Apelação Cível Nº 1.0024.11.277045-8/001
Fl. 1/18
<CABBCABCCBBACADCBAADAAADDAADCBDACBAAA
DDADAAAD>
EMENTA: APELAÇÃO – EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL – DIREITO
CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO – DECADÊNCIA – NULIDADE DA CDA
– MERCADORIAS DESACOMPANHADAS DE NOTA FISCAL – FATO
GERADOR – ASPECTO TEMPORAL – MULTA – PROPORCIONALIDADE
1. A dívida tributária regularmente inscrita goza da presunção “iuris
tantum” de certeza e liquidez, a qual apenas poderá ser elidida por prova
inequívoca produzida pelo contribuinte.
2. Caso constatada, a partir da análise anual do fluxo de entradas e
saídas de mercadorias, a entrada de mercadorias desacompanhadas de
nota fiscal, impossível precisar a data exata de ocorrência do aspecto
temporal do fato gerador por culpa exclusiva do contribuinte, que falhou
em cumprir a obrigação acessória que lhe foi imputada.
3. No caso de ausência de recolhimento de ICMS, o prazo decadencial
será regido pelo disposto no art. 173, inc. I, ao passo que, na hipótese de
recolhimento a menor, aplica-se o disposto do § 4º do art. 150, todos do
CTN.
4. Deve subsistir a autuação fiscal quando o laudo pericial judicial
conclui ter havido a entrada e a saída de mercadorias sem a cobertura de
notas fiscais e o recolhimento do respectivo imposto.
5. A multa fiscal pode ser declarada abusiva pelo Poder Judiciário, mas,
a constatação da desproporcionalidade entre a sanção e a gravidade da
infração deve levar em conta a distinta natureza das multas “de
revalidação” e “isolada”.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0024.11.277045-8/001 - COMARCA DE BELO HORIZONTE - APELANTE: LOJAS
AMERICANAS S/A – APELADO: ESTADO DE MINAS GERAIS
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal
de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos
julgamentos, à unanimidade, em REJEITAR AS PRELIMINARES E
NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.
DES. EDGARD PENNA AMORIM
RELATOR
Apelação Cível Nº 1.0024.11.277045-8/001
Fl. 2/18
DES. EDGARD PENNA AMORIM (RELATOR)
V O T O
Trata-se de apelação interposta pelas LOJAS AMERICANAS
S/A contra sentença, da lavra do i. Juiz CARLOS ROBERTO LOIOLA,
da 3ª Vara de Feitos Tributários do Estado, que julgou improcedentes
os embargos à execução fiscal manejados contra a pretensão do
ESTADO DE MINAS GERAIS.
A apelante, em apertadíssima síntese, alega a) a nulidade da
sentença por não observar as conclusões da prova pericial; b) a
nulidade do título executivo ante o desrespeito aos requisitos mínimos
para sua constituição; c) a decadência de todos os créditos até
30/11/2005; d) a inexistência de saídas e entradas de mercadoria
desacobertadas por nota fiscal; e e) a confiscatoriedade da multa
isolada aplicada.
Contrarrazões apresentadas (f. 1473/1490).
Conheço do recurso, próprio e tempestivo.
PRELIMINARES
Inicialmente, registro não merecerem guarida as preliminares de
nulidade (da sentença e do título executivo) e de decadência
suscitadas.
A apelante afirma que teria o i. Juízo ”a quo” proferido, “(...) em
curtíssimo intervalo de tempo, seis sentenças idênticas em feitos
judicias distintos (...)”, o que conduziria “(...) a conclusão de que (...)
não obteve prestação jurisdicional plena e efetiva” (f. 1434). A
eficiência na prestação jurisdicional só não é desejável quando obtida
às expensas da realização da justiça no caso concreto. E aqui não
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logrou êxito a apelante em demonstrar o malfadado vício de
fundamentação.
