CLAXTON, Guy São Paulo: Siciliano
1995
RuídosRuídosRuídosRuídos
de umade umade umade uma
Câmara EscuraCâmara EscuraCâmara EscuraCâmara Escura ( citações )
Digitação: Koguen Gouveia
NEUROPSICOLOGIA & LINGUAGEM
2
A natureza supera em muito,
em complexidade,
os sentidos e o intelecto.
Francis Bacon1
1 BACON, Francis, Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza, Grupo Acrópolis: (Filosofia), 2001. p. 7.
3
INTRODUÇÃO
A ciência cartesiana chegou para iluminar uma faceta da humanidade que adormecia nos domínios da manipulação e da crendice. Na aurora do Renascentismo, o Sol ergueu expondo as engrenagens do relógio, e os problemas puderam ser resolvidos um a um, marcados numa cronologia física que se infiltrou na escala subatômica.
No entanto, na medida em que a tocha clareava a densa selva de problemas, quedaram-se dois anoiteceres violentos: primeiro, o sujeito foi posto numa linha de produção em série, fazendo-lhe uma máquina sem muita identidade – a que ele se sinta um clone numa manada de clones sendo atirados no campo de batalha por uma fábrica frenética anonimada, visando somente uma sinfonia: a clonagem em cadeia, desesperadamente, para ocupar todo o espaço que encontrar pela frente. Neste mesmo laboratório, os efeitos da fé foram quantificados, inutilizando os ‘sujeitos externos’ de adoração, que também perderam suas identidades – agora, não mais interessa em quem se acredita, mas que se acredita. Para a Ciência, até o Amor ficou sob os critérios do cálculo; ela é gélida, geladíssima, e pouco se importa se o indivíduo gosta ou não das provas e resultados. Há apenas resultados.
Ekihô Miyazaki, abade do Templo central da Soto Zen, diz “Todos nossos problemas, quer tenham relação às guerras, meio ambiente, ou direitos humanos, emergem dos seres humanos, e jazem no self, onde lá reside a chave para a transformação”.2 Assim, intuindo a Mente a estação orbital na existência do self, esse desafio me fez lembrar o ideal realista de Brás Cubas, em Memórias Póstumas, com seu almejado emplastro para sanar as múltiplas misérias que ele sentia tomar conta da humanidade.
Embora estas citações, aqui, trafeguem na avenida neuropsicológica da mente-cérebro, é muito intrigante observar que, à luz da Medicina Chinesa, o cérebro não ocupa nenhuma Entidade Visceral na teoria dos Cinco Elementos, ele simplesmente é omitido, sem perder sua relevância.3 A importância da ‘massa cinzenta’ que há em nós é diretamente proporcional à sua complexidade, mas ela nunca se torna uma ditadora. Se você deseja compreender o motivo de ter vindo ao mundo, vai precisar de se enquadrar numa visão multisistêmica.4
Estes estudos foram por mim parafraseados; tanto no livro Portais Búdicos, quanto na pesquisa Arte poética: um estudo biográfico entre poetas brasileiros do romantismo ao modernismo unindo reflexões sobre a linguagem. É recomendável ler as múltiplas alegorias na obra íntegra, contudo, confesso que, em vários momentos, os senti um puro humor, sem deixar de reconhecer a seriedade.
Namastê a todos, e bons saltos epistêmicos a você.
G.K. Junho de 2014
2 DÔGEN, Zen Master. Essays on zen master Dôgen’s instructions for the cook. Weatherhill, New York-Tokyo: 2001. p. 9. 3 GOUVEIA, Koguen. Portais Búdicos – o caminho na natureza da mente. São Paulo: Livro Pronto, 2010. p. 53. 4 A ideia da mente como fenômeno distribuído é explorada mais a fundo pelos neurocientistas Francisco Varela, Ewan Thompson e Eleanor Rosch (The Embodied Mind. Cambridge, MA: MIT Press, 1991). De modo ainda mais radical, a palavra “mente” foi estendida além dos sistemas corpóreos por Gregory Bateson em Mind and Nature. Londres: Wildwood House, 1979.
4
CLAXTON, Guy, Ruídos de uma câmara escura, Siciliano: SP, 1995.
PARTE I
EV OLUÇÃ O DA MENTEEV OLUÇÃ O DA MENTEEV OLUÇÃ O DA MENTEEV OLUÇÃ O DA MENTE
1 Ciência e MistérioCiência e MistérioCiência e MistérioCiência e Mistério
A mente é estreita demais para se conter. No entanto, onde pode estar aquela parte que ela não contém? Estará do lado de fora, e não em si mesma? Como é possível, então, que a mente não consiga se compreender? Ergue-se em mim um grande maravilhamento; o espanto me toma. Os homens se encantam diante da altura das montanhas e das imensas ondas do mar, do amplo curso dos rios, da vastidão do oceano, da órbita das estrelas, mas negligenciam o seu encanto diante de si mesmos. (p. 15)
Santo Agostinho
Mente, subs. Uma forma misteriosa de matéria segregada pelo cérebro. Sua principal atividade consiste em procurar aquilatar sua própria natureza, tentativa cuja futilidade se deve ao fato de que nada possui para conhecer senão a si mesma. (p. 15)
Ambrose Bierce
Pooh se levantou e começou a procurar por si mesmo. (p. 15)
A.A. Milne
O Milagre da Concentração
Isoladamente, o conhecimento científico não corrige os erros subjacentes de
nossa visão interior, assim como a leitura de um livro de ótica não melhora sua
capacidade de enxergar. Mas pode nos ajudar a compreender e aceitar o
diagnóstico, aumentando nossa disposição para buscar uma cura mais poderosa.
Para isso, precisamos mais do que a compreensão racional do problema.
Precisamos de métodos para limpar as ‘portas da percepção’, e para isso teremos
de recorrer novamente aos conselhos dos místicos. (p. 24)
5
2 Criando o Corpo: As Origens da VidaCriando o Corpo: As Origens da VidaCriando o Corpo: As Origens da VidaCriando o Corpo: As Origens da Vida
Evolução é a passagem de um estado inexplicável, inenarrável e amorfo para um estado plausível e, de modo geral, explicável, com certas diferenciações, através de contínuas gerações e outras coisinhas mais. (p. 27)
William James
Nós Não Computamos
O ponto onde a humanidade se encontra (e se perde) deve-se à mente, e a
mente se deve à evolução. [...] A mente é apenas o software do complexo
biocomputador a que damos o nome de cérebro. E o cérebro é o sistema
organizador central, a sala de comunicação, de comunidades corporais high-tech
que têm inúmeras metas e necessidades, e que vivem em ambientes que lhes
oferecem possibilidades praticamente ilimitadas. [...] (p. 27)
Não resisti à tentação, logo de início, de empregar a mais usada das
metáforas para a mente-cérebro – o computador. E apesar de ser uma
‘computação’, no sentido mais amplo, o que a mente-cérebro faz, a analogia pode
ser tremendamente enganadora. [...] Os computadores podem ficar desligados por
vários anos e (se tudo correr bem) entrar outra vez em ação, como se não tivesse
transcorrido tempo algum, no instante em que são ligados novamente. (p. 28)
6
3 O Cérebro PlásticoO Cérebro PlásticoO Cérebro PlásticoO Cérebro Plástico
Todo ser humano civilizado, qualquer que seja seu desenvolvimento consciente, é ainda um homem arcaico nos níveis mais profundos de sua psique. Assim como o corpo nos liga aos mamíferos e mostra numerosas relíquias de estágios evolutivos anteriores que recuam à era dos répteis, a psique também mostra incontáveis características arcaicas. (p. 37)
C.G. Jung
‘Organismo’... significa um sistema de processos autorreguláveis que tendema semanter, ou seja, a mante a vida do indivíduo ou da espécie. Mas os processos do organismo por si sós não mantém a vida; sem a influência contínua do ambiente, os processos orgânicos internos não podem sustentar a vida por tempo superior a um momento, tendendo a transferir a matéria orgânica para estados mais estáveis.
Lancelor Law Whyte5
Corpos como Sistemas
Uma das características mais notáveis e difusas do corpo geneticamente
projetado, em todo o reino animal, é a insistência em manter sua forma apesar das
contínuas interações com um mundo em mutação. Essa propriedade foi investigada
recentemente pelos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, que
se referem a ela como autopoiesis ou ‘auto-organização’, embora tivesse sido
observada já em 1937 por Sir Charles Sherrington em suas palestras:
A vida, como sistema de energia, está tão embutida no tecido da superfície da Terra que supor, mesmo brevemente, uma vida isolada do resto do mundo terrestre, produz uma imagem distorcida demais para se parecer com a vida. Tudo se ajusta simultaneamente.6 (p. 38)
Os animais não existem porque são, existem porque acontecem. Um animal
não é como uma xícara de café, que um dia foi fabricada e agora pode estar cheia
ou vazia, quente ou fria, sobre a mesa ou pendurada em um gancho, mas que é
basicamente a mesma ‘coisa’, constituída do mesmo material e continuará a sê-lo
até se quebrar. Un animal é como um redemoinho; deriva a sua relativa estabilidade
e até sua forma, de seu movimento, e só é mantido em movimento graças às suas
interações com o sistema maior do qual faz parte. [...] (p. 38)
5 WHYTE, Lancelor Law, The next development in man, Cresset Press: Chicago, 1944, p. 16.
7
4 O Organizador AutoO Organizador AutoO Organizador AutoO Organizador Auto---- OrganizadoOrganizadoOrganizadoOrganizado
O princípio básico do teórico é que não existem homúnculos. Não existe uma pessoazinha no cérebro que ‘vê’ uma tela de televisão interna, ‘ouve’ uma voz interior, ‘lê’ mapas topográficos, pondera raciocínios, decide ações e assim por diante. Há apenas neurônios e conexões Quando uma pessoa ‘vê’, é porque os neurônios, individualmente cegos e estúpidos, estão orquestrados coletivamente de maneira apropriada... Em um clima tranquilo, ainda compreendemos a percepção, o pensamento, o controle e assim por diante, no modelo de um eu – um eu esperto – que percebe, pensa e controla. É preciso esforço para nos lembrarmos de que a esperteza do cérebro não é explicada pela esperteza de um eu, mas pelo funcionamento da máquina de neurônios que é o cérebro... Em nosso próprio caso, naturalmente, pode ser chocante constatar que nossa sagacidade resulta de uma estupidez bem orquestrada. (p. 49)
Patricia Churchland7
Como o homem é, acima de tudo, construtor de futuros, ele é, acima de tudo,
um enxame de esperanças e medos. (p. 49) J. Ortega Gasset
A Linguagem Mente-Cérebro
Se falarmos sobre o funcioamento da mente na linguagem do senso comum,
podemos analisar o tipo de coisa humana e importante que queremos analisar –
esperanças, medos, aspirações, experiência. Mas, ao fazê-lo, temos de aceitar os
conceitos da linguagem cotidiana sem questionar. Se houver algo de errado com as
pressuposições a respeito da mente que estão embutidas nessas categorias e
idiomas, nenhuma conversa vernácula o revelará. Nossa familiar ‘linguagem da
mente’ é muito suspeita; se confiarmos nela, talvez evoquemos inadvertidamente as
questões mais cruciais.
Por outro lado, a ‘linguagem do cérebro’, o vocabulário dos cientistas sobre
neurônios e sinapses, enzimas e axônios, também não serve para a tarefa. Pode até
ser mais ‘lógica’, em alguns pontos, mas é filigranada demais, profunda demais para
que possamos discutir os tópicos que queremos. Os seres humanos são sistemas, e
uma das coisas que isso implica é terem propriedades em níveis ‘superiores’ de
6 A maneira como os sistemas interagem mutuamente foi observada em 1937 pelo médico Charles Sherrington em suas palestras intituladas Sobre a Natureza Humana. Sir Charles Sherrington. Man on His Nature. Cambridge: Cambridge University Press, 1963. 7 CHURCHLAND, Patricia, Neurophilosophy, MIT Press, Cambridge: MA, 1986, pp. 406-407.
8
organização não previsíveis ou explicáveis em termos das propriedades dos níveis
‘inferiores’. Em cada nível de discurso precisamos de uma nova linguagem para falar
de ‘totalidades’, uma linguagem fundamentada na linguagem das ‘partes’, mas apta
a dizer coisas que a linguagem das ‘partes’ não é capaz de dizer.
