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MU 460 HISTRIA DA MSICA II
Texto: Nascimento e evoluo do discurso musical
In Harnoncourt, Nikolaus.O Discurso dos Sons.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988p. 164-174
Por volta de 1600, ou seja, mais ou menos na metade da vida de Monteverdi, deu-
se na msica ocidental uma reviravolta decisiva como nunca at ento se vira e como
nunca se tornar a ver. At aquela poca a msico praticamente no passava de poesia
posta em msica; escreviam-se poemas, motetos ou madrigais, sacros ou profanos, nos
quais o clima geral da poesia servia de fundamento expresso musical. No se tratava
absolutamente de transmitir o texto como palavra declamada ao ouvinte, mas antes a
sua mensagem; por conseguinte, era a atmosfera da poesia que inspirava o compositor
escrever sua obra. Assim, por exemplo, um poema de amor as palavras de um
enamorado era composto numa forma madrigalesca a vrias vozes e musicado to
abstratamente que a pessoa que falava se tornava uma personagem artificial. Ningum
pensava numa mensagem realista ou num dilogo; por outro lado, o texto tambm era
quase incompreensvel, pois as diversas vozes eram escritas em forma de imitao,
embora palavras diferentes fossem cantadas simultaneamente Estas composies a
vrias vozes, sem texto, formavam tambm o rico repertrio da msica instrumenta; elas
eram simplesmente adaptadas pelos prprios msicos aos seus instrumentos. Esta
msica vocal e instrumental constitua no s a base de toda a vida musical como
tambm formava todo o repertrio existente. Era uma situao acabada, sem outras
possibilidades de desenvolvimento vista e que poderia prolongar-se eternamente.
Mas subitamente, como que vinda dos cus, surgiu a idia de fazer-se da prpria
palavra, do dilogo, o fundamento da msica. Tal msica deveria tornar-se dramtica,
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pois um dilogo j em si dramtico; soa contedo argumento persuaso,
problematizao, negao, conflito. O que contribuiu para o nascimento da idia, como
j era de se esperar nesta poca,foi a Antigidade A paixo pela Antiguidade levou
concepo de que o drama grego no era falado, mas cantado. Nos crculos dos
apaixonados pela Antiguidade procurou-se reviver as tragdias gregas comtoda a
autenticidade. Os mais conhecidos destes crculos foi a camerata Fiorentina dos Corsi e
Bardi, nos quais Caccini, Peri e Galilei (o pai di astrnomo atuavam como msicos. As
primeiras peras de Peri e Caccini, no h como negar, tem estupendoslibretti, mas do
ponto de vista puramente musical so medocres; contudo as idias, que nelas se
achavam desenvolvidas levaram a um msica completamente nova Nuove Musichee
(ttulo da obra didtica e polmica de Caccini) msica barroca, msica eloqente.
O que encontramos a respeito de Caccini na maioria dos dicionrios est
infelizmente bem distante daquilo que ele prprioescreveu. Hoje ele na maior parte
considerado o mestre do barroco ornamentado; mas olhando-se seus escritos, que so
muito mais interessantes do que aquilo que foi escrito sobre ele, encontra-se uma
descrio dos novos meios de expresso; dentre estes uma esplndida magnificnciacnica o que lhe parece mais importante. Coloraturas e ornamentos de todos os tipos
so aconselhados apenas onde reforam a expresso da palavra, ou ento para esconder
os parcos recursos cnicos de um cantor (Os ornamentosno foram inventados porque
eramindispensveispara se cantar bem, mas... para agradar aos ouvidos quando no se
pode pr ardor e brilho numa execuo...). . O que h de essencialmente novo na idia
o seguinte: um texto, quase sempre um dilogo, musicado a uma voz,
fundamentalmente para seguir com preciso e realismo o ritmo e a melodia da palavra.
