Pedro Pereira Leite
Marca DAgua Editores
2012
Objetos Biogrficos
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 1
Leite, Pedro Pereira, 1960 -
ISBN- 978-972-8750-13-8
Ttulo: Olhares Biogrficos: A Potica da Intersubjetividade em museologia
Autor, Pedro Pereira Leite
Edio: Marca dAgua: Publicaes e Projetos
1 edio
Local de Edio: Lisboa
Lisboa, 2012
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 2
Olhares Biogrficos
A Potica de intersubjetividade em museologia
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 3
ndice Prefcio ......................................................................................................................................... 4
Introduo ..................................................................................................................................... 5
1. Uma nova museologia em face a novos objetos ................................................................... 6
2. Novos Objetos museolgicos e Intersubjetividade ............................................................. 13
2.1. Construir uma potica da intersubjetividade ................................................................... 15
2.1.1. Cartografar .................................................................................................................... 17
2.1.2. Carporizar ..................................................................................................................... 19
2.1.3. Problematizar e construir a Utopia como potica ........................................................ 20
2.2. Os objetos biogrficos como metodologia na construo de narrativas na museologia 21
2.3. O processo transformador: propostas de abordagem na museologia ............................ 26
3. O desafio da ao ................................................................................................................. 35
3.1. O Playback theatre e as propostas do teatro de Libertao na museologia ................ 36
3.2. Uma museologia envolvida na emancipao social com a apropriao das narrativas
biograficas. .................................................................................................................................. 44
3.3. A inovao dos objetos biogrficos .................................................................................. 48
4. Por uma potica na sociomuseologia .................................................................................. 54
5. BIBLOGRAFIA ........................................................................................................................ 56
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 4
Prefcio
Olhares Biogrficos uma proposta metodolgica para a sociomuseologia
com base na teoria critica. Esta proposta surge no mbito do nosso ps-
doutoramento em museologia, efectuado durante o ano de 2011 na
Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias.
No poderemos deixar de agradecer os contributos de todos os que
concorreram para a sua concretizao, nomeadamente os amigos do CES
Summer Course realizado em Julho de 2011 na Lous, e aos participantes
no Curso de Museologia, realizado em Novembro de 2011 na Cidade de
Assomada em Cabo Verde, no mbito da XV Conferencia Internacional do
MINOM.
Uma palavra final para Elsa Lechner do CES da Universidade de Coimbra
que to bem tem trabalhado as questes das Histrias de Vida e os olhares
biogrficos.
Pedro Pereira Leite, Lisboa, 2012
Glenda MeloRealce
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 5
Introduo
O nosso objetivo neste livro relacionar o movimento de renovao
da museologia contempornea com a teoria crtica atravs a anlise dos
desafios introduzidos na prtica museolgica pela intersubjetividade. Vamos
argumentar sobre a possibilidade de uma prtica museolgica reflexiva e
transitiva com base na proposta de incluso da potica como ferramenta da
intersubjetividade.
A intersubjetividade medeia a relao do eu como sujeito com os
outros. Esta relao de mediao evidencia-se dessa forma como objeto de
investigao. A potica como discurso reflexivo, como ato de mediao,
permite incluir na investigao biogrfica a pluralidade das dimenses
pessoais e sociais em processo. Atravs da potica da intersubjetividade
propomos uma abordagem compreensiva dos objetos biogrficos para os
processos museolgicos.
A Investigao Biogrfica assume-se como uma proposta de
construo duma narrativa museolgica participadada voltada para a
incluso social e para o empoderamento das comunidades com base no
resgate dos saberes locais como instrumentos de construo da ao. A
proposta investigao metodolgica sobre os objetos biogrficos permite
ampliar o campo de ao e da funo social da museologia reforando a sua
abertura a campos epistmicos emergentes com base nos Direitos
Humanos, a Educao para a Paz e para o Desenvolvimento nos Estudos
sobre a Globalizao, na sua relao com a emancipao social.
Glenda MeloRealce
Glenda MeloRealce
Glenda MeloRealce
Glenda MeloRealce
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 6
1. Uma nova museologia em face a
novos objetos
O movimento de renovao da museologia, conhecido como Nova
Museologia 1 Sociomuseologia ou Museologia Social constitui-se como
um modo de pensar e fazer museologia. Este modo de pensar e agir
emerge num movimento de reflexo de profissionais de museus e pessoas
ligadas ao cultural a partir dos anos sessenta do sculo XX. Ao longo de
vrios anos, Pierre Mayrand foi-nos chamando a ateno para que a
sociomuseologia um processo que tem vindo a influenciar alguns
profissionais da museologia sobre as formas de fazer essa museologia ao
longo dos ltimos cinquenta
anos (MAYRAND, 2009).
Tambm Mrio Moutinho
refora esta abordagem
processual da sociomuseologia,
que define como evolutiva,
quando constata, ao refletir
sobre os museus, que qualquer
organizao humana
processual e contextual
(MOUTINHO, 2007).
Estamos perante uma
museologia que se assume como uma prtica (de pensamento e de ao)
que busca a qualidade dos fenmenos processuais nos seus contextos. Mas
qual o motivo que desencadeia a busca das qualidades nos fenmenos
processuais na museologia, para a partir deles procurar a mudana. No
existir uma contradio entre a prtica de preservao de objetos e a
busca dos processos de transformao que esses mesmos objetos
potencialmente desencadeiam. Existe uma contradio paradoxal entre
conservar e transformar, ou pelo contrrio, a resoluo dessa tenso
observada como um processo transformacional, constitui o objeto da
museologia?2
1 No conceito a palavra Nova assume simultaneamente uma significao valorativa e diacrnica. A questo do valor assume-se por via da integrao dos
territrios e das comunidades por via das prticas participativas. 2 Uma resposta a esta questo dada por Mrio Moutinho (1994) em A Construo do Objeto Museolgico in Cadernos de Sociomuseologia,n 4. Que relata a interveno do autor na 26 Conferencia Internacional do ICTOP, realizada em
Lisboa, no Museu de Histria Natural. Neste artigo o autor comea por afirmar:
Expor ou deveria ser, trabalhar contra a ignorncia, especialmente contra a forma
Ilustrao 1 Pierre Maylan (1034-2011) com Isabel Vitor,
numa visita ao Museu do Trabalho em Setbal
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 7
Com sabemos a museologia resolve esse paradoxo atravs da
representao dos objetos na busca da inovao. A museologia no trata
apenas da representao dos objetos, mas fundamentalmente da sua
superao no mbito da sua relao com cada um dos membros da
sociedade3. no mbito dessa superao que a nova museologia tem vindo
a questionar-se sobre o lugar dos objetos, dos espaos e dos territrios,
como componente da relao dos sujeitos com o real (com o mundo).
Sintetizemos como tem
vindo a ser construdos alguns
destes caminhos. A nova
museologia dispe j de uma
histria longa que tem vinda a
ser construda com diferentes
vises e diferentes prticas,
muito rica em experiencias e
exemplos, que se espalham
hoje por vrios continentes.
Esta forma de fazer e
pensar a museologia tem vindo
a ser feita refletida em diversos
espaos museolgicos e
acadmicos e encontra-se agregada numa plataforma no mbito do MINOM:
Movimento Internacional para Uma Nova Museologia4. Esta plataforma
organizativa constitui-se como um grupo no mbito do ICOM (Comit
Internacional dos Museus) e organiza diversos ateliers5 ou conferncias
internacionais onde so debatidos e apresentadas experiencias.
A reflexo terica produzida por duas vias, uma acadmica,
centrada em universidades; e uma outra mais prtica, centrada neste
mais refractria da ignorncia: a ideia pr - concebida, o preconceito, o esteretipo
cultural. Expor tomar e calcular o risco de desorientar - no sentido etimolgico:
(perder a orientao), perturbar a harmonia, o evidente, e o consenso, constitutivo
do lugar comum (do banal) (MOUTINHO, 1994, 7) para concluir . a inverso da tradicional relao entre o objeto artstico e o seu lugar de exibio. No fundo o
Museu que exibido como objeto artstico. De certa forma poderamos admitir, que
o museu ideal seria aquele que fosse criado especificamente para cada
exposio.(MOUTINHO, 1994, 24). O autor defende neste artigo uma abordagem semitica do objeto museolgico. Ou seja ele o que (a materialidade) o que
visto (a perceo e a conscincia do objeto por parte do sujeitos) e ele o contexto
(o objeto como processo de transformao)
3 Uma Mimsis no sentido aristotlico. Arsitreles distingue mimsis de diegesis.
Enquanto a mimese uma narrativa contada pelo prprio da diegesis uma
narrativa encenada por atores (Aristoteles, Potica) 4 www.minom-icom.net 5 At ao final de 2012 organizou 14 ateliers internacionais e diversos workshops
que podem ser consultados na pgina do movimento.
Ilustrao 2 - Mrio Moutinho no Curso de Formao em
Museologia em Assomada, Cabo Verde, 2011
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 8
movimento de profissionais envolvidos com uma museologia de ao ao
servio da sociedade. As diferentes vias asseguram uma retro alimentao
entre a investigao e a prtica.
Nos espaos acadmicos tem vindo a emergir uma investigao e
uma docncia comprometida com as prticas e as dinmicas sociais. Essa
uma das caractersticas do ensino da museologia na Universidade Lusfona
de Humanidades e Tecnologias6 e na Reiwart Academy7 na Europa, e na
Amrica do Sul, sobretudo no Brasil, em So Paulo, no Rio e na Baa, em
situaes muito diferenciadas mas em rpida mutao8.
