OS CÓRREGOS E A METRÓPOLE: A INSERÇÃO NO ESPAÇO URBANO DOS CURSOS
D’ ÁGUA QUE ATRAVESSAM A ZONA URBANA DE BELO HORIZONTE
Alessandro Borsagli Puc Minas [email protected] Fernanda Guerra Lima Medeiros CEFET-MG [email protected]
RESUMO
Quando a Comissão Construtora da Nova Capital confeccionou a planta da nova capital no ano de 1894, os cursos d’água que atravessavam o arraial de Belo Horizonte foram ignorados e posteriormente inseridos na malha urbana. O artigo pretende mostrar o processo de inserção do Córrego do Acaba Mundo e o Córrego do Leitão na paisagem urbana de Belo Horizonte. Para se entender a dinâmica do processo de inserção dos cursos d’água na paisagem analisou-se além da cartografia produzida pela CCNC, plantas cadastrais da Prefeitura de Belo Horizonte, além de imagens aéreas e fotografias. Os Córregos, inseridos no traçado urbano de Belo Horizonte na década de 20. Nos anos 60 inicia-se o processo de cobertura dos canais dos córregos que foram posteriormente erradicados da paisagem urbana. Atualmente se faz necessária a consulta as Plantas Cadastrais para localizar o atual trajeto dos córregos.
Palavras chaves: Córrego do Acaba Mundo, Córrego do Leitão, Espaço Urbano, Paisagem
Urbana.
ABSTRACT
When the New Capital Construction Commission fashioned a new capital plan in 1894, the water courses running through the village of Belo Horizonte were ignored and subsequently inserted into the urban fabric. The article shows the process of insertion of the World and the Ends of the Acaba Mundo Stream of Leitão Stream in the urban landscape of Belo Horizonte. To understand the dynamics of the integration of streams in the landscape looked beyond the maps produced by the CCNC, cadastre of the Municipality of Belo Horizonte, as well as images and aerial photographs. The Streams, inserted in the urban layout of Belo Horizonte in the 20s. In the 60 starts the process of covering the channels of the streams which were subsequently eradicated the urban landscape. Currently it is necessary to consult the cadastre to locate the current path of the streams.
Keywords: Acaba Mundo Stream, Leitão’s Stream, Urban Space, Urban Landscape
INTRODUÇÃO
A cidade de Belo Horizonte tem cerca de 700 km de córregos sendo que 200
km se encontram atualmente canalizados. Ignorados pela CCNC quando da confecção
da Planta Cadastral da Nova Capital os cursos d’água que atravessam a Zona Urbana
compreendida dentro do perímetro da Avenida do Contorno foram sendo ao longo das
décadas retificados e canalizados de acordo com o traçado urbano de Belo Horizonte.
O presente artigo aborda o processo de inserção no espaço urbano da capital de dois
cursos d’água1 que atravessam a região central da capital mineira: o Córrego do Acaba
Mundo e o Córrego do Leitão, atualmente escondidos sobre a malha viária de Belo
Horizonte sendo praticamente impossível de identificar o traçado atual, visto que as
suas calhas originais não existem mais devido à retificação do seu curso além da
erradicação dos córregos em questão da paisagem urbana belorizontina.
Para se compreender todo o processo de inserção e posteriormente de
erradicação dos cursos d’água da paisagem se fez necessária a analise das Plantas
confeccionadas pela Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) quando da
construção da nova capital entre os anos de 1894 e 1897. A análise dessas, juntamente
com outras Plantas confeccionadas ao longo das décadas além das fotografias da época
permitem compreender e analisar as mudanças espaciais sofridas ao longo dos tempos,
no que diz respeito ao processo de ocupação do vale dos córregos em questão e a
inserção deles na paisagem urbana. De acordo com (CORRÊA, 2000, p.26) “o espaço
urbano é um reflexo tanto de ações que se realizam no presente como também
daquelas que se realizaram no passado e que deixaram suas marcas impressas nas
formas espaciais do presente”.
