7/30/2019 Identidades Raciais Sociedade Civil e Politica No Brasil Demetrio Magnoli
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Identidades Raciais, Sociedade Civile Poltica no Brasil
Demtrio Magnoli
2008
Coeso social na Amrica Latina:Bases para uma Nova Agenda Democrtica
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Este trabalho foi escrito em 2007 como contribuio ao projeto Nova
Agenda de Coeso Social para a Amrica Latina, realizado pelo iFHC-Instituto Fernando Henrique Cardoso e pelo CIEPLAN-Corporacin deEstudios para Latinoamrica. O projeto foi realizado graas ao apoio daUnio Europia e do PNUD. As informaes e opinies apresentadas
pelos autores so de sua responsabilidade pessoal e no representamnecessariamente nem comprometem as instituies associadas ao projeto.
Coordenadores do projeto: Bernardo Sorj e Eugenio Tironi.
Equipe Executiva: Sergio Fausto, Patricio Meller, Simon Schwartzman,Bernardo Sorj, Eugenio Tironi y Eduardo Valenzuela.
ISBN: 978-85-99588-08-6
Copyright : iFHC/CIEPLAN. 2008. So Paulo, Brasil, e Santiago de Chile.
O texto, em parte ou em sua totalidade, pode ser reproduzido para fins no comerciaisdentro dos termos da licena de Creative Commons 2.5http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br
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Identidades raciais, sociedade civil e poltica no Brasil
Demtrio Magnoli*
O governo Lula da Silva, prosseguindo e radicalizando polticas originalmente
definidas no governo Fernando Henrique Cardoso, engajou-se em programas de ao
afirmativa que implicam a produo legal de identidades raciais no Brasil. Os
programas, que emanam da Secretaria Especial de Polticas para a Igualdade Racial
(Seppir), um rgo federal com estatuto de ministrio, abrangem a educao pblica, o
funcionalismo, o mercado de trabalho, as polticas de sade e a mdia. O pressuposto de
todas as iniciativas a classificao racial oficial dos cidados brasileiros e, em
particular, a fabricao oficial do povo negro ou dos afro-brasileiros. O projeto delei do chamado Estatuto da Igualdade Racial a sntese mais ambiciosa desse
empreendimento.
A fonte histrica do empreendimento racialista encontra-se nos Estados Unidos
do final da dcada de 1960, quando a Fundao Ford (FF) formulou o paradigma do
multiculturalismo contemporneo e o alou condio de eixo articulador de sua
interveno nos movimentos sociais, em particular nas organizaes do movimento
negro e dos imigrantes hispnicos. O lugar ocupado pela noo do melting pot nanarrativa nacional norte-americana e a tradio da distino racial baseada na gota de
sangue contriburam para a naturalizao do paradigma multiculturalista.
O multiculturalismo expressou-se, no terreno poltico, sob a forma de programas
de ao afirmativa de cunho etno-racial. Tais programas organizam-se ao redor do
conceito de reparao, que emergiu de uma interpretao da filosofia jurdica de John
Rawls, e representam uma aplicao particular da doutrina das polticas compensatrias,
elaborada pelas instituies multilaterais como resposta ao dilema do combate pobrezano ambiente da globalizao. A idia de diversidade figura, nesse contexto, como
alternativa ao compromisso clssico dos Estados com a universalizao dos direitos.
As instituies multilaterais abraaram o paradigma multiculturalista,
convertendo um empreendimento norte-americano em programa de ao internacional.
A partir de generosos financiamentos desses mesmas instituies e da FF, redes de
Organizaes No-Governamentais (ONGs) dedicam-se, no mundo todo, a promover as
* Socilogo, doutor em Geografia Humana pela FFLCH-USP e integrante do Grupo de Anlises deConjuntura Internacional da USP (Gacint-USP).
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polticas da diversidade. A Conferncia da ONU contra o Racismo realizada em
Durban (2001) consagrou o novo paradigma e, especialmente, ofereceu amparo legal ao
conceito de afrodescendentes. As propostas de leis raciais no Brasil operam no campo
jurdico configurado em Durban.