Depois de apresentar argumentos genéricos para escorar sua
tese, sustenta não haver como prosperar a sentença de improcedência
dos embargos à execução, “(...) uma vez que, definitivamente, não
realizou operações desacobertadas de documentação fiscal e isso
foi atestado pelo laudo pericial.” (f. 1441; destaques do original)
O laudo pericial, porém, certificou justamente o contrário: dele
consta explicitamente que “as entradas desacobertadas de
documento fiscal foram apuradas em virtude de saídas de
mercadorias não existentes no estoque da embargante (...)” (f. 317;
destaques deste voto). Na conclusão, assevera ainda a auxiliar do
juízo que “(...) a embargante não apresentou os documentos fiscais
emitidos em função dos ajustes efetuados nos sistemas gerenciais
SAP e Kardex” (f. 330; destaques deste voto).
A discrepância entre as alegações da apelante e a
documentação carreada aos autos igualmente macula a tentativa de
desconstituição do título executivo. Nos termos do art. 204 do CTN,
bem como do parágrafo único do art. 3º da LEF, a dívida tributária
regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez. A
presunção “iuris tantum” pode, assim, ser elidida por prova inequívoca
produzida pelo contribuinte.
A apelante clama pela nulidade “por evidente equívoco do Fisco
mineiro ao indicar (...) o mês de dezembro de 2005 (...)” (f. 1.441)
quando, em verdade, a perícia concluiu que “(...) os créditos tributários
se referem ao período compreendido entre janeiro e dezembro de
2005.” (f. 1.442) Por óbvio, impossível precisar o exato aspecto
temporal da hipótese de incidência, pois o que deu ensejo à autuação
foi justamente a entrada e a saída de mercadorias desacobertadas de
documento fiscal. A conduta antijurídica tão-só foi constatada após
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análise anual do fluxo de entradas e saídas, a partir dos dados
apresentados pela própria apelante. É que, caso tivesse adimplido as
obrigações tributárias acessórias, o estoque final seria igual ao
somatório do estoque inicial e das entradas, subtraídas as saídas. O
fato de o estoque final ser superior indica, portanto, a entrada de
mercadoria sem documentação fiscal.
Se a nota fiscal é documento que tem por finalidade registrar a
transferência de propriedade sobre um bem, cuja emissão, por razões
evidentes, é de responsabilidade do contribuinte, teratológico exigir que
a autoridade fazendária especifique a data de ocorrência do fato
gerador quando o próprio contribuinte não o fez. Em mais simples
termos, quer a apelante não só se furtar do dever de emissão de nota
fiscal que lhe cabia, como, também, impor ao apelado a obrigação de
suprir sua própria falha – insista-se, sem conferir-lhe os instrumentos
para que isso seja feito.
Por fim, imbricada à impossibilidade de delimitação precisa da
data de entrada de mercadorias, desacompanhadas de documento
fiscal (frise-se), está todo o imbróglio na verificação da inocorrência da
decadência.
Como acertadamente descreve a apelante, “a leitura do auto de
infração é de suma importância para demonstrar que os débitos sob
discussão não se referem à creditamento indevido (...)” (f. 1446;
destaques no original). Diz também que “(...) a cobrança se refere a
suposto recolhimento a menor (e não ausência de recolhimento) (...)”
(f. 1447; destaques no original) e conclui:
Havendo informado, com suas declarações fiscais, os valores que entendia serem devidos a título de ICMS e tendo transcorrido “in albis” o prazo de 5 anos estabelecido no art. 150, §4º, do CTN, decaiu o direito do fisco de não homologar os pagamentos antecipados de ICMS efetivados pela Apelante e lançar eventuais créditos tributários (diferenças) que
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entendesse devido, relacionados aos fatos geradores ocorridos até a referida data. (F. 1.449.)