O mesmo Corrêa observa que os agentes formadores do espaço urbano são
responsáveis pelas constantes mudanças que ocorrem na paisagem urbana, pois:
“A ação destes agentes é complexa, derivando da dinâmica de acumulação de capital, das necessidades mutáveis de reprodução das relações de produção, e dos conflitos de classe que dela emergem. A complexidade da ação dos agentes sociais inclui práticas que levam a um constante processo de reorganização espacial que se faz via incorporação de novas áreas ao espaço urbano, densificação do uso do solo, deterioração de certas áreas, renovação urbana, relocação diferenciada da infra-estrutura e mudança,
1 O Córrego da Serra, primeiro manancial de água que serviu a capital mineira também atravessa parte da Zona Urbana compreendida dentro do perímetro da Avenida do Contorno. Porém, por ter sido retificado, canalizado e coberto em grande parte do seu curso no final dos anos 20 ele não será abordado no presente artigo.
coercitiva ou não, do conteúdo social e econômico de determinadas áreas da cidade” (CORREA, 1993, p.11)
Nas marcas deixadas na paisagem, se comparado com outras partes da capital,
percebe-se claramente que a ocupação do vale do córrego do Acaba Mundo remonta
aos primeiros anos da nova capital devido ao fato de o seu curso atravessar as terras
escolhidas pela CCNC para a construção do bairro destinado aos funcionários públicos
vindos de Ouro Preto. A canalização coincide com o inicio da ocupação de suas
cabeceiras e o fechamento do seu curso com o período de maior crescimento urbano
da capital.
Já a ocupação do vale do córrego do Leitão se deu sistematicamente a partir da
década de 1920 e aumentou a partir da década de 1970 quando a verticalização, a qual
já havia extrapolado a área central de Belo Horizonte nas direções sul e leste atinge as
partes mais altas do vale, já na zona suburbana. E como se desencadeou o processo de
inserção dos córregos no espaço urbano? É o que se verá a partir de agora.
Os córregos no espaço urbano da nova capital
O Córrego do Acaba Mundo tem as suas nascentes localizadas nas vertentes da
Serra do Curral, mais precisamente no local explorado pela Mineração Lagoa Seca.
Desde a sua nascente até o inicio do canal coberto ele corre cerca de 1500 metros em
canal aberto. O seu curso segue pelas Avenidas Uruguai e Nossa Senhora do Carmo,
Ruas Outono, Grão Mogol e Professor Morais e pela Avenida Afonso Pena, indo
desaguar no ribeirão Arrudas na altura do Parque Municipal. Esse curso d’água tem
como afluentes os Córregos Ilha e Gentio, canalizados atualmente sob as Avenidas
Nossa Senhora do Carmo e Vitório Marçola.
O Córrego do Leitão tem as suas nascentes disseminadas por um amplo
anfiteatro localizado na região sul de Belo Horizonte. Canalizado e coberto até as
proximidades de suas nascentes ele segue atualmente pelas Ruas Kepler e Cônsul
Antonio Cadar indo formar a Barragem Santa Lucia, construída para o controle das
águas nos períodos chuvosos. A partir daí ele segue pela Avenida Prudente de Morais,
Ruas Marilia de Dirceu e Bárbara Heliodora, Ruas São Paulo, Padre Belchior, Tupis e
Mato Grosso, indo desaguar no Ribeirão Arrudas no cruzamento desta via com a
Avenida do Contorno.
Os dois córregos abordados atravessavam uma parte do antigo arraial do Curral
Del Rey, sendo que o Acaba Mundo dividia o arraial na altura do antigo Largo da Boa
Viagem (figura 01), indo desaguar no Ribeirão Arrudas na altura do Parque Municipal.