Por falar nisso, esse é o motivo pelo qual a atual moda de tentar falar a
respeito, ou pior, de ‘explicar’ a consciência em termos da linguagem e dos
fenômenos da física quântica – ou de qualquer tipo de física – raiam o ridículo.
Embora aleguem basear-se no pensamento do ‘novo paradigma’, são, na verdade,
reduções ad absurdum. [...] (p. 50)
9
5 Mosaico MentalMosaico MentalMosaico MentalMosaico Mental
Sou grande; há uma multidão em meu interior. (p. 63) Walt Whitman
Eficiência Não Significa Necessariamente Arrumação
A forma da organização interna que a mente-cérebro desenvolve não precisa
parecer muito lógica quando vista de fora. Um dos erros cometidos pelos
pesquisadores do cérebro é presumir que este é projetado de forma elegante e
econômica. Mas a evolução, com já vimos diversas vezes, não atua dessa maneira,
nem pode. A seleção natural precisa se basear no que já existe, deve lidar com o
tipo de mutação que ocorreu, e só pode levar em conta as condições locais
específicas que casualmente consiga. Ela nunca pode dizer: “Espere aí; este
cérebro está ficando em desordem. Vamos voltar à prancheta e começar de novo”.
(p. 64)
10
6 As Pressões da SociedadeAs Pressões da SociedadeAs Pressões da SociedadeAs Pressões da Sociedade
Os indivíduos penetram em (sua) comunidade... mediante a eterna vigilância psicológica. Podem passar algum tempo sem aparentemente fazer nada, entretidos em comentários indolentes. Mas esse tempo desprendido em contatos sociais é tão crucial para sua sobrevivência quanto o tempo aplicado na caça ou nas reuniões na clareira. Pois é em torno da fogueira ou tomando sol que a espinha dorsal... da sociedade é lançada, e, se necessário, reparada: amizades são estabelecidas, problemas resolvidos, planos traçados, casos amorosos comentados. (p. 70)
Nicholas Humphrey8
Não é exagero dizer que um chimpanzé mantido na solidão não é um
chimpanzé de verdade. (p. 70) Wolfgang Kohler
O Duvidoso Valor da Comunidade
Antes de embarcarmos na história de como a mente-cérebro resolveu o
problema do excesso de cenários, temos de dizer algo a respeito da origem da vida
social – e do desenvolvimento do ‘caráter’ individual.
Viver em grupo é uma estratégia de sobrevivência que os corpos podem
adotar, da mesma maneira como a vida em grupo dentro dos corpos é, como vimos,
uma estratégia de sobrevivência que as células podem adotar (e viver juntos em
células é uma estratégia de sobrevivência que criaturinhas ainda mais primitivas
podem adotar). A adoção da comunidade não é, em qualquer desses níveis, a única
maneira de viver. Animais multicelulares solitários são numerosos no mundo
moderno, assim como organismos e bactérias unicelulares de diversos tipos. Mas os
genes humanos optaram pela vida em corporação, e por isso vou focalizar
especificamente esse caminho.
A vantagem básica da comunidade é, naturalmente, a segurança que o
número traz. Um grupo cooperativo de animais pode defender seus jovens,
coletivamente, contra o interesse indesejável de um predador, com maior sucesso
do que a mãe solitária. Um bando de leões pode caçar em conjunto de modo mais
sutil e confiável do que qualquer um deles isoladamente. E se a caçada produziu
alimento suficiente para todo o grupo, a estatégia compensou. Além disso, a vida em
11
manada – de antílopes, digamos – aument a probabilidade de que sejam os mais
velhos ou os mais fracos os membros da família estendida efetivamente capturados
por predadores. Com a fuga caótica da manada, com as voltas que esta faz para
escapar dos leões, com os esforços das mães para ocultar e rodear com a manada
a sua prole, os mais lerdos ou mais confusos, e não necessariamente os mais
jovens, serão mais expostos e se sujeitarão mais abertamente às atenções dos
leões. Assim, embora a criação de um bando talvez não o salve das perdas
esporádicas, atua como outro mecanismo para fortalecimento da estrutura genética,
aumentando as chances de sobrevivência dos mais aptos.
Mas a colaboração tem seu preço e apresenta seus problemas. Quando a
caçada é boa, todos ficam contentes; mas quando o alimento é escasso, quem quer
ficar na mão? A dificuldade deve ser distribuída por igual, ou deve-se respeitar
algum tipo de fila indiana? Quando ‘nós’ somos ameaçados, como é que ficam as
lealdades fundamentais de qualquer indivíduo? Quando essas escolhas precisam
ser feitas, aumentam as demandas sobre o grupo para que este desenvolva algum
tipo de organização social, até de hierarquia. E isso, por sua vez, requer o
desenvolvimento de formas mais complexas de inteligência de comunicação social.
Em essência, a vida comunitária impõe continuamente um dilema: que grau
de egoísmo e de altruísmo devemos ter. Quando vivemos em sociedade, auferimos
benefícios com o individualismo e o espírito empreendedor, mas também temos
custos em termos de coesão social, confiança coletiva e boa vontade em geral.
Quando uma sociedade começa a ser dominada por alguns bandidos
flagrantemente bem-sucedidos, estimula-se uma onda de imitação que está fadada
ao fracasso, pois mais e mais pessoas tentam ser mais espertas que as outras; além
disso, mais cedo ou mais tarde, ela enfraquece a própria razão para se viver em
sociedade. A anarquia representa um apelo útil em culturas passivas e oprimidas,
mas um plano de ação inútil para qualquer espécie que seja indelével e
geneticamente sociável. (O consumismo individualista da década de 80 e o breve
banquete financeiro a que sua filosofia, “A cobiça é salutar” deu origem, são,
naturalmente, o exemplo mais recente disso). (p. 72)
De maneira complementar, o altruísmo é uma estratégia válida,
especialmente se dirigida a parentes cujos genes são bastante similares aos nossos,
8 HUMPHREY, Nicholas, The inner eye, Faber and Faber, Londres, 1986.
12
ou a aqueles que podem proteger você e promover seu status ou interesses. Mas
dar tudo o que se possui, ou direcionar sempre aos transeuntes seu precioso
estoque de alimentos para o inverno, pode ser claramente desvantajoso, caso seu
altruísmo não seja, em algum nível, correspondido. Também é possível que certa
sociedade como um todo se torne crédula ou ingênua demais e perca a
competitividade quando precisar lidar com um membro agressivo da tribo ou um
estrangeiro. De modo trágico, sociedades do ‘Terceiro Mundo’ com Ladakh, ao norte
da Índia, por exemplo, mostraram-se presas fáceis de vendedores reluzentes de
‘desenvolvimento’, e abandonaram alegremente mil anos de sabedoria ecológica e
social pela promessa de um par de jeans e a realidade da pobreza urbana.9 (p. 73)
Um interesse pessoal moderado seria o meio-termo ideal, mas a definição
prática de ‘moderado’ depende de quem são seus vizinhos e de uma série de
considerações mutáveis. Para muitas espécies, o parentesco acaba sendo o meio
pelo qual se manifesta essa ‘moderação’, e o neopotismo impenitente campeia. Um
grupo com genes em comum vai partilhar seus recursos, trabalho e defesa mais
frequentemente em seu próprio meio do que com outros membros da sociedade –
com a possível exceção da categoria muito importante dos ‘parceiros potenciais’. Se
a preferência do clã por seus próprios membros se estender também aos parceiros
sexuais de cada membro, a rede genética estará em perigo, e por isso essa área
merece ser estudada fora do círculo familiar mais íntimo. Nas sociedades humanas,
naturalmente, o próprio clã ou seus ‘anciões’ costumam se reservar o direito de
definir quem são os ‘parceiros potenciais’, não deixando a escolha ao capricho
individual. (p. 73)
O Primata Maquiavélico
[...] Antes mesmo do surgimento da linguagem verbal, a questão de perceber as
intenções das outras pessoas – e de irradiar ou ocultar as suas próprias – por meio
de variações sutis de postura, comportamento e direção do olhar já se encontrava
bastante desenvolvida. Com efeito, muitos desses sinais, e suas reações, foram
9 NORBERG-HODGE, H., Ancient futures: learning from Ladakh, Element Books, Shaftesbury, 1991.
13
desenvolvidos ao longo do tempo, e por isso encorporados ao código genético.10
Mas a genética não pode prepará-lo para todas as idiossincrasias dos outros
membros de sua colônia primata. Para isso, é necessário aprendizado, e, de
preferência, não apenas observações e encontros informais, mas sessões
prolongadas e íntimas, do tipo ‘vou conhecê-lo melhor’. Que melhor meio para esses
‘conversas’ prolongadas do que ‘penteados’ mútuos? Os chimpanzés e os babuínos,
que vivem em grupos de 50, passam 20 por cento do dia entretidos nessa atividade,
estabelecendo não só a ‘boa vontade’ recíproca, como também, inevitavelmente,
graças ao longo e íntimo período de tempo em que ficam juntos, formando uma
miniteoria bastante detalhada das preferências e disposições do outro. Em grupos
desse porte, e com um estilo de vida primata, esse tempo pode ser dedicado a
fomentar relacionamento sem perturbar as outras atividades necessárias. (p. 76)
Entretanto, à medida que os grupos sociais aumentam e a sociedade fica
mais complexa, o tempo que pode ser dedicado ao penteado torna-se um luxo
impossível de ser mantido. Robin Dunbar, da Universidade de Londres, sugeriu, com
base em sociedades contemporâneas baseadas na caça e em horticultura simples,
bem como em evidências arqueológicas, que as primeiras sociedades humanas se
reuniam em grupos de 120 a 150 pessoas: bem maiores do que os grupos
primatas.11 Dedicar o mesmo tempo ao penteado do outro, em um grupo maior,
exigiria quase 40 por cento da atividade diária, não 20, uma proporção que
comprometeria a obtenção de alimentos e todas as outras tarefas necessárias à
manutenção da comunidade. O penteado se torna ineficiente como adesivo social,
pois é necessariamente uma atividade entre apenas dois animais (ou
ocasionalmente três ou quatro) de cada vez, e você não pode fazer realizar muitas
outras coisas ao mesmo tempo. Há mais: um aumento da ordem de três vezes no
10 O etólogo John Krebs, de Oxford, descreve a evolução de sistemas de sinalização bastante complexos entre os pássaros, por exemplo, alguns aparentemente estranhos caso não o estudemos dentro de seu contexto evolutivo. Veja KREBS, John, The evolution of animal signs, Blakemore e Greenfield, p. 163. 11 Dunbar afirma que o mundo moderno ainda apresenta evidências de que uma comunidade humana funcional deve ser composta, idealizadamente, por 150 indivíduos. A menor unidade independente da maioria dos exércitos modernos é a companhia, normalmente com 130-150 homens. As ‘empresas’ geralmente se reestruturam em hierarquias mais formais quando excedem a marca de 150 funcionários. Os huteristas, fundamentalistas religiosos dos EUA, consideram 150 como o maior número efetivo de membros de suas comunidades agrícolas; segundo eles, se um grupo ultrapassa esse número, não consegue manter a comunidade harmoniosa (e livre de crimes) em virtude da própria pressão individual, e precisa introduzir algum tipo de legislação e de código penal. Esta sessão segue bem de perto (embora não completamente) o argumento do artigo de Dunbar, Why gossyp is good for you, New Scientist, 21 de novembro de 1992, pp. 28-31.
14
tamanho do grupo aumenta a quantidade de aprendizado social que se deve ter. (p.
77)
Tempos Modernos
Se as especulações de Dunbar estiverem próximas do alvo, isso significa que
nossos genes ainda estão nos equipando para levar a vida em comunidade de 150
pessoas. Contudo, a nossa sociedade industrializada, urbanizada e televisiva,
raramente agimos em grupos desse porte. Por um lado, o nosso núcleo familiar (com
todas as suas variações atuais), somando às amizades ativas do indivíduo, pode
somar umas 12 pessoas, ou menos. Sob esse ponto de vista, depois de
desenvolvermos nossos relacionamentos íntimos e nos observarmos mutuamente o
máximo que podemos, restam-nos a inclinação insatisfeita para o mexerico e a
capacidade não utilizada de fofocar. O que fazemos? Lemos os jornais e nos
viciamos em novelas da TV. Oferecem-nos ‘vizinhos’ instantâneos para conhecer a
respeito dos quais temos sentimentos e opiniões. Muito embora seja pouco provável
que conheçamos a princesa Diana ou Michael Jackson, colocamos seus nomes em
nossa lista de ‘conhecidos virtuais’ e nos preparamos rigorosamente para encontros
que nunca vão acontecer. A capacidade de reserva do cérebro social aceita de bom
grado as próximas revelações apimentadas a respeito de ‘como o príncipe Charles é
na realidade’. (pp. 78-79)
Por outro lado, as instituições sociais a que pertencemos – as escolas e
empresas onde estudamos ou trabalhamos – costumam ter mais de mil pessoas. E
a mídia nos apresenta diariamente a dezenas de novas outras. O adolescente
moderno se vê diante de um redemoinho de rostos – colegas de classe, professores,
heróis ‘de verdade’ e personagens ‘fictícios’ cujo status (real ou não), mas se
distingue – e quase sempre foge para um mundo restrito de ‘esperteza’,
‘malandragem’ ou devoção fanática a alguma equipe esportiva ou astro de rock. (p.