Para o desate da querela, importante fazer algumas
ponderações. Em primeiro lugar, uma coisa é a existência diferencial a
recolher em razão da glosa de crédito, outra completamente distinta é
o suposto “recolhimento a menor” por motivo de entrada de
mercadorias desacobertadas de documento fiscal. Se a circulação do
bem ocorreu sem a emissão de nota fiscal, por óbvio não houve
recolhimento de ICMS sobre aquela operação em específico. Noutro
giro, se tomada uma perspectiva global, certo é que uma empresa do
porte da apelante recolheu algum ICMS aos cofres estatais. Daí por
que somente sobre essa ótica se poderia falar na existência de
“recolhimento a menor”, ou seja, recolheu-se menos do que deveria
num determinado período de autuação. Porém, sobre as operações
desacobertadas de nota fiscal nada foi recolhido. Quando não há o
pagamento – eis que sequer emitida nota fiscal relativa às entradas de
algumas mercadorias –, aplica-se o seguinte dispositivo:
Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado (...).
Tal entendimento encontra-se amparado no REsp nº
973.733/SC, submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, assim
ementado:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. INEXISTÊNCIA DE PAGAMENTO ANTECIPADO. DECADÊNCIA DO DIREITO DE O FISCO CONSTITUIR O CRÉDITO TRIBUTÁRIO. TERMO INICIAL. ARTIGO 173, I, DO CTN. APLICAÇÃO CUMULATIVA DOS PRAZOS
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PREVISTOS NOS ARTIGOS 150, § 4º, e 173, do CTN. IMPOSSIBILIDADE. 1. O prazo decadencial quinquenal para o Fisco constituir o crédito tributário (lançamento de ofício) conta-se do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, nos casos em que a lei não prevê o pagamento antecipado da exação ou quando, a despeito da previsão legal, o mesmo inocorre, sem a constatação de dolo, fraude ou simulação do contribuinte, inexistindo declaração prévia do débito (Precedentes da Primeira Seção: REsp 766.050/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 28.11.2007, DJ 25.02.2008; AgRg nos EREsp 216.758/SP, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 22.03.2006, DJ 10.04.2006; e EREsp 276.142/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 13.12.2004, DJ 28.02.2005). (...) 7. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ
08/2008. (STJ, REsp nº 973.733/SC, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Seção, julgado em 12/08/2009, DJe 18/09/2009.)
Em verdade, mesmo que fosse aplicado o disposto no § 4º do
art. 150 do CTN, melhor sorte não socorreria à apelante. Como
salientado alhures, as irregularidades praticadas – comprovadas pelo
laudo técnico pericial – somente foram apuradas quando realizado o
levantamento quantitativo, via “Aplicativo Redes – Código de Barras”.
Aludido programa faz uma análise por espécie de mercadorias
mencionadas nos arquivos eletrônicos remetidos pela própria apelante.
Tira-se, portanto, uma espécie de “fotografia” das quantidades
inventariadas no estoque final e esta é comparada ao fluxo de entrada
e saída de mercadorias ao longo do ano. Conforme atesta o laudo
pericial, o levantamento representa as quantidades em estoque entre
os meses de novembro e dezembro de 2005. E, só a partir de
desequilíbrios entre entrada e saída constatados naquele momento,
pode-se verificar a entrada de mercadorias desacobertadas de notas
fiscais.
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Não é possível, destarte, precisar quando – ao longo de todo o
ano de 2005 – as mercadorias irregulares deram entrada no
estabelecimento da apelante. Vale anotar ainda que, mesmo após
requisição expressa da perita, a apelante se furtou a apresentar os
seguintes documentos:
- Cópias das notas fiscais de entrada citadas nos relatórios gerenciais;
- Cópias dos documentos fiscais de saídas citados nos relatórios gerenciais;
- Cópias das notas fiscais de transferência de mercadorias entre estabelecimentos da Embargante ou para depósitos fechados (indicados nos relatórios);
- Cópia das notas fiscais emitidas em função da
perda ou roubo de mercadorias, porventura citados nos relatórios (f. 324; destaques do original)
Apesar disso, pede a reforma da sentença para que “(...) seja
decretada a extinção pela decadência dos créditos tributários
referentes aos fatos geradores ocorridos até 30.11.2005” (f. 1449;
destaque do original). Não há como deixar de questionar: quais fatos
geradores ocorreram até mencionado período? Quando as
mercadorias desacobertadas de documento fiscal entraram no
estabelecimento da apelante? A resposta para ambos os
questionamentos é que não é possível precisar, pois a apelante não
apresentou as notas fiscais aptas a comprovar a ocorrência do aspecto
temporal do fato gerador.