Já o Leitão tinha o seu curso inserido nas terras da antiga Fazenda do Leitão, indo
desaguar no Ribeirão Arrudas, nas terras da antiga Fazenda do Sacco.
FIGURA 1 - PARTE DA PLANTA GEODÉSICA DO ARRAIAL DE BELO HORIZONTE E EM DESTAQUE
OS CÓRREGOS DA SERRA (01), ACABA M UNDO (02) E L EITÃO (03). ESCALA 1:10000.1895.
FONTE: PANORAMA, 1997.
Grande parte das cidades planejadas na segunda metade do século XIX
priorizava os ideais sanitaristas e de uma cidade racional e organizada. Suas ruas e
avenidas eram largas, visando a salubridade e o bem estar da população, além de
facilitar o deslocamento da população. Washington, La Plata e a própria Belo
Horizonte são exemplos concretos desse pensamento vigente nas ultimas décadas do
Século XIX.
Durante uma grande parte do Século XX prevaleceram as idéias higienistas que
vigoraram na Europa durante décadas, desde meados do Século XIX. Sobre isso
(SILVEIRA, 1998) observou que as águas, de chuva ou mesmo de esgotos sanitários,
deveriam ser conduzidas “rio abaixo” afastando ou diminuindo a probabilidade de
contaminação. Em Belo Horizonte, inicialmente os emissários de esgotos fizeram esse
papel “empurrando” todos os detritos rio abaixo, fora da Zona Urbana. Com o
adensamento populacional e o crescimento da urbs os cursos d’água também
assumiram esse papel, levando o problema para as populações a jusante.
A abundancia de recursos hídricos foi crucial para a escolha do arraial de Belo
Horizonte como sede da nova capital. Porém, a Planta Cadastral apresentada em 1895
(figura 02) não apresentava uma harmonia entre o projeto e os cursos d’água
existentes nas terras do antigo arraial, exceção feita ao Ribeirão Arrudas, principal
drenagem de grande parte dos córregos oriundos do Complexo da Serra do Curral.
FIGURA 2 - PARTE DA PLANTA TOPOGRÁFICA DA CIDADE DE M INAS E EM DESTAQUE OS
CÓRREGOS DO ACABA M UNDO (01) E L EITÃO (02). ESCALA 1:4000.1895. FONTE:
PANORAMA, 1997
Nos estudos para o uso dos mananciais disponíveis, tanto o Córrego do Acaba
Mundo como o Córrego do Leitão foram logo descartados, como afirma (BARRETO,
1996, v.2 p.167) no caso “o Córrego do Leitão, de pouco volume, baixo e com as
nascentes disseminadas por um amplo anfiteatro de propriedade particular, não era o
que mais enquadrava ao plano do abastecimento inaugural”. Devido a amplitude de
suas cabeceiras ramificadas em três nascentes principais a captação de água do
Córrego seria muito dispendiosa e não compensava o investimento por parte da
CCNC, já que a captação dos córregos da Serra e do Cercadinho seria mais vantajosa e
menos dispendiosa. Já o Acaba Mundo foi logo descartado, pois registrava nos
períodos de seca uma vazão de cerca de 32 litros por segundo, insuficiente para
abastecer até mesmo um pequeno povoado (figura 03).
Entre 1897 e 1920 o crescimento urbano de Belo Horizonte se deu de forma
lenta sendo que esse crescimento se concentrou em grande parte na Zona Suburbana
onde haviam sido criadas as cinco colônias agrícolas visando o povoamento da zona
suburbana, assim como o abastecimento de viveres da capital. As colônias foram
assentadas nas vertentes de cinco córregos, todos afluentes do Ribeirão Arrudas.
As colônias agrícolas foram responsáveis pelo crescimento periferia-centro que
marca o desenvolvimento urbano de Belo Horizonte nas primeiras décadas do Século
XX. No caso do vale do Leitão na zona suburbana o desenvolvimento foi mais lento se
compararmos com as outras colônias agrícolas que apresentaram um rápido
crescimento, sendo posteriormente anexadas a zona suburbana poucos anos mais tarde
1914. A Colônia Adalberto Ferraz, situada no vale do Acaba Mundo foi anexada no
ano de 1911.