Verifica-se que entre os professores destas academias existe, aquilo
a que poderamos chamar uma rede de conhecimento e partilha de
experiencias, que d suporte e consistncia s diferentes propostas de
abordagens dos fenmenos museolgicos. Se a maioria desta reflexo
acadmica hoje efetuada no mbito dos cursos de Mestrado e
Doutoramento, de acordo com as normas de investigao acadmica, a
permanente ligao entre a reflexo acadmica e a prtica museolgica
assegura a sua constante renovao de praticas e contedos, permitindo a
emergncia de novos objetos, a incluso de diferentes atores e uma
diversidade nas forma-as de abordagens territoriais. Um exemplo dessa
interao encontra-se nas aes de investigao desenvolvidas na
Universidade Lusfona que podem ser encontradas na Revista
Sociomuseologia9 onde so publicados os resultados da investigao e as
prticas museolgicas em diferentes espaos e contextos.
Esta nova museologia, enquanto processo participativo que ,
valoriza um conjunto de momentos marcantes que esto sinalizados por via
de Declaraes, aprovadas nos Encontros Internacionais. Estas declaraes
cristalizam as preocupaes diversas nos seus participantes. Como salientou
Pierre Mayrand na gnese do questionamento da relao social da
museologia encontra-se o legado das reflexes do movimento construtivista
reformista que atravessa as cincias sociais no ps-guerra10 em que a ao
6 www.ulusofona.pt 7 Reinwardt Academy: Amesterdam School of Arts www.ahk.nl 8 Nestas vrias experiencias que tem vindo a ser desenvolvidas, no poderamos
deixar de citar a experiencia desenvolvida no Brasil, por via da sua Poltica de
Museus iniciada no ministrio de Gilberto Gil. 9 Sociomuseologia, Revista editada pela Universidade Lusfona de Humanidades e
Tecnologia, com o n 1 publicado em 1993.com um tema Sobre o Conceito de Museologia Social. At ao final de 2010 foram editados 38 nmeros, alguns dos
quais em Lngua Inglesa. Atravs da anlise dos seus vrios nmeros podem-se
verificar a evoluo das principais preocupaes e reflexes que tem vindo a ser
equacionadas no mbito da sociomuseologia.
Veja-se www./revistasulusofona.pt/index.php/cadernosdesocimuseologia 10 O Construtivismo reformista resulta de vrios contributos da psicologia da
aprendizagem, por via de Jean Piaget e Vigotsky e da Filosofia do Conhecimento.
No campo da psicologia da aprendizagem e na sequencia dos movimentos da Escola
Nova, procurava-se entender se de que forma de processava o processo de
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 9
do individuo no grupo vista como um dialogo, como resultado duma
interao com os outros (MAYRAND, 2009).
Estas interrogaes emergiram, quando vrios muselogos,
envolvidos com prticas polticas transformacionistas11, questionam o
sentido dos objetos que esto nas colees de um dado museu.
Interrogam-se sobre o que que esses objetos dizem aos visitantes dos
museus. Qual era a funo social do museu cristaliza-se como questo
catalisadora do desafio que lanam s organizaes do patrimnio.
Por exemplo, durante o sculo XIX e princpios do sculo XX nos
museus de etnologia as colees eram apresentadas como testemunhos
materiais dos homens ento chamados de primitivos. A estes
testemunhos contrapunham-se os outros objetos de colees de arte, de
histria ou arqueologia ou mesmo de cincia que eram testemunhos duma
civilizao. A distino entre selvagens e primitivos dividia artefactos
materiais, que consoante o seu valor social eram pertena de diferentes
organizaes, que representavam o que ento como se entendia o devir
social12.
Com o fim da segunda guerra mundial de 1939 a 1945 e com a
vaga de independncias que se seguiu na sia e em frica a oposio entre
selvagens e civilizados, como conceito operatrio deixou de ter significado13.
Tendo sido substitudo pelo conceito de desenvolvimento14 e pela oposio
desenvolvimento/subdesenvolvimento15.
aprendizagem, no mbito do processo de relao /adaptao do indivduo ao meio.
No mbito da filosofia do conhecimento, verificam-se vrias reflexes,
nomeadamente de Foucault e Bourdieu sobre o modo como o individuo reconstri e
reconstrudo pela realidade social. Reformista porque procura aplicar-se ao
como processo transformador. 11 Prtica poltica aqui entendida como envolvimento nos movimentos sociais
contemporneos. 12 O devir como ideia finalista organizava o pensamento opondo selvagens e
civilizados, tradio e modernidade, decadncia e progresso. 13 A questo da distino entre selvagens e civilizados um conceito de legitimao
do colonialismo europeu no mundo. Como tal legitimava no plano cientfico a
hegemonia e a dominao do europeu (dito civilizado) sobre o outro (dito
selvagem), como uma misso dita civilizadora. (Veja-se LEITE, 1997) 14 Sobre a relao da ideologia do desenvolvimento sobre o patrimnio e a cultura veja-se (Cardoso, 2010, e 2011) respetivamente. 15 Note-se ainda que esta anlise do devir como um acumular de riqueza (o
conceito de desenvolvimento resulta da transformao do conceito de riqueza de
Adam Smith), d origem a uma querela entre desenvolvimentistas e liberais, com os primeiros a defenderem a necessidade dum regulamento do processo por
via da interveno de sociedades polticas (organizadas), face aos segundo que
defendem o mercado como processo gerador de riqueza. Ao progresso visto como um o crescimento da riqueza (pelo mercado), contrapem os desenvolvimentistas a
defesa dum desenvolvimento das foras produtivas, que impulsionam o desenvolvimento social e cultural.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 10
Os desafios que os muselogos sentiram necessidade de responder,
no ps-guerra refletem, esta dualidade processual. A maioria deles defende
a necessidade das organizaes de cultura se empenharem nesse processo
coletivo que o desenvolvimento. por via desse empenhamento, com
base numa ideia de devir, que se defende que o museu se deve configurar
como um espao de dilogo entre ns e os outros, entre o passado e o
presente, entre o presente e o futuro.
A participao da organizao museu nesse processo acaba por
fazer emergir a necessidade de relacionar a organizao (herdada) com as
suas (novas) misses. Aos museus como espao sacralizados onde se
guardavam os objetos raros e preciosos do passado, comeam a ser
interrogados sobre o seu sentido como espao de ao transformadora da
sociedade. Da at a formulao do museu como espao de formao de
conscincia sobre o mundo e como local de formao dos seus
protagonistas, foi um pequeno passo.
So essas preocupaes que esto presentes no texto que a Nova
Museologia considera a sua declarao inicitica a Declarao de
Santiago, feita em 1972, na cidade capital do Chile. No contexto dos
intensos movimentos sociais da Amrica do Sul, esta declarao16 vem
precisamente chamar a ateno para a necessidade dos museus estarem ao
servio do desenvolvimento da comunidade e dos territrios. Introduz
igualmente no vocabulrio da museologia as questes do ambiente atravs
do conceito do ecomuseu e do museu integral, uma preocupao que ento
estava na ordem do dia, quer na Europa por via dos movimentos
ambientalistas, e que nas Amricas emergia por via dos sistemas de
propriedade e explorao do solo. Os efeitos desta declarao vo
influenciar profundamente o movimento museolgico na Amrica e na
Europa, e est na origem do desenvolvimento dos novos tipos de museus
de comunidade, de conscincia, de territrio.
Passados doze anos, em 1984 no Quebec no Canad uma segunda
declarao, que ficar conhecida como Declarao do Quebec, vai marcar
este movimento da nova museologia. Por via do debate de vrios
muselogos de todo o mundo sobre experiencias em ecomuseus, conclui-se
a importncia crucial do envolvimento e participao da comunidade nos
processos museolgicos. a partir da conscincia da necessidade de
incorporar a participao da comunidade nos processos museolgicos que
determinar a vontade dos muselogos de se constiturem como um grupo
dentro do ICOM. Esse grupo dera formalizado no ano seguinte, em Portugal,
constituindo o MINOM.
16 Ver em Primo, Judite (1999). Museologia e Patrimnio: Documentos fundamentais, Sociomuseologia, n 15 Lisboa, ULHT (disponvel em http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 11
O Terceiro momento de relevncia para as nossas questes regista-
se em 1992 com a Declarao de Caracas, onde se chama a ateno para
a necessidade dos processos museolgicos integrarem, debaterem e
trabalharem as questes da globalizao. Ao mesmo tempo emerge a
conscincia de que os museus so simultaneamente espaos de
comunicao e de preservao, introduzindo uma dualidade na prtica
museolgica. A nova museologia, que se continua a desenvolver com
importantes contributos, ser doravante marcada por esta tenso entre a
salvaguarda das heranas e a sua comunicao. no mbito desta questo
se colocam as necessidades de repensar a cadeia operatrias da
museologia. (BRUNO, 1996). Uma operao que nos obriga a interrogar
sobre o que se escolhe para preservar, que nos leva a questionar sobre
quem seleciona, como se preserva e para que se preserva; ao mesmo
tempo que, estando o processo museolgico ao servio da sociedade, nos
obriga a interrogar sobre o que se comunica, como se comunica, para quem
comunicamos e para qu o que comunicamos.
Duma maneira geral estes princpios tem vindo a ser incorporados
nas diversas normas profissionais e nas definies de museus no mbito do
ICOM17. Mas que nos parece relevante salientar neste nosso trabalho a
necessidade de responder ao desafio que nos foi lanado de olhar para os
objetos museolgico como algo mais do que colees estticas. De olhar
para os objetos museolgicos como ferramentas para construir algo. Os
objetos no so um fim em si mesmo, mas constituem-se como processos
para alcanar algo. Os objetos museolgicos como proposta de processo de
conhecimento.