A identidade nacional brasileira foi erguida a partir das narrativas no-raciais ou
mesmo anti-raciais que se coagularam, com Gilberto Freyre, na idia-fora de
mestiagem. Ao contrrio do que acontece nos Estados Unidos, o discurso racialista no
Brasil uma idia fora de lugar. O Brasil no produziu leis raciais desde a Abolio e,
de modo geral, os brasileiros tendem a rejeitar as classificaes raciais rgidas. Contudo,
o empreendimento racialista encontra alento na crtica sociolgica a Gilberto Freyre
desenvolvida, diferenciadamente, por pensadores como Florestan Fernandes, Fernando
Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e Carlos Hasenbalg.
Confrontado com a realidade da miscigenao e com a ideologia da mestiagem,
o discurso racialista obrigado a enveredar pelo caminho paradoxal da afirmao da
naturalidade da raa. Essa operao encontra-se em pleno curso e se expressa nas
polticas pblicas de educao e sade promovidas pela Seppir, bem como numa radical
reviso da histria nacional. O Brasil dos racialistas no uma sociedade democrtica
dividida segundo linhas de classes sociais e atravessada por profundas desigualdades de
renda, mas um Estado capturado por uma elite branca que oprime e exclui a nao
no exlio formada pelos afro-brasileiros.
O Estado , por definio, o guardio da coeso social. No Estado-Nao, a
coeso depende essencialmente do conceito contratual de cidadania, que se traduz no
princpio da igualdade poltica dos cidados. A fabricao de identidades coletivas
oficiais definidas pela etnia ou pela raa representa um desafio direto a esse
princpio e, portanto, uma ameaa coeso social. Curiosamente, no Brasil
contemporneo, o principal agente difusor do racialismo o prprio Estado.O fenmeno no banal e merece maior reflexo. As polticas de ao
afirmativa de cunho racial no produziram redues nas desigualdades sociais nos
Estados Unidos ou na frica do Sul. No Brasil, o paradigma racialista no consegue se
enraizar nos movimentos sociais e no encontra respaldo na opinio pblica. Mas ele se
difunde amplamente na classe poltica, a ponto de se converter em programa oficial
do governo federal e artigo de f entre lideranas partidrias de todo o espectro
ideolgico. Eis a uma evidncia da prolongada crise poltica que se abriu no pas com adesarticulao do projeto nacional desenvolvimentista.
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Vtima e algoz: os termos de um debate
Em entrevista concedida BBC Brasil, em 27 de maro de 2007, a ministraMatilde Ribeiro, da Seppir, interpretou como natural o preconceito de negros contra
brancos, que no fundo no seria preconceito nenhum mas apenas um bem
fundamentado conceito sobre a histria: aqueles que foram aoitados no tm
obrigao de gostar de quem os aoitou (BBC Brasil, 27/3/2007).
A declarao provocou reaes duras. A antroploga Yvonne Maggie, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avaliou-a como incitao ao dio
racial e a relacionou com uma poltica abrangente: (...) isso est presente tambm no
parecer do Conselho Nacional de Educao, que votou em 2005 as diretrizes
curriculares para o ensino das relaes tnico-raciais, histria da frica e da cultura
africana no Brasil. um parecer que usa a palavra revanche. Os brancos tm de temer
a revanche dos negros. Isso o comeo de um longo caminho para a guerra tnica ou
racial. E isso no para ns, agora. para o futuro, para os nossos netos. (Folha de S.
Paulo, 1/4/2007, caderno Mais!).
O historiador Ronaldo Vainfas, da Universidade Federal Fluminense (UFF),
tambm bateu na tecla da incitao ao dio racial, interpretando as palavras da ministra
no contexto mais amplo da identidade nacional brasileira: uma declarao que
prope o critrio racial como um divisor de guas, como forma de estratificao social,
de uma leitura do social no Brasil. Isso atropela todo o nosso processo histrico de
miscigenao. (Folha de S. Paulo, 1/4/2007, caderno Mais!).