As colônias agrícolas na verdade tiveram pouca influencia na canalização
tardia dos dois cursos d’água em questão. No caso do Acaba Mundo que atravessava
uma região que apresentava um crescente adensamento a falta de recursos foi o
principal motivo do adiamento da canalização por quase trinta anos. Durante esse
período a Prefeitura se restringia apenas a realizar a manutenção das pontes,
geralmente nos períodos de chuva e eventualmente a limpeza do córrego. Já o Leitão
fazia parte da área de expansão reservada pelo Poder Publico para as camadas mais
abastadas da população.
FIGURA 3 - TRABALHOS DE TUBULAÇÃO NO CÓRREGO DO ACABA M UNDO NO PARQUE
M UNICIPAL . 1896. FONTE: APCBH ACERVO CCNC
A inserção dos córregos na paisagem urbana
O desenvolvimento urbano começou a aumentar na década de 20, década em
que se deu o primeiro remodelamento do espaço urbano de Balo Horizonte. O
planejamento urbano, crucial para a concretização do Projeto da capital que nesse
período se restringia a região central e os bairros Floresta e Funcionários e a uma
pequena parte do Barro Preto, ocupada em grande parte por operários foi exercido com
uma maior rigorosidade por parte do Poder Público que visava a expansão da malha
urbana dentro dos limites da Avenida do Contorno exatamente nos vales dos dois
córregos.
Os córregos que atravessavam a Zona Urbana de Belo Horizonte ignorados
pela CCNC quando da confecção da Planta da capital tornaram-se, a partir dessa
década um entrave ao constante avanço territorial dentro dos limites da Avenida do
Contorno. É bom lembrar que grande parte da zona compreendida dentro do perímetro
da Contorno estava até essa época reservada para a expansão urbana da capital.
Segundo (RODRIGUES, 1994) o Estado é o principal agente transformador do
espaço urbano. Em seguida aparecem as corporações imobiliárias e os proprietários
fundiários que agem de maneira diferenciada. As intervenções nos córregos tiveram a
interferência direta do Poder Público, pressionado pelos grupos sociais que
posteriormente explorariam as terras despovoadas no entorno dos córregos.
A retificação2 e canalização dos córregos compreendidos dentro da zona
urbana passaram a ser prioridade do Poder Público para que se pudesse ter
continuidade à expansão urbana.
Essas medidas visavam adequar os cursos d’água ao crescimento urbano, pois a
canalização possibilitaria a abertura das vias projetadas e a construção e ocupação dos
quarteirões. Era uma medida que permitia a continuidade da expansão da malha
urbana, mas que traria sérias conseqüências para a população da capital. As
canalizações também visavam resolver o problema das enchentes que ocorriam com
freqüência na capital. Naquela época acreditava-se que ao canalizar um curso d’água
solucionaria o problema das enchentes, desbarrancamentos etc. Atualmente sabe-se
que a canalização atenua mas não resolve esse problema.
A canalização de um curso d’água na maioria das vezes o desvia do seu leito
2 Retificar um curso d’água é promover a mudança de seu traçado com o intuito de melhorar o escoamento das águas além de possibilitar, no caso dos centros urbanos a ocupação das terras cortadas pela calha natural do curso d’água.
natural, passando a não existir mais os obstáculos naturais que ajudam a diminuir a
velocidade da água. Com isso as águas passam a correr com mais velocidade
aumentando a sua vazão e levando os problemas das enchentes para as áreas mais
próximas da sua foz. A impermeabilização do solo, a retirada da cobertura vegetal e a
ocupação das várzeas também contribuem para o agravamento do problema.