Assim, se numa perspetiva duma museografia tradicional o objeto
o centro da atividade do profissional, que se concretiza num espao
chamado museu que visitado por determinado tipo de pblicos; numa
perspetiva da nova museologia, emergem novos objetos museolgicos, os
museus alargam-se para os territrios, podendo assumir diferentes
configuraes e formas de organizao ao servio das comunidades.
Ao mesmo tempo a conscincia de que a salvaguarda dos objetos
igualmente um processo de comunicao, entende-se mais claramente que
os desafios s instituies de memria se constituem como desafios onde as
heranas e os patrimnios so trabalhados como objetos de construo do
futuro. Assim emergem novos objetos na museologia, integrando o
imaterial e o perecvel. Como se conserva ento o evento e a festa. Como
se conserva a oralidade. So desafios que fizerem os muselogos entender
que a museologia trabalha com a memria e com o esquecimento e que a
memria uma expresso do poder. A afirmao duma memria na
17 Veja-se nomeadamente Les Concepts Cls de Museolgie (DESVALLES & MAIRESSE, 2010) onde por exemplo na anlise do termo Museologia se aborda a problemtica da polissemia do conceito de museologia
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 12
comunidade constitui uma relao processual que simultaneamente
reflexiva e transitiva. A memria enquanto fenmeno uma relao entre o
sujeito e o real, constituindo a sua expresso uma representao que
reflete esse mesmo sujeito, na sua multidimensionalidade como sujeito
biosociocultural em transitividade.
Em suma, esta nova museologia, ao mesmo tempo que inclui na
museologia novos objetos, novos protagonistas e se dissemina por vrios
espaos sociais em relao com outros processos, transforma-se num
servio18 prestado comunidade. Assim tal como surgem novos tipos de
museus, tais como ecomuseus, museus de territrio, museus de
comunidade, museus de identidade, museus de conscincia, museus sem
objetos ou as redes de museus; surgem novos objetos, tais como as
narrativas biogrficas, os patrimnios imateriais, ou objetos construdos no
processo de conhecimento/fruio; e surgem novos processos
museolgicos, sejam espao de cultura ou configuraes onde os processos
museolgicos se entrelaam com outros processos sociais, no campo da
sade, da educao dos servios, etc.
18 A cincia dos Servios tem vindo a ser desenvolvida em diversos espaos tem
por base a evoluo tecnolgica e cientfica. A cincia dos servios focaliza-se na
satisfao das necessidades dos seres humanos e nas configuraes
organizacionais que do suporte s suas atividades.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 13
2. Novos Objetos museolgicos e
Intersubjetividade
Com verificamos um dos fatores distintivos desta nova museologia
uma reflexo e uma proposta sobre a Funo social do Museus, no mbito
da qual tem vindo a ser propostos novos objetos museolgicos. Por outro
lado, a teoria crtica das cincias sociais tem vindo a procurar afirmar a
reflexo das problemticas das cincias sociais em torno das problemticas
do reconhecimento e da emancipao (SANTOS, 2000). no mbito dessa
reflexo que emerge a relevncia da intersubjetividade.
A questo da intersubjetividade tem vindo a ser abordada na teoria
do conhecimento com uma proposta de superao da relao do sujeito
(aquele que formula os problemas) com o seu objeto de conhecimento
(formulao de problemas sobre os quais so aplicados os mtodos de
observao e medio). Esta crtica ao paradigma racional, que tem vindo a
ser feito entre outros pela escola de Frankfurt, de onde salientam os
trabalhos de Jrgen Habermas (1990) Axel Honneth (2011) e ente ns
pelos trabalhos de Boaventura Sousa Santos (1987) e pelo Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Entre outras questes a teoria
crtica fundamenta uma proposta de reformulao dos modos de
objetivao do real a partir da intersubjetividade. Propomo-nos neste
trabalho a efetuar uma anlise sobre a intersubjetividade na museologia a
partir duma postura de investigao-ao atravs do recurso das narrativas
biogrficas.
No paradigma da cincia social moderna as categorias de espao e
tempo surgem como formulaes absolutas (SANTOS, 1987). Invariveis a
partir das quais se efetuam a construo de narrativas lineares sobre os
espaos e as comunidades. A crtica de construo destas categorias como
fenmenos processuais, inter-relacionais e reflexivos (HABERMAS, 1990)
tem vindo a concluir que uma narrativa no pode aspirar a constituir-se
mais do que uma entre outras narrativas possveis. A possibilidade de
narrativa emerge assim no pelo seu carter universal e nico, mas pela
sua relao com as foras sociais que em determinadas conjunturas a
tornam dominantes. A crtica destas narrativas implica equacionar a sua
expresso como possibilidade narrativa. A viso critica sobre as narrativas
como fenmenos que resultam dum processo social inter-relacional
evidencia, na museologia, a necessidade de equacionar o sujeito que produz
o discurso. Ora, neste ponto de vista, uma narrativa museolgica, como
processo de conhecimento construdo a partir do sujeito muselogo, um
processo que resulta mais prprio do conhecimento prvio do sujeito como
que construindo um efeito de imagem refletida num espelho. A narrativa
museolgica moderna no seria mais do que um alinhamento de objetos
Glenda MeloRealce
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Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 14
que representam um conhecimento que se reflete a si mesmo atravs
desses mesmos objetos.
Ora a construo deste conhecimento reflexivo, a partir do qual se
reconstroem as narrativas, tambm criticado a partir do seu efeito
processual. Isto , ao projetarmos no mundo uma interrogao que nos
devolvida como resposta19, tambm estamos ao mesmo tempo a
predeterminar a essa narrativa construindo os seus prprios limites de
possibilidade, a partir da sua formulao. Como sabemos a comunicao
no neutra e no existe sem desencadear uma multiplicidade de efeitos a
partir da qual se geram novos campos de tenso. O reconhecimento deste
princpio da incerteza nas narrativas (do sujeito sobre o objeto),pelo efeito
de reflexo e pelo efeito processual, induz uma conscincia sobre as
narrativas museolgicas como campos de possibilidades contnuas.
Assim, sendo a narrativa museolgica uma varivel contnua20
construda por um sujeito, a construo desse processo, para efeitos de
validade e consistncia, deveria partir do prprio sujeito social como
protagonista da construo das suas prprias narrativas. O deslocamento
da construo do discurso do individuo para o social adiciona narrativa
museolgica uma caracterstica pragmtica. O objeto museolgico torna-se
numa possibilidade que ocorre num processo num espao-tempo em
permanente transformao. Esta canibalizao do objeto museolgico
permite a emergncia duma conscincia dum fato museolgico centrado nas
comunidades e nos territrios. Essa antropofagia do objeto permite a
emergncia da intersubjetividade do conhecimento museolgico.
A introduo da intersubjetividade na epistemologia museolgica
possvel por esse descentramento da produo do conhecimento do sujeito
para os objetos. Na intersubjetividade o conhecimento depende no do
sujeito racional, nem das suas emoes e sentimento, mas ele produzido
pelos outros. A ideia no dada pela mente em reflexo centrada no
espao e no tempo, mas pelo uso da palavra, numa determinada
comunidade e em prticas coletivas. O conhecimento museolgico deixa de
estar centrado nos objetos nos museus para se centrar na produo de
objetos nas comunidade e territrios como processos de conhecimento.
Processos de conhecimento que tem um funo pragmtica de construo
da vontade de futuro. Um processo transitivo (onde a cincia se assume
como um processo de conhecimento e como tcnica de analise da
probabilidade e da imprevisibilidade) que se exprime como um processo de
comunicao (como uma relao entre a forma de comunicao (uma
19 Quando construmos um problema j construmos, intuitivamente, a resposta
para esses problemas (JESUINO, 2000) 20 O conceito de variavel contnua relaciona-se com a densificao dum fenmeno
no espao e no tempo, que permite a sua classificao ou ordenao. Trata-se
portando duma expresso duma relao dos sujeitos com o real.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 15
linguagem) e o consenso que se cria como resoluo dos conflitos das
partes (uma dialtica).
2.1. Construir uma potica da
intersubjetividade
Verificamos atrs que a nova museologia partiu da interrogao
sobre o que so e para que servem os museus. A busca de resposta sobre a
sua funo social conduziu museologia formao dum campo de
conhecimento prtico que mobiliza contributos tericos de diferentes
disciplinas das cincias sociais, das humanidades e das cincias naturais.
Por exemplo os trabalhos sobre a memria social, que mobiliza os estudos
da cognio, da interao social, das representaes e das narrativas abre
um campo para uma reflexo e prtica transdisciplinar (FREITAS et alea,
1994), que permite museologia ampliar os seus objetos de anlise,
incorporar novos sujeitos e induzir dimenses narrativas de diferentes
espaos e territrios.
Este alargamento do tringulo epistmico21 da museologia permite a
prtica duma museologia crtica e solidria22. Esta prtica museolgica
recoloca o desafio de pensar as prticas e os objetos museolgicos como
aes que se inscrevem nos seus produtores. Este artigo apresenta uma
proposta metodolgica para este desafio, com base na incluso das
narrativas museolgicas dos objetos biogrficos e scio biogrficos.
Ao assumirmos a busca duma resposta para esse desafio de
construir uma museologia centrada nos outros, vamos procurar apresentar
uma proposta na construo duma potica da intersubjetividade. Como
vimos a intersubjetividade emerge na teoria do conhecimento como um
modo de superar a subjetividade na relao entre o sujeito com o objeto de
conhecimento. Esta uma questo crucial na epistemologia, que tem sido
pouco referenciada na museologia e que mais frente defenderemos mais
detalhadamente.
