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    MU 460 HISTRIA DA MSICA II

    Texto: Nascimento e evoluo do discurso musical

    In Harnoncourt, Nikolaus.O Discurso dos Sons.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988p. 164-174

    Por volta de 1600, ou seja, mais ou menos na metade da vida de Monteverdi, deu-

    se na msica ocidental uma reviravolta decisiva como nunca at ento se vira e como

    nunca se tornar a ver. At aquela poca a msico praticamente no passava de poesia

    posta em msica; escreviam-se poemas, motetos ou madrigais, sacros ou profanos, nos

    quais o clima geral da poesia servia de fundamento expresso musical. No se tratava

    absolutamente de transmitir o texto como palavra declamada ao ouvinte, mas antes a

    sua mensagem; por conseguinte, era a atmosfera da poesia que inspirava o compositor

    escrever sua obra. Assim, por exemplo, um poema de amor as palavras de um

    enamorado era composto numa forma madrigalesca a vrias vozes e musicado to

    abstratamente que a pessoa que falava se tornava uma personagem artificial. Ningum

    pensava numa mensagem realista ou num dilogo; por outro lado, o texto tambm era

    quase incompreensvel, pois as diversas vozes eram escritas em forma de imitao,

    embora palavras diferentes fossem cantadas simultaneamente Estas composies a

    vrias vozes, sem texto, formavam tambm o rico repertrio da msica instrumenta; elas

    eram simplesmente adaptadas pelos prprios msicos aos seus instrumentos. Esta

    msica vocal e instrumental constitua no s a base de toda a vida musical como

    tambm formava todo o repertrio existente. Era uma situao acabada, sem outras

    possibilidades de desenvolvimento vista e que poderia prolongar-se eternamente.

    Mas subitamente, como que vinda dos cus, surgiu a idia de fazer-se da prpria

    palavra, do dilogo, o fundamento da msica. Tal msica deveria tornar-se dramtica,

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    pois um dilogo j em si dramtico; soa contedo argumento persuaso,

    problematizao, negao, conflito. O que contribuiu para o nascimento da idia, como

    j era de se esperar nesta poca,foi a Antigidade A paixo pela Antiguidade levou

    concepo de que o drama grego no era falado, mas cantado. Nos crculos dos

    apaixonados pela Antiguidade procurou-se reviver as tragdias gregas comtoda a

    autenticidade. Os mais conhecidos destes crculos foi a camerata Fiorentina dos Corsi e

    Bardi, nos quais Caccini, Peri e Galilei (o pai di astrnomo atuavam como msicos. As

    primeiras peras de Peri e Caccini, no h como negar, tem estupendoslibretti, mas do

    ponto de vista puramente musical so medocres; contudo as idias, que nelas se

    achavam desenvolvidas levaram a um msica completamente nova Nuove Musichee

    (ttulo da obra didtica e polmica de Caccini) msica barroca, msica eloqente.

    O que encontramos a respeito de Caccini na maioria dos dicionrios est

    infelizmente bem distante daquilo que ele prprioescreveu. Hoje ele na maior parte

    considerado o mestre do barroco ornamentado; mas olhando-se seus escritos, que so

    muito mais interessantes do que aquilo que foi escrito sobre ele, encontra-se uma

    descrio dos novos meios de expresso; dentre estes uma esplndida magnificnciacnica o que lhe parece mais importante. Coloraturas e ornamentos de todos os tipos

    so aconselhados apenas onde reforam a expresso da palavra, ou ento para esconder

    os parcos recursos cnicos de um cantor (Os ornamentosno foram inventados porque

    eramindispensveispara se cantar bem, mas... para agradar aos ouvidos quando no se

    pode pr ardor e brilho numa execuo...). . O que h de essencialmente novo na idia

    o seguinte: um texto, quase sempre um dilogo, musicado a uma voz,

    fundamentalmente para seguir com preciso e realismo o ritmo e a melodia da palavra.