Para possibilitar a urbanização e a continuidade do crescimento da malha urbana teve
inicio em 1925 a retificação e a canalização aberta do córrego do Acaba Mundo entre a
Avenida do Contorno e o Parque Municipal. As suas águas foram desviadas para um
novo canal construído na Rua Professor Morais e Avenida Afonso Pena (figura 04) e
suas águas continuaram a alimentar os lagos do Parque Municipal. O seu antigo leito
foi aterrado com o material retirado do Morro do Cruzeiro (Praça Milton Campos)
obra realizada ao mesmo tempo das canalizações. Com o aterramento do antigo leito
tornou-se possível a construção e urbanização de cerca de 13 quarteirões
compreendidos no bairro Funcionários e adjacências segundo a Planta Geral da
capital.
FIGURA 4 - I MAGEM DO ANO DE 1925 NA QUAL SE VÊ O CÓRREGO DO ACABA M UNDO
RETIFICADO E CANALIZADO NA AVENIDA AFONSO PENA, NAS PROXIMIDADES DO CRUZAMENTO
DA AVENIDA BRASIL . FONTE: APM
A canalização e retificação do Córrego do Leitão foram empreendidas na
segunda metade da década de 20, ao mesmo tempo em que eram instalados os
emissários de esgotos em sua margem direita. A canalização, como no Acaba Mundo
visava proporcionar a urbanização e ocupação na porção de terras localizadas no vale
do Leitão, faixa reservada pelo Poder Público para a expansão urbana das classes mais
abastadas. Inicialmente o seu curso foi retificado para as ruas Tupis, Padre Belchior,
rua esta que não existia no projeto original da capital e Rua São Paulo até o
cruzamento com a Rua Alvarenga Peixoto (figura 05). A sua canalização permitiu a
expansão urbana e a melhoria da comunicação viária entre o Barro Preto e o Calafate
com a região central cujo único acesso se dava por uma precária ponte que existiu na
Rua dos Tamoios (figura 06). Sobre o vale do Leitão, área prioritária de expansão
urbana escreveu em 1925 o Prefeito Flavio Fernandes dos Santos que “com a venda
dos lotes na bacia do córrego do Leitão, e conseqüente construção de prédios, a
Prefeitura tem procedido à abertura de diversas ruas e vai prosseguir com
intensidade de trabalhos de terraplenagem, desde a Avenida Cristóvão Colombo (Bias
Fortes) e Rua Espírito Santo até a Avenida São Francisco (Olegário Maciel)”.
FIGURA 5 - I MAGEM DATADA DO FINAL DOS ANOS 20 NA QUAL SE VÊ O CÓRREGO DO L EITÃO
RECÉM CANALIZADO NA RUA SÃO PAULO , ENTRE AS RUAS GONÇALVES DIAS E ALVARENGA
PEIXOTO . FONTE: APM
FIGURA 6 - PARTE DA PLANTA DE BELO HORIZONTE DATADAS DE 1928 ONDE SE ENCONTRAM
INSERIDOS NA PAISAGEM URBANA OS CÓRREGOS DO ACABA M UNDO E L EITÃO . ESCALA
1:15000. FONTE: PANORAMA, 1997.
Nas décadas seguintes o desenvolvimento urbano cresceu significativamente ao
mesmo tempo em que se acentuou a falta de infra-estrutura por parte do Poder público
para dar suporte a esse crescimento. Os dois córregos sofriam com a poluição desde
meados dos anos 20 e o adensamento das terras pertencentes a suas bacias aumentou
ainda mais o problema. Os emissários de esgoto existentes não comportavam mais a
quantidade de efluentes produzidos principalmente pelas residências e a solução era o
despejo nos cursos d’água.