Jos Carlos Miranda, coordenador do Movimento Negro Socialista (MNS),
apontou o risco da diviso dos trabalhadores: O conceito de raa, fundamento das
declaraes da ministra, traa uma fronteira nas escolas, nas periferias, nos sindicatos.
Divide os cidados e os trabalhadores. No limite, propaga um dio estril que s serve
aos que tudo tm. Os interesses dos trabalhadores negros so os mesmos dos
trabalhadores brancos (...). (O Estado de S. Paulo, 29/3/2007).
Matilde Ribeiro procurou amenizar a declarao polmica, alegando que
palavras teriam sido extradas de seu contexto e mesmo que houve infelicidade na
seleo de expresses. Os defensores da poltica racialista conduzida pela Seppir
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reproduziram esse padro de justificativa, mas no deixaram de oferecer apoio ao
ncleo das palavras da ministra.
O socilogo Jos Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, inquiriu:
Qual seria a reao natural de pessoas oprimidas por qualquer tipo de ao de
opressores? Teriam alguma reao natural de condescendncia ou de discrepncia?
Qualquer um que se sinta agredido, em nenhum momento vai estar morrendo de amores
pelo agressor. ((O Estado de S. Paulo, 29/3/2007). O deputado federal Carlos Santana
(PT-RJ) foi mais longe e explicitou um ponto de vista que torna intercambiveis os
conceitos de raa e classe social: Quanto mais consciente, mais o negro percebe o
quanto marginalizado pelo branco que representa a classe social dominante. (...) A
ministra vai contra a idia que as classes dominantes tentam impor de que no temos um
problema racial, mas social. (O Estado de S. Paulo, 28/3/2007).
Apenas um dia depois da publicao eletrnica da entrevista da ministra, algum
incendiou a porta dos apartamentos de dez estudantes africanos, no alojamento da
Universidade de Braslia (UnB). As vtimas escaparam pela janela. Ato contnuo,
Timothy Mulholland, reitor da UnB, extraiu concluses definitivas: A democracia
sofreu um atentado. O Brasil um pas racista e a UnB uma universidade de alma
racista. (O Globo Online, 28/3/2007). Mulholland no aguardou as investigaes
policiais e crismou a data como Dia da Igualdade Racial na universidade.
A UnB foi uma das primeiras universidades brasileiras a adotar o sistema de
cotas raciais nos seus vestibulares, a partir do segundo semestre de 2004. Como forma
de controle das autodeclaraes de raa, instituiu uma comisso de certificao das
inscries que examina fotografias dos candidatos. Dias depois do incndio no
alojamento estudantil, ficou patente que o ato criminoso no teve motivaes raciais,
mas decorreu de brigas banais relacionadas a festas e barulho noturno.
A prova dos fatos no deteve os promotores da diviso do Brasil em raasoficiais: na semana seguinte, o senador Paulo Paim (PT-RS) organizou no Senado uma
Audincia Pblica destinada, em princpio, a formular um desagravo s vtimas do
atentado racista. O evento, contudo, no se circunscreveu sua agenda original e
transformou-se em palco para a defesa da aprovao imediata do Estatuto da Igualdade
Racial.
No final de junho, enquanto os rgos dirigentes da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) discutiam a proposta de adoo de cotas raciais nos examesvestibulares, surgiram nos muros dos institutos misteriosas pixaes racistas. As
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pixaes funcionaram como argumentos oportunos para os defensores da proposta, que
foi aprovada.
Estatuto da Igualdade Racial: um novo contrato social
O debate sobre a poltica racialista organizou-se, principalmente, em torno das
polticas de cotas raciais nas universidades, que ganharam visibilidade nos veculos de
comunicao e mobilizaram as atenes pblicas. Enquanto isso, sob o patrocnio
poltico da Seppir, tramitava no Congresso um projeto de lei muito mais abrangente.