79)
Enquanto os grupos menores nos deixam com certa reserva de capacidade,
os grupos maiores são mais difíceis de manejar; o cérebro, por maior que seja, não
nos permitem formar relacionamentos com cada balconista de loja ou motorista de
15
táxi que encontrarmos pela frente. [...] A aldeia global ficou grande demais, enquanto
a comunidade local é pequena demais; assim, entupimo-nos de celebridades. (p. 79)
Vivemos efetivamente a época da ‘mente fragmentada’, e os problemas que
uma cultura assim apresenta para a mente-cérebro são formidáveis. [...] (p. 79)
Antes disso, porém, faremos uma pausa para uma conclusão vital. A
humanidade é indelevelmente social. Assim como está registrado em nossos nervos
que somos sistemas biológicos, maiores do que a soma de nossas partes internas e
inextricavelmente entrelaçados, momento a momento, com sistemas maiores,
também está escrito em nossos corações que somos destinados a participar. A
sociabilidade da humanidade não requer maiores explicações. Está inscrita
geneticamente em nossa matéria-prima. Portanto, não é o fato de a humanidade se
congregar que deve nos intrigar, mas as ocasionais exceções herméticas. O
navegador solitário que dá a volta ao mundo e o monge que passa cinco anos
confnado à sua cela devem-nos alguma explicações. Pois quase todos nós, quase
sempre, desejamos participar. (pp. 79-80)
16
7 Entendendo a Linguagem do CérebroEntendendo a Linguagem do CérebroEntendendo a Linguagem do CérebroEntendendo a Linguagem do Cérebro
Falamos não apenas para dizer aos outros o que pensamos, mas para dizer-nos o que pensamos. (p. 81)
J. Hughlings Jackson
O momento mais significativo no curso do desenvolvimento intelectual, que dá à luz as formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, ocorre quando a fala e a atividade prática, duas linhas de desenvolvimento que antes eram completamente independentes, convergem. (p. 81)
L.S. Vygotsky
Produzindo Conceitos com a Matéria-Prima da Experiência
Como esperávamos, a evolução traz uma solução para um problema – neste
caso, o auxílio prestado pela linguagem no estabelecimento da coesão social – que
depois, segundo se percebe, demonstra benefícios (e custos) imprevistos. A
linguagem, inicialmente projetada puramente como ferramenta social, revela-se
como a chave para a solução do problema – cada vez mais urgente – de
comunicação interna que o cérebro criou para si mesmo ao optar por uma
organização baseada em subdivisões. A divisão do conhecimento em pacotes
separados foi uma solução para um problema anterior, o acesso a uma base de
conhecimentos cada vez mais ampla. Contudo, o crescimento exagerado do número
de ‘módulos’ separados de inteligência, a solução começou a criar um problema
sério de manutenção interna. Desenvolver a linguagem para repartir o conhecimento
é a chave para esse problema. A evolução é formada de incidentes e conincidências
desse tipo.
De início, como acabamos de ver, uma palavra em comum conseguiu pôr em
contato duas miniteorias anteriormente separadas, e desse contato inicial, qual um
clube de ‘corações solitários’, desenvolveu-se um relacionamento bem-sucedido e
mutuamente benéfico. Mas essa ainda é uma ‘agência de matrimônio’ do tipo
tentativa-e-erro, apresentando indivíduos uns aos outros caso tenham assinalado os
mesmo interesses ou ‘características desejáveis’ no formulário de inscrição. Às
vezes forma-se um casal feliz, mas a sociedade como um todo não é afetada
17
radicalmente. Contudo, como vemos, a linguagem acabou tendo um potencial muito
mais amplo de integração dos conhecimentos do mosaico mental. (p. 86)
À medida que um animal cresce, os scripts, os cenários que costuma
encontrar e com os quais sabe lidar tornam-se cada vez mais complexos e sutis. As
miniteorias ficam repletas de opiniões e possibilidades, truques e manobras, para
que possa lidar com as realidades mutáveis da situação. A rotina ‘tome leite na
mamãe’ já consegue compreender seus estados de humor – se os outros irmãos a
estão incomodando, seu aparente interesse em um macho que passa por perto, o
horário, e assim por diante. E quando os scripts ficam (usando o termo explícito de
Vygotsky) ‘saturados de experiência’, começam a se cristalizar em diversos sub-
roteiros: elementos e interações que vão reaparecendo de tempos em tempos.
Aquilo que aprendi a respeito de ‘Mamãe’ é portátil; reaparece na rotina de
alimentação, na rotina de brincadeiras e na rotina de higiene. Com a ajuda da
agência de matrimônio da linguagem, os ‘conceitos’ transituacionais – pois é isso
que são agora – tornam-se cristalizados. Quando dois domínios diferentes são
ativados em conjunto, os subgrupos que repartem recebem uma ‘dose dupla’ de
ativação e isto faz com que possam, segundo as regras intrínsecas da comunidade
dos neurônios, formar uma ganguezinha especialmente compacta, não muito
apegada a qualquer das duas fontes originais. (pp. 86-87)
A principal forma de organização da mente-cérebro é capaz, agora, de dar
uma reviravolta radical. Anteriormente, a topografia tinha sido definida pelas
diferentes situações vivenciadas por um animal. As coisas eram associadas porque
tinham a tendência de acontecer juntas, tanto no tempo como no espaço, na vida
cotidiana. Contudo, com a descoberta de configurações estáveis de experiência que
podiam aparecer em diversos cenários, o cérebro pôde começar a cristalizar e a
organizar seus padrões em base conceitual. Cada ‘conceito’ forma um pequeno
redemoinho de experiência menos ‘incrustado’ no contexto da história pessoal.
Assim, pode se associar, por meio da linguagem, com os ‘tipos’ de conceitos
correlatos, não apenas com seus ‘parentes’ – a família da qual cresceu. ‘Gravetos
para se brincar’ e ‘gravetos para pegar cupins’ podem agora ser agrupados sob o
conceito geral de ‘gravetos’, e esses conceitos podem servir de centros através dos
quais vários cenários diferentes podem se ligar. O conhecimento de cada roteiro
pode ser muito mais distribuído, e o poder que a mente-cérebro tem de resolver
18
problemas, de se valer das essências de sua experiência de maneira flexível, de
idealizar novos remédios para males inéditos, expande-se novamente. (p.87)
Assim, sobre a paisagem das miniteorias, dos ‘registros de experiência
pessoal’, um novo plano, organizado conceitualmente, começa a ser construído. E
cada um desses conceitos poderia receber um nome. Assim como os conceitos se
cristalizam a partir de roteiros de vida, as palavras começam a emergir com um
status especial. Não eram apenas um componente do conceito; podiam ser usadas
para indicar o conceito como um todo. O bramido de um búfalo, ou o odor de seu
estrume, podem alertá-lo de sua presença próxima. Todo o conjunto Búfalo pode ser
ativado – posto em sinal de alerta para que seus sentidos captem novas pistas de
búfalos e seus músculos se preparem para acionar as rotinas de assustar-búfalo.
Mas com uma palavra, posso mandar seu cérebro ativar o conjunto-búfalo antes que
você receba alguma informação pessoalmente – e com isso, possivelmente, salvar
sua vida. (pp. 87-88)
Com as palavras, a ‘enciclopédia’ de conceitos pode ser organizada em
categorias, indexada sistematicamente e acessada na ausência das coisas de que
tratam, Cada palavra é uma bandeira firmemente plantada no centro do conceito, o
que lhe permite encontrá-la mais rapidamente e com maior flexibilidade. E as
palavras-bandeira podem ser combinadas, formando conjuntos mais complexos,
para que novas conjunções de ideias, nunca dantes experimentadas por você (nem
por qualquer outra pessoa), possam ser conjuradas – como, por exemplo, uma
libélula dentro de um caminhão-tanque. A linguagem surge para formar, nas
palavras de Pavlov, um “segundo sistema de sinalização” incrivelmente poderoso,
superpondo-se e unindo os programas propositais do mundo experimental. (p. 88)
Assim, a evolução do sistema mente-cérebro pode ser vista em termos da
construção de três camadas. Embaixo, formando a base sobre a qual todas as
atividades do cérebro são construídas, fica a vasta e complexa rede de filamentos
que, lentamente, vão sendo soldados pela experiência, constituindo grupos
funcionais. Quando esta paisagem fica intricada e diversificada, começa a emergir a
segunda camada – a extração de ações, objetos ou ‘sub-roteiros’, que tendem a se
repetir em diversos domínios. Os conceitos são extraídos ou ‘desentranhados’ de
seus contextos específicos, e são tecidos em um tipo diferente de tapeçaria,
organizada com referência a seus relacionamentos conceituais, funcionais ou
19
semânticos, e não segundo a maneira como as coisas ocorrem juntas na
experiência. (p. 88)
O terceiro nível é o da própria linguagem: a superestrutura de termos cada
vez mais abstratos que começam a extrair seu sentido das conexões que fazem com
outras palavras, e não das ligações que formam com o substrato da experiência
pessoal. Neste terceiro domínio, a sintaxe pode me permitir tecer redes de palavras
tão satisfatórias quanto as redes das aranhas, mas que podem ou não estar
conectadas a padrões no plano do propósito e da experiência pessoais. Por mais
belas que sejam, têm pouco valor prático em termos de sobrevivência. Como
sabemos, o psicólogo mais erudito não é, de modo algum, o mais feliz ou o mais
hábil praticante da arte de viver. (pp. 88-89)
Os três planos não são separados, é claro. Estão multiplamente – mas não
completamente – interconectados. Se me esforçar, posso construir uma forma de
palavras – um poema, por exemplo – que possa evocar em você uma cópia razoável
de minha experiência. Entretanto, a tentativa de falar sobre ‘a condição humana’
costuma enveredar por intermináveis sequências de palavras que nos levam pela
paisagem verbal sem jamais conseguir penetrar verticalmente e atingir as ‘minas’ do
significado pessoal. De modo análogo, parte de meu conhecimento experimental
aflorou até os mundos dos conceitos e das palavras; de vez em quando, posso ter
um insight, um padrão – que não foi identificado ou manifestado anteriormente – que
borbulha espontaneamente na linguagem. Mas boa parte, arriscaria até a dizer a
imensa maioria, daquilo que aprendi sobre pessoas, gravidade, água, justiça,
culinária e comportamento dos gatos fica bem abaixo da superfície, funcional e
absolutamente inacessível às palavras ou mesmo aos pensamentos. (p. 89)
Decolagem da Linguagem
Os primatas, como vimos, conseguem usar a linguagem não verbal para
enganar e desorientar, assim como para informar. Com a expansão do processo de
desentranhar os conceitos de seus contextos sociais, e com a criação de redes de
palavras para expressá-los, cresce também a capacidade de representar de forma
enganosa, proposital ou inadvertidamente. Como as palavras que representam as
coisas se entrelaçam, fica possível evocar, ou falar sobre, conjunções de conceitos
20
que nunca ocorrem juntos, e que provavelmente nunca ocorreriam. ‘O cão persegue
o gato’ é, provavelmente, uma expressão da experiência; seus componentes, e a
relação em que se situam, estão de acordo com o modo como as coisas se acham.
‘Um gato bêbado persegue um professor de árabe’ – eis algo que não encontramos
na experiência direta, mas na literatura, na ficção. Não encontra respaldo em
ranhuras familiares do cérebro, mas flutua um pouco mais livremente, capaz até de
ser visualizado, mas não de ser ligado diretamente à história pessoal ou evolutiva.