A erradicação dos Córregos da paisagem urbana
A partir da década de 50 Belo Horizonte tomou novos rumos. O processo de
metropolização se consolidava e deu a capital um ritimo no qual grande parte da
população não estava acostumada. A mudança espacial era visível e a verticalização
iniciada na área central começava a se espalhar dentro do perímetro da Avenida do
Contorno. Para se ter uma idéia Belo Horizonte entre as décadas de 50 e 70 teve um
aumento populacional de cerca de 350 por cento, saltando de uma população de
352.000 habitantes no inicio da década de 50 para 1.250.000 em 1970.
Os problemas urbanos decorrentes desse processo surgiam ao mesmo tempo
em que se acentuava a falta de investimentos em equipamentos urbanos destinados
para dar suporte a esse crescimento. O número de veículos aumentara
consideravelmente e as ruas e avenidas, antes arborizadas e calçadas foram sendo
asfaltadas e alargadas com o corte das árvores para proporcionar a melhoria do fluxo
viário, um dos principais objetivos das gestões municipais desde então.
No caso dos cursos d’água em questão suas águas passaram a receber além dos
esgotos citados detritos provenientes da ocupação desenfreadas das suas cabeceiras e
lixo domestico, pois os serviços de coleta de lixo se encontravam a beira de um
colapso. Para agravar ainda mais a situação as enchentes eram freqüentes devido a
impermeabilização do solo promovida pela urbanização nas bacias dos cursos d’água.
As águas que antes penetravam no solo agora corriam diretamente para os cursos
d’água assoreados aumentando o seu volume e o seu poder de destruição, pois suas
águas saiam da calha com freqüência levando lama e sujeira para as ruas (figuras 07 e
08). No iminente caos urbano da década de 60 não havia mais lugar para os cursos
d’água dentro da urbs.
FIGURAS 7 E 8 - O ACABA M UNDO INSERIDO NA MALHA URBANA DE BELO HORIZONTE . I MAGEM
DE 1950 OBTIDA NO CRUZAMENTO DAS RUAS PROFESSOR M ORAIS E TOMÉ DE SOUZA E O VALE
DO CÓRREGO DO L EITÃO EM 1955 NA ZONA SUBURBANA . SOBRE A SUA CALHA FOI ABERTA A
AVENIDA PRUDENTE DE M ORAIS EM 1970. FONTE: APCBH/ASCOM E APCBH/COLEÇÃO JOSÉ
GOÉS RESPECTIVAMENTE
.
Diante disso na primeira metade da década de 60 o Poder Público toma a
decisão de fechar os cursos d’água que atravessam a zona urbana compreendida dentro
da Avenida do Contorno com a finalidade de melhorar o fluxo viário e a salubridade
na região atravessada por eles3. Na visão do Poder Público a cobertura dos córregos
resolveria rapidamente o problema da poluição4 além do embelezamento da paisagem
com o alargamento das vias, úteis para a vida urbana. É necessário lembrar que os dois
cursos d’água em questão atravessavam a zona sul da capital, ocupado em grande
parte pelas camadas mais abastadas da sociedade.
O primeiro curso d’água a ser fechado foi o Acaba Mundo em 1963 (figura
09). A cobertura do canal foi realizada ao longo da Rua Professor Morais e a Avenida
Afonso Pena até a altura do Parque Municipal. Suas águas, que antes alimentavam os
Lagos do Parque foram também canalizadas devido ao alto grau de poluição e os lagos
passaram a ser abastecidos com águas provenientes do lençol subterrâneo. O córrego,
inserido na paisagem urbana na década de 20 não resistiu ao crescimento urbano,
cedendo espaço para a melhoria da mobilidade urbana e da qualidade de vida da
população, no que diz respeito à saúde pública.