Pretende a recorrente, assim, seja aplicada uma presunção
favorável à ocorrência dos fatos geradores, beneficiando-se de sua
própria conduta antijurídica. Isso porque, como já adiantado, só se
pôde averiguar o desequilíbrio entre as entradas e saídas com a
realização, em dezembro de 2005, do levantamento quantitativo de
mercadoria. Como não transcorreram mais de 5 (cinco) anos entre a
ocorrência do fato gerador e a data de notificação da apelante,
afastada está a decadência.
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Rejeito as preliminares.
MÉRITO
A apelante despende algumas laudas relatando os infortúnios do
dia-a-dia que, em tese, prejudicariam o seu controle de estoque.
Reconhece que “(...) não procedeu à emissão de notas fiscais de
estorno dos créditos provenientes das perdas” (f. 1457), em
descompasso ao previsto nos arts. 71 e 73 do RICMS/2002, porém
concluiu que “(...) a r. sentença foi infeliz por não considerar a
realidade fática demonstrada” (f. 1.461). Diz não poder
(...) prevalecer, subsistir uma cobrança baseada na premissa de que (...) realizou operações desacobertadas de documentação fiscal, se a apelante demonstrou, apesar das inconsistências constantes do SINTEGRA, que os ajustes contábeis das perdas e sobras foram realizados, e que esses
ajustes podem ser verificados no relatório gerencial E confirmados pelas notas fiscais de entrada, pelos cupons fiscais e demais documentos, devidamente analisados pela Ilma. Perita. (f. 1.461; destaques do original.)
Não merece prosperar a alegação de que os “(...) documentos
foram devidamente analisados pela Ilma. Perita (...)”, pois sequer
apresentados pela apelante, como já narrado alhures. Além disso, o
laudo pericial afirma que
(...) os relatórios gerenciais da Embargante indicam fatos, todavia não os comprovam, pois os relatórios gerenciais são destinados ao uso pessoal da Embargante, podendo ser alterados ou ajustados pela mesma a qualquer momento. (...) Tendo em vista que a Embargante não apresentou as notas fiscais emitidas em função dos ajustes efetuados nos sistemas gerenciais SAP e Kardex, no entendimento
técnico desta perita, as peculiaridades que a
Embargante afirma que devem ser ponderadas pelo
Fisco, não restaram comprovadas até a presente
data. (f. 1.461; destaques do original.)
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Destarte, como a recorrente não se desincumbiu do ônus de
desconstruir os fatos narrados no auto de infração e no PTA, merece a
sentença ser mantida, na medida em que, como nela bem se registrou,
“(...) a prova pericial comprova tudo o que consta do relatório fiscal (...)”
(f. 1.400).
Insurge-se ainda quanto às penalidades aplicadas.
Sob a alegação de que não promoveu entradas ou saídas de
mercadorias desacompanhadas de nota fiscal, a apelante clama pela
inaplicabilidade da multa isolada. Porém, como já frisado, o laudo
pericial cabalmente atesta a entrada de mercadorias sem o respectivo
documento fiscal (f. 317). Em razão disso, não merece guarida a
pretensão da apelante, eis que constatado o descumprimento de
obrigação acessória que deu azo à multa isolada.
Por fim, diz “(...) que a multa de revalidação somada à multa
isolada corresponde a (...) 150,78% do valor do imposto supostamente
devido, conforme comprovado pelo laudo pericial.” (f. 1467) Traz à
baila suposto entendimento consagrado no RE nº 81.550, “(...)
segundo o qual a penalidade no patamar de 100% do valor do imposto
‘assume feição confiscatória’” (f. 1.470).