A objetividade do conhecimento, na sequncia da afirmao do
mtodo cientfico emerge da observao. Da observao de fenmenos. Na
observao dos fenmenos procura-se que o sujeito no interfira no
processo de forma a no afetar o resultado. A no-ocorrncia dessas
condies de observao implica a no-produo de conhecimento
21 Consideramos aqui como tringulo epistmico a conjugao da racionalidade do
discurso, a vontade de conhecer e a ao. Este tringulo tem origem na Paideia
grega que estrutura o pensamento moderno. 22 A museologia Crtica e Solidria resulta do empenhamento do muselogo num
mundo em transformao.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 16
cientfico. Assim, numa viso simplista desta questo poder-se-ia dizer que
a um conhecimento cientfico, objetivo, ope-se um senso-comum,
subjetivo.
No entanto a experiencia social, individual e cientfica de cada
membro da comunidade permite a construo dum mtodo subjetivo de
produo de conhecimento. As experiencias individuais e sociais esto
presentes em toda a sua dimenso em todos os atos de conhecimento. Em
diversos domnios, na Psicologia, por exemplo, o recurso anlise da
subjetividade dos processos psquicos uma constante. A questo da
interferncia do observador no processo uma questo relevante. Que
conhecimento esse que emerge na relao do sujeito com o seu objeto.
Melhor que conhecimento social esse que emerge na relao social
estabelecida entre um sujeito produtor e um objeto social, tambm ele
produtor de relaes.
Nas narrativas museolgicas tradicionais, a construo do
conhecimento est centrada no muselogo, que legitima a produo do
discurso nos objetos socialmente significativos que ilustram e interagem
com essa a narrativa legitimando-a. Uma museologia critica procur romper
com esta relao viciada entre um sujeito (muselogo) ungido por um saber
legitimado (no exterior) e o objeto significativo (revelado pelas relaes
sociais). Procura romper com as relaes centradas na produo de
narrativas hegemnicas que se reproduzem a si mesmas, reinventando-se
incessantemente a si mesma.
Procura romper esta relao por via da busca do conhecimento do
outro, atravs dele mesmo. Na proposta da intersubjetividade a narrativa
museolgica construda pelo outro. Da a importncia da sua palavra e da
sua ao na construo do processo museolgico. No a construo duma
ideia criada no seio duma comunidade hegemnica que prevalece, mas sim
o processo de construo dessa hegemonia como ao que se constitui
como narrativa.
Naturalmente que qualquer narrativa hegemnica e qualquer
tradio incessantemente reinventada (HOBSBAWN, 1988). A relevncia
da construo da narrativa pela intersubjetividade no deriva do valor da
materialidade dos discursos e dos objetos, mas das prprias experiencias
vivenciadas. A intersubjetividade emerge na troca de ideias como
experiencia para produo de narrativas em que os diversos sujeitos esto
implicados, como produtores dessa mesma narrativa e partindo dessa
produo para a contruo de como aes comunicativas.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 17
Nesta dimenso emerge a dimenso potica23 da intersubjetividade.
Potico no sentido em que se transcende na produo de significados.
Potica no sentido que atravs do ato comunicativo que se produz e se
cria inovao. Potica no sentido da busca da pluralidade dos significados.
Potica porque a narrativa simultaneamente exegtica e terica. No
primeiro caso porque liberta os significados contidos nas formas, atravs da
sua verbalizao e ritualizao; e terica porque ao mesmo tempo que situa
um discurso num espao e num tempo contextual a recria atravs da
releitura da experiencia social significativa.
A potica da intersubjetividade traduz-se numa experiencia sensvel
que permite uma viagem na construo dos processos museolgicos. Uma
viagem atravs do qual os diversos sujeitos se deslocam no tempo e no
espao em torno de objetos socialmente significativo, de herana comum,
para, em conjunto os reconstrurem.
A nossa proposta para a utilizao da potica da intersubjetividade
na museologia parte das narrativas biogrficas. As scio biografias esto
implcitas na construo da sociomnese24 As narrativas biogrficas partem
duma problemtica transitiva e reflexiva dos objetos sociais. Se as relaes
ente o sujeito que observa e o objeto que observado so transitivas (a
cincia como tcnica de analise da probabilidade e da imprevisibilidade) a
sua expresso, como processo uma relao entre a forma de comunicao
(uma linguagem) e o compromisso que se cria como resoluo dos conflitos
das partes (uma dialtica). O compromisso no anula o conflito, apenas o
procura superar.
2.1.1. Cartografar
Para a construo desse roteiro de trabalho museolgico propomos
um conjunto de quatro momentos: A constituio dum grupo
museolgico25 um passo essencial para desencadear o processo. A partir
23 A Potica como gnero literrio, na sua aceo contempornea constitui uma arte
ou uma gramtica do verso, a poesia que se diferencias da narrativa. Todavia a
Potica de Aristteles (ARISTTELES, 1986) constitui o texto fundador dessa
arte, tem como objeto um elemento narrativo material (um texto ou um artefato) e ao mesmo tempo os seus significados. neste ltimo sentido de potica como
produo de interpretao (TODOROV, 1973, 9) que nos propomos conceituar a
nossa abordagem A potica como elemento de transitoriedade, revelador de
discursos que inscrevem um enunciado num tempo sem retorno ocupando um
determinado espao. 24 Sociomnese um neologismo que propusemos no mbito da nossa tese em
Museologia, como instrumento de trabalho para processos museolgicos com base
na fenomenologia da memria social 25 A proposta de utilizao de crculos museolgicos na museologia, tem como base
os trabalhos de Paulo Freire. Ela remente-nos para a tradio nos crculos
hermenuticos de Heidegger. O Circulo Hermeneutico tem origem numa figura da
Glenda MeloRealce
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Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 18
da constituio do grupo, lanado um primeiro desafio, de cartografar o
mundo exterior. A cartografia pode ser feita por imagens que apoiam a
construo de narrativas pessoais que traduzam a experiencia do mundo
por cada um dos elementos do grupo. O exerccio pode implicar o
movimento de descoberta do espao exterior ou a utilizao de elementos
previamente preparados, tais como imagens, sons, materiais diversos,
eventos etc. Para esse efeito o muselogo pode recorrer s diversas formas
de animao de grupos, que podem passar pelo caf do mundo, a visita
de estudo, o espao aberto, o mtodo cardico, etc. neste processo
de tcnicas de animao de grupo que temos vindo a trabalhar as propostas
de narrao por cada um dos membros do grupo o relato da suas histrias
de vida. sobre a reflexo terria sobre essa prtica que temos vindo a
evidenciar a emergncia da potica da intersubjetividade. Na proposta da
intersubjetividade o importante desencadear uma experiencia sensorial e
cognitiva entre cada um dos sujeitos. Essa experiencia socialmente
partilhada pela imerso no cculo. Ela permite igualmente criar uma bateria
de informao socialmente partilhada como ponto de partida para uma ao
conjunta. Mais adiante detalharemos esta questo. Para j olhemos para a
proposta do processo de trabalho, para verificar o que em cada momento
emerge de inovao.
A constituio do crculo o momento inicial do dialogo que prope
uma verbalizao a partir da experiencia vivida por cada um dos seus
membros. Esta uma ao que prope uma reflexo sobre a experiencia do
passado e por isso lhe chamamos cartografia por analogia sntese que
feita sobre um papel duma descrio do real fsico.
retrica clssica e remete para a lgica interna da compreenso de um texto. A
regra da crtica hermenutica um dispositivo de nalise segundo a qual
necessrio analisar um documento (ou um texto) no seu todo a partir das suas
partes constituintes, e as suas partes constituintes como um todo. O princpio de
que a compreenso dum objeto no se encontra explicita nesse objeto, mas resulta
dum processo de dilogo entre o sujeito que conhece e esse objeto. Um dilogo que
feito por aproximaes sucessivas. Por isso a ideia de crculo, como um
movimento repetitivos.
No entanto a imagem em vez de crculo de veria ser a de espiral eliptica, pois esta
imagem mais mais intuitiva. A forma de espiral elipptica ilustra melhora a
dialtica do dilogo do sujeito com o real. O dilogo como desvelar sucessivo de
sentidos por aproximao e aprofundamento. A influncia desta imagem de crculo
ter chegado a Paulo Freire por via do trabalho de Martim Heidegger sobre os
trabalhos de Georg Simmel. O mundo como vontade e representao herdados de
Schopenhauer, onde a conscincia um processo dinmico de transformao do
real. O crculo hermenutico o processo onde se pr-reconhece (uma intuio)
uma forma, a partir da qual de d mais ateno ao detalhe (a conscincia de). A
revelao dum sentido, constitui uma janela a partir da qual de reconstri uma
ordem. A vantagem da metfora do crculos, que expressa simultaneamente o
dialogo do pensamento do individuo e a sua interao com o grupo, justamente o
de se acrescentar ao eu aos outros, para em ao, ao verbalizar uma ideia assumir
a conscincia dessa ideia e ao mesmo tempo de a partilhar com os outros,
dispondo-nos a aceitar outras leituras e gerando interaes. Estamos portanto no
domnio da intersubjetividade.
Glenda MeloRealce
Glenda MeloRealce
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 19
2.1.2. Corporizar
reconstruo do mapa mnemnico individual sucede-se a
corporizao da experiencia. Agora solicita-se a mobilizao da informao
para a construo de uma ao. Uma ao em que cada um dos membros
partilha os sentidos das suas experincias com os restantes membros do
grupo, j no como emissor de sentidos, mas tambm como produtor e
recetor de significados. A Histria de Vida, relatada aos outros j uma
corporizao da experiencia individual. Mas a sua partilha com o grupo e o
efeito de receo gerada que permite adicionar e introduzir as vrias
dinmicas de construo de sociabilidades.