‘Um gato ambicioso, mas distraído, atropelou o presidente com seu Buick’... fica
cada vez mais difícil extrair conceitos daqui e dali, desemaranhando-os a fim de
extrair alguma coisa com sentido: é o mundo da fantasia, do faz-de-conta. ‘Meu gato
acaba de comer o seu canário’: isso, embora você ainda não saiba, é uma mentira
deslavada, um desfecho, uma retaliação parcial por toda a dor que sua insensatez
me causou. (pp. 91-92)
E que tal, ‘Meu karma acaba de atropelar o seu dogma?’12 Bem, é uma piada,
é claro; mas será que tem, ou poderia ter, algum significado? Aqui, a linguagem
parece adquirir vida própria, e o jogo de tentar descobrir se estamos querendo dizer
alguma coisa ou que estamos tentando dizer, e como podemos dizer se um
significado é mais ‘verídico’ ou mais ‘interessante’ do que os outros – pode nos
manter na mídia, e no avião para a próxima conferência, por um tempo
deliciosamente longo. O fino tecido linguístico que flutua sobre o plano da
experiência pode formar castelos semânticos no ar, apoiados apenas por pilares
bastante espaçados que os ligam à superfície da experiência. Se você precisar
conhecer o significado de uma palavra, pode descobrir que não há experiência
associada a ela para auxiliá-lo. Só vai conseguir encontrar a que outras palavras ela
está associada: procurando em um dicionário. (p. 92)
O Problema com as Palavras
A trama linguística faz com que os segredos de algumas da miniteorias
passem a pertencer ao conhecimento público. Naturalmente, porém, só os módulos
ligados ao processador telefônico da linguística é que podem pedir e oferecer ajuda.
Você precisa ser um assinante para receber o benefício. E muitos de nossos
12 Em inglês, My karma just ran over your dogma, faz um trocadilho com My car just ran over your dog. (N. do T.)
21
subsistemas cerebrais, intelectuais e físicos não o são. Mesmo aqueles que foram
aprendidos deliberadamente – jogos recreativos como o tênis ou o xadrez, por
exemplo – não são expressados plenamente. Perguntaram a Bobby Fischer,
campeão mundial de xadrez, quantas alternativas ele explorava mentalmente antes
de fazer uam jogada. Ele respondeu: “Uma – a correta”. E além de dar
conhecimentos incompletos, a linguagem aumenta nossa capacidade de apresentar
informações não confirmadas ou mesmo inverídicas. O plano verbal consegue se
manifestar em sua própria voz, sem a garantia ou o mandato do retalhado terreno da
experiência que se situa sob ele. A linguagem aumenta incrivelmente nossa
capacidade de nos enganarmos e de sermos enganados. (pp. 92-93)
No entanto, a linguagem em si não é neutra. Não é preciso uma mente
maquiavélica para usá-la incorretamente. Por sua própria natureza, a linguagem
altera o modo como o sistema mente-cérebro se comporta, produzindo modos que
nem sempre são os melhores. Para citar um exemplo, a linguagem exacerbada a
tendência intríseca da mente-cérebro para os estereótipos. Lembre-se de que faz
parte da natureza da mente-cérebro detectar regularidades e registrar aquilo que é
‘quase’ como se fosse apenas uma variação sobre o mesmo tema. Quando uma
palavra é associada a um conceito, a categoria fica mais nítida; fica cada vez mais
difícil registrar com precisão experiências que não se ‘encaixam’em categorias
existentes em função de sua unicidade. Prestamos atenção em algo novo até o
ponto onde há evidências suficientes para que seu nome se ilumine, e então a
atividade da mente-cérebro vai em frente, levando consigo apenas a palavra. O
paciente só é observado enquanto o primeiro diagnóstico não chega às mãos do
médico; então, o paciente deixa de ter interesse, até mesmo como pessoa,
passando a ser apenas mais uma doença. (p. 93)
Com se vê, existe a tendência, com a rede verbal se afastando cada vez mais
de suas raízes perceptivas, para que a atividade cognitiva ocorra mais e mais
naquele nível, e menos e menos em termos de observação e experimentação
pessoais. Feito o diagnóstico, toda a atividade interessante tem lugar na biblioteca
do hospital ou ao café na sala dos médicos. Tratamentos e complicações são
discutidos na ausência do paciente, com uma visita rápida ao seu quarto apenas
para tirar alguma dúvida. Em outras palavras, a observação em primeira mão não só
é reduzida com passa a ser impelida por cinceitos e distinções que estão enraizados
22
na linguagem, e não pela sensibilidade do paciente (ou sua paciência) aos dados.
(p. 93)
O resultado é que a própria existência da linguagem estimula a mente-cérebro
a processar o mundo de maneira focalizada e seriada. Lembre-se de que o padrão
de ativação do sistema cerebral pode ter diversas concentrações; e que tanto a
atenção focalizada quanto a difusa têm seu uso. Com efeito, o modo típico de
processamento envolve uma ativação pulsada: primeiro difusa, a fim de obter uma
noção geral daquilo que está acontecendo; depois, enfeixada ou estreitada, a fim de
coletar informações mais sutis sobre os detalhes; depois, relaxando novamente,
volta ao estado aberto, abrangente, mais receptivo, e assim por diante. Como a
linguagem trata de estereótipos e protótipos, e como é necessariamente um meio
seriado que empurra a compreensão por um tubo capilar, uma-coisa-de-cada-vez,
exige que o cérebro adote seu modo focalizado e sequencial – independentemente
da natureza da situação. Quando o modo ‘padrão’ do cérebro torna-se verbal e
seriado, perde a flexibilidade e reduz sua capacidade de ver as coisas por inteiro. (p.
94)
Por conseguinte, a linguagem tende a acelerar a ‘esclerose do cérebro’ – o
endurecimento das categorias. Quando estas ficam mais estereotipadas, os
conceitos e os hábitos de interpretação também se tornam mais difíceis de mudar.
Quando se utilizou uma palavra como tijolo em centenas de construções linguísticas,
fica difícil tentar mudar sua forma sem correr o risco de provocar o desmoronamento
de todos esses edifícios. Se você tentar me persuadir a pensar em Deus como algo
diferente do transcendente, que é a base sobre a qual minha fé foi fundamentada
desde as aulas de catecismo, mas como algo imanente, presente a cada instante e
em cada ato, terei dificuldade para dar ouvidos ao que você me disser, e para mudar
minha crença. A maior parte da minha vida foi vivida e construída com base nessa
perspectiva. A maior parte dela necessitaria de reconsiderações. Se você quiser ter
certeza de que um cachorro velho não conseguirá aprender novos truques, ensine-o
antes a falar. (p. 94)
Finalmente, a própria linguagem está, obrigatoriamente, ultrapassada. Os
conceitos que uma linguagem encerra foram extraídos das mentes-cérebro de
pessoas que viviam de maneira diferente, geralmente com mais simplicidade do que
nós. Como diz Edward De Bono:
23
A linguagem é um museu da ignorância. Cada palavra e conceito entraram na
linguagem em um estágio de relativa ignorância com relação a nossa maior
experiência atual. Mas as palavras e conceitos ficaram permanentemente
congelados, e devemos usar as palavras e conceitos que tratam da realidade atual.
Isto significa que podemos ser forçados a avaliar as coisas de maneira bastante
inadequada. (p. 95)
Aldous Huxley resumiu da seguinte maneira a constatação de que a
linguagem é, no que diz respeito ao funcionamento interno da mente-cérebro, uma
bênção ambígua: (p. 95)
Todo indivíduo é, ao mesmo tempo, o beneficiário e a vítima da tradição
linguística em que foi educado – beneficiário, pois a linguagem dá acesso aos
registros acumulados da experiência dos outros, e vítima, pois ela o confirma na
crença de que a percepção reduzida é a única percepção, e perturba seu senso de
realidade, tornando-o ávido por aceitar como dados os seus conceitos, suas palavras
como coisas reais. Aquilo que é chamado de... ‘este mundo’ é o universo da
percepção reduzida, como se tivesse sido petrificado pela linguagem.13
13 HUXLEY, Aldous, citado por R.E. Kantor, The affective domain and beyond, Journal for the Study of Consciousness, 1970, vol.3, 20-42.
24
PARTE II
A A A A H IST ÓR IAH IST ÓR IAH IST ÓR IAH IST ÓR IA DO EU DO EU DO EU DO EU
8 A Linguagem do EuA Linguagem do EuA Linguagem do EuA Linguagem do Eu
Tão maravilhosa é a organização de uma colônia de cupins que, para alguns observadores, cada colônia parecia ter uma alma. Agora compreendemos que essa organização é apenas o resultado de um milhão de pequenos agentes semi-independentes, autômatos, fazendo o que se precisa fazer. Tão maravilhosa é a organização do eu humano que, para muitos observadores, parecia que cada ser humano também teria uma alma, um ditador benévolo que a tudo dirige do quartel-general.
Em cada colmeia ou colônia de cupins há, com efeito, uma abelha-rainha ou um cupim real, mas esses indivíduos são mais pacientes do que agentes, mais como as joias da coroa que devem ser protegidas do que o chefe das forças de defesa – na verdade, seu título real é mais adequado hoje do que antigamente, pois são muito mais parecidas com a rainha Elizabeth II do que com a rainha Elizabeth I. Não há abelha Margaret Thatcher, não há cupim George Bush, não há Salão Oval no formigueiro. (p. 99)
J. Hughlings Jackson
A mente-cérebro não contém fantasmas ou ingredientes dotados de status
especial a lhe dizer o que fazer. Como vimos no capítulo 4, há simplesmente
milhões de pequenos condutos levando energia de uma parte da rede para outra. O
desenvolvimento das miniteorias e da linguagem nada fizeram para alterar
essequadro fundamental. Não existe esse cérebro-dentro-do-cérebro a supervisionar
o trabalho de todos os outros módulos, dar-lhes prioridades ou comandá-los. A
informação é integrada, as diversas partes são despertadas ou postas para dormir,
avaliam-se os pedidos para o uso de recursos, simplesmente em virtude do modo
como o sistema como um todo é construído. A mente-cérebro é sua própria
Autoridade Superior. Não há outra.
Contudo, nossa experiência nos diz outra coisa. Parece, incontroversiamente,
que existe algo além dessa caixa-preta biológica, algum supervisor equipado para
adjudicar e intervir; e que ‘esse’ algo é, em essência, aquilo que ‘eu’ sou. Conceitos
como Eu, ‘consciência’ e (parcialmente, ao menos) ‘autonomia’ são componentes
básicos de nossa segunda natureza, e estão todos reunidos em uma visão
25
presumida da natureza humana que se acha em fraglante contradição com a história
que a ciência tem para contar. (p. 100)
Aprovação Social
Os grupos de primatas são claramente estruturados segundo o princípio da
idade ou do status. O lugar ocupado por um animal na hierarquia determina em boa
parte sua vida: a parcela de alimentos que lhe é designada, seus possíveis
parceiros, a quem se subordina ou obedece e de quem pode roubar bananas
impunemente. E como essa estrutura foi levada para as sociedades dos mais
antigos ancestrais humanos, a linguagem da política teria sido fruto, naturalmente,
do estabelecimento e da manutenção da ordem hierárquica. As características
pessoais teriam valores diferentes quando fosse necessário decidir quem seria
quem. Tamanho, força e perícia em combate poderiam ser ainda os símbolos
fundamentais de poder e prestígio, mas outros atributos também teriam começado a
emergir como importantes – técnica para resolver problemas, capacidade sexual ou
fecundidade, atratividade física, habilidade para mediar conflitos, honestidade... (pp.
105-106)
Assim, a linguagem dos atributos pessoais teria incorporado importantes
conotações de aprovação e desaprovação social. O egoísmo, se desprovido do
músculo necessário para silenciar seus críticos, poderia fazer com que você
afundasse na hierarquia; mas o mesmo efeito teria acovardia física. Quando as
pessoas começaram a aplicar a linguagem das características pessoais às outras, e
depois a si mesmas, um elemento de avaliação, de origem social, surgiu para
acompanhá-la. Aprendemos não só a nos descrevermos em termos de certos
atributos, como também a prever, a nosso respeito e a dos outros, o lugar
‘apropriado’ dentro do esquema geral onde esse ‘personagem’ se encaixa.
Como se vê, o ‘autoconceito’ contém vários sub-eus: aquele que aprovamos,
e que por isso torna minha vida social mais suave e me dá status; aquele que não
aprovamos, e que (caso os outros fiquem sabendo) torna as coisas mais difíceis
para mim; e aquele que é neutro com relação a esse processo de ordenamento
social. Animais e ancestrais que viviam em sociedades assim, e que desenvolveram
tal linguagem psicológica, teriam a tendência de se tornar ‘caçadores de aprovação’.