Esse projeto, de autoria do senador Paulo Paim, foi aprovado no Senado Federal como
PL n 6264, de 2005, recebendo a denominao de Estatuto da Igualdade Racial.1 Desde
2006, o Estatuto Racial est pronto para deliberao final na Cmara dos Deputados. A
sua promulgao como lei representaria uma mudana essencial nos fundamentos
polticos e jurdicos que sustentam a nao brasileira.
O projeto determina a classificao racial compulsria de cada brasileiro, por
meio da identificao obrigatria da raa em todos os documentos gerados nos
sistemas de sade (Art. 12) ensino (Art. 24) e trabalho e previdncia (Art. 67). Essa
classificao racial no se baseia nas categorias censitrias do IBGE, pois o projeto
consagra como figura jurdica os afro-brasileiros, um estamento que abrange,
compulsoriamente, os autodeclarados negros, pretos e pardos (Art. 2). Por essa
via, implanta-se uma identidade coletiva oficial, tornando-se incuas as fluidas
identidades censitrias emanadas da autodeclarao de cor da pele.
O estamento racial gerado pelo Estatuto aparece como detentor de direitos
coletivos especficos, que se expressariam por meio de medidas de ao afirmativa em
toda a esfera pblica (ou seja, no servio pblico e nas universidades pblicas) e no
mercado de trabalho em geral. Tais medidas abrangem, com nfase especial, a adoo
de sistemas de cotas raciais (Art. 5, pargrafo 1). Cotas raciais seriam compulsria e
centralizadamente adotadas nas universidades federais (Art. 70, pargrafo 1) e nos
contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior FIES (Art. 70,
pargrafo 2). As aes afirmativas na economia privada seriam praticamente impostas
por meio de expedientes como compras governamentais dirigidas (Art. 65).
O projeto de lei determina a criao de uma nova estrutura poltica e burocrtica,
os Conselhos de Promoo da Igualdade Racial, a serem institudos nas esferas federal,
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estadual e municipal (Art. 6). Tais Conselhos seriam compostos por nmero igual de
representantes do poder pblico e de organizaes da sociedade civil representativas da
populao afro-brasileira. Financiados pelo poder pblico, eles teriam carter
permanente e deliberativo e prerrogativas para formular, coordenar, supervisionar e
avaliar as polticas de combate desigualdade e discriminao racial (Art. 7). Em
suma, os Conselhos concentrariam poderes governamentais prprios e uma larga
autonomia de ao.
Nos termos da Constituio Federal, todos so iguais perante a lei, sem
distino de qualquer natureza (Art. 5). O Estatuto Racial equivale a nada menos que
uma nova Constituio. Pelas suas disposies, a nao deixa de ser o fruto do contrato
entre cidados para se converter em uma confederao de raas. A confederao seria
bipolar, articulando no seu interior uma nao afro-brasileira, definida na lei, e uma
implcita nao branca.
Nos Estados Unidos, a abolio da escravido no representou o encerramento
da segregao legal dos cidados em virtude da raa, que perdurou at a dcada de
1960. No Brasil, pelo contrrio, desde a Abolio, em 1888, firmou-se a tradio pela
qual a lei cega para a raa. O Estatuto Racial assinala o ponto de chegada de uma
inflexo nessa tradio, iniciada em 1996, com a elaborao do Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH) do governo Fernando Henrique Cardoso. No PNDH, pela
primeira vez no Brasil, proclamou-se oficialmente a deciso de adotar polticas
compensatrias que promovam social e economicamente a comunidade negra.
(https://www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/PRODH.HTM). O socilogo
Edward Telles, um dos formuladores das polticas racialistas, assinalou que a partir
daquele momento ampliou-se o nmero de rgos estaduais e municipais voltados para
a populao negra (Telles, 2003).