Cediço que questão das mais áridas em discussão na seara do
direito tributário diz respeito à alegada extensão da garantia insculpida
no inc. IV do art. 150 da CR (vedação ao confisco) às multas de
natureza tributária. Não se desconhece que o Pretório Excelso vem há
muito firmando jurisprudência no sentido de não poder ser a multa
confiscatória; porém, em verdade, o que não se admite é que a multa
viole os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Há de se ter em mente que as multas, mesmo as oriundas de
inobservância de obrigações tributárias, são ontologicamente distintas
dos tributos. Enquanto o art. 3º do CTN preceitua ser o tributo “toda
prestação pecuniária compulsória (...) que não constitua sanção de ato
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ilícito”, a ilicitude é nota imprescindível na definição da hipótese de
incidência da infração passível de imposição de multa. Em mais
simples termos: a multa é sempre uma sanção de ato ilícito, ao passo
que tributo jamais poderá sê-lo.
A primeira das funções do poliédrico fenômeno tributário é a
arrecadatória, que se traduz em imprescindível instrumento à
salvaguarda do custeio dos direitos outorgados pelo pródigo Texto
Constitucional brasileiro. A multa, por outro giro, carrega distintas
funções: tanto punir uma falta praticada, quanto desencorajar sua
prática num momento futuro. Com propriedade, RICARDO LOBO
TORRES assevera que
(...) as penalidades pecuniárias e as multas fiscais não se confundem juridicamente com o tributo. A penalidade pecuniária, embora prestação compulsória, tem a finalidade de garantir a inteireza da ordem jurídica tributária contra a prática de ilícitos, sendo destituída de qualquer intenção de contribuir para as despesas do Estado. O tributo, ao contrário, é o ingresso que se define primordialmente como destinado a atender às despesas essenciais do Estado, cobrado com fundamento nos princípios da capacidade contributiva e do custo/benefício. (“In” Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 277/278; sublinhas deste voto.)
Para que suas finalidades sejam atingidas, a multa deverá
corresponder a um ônus capaz de ser efetivamente apto a
desestimular a reiteração da conduta antijurídica. ALIOMAR
BALEEIRO bem salienta que,
(...) no exame dos efeitos confiscatórios do tributo, deve ser feita abstração de multas e juros acaso devidos. As sanções, de modo geral, desde a execução fiscal até as multas, especialmente em caso de cumulação, podem levar à perda substancial do patrimônio do contribuinte, sem ofensa ao direito. Igualmente, o art. 150, IV, da Constituição Federal (...) também não visa a proteger os incautos, omissos e infratores dos deveres jurídicos. (“In” Limitações
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constitucionais ao poder de tributar. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 579-580; sublinhas deste voto.)
Por óbvio, como já frisado alhures, não está o legislador livre
para fixar multas ao seu alvedrio, sem que o Poder Judiciário possa
invalidá-las. O que se pretende aclarar é que o fundamento de tal
limitação não se liga à vedação ao confisco, ao valor do tributo, ou
outra métrica que o valha; mas, tão-somente, à inobservância aos
princípios da razoabilidade e proporcionalidade entre a sanção
cominada e a infração perpetrada. Há de se considerar que
(...) o imposto incide sobre a riqueza gravada: o imposto é cobrado porque o contribuinte manifesta uma capacidade econômica que o legislador julgou passível de exação, daí a capacidade econômica ser a causa remota do imposto. Ora, na multa não há nada disso: a sanção não incide sobre o tributo; o tributo não é a causa da multa. A multa incide sobre uma conduta antijurídica do contribuinte ou de um terceiro, a causa da multa não é a capacidade econômica, é a prática de um ilícito. Por isso os fundamentos e os parâmetros para controlar o tributo confiscatório e a multa confiscatória são distintos: no primeiro caso, leva-se em conta o direito de propriedade, a capacidade econômica, a liberdade de exercício de profissão; no segundo caso, correlaciona-se a falta com sua reprimenda, leva-se em conta a proporcionalidade, a razoabilidade, a proibição de excesso. (GODÓI, Marciano Seabra de. Decisões judiciais que limitam de forma genérica multa de ofício a 100% do valor do tributo: desvio e deturpação da jurisprudência do STF. “In” ROCHA, Valdir de Oliveira (org.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2015, p. 288-318, p. 315; destaques no original.)