Tratava-se unicamente de dar o mximo de compreenso ao texto e interpret-lo to
expressivamente quanto possvel. A msica deveria permanecer em segundo plano, sua
funo era a de compor um discreto suporte harmnico. Tudo o que se tinha at ento
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considerado como propriamente musical era rejeitado como diverso.Somente em
passagens de expresso essencialmente intensa que o contedo verbal era sublinhado
por uma interpretao musical e harmnica correspondente, muitas vezes
extremamente surpreendente.Nesta nova forma, claro, quase no h repetio de
palavras, ao contrrio do madrigal, onde as palavras e grupos de palavras so quase
sempre repetidos. Num dilogo real repetem-se palavras apenas quando se supe que o
interlocutor no as compreendeu ou ento quando se quer dar a elas, atravs da re-
petio, um peso especial e assim era feito na nova msica, denominada monodia.
Galileu, colega de Caccini, explica exatamente como o compositor moderno deve
proceder: que ele escute como falam entre si as pessoas de diferentes condies sociais em qualquer situao da vida como se desenvolvem e se articulam as conversas ou
discusses entre pessoas de alto e baixo nvel! e depois, que ele ponha tudo isso em
msica. (Era, alis, exatamente assim que se imaginava naquela poca o modo como os
originalmente foram representados os dramas gregos.) Significativamente, este novo
estilo no foi elaborado pelos compositores de formao clssica, mas por diletantes e
cantores.Idias deste tipo eram naquele tempo absolutamente novas sem dvida alguma
chocantes. Para compreender a que ponto tudo isto era novo, precisamos tentar nos
transportar quele tempo: suponhamos que estivssemos com 30 anos de idade e nunca
tivssemos ouvido outra msica a no ser os maravilhosos madrigais de Marenzio,do
jovem Monteverdi e dos compositores franco-flamengos, uma complicada msica
polifnica e altamente esotrica. E eis que de repente surge algum dizendo do que a
maneira como as pessoasfalamj a prpria msica, a verdadeira msica.Isto
naturalmente s foi possvel na Itlia onde a lngua soa de fato melodramtica; basta
escutar as pessoas numa praa de mercado em alguma cidade italiana para
compreender o que Caccini e Galilei queriam dizer; ou escutar a defesa de umprocesso
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num tribunal - s faltam ento alguns acordes no alade ou no cravo e a monodia, o
recitativo est pronto. Para os aficionados musicais j mencionados, que foram
arrancadas de seus sonhos madrigalescos por estas monodias, isto deve ter sido um
choque, muito mais forte do que aquele produzido pela msica atonal h 80 anos.
Caccini diz: o contraponto obra do diabo, ele destri a inteligibilidade. O
acompanhamento deve ser simples, a ponto de no ser escutado; as dissonncias s
devem ser utilizadas sobre determinadas palavras, para enfatizar uma expresso verbal.
Tudo o que Caccini diz em seu livro Nuove Musiche a respeito da linguagem da melodia
falada e do acompanhamento decisivo para o surgimento da pera, do recitativo e at
mesmo da sonata. Caccini distingue trs tipos de canto falado: recitar cantando, cantarrecitando e cantare. O primeiro corresponde ao recitativo habitual e est, portanto, mais
prximo da fala que do canto, sendo assim, muito naturalista. O cantar recitando, o
canto recitado, ou antes, declamado, enfatiza um pouco mais o papel do canto e de certo
modo corresponde ao recitativo accompagnato. O terceiro tipo corresponde ria .
Precisamos deixar bem claro que tudo isto era completamente novo, tal como
uma exploso a partir do nada. Na evoluo de nossas artes raroacontecer uma coisaabsolutamente nova que no tenha nascido de algo j existente. (Acho notvel que esta
novidade tenha se originado da inteno de reconstituirfielmente algo muito antigo, a
msica dos gregos.) L estava o que se tornou fundamento da evoluo musical dos dois
sculos seguintes, que eu gostaria de chamar msica eloqente.
Mas, a idia sensacional do canto falado s se tornou realmente interessante para
ns, a msicos e para msicos, depois que caiu nas mos de um gnio musical.
Monteverdi foi o maior compositor de madrigais de seu tempo, j antes deste
desenvolvimento ele dominava a arte do contraponto em seus mnimos detalhes. Com
sua enorme competncia de compositor abordou o domnio primitivo da declamao
musical, nele provocando uma verdadeira revoluo, inclusive musical. Naturalmente
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Monteverdi no podia aceitar integralmente as teorias e os dogmas do crculo de
Caccini. Como msico autntico que era jamais poderia dizer: o contraponto obra
diabo, ou a msica no deve ser interessante para no desviar ateno do texto.
Monteverdi se deixou inspirar pelas novas idias, mas sem aceitar-lhes os dogmas, pois
estava sempre procura de novas formas de expresso. Desde a sua primeira tentativa
no campo da pera, a partir de aproximadamente 1605. Monteverdi comeou elaborar
seu vocabulrio dramtico-musical de forma sistemtica. Em 1607 Orfeo, noano
seguinte Ariana (da qual s restou famosoLamento)a partir da, praticamente cada
pequena pea a uma ou duas vozes, cada dueto ou trio que escreveu uma espcie de
ensaio, uma pequena cena de pera, uma espcie de mini-pera. Ele progride assim demaneira sistemtica at chegar s suas grandes peras. E o prprio Monteverdi que
nos ensina at que ponto avanava de maneira consciente. Era um homem de grande
cultura, amigo de Tasso e que conhecia os filsofos, tanto os clssicos como aqueles de
seu tempo. Sabia exatamente por que fazia tal coisa: com o maior cuidado, procurava
uma expresso musical para cada sentimento, para cada emoo humana, para cada
palavra, para cada frmula de linguagem.Um exemplo clebre desta pesquisa sistemtica nos fornecido pela cena do
Combattimento di Tancredi e Clorinda,composta e 1624.Monteverdi, com o maior
cuidado, escolheu para ela um texto meio do qual pudesse exprimir a violncia do
sentimento de clera. .. . Entretanto, diz ele, como no consegui encontrar na msica
dos compositores antigos nenhum exemplo capaz de exprimir o estado de alma
agitado... e como sei que o que mais emociona a nossa alma so os contrastes, objetivo
que a boa msica deve tambm procurar atingir... comecei a pesquisar com todas as mi-
nhas foras a forma de expresso agitada... encontrei na descrio do combate entre
Tancredo e Clorinda os contrastes que me pareceram mais apropriados para screm
traduzidos em msica: a guerra, a prece, a morte.
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Mas eu, na qualidade de msico, me pergunto ento: seria isso verdade, seria isso
realmente possvel? Ento a msica anterior a 1623 no tinha nenhum meio que fosse
capaz de exprimir a agitao extrema? Ser que at aquela ocasio ela ainda no havia
tido necessidade de tal coisa? Pois, aquilo de que se tem necessidade, naturalmente,
existe. Ora, o que se passava era o seguinte: na arte lrica do madrigal, no existe
nenhuma exploso de clera, nenhum estado de agitao extrema, nem no sentido
positivo nem no negativo, portanto ela no precisava de um meio de expresso para
traduzir tais estados. J na arte dramtica, este um recursoabsolutamenteindispensvel.
E assim Monteverdi, abrindo o seu Plato, a descobriu as notas repetidas: explorei,
ento, prossegue ele, ostempirpidos, aqueles que nascem num agitado clima deguerra, opinio com que concordam os melhores filsofos.., e encontrei o efeito que
procurava dividindo a semibreve em semicolcheias que se ataca. separadamente, sob um
texto que exprime a clera.
Esta possibilidade que Monteverdi descobriu para exprimir o sentimento de
agitao extrema, ele a chamoustile concitato.As notas repetidas passaram, doravante, a
ser empregadas como um meio de expresso a e oconcitatose tornou um procedimentoartstico corrente. At os sculos XVII e XVIII ele continuou sendo usado no sentido
descrito por Monteverdi, tanto o termo como a coisa designada. Encontra-se este gnero
de notas repetidas em Haendel e at mesmo ainda em Mozart. Monteverdi conta que,
inicialmente repugnava aos msicos o fato de tocar 16 vezes a mesma nota num nico
compasso. Sentiam-se verdadeiramente ultrajados por se exigir deles uma coisa
musicalmente to absurda. Alm do mais, as notas repetidas, num estilo que se pretenda
rigoroso, so proibidas, Foi preciso que ele lhes explicasse que elas tinham uma
significao extramusical, um sentido dramtico, corporal.
Com oconcitato, entrou na msica algo que ainda no existia: o elemento corporal,
puramente dramtico, que nos leva agora abordar um importante aspecto do drama
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musical. No se pode representar uma situao dramtica, um dilogo, sem ao. Aqui,
so necessrios a mmica, os gestos e o movimento do corpo inteiro. Fala-se com todas as
fibras do corpo. Da mesma forma que a linguagem sonora dramtica, descoberta por
Monteverdi, esclarece e reala o contedo expressivo da palavra, ei a comporta tambm
o movimento corporal. Monteverdi foi, por conseguinte, o primeiro grande dramaturgo
da msica a integrar o gesto composio, com isto prenunciando um elemento
essencial das futuras encenaes Para, mim, s existe de fato o drama musical quando
todos estes elementos aqui citados, inclusive o corporal, se acham reunidos.
H nos textos das peras e dos madrigais certas palavras de estmulo que
retornam constantemente. Elas esto sempre ligadas a determinadas figuras, sempre asmesmas De modo que, aos poucos, foi-se formando a partir das teorias de Caccini e seu
grupo, sobretudo a partir das inovaes de Monteverdi, um repertrio de figuras
musicais Monteverdi conseguiu tal mestria neste campo que ele consegue, por meio de
figuras diversas, dar s mesmas palavras uma expresso diferente, de sorte que a.
mesma palavra varia cada vez, qualquer coisa no seu sentido, de acordo com o contexto.
Os compositores codificaram, assim, em larga medida, a interpretao da linguagem.Somente em Mozart e muito mais tarde em Verdi que provavelmente encontramos algo
semelhante. Sobre a base das obras desta primeira gerao de compositores de peras
criou-se, por fim, um imenso vocabulrio de figuras de sentido determinado e que eram
familiares a todo ouvinte culto. Foi a partir da que se pde chegar ao corolrio, isto ,
utilizar-se tambm este repertrio de figuras independentemente, sem qualquer texto:
graas somente a figura musical, o ouvinte fana a associao com a linguagem. Esta
transposio de um vocabulrio musical, inicialmente vocal, para a msica instrumental
muito importante para que se possa compreender e interpretar a msica barroca. Ela
tem suas razes na idia inicial do canto falado o qual foi estilizado e transformado
numa grande arte por Monteverdi.
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As relaes entre msica instrumental e vocal tornam-se bastante compreensveis
a partir deste fato. Aqui igualmente tm suas razes os curiosos dilogos da msica
pura, as sonatas, os concerti dos sculos XVII e XVIII, e at mesmo as sinfonias, j em
plena poca clssica. Estas obras foram, com efeito, concebidas a partir da linguagem e
frequentemente se inspiram em programas retricos, tanto concretos como abstratos.
O repertrio de figuras da monodia e do recitativo nesse meio-tempo se tornou
to independente, que por volta de 1700 j se via nele um repertrio de figuras para a
msica instrumental. Este repertrio de figuras, doravante instrumentais, Bach voltou a
aplic-lo ao canto. (Talvez por essa razo muitos cantores achem Bach to difcil de
cantar, pois ele escreve cm um estilo demasiado instrumental.) Quando se examina asfiguras isoladas na msica de Bach, facilmente se pode reconhecer a sua origem como
figuras dc linguagem. Trata-se aqui, na verdade, de uma evoluo, de uma franquia
destas figuras descobertas na monodia, no canto falado solista. Em Bach, os
componentes retricos so, contudo, bastante acentuados, e conscientemente
fundamentados nas teorias clssicas da retrica. Bach havia estudado Quintiliano e
construiu suas obras a partir de suas regras e de uma maneira to precisa, que sepode encontr-las nas suas composies a posteriori. Para tal, ele utilizava um sculo
depois de Monteverdi o elaborado vocabulrio do discurso sonoro oriundo da Itlia e
transposto lngua alem, vale dizer, com acentos consideravelmente mais incisivos. (Os
latinos consideravam ainda, nesta poca, a sonoridade da lngua alem como dura e
ladrada, com acentos exageradamente marcados.) O que particularmente surpreende
em Bach que ele tenha introduzido e incorporado todo o arsenal do contraponto aos
princpios retricos.
Na primeira liquidao musical, que provocou a descoberta da monodia, a
msica como tal poderia ter sido reduzida a nada caso se tivesse seguido os dogmas dos
florentinos e rejeitado o madrigal e o contraponto, coisa, alis, perfeitamente possvel
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por volta de 1600. Naturalmente, a coisa no podia ficar por a e o prprio Monteverdi
no abriu mo de compor madrigais polifnicos, aps ter travado conhecimento com o
novo estilo de monodia. Surge ento em sua obra uma diversidade estilstica pouco
habitual, que se imps mesmo no seio das composies mais extensas. Nas duas peras
da fase final, se encontram os trs tipos de escrita recitao cantada, canto recitado e
canto propriamente dito todos eles nitidamente separados, mas no terceiro tipo de
escrita, o canto, ele volta algumas vezes a utilizar elementos contrapontsticos da antiga
arte dos madrigais.
Na msica de Bach, esta arte do contraponto, batizada de prima pratica por
oposio monodia dramtica moderna, aseconda pratica, voltou a ganhar tanto terreno,que passaram a ser novamente aceitos a fuga e os estilos imitativos, mesmo na msica
vocal profana. Encontra-se, novamente, ento, como nos franco-flamengos e nos
italianos anteriores a 1600, peas nas quais os textos so cantados no simultaneamente,
mas sobrepondo-se uns aos outros naturalmente que cada voz sobre as figuras
adequadas. O vocabulrio musical, o drama musical so agora expressos de outra forma,
pois na partitura polifnica um elemento suplementar de expresso o mundocomplexo do contraponto empregado de forma dramtica e retrica.
prxima etapa deste desenvolvimento conduz a Mozart. Ele dispe certamente,
tal como Monteverdi, de todo o saber tcnico acumulado at ento, do conhecimento
pleno da arte do contraponto elaborado durante a poca barroca. No perodo que o
separa de Bach os rumos musicais se haviam desviado completamente da complicada
msica do barroco tardio, compreensvel apenas por alguns iniciados e entendidos, para
se voltarem na direo de uma msica nova, natural, que devia ser simples, a ponto de
que qualquer um pudesse compreend-la, mesmo que nunca tivesse escutado msica
em toda a sua vida. Estes objetivos, que esto na base da nova msica de sentimento,
posterior a Bach, foram expressamente recusados por Mozart, que qualificava de
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Papageno todo ouvinte que se contentava em achar uma coisa bela, sem saber porque.
Ele conferia a esta palavra um sentido extraordinariamente pejorativo e enfatizava que
ele prprio escrevia unicamente para pessoas entendidas. Mozart dava muito valor ao
fato de ser compreendido pelos verdadeiros conhecedores e presumia que seus
ouvintes tivessem conhecimentos musicais e boa cultura geral; e como cada vez mais,
justamente, na rea da msica, as pessoas mesmo sem a menor formao se
achavam no direito de dar opinies, isso volta e meia o levava a ter grandes acessos de
raiva. Assim, na peraIdomeneo, por exemplo, seu pai temia que ele se dirigisse somente
aos conhecedores: . . - Eu te recomendo, no teu trabalho, no pensar somente no
pblico musical, mas tambm naquele no musical. . . no esqueas, portanto, o que sechamapopolare, este tambm tem grandes orelhas (de asno) para serem afagadas
(dezembro de 1780).
Seja como for, Mozart dispunha de todas as ferramentas musicais do final do
Barroco; no entanto, no podendo tomar a forma, j algo esclerosada, da pera sria
italiana para o drama musical que tinha em mente compor, foi buscar alguns
ingredientes da pera francesa, onde o elemento musical sempre esteve subordinado linguagem (nesta no havia praticamente ria) e, assim, retorna de modo no intencional
origem do drama musical. A subordinao ao texto era muito mais acentuada na pera
francesa do sculo XVIII do que na italiana, cuja atrao principal residia em imensas
rias, de contedo estereotipado (a ria de vingana, a ria de cime, e, j quase
chegando ao final do espetculo, a ria do amor ou ria do tudo est bem de novo) e
de presena infalvel em todas as peras, embora pudessem substituir-se mutuamente,
coisa, alis, que se estava sempre fazendo. Na pera francesa, as formas antigas ainda
sobreviviam: recitativo, anoso e arieta, o que a tornava uma base muito mais apropriada
para qualquer reforma dramtica do que a opera seria italiana. A teoria desta reforma
pode ser encontrada mais claramente na obra de Gluck, porm na prtica Mozart
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quem concretiza as mudanas no drama musical.