Mas, naquele momento, a abordagem oficial da raa estava cercada porambivalncias e hesitaes. Como observaram o socilogo Marcos Chor Maio e o
antroplogo Ricardo Ventura Santos, sobre a exposio do presidente Fernando
Henrique Cardoso no seminrio internacional Multiculturalismo e Racismo: o Papel da
Ao Afirmativa nos Estados Democrticos Contemporneos, promovido em 1996
pelo Ministrio da Justia: Na abertura dos trabalhos (...), Cardoso revelou certa
ambivalncia ao tratar dos temas das relaes raciais e das aes afirmativas.
Convocando os participantes a exercerem a imaginao social diante do dilema racialbrasileiro e alertando para o perigo do mimetismo, clara referncia ao modelo norte-
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americano, ele condenou a hipocrisia em face da intolerncia racial no Brasil mas, ao
mesmo tempo, valorizou a ambigidade que faria parte da formao social brasileira.
(Maio & Santos, 2005:7).
O conceito de polticas compensatrias, adotado pelo PNDH, inscreve-se no
marco geral do pensamento liberal contemporneo. O seu pressuposto a imperfeio
do mercado, que se apresenta sob formas mais agudas em fases de rpidas mudanas
econmicas e tecnolgicas. Nas circunstncias da globalizao, de forte acumulao de
capital, desvalorizao do trabalho de baixa qualificao e deteriorao das relaes
formais de emprego, as polticas compensatrias surgem como instrumentos de proteo
das condies bsicas de vida dos grupos que experimentam excluso social. Em
princpio, polticas compensatrias direcionadas comunidade negra no exigem a
racializao das relaes sociais ou a produo de identidades raciais oficiais.
A noo de aes afirmativas apareceu no pensamento social e jurdico com o
filsofo americano John Rawls (1921-2001), que investigou solues para o problema
da justia distributiva e elaborou a teoria da justia como equidade. (Rawls, 2002).
Preocupado com a discriminao de minorias nos Estados Unidos, Rawls agregou o
princpio da diferena ao da igualdade de oportunidades. Segundo o princpio da
diferena, as posies de prestgio e influncia devem ser usadas para o maior
benefcio dos integrantes da sociedade em condio de desvantagem. As aes
afirmativas, decorrentes desse princpio, utilizam desigualdades de direito para produzir
uma maior equidade.
A trajetria que parte do PNDH de 1996 e chega ao Estatuto Racial de 2006
nada tem de linear. No lugar do conceito abrangente de polticas compensatrias e da
noo fluida de aes afirmativas, no sentido a elas atribudo por Rawls, o Estatuto
Racial adota como diretriz poltico-jurdica a reparao (Art. 4). O conceito de
reparao est assentado sobre alicerces polticos e ideolgicos singulares, que preciso delinear.
No pensamento jurdico, reparao a noo segundo a qual uma sentena
justa deve compensar adequadamente a vtima de um crime. A reparao tpica
consiste numa restituio monetria. No direito de guerra, a imposio de reparaes
a serem pagas pelas potncias derrotadas tem uma longa histria, desde as indenizaes
pagas por Cartago a Roma aps as Guerras Pnicas at as reparaes que a Alemanha
concordou em pagar Entente nos termos do Tratado de Versalhes. De modo geral, naguerra, as reparaes tomaram o lugar da pilhagem, pela qual os vencedores
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apropriavam-se de riquezas dos vencidos, que foi proibida pelas convenes de Haia
(1907) e de Genebra (1949).
A reparao opera num quadro em que se definem, nitidamente, as figuras do
criminoso e da vtima. Nos tribunais, essas figuras so individualizadas. Na guerra, a
vitria decide quem quem, mas essas figuras so coletividades assim como nas
polticas racialistas. A lgica subjacente ao Estatuto Racial a narrativa de um crime (a
escravido), cometido por uma coletividade criminosa (a nao branca) contra uma
coletividade vitimizada (a nao afro-brasileira). Sob essa perspectiva, as aes
afirmativas aparecem como reparaes pagas pela nao branca nao afro-
brasileira.