Como tem sido defendido por Cristina Bruno, (BRUNO, 2007) as
viagens constituram no passado dos mais importantes mtodos de recolha
de objetos museolgicos. Muitas das colees reunidas nos museus de
cincia, de etnologia, de arqueologia e de histria foram constitudas
atravs de viagens. Foram as viagens e a recoleo de objetos que permitiu
cincia europeia cartografar o real e construir o seu mapa do
conhecimento. A teoria da Evoluo das espcies de Charles Darwin e o
Mtodo de Classificao de Lineu decorrem das grandes viagens dos sculos
XVI a XIX. No sculo XX, o Estudo dos Museus olham para estas colees
segundo trs perspetivas: numa perspetiva processual da
preservao/conservao dos objetos segundo a cadeia operatria da
museologia; numa perspetiva reflexiva, onde para alm dos procedimentos
da cadeia operatria so adicionados conceitos estruturantes (teoria da
evoluo, razes da coleo, histria da coleo etc.,); e na relao entre as
instituies e a suas colees. Nesta ltima perspetiva procura-se relacionar
os processos de constituio dos acervos com os processos organizacionais
que os determinaram. O recentramento das colees arcaicas no tempo em
que foram produzidos, reconstruindo o sentido das viagens que as
originaram tem vindo a introduzir novos desafios aos discursos
expogrficos.
O que nos interessa salentar nesta proposta de Cristina Bruno o
desafio que nos lanado de olhar para os processos museolgicos como
uma viagem contempornea. No sculo XXI a viagem uma experiencia de
transitoriedade onde o conhecimento trabalhado a partir da experiencia
dos sentidos. Um proposta de vivincia experiencial, no permite mais as
propostas de narrativas museolgicas como construo de monlogos. As
narrativas museolgicas devem ser abertas e constituir-se como um espao
e um tempo de construo de conhecimento. O conhecimento no hoje
mais visto como algo esttico. O conhecimento hoje uma experiencia de
descoberta de sentidos que dependem do sitio onde se est e para onde se
observa. A narrativa museolgica, ao constituir-se como uma narrativa
aberta permite a criao desse trnsito do olhar entre espaos e tempos
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 20
diferenciados. Como umaviagem ou uma busca para resolver a inquietao
sobre a condio humana.
a partir da experiencia de corporizao da condio humana que
propomos uma experiencia de busca e construo de dilogos entre os
membros do grupo. Cada um dos membros do grupo incorpora o
conhecimento do outro e devolve-o ao outro e comunidade como
experiencia comunicativa.
A experiencia da Histria de Vida ou da narrativa biogrfica neste
sentido exemplar como proposta de corporizao da experiencia que parte
dum individuo como partilha com os restantes elementos do grupo. Atravs
da verbalizao das experiencias individuais, no s emerge uma
reconstruo dos sentidos dessa expereincia, como igualmente emerge a
partilha com o grupo. importante sentir a emergncia da partilha como
algo que igualmente incorpora sentidos. importante sentir o espao e o
momento do envolvimento. importante sentir a troca e interrogar sobre o
que h de comum no envolvimento dos vrios membros do grupo nesse
tempo e nesse espao. Sentir os sons, os aromas, os cheiros, e as cores.
Procurar identificar as formas e os movimentos, estar alerta para o espao
para que os sentidos possam captar o contexto e o momento. Esses so
eleentos de memria e a partilha desse momento, vivido interiormente,
como um todo que permite captar a essncia do momento vivido e
socialmente partilhado. esse momento que pode dar sentido
reconstruo do novas conexes sociais.
2.1.3. Problematizar e construir a
Utopia como potica
A partir da corporizao importa problematizar os sentidos
comuns. Interrogar aquilo que une e aquilo que diferencia os elementos do
grupo. O desafio agora de reconhecer o que h de comum, aquilo que
pode ser utilizado como elementos comuns do grupo para construir uma
ao. Mas para ter conscincia do que comum preciso interrogar,
inquietar. necessrio debater a diferena, enfrentar o que desune.
Ao terceiro momento da problematizao sucede a construo da
Utopia. Enfrentando o que une e o que desune a proposta desafiar
construo duma narrativa partilhada que contenha a imagem do grupo.
Nos quatro momentos de construo duma narrativa intersubjetiva
na museologia, em tese temos vrios produtos museolgios, tantoa quantos
o grupo considerar necessrios produzir. Se tomarmos como exemplo a
metodologia das histrias de vida temos, num primeiro momento, um
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 21
conjunto de narrativas, dos diversos membros do grupo. Narrativas
pessoais. O grupo pega nessas narrativas, debate os seus significados e
reconstri uma narrativa comum. O grupo negoceia os elementos comuns e
os elementos de divergncia. Discute o que deve ser includo e o que no
merece a pena ser recordado. No final a narrativa socialmente construda
ou reconstruda apresenta-se como uma produo que resulta duma
vontade comum socialmente construda.
Mas recordemos, o importante neste mtodo no o seu resultado
final, mas sim a experiencia vivida por cada um dos membros no processo
que conduz a esse resultado. No excluindo a possibilidade do resultado
poder ser socialmente partilhado, o importante que cada um dos
membros tenha tido a oportunidades de viver um momento transformador,
de pressentir o que essencial. Nesse sentido a narrativa museolgica no
se afirma pelos objetos mas pelos processos que catalisa na relao do
sujeito com o social e com o real. Por essa razo temos. nessa relao
processual que defendemos a emergncia da potica.
2.2. Os objetos biogrficos como
metodologia na construo de
narrativas na museologia
O nosso propsito neste ponto refletir sobre os desafios
metodolgicos para a museologia de integrar estes objetos biogrficos como
uma prtica de investigao-ao para a transformao social com base
numa cultura de paz e solidariedade de emancipao social.
Partimos da premissa terica da sociomuseologia que traduz uma
parte considervel do esforo de adequao das estruturas museolgicas
aos condicionalismos da sociedade contempornea. A abertura do museu ao
meio e a sua relao orgnica com o contexto social que lhe d vida, tm
provocado a necessidade de elaborar e esclarecer relaes, noes e
conceitos que podem dar conta deste processo. (MOUTINHO, 2007)
O processo de investigao sobre objetos biogrficos tem vindo a
implicar uma reflexo sobre o sujeito implicado nas narrativas; seja do
investigador sobre o seu objeto de investigao ou seja do narrador de si
mesmo como implicado na construo duma memria de si, que se constitui
como um processo de formao da conscincia de si e das suas aes.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 22
Esta problemtica tem vindo a ganhar espao de reflexo na
academia26, e herda um patrimnio que tem vindo a ser trabalho por vrias
abordagens das cincias humanas. A sociologia na escola de Chicago iniciou
a utilizao deste objeto por volta da dcada de vinte do sculo passado, no
entanto a emergncia do quantitativo e da crena no domnio da natureza
pelos modelos objetivos, veio submergir a questo das abordagens
biogrficas para um plano de menoridade cientfica. As metodologias
qualitativas e os fenmenos subjetivos so alvo de pouca reflexo fora de
crculos muito restritos das academias.
Nos anos sessenta a historiografia inglesa influenciada pela escola
dos Analles, atravs da Histria Oral, inicia nesta cincia uma abordagem
metodolgica a resgate de memrias e eventos do movimento operrio por
via de entrevistas a indivduos que testemunharam os acontecimentos.
Paralelamente, durante essa decadas, a emergncia das independncias
africanas, conduzir a um desenvolvimento das metodologias sobre Histria
Oral aplicadas s comunidades sem histria. Recorde-se que na poca a
base da Histria era sinnimo de domnio da escrita, pelo que a
associao da cincia ao smbolo grfico que expressa o pensamento era
considerada uma das distines entre selvagens e civilizados. Quem no
dominava os instrumentos simblicos da notao escrita era considerado
primitivo, e atravs dessa operao mental legitimava-se os processos de
hegemonias colonial que o conceito de civilizao transportava. Em nome
da civilizao geraram inmeros de processos de violncia e e destruiram-
se formas de saberes formas de estar e tcnicas.
Por outro lado no mbito das polticas culturais defendidas pela
UNESCO, para resgate de tradies, nos anos setenta, procede-se em
vastos territrios africanos e amaericanos recolha e registo de tradies
orais, sejam por via dos contos tradicionais, seja por via da msica, da
dana ou do trabalho. Esta tradio entroncava na velha tradio europeia
nacionalista que havia, durante o sculo XIX, fixado atravs da escrita a
tradio distintiva das naes, como resgate da modernidade universal
iluminada. Nos anos setenta do sculo passado, a antropologia e a
educao apropriam-se desta metodologia qualitativa para abordagem de
relao de subjetividade construda pela histria de vida como processo
formador.
Interessa-nos portanto argumentar que forma as narrativas
biogrficas, enquanto metodologia, encontram a sua atualidade numa
26 Uma sntese deste debates encontra-se publicado na obre coordenada por Elsa
Lechner, que resultou dum encontro internacional em 2007. Tambm em fevereiro
de 2009, em Lisboa o CIES do ISCTE promoveu um seminrio sobre Abordagens Biogrficas, Memria e Histrias de Vida (www.memriamedia.net). Mais
recentemente, Elsa Lechner atravs do CES da Universidade de Coimbra promoveu
um CES Summer Course sobre Lives and history: a comprehensive course on biographies and societyLous 2011.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 23
tradio qualitativa das cincias do humano. Como metodologia de trabalho
entroncam por sua vez nas problemticas de intersubjetividade, na medida
em que o que analisado transcende a relao tradicional entre o sujeito-
objeto que funda a cincia moderna, para se situar no campo da interao
entre os sujeitos produtores de conhecimento perante a conscincia do seu
prprio conhecimento como relao dialtica de superao. Uma dialtica
em que a conscincia de s prprio como ser social e experiencial
simultaneamente catalisadora de conscincia de si atravs da ao, e
atravs da ao, gerar conscincia de si como ser individual e ser social.