A multa (tributária) deverá ser mais ou menos gravosa a
depender da gravidade da infração praticada pelo contribuinte: ela
nada tem a ver com sua capacidade contributiva ou com o valor do
tributo devido.
É essa situação teratológica que parece estar prevalecendo
quando da fixação de multas na seara do direito tributário. Isto porque
Apelação Cível Nº 1.0024.11.277045-8/001
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parece gozarem de uma espécie de “regime especial” tão-só porque
têm o descumprimento de obrigações tributárias como causa de
aplicação da sanção. Relega-se, diuturnamente, ao segundo plano o
escrutínio da lesividade da infração perpetrada e luzes são lançadas
apenas sobre percentuais (20%, 40%, 100%), via de regra, atrelados
ao valor do tributo.
A título ilustrativo, transcreve-se trecho do parecer da douta
Procuradoria Geral da República no bojo do RE nº 6.404.52/RO, que
trata das multas por descumprimento de obrigação acessória:
Em qualquer hipótese, o valor da multa – mesmo tendo sido reduzido pelo Eg. TJRO “para o percentual de 5% (cinco por cento) sobre o valor total da operação” – afigura-se excessivo, eis que supera o valor de R$ 22.000.000,00 (vinte e dois de milhões de reais). Assim – especificamente neste caso –, se não for afastada, a penalidade imposta à Recorrente merece ser reduzida.
Nada foi dito sobre a gravidade da infração cometida –
sonegação fiscal? erro na escrituração de livros? simulação? –, pois o
mero valor absoluto da multa fixada, ainda que em percentual pífio
(5%), seria suficiente para a decretação da abusividade da pena.
A bem da verdade, se essa forma de calcular a penalidade
extrapolasse as barreiras do Direito Tributário e contaminasse outras
searas do Direito, o resultado certamente causaria espécie. Nas
aplicações de infrações de trânsito, por exemplo, o valor da sanção
poderia depender do valor de mercado do veículo. Assim, o
proprietário de um Fusca que trafega a 200 km/h numa zona escolar
poderia arguir que sua multa deveria ser inferior à cominada ao
motorista de uma BMW, autuado por idêntica infração. Poder-se-ia
cogitar também de que o guarda de trânsito deveria abster-se de
multar um veículo, sempre que constatado ser seu valor de mercado
inferior ao da sanção cominada.
Apelação Cível Nº 1.0024.11.277045-8/001
Fl. 13/18
Uma incursão nos precedentes do Pretório Excelso pré-
Constituição de 1988 demonstra que, àquela época, a análise da
abusividade da multa vinha sempre escorreitamente atrelada ao exame
da gravidade da infração cometida.
No RE nº 57.904, cujo julgamento ocorreu nos idos da década
de 60, o Min. EVANDRO LINS foi claro ao consignar que a graduação
da multa deveria se dar “de acordo com a gravidade da infração e com
a importância desta para os interesses da arrecadação”. (STF. RE nº
57904, Rel. Min. EVANDRO LINS, Primeira Turma, julgado em
25/04/1966).
Nos recursos extraordinários posteriormente apreciados – RE nº
78291, Rel. Min. ALIOMAR BALEEIRO, Primeira Turma, julgado em
04/06/1974; RE nº 81550, Rel. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE,
Segunda Turma, julgado em 20/05/1975; RE nº 82510, Rel. Min.
LEITÃO DE ABREU, Segunda Turma, julgado em 11/05/1976; RE nº
91707, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Segunda Turma, julgado em
11/12/1979 –, é nítida a calibração da multa aplicada conforme a
lesividade da infração cometida pelo contribuinte.
O imbróglio jurisprudencial parece ter surgido no ano de 2002,
nos autos da ADI nº 551, de relatoria do Min. ILMAR GALVÃO, cujo
acórdão restou assim ementado:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. §§ 2.º E 3.º DO ART. 57 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. FIXAÇÃO DE VALORES MÍNIMOS PARA MULTAS PELO NÃO-RECOLHIMENTO E SONEGAÇÃO DE TRIBUTOS ESTADUAIS. VIOLAÇÃO AO INCISO IV DO ART. 150 DA CARTA DA REPÚBLICA.
A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua conseqüência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal.
Ação julgada procedente. (STF. ADI nº 551, Rel. Min.
Apelação Cível Nº 1.0024.11.277045-8/001
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ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 24/10/2002.)
Impende transcrever ainda, no que importam, as razões
apresentadas pelo em. Relator e pelo Min. GILMAR MENDES:
Min. ILMAR GALVÃO: “o eventual caráter de confisco de tais multas não pode ser dissociado da proporcionalidade que deve existir entre a violação da norma jurídica e tributária e sua consequência jurídica, a própria multa.” (f. 43)
Min. GILMAR MENDES: “Sr. Presidente, este caso já foi objeto de debate no Supremo Tribunal Federal, (...), questão de proporcionalidade em relação às taxas quando havia excesso. Agora, aqui, fica evidente quando se coloca que as multas, em consequência do não recolhimento dos impostos e das taxas estaduais, não poderão ser inferiores a duas vezes o seu valor, chegando a uma notória desproporção. Portanto, penso que se pode invocar o art. 150, IV, da Constituição Federal, e, obviamente, o princípio da proporcionalidade na acepção que este Tribunal tem lhe emprestado ao devido processo legal no sentido substancial ou substantivo.” (F. 45.)
Nota comum a ambas as manifestações, a qual constitui a “ratio
decidendi” da aludida ação direta de inconstitucionalidade, é a
indispensabilidade da aferição da proporcionalidade entre a gravidade
do ato lesivo e a sanção cominada. Note-se que, até então, inexiste
qualquer limitação do valor da multa a um percentual aleatoriamente
fixado. Assim, a avaliação da abusividade continuaria a ser feita caso a
caso. Porém, ao acompanhar o Relator, o Min. MARCO AURÉLIO
proferiu o seguinte voto:
Min. MARCO AURÉLIO: “Embora haja dificuldade, como ressaltado pelo ministro Sepúlveda Pertence, para se fixar o que se entende como multa abusiva, constatamos que as multas são acessórias e não podem, como tal, ultrapassar o valor do principal. No caso, quando se cogita de multa de duas vezes o valor do principal – que é o tributo não recolhido – ou de cinco vezes, na hipótese de sonegação, verifica-se o abandono dessa premissa e dos princípios da
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razoabilidade e da proporcionalidade. Por isso, acompanho o relator.” (F. 47; sublinhas deste voto.)
Diante deste quadro, é de se perceber que o Min. MARCO
AURÉLIO, ao anuir com a “ratio decidendi” da ADI nº 551, acaba por
lançar uma nova tese: a de que o montante pecuniário da sanção
jamais poderia ultrapassar o valor do tributo a ser recolhido,
independentemente da gravidade da infração. Parece ter nascido,
nesse momento, a famigerada “regra dos 100%” – a qual salienta
serem abusivas as multas superiores a 100%. Neste sentido, confiram-
se do mesmo exc. Supremo Tribunal Federal: RE nº 582.461, Rel.
Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 18/05/2011; RE nº
748257 AgR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma,
julgado em 06/08/2013.
Ao que tudo indica, além de se estar diante de um equívoco
interpretativo da jurisprudência do Pretório Excelso, a limitação da
multa ao valor da obrigação principal se configura temerária, pois traz
prejuízos aos cofres públicos e coloca empresas em pé de
desigualdade concorrencial. Sonegadores contumazes, por não
honrarem com suas obrigações tributárias, têm o custo de seus
produtos reduzidos. Logo, por praticaram preços mais baixos, acabam
eliminando a concorrência e podem, eventualmente, monopolizar certo
segmento do mercado. Como certeiramente gizou o Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE, ao tratar das chamadas “multas punitivas”,
(...) o risco da infração há de ser muito maior do que a vantagem que dela, infração, pudesse decorrer para o contribuinte. Ou seria uma multa cujo risco valeria a pena correr, segundo a normalidade das coisas, na qual, só de raro em raro, se poderá verificar a
omissão na nota fiscal. (STF, ADI nº 1075 MC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/1998, f. 182.)