O Estatuto Racial entrega-se, essencialmente, ao mimetismo do modelo norte-
americano. Mas a operao no simples, pois a construo social de percepes
ntidas e marcadas de raa nos Estados Unidos contrasta com a extrema fluidez das
identidades raciais no Brasil.
Para circundar a dificuldade, o Estatuto coloca nfase em iniciativas destinadas a
fabricar uma raa negra amparada na noo de ancestralidade africana. Ao Ministrio
da Sade atribui-se a responsabilidade de produzir estatsticas sobre doenas
geneticamente determinadas ou agravadas pelas condies de vida dos afro-
brasileiros (Art. 13). Os currculos escolares do ensino fundamental e mdio devem
incorporar a disciplina Histria Geral da frica e do Negro no Brasil (Art. 21). Os
rgos de fomento pesquisa so chamados a criar programas voltados para questes
pertinentes populao afro-brasileira (Art. 22). Os veculos de comunicao devem
valorizar a herana cultural dos afro-brasileiros (Art. 73). A programao de tev e
cinema, assim como as peas publicitrias, ficam obrigadas a apresentar imagens de
pessoas afro-brasileiras numa proporo mnima de 20% do total de atores e figurantes
(Art. 74 e Art. 75).O novo contrato social consubstanciado no Estatuto Racial no pode ser
compreendido pela anlise exclusiva do processo histrico brasileiro. As fontes
doutrinrias que o alimentam e a articulao poltica que o promove so fenmenos
internacionais. O Estatuto Racial fruto de uma trajetria que se inicia nos Estados
Unidos, na dcada de 1970, e ganha amplitude maior com a Conferncia Mundial contra
o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e a Intolerncia (Conferncia de
Durban, 2001).
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De Bundy a Durban: a trajetria do racialismo
No 29 de junho de 2006, o Congresso Nacional recebeu uma Carta Pblica,
firmada por 114 intelectuais, artistas e ativistas de movimentos negros, contra o Estatutoda Igualdade Racial e o projeto de lei de cotas raciais nas universidades federais. 2 Um
dia antes da entrega, o socilogo norte-americano Edward Telles, que no a assinava,
pescou o texto na internet e publicou-o no boletim eletrnico da Brazilian Studies
Association. Acrescentou um cabealho no qual informava que ele circulou no Brasil
com o ttulo Manifesto da Elite Branca.
O evento, em si mesmo perifrico, evidencia a natureza da articulao poltica
do racialismo. A declarao dos anti-racialistas no Brasil tornou-se conhecida primeiro
na comunidade acadmica de brasilianistas dos Estados Unidos (e com seu ttulo
falsificado) e s depois na opinio pblica brasileira.
Telles professor de sociologia na Universidade da Califrnia, Los Angeles,
publicou trabalhos sobre relaes raciais no Brasil, pesquisa a integrao social dos
mexicanos-americanos e foi diretor de programas da FF no Rio de Janeiro, na dcada de
1990. A FF inspirou o multiculturalismo e os programas de cotas raciais nos Estados
Unidos, atuando em estreita conexo com os governos Lyndon Johnson (1963-69) e
Richard Nixon (1969-74). McGeorge Bundy, assessor de Segurana Nacional de
Johnson, deixou o governo para tornar-se presidente da FF, cargo que ocupou entre
1966 e 1979. Sob Bundy, a fundao filantrpica transformou-se num aparato
ideolgico internacional.
Nos anos 60, os Estados Unidos conheceram a emergncia dos movimentos
sociais pelos direitos civis dos negros e contra a Guerra do Vietn, que tendiam a se
reforar mutuamente. A luta pelos direitos civis, liderada por Martin Luther King,
mobilizava a juventude negra e organizava-se em torno da bandeira da igualdade
poltica. A luta contra a Guerra do Vietn tambm mobilizava principalmente os jovens,
mas ramificava-se amplamente na classe mdia urbana. Naquele contexto, a FF
introduziu o multiculturalismo, como agenda poltica e como paradigma acadmico.