Trata-se portanto duma ao comunicativa que se traduz na narrativa de
representao que contem, para alm de o ser individual o ser social. Mas
que trascende ainda esta relao entre o individuo e o todo pela incluso do
sentido esttico e tico. por isso que o temos vindo a defender como
potica. Trata-se portanto duma meta narrativa que contem uma
pluralidade de histrias individuais que se constituem como fragmentos
discursivos duma narrativa comum, de sentido emencipatrio porque
incorpora o reconhecimento (HONNET, 2011).
Uma narrativa constitui-se como um enunciado comunicacional,
onde o emissor produz um discurso em funo do destinatrio. Ainda que
essa narrativa seja feita no foro privado, ela constitui-se como um discurso
reflexivo, onde o resultado alcanado depende da conscincia do social
desse sentido. Uma reflexividade que tanto mais evidente quanto
sabemos que no domnio da investigao, seja por parte do investigador
que utiliza a metodologia, seja por parte do objeto de investigao, que no
h uma neutralidade na representao. Os discursos, como ao implicam
uma vontade. Desse modo a produo do sentido na narrativa biogrfica
constitui como uma epistemologia27 e como um fenomenologia28 que se
verifica no domnio da intersubjetividade29.
Os objetos biogrficos transportam a densidade de significados que
compem as diferentes experiencias dos sujeitos, as suas expectativas de
ao e a natureza relacional onde a interao se processualiza. Esta riqueza
pode ser apropriada pelo olhar museolgico para construir uma prtica de
relacionamento entre o individual e o social ou vice-versa, na medida em
que para alm da sua natureza reflexiva, como forma de conscincia do real
a interao biogrfica assume-se como uma prtica de integrao de dados
e com uma prtica transformacional.
neste domnio: o da utilizao das prticas biogrficas nos
processos museolgicos, que queremos salientar a sua pertinncia como um
27 Aqui entendido como uma filosofia do conhecimento, como o mtodo de avaliar e
validar a produo do conhecimento. 28 No sentido Husserliano do termo como estudo da conscincia e dos objetos da
conscincia 29 Aqui entendido como um campo da ao dos indivduos em contexto social. Uma
ao processual pode consciente, percetiva ou intuitiva.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 24
elemento catalisador de processos de prtica de transformao social. O
olhar biogrfico transporta um ato de narrao. Uma ao de relatar a
experiencia vivida como construo do seu sentido. Esta potica da palavra
ou dos gesto emerge como um reflexo do mundo experienciado e traduz o
questionamento sobre a adequao da experiencia a cada situao do
presente. Uma inquietao que gerada em funo das vontades de
reconhecimento como vontades de futuro
A experiencia biogrfica pode constituir-se assim mais do que uma
mera arte do conto e afirmar-se como uma Posis. Ao colocar o sujeito
como construtor da suas prprias narrativas biogrficas, ao criar um olhar
biogrfico sobre si mesmo, ao aceitar expor-se e revelar-se como sujeito
da histria, a prtica da narrativa biogrfica na museologia permite a
abertura duma janela para a incluso de narrativas sociais. O sujeito no
s se media a s prprio atravs da representao do real, como
igualmente por via a experiencia cria uma ao comunicativa que
simultaneamente poltica e tica.
A construo da narrativa social processa-se portanto numa dupla
dimenso processual. No plano do individuo comunicante que processualiza
a experiencia individual em funo do recetor da mensagem; e no plano do
individuo como ser social, que igualmente se concretiza atravs do processo
comunicacional, que transporta a conscincia social do mundo. nesse ato
de comunicao que se processualiza a adequao dos saberes das
comunidades, enquanto herana social, para a reconstruo dos sentidos e
das orientaes do social. Uma luta pelo reconhecimento e pela
amencipao
Para a museologia, mais importante do que a narrao do indivduos
e da sua experiencia individual essa possibilidade de explorar atravs
duma biografia de indivduos as narrativas sociais Ou seja a possibilidade de
atravs do conjunto de narrativas individuais reconstruir scio-narrativas. A
introduo da potica da intersubjetividade como proposta na
sociomuseologia permite inovar na construo de processos museolgicos.
Assumir a sociomnese como potica da intersubjetividade implica
incrementar a explorao do potencial da memria de vida para gerar
conscincia do social no individuo e de atravs dessa conscincia social
permitir gerar aes solidrias e a construo dos saberes mestios. No
nos interessa propriamente a construo de narrativas sobre objetos
socialmente significativos, sobre monumentos ou patrimnios, mas
interessa-nos essencialmente o que a experiencia processual implica na
construo dos sentidos. Implica essa postura a adio funo social dos
museus, a de um espao de experimental, o de um laboratrio que
concentra as tenses scias para libertar as suas energias criadoras.
Independentemente do lugar e da configurao organizacional. Um
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 25
processo museolgico com base na potica da intersubjetividade um
processo de criao e de inovao social para emancipao social solidria.
esse movimento de reconecimento e reconstruo dos sentidos
que se constitui como um movimento libertador, um momento que ao ser
socialmente partilhado se constitui com criador de solidariedades pela
emergncia da conscincia da alteridade. Um processo intersubjetivo por se
recentra no processo gerador. Atravs do processo museolgico centrado
nas narrativas scio biogrficas a museologia centra-se na captura do
essencial da transformao, do movimento. Um desafio para a museologia
de captar o movimento no interior da permanncia o movimento
transformador pela prpria experincia de participao.
O utilizao das metodologias scio biogrficas permitem recentrar a
produo dos saberes nos indivduos como produtores das suas prprias
experiencias e permitir o exerccio de construo dos sentidos do social
solidrio. Se o exerccio de biografizao, a produo individual de sentidos
um momento experiencial, potencialmente libertador pela verbalizao ou
pelo ato performativo; o desafio essencial das metodologias biogrficas
decorre no processo da formao da conscincia do individual como parte
do social. nesse dilogo entre o eu (na sua mltipla dimenso
consciente e inconsciente) e os outros (tambm nas suas mltiplas
dimenses), entre as linguagens da alteridade, que emerge o saber
mestio. Um saber que se alicera na partilha das experiencias como
vontade de futuro.
Como mtodo de conhecimento a biografia e a narrativa biografia
simultaneamente um modo de conhecimento onde os autores se assumem
como produtores conscientes dos caminhos das suas vidas. Desse modo, o
processo de conhecimento obtido no apenas referencial (construdo pelos
currculos predeterminados) mas um saber que decorre da experincia
pratica intercultural (do ato de narrar, do ato de pensar, do ato de partilhar,
do ato de transformar, do ato de sentir, do ato de imaginar) integral. esta
capacidade transformadora que constitui a riqueza epistemolgica dessa
proposta na museologia e que a permite alicerar no interior dum
paradigma emergente da transio no interior duma ecologia de saberes
para uma emancipao social.
Ora, como afirma Elsa Lechner Independentemente do olhar
disciplinar de onde se parte, as histrias de vida e relatos de experiencia
tm ainda o poder de emancipar. Desde logo porque levam a tomadas de
conscincia, porque depois ultrapassas a fronteira dos esteretipos e
permitem ao sujeito ressituar-se face sua histria e papis sociais. Assim
conceber a pesquisa biogrfica tambm nos seus efeitos significa
reconhecer a carga poltica que comporta, quer como mtodo, quer como
forma de apreender as realidades humanas (LECHNER, 2009, 9). Importa
reconhecer s narrativas biogrficas, quando assumidas como narrativas
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 26
scio biogrficas, como temos vindo a defender, o seu valor epistemolgico
como processo de partilha solidria de experiencias significativas para a
construo dum mudana participada onde o local se funde no global.
No se trata j de reconhecer a apenas a esta metodologia como
um processo intersubjetivo entre o sujeito narrador e o objeto de
investigao. Implica tambm reconhecer o seu potencial transformador
pela ao.
2.3. O processo transformador:
propostas de abordagem na museologia Abordaremos agora de forma sucinta algumas propostas
metodolgicas de integrao das narrativas scio biogrfica nos processos
museolgicos. No mbito da nossa tese de Doutoramento (LEITE, 2011)
explicitamos a metodologia da sociomnese aplicada num contexto territorial
delimitado. Como ento verificamos, a delimitao do espao-tempo uma
das categorias de orientao que mais facilmente permitem a
contextualizao dos sujeitos. uma contextualizao que permite uma
observao da realidade vivida ao mesmo tempo que a explicitao dessa
observao gera uma ao comunicativa de descrio desse objeto. Esse
processo gera-se como uma experiencia de mediao do individuo entre o
mundo real e a conscincia de pertena e no pertena a esse mesmo
mundo. A emergncia da conscincia da pertena a um determinado
conjunto social pode constituir-se como um dosp processos da formao da
conscincia da agregao em comunidade.A conscincia duma identidade
partilhada.