    Tratava-se unicamente de dar o mximo de compreenso ao texto e interpret-lo to

    expressivamente quanto possvel. A msica deveria permanecer em segundo plano, sua

    funo era a de compor um discreto suporte harmnico. Tudo o que se tinha at ento

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    considerado como propriamente musical era rejeitado como diverso.Somente em

    passagens de expresso essencialmente intensa que o contedo verbal era sublinhado

    por uma interpretao musical e harmnica correspondente, muitas vezes

    extremamente surpreendente.Nesta nova forma, claro, quase no h repetio de

    palavras, ao contrrio do madrigal, onde as palavras e grupos de palavras so quase

    sempre repetidos. Num dilogo real repetem-se palavras apenas quando se supe que o

    interlocutor no as compreendeu ou ento quando se quer dar a elas, atravs da re-

    petio, um peso especial e assim era feito na nova msica, denominada monodia.

    Galileu, colega de Caccini, explica exatamente como o compositor moderno deve

    proceder: que ele escute como falam entre si as pessoas de diferentes condies sociais em qualquer situao da vida como se desenvolvem e se articulam as conversas ou

    discusses entre pessoas de alto e baixo nvel! e depois, que ele ponha tudo isso em

    msica. (Era, alis, exatamente assim que se imaginava naquela poca o modo como os

    originalmente foram representados os dramas gregos.) Significativamente, este novo

    estilo no foi elaborado pelos compositores de formao clssica, mas por diletantes e

    cantores.Idias deste tipo eram naquele tempo absolutamente novas sem dvida alguma

    chocantes. Para compreender a que ponto tudo isto era novo, precisamos tentar nos

    transportar quele tempo: suponhamos que estivssemos com 30 anos de idade e nunca

    tivssemos ouvido outra msica a no ser os maravilhosos madrigais de Marenzio,do

    jovem Monteverdi e dos compositores franco-flamengos, uma complicada msica

    polifnica e altamente esotrica. E eis que de repente surge algum dizendo do que a

    maneira como as pessoasfalamj a prpria msica, a verdadeira msica.Isto

    naturalmente s foi possvel na Itlia onde a lngua soa de fato melodramtica; basta

    escutar as pessoas numa praa de mercado em alguma cidade italiana para

    compreender o que Caccini e Galilei queriam dizer; ou escutar a defesa de umprocesso

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    num tribunal - s faltam ento alguns acordes no alade ou no cravo e a monodia, o

    recitativo est pronto. Para os aficionados musicais j mencionados, que foram

    arrancadas de seus sonhos madrigalescos por estas monodias, isto deve ter sido um

    choque, muito mais forte do que aquele produzido pela msica atonal h 80 anos.

    Caccini diz: o contraponto obra do diabo, ele destri a inteligibilidade. O

    acompanhamento deve ser simples, a ponto de no ser escutado; as dissonncias s

    devem ser utilizadas sobre determinadas palavras, para enfatizar uma expresso verbal.

    Tudo o que Caccini diz em seu livro Nuove Musiche a respeito da linguagem da melodia

    falada e do acompanhamento decisivo para o surgimento da pera, do recitativo e at

    mesmo da sonata. Caccini distingue trs tipos de canto falado: recitar cantando, cantarrecitando e cantare. O primeiro corresponde ao recitativo habitual e est, portanto, mais

    prximo da fala que do canto, sendo assim, muito naturalista. O cantar recitando, o

    canto recitado, ou antes, declamado, enfatiza um pouco mais o papel do canto e de certo

    modo corresponde ao recitativo accompagnato. O terceiro tipo corresponde ria .

    Precisamos deixar bem claro que tudo isto era completamente novo, tal como

    uma exploso a partir do nada. Na evoluo de nossas artes raroacontecer uma coisaabsolutamente nova que no tenha nascido de algo j existente. (Acho notvel que esta

    novidade tenha se originado da inteno de reconstituirfielmente algo muito antigo, a

    msica dos gregos.) L estava o que se tornou fundamento da evoluo musical dos dois

    sculos seguintes, que eu gostaria de chamar msica eloqente.

    Mas, a idia sensacional do canto falado s se tornou realmente interessante para

    ns, a msicos e para msicos, depois que caiu nas mos de um gnio musical.

    Monteverdi foi o maior compositor de madrigais de seu tempo, j antes deste

    desenvolvimento ele dominava a arte do contraponto em seus mnimos detalhes. Com

    sua enorme competncia de compositor abordou o domnio primitivo da declamao

    musical, nele provocando uma verdadeira revoluo, inclusive musical. Naturalmente

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    Monteverdi no podia aceitar integralmente as teorias e os dogmas do crculo de

    Caccini. Como msico autntico que era jamais poderia dizer: o contraponto obra

    diabo, ou a msica no deve ser interessante para no desviar ateno do texto.

    Monteverdi se deixou inspirar pelas novas idias, mas sem aceitar-lhes os dogmas, pois

    estava sempre procura de novas formas de expresso. Desde a sua primeira tentativa

    no campo da pera, a partir de aproximadamente 1605. Monteverdi comeou elaborar

    seu vocabulrio dramtico-musical de forma sistemtica. Em 1607 Orfeo, noano

    seguinte Ariana (da qual s restou famosoLamento)a partir da, praticamente cada

    pequena pea a uma ou duas vozes, cada dueto ou trio que escreveu uma espcie de

    ensaio, uma pequena cena de pera, uma espcie de mini-pera. Ele progride assim demaneira sistemtica at chegar s suas grandes peras. E o prprio Monteverdi que

    nos ensina at que ponto avanava de maneira consciente. Era um homem de grande

    cultura, amigo de Tasso e que conhecia os filsofos, tanto os clssicos como aqueles de

    seu tempo. Sabia exatamente por que fazia tal coisa: com o maior cuidado, procurava

    uma expresso musical para cada sentimento, para cada emoo humana, para cada

    palavra, para cada frmula de linguagem.Um exemplo clebre desta pesquisa sistemtica nos fornecido pela cena do

    Combattimento di Tancredi e Clorinda,composta e 1624.Monteverdi, com o maior

    cuidado, escolheu para ela um texto meio do qual pudesse exprimir a violncia do

    sentimento de clera. .. . Entretanto, diz ele, como no consegui encontrar na msica

    dos compositores antigos nenhum exemplo capaz de exprimir o estado de alma

    agitado... e como sei que o que mais emociona a nossa alma so os contrastes, objetivo

    que a boa msica deve tambm procurar atingir... comecei a pesquisar com todas as mi-

    nhas foras a forma de expresso agitada... encontrei na descrio do combate entre

    Tancredo e Clorinda os contrastes que me pareceram mais apropriados para screm

    traduzidos em msica: a guerra, a prece, a morte.

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    Mas eu, na qualidade de msico, me pergunto ento: seria isso verdade, seria isso

    realmente possvel? Ento a msica anterior a 1623 no tinha nenhum meio que fosse

    capaz de exprimir a agitao extrema? Ser que at aquela ocasio ela ainda no havia

    tido necessidade de tal coisa? Pois, aquilo de que se tem necessidade, naturalmente,

    existe. Ora, o que se passava era o seguinte: na arte lrica do madrigal, no existe

    nenhuma exploso de clera, nenhum estado de agitao extrema, nem no sentido

    positivo nem no negativo, portanto ela no precisava de um meio de expresso para

    traduzir tais estados. J na arte dramtica, este um recursoabsolutamenteindispensvel.

    E assim Monteverdi, abrindo o seu Plato, a descobriu as notas repetidas: explorei,

    ento, prossegue ele, ostempirpidos, aqueles que nascem num agitado clima deguerra, opinio com que concordam os melhores filsofos.., e encontrei o efeito que

    procurava dividindo a semibreve em semicolcheias que se ataca. separadamente, sob um

    texto que exprime a clera.

    Esta possibilidade que Monteverdi descobriu para exprimir o sentimento de

    agitao extrema, ele a chamoustile concitato.As notas repetidas passaram, doravante, a

    ser empregadas como um meio de expresso a e oconcitatose tornou um procedimentoartstico corrente. At os sculos XVII e XVIII ele continuou sendo usado no sentido

    descrito por Monteverdi, tanto o termo como a coisa designada. Encontra-se este gnero

    de notas repetidas em Haendel e at mesmo ainda em Mozart. Monteverdi conta que,

    inicialmente repugnava aos msicos o fato de tocar 16 vezes a mesma nota num nico

    compasso. Sentiam-se verdadeiramente ultrajados por se exigir deles uma coisa

    musicalmente to absurda. Alm do mais, as notas repetidas, num estilo que se pretenda

    rigoroso, so proibidas, Foi preciso que ele lhes explicasse que elas tinham uma

    significao extramusical, um sentido dramtico, corporal.

    Com oconcitato, entrou na msica algo que ainda no existia: o elemento corporal,

    puramente dramtico, que nos leva agora abordar um importante aspecto do drama

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    musical. No se pode representar uma situao dramtica, um dilogo, sem ao. Aqui,

    so necessrios a mmica, os gestos e o movimento do corpo inteiro. Fala-se com todas as

    fibras do corpo. Da mesma forma que a linguagem sonora dramtica, descoberta por

    Monteverdi, esclarece e reala o contedo expressivo da palavra, ei a comporta tambm

    o movimento corporal. Monteverdi foi, por conseguinte, o primeiro grande dramaturgo

    da msica a integrar o gesto composio, com isto prenunciando um elemento

    essencial das futuras encenaes Para, mim, s existe de fato o drama musical quando

    todos estes elementos aqui citados, inclusive o corporal, se acham reunidos.

    H nos textos das peras e dos madrigais certas palavras de estmulo que

    retornam constantemente. Elas esto sempre ligadas a determinadas figuras, sempre asmesmas De modo que, aos poucos, foi-se formando a partir das teorias de Caccini e seu

    grupo, sobretudo a partir das inovaes de Monteverdi, um repertrio de figuras

    musicais Monteverdi conseguiu tal mestria neste campo que ele consegue, por meio de

    figuras diversas, dar s mesmas palavras uma expresso diferente, de sorte que a.

    mesma palavra varia cada vez, qualquer coisa no seu sentido, de acordo com o contexto.

    Os compositores codificaram, assim, em larga medida, a interpretao da linguagem.Somente em Mozart e muito mais tarde em Verdi que provavelmente encontramos algo

    semelhante. Sobre a base das obras desta primeira gerao de compositores de peras

    criou-se, por fim, um imenso vocabulrio de figuras de sentido determinado e que eram

    familiares a todo ouvinte culto. Foi a partir da que se pde chegar ao corolrio, isto ,

    utilizar-se tambm este repertrio de figuras independentemente, sem qualquer texto:

    graas somente a figura musical, o ouvinte fana a associao com a linguagem. Esta

    transposio de um vocabulrio musical, inicialmente vocal, para a msica instrumental

    muito importante para que se possa compreender e interpretar a msica barroca. Ela

    tem suas razes na idia inicial do canto falado o qual foi estilizado e transformado

    numa grande arte por Monteverdi.

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    As relaes entre msica instrumental e vocal tornam-se bastante compreensveis

    a partir deste fato. Aqui igualmente tm suas razes os curiosos dilogos da msica

    pura, as sonatas, os concerti dos sculos XVII e XVIII, e at mesmo as sinfonias, j em

    plena poca clssica. Estas obras foram, com efeito, concebidas a partir da linguagem e

    frequentemente se inspiram em programas retricos, tanto concretos como abstratos.

    O repertrio de figuras da monodia e do recitativo nesse meio-tempo se tornou

    to independente, que por volta de 1700 j se via nele um repertrio de figuras para a

    msica instrumental. Este repertrio de figuras, doravante instrumentais, Bach voltou a

    aplic-lo ao canto. (Talvez por essa razo muitos cantores achem Bach to difcil de

    cantar, pois ele escreve cm um estilo demasiado instrumental.) Quando se examina asfiguras isoladas na msica de Bach, facilmente se pode reconhecer a sua origem como

    figuras dc linguagem. Trata-se aqui, na verdade, de uma evoluo, de uma franquia

    destas figuras descobertas na monodia, no canto falado solista. Em Bach, os

    componentes retricos so, contudo, bastante acentuados, e conscientemente

    fundamentados nas teorias clssicas da retrica. Bach havia estudado Quintiliano e

    construiu suas obras a partir de suas regras e de uma maneira to precisa, que sepode encontr-las nas suas composies a posteriori. Para tal, ele utilizava um sculo

    depois de Monteverdi o elaborado vocabulrio do discurso sonoro oriundo da Itlia e

    transposto lngua alem, vale dizer, com acentos consideravelmente mais incisivos. (Os

    latinos consideravam ainda, nesta poca, a sonoridade da lngua alem como dura e

    ladrada, com acentos exageradamente marcados.) O que particularmente surpreende

    em Bach que ele tenha introduzido e incorporado todo o arsenal do contraponto aos

    princpios retricos.

    Na primeira liquidao musical, que provocou a descoberta da monodia, a

    msica como tal poderia ter sido reduzida a nada caso se tivesse seguido os dogmas dos

    florentinos e rejeitado o madrigal e o contraponto, coisa, alis, perfeitamente possvel

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    por volta de 1600. Naturalmente, a coisa no podia ficar por a e o prprio Monteverdi

    no abriu mo de compor madrigais polifnicos, aps ter travado conhecimento com o

    novo estilo de monodia. Surge ento em sua obra uma diversidade estilstica pouco

    habitual, que se imps mesmo no seio das composies mais extensas. Nas duas peras

    da fase final, se encontram os trs tipos de escrita recitao cantada, canto recitado e

    canto propriamente dito todos eles nitidamente separados, mas no terceiro tipo de

    escrita, o canto, ele volta algumas vezes a utilizar elementos contrapontsticos da antiga

    arte dos madrigais.

    Na msica de Bach, esta arte do contraponto, batizada de prima pratica por

    oposio monodia dramtica moderna, aseconda pratica, voltou a ganhar tanto terreno,que passaram a ser novamente aceitos a fuga e os estilos imitativos, mesmo na msica

    vocal profana. Encontra-se, novamente, ento, como nos franco-flamengos e nos

    italianos anteriores a 1600, peas nas quais os textos so cantados no simultaneamente,

    mas sobrepondo-se uns aos outros naturalmente que cada voz sobre as figuras

    adequadas. O vocabulrio musical, o drama musical so agora expressos de outra forma,

    pois na partitura polifnica um elemento suplementar de expresso o mundocomplexo do contraponto empregado de forma dramtica e retrica.

    prxima etapa deste desenvolvimento conduz a Mozart. Ele dispe certamente,

    tal como Monteverdi, de todo o saber tcnico acumulado at ento, do conhecimento

    pleno da arte do contraponto elaborado durante a poca barroca. No perodo que o

    separa de Bach os rumos musicais se haviam desviado completamente da complicada

    msica do barroco tardio, compreensvel apenas por alguns iniciados e entendidos, para

    se voltarem na direo de uma msica nova, natural, que devia ser simples, a ponto de

    que qualquer um pudesse compreend-la, mesmo que nunca tivesse escutado msica

    em toda a sua vida. Estes objetivos, que esto na base da nova msica de sentimento,

    posterior a Bach, foram expressamente recusados por Mozart, que qualificava de

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    Papageno todo ouvinte que se contentava em achar uma coisa bela, sem saber porque.

    Ele conferia a esta palavra um sentido extraordinariamente pejorativo e enfatizava que

    ele prprio escrevia unicamente para pessoas entendidas. Mozart dava muito valor ao

    fato de ser compreendido pelos verdadeiros conhecedores e presumia que seus

    ouvintes tivessem conhecimentos musicais e boa cultura geral; e como cada vez mais,

    justamente, na rea da msica, as pessoas mesmo sem a menor formao se

    achavam no direito de dar opinies, isso volta e meia o levava a ter grandes acessos de

    raiva. Assim, na peraIdomeneo, por exemplo, seu pai temia que ele se dirigisse somente

    aos conhecedores: . . - Eu te recomendo, no teu trabalho, no pensar somente no

    pblico musical, mas tambm naquele no musical. . . no esqueas, portanto, o que sechamapopolare, este tambm tem grandes orelhas (de asno) para serem afagadas

    (dezembro de 1780).

    Seja como for, Mozart dispunha de todas as ferramentas musicais do final do

    Barroco; no entanto, no podendo tomar a forma, j algo esclerosada, da pera sria

    italiana para o drama musical que tinha em mente compor, foi buscar alguns

    ingredientes da pera francesa, onde o elemento musical sempre esteve subordinado linguagem (nesta no havia praticamente ria) e, assim, retorna de modo no intencional

    origem do drama musical. A subordinao ao texto era muito mais acentuada na pera

    francesa do sculo XVIII do que na italiana, cuja atrao principal residia em imensas

    rias, de contedo estereotipado (a ria de vingana, a ria de cime, e, j quase

    chegando ao final do espetculo, a ria do amor ou ria do tudo est bem de novo) e

    de presena infalvel em todas as peras, embora pudessem substituir-se mutuamente,

    coisa, alis, que se estava sempre fazendo. Na pera francesa, as formas antigas ainda

    sobreviviam: recitativo, anoso e arieta, o que a tornava uma base muito mais apropriada

    para qualquer reforma dramtica do que a opera seria italiana. A teoria desta reforma

    pode ser encontrada mais claramente na obra de Gluck, porm na prtica Mozart

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    quem concretiza as mudanas no drama musical.

    Encontramos em Mozart os mesmos princpios que em Monteverdi. Para ele, o

    importante sempre o drama, o dilogo, a palavra isolada, o conflito e sua resoluo e

    no uma poesia composta como um todo. Paradoxalmente, isto no se aplica no seu caso

    somente pera, mas tambm msica instrumental, que sempre dramtica. Na

    gerao seguinte, este elemento dramtico, eloqente, aos poucos se perde da msica.

    As razes para tal como j o dissemos tm a ver com a Revoluo Francesa e suas

    conseqncias culturais que conduziram situao na qual a msica foi posta a servio

    de idias sociopolticas. O ouvinte deixava de ser, doravante, uni interlocutor, para

    tornar-se um desfrutador inundado e inebriado de sons.Em minha opinio, exatamente a que se encontram as razes da nossa total

    incapacidade de compreender a msica pr-revolucionria. Penso que pouco

    compreendemos tanto Mozart como Monteverdi, quando os reduzimos unicamente ao

    belo que o que geralmente acontece. Ns buscamos Mozart pelo prazer, para nos

    deixar enfeitiar pelo belo. Quando se quer descrever belas execues mozartianas.

    comum ouvir-se a expresso felicidade mozartiana; quase uma frmulaestereotipada. Estudando-se, contudo, mais a fundo, as obras nas quais ela empregada,

    pergunta-se:por que felicidade mozartiana? Os contemporneos descrevem a msica

    de Mozart como sendo extremamente contrastada, penetrante, perturbadora e

    desconcertante; exatamente neste ponto, por sinal, que a crtica da poca a questiona.

    Como pode ento acontecer que se tenha reduzido esta msica apenas felicidade, no

    prazer esttico? Pouco depois de haver lido um artigo a respeito de uma dessas

    execues de felicidade mozartiana, trabalhei com meus alunos uma sonata para

    violino de Mozart, escrita sobre uma melodia francesa. A pea foi inicialmente muito

    bem tocada, eu diria inclusive que a violinista conseguira transmitir a tal felicidade

    mozartiana. Trabalhando mais a sonata, observamos ento que esta msica penetrava

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    sob a pele, que ela no s encerrava a felicidade mozartiana, como tambm continha

    toda a gama dos sentimentos humanos: da felicidade tristeza, at o sofrimento.

    Contudo, eu me pergunto muitas vezes se posso realmente recomendar a um

    aluno um estudo nesta direo. Pois, se as pessoas forem aos concertos para gozar a

    felicidade mozartiana e ao invs disto receberem talvez uma verdade

    mozartiana, pode ser que isto v incomod-los, que o ouvinte no esteja querendo saber

    desta verdade. Na maior parte das vezes, desejamos ouvir e vivenciar algo determinado,

    a tal ponto que j perdemos a atitude de curiosidade do ouvinte; talvez at nem

    desejemos mais escutar aquilo que nos dito atravs da msica.

    Ser que nossa cultura musical deve reduzir-se quilo que nos proporciona umpouco de beleza e paz aps um dia cheio de trabalho e de preocupaes? Ser que esta

    msica no tem mais nada para nos oferecer?

    Este , portanto, o quadro em que se situa a msica eloqente e o discurso sonoro

    dramtico: nos seus primrdios, com Monteverdi, eles tomam o lugar do sereno mundo

    da arte dos madrigais. No seu trmino, aps Mozart, so substitudos amplamente pela

    pintura plana do romantismo e do ps-romantismo. A msica eloqente, em forma dedilogo, nunca meramente beleza sonora, ela transbordante de paixo, cheia de

    conflitos espirituais, inclusive cruis, mas que quase sempre se resolvem. Certa vez, para

    defender-se da acusao de que sua msica no seguia as regras da esttica, que ela no

    era suficientemente bela, disse Monteverdi: que possam todos aqueles que

    compreendem msica repensar as regras de harmonia e acreditar em mim quando digo

    que o compositor moderno s possui averdadecomo princpio diretor.