Joanne Barkan registrou que os lderes dos movimentos pelos direitos civis
desconfiaram desde o incio das polticas diferencialistas, antevendo efeitos negativos
como o agravamento das tenses raciais e o estiolamento das coalizes sociais
progressistas. Barkan tambm sugeriu uma relao significativa entre a emergncia do
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multiculturalismo e o encerramento do ciclo de expanso do ps-guerra: o perodo da
deteriorao econmica coincidiu com a era da ao afirmativa (Azevedo, 2004:230).
O multiculturalismo no nascia de baixo, mas de cima.
O ponto de partida foi a advocacia de interesse pblico, voltada para as minorias.
A fundao financiou fundos para litigncia em defesa das mulheres (Womens Law
Fund), dos porto-riquenhos (Puerto Rican LDEF), dos mexicanos-americanos
(Mexican-American LDEF) e dos povos indgenas (Native-American LDEF). O
envolvimento da FF com os negros iniciou-se pelo financiamento de antigas
organizaes. A American Civil Liberties Union, fundada em 1920, passou a depender
principalmente do financiamento da fundao. A National Association for the
Advancement of Colored People (NAACP), fundada em 1909, ganhou um fundo
jurdico e educacional. Em 1994, diante da virtual falncia da NAACP, a fundao
promoveu seu resgate financeiro e, na prtica, assumiu a sua administrao.
A FF no se limitou a financiar as organizaes existentes. Movimentos
militantes de chicanos foram convertidos em organizaes tnicas, como o Southwest
Council of La Raza e o National Council of La Raza. luz do multiculturalismo e do
conceito de pluralismo, as organizaes de imigrantes e negros apoiadas pela fundao
deveriam representar as vozes e aspiraes das diversas naes constitutivas da
confederao norte-americana. Contudo, a liderana dessas organizaes concentrou-
se nas mos de quadros acadmicos e burocratas da prpria FF (Roelofs, 2003).
Os argumentos da FF apoiavam-se no forte contedo tnico das desigualdades
sociais nos Estados Unidos, mas as propostas principais de interveno no estavam
dirigidas para a reduo da pobreza ou para uma verdadeira universalizao dos
direitos. As aes afirmativas voltaram-se, desde o incio da dcada de 1970, para as
universidades norte-americanas, com a finalidade explcita de formar uma elite
afroamericana que servisse como referncia poltica e social para a populao negra.A introduo do multiculturalismo nas universidades representou uma
verdadeira reestruturao acadmica, obtida por meio de vultosos financiamentos
vinculados criao de novos campos de estudo e departamentos. As minorias
tornaram-se objeto de investigao, com a produo de linhas de ensino e pesquisa
voltadas para os temas de gnero, etnia e raa. Mas a reestruturao abrangia tambm
mudanas na composio tnica dos corpos docente e discente, por meio de
incentivos e cotas, e um firme compromisso ideolgico das instituies com oparadigma do multiculturalismo.
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A amplitude do programa de reestruturao das universidades ficou evidenciada
no comunicado dos conselheiros acadmicos da FF de 8 de fevereiro de 1990: Nosso
compromisso com a diversidade requer que as universidades completem essa transio
aumentando substancialmente o nmero de pessoas de grupos subrepresentados nos
corpos discente, nas faculdades e nos rgos administrativos. Este no apenas um
desafio para responsveis de admisso. crucial que a diversidade seja sustentada at a
completa formao universitria dos estudantes e mais alm, em carreiras acadmicas e
administrativas bem sucedidas. (...) Para extrair todos os dividendos da diversidade
pode ser necessrio que uma instituio repense certos aspectos do currculo e outros
tradicionais compromissos da comunidade acadmica. A diversidade traz mudanas,
ainda, fora das salas de aula, afetando a vida residencial, os servios dos campi, os
eventos culturais e as atividades estudantis (...). