.)).

Destes três exemplos, percebemos proximidades e distanciamentos à imagem mental mariana

católica. Destacaremos algumas expressões em cada uma das três concepções e, em seguida, as

relacionaremos com a imagem mental mariana institucionalizada, discutindo possíveis

similaridades e limites entre a concepção pessoal e a imagem mental construída pela Igreja.

Referente a algumas proximidades, temos:

A primeira entrevistada menciona que Maria “recebe a notícia que ela vai...

engravidar”. Sem realizar uma pesquisa aprofundada sobre a entrevistada, como ela foi

educada ou sobre sua rede de relações sociais próximas ou não ao catolicismo,

destacamos que, ao utilizar esta expressão, ela está “próxima” à imagem mental

mariana. Segundo a doutrina oficial, um anjo chamado Gabriel, saúda Maria como

“cheia de graça”, anunciando que, sem conhecer homem algum, ela conceberia o Filho

do Altíssimo pela virtude do Espírito Santo (VATICANO, 2000:138-139);

A segunda entrevistada menciona sobre “A Maria de Nazaré, a Maria Galileia”.

Também, sem realizar pesquisas sobre a educação recebida por esta entrevistada,

notamos que a expressão utilizada se aproxima à imagem mental institucionalizada.

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Sobre esta imagem: “Deus escolheu, para ser a Mãe de Seu Filho, uma filha de Israel,

uma jovem judia de Nazaré na Galileia, ‘uma virgem desposada com um varão chamado

José da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria’ (Lc 1,26-27)” (VATICANO,

2000:137);

A terceira entrevistada utiliza a expressão “Virgem Maria”. A Igreja confessa “a

virgindade real e perpétua de Maria, mesmo após o parto do Filho de Deus feito homem.

Com efeito, o nascimento de Cristo ‘não lhe diminuiu, mas sagrou a integridade

virginal’ de sua mãe” (VATICANO, 2000:140-143). Certamente, com a menção

“Virgem Maria”, a entrevistada revela ter tido algum contato com discursos católicos.

Na proximidade, as palavras e expressões que constroem as concepções pessoais revelam-

se, em geral, muito similares aos conceitos constitutivos da imagem mental mariana, ou

seja, os conceitos institucionalizados dignos de crédito e apoio da Igreja católica.

Alguns distanciamentos entre as três concepções marianas e a imagem metal

institucionalizada são descritos a seguir:

A primeira entrevistada menciona que Maria foi “a primeira feminista do mundo”.

Tomando como referência o calendário gregoriano, Maria por ser mãe de Jesus,

provavelmente nasceu por volta da segunda década antes de Cristo e não poderia ter

sido considerada “feminista” em um sentido estrito, já que este famoso movimento é

datado ao final do século XIX. Constata-se anacronismo;

A segunda entrevistada menciona que Maria “teve muitos filhos”. Porém, a “Igreja

sempre entendeu que essas passagens [bíblicas] não designam outros filhos [de Maria]

[...]. Tiago e José [...] são filhos de uma Maria discípula de Cristo [...]”; a expressão

irmãos e irmãs “[t]rata-se de parentes próximos de Jesus, consoante uma expressão

conhecida do Antigo Testamento” (VATICANO, 2000:141);

A terceira entrevistada menciona Maria substituída por “Pacha-Mama13. Esta deusa

inca é cultuada como a Mãe-Natureza, a deusa da fertilidade que rege a colheita, o

plantio, que incorpora as montanhas e também causa terremotos (DRANSART, 1992).

13 Sobre Pachamama, conferir também nota 2.

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Pachamama não é uma classificação da doutrina oficial católica, mas pode ser

compreendida como uma apropriação por parte da Igreja.

No distanciamento, as palavras e expressões que constroem as concepções revelam-se, em

geral, características particulares, por vezes atribuída pela própria pessoa que a

construiu, por grupos como forma de expressão cultural, inspirado em deusas ancestrais,

em relações ordinárias ou por práticas culturais. Palavras e expressões de distanciamento

não significam “não dignas de crédito ou de apoio da Igreja católica”, mas por vezes, são

definidas conforme tempos e espaços específicos e independentes da Instituição. Se

retornarmos àquela analogia inicial – pintor/quadro e Igreja/imagem mental mariana –, algumas

das concepções pessoais compiladas na concepção de Joana Mariani revelam-se, ora próximas,

ora distantes, sem a preocupação de estar dentro de limites institucionalizados. Ora o

observador demonstra ter uma visão educada, ao discursar, ora não tanto.

O ato de se distanciar de uma imagem mental permite-nos perceber uma infinidade

de outras imagens nela latentes. Como já apresentado, a Maria institucionalizada é constituída

por diferentes imagens mentais como as do feminino, da mãe, do humilde, do pobre, do

obediente, da serva. Porém, a estas mesmas imagens, quando nos afastamos do ideal católico,

podemos vincular outras imagens mentais, como por exemplo, a da deusa, a do urso, a da

Grande Mãe. Os psicólogos analíticos Carl Gustav Jung (2014) e Eric Neumann (1999)

descrevem como que imagens mentais14, por meio de manifestações sociais do feminino, foram

expressadas em muitas culturas e períodos desde a pré-história, em rituais, na mitologia, na arte,

em sonhos e em fantasias. Utilizamo-nos e nos deparamos com essas imagens do feminino em

nosso cotidiano, ora estão personificadas, ora são mentais, e por meio delas, em um processo

de constante compreensão, interpretação e construção pessoal é que desenvolvemos nossa

própria identidade.

Partindo da mãe, imagem mental que pode ser formada por todo ser humano, já que,

teoricamente, todos nascemos de uma mãe, podemos construir concepções positivas ou

negativas, a depender de como se deram nossas relações com as imagens cotidianas

personificadas. Algumas características positivas da mãe universal são as de prover ao ser

14 Utilizando as terminologias de Carl Gustav Jung (2014) e Eric Neumann (1999), neste artigo os arquétipos

podem ser comparados às imagens mentais.

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humano a vida intrauterina, as funções de nutrição na primeira infância, a proteção e, diante de

uma criança pequena, a mãe parece uma gigante, a Grande Mãe arquetípica15. Expandindo o

arquétipo da mãe em outras imagens, temos o urso, animal “feminino” forte e gigante a cuidar

de seu filhote que necessita de constante proteção, estando associado também à Ártemis que,

por vezes, é representada por uma caçadora com cães, a deusa grega dos animais e da vida

selvagens, da virgindade e do parto (JUNG, 2014:1229). Ambas as imagens, urso e deusa,

possuem extrema significância maternal. A partir destas interpretações pessoais, podemos

compilar e concentrar em Maria as imagens mentais da Grande Mãe, do urso e de Ártemis.

Estes atributos interligados, no que concerne à linguagem, apresentam maior distanciamento do

que proximidade à Instituição católica.

Conclusão

O artigo pretendeu demonstrar como a imagem mental de Maria, personagem do

catolicismo, torna-se referência fundamental para a construção de concepções marianas

católicas. A maneira como cada “autor” de concepções as constrói, demonstra evidências em

maior ou menor grau, das intencionalidades provenientes da Instituição católica.

O fato é que a Igreja constrói uma imagem mental mariana tentando abranger, ao

máximo, possíveis virtudes de Maria, se apropriando também de outras imagens culturais

femininas que já existiam como as de deusas ancestrais. Todavia, através do cinema, no

exemplo da construção de Joana Mariani, são percebidas uma infinidade de outras concepções

marianas, vindas de diferentes crenças, de relações ordinárias e de práticas culturais externas às

da doutrina oficial católica.

A construção de uma concepção, realizada por um único “autor”, não é capaz de fazer

convergir e compilar todas as concepções existentes em uma imagem mental. E, por vezes,

estas outras concepções sagradas ou profanas, prováveis de serem aceitas ou não, surgem e

ressurgem ao longo da história, por entre as fraturas da imagem institucionalizada.

Referências

15 Sobre a Grande Mãe, conferir Jung (2014) e Eric Neumann (1999).

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