26
Ter ‘boa reputação’ é algo adaptável, e é do interesse das estruturas estáveis que os
indivíduos se preocupem em conhecer sua situação. (p. 106)
Esquizofrenia Moral
Mas a necessidade de manter nossa ‘respeitabilidade’ e, ao mesmo tempo,
de promover nossos próprios interesses particulares, cria outra ruga na tensão
multifacetada entre ‘egoísmo’ e ‘altruísmo’. Os indivíduos podem se defrontar agora
com o propósito pré-histórico do dilema moral: devorar o pão ou dá-lo ao faminto.
Torna-se possível agir contra nossos próprios interesses biológicos e até os de
nossa espécie, para manter a aprovação social. Em nível pessoal, o desejo de
aprovação social e os rótulos usados para canalizá-los e justificá-lo servem para
criar um centro separado de avaliação na mente-cérebro. Uma ação pode ser
julgada ‘boa’ou adaptável com relação a esse autoconceito socialmene conferido,
mas ‘má’ ou autodestrutiva em termos da procriação ou da proteção dos filhos já
existentes. (p. 106)
Essas tensões não são nada novas em termos de evolução. [...]
No entanto, embora o uso que o fígado faz do tempo e da capacidade do
sistema corpo-mente-cérebro varie de hora em hora, enquanto permanecer saudável
suas necessidades não aumentarão significativamente com o tempo. [...] (p. 107)
[...] A linguagem retalha o mundo, embora este em si não tenha emendas e
seja sistêmico. Ela transforma um mundo cheio de tons cinzentos e de matizes em
uma paisagem retangular em preto em branco. A linguagem põe em relevo a
estrutura e a persistência, embora o mundo, em si, seja constituído apenas de
processos e mudanças. A linguagem exige convenções que não têm referência no
mundo dos sentidos. E a linguagem exige um ‘operador’ identificado, mesmo quando
há apenas interações recíprocas dentro de um sistema maior. Todas essas
características implicam no subsistema em desenvolvimento do Eu; no modo como
construímos a natureza da identidade. A tensão entre o autoconceito e os outros
módulos que constituem o Comitê Central da mente-cérebro não é apenas prática,
mas linguística, ou mesmo filosófica. Eles não só competem por recursos e atenção,
27
como travam uma disputa ontológica; discordam profundamente a respeito do
significado da existência.14 (p. 108)
Não podemos falar de caráter e personalidade sem evocar o gênio da
identidade pessoal. Você precisa dizer, “eu sou preguiçoso”, ou “posso ser rápido na
corrida”; e o ‘eu’ parece, apenas parece, apontar para uma entidade persistente e
localizada, um ‘sujeito’, que ‘possui’ essas características e propriedades.
Conhecemos intelectualmente por meio da ciência, e o corpo-mente-cérebro
organicamente, por ser construído de modo a tornar ecológico o indivíduo; não existe
um ponto do qual você possa dizer que o ‘eu’ para e começa o ‘não eu’, ou mesmo o
‘você’. Se recordarmos que é da natureza da linguagem representar enganosamente
o mundo, e que precisa ser assim para ter alguma utilidade, então ela é uma boa
serva. Se nos esquecermos, será uma patroa encrenqueira. (p. 108)
Estabelecendo o Quartel-General
As linguagens européias nos levam um pouco mais além da natureza
ecológica e sistêmica do organismo. Além de sugerirem que pensemos a nosso
respeito como bolas lançadas no tempo e no espaço, encontrando-se, adquirindo e
modificando nossas características, e reunindo lembranças, também nos levam a
crer que existe um controlador interno – um pequeno ‘eu’ por trás dos olhos, que fica
no comando. Há, fincada na linguagem, a visão de que a mente-cérebro, por si só,
não está à altura de tomar decisões sábias em um mundo complexo e incerto. A
linguagem nos seduz e nos leva a supor que alguma forma misteriosa de
inteligência, intimamente associada à consciência, é necessária. Como não temos
consciência das intricadas e velocíssimas computações da mente-cérebro, não
podemos acreditar que ela seja capaz desse trabalho, e acrescentamos, ao modo
como pensamos a nosso próprio respeito, a ideia de uma Autoridade Superior.
Dizemos “escolhi filé com fritas” quando descrevemos uma refeição no
14 O escritor francês Lacan tentou, quase obscuramente, provar isso. Um comentarista, Stephen Frosh, da Universidade de Londres, diz: “Para Lacan, o sujeito é constituído na e por meio da linguagem. Isto não implica que haja alguma subjetividade pré-existente que aprenda a se expressar nas palavras que a linguagem lhe oferece, mas que o sujeito inicialmente ‘ausente’ só se torna concreto por meio de seu posicionamento em um sistema de significados... Somos constituídos segundo as possibilidades que as palavras nos oferecem . O principal projeto de Lacan é mostrar-nos a aparência de nossa realidade central, ou como nossa identidade é construída (quando) nos inserimos na ordem simbólica da cultura. O processo é, de várias maneiras importantes, de alienação”. FROSH, Stephen, The politics os psychoanalysis, Macmillan, Basingstoke, 1987.
28
restaurante, ou “para variar, decidi levar o cachorro para passear antes de lavar os
pratos”, e a sintaxe nos dá a sensação de que não estamos apenas descrevendo
aquilo que aconteceu, mas também, de certo modo, assumindo o crédito por fazer
com que as coisas aconteçam tal como aconteceram. O que fizemos foi pedir um filé
ou levar o cachorro para passear; mas o uso de palavras como ‘escolhi’ ou ‘decidi’
sugerem algo mais do que isso: que o pedido ou o passeio foram apenas os
produtos externos de um processo interno do qual ‘eu’ não só fui informado como
participei ativamente. (p. 109)
29
9 Riqueza, Lazer e AprendizadoRiqueza, Lazer e AprendizadoRiqueza, Lazer e AprendizadoRiqueza, Lazer e Aprendizado
O camelo é mais forte do que o homem; o elefante é maior; o leão é mais corajoso; uma rês pode comer mais do que um homem; os pássaros são mais viris. O homem foi feito com o propósito de aprender. (p. 117)
El-Ghazali
A sabedoria do escriba se obtém nas horas de lazer; quem tem poucas
ocupações é que se torna sábio. (p. 117) Eclesiástico 38,24
A Era de Ouro do Homo Sapiens
Em dado ponto da história de uma espécie bem-sucedida, a vida fica mais
fácil. [...] Ou uma mera mudança nas condições climáticas (ou outras) significa que,
durante algum tempo, os recursos são abundantes e as ameaças, raras.15 (p. 117)
[...] Marshall Sahlins, resumindo sua pesquisa sobre os aborígenes
australianos, diz que: (p.118)
Poderíamos argumentar que os caçadores e os agricultores trabalham menos do que nós; e que, em vez de trabalho contínuo, a busca por comida é intermitente, o lazer abundante, e há mais sono diurno per capita por ano do que em qualquer outra condição da sociedade.16
Se as necessidades são poucas, e satisfeitas com relativa facilidade, como é
claramente o que ocorre nesses grupos, então faz sentido (o que também é o caso
de Sahlins) referimo-nos a elas como ‘as primeiras sociedades ricas’. Lembramo-nos
do ‘nobre selvagem’ de Rousseau: (p. 118)
Quanto mais próximo a seus desejos naturais o homem ficou, menor a diferença entre suas faculdades e seus desejos, e, por conseguinte, menos distante está de ser feliz. Nunca está menos infeliz do que quando parece totalmente despojado, pois a infelicidade não está na privação das coisas, mas na necessidade que se sente delas.17
Atualmente, consideramos tão certa essa abordagem comunitária dos
15 A ‘pegada’ dessas épocas, segundo alguns argumentam, é que as espécies ‘com sorte’ se tornam, mais cedo ou mais tarde, gordas, preguiçosas e excessivamente numerosas, e com isso seus membros, com suas atitudes, tanto aceleram o fim dos Tempos Tranquilos como estão despreparados para esse evento. A história do mundo pode ser vista como um catálogo de espécies desaparecidas que se ‘adaptaram pouco e acordaram tarde demais’. O colapso da civilização da Ilha da Páscoa é o relato de cautela por excelência. Leia, PONTING, Clive A green history of the world, Sinclair-Stevenson, Londres, 1991. 16 SAHLINS, Marshall, citado por XENOS, Nicholas, Scarcity and modernity, Routledge, Londres, 1989, p. 2.
30
alimentos que é fácil subestimar o valor desse passo – mesmo a partir do estilo de
vida do chimpanzé. A estudiosa de primatas Glynn Isaac sugere que “se
pudéssemos entrevistar um chimpanzé a respeito das diferenças comportamentais
que nos separam, talvez fosse esse o ponto que ele achasse mais impressionante –
‘esses humanos conseguem o alimento, mas em vez de comê-lo na mesma hora,
como qualquer macaco sensato, o armazenam e o repartem com os outros!’.18
Empatia e Guerra
Mais importante ainda, do ponto de vista cognitivo, é que os melhores planos
são os que levam em conta a maneira como seus rivais podem pensar, pois isso
permite a você elaborar uma campanha de desinformação pré-combate. Se Nós
sabemos que Eles carecem de certo recurso, Nós podemos distrair sua atenção
caso Nós finjamos também dispor de pequena quantidade desse recurso. Se Eles
estão nervosos ante a perspectiva do ataque, Nós podemos fingir que estamos de
olho em uma tribo completamente diferente. Se Nós suspeitamos de que Eles
descobriram nossos códigos, continuamos a usá-los para irradiar informações
enganosas... mas Nós devemos fazê-lo sutilmente, para que Eles não suspeitem de
que Nós sabemos que eles descobriram o código. A sofisticação desse tipo de
desinformação atingiu o apogeu nas complexas tentativas de engano de ambas as
partes na Segunda Guerra Mundial.19 (p. 126)
Foi sugerido ter sido essa capacidade que a mente-cérebro tem de construir
modelos do ponto de vista dos outros que fez com que a evolução jogasse o seu
trunfo e produzisse a consciência.20 (p. 127)
Neste capítulo, vimos diversos exemplos do modo como a capacidade de imaginação e exploração pode ficar descontrolada. Contudo, como é possível esse desequilíbrio nas prioridades da mente-cérebro? É útil poder antecipar as reações de um rival. Mas se você está tão preocupado com a negociação seguinte a ponto de caminhar distraidamente para a frente de um ônibus, é claro que as coisas sairiam dos eixos. É esta pergunta-chave o tema de nosso próximo capítulo.
17 Citado Por XENOS, Ib. pp. 25-26. (CITAÇÃO DA CONTRA-CAPA DESTE LIVRO: Ed. Siciliano) 18 Glynn Isaac, “Aspects of human evolution” in D.S. Bendall (ed.), Evolution from molecules to men, Cambridge University Press, 1983, p. 533. 19 Para conhecer melhor algumas dessas histórias, leia, de Paul Watzlawick, How realisreal?, Vintage Books, Nova York, 1977. 20 HUMPHREY, Consciousness regained, op. cit.
31
10 Identidade e SobrevivênciaIdentidade e SobrevivênciaIdentidade e SobrevivênciaIdentidade e Sobrevivência
Quando nossa paixão dominante não é mais a sobrevivência, torna-se o conforto. Para alguém cuja paixão é a sobrevivência, nossa preocupação com o conforto é ignóbil e trivial, extremamente egoísta; não há como justificá-la. Não pode sequer ser compreendida.
Nicholas Freeling
21
Decidindo Quem Ser
No caso de organismos que não os seres humanos, a questão da
sobrevivência é (ao menos do ponto de vista darwiniano) bem clara. O imperativo
evolutivo diz que sua prole deve sobreviver, levando seus genes para a próxima
geração. E para que isto aconteça, o importante é que você deve sobreviver até
seus filhos terem nascido e crescido. Sobrevivência significa sobrevivência física.
Mas o modo como os seres humanos ocidentais do século XX se comportam
deixa claro que, para eles, esse nem de longe é o final da história. De modo geral, as
pessoas ainda se preocupam com seu bem-estar físico. Mas também parecem se
preocupar com um enorme número de coisas; e, de vez em quando, parecem
disposas a arriscar suas vidas pelos motivos mais supreendentes. Uma mulher
faminta pode recusar uma xícara de leite quente porque sua identificação com a
causa da Irlanda Unida é mais forte, naquele momento, do que seu interesse pela
própria vida. (p. 129) [...] O modo como isso ocorreu é um reflexo da outra opção que
a humanidade descobriu para se manter entretida: aquilo a que me referi no capítulo
anterior como identificação. (p. 130)
Ligando o Seu Eu ao Gerador Principal
A segunda solução importante para o problema do excesso de poder cerebral
é ligar o Sistema do Eu (cujo desenvolvimento começamos a delinear no capítulo 8)
diretamente ao Sistema de Sobrevivência Fundamental; dar a ele uma linha direta
32
com o comandante supremo das Forças Armadas. Bem, nada que passa do SE ao
quartel-general aliado pelo telefone vermelho é, de fato, uma questão de segurança
nacional. Um pedido de ajuda à mente-cérebro que tenha a autorização do Eu e a
palavra-chave correta – isso tem prioridade. Se o SE for suficientemente detalhista,
estará sempre ao telefone, e o ‘grande cérebro’ terá resolvido o problema do tédio.
Assim, a preservação do Sistema do Eu torna-se o mecanismo da sobrevivência,
tendo precedência, se necessário, até sobre os interesses do corpo físico ou sobre a
sobrevivência da espécie. Tudo o que estiver incluído na definição funcional do meu
Eu; eis o que mobiliza os recursos de sobrevivência do sistema corpo-mente-
cérebro, e para o qual se dedicam. (p. 130)
O que torna as pessoas tão interessantes é, em boa parte, a maneira como
cada uma reage a essas emergências. Como disse Alexis de Tocqueville:
Sempre acei interessante acompanhar os movimentos involuntários de medonas pessoas inteligentes. Os tolos exibem rudemente a covardia em toda a sua nudez, mas os outros conseguem cobri-la com um véu tão delicado, tão caprichosamente bordado com pequenas desculpas plausíveis, que dá certo prazer contemplar esse engenhosa obra da inteligência humana.22
Quando o SE recebe esse tipo de ‘prioridade máxima’, consegue furar a fila.
As necessidades e ameaças relacionadas ao Eu não precisam mais competir por
atenção na bolsa de valores de prioridades gerais da mente-cérebro; como um dos
membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, tem poderes
para privilegiar seus próprios interesses e para vetar os interesses dos outros, sejam
quais forem. [...] (p. 131)
A imagem que você desenvolveu com base em sua própria experiência é um
resumo flexível do modo como você tende a ver as coisas e das maneiras como
tende a reagir. É aberta, pode sempre ser atualizada, até surpreendida, quando você
se defronta com novas situações e experimenta novos modos de ser. Contudo, após
se ‘identificar’ com essa síntese provisória do seu Eu, ela se transforma em um
monte de injunções que precisam ser preservadas e obedecidas. Em vez de ser
motivado pelo desejo de aprimorar seu conhecimento e suas habilidades, para
acompanhar o ritmo do jogo, você está agora condenado a ficar constantemente por
aí, provando a si mesmo e a quem quer que pare para ouvi-lo que você é quem
decidiu ser. (p. 132)
21 FREELING, Nicholas, A city solitary, William Heinemann, Londres, 1985. 22 Citado por Guy Claxton em Wholly human, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1981.
33
E quando incuímos em nossa lista de coisas que devem ser preservadas a
todo custo alguns (ou todos os) rótulos que as outras pessoas nos atribuíram, mas
que não se encaixam, estamos fadados a dedicar muita energia a tentar ser, ou fingir
ser, alguém que não somos. Alguém (não necesariamente um homem), por
exemplo, pode se ver às voltas com uma autodefinição que proíbe (aquilo a que
chama pejorativamente de) ‘fraqueza’ – o impulso natural de chorar e de buscar o
contato físico com outro membro da mesma espécie, quando está triste, confuso ou
estressado. Se, in extremis, esse impulso fica forte demais para ser inibido, a pessoa
se sente ‘mortificada’ – palavra que traduz a entrega dos pontos. Quando estamos
mortificados – em um dos extremos da escala da vergonha –, estamos
experimentando, literalmente, uma pequena morte. Descartamos um fragmento de
identidade (mesmo se apenas temporariamente), e vemo-nos escarnecendo de uma
de suas convenções sagradas. Durante alguns minutos, somos foras-da-lei. O
‘fabuloso (ou ‘confuso’) manto tecnicolor’ da identidade fictícia não é apenas
pequeno demais; foi talhado para alguém com forma bem diferente, com gosto
diferente para roupas. (p. 132)
Morrer para Continuar Vivo
A beleza da identificação, como estratégia para nos mantermos ocupados, é
que ela apresenta problemas que são, na verdade, insolúveis; e enquanto não
admitimos isso, podemos dar voltas e mais voltas em círculos, como um cachorro
perseguindo a própria cauda. Não há maneira de nos transformarmos em algo que
não faz parte de nossa natureza – em imortais, por exemplo. Contudo, as pessoas
se identificam com uma imagem pessoal jovial e firme, saudável e bem-disposta, e
por isso lutam poderosamente contra a irresistível devastação causada pela doença,
velhice e morte. (p. 133)
A Proliferação das Necessidades: Parte 3 (última parte)
Como vimos, o lazer e a abundância dão origem, naturalmente, a muitas
escolhas que são apenas remotamente, se é que chegam a sê-lo, relacionadas com
a sobrevivência física. As pessoas podem desenvolver, até o grau de refinamento
34
que desejam, suas preferências estéticas, seu senso de ‘estilo’. Se estes também
ficarem atados à matriz da identidade, então as preferências podem se tornar
necessidades, e o ‘gosto’ passa a ser questão de vida ou morte. Se ‘sou aquilo de
que gosto’, então a não obtenção do que quero pode ser uma emergência tão
grande quanto não obter aquilo de que preciso. Na verdade, quando começo a
inserir em meu autoconceito os detalhes de meus caprichos e fraquezas, não
consigo mais distinguir a diferença entre uma necessidade e uma vontade.
Depois que a máquina de sobrevivência foi programada para procurar e
destruir qualquer oposição à minha ‘vontade’, então o fato de não conseguir
convencer minha mamãe a me dar uma porção de sorvete é registrado como algo
tão importante para meu bem-estar quanto ser varrido para o mar enfiado em minha
bóia. Pais que (desde muito cedo) oferecem a seus filhos opções ilimitadas e que
tentam discernir em cada um de seus movimentos uma preferência ou uma
característica, estão educando as crianças a se viciarem em estilos de vida. As
crianças, sequiosas por participarem de qualquer jogo que faça com que se sintam
ligadas àqueles que as rodeiam, começam a se identificar com seus impulsos, e,
assim, a entrar nos conflitos de vida ou morte com ‘ser’ aquilo que ‘querem’, que
caracterizam a terrível idade de dois anos. (p. 134)
O Horizonte da Moda
[...] Agora, as suas metas, antes distintas e intermitentes, tornam-se
homogeneizadas e insaciáveis. Suas necessidades podem se expandir infinitamente.
“Para nós, os habitantes deste mundo de desejo, não é mais uma questão de
insuficiência episódica; com nossa afluência, criamos um mundo social de
escassez”.23 Segundo comentou Jean-Jaques Rousseau: (p. 135)
O objeto que, de início, parece estar à mão, escapa-nos mais rapidamente do que o conseguimos pegar. Quando achamos que o alcaçamos, ele se transforma e se revela a distância. Como não enxergamos mais a extensão que já atravessamos, não a valorizamos; aquilo que ainda restraatravessar cresce e se amplia sem cessar. Assim, esgotamo-nos sem chegar ao fim, e, quanto mais ganhamos em satisfação, mais a felicidade obtém de nós.
Foi Rousseau, mais uma vez, que, visitando Londres como convidado do
filósofo David Hume, viu com maior clareza a inevitável culminação dessa tendência
35
social, não apenas na infindável escalada de consumo e desapontamento, como na
competitividade, agressividade e decepção. Ele observou que:
O homem, que anteseralivre e independente, está hoje, por assim dizer, subjugado por uma série de novas necessidades... A ambição de consumir, o desejo ardente deelevar sua relativa fortuna menos por necessidade autêntica do que para se posicionar acima dos demais, instila em todos os homens uma sombria tendência a ferirem-se uns aos outros.24
A evolução nos transformou em animais sociais. Ela fez com que queiramos
participar, e nos equipou com cérebros grandes, projetados para que possamos
chegar lá. No entanto, quando o ‘ter’ e o ‘mostrar’ tornam-se as principais maneiras
de conquistarmos a estima pública e a satisfação privada, a rede de coesão social
começa a se desintegrar. As interações tornam-se competitivas, mas, pior ainda,
tornam-se superficiais. (p. 137)
Estar Certo
Um refinamento elegante do jogo de julgar as pessoas pelos bens que têm
pode ser produzido pelo simples expediente de encarar o conhecimento como um
bem, e a opinião como uma comodidade, como algo tão sujeito aos caprichos da
moda quanto o complimento das saias. Quando a sobrevivência passa a depender
da capacidade generalizada de ter respostas para todas as questões concebíveis, e
as opiniões ‘certas’ acerca de todos os assuntos concebíveis, torna-se uma
necessidade ‘estar certo’. Atualmente isso passou de meio de sobrevivência para
um fim: é a correção política, social e epistemológica como um fim em si mesma.
Agora, o propósito da mente, de maneira bela e paradoxal, torna-se sua própria
sobrevivência. (p. 138)
Qualquer fragmento de conhecimento ou crença pode se transformar em um
participante da ‘linha-quente’ da sobrevivência, com que então a sua preservação se
torna objeto do sistema como um todo. Se ‘eu sou o que penso’, então até as
minhas opiniões ainda em formação acerca de política, das melhores poltronas em
um Junbo ou de futebol têm de estar certas. Se tais opiniões não se mostram
acertadas, então eu estou errado, e essa é a outra pequena morte. Assim, a
grandiosa majestade do poder da mente-cérebro pode ser ativada até pela mera
23 XENOS, Nicholas, op. cit., p. 5.
36
sugestão de que eu poderia estar um pouco enganado. Há pessoas que, ante um
simples questionamento, reagem com uma furiosa mescla de ansiedade e raiva que
faria inveja a Átila, o Rei dos Hunos. (p. 138)
Enquanto a função original da mente – todo o seu conhecimento, todos os
seus processos – consistia antes em expandir a capacidade do cérebro de ajudar o
sistema corporal como um todo a se coordenar e a se defender, agora a inversão de
prioridades está completa, e proteger a mente passa a ser tarefa do sistema todo.
Quando uma crença se torna uma das coisas que tenho o compromisso de proteger,
ela se torna sacrossanta, uma pedra mágica, uma vaca sagrada. Termina o
aprendizado. A nova informação é uma ameaça de invalidação, e não uma
promessa de compreensão mais profunda. Emperram-se as engrenagens da
cognição. A sobrevivência está agora ameaçada pelo próprio motor cuja tarefa é
promovê-la. Finalmente, a humanidade é vítima de suas próprias maquinações. (p.
139)
24 XENOS, op. cit., pp. 23-24.
37
11 Acentuar o Permanente:Acentuar o Permanente:Acentuar o Permanente:Acentuar o Permanente:
o Eu N arrativoo Eu N arrativoo Eu N arrativoo Eu N arrativo
A nossa tática fundamental de autoproteção, autocontrole e autodefinição não consiste em criar teias ou construir represas, mas em contar histórias, e, mais especificamente, em produzir e controlar a história que contamos aos outros – a e a nós mesmos – a respeito de quem somos. E assim como as aranhas não precisam pensar, consciente e deliberadamente, no processo de criação da teia, e assim como os castores, ao contrário dos engenheiros humanos, não planejam consciente e deliberadamente as estruturas que constroem, nós (diferentemente dos contadores de histórias humanos profissionais) não pensamos conciente e deliberadamente nas narrativas que vamos fazer e no modo como as faremos. Nossas histórias são criadas, mas, em sua maior parte, nós não as criamos; elas nos criam. A consciência humana e nossa identidade narrativa é seu produto, não a sua fonte. (p. 140)
Daniel Dennett25
A Armadilha da Narrativa
Recentemente, o neuropsicólogo Michael Gazzaniga ofereceu diversos
exemplos da atuação da ‘compulsão de narrar’ no campo dos distúrbios mentais.26
Considere, por exemplo, a condição debilitante conhecida como esquizofrenia.
Nessa condição, as pessoas experienciam seu mundo como algo bizarro, cheio de
ambiguidades misteriosas, relacionamentos desarmônicos ou ameaçadores com
outras pessoas, e ilusões e alucinações, basicamente auditivas e visuais, que
(geralmente) não são experimentadas como ilusões, mas como uma realidade
autêntica e estranha. Nas garrasde um episódio esquizofrênico, as pessoas se
comportam demaneira excêntrica ou autodestrutiva – provavelmente isolando-se ou
ferindo-se, e dão a impressão de estarem isoladas de suas emoções ‘normais’. (p.
144)
25 DENNET, Consciousness explained, op. cit. 26 GAZZANIGA, Michael, The social brain, op.cit., e Mind matters, Houghton Mifflin, Boston, 1988.
38
PARTE III
O SURG IMENT O DA CONSC IÊNC IAO SURG IMENT O DA CONSC IÊNC IAO SURG IMENT O DA CONSC IÊNC IAO SURG IMENT O DA CONSC IÊNC IA
12 Alarmes e ExcursõesAlarmes e ExcursõesAlarmes e ExcursõesAlarmes e Excursões
É duvidoso estimar se as generalizações e categorias de psicologia popular... esculpem a Natureza em suas volutas... O cérebro, sem dúvida, tem uma série de mecanismos para monitorar os processos cerebrais, e categorias da psicologia popular como ‘percepção’ e ‘consciência’ agrupam indiferentemente uma variedade de mecanismos. (p. 155)
Patricia Churchland
Agora, chegou o momento de tratarmos da história da consciência: por que
ela se desenvolveu; para que serve (se é que serve para alguma coisa); e por que
ela abriga o diversificado sortimento de conteúdos que a caracteriza. Quase todas
as peças do quebra-cabeça foram apresentadas. Mas falta uma peça-chave. Nada
do que discutimos até agora – ou quase nada – requer que falemos da consciência.
[...] (p. 155)
Contudo, é inegável que somos conscientes, sabemos que somos, e muitos
dos produtos da atividade mental surgem fugazmente naquela que parece ser a sala
iluminada da consciência. Assim, de onde surgiu inicialmente a consciência, e por
que? E o que determina quais aspectos da consciência serão recompensados com
esse status aparentemente privilegiado?
O Cérebro Assustado
Em termos nervosos (ou melhor, em termos das analogias simples que usei
até agora), esse alerta geral exige que todos os sistemas não essenciais sejam
temporariamente desligados. Sua ativação é cortada. Parte da energia liberada, se
preciso, destina-se a inibir os sistemas previamente ativos, e parte é enviada de
volta à ‘unidade central de recursos’, permitindo que a sensibilidade dos sistemas de
detecção seja elevada ao máximo. Sob essas circunstâncias excepcionais, a
39
ativação pode se acumular em áreas ativas da rede mais rapidamente do que pode
ser redirecionada, e por isso, durante um breve período, elas ficam ‘superexcitadas’,
por assim dizer. Quando a fonte da ameaça é identificada, os padrões a ela
associados na rede recebem um forte surto de ativação energética. Isto forma um
novo foco de atividade que agora suplanta os demais, e que prende a atenção de
um modo altamente focalizado. Outras áreas são inibidas de início, produzindo um
intenso ‘foco quente’ que se destaca claramente contra os arredores suprimidos. E
então, quando a identificação da ameaça fica clara, o ‘nó’ concentrado de ativação
se afrouxa rapidamente e se espalha pelos sistemas de ‘ação’ associados, para
iniciar as melhores reações à nova situação. (p. 158)
O Despertar da Percepção Consciente
Sugiro que um desses ‘focos quentes’ temporários no cérebro deve ter estado
associado ao surgimento da percepção consciente. A percepção consciente não
tinha função própria. Ela não emergiu ‘com um propósito’. Ela surgiu com a
capacidade que o cérebro desenvolvia de criar esses estados transitórios de
‘superativação’ como um subproduto inútil, sem maior interesse funcional do que a
cor do fígado ou o fato de que o mar, sob certas circunstâncias, se agita, cria ondas
e fica branco. Era, no linguajar filosófico, um epifenômeno. (pp. 159-160)
A percepção consciente esteve associada, desde o início, a um estado de
desagregação e desequilíbrio na vida do organismo. Como sugeriu Lancelot Law
Whyte: “A consciência é como uma febre que, se não for excessiva, acelera o
processo de cura, eliminando assim sua fonte”.27 Como Whyte, estou sugerindo que
os momentos originais da consciência foram intermitentes, normalmente breves, e,
se tudo correu bem, autoelimináveis. Originalmente, a consciência tinha a qualidade
de um espirro violento, ou atéde um orgasmo (eventos que, por si, estão
relacionados a níveis intensos de consciência). (p. 160)
27 WHYTE, Lancelot Law, The unconscious before Freud, Basic Books: Nova York, 1960.
40
13 Sensações e V isõesSensações e V isõesSensações e V isõesSensações e V isões
Algumas verdades são tão próximas e óbvias para a mente que um homem só precisa abrir os olhos para vê-las. É assim que vejo esta verdade tão importante, ou seja, que todo o coro dos céus e aparatos da terra – em uma palavra, todos esses corpos que compõem a poderosa estrutura do mundo – não têm subsistência sem uma mente. (p. 167)
Bispo Berkeley
Em um mundo sem olhos, o sol não seria luz. Em um mundo sem
terminações nervosas sensitivas, o fogo não seria quente. Em um mundo sem músculos, as pedras não seriam pesadas; e em um mundo sem peles macias as pedras seriam duras. (p. 167)
Alan Watts
As Sensações da Percepção Consciente
Ainda não mencionamos uma das características mais importantes da reação
de alarme: sua relação íntima com a sensação e a emoção. Nossas emoções
‘negativas’ básicas são reações de todo o sistema físico a diversos tipos de ameaça,
desagregação ou ferimento. As emoções são os aspectos conscientemente sentidos
das maneiras pelas quais o sistema como um todo reage quando é bloqueado ou
frustrado. Quando os planos são perturbados, é nesse momento que ‘nós’ somos
perturbados. E tipos básicos diferentes de perturbação produzem tons emocionais
diferentes. Cada um desses estados emocionais representa o modo pelo qual o
sistema corpo-cérebro-mente como um todo responde ao diagnóstico instantâneo
sobre o tipo de emergência que está enfrentando. A reação exata depende de
análises posteriores, que podem refinar ou abordar o diagnóstico relâmpago original.
(pp. 167-168)
41
14 A Circuncisão da ConsciênciaA Circuncisão da ConsciênciaA Circuncisão da ConsciênciaA Circuncisão da Consciência
Pode ser... errado pensar em dois reinos que interagem, chamados consciente e inconsciente, ou mesmo em dois tipos contrastantes de processo mental, consciente e inconsciente, cada um autocontido causalmente até se passar para o outro. Pode existir, segundo creio, um único reino de processos mentais, contínua e predominantemente consciente, do qual apenas certas fases ou aspectos transitórios ficam acessíveis para a atenção consciente imediata. (p. 177)
Lancelot Law Whyte
Ao se observar a história da evolução, fica claro que a consciência não é, e
não pode ser, uma janela na mente. É um produto da mente, destinado a auxiliar
(mas que depois passou a frustrar) a sobrevivência física. Associado originalmente
com um maravilhoso mecanismo de identificação e reação a emergências básicas,
tornou-se basicamente, por meio de uma série interligada de acidentes e
coincidências evolutivas, um mecanismo que constrói histórias duvidosas cujo
propósito é defender um senso de identidade supérfluo e impreciso. O mais
poderoso equipamento da história da evolução ficou, em certa ocasião, esperando
sentado porque a vida estava fácil. Agora, vê-se envolvido em um jogo sério e mortal
que não consegue vencer, pois os problemas que tenta resolver são fruto de seus
próprios equívocos. (p. 177)
42
15 O Cultivo da IgnorânciaO Cultivo da IgnorânciaO Cultivo da IgnorânciaO Cultivo da Ignorância
A amplitude daquilo que pensamos e fazemos é limitada por aquilo que deixamos de notar. E como deixamos de notar
que deixamos de notar pouco podemos fazer para mudar até notarmos que deixar de notar molda nossos pensamentos e ações. (p. 193)
R.D. Laing A ameaça sutil da repressão é o silêncio com que ocorre. A passagem da dor
pela consciência não envia sinais de aviso: o som da repressão é um pensamento que se evapora. (p. 193)
Daniel Goleman
[…] Quanto mais sábios somos, menos frequentes e menos intensas são
nossas crises de insatisfação. Como disse Montaigne, “O sinal mais evidente da
sabedoria é a alegria duradoura”. (p. 194)
Andrew Matthews descobriu que algumas pessoas altamente ansiosas dão
mostras de ter registrado a ameaça, mas não ‘sabem’, conscientemente, que o
fizeram. [...] (p. 195)
No cotidiano, podemos perceber quando o corpo de outra pessoa revela a
mentira de sua aparente despreocupação: o pé que oscila ou a mancha de suor sob
os braços o denuncia. Juramos ‘cegamente’ que certas coisas nos interessam,
quando na verdade não ligamos a mínima para elas, e que as coisas que realmente
nos interessam são absolutamente sem importância. Detectar discrepâncias entre
aquilo que a consciência ‘pública’ e aquilo que o inconsciente deixa ‘vazar’ é função
do psicoterapeuta. E essa é uma área na qual a ciência pode nos ajudar a
compreendermo-nos melhor. (p. 195)
43
16 Estupidez:Estupidez:Estupidez:Estupidez:
O Retardamento da PercepçãoO Retardamento da PercepçãoO Retardamento da PercepçãoO Retardamento da Percepção
Estúpido. Carente ou lento em percepção mental; ter as faculdades extirpadas ou entorpecidas; privado de apreensão, sentimento ou sensação; desprovido de consciência; insensível à dor ou à tristeza; atônito diante de surpresas, dor etc. (p. 204)
Dicionário conciso Oxford
Leva tempo até perceber. O conteúdo da consciência não aparece como um
milagre instantâneo; surge como resultado de um processo enormemente rápido que
envolve a ativação e integração de milhares de circuitos do cérebro. Contudo, como
esses micromovimentos da mente acontecem inconscientemente, e acontecem
depressa, é difícil perceber ao só o tempo que levam, mas o próprio fato de
abrangerem um processo que se desenrola no tempo. (p. 204)
Enxergando em Câmara Lenta
Imagine uma situação simples e artificial, na qual pedem-lhe que feche os
olhos, deixe a mente se esvaziar, e depois abra-os e observe o novo e singelo
objeto que foi colocado silenciosamente à sua frente. Agora, embora você possa ter
tido sucesso em deixar que o conteúdo anterior da consciência se esvaia (o que não
é fácil de se fazer ‘a pedidos’), a rede mente-cérebro de conexões ainda terá seu
padrão móvel de excitações e inibições à sua frente. No instante em que você abre
os olhos, uma onda com padrões de ativação vai rapidamente da retina até os
caminhos nervosos, onde ela é adicionada a essas correntes, modificando-as, como
um rio que corre para o oceano. O padrão original de influxo se perde rapidamente,
mas muda a maneira pela qual o oceano como um todo se comporta. (p. 205)
44
17 Mitos que Orientam Nossas VidasMitos que Orientam Nossas VidasMitos que Orientam Nossas VidasMitos que Orientam Nossas Vidas
Desde a Renascença, quase todas as gerações se consideraram ‘modernas’, a ‘nova era’, como se houvessem chegado ao momento da iluminação, no qual todas as supertições e mitos estranhos do passado são finalmente varridos para a lata de lixo da história. Como acontece em toda sociedade, os mitos e ritos que formam nossas mentes, emoções e ações ficam, em boa parte, invisíveis e inconscientes. Uma das melhores maneiras de descobrir o mito vivo de qualquer sociedade é examinar aquilo que todos aceitam – sem críticas – com relação ao modo como as coisas realmente são... A realidade consensual é o mito, que continua invisível para a maioria, tal como a água para os peixes. (p. 215)
Sam Keen
Toda sociedade, como diz Sam Keen, aceita como guias verdadeiros e
válidos para a ação, uma vasta gama de crenças e pressuposições que, ‘de fora’,
seriam consideradas altamente questionáveis. Podemos ver com muita clareza – na
história, em outras culturas – o poder do pensamento para moldar vidas e
comunidades. E aquilo que vemos geralmente parece, com a sabedoria da
perspicácia, absurdo. Lutaram e morreram por causas que hoje parecem banais ou
bizarras. (p. 215)
Mitos Contemporâneos da Saúde e da Morte
Contudo, se seguirmos a trilha que essas esquisitas e maravilhosas crenças
assinalam, vamos descobrir que ela passa desconcertantemente perto de nosso
próprio quintal. Hoje em dia, milhares de pessoas nutrem crenças infundadas acerca
da saúde e dos cuidados com ela. A medicina alternativa está prosperando, e
ninguém sabe, na imensa maioria das vezes, distinguir o que é bom do que é mau
ou indiferente. (p. 216)
45
PARTE IV
O INCONSC IENTE RECONQUISTADOO INCONSC IENTE RECONQUISTADOO INCONSC IENTE RECONQUISTADOO INCONSC IENTE RECONQUISTADO
18 Mitos da MenteMitos da MenteMitos da MenteMitos da Mente
Quem não tem opiniões que lhe foram implantadas pela educação... que não devem ser questionadas, mas reverenciadas como os padrões do que é certo e errado, verdadeiro e falso; se essas opiniões sagradas fossem oráculos de babás, ou a tradicional conversa séria daqueles que alegam formar nossa infância, quem as receberia de geração em geração sem jamais as examinar? Esse é o fardo de nossa tenra idade, que, sazonada desde o princípio, passa, pela continuidade do tempo, por assim dizer, à própria constituição da mente, que, depois, só com muita dificuldade recebe nova tintura... Por esses meios, eventualmente outros mais, as opiniões se assentam e se fixam na mente dos homens e, verdadeiras ou falsas, lá permanecem com a reputação de verdades materiais substanciais, e por isso raramente são questionadas ou examinadas por aqueles que as sustentam; e se por acaso se mostrarem falsas, como na maior parte dos homens costuma acontecer, fazem com que um homeme se perca gravemente em seus estudos; e, embora se vanglorie, com suas leituras e inquirições, de que seu desígnio consiste em transmitir seus conhecimentos a respeito da verdade, com efeito não chega a nada, senão a confirmar as opiniões já recebidas... os homens adotam opiniões preconcebidas quanto à verdade sem ter consciência dela, e depois, em geral, só se cercam de coisas que se ajustam a esse humor viciado, aumentando-o. (p. 231)
John Locke28
O Mito do Eu
Analisemos, com certa profundidade, o mito fundamental da identidade: a
ideia de que cada um de nós é uma coluna individual de carne móvel com uma
mente própria, atravessando um ambiente no qual estamos, mas ao qual não
pertencemos. “Eu, um estranho amendrontado / Em um mundo por mim não criado”:
coisas assim.29 Como esse mito nos apresenta como entidades separadas de
nossos arredores, representa erroneamente nossa natureza fundamentalmente
ecológica. Como o mito nos diz que somos persistentes, que permanecemos
basicamente os mesmos enquanto nos equilibramos na corda bamba que leva do
nascimento à morte, deposita sobre nós um fardo cada vez maior de impressões
28 J.L. Axtell, The educational writings of John Locke, Cambridge University Press, 1968. 29 Versos de A.E. Housman, Last poems (1992), n° 12.