FIGURA 9 - OBRAS DE CANALIZAÇÃO E COBERTURA DO ACABA M UNDO NA RUA PROFESSOR
M ORAIS EM 1963. FONTE: APCBH/ASCOM
3 A falta de conscientização da população naquele período era alarmante, os cursos d’água eram simplesmente tratados como deposito de lixo. As enchentes, freqüentes nesse período, levava para as ruas todo o material depositado nos cursos d’água, aumentando ainda mais o desejo de ver os córregos erradicados da área urbana, na verdade era esconder o “problema” debaixo do tapete. E a população apoiou e aplaudiu o fechamento dos cursos d’água. 4 Junto com a poluição esperava-se também a erradicação das doenças causadas pela poluição dos córregos, como se lê no Relatório do Prefeito Sousa Lima em 1969: “Nas obras de canalização e esgotos está surgindo a solução para o problema sanitário de Belo Horizonte”. É necessário entender que foi na nessa gestão que o sistema de esgotos de Belo Horizonte entrou em colapso, transbordando em diversos pontos da capital.
O córrego do Leitão também apresentava um alto grau de poluição de suas
águas. A porção da capital atravessada por ele apresentava na década de 60 um alto
grau de urbanização ao mesmo tempo em que se tinha o inicio da ocupação sistemática
das suas cabeceiras. O mau cheiro de suas águas e as constantes enchentes que
levavam lama e lixo para as ruas eram motivos de reclamações constates da
população, que passou a exigir uma solução rápida para o problema. A canalização era
vista como a solução dos problemas gerados pelo córrego além de ser considerada
como uma obra de embelezamento da capital, abalada com a perda do titulo de
“Cidade Jardim” desde o corte das arvores da Avenida Afonso Pena em 1963. No final
da década de 60 se tem o inicio das obras de fechamento e cobertura do córrego do
Leitão desde a Rua São Paulo até a sua foz no ribeirão Arrudas. Paralelamente ao
fechamento teve inicio em Julho de 1970 a canalização e cobertura do Leitão na zona
suburbana para a abertura da Avenida Prudente de Morais (figura 10). Essa obra
visava melhorar o fluxo viário na região que expandia a largos passos além de
erradicar da paisagem o curso d’água que havia se transformado em um esgoto a céu
aberto, pois o aumento da ocupação das vertentes do córrego nas proximidades de suas
cabeceiras desencadeou o lento processo de assoreamento que, nos períodos de chuva
enlameava diversas ruas ao longo do seu curso.
FIGURA 10 - OBRAS DE CANALIZAÇÃO DO L EITÃO PARA A ABERTURA DA AVENIDA PRUDENTE
DE M ORAIS EM 1970. FONTE: APCBH/ASCOM
As obras executadas e descritas acima faziam parte do Projeto “Nova BH 66”
feito em parceria com a Escola de Arquitetura da UFMG tinha como um dos principais
objetivos o embelezamento da capital e a cobertura dos córregos da região central
visando o alargamento das vias para a melhoria do fluxo de veículos. A paisagem
urbana a partir daí passou a ser moldada para os veículos automotores, em detrimento
para o pedestre que se sentia cada vez mais acuado e sem lugar em meio ao caos viário
da época.
Os veículos motorizados em Belo Horizonte, assim como em outras partes do
Planeta haviam se tornado o principal agente das políticas urbanas dos grandes
centros. A presença de vias asfaltadas passara a exaltar o progresso das cidades em
prol da mobilidade urbana. Na capital mineira não foi diferente: a partir da década de
50 as ruas e avenidas asfaltadas foram se multiplicando de tal maneira que a intensa
impermeabilização do solo agravou o problema das enchentes na capital que passou a
sofrer com os constantes alagamentos em áreas que anteriormente não apresentavam
problemas.
A canalização dos cursos d’água não resolveram completamente o problema
das enchentes. Periodicamente as ruas e avenidas sobre os córregos sofrem com as
inundações devido ao grande escoamento das vertentes impermeabilizadas para os
fundos de vale também impermeabilizados (figuras 11, 12, 13 e 14). Para amenizar os
problemas das enchentes o Córrego do Acaba Mundo depois de coberto teve o seu
curso ramificado em três braços para melhorar o escoamento das águas, sendo que um
dos braços deságua atualmente no Córrego da Serra. O Córrego do Leitão ainda não
sofreu esse tipo de intervenção, mesmo que nos períodos de chuva periodicamente ele
transborda causando incontáveis prejuízos ao Poder Público e a sociedade.