A coeso social30 como medida de agregao das comunidades um
princo orientador das politicais publicas e uma medida do processo de
incluso social. O desenvolvimento de processos participativos neste
domnio um instrumento til. Normalmente estes processos implicam a
gerao de aes comunicativas. Estas aes tem como objetivo criar
adeso ou implicao nos processos sociais Os processos comunicativos
30 Coeso Social um conceito Durkheiniano que expressa o consenso e a unio
entre os membros duma comunidade (Durkheim, 1984). A coeso social constitui
uma medida de agregao que expressa em valores socialmente qualificados que
podero ser expressos em objetos menemnicos e patrimoniais. Estando as
comunidades polticas em processo, o desafio das polticas pblicas ser portanto o
absorver a mudana (pelo progresso matrerial) e conservar e agregao social
(pelo progresso moral). As teorias emancipatrias assumem no entanto que no h
uma transformao material das foras produtivas da sociedade, sem uma
correspondente transformao das estuturas sociais. Na era da globalizao a
questo da coeso social um campo de tenso na anlis poltica.No querendo
deixar de referir esta problemtica, esta questo transcende este nosso trabalho
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 27
podem ser, como sabemos, rituais quando implicam a rememorao, ou
espontneos, quando implicam reaes a situaes novas. Por sua vez no
processo comunicativo esto tambm implicadas relaes de coao que
podem ser autoritrios ou democrticos, em funo da organizao e
estrutura do poder (HABERMAS, 2003)31.
Nesse contexto poderemos ainda mobilizar o conceito de
comunidades abertas32, como comunidades onde as suas heranas so
processuais, vividas em rede; por contraponto s comunidades fechadas, se
constituem como espaos sociais hierrquicos, que procuram fixar os seus
rituais, cristalizando os patrimnios e as heranas e que se constituem
como espaos pouco dinmicos inovao.
Analisar comunidades e as organizaes sociais em funo dos seus
contextos de agregao em busca das dinmicas processuais implica
reconhecer que as mudanas e as permanncias so processos de tempos
diferentes. Por exemplo, nas cincias sociais, usualmente usamos a questo
do confronto entre a tradio e a modernidade, para exemplificar esta
oposio entre as permanncias e as transformaes. Como j notou
Hobsbawn (1988) a perceo do passado e da tradio constitui-se como
um inveno que se reajusta permanentemente no presente, tal como a
modernidade acentua a perceo de mudana. Analisar essa tenso fora
das dinmicas e dos contextos de transformao constitui-se muitas vezes
como falsos problemas. A mudana uma evidncia. A questo que
interessa compreender porque que as sociedades mudam e entender o
papel da ao dos sujeitos nas possibilidades de mudana. a capacidade
dos sujeitos orientar a mudano que determina a natureza do processo
emancipatria.
por essa razo que a categoria de espao-tempo nos til para a
gerao de aes museolgicas, na medida em que uma anlise de um
qualquer objeto no seu contexto espao-temporal permite a reconstruo
do sentido do real no interior duma comunidade. Um sentido que no
necessariamente aquele que ela tinha no momento da sua execuo, mas
aquele que hojo, os sujeitos produtores de conhecimento entendem como
sendo o mais prvvel em funo do conhecimento mobilizado. Estamos
portanto face a real intersubjetivo que tem por base um conhecimento
socialmente partilhado e legitimado. Um qualquer objeto participa no que
poderemos chamar modos de vida da comunidade atravs dos diferentes
olhares dos sujeitos que o observam. Nesse sentido cada olhar sobre os
objetos constitui-se como vimos simultaneamente como um olhar biogrfico
31 Poder aqui no sentido de capacidade de influenciar o comportamento do outro 32 O conceito de comunidades abertas introduzido nas cincias sociais a partir dos
estudos das cincias naturais ao procurar responder forma como diferentes
espcies ocupam os mesmos espaos e que condizir noo de ecologia. O termo
tende hoje a ser substitudo pelo de redes sociais, tendo como elemento
estruturante os fluxos interelacionais. (CASTELLS, 2006)
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 28
e como um olhar scio-biogrfico. atravs dessa relao reflexiva que
conhecemos o mundo, que criamos implicaes sociais, e atravs desse
conhecimento podemos atuar, como indivduos ou como membros duma
comunidade ou rede.
Um qualquer objeto, ao ser socialmente reconhecido, implica a
gerao dos processos de pertena (discriminao, conjuno e agregao),
atravs dos quais se reconstroem os sentidos do mundo ou a sua
inteligibilidade. Em tese, qualquer reflexo do mundo permite a reconstruo
e a representao desse mundo, no na sua dimenso real, mas como
representao dos seus sentidos, de forma intersubjetiva. Atravs dos
objetos um sujeito, participante numa comunidade, reconhece mais ou
menos intensamente os tempos e os espaos sociais, pratica determinados
modos de relacionamento com esse espao e adere a certas formas de
organizao social. O mundo como vantade de representao uma
expresso da liberdade do individuo, da sua capacidade de emancipao.
Um objeto transporta sempre um significado que atribudo pelo sujeito
que o observa como um reflexo da conscincia do mundo desse mesmo
sujeito. Um objeto sempre um estmulo que gera um pensamento, um
sentimento, uma sensao ou uma intuio que vindo do mundo exterior ao
indivduo gera ao. Por essa razo que a intersubjetividade, ao centrar-se
nos processos inter-relacionais que ocorrem no campo da fenomenologia do
social procura ultrapassar os limites do paradigma da racionalidade da
cincia positiva, onde um objeto isolado do sujeito que o observa. Ao
assumir que a observao influencia o resultado do que se v a
fenomenologia do social dsloca as relaes processuais dos indivduos no
espao e no tempo para o campo da probabilidade ao mesmo tempo que
abre um espao de autonomia, para os indivduos tomarem conscincia de
si como ao. Um espao de autonomia que se constitui como uma
liberdade. Uma liberdade que pode ser usada para a emancipao ou para a
regulao.
Regressando questo do fator de catalisador da transformao
num processo museolgico emancipador e solidrio j apresentamos a
proposta museolgica de fundar um crculo museolgico33 constitudo por
um qualquer grupo de participantes. (Leite 2011). Um crculo que tem por
base a proposta de Paulo Freire. Na nossa tese de doutoramento utilizamos
a imagem, como elemento gerador. Agora propomos as narrativas
biogrficas como elemento gerador.
Propomos partir das prprias histrias dos indivduos e da sua
partilha em grupo, reconstruir a conscincia desse mesmo grupo e dos
membros individuais desse mesmo grupo por via das aes museolgicas
como aes comunicativas.
33Veja-se nota atrs.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 29
A utilizao das narrativas biogrficas em contexto das cincias do
homem, como j acima referimos, no uma novidade. Elas tm sido
usadas em diversos contextos, quer pelas disciplinas tericas quer pelas
disciplinas prticas. No primeiro caso j falamos da sociologia, da histria,
da antropologia; no segundo caso temos a psicologia que as usa como
processo teraputico individual, ou de grupo, pela educao, sobretudo de
adultos. Poderamos igualmente falar da literatura, onde a biografia se
constitui como um gnero; na comunicao social, onde a histria narrada
pelos prprios ilustra um problema abordado; ou em inmeras aplicaes,
por exemplo nos estudos de gnero e com minorias para empoderamento
social, etc.
Tambm na museologia as histrias de vida tem vindo a ser
utilizadas, pala ilustrar objetos instalados, ou para testemunho de tempos
vividos. Temos por exemplo o caso dos museus etnogrficos, onde um
objeto exposto acompanhado por registos narrativos de artesos que o
utilizaram como objeto de trabalho ou de vivncias quotidiana (Museu da
Luz, Museu de Portimo). Nos museus do trabalho onde se recolhem
registos de antigos operrios sobre processos e vivncias. Em alguns casos
mesmo, as histrias de vida so contadas ao vivo por antigos operrios
(Museu da Chapelaria e Museu Mineiro do Louzal). Mais recentemente
visitamos o Museu do Trajo de So Brs de Alportel, no Algarve onde os
encontros sobre a memria constituem pontos de partida para discusses e
aes museolgicas. Os exemplos poderiam contemplar outros processos,
mais ou menos relacionados com a museologia, como por exemplo as
horas de conto nas livrarias e bibliotecas; ou os eventos onde se utiliza a
oralidade a msica e a dana como proposta de trabalho. So tcnicas que
implicam simultaneamente uma recolha, salvaguarda e comunicao de
tradies (veja-se por exemplo o evento do Pinhal das Artes de Leiria, que
se realiza em Junho por iniciativa do Conservatrio de Leiria). Em suma,
seja no mbito duma museologia mais tradicional ou mais social, ou mesmo
de outros processos museolgicos (materiais ou imateriais) podemos
considerar que a questo das narrativas biogrficas um elemento
constante, assumindo maior ou menor protagonismos em funo das
propostas comunicativas.
Convm esclarecer que do ponto de vista metodolgico a utilizao
das histrias de vida, das narrativas biogrficas ou das autobiografias
merc alguma reflexo. Consoante as finalidades que se pretendem atingir,
os mtodos enformam a informao recolhida. O mtodo biogrfico um
mtodo impregnado pela reflexividade que obriga a critrios de validade
cientfica e tica bastante rigorosos. A narrativa biogrfica no mais do
que uma narrativa entre tantas outras. A estrutura da prova, para casos
individuais muito frgil e subjetiva. Como j verificamos um processo
onde a relao entre o observante e o observado permanente e
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 30
constante34. Esta questo da validade do conhecimento obtido por via das
narrativas exige um especial cuidado por parte do investigador. Em primeiro
lugar deve-se ter conscincia que um testemunho biogrfico sempre
relativo a si e h expectativas do enunciante. Trata-se dum processo de
comunicao. Por essa razo vulgar distinguir metodologicamente trs
processos de recolha de informao biogrfica: As biografias, as histrias de
vida e as narrativas biogrficas
Num primeiro caso as Biografias onde os objetos biogrficos
produzido so constitudos por narrativas que so muitas vezes trabalhados
pelo prprios sujeitos. Estes objetos so executados com filtros impostos
pels vises dos narradores. Eles podem apoiar-se materialmente em
narrativas orais recolhidas por terceiros, que so reproduzidade sem uma
viso critica, ou por outro tipo de objetos biogrficos (cartas, dirios,
fotografias, filmes) que se constituem como objetos mnemnicos que
ilustram um percurso de vida e um entendimento pessoal sobre esse
percurso como vontade de memria. O lbum de recordaes, os dirios e a
autobiografia constituem exemplos deste processo, dependendo a sua
qualidade como objeto de cincia da vontade de agregao de sentido a
maior o menor afastamento em relao ao grupo seguinte.