Encontramos em Mozart os mesmos princpios que em Monteverdi. Para ele, o
importante sempre o drama, o dilogo, a palavra isolada, o conflito e sua resoluo e
no uma poesia composta como um todo. Paradoxalmente, isto no se aplica no seu caso
somente pera, mas tambm msica instrumental, que sempre dramtica. Na
gerao seguinte, este elemento dramtico, eloqente, aos poucos se perde da msica.
As razes para tal como j o dissemos tm a ver com a Revoluo Francesa e suas
conseqncias culturais que conduziram situao na qual a msica foi posta a servio
de idias sociopolticas. O ouvinte deixava de ser, doravante, uni interlocutor, para
tornar-se um desfrutador inundado e inebriado de sons.Em minha opinio, exatamente a que se encontram as razes da nossa total
incapacidade de compreender a msica pr-revolucionria. Penso que pouco
compreendemos tanto Mozart como Monteverdi, quando os reduzimos unicamente ao
belo que o que geralmente acontece. Ns buscamos Mozart pelo prazer, para nos
deixar enfeitiar pelo belo. Quando se quer descrever belas execues mozartianas.
comum ouvir-se a expresso felicidade mozartiana; quase uma frmulaestereotipada. Estudando-se, contudo, mais a fundo, as obras nas quais ela empregada,
pergunta-se:por que felicidade mozartiana? Os contemporneos descrevem a msica
de Mozart como sendo extremamente contrastada, penetrante, perturbadora e
desconcertante; exatamente neste ponto, por sinal, que a crtica da poca a questiona.
Como pode ento acontecer que se tenha reduzido esta msica apenas felicidade, no
prazer esttico? Pouco depois de haver lido um artigo a respeito de uma dessas
execues de felicidade mozartiana, trabalhei com meus alunos uma sonata para
violino de Mozart, escrita sobre uma melodia francesa. A pea foi inicialmente muito
bem tocada, eu diria inclusive que a violinista conseguira transmitir a tal felicidade
mozartiana. Trabalhando mais a sonata, observamos ento que esta msica penetrava
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sob a pele, que ela no s encerrava a felicidade mozartiana, como tambm continha
toda a gama dos sentimentos humanos: da felicidade tristeza, at o sofrimento.
Contudo, eu me pergunto muitas vezes se posso realmente recomendar a um
aluno um estudo nesta direo. Pois, se as pessoas forem aos concertos para gozar a
felicidade mozartiana e ao invs disto receberem talvez uma verdade
mozartiana, pode ser que isto v incomod-los, que o ouvinte no esteja querendo saber
desta verdade. Na maior parte das vezes, desejamos ouvir e vivenciar algo determinado,
a tal ponto que j perdemos a atitude de curiosidade do ouvinte; talvez at nem
desejemos mais escutar aquilo que nos dito atravs da msica.
Ser que nossa cultura musical deve reduzir-se quilo que nos proporciona umpouco de beleza e paz aps um dia cheio de trabalho e de preocupaes? Ser que esta
msica no tem mais nada para nos oferecer?
Este , portanto, o quadro em que se situa a msica eloqente e o discurso sonoro
dramtico: nos seus primrdios, com Monteverdi, eles tomam o lugar do sereno mundo
da arte dos madrigais. No seu trmino, aps Mozart, so substitudos amplamente pela
pintura plana do romantismo e do ps-romantismo. A msica eloqente, em forma dedilogo, nunca meramente beleza sonora, ela transbordante de paixo, cheia de
conflitos espirituais, inclusive cruis, mas que quase sempre se resolvem. Certa vez, para
defender-se da acusao de que sua msica no seguia as regras da esttica, que ela no
era suficientemente bela, disse Monteverdi: que possam todos aqueles que
compreendem msica repensar as regras de harmonia e acreditar em mim quando digo
que o compositor moderno s possui averdadecomo princpio diretor.
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