Com a cobertura dos cursos d’água eles desapareceram da paisagem urbana e a
identificação do seu traçado atualmente é possível apenas com a consulta as Plantas
Cadastrais antigas e as Cartas Hidrológicas (sub-bacias) da RMBH.
FIGURA 11 - CÓRREGO DO ACABA M UNDO SOB A RUA PROFESSOR M ORAIS. FONTE:
ALESSANDRO BORSAGLI , 2010.
FIGURAS 12, 13 E 14 - A METAMORFOSE DO ESPAÇO: A CALHA DO CÓRREGO DO L EITÃO EM
TRÊS MOMENTOS NO MESMO LOCAL : À ESQUERDA EM 1928 QUANDO FOI RETIFICADO E
CANALIZADO NO TRECHO COMPREENDIDO NA RUA SÃO PAULO , NAS PROXIMIDADES DO
CRUZAMENTO COM A AVENIDA AUGUSTO DE L IMA . NO CENTRO EM 1970 QUANDO DA
COBERTURA DE SEU CANAL PARA O ALARGAMENTO DA MESMA RUA. À DIREITA O MESMO
TRECHO EM 2010. FONTES: APM, AUTORIA DESCONHECIDA E FOTO DOS AUTORES.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os córregos, ignorados pela Comissão Construtora e inseridos na paisagem
urbana na década de 20 foram “escondidos” debaixo das vias com a finalidade de
melhoria do fluxo viário e do embelezamento urbano. Da década de 70 até os dias
atuais o termo “hidrologia urbana” tem sido usado para designar a reinserção e
requalificação dos cursos d’água no meio urbano. Recentemente Belo Horizonte vem
apresentando mudanças significativas no que diz respeito ao tratamento dado pelo
Poder Público aos cursos d’água não canalizados. O Programa DRENURBS, criado
em 2001 tem como uma de suas diretrizes “a recuperação ambiental que implica em
reverter à degradação em que se encontram os córregos não canalizados da cidade. A
proposta de sanear os fundos de vale significa combater as causas da poluição das
águas, esta originada não apenas nos fundos de vale como também e, principalmente
nas respectivas bacias de drenagem”.
As formas da paisagem urbana são diversas e, segundo (SANTOS, 1998) “é a
materialização de um instante da sociedade”. Na paisagem urbana de Belo Horizonte
os cursos d’água abordados nesse artigo foram erradicados da paisagem, sendo
possível identifica-los atualmente apenas com o auxilio de mapas.
A sociedade interfere e modifica o meio urbano de acordo com suas necessidades.
Inseridos na paisagem urbana devido às necessidades socioeconômicas do período eles
não resistiram às profundas mudanças no espaço urbano que veio a deixar profundas
marcas na paisagem belorizontina. Apesar das políticas urbanas atuais valorizarem a
inserção dos córregos não canalizados na paisagem urbana, como um agente concreto
que a compõe, os córregos cobertos, ao que tudo indica ainda passarão décadas sob as
vias e quarteirões até que se adote uma política de reinserção dos cursos d’água no
espaço urbano (figura 15).
FIG .15 I MAGEM DE SATÉLITE DO ANO DE 2008 ONDE SE VÊ OS VALES DOS CÓRREGOS DO
L EITÃO E ACABA M UNDO COMPLETAMENTE ADENSADOS . EM AZUL SE ENCONTRA SINALIZADOS
OS CURSOS ATUAIS DOS MESMOS SOB A MALHA URBANA. FONTE: GOOGLE EARTH
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8-25.1998.
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