Um segundo caso mais complexo so constitudas pelas Histrias
de Vida. So narrativas ou discursos, feitos pelo prprio ou por outrem
sobre as trajetrias de vida a partir duma interpretao dos atos. Distingue-
se portanto aqui a inteno de narrar e interpretar sentidos da simples
recoleo de objetos mnemnicos, que caracteriza o modo anterior. Este
processo distingue-se pela construo ou reconstruo de quadro de
significao das aes. Se a autobiografia se pode ou no incluir neste
34 Em investigao social distinguem geralmente dois processos de recolha de
informao: o quantitativo, com base em quantidades (universais ou por
amostragem) e o qualitativo, com base na observao de determinadas qualidades
da informao. As narrativas biogrficas inserem-se neste ltimo processo de
recolha de dados. A observao do objeto feita atravs do respetivo registo
(escrito ou gravado em som ou som& imagem). Enquanto o registo pode ser
executado no momento do evento ou posteriormente e ele, a gravao exige
simultaneidades com o acontecimento. Em qualquer das situaes de registo a
posio do observador, os sujeitos, determina a quantidade e a qualidade dos
dados recolhidos. Para alm disso, a informao processual tende por sua vez a ser
nica e exclusiva. Cada evento observado nico e no reproduzido no espao e no
tempo, ainda que entre vrios processos funcionalmente e estruturalmente
semelhantes possam ocorrer tendncias semelhantes. O que interessa aqui
salientar que o observador considerado participante se assume uma posio de
interveno no evento, ou no participante se procura afastar-se do objeto de
anlise, procurando no o influencias. Como sabemos pela experiencia, esta uma
falsa questo terica na medida em que a observao de qualquer objeto influencia
esse mesmo objeto. Qualquer observao participada, variando em grau, mesmo
quando observa posteriormente registos recolhidos por outros. Dessa forma a
questo da observao em investigao qualitativa obriga a mobilizar a tica de
investigao e a descrever as condies de investigao e seus resultados numa
perspetiva do objetivo investigador e dos seus efeitos na comunidade.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 31
grupo em funo do tempo e da forma do seu contedo da sua produo, as
biografias feitas por terceiros, com a participao ou no da vontade dos
biografados corresponde a um material informativo que se diferencia
claramente pela produo ou pela conscincia da produo de significados
sobre a vida vivida a partir dum elemento exterior ao indivduo narrado.
Finalmente, um no terceiro modo de trabalho constitudo pelas
narrativas biogrficas, que se podem distinguir das histrias de vida por
conterem, para alm dos significados sobre a vida vivida, a busca da sua
relao com o mundo. Ou seja, para alm da construo dum quadro de
significao da trajetria social do ator, ela dever ainda incluir a sua
dimenso como protagonista do tempo vivido. A distino mais uma vez
no fcil nem porventura ser til procurmos distines claras
processuais. O que nos interessa salientar que na narrativa biogrfica,
para alm da dimenso individual se inclui uma dimenso coletiva. Uma
dimenso da conscincia da participao do individuo no devir comum.
sobretudo nesta dimenso que encontramos a riqueza processual deste
mtodo, a partir do qual nos propomos constrir a base para gerar uma ao
transformadora na museologia.
Qualquer um dos processos pode-se constituir-se como uma boa
base de trabalho para iniciar processos museolgicos. O critrio de escolha
depende da natureza e da funo dos objetivos pretendidos. Os objetos
biogrficos podem, por exemplo construir uma base para espaos de
memria (Veja-se por exemplo a Casa de Chico Mendes citado por Mrio
Chagas35), ao passo que as histrias de vida se podem constituir como um
processo de consciencializao dum indivduos em relao sua
participao no devir comum, e dessa forma contribuir para a reconstruo
dos quadros de significao. O que nos parece pertinente salientar em
relao a estes trs modos de recolher e trabalhar objetos biogrficos o
potencial que eles tm para reconstruir scio-narrativas. Esta umas das
riquezas que a postura da intersubjetividade permite. Ou seja, a narrativa
no construda como um processo de afirmao duma memria
hegemnica, mas a narrativa ela prpria construda como um processo
participado, onde cada um dos membros do grupo de reconstri os seus
quadros de significao. Uma participao em que cada um ator da sua
prpria emancipao. Uma funo social que acrescenta aos espaos
museolgicos uma dimenso libertadora, solidria e produtora de inovao
social
As utilizaes das narrativas biogrficas em processos participativos
interdisciplinares com base na intersubjetividade critica, sejam eles
museolgicos ou no podem-se constituir como processos de investigao
ao aplicados na sociomuseologia. Tal como ramos do conhecimento a
35 http://www.cultura.gov.br/site/2008/05/19/casa-de-chico-mendes-agora-e-
patrimonio-historico-nacional
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 32
validao dos interlocutores assume uma funo crucial no processo de
investigao. No entanto, num processo participativo de incluso social a
palavra de todos valida. atravs da palavra e do gesto que cada
membro do grupo adquire a conscincia da sua emancipao. O limite do
conhecimento retirado duma histria ou dum conjunto de histrias de vida
condicionado pelo posicionamento dos indivduos ou indivduos na formao
social, pela sua posio social, palas suas condies de trabalho, onde
entram diversos tipos de categorizao, tais como classe, idade, gnero,
raa, condio social, posio face ao trabalho, estrutura social etc. Ao
contrrios de outros mtodos a categorizao no uma base da analise,
mas apenas uma condicionante dessa mesma anlise que fornece
indicaes sobre o posicionamento social dos indivduos no conjunto social,
ou seja a intensidade e a frequncia da sua capacidade de emisso e
receo de informao. O processo de investigao ao procurar identificar
as regularidades implcitas nos objetos observados dever refletir sobre a
sua representatividade e a significncia das amostras recolhidas, o grau de
saturao da informao ou da amostra, como elemento potencial de
emamcipao social.
A perspetiva da intersubjetividade crtica recoloca a questo da
investigao social nos processos de interao dos interlocutores, no como
meros objetos de conhecimento, mas como seres ontolgicos com liberdade
e com saberes, para criar aes libertadoras e emancipatrias. A perspetiva
da transcalar da pertena de cada indivduo a diversas e diferentes redes
sociais, ao invs de prejudicar a validade da amostra, um fator de
enriquecimento do grupo. A partilha das experiencia e dos saberes mestios
ajusta-se melhor ao trabalho multidisciplinar rizomtico que busca as
essncias do movimento transitivo.
Esta questo remete igualmente para uma alterao das funes
tradicionais do muselogo. Do tradicional conservador, especialista num
determinado domnio das artes, o muselogo transforma-se,
profissionalmente, num lder participativo. A intersubjetividade crtica exige
competncias profissionais que o definem como um ser consciente,
inteligente e sensvel. Um conjunto de competncias que exigem qualidades
anmicas (capaz de agir, de ter emoes e intuies), qualidades
intelectuais (capaz de mobilizar saberes e misturar conhecimentos) e
qualidades dinmicas (capaz de trabalhar as sensaes e os mostrar os
afetos). Estas caractersticas, de ser, de estar e de fazer traduzem a
emergncia dos novos perfiz profissionais que no cabe aqui detalhar. Tal
como um maestro numa orquestra, um muselogo dever ser capaz de
extrair entre cada membro do grupo os elementos socialmente significativos
das histrias individuais, para com todo o grupo colocar em ao uma
histria comum.
Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 33
Considerando que a museologia de diferencia mais pelos processos
que utiliza do que pelo seu objeto de estudo, a utilizao das narrativas
biogrficas, como temos vindo a defender, constituem uma importante
ferramenta de trabalho para a construo dos processos museolgicos.
Como verificamos, o que essencial nos processos e na ao museolgica
a participao dos indivduos nos processos de transformao social. Uma
participao que tem por base os seus saberes e que se constitua como
potenciadora da sua emancipao. Uma emancipao que tem por base a
liberdade e a sua pertena ao grupo como componente do seu processo de
emancipao.
Este potencial pode ser desenvolvido pela museologia participativa e
solidria por via das narrativas biogrficas. Retomando a nossa metodologia
da sociomnese, a partir da constituio do crculo museolgico, a proposta
de trabalhar as histrias de vida de cada um, pode constitui o elemento
catalisador. As histrias de vida podem ser narradas ou representadas em
atos cnicos, ou de dana, por msica, por outras artes grficas ou
expresses estticas. Recordemos que no nosso trabalho, utilizamos a
figura da construo livro, o que no fundo representa a construo da
histria de vida de cada um. Estas histrias de vida podem ser recolhidas e
com elas criar um acervo de histrias36. A histria oral contada pelo prprio
constitui apenas o primeiro desafio. Um desafio onde cada um se expe ao
grupo, narrando a sua identidade, com os meios que considere mais
expressivos
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