46
passadas que supostamente devemos respeitar e obedecer, por mais desiguais
sejam diante das necessidades de cada momento. Como o mito dá a cada um de
nós um senso individual de autoria, põe dentro de nossas cabeças uma espécie de
operador caprichoso, um motorista da mente-cérebro, que pode pilotar sem que
ninguém exerça sobre ele qualquer influência: a unidade inconsciente entre mundo,
corpo e mente é negada. Dessas falácias fundamentais, brotam muitos de nossos
problemas. (p. 235)
Ciências como biologia e cognição conferem mentiras a cada uma dessas
três ‘pernas’ sobre as quais repousa o mito do Eu. Nos capítulos iniciais deste livro,
mostrei como a biologia evolutiva, e a ciência emergente da ‘teoria dos sistemas’,
serraram a perna da separação. Nós, como todas as formas de vida, só podemos
existir porque não somos separados. Para que o sistema corpo-mente-cérebro
exista, precisa estar completa e continuamente ligado, de diversas maneiras, ao
ecossistema maior do qual, na verdade, é apenas uma manifestação local.30 (p. 235)
30 COMENTÁRIO: GOUVEIA, Koguen: Na verdade, Claxton fala, aqui, sem se referir diretamente, sobre a grande lei fundamental do budismo: a Interdependência, na qual nenhum fenômeno ou matéria possui existência isolada.
47
19 Inconsciente Inconsciente Inconsciente Inconsciente –––– O Mistério Essencial O Mistério Essencial O Mistério Essencial O Mistério Essencial
Há centenas de indicações levando-nos a concluir que, a cada momento, existe em nós uma infinidade de percepções, desacompanhadas de consciência ou reflexão... A escolha que fazemos provém desses estímulos insensíveis, que, mesclados com as ações dos objetos e o interior de nossos corpos, fazem-nos com que sintamos uma direção de movimento mais confortável que outra. (p. 243)
Leibniz
31 O homem autoconsciente não pode usar a razão consciente para vencer sua
própria impaciência; para isso, deve abrir mão de sua convicção da suprema importância de sua própria percepção e da maturidade de seu raciocínio; só seo fizer, estará a salvo da humilhação... A patologia da ênfase excessiva na autoconsciência tem afetado, de modo crescente, toda a comunidade ocidental destes três últimos séculos, e se acha profundamente arraigada em hábitos sociais e individuais. (p. 243)
Lancelot Law Whyte
Negligenciando o Mistério
Nossa mitologia contemporânea da mente nos leva a atribuir excesivo peso e
poder à consciência, e a subestimar e negligenciar nossa faceta inconsciente. Por
definição, não podemos conhecer algo de que não temos consciência. Mas não
temos consciência do fato essencial de que boa parte daquilo que somos é
inconsciente. O encanto cartesiano cega-nos para nossa própria inescrutabilidade.
Queiramos ou não, temos de viver com a apreensão de que nossa vida consciente é
cercada e promovida pelo mistério; de que as percepções de que temos consciência
são lampejos e relâmpagos contra um céu escuro. (pp. 243-244)
A Ilusão de Ponzo
31 LEIBNIZ, G.W., New essays on human understanding.
48
20 A Reconsagração doA Reconsagração doA Reconsagração doA Reconsagração do Inconsciente Inconsciente Inconsciente Inconsciente
Ouça, Shariputra, forma é vazio, vazio é forma, forma não difere de vazio, vazio não difere de forma... Todas as coisas – todas as formas – estão maçadas pelo vazio. Não são nem produzidas, nem destruídas. (p. 260)
O sutra do coração
Forma é a onda, vazio é a água. Assim, ‘forma é vazio, vazio é forma’ é como
‘onda é água, água é onda’... Uma onda do mar tem começo e fim, nascimento e morte. Mas Avalokitesvara nos diz que a onda é vazia. A onda está cheia de água, mas está vazia de um eu separado. Uma onda é uma forma que se tornou possível graças à existência do vento e da água. Se uma onda só vê sua forma, com seu começo e fim, terá medo do nascimento e da morte. Mas se a onda vê que é água, identifica-se com a água, então será emancipada do nascimento e da morte. As ondas nascem e irão morrer, mas a água está livre do nascimento e da morte. (p. 260)
Thich Nhat Hanh
32
Cada momento de experiência tem origem, e se todos temos consciência
disso, ele não tem outra base, outra história, senão o momento consciente que o
precedeu. Devemos ver cada onda como o resultado da onda anterior, e não da
união instantânea de muitas correntes e vagas invisíveis, cada uma fazendo parte
de um sistema oceânico indescritível, e com história e ímpeto próprios. [...] (p. 260)
32 Thich Nhat Hanh, The heart of understanding, Parallax Press: Berkley, CA, 1988.
49
21 A Restauração da SanidadeA Restauração da SanidadeA Restauração da SanidadeA Restauração da Sanidade
Certa vez, Sekito perguntou a seu discípulo Yakusan, “O que está fazendo aqui?” “Não estou fazendo nada”, respondeu este. “Se é assim, você está desperdiçando o seu tempo.” “E desperdiçar o tempo já não é fazer alguma coisa?” foi a resposta de Yakusan. Sekito ainda o aguilhoou. “Você diz que não está fazendo nada; então, quem é esse que não está fazendo nada?” Ao que Yakusan respondeu, “Nem o mais sábio pode responder”.33 (p. 277)
Seja em minha vida cotidiana, seja em minha busca por seu sentido oculto,
sinto-me mais vivo, mais perto da fonte e do significado de minha existência, quando me abro para minha experiência imediata, receptivo a aquilo que ela pode me ensinar, e vulnerável ao poder que tem de mudar o meu ser. Ainda tenho uma profunda confiança nas possibilidades da compreensão. Minhas ações brotam, na verdade, de mim, mas não tenho nenhuma ideia antecipada daquilo que irei manifestar. Como a água que brota de uma nascente, sou novo a cada instante, surgindo milagrosamente de alguma fonte escondida no fundo da base de meu ser (p. 277)
Robin Skynner34
Os místicos descrevem um estado de graça no qual certas premissas
habituais são removidas da percepção, e no qual a mente-cérebro reverte a um
modus operandi mais natural, com as prioridades básicas intuídas mais claramente
e a ‘ação correta’ computada mais facilmente. Um dos dualismos que pode ser
abandonado nesse estado é aquele que divorcia a consciência de sua plataforma
inconsciente, levando-nos a atribuir um peso pouco saudável a evidências que
casualmente estejam na consciência. Os cientistas cognitivos nos dizem que o
senso direto dos arredores desconhecidos da consciência, típico dos místicos, é, na
verdade, uma insinuação da função básica da mente-cérebro. (pp. 277-278)
Psicoterapia
Um dos mais novos mitos do mundo ocidental sugeria, nesse ponto, que
procurássemos um psicoterapeuta competente. Contudo, precisamos ser um tanto
cautelosos antes de aceitar essa ideia. A terapia pode serum instrumento valioso na
33 SUZUKI, op. cit., p. 75. Citado em GOUVEIA, Koguen, Portais búdicos – o caminho na natureza da mente, op. cit.
50
cura dos ferimentos debilitadores da mente, mas, para lidar com o Sistema do Eu
como um todo, talvez não seja o melhor, ou o único, caminho a seguir. (p. 278)
34 SKYNNER, Robin, “Psychotherapy and spiritual tradition”, in John Welwood (Ed.), Awakening the heart, op. cit.
51
ANEXOANEXOANEXOANEXO
O Conceito Universal da Forma & Disciplina
1) A Disciplina (Forma) é o fundamento do Universo. Até o caos e os processos
aleatórios são ordenados na mais imaculada Disciplina Formatada; têm um propósito
origem. O carma dos seres segue uma ordem ou desordem milimetricamente
disciplinada numa Forma.
2) O conceito fundamental da Disciplina aponta que TUDO, em qualquer parte do
Universo (inclusive o vazio e o mistério) é planificado por uma forma. Por isso, e
somente por isso, as causas existem. Ao nos arrastarmos nos moldes da preguiça ou
negligência, o sofrimento toma sua forma. É preciso agir, sempre.
3) Agora, eu pergunto: se o mistério está aqui, como pode ele se esconder?
4) Não é possível chegar à não dualidade, ou ‘vazio’, sem o percurso da forma.
5) Este Universo no qual habitamos é, em sua maior parte, ‘vazio’, constituído de
espaços vazios (vácuo) nos quais as formas são preenchidas. E poucos param para
pensar se haverá um ‘Universo Denso’, lacrado e fechado constituído por alguma
massa repleta. O normal é nos acostumarmos com o que temos. O normal é pensar
em adquirir uma casa e um carro – claro, isso é necessário em um certo plano
retardado. É anormal não seguir ‘A Onda’.
6) Assim como a mente ‘cria e controla’ as circunstâncias da vida, é inconcebível a
criação e o controle do infinito Universo sem a presença de uma Mente Una, sem
início ou fim, a qual não se passa por acessível aos nossos míseros sentidos,
manipulados pelo ridículo ideal de consumo.
7) Se existe o apogeu de algo desprezível neste mundo, é seguir alguma verdade sem
que ela seja submetida ao pleno questionamento. Em virtude disso, repetir máximas
bordadas por sábios equivale a comprar um diploma de neurocirugião e receber um
paciente no mesmo dia.
8) Infelizmente, sutra algum é capaz de produzir um Iluminado. Ele/Ela terá de agir;
transcender por si mesmo(a) – com ou sem um Mestre. Os sutras contêm alguma
verdade, mas não passam de conceitos, os quais podem limitar ainda mais o que já
está se arrastando.
GOUVEIA, Koguen Junho de 2014