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Em síntese, o que se vê é uma deturpação de uma regra geral
que prescreve a observância da proporcionalidade entre a infração e a
sanção, em prol de uma suposta particularidade das multas (ditas
tributárias). Não é demais frisar: a multa – seja ela penal, tributária,
administrativa, de trânsito “etc.” – tem finalidade preventiva (ao
desestimular prática de condutas antijurídicas) e retributiva (ao punir a
conduta indesejável perpetrada). Deve, portanto, ser tratada sob um
mesmo regime.
A partir dessas considerações iniciais, passa-se à análise do
caso concreto, para o que relevante a orientação firmada pelo Pretório
Excelso
(...) quanto à possibilidade do controle de constitucionalidade das multas desproporcionais, isto é, que tenham efeito confiscatório sem justificativa. A questão de fundo, portanto, é saber-se se a intensidade da punição é ou não adequada à gravidade da conduta da parte agravada. Porém, a então recorrente não indicou com precisão a conduta que teria deflagrado a imposição da multa nem as razões pelas quais essa penalidade seria inadequada à gravidade da infração. Agravo regimental ao qual se
nega provimento. (STF, ARE nº 682546 AgR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 05/06/2012).
No caso sob exame, de um lado, em razão da inobservância de
seu dever de cumprir pontualmente com suas obrigações tributárias, foi
aplicada à recorrente a chamada “multa de revalidação”, e, de outro
lado, a constatação do fato de ter ela dado entrada de mercadorias
desacobertadas de documento fiscal (cf. laudo pericial às f. 317) atraiu
a imposição de “multa isolada”. Tais penalidades, somadas, é que
correspondem a 150% (cento e cinquenta por cento) do valor do
imposto devido.
Ora, a emissão de nota fiscal é imprescindível ao controle da
arrecadação tributária e o transporte de mercadorias com nota fiscal
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vencida, ainda que por 2 (dois) dias, macula o documento de
irregularidade de natureza grave. Ademais, conforme descrito no auto
de infração, a apelante é praticante contumaz da conduta antijurídica,
razão pela qual a penalidade foi agravada em 100% (cem por cento),
percentual aplicado a partir da segunda reincidência. Impossível
determinar, destarte, quantas vezes a recorrente desrespeitou as
obrigações acessórias que lhe incumbiam. Despiciendo também
repisar todo o imbróglio envolvendo a suposta ilegitimidade passiva da
ora apelante, fartamente analisado alhures.
Pela gravidade da (reiterada) conduta antijurídica praticada da
apelante, a aplicação de multa no patamar fixado mostra-se
proporcional e razoável, pois tem por finalidade dissuadir a
inobservância das obrigações acessórias num futuro e punir as
infrações perpetradas, além de compelir o pagamento do tributo a
tempo e modo.
Por fim, há de se pontuar que o específico precedente
jurisprudencial trazido à baila pela própria recorrente não a socorre. É
que ali se firmou a tese que “a multa moratória que, fixada em nada
menos de 100% do imposto devido, assume feição confiscatória” (STF,
RE nº 81550, Rel. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, Segunda Turma,
julgado em 20/05/1975), mas, nada foi dito sobre a cumulação das
multas de mora e por descumprimento de obrigações acessórias,
senão apenas sobre ser abusiva a multa de 100% (cem por cento) do
valor do tributo por motivo de pagamento a destempo.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso.
DES. ARMANDO FREIRE (PRIMEIRO VOGAL) - De acordo com o
Relator.
DES. ALBERTO VILAS BOAS (SEGUNDO VOGAL) - De acordo com
o Relator.
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SÚMULA: "REJEITARAM AS PRELIMINARES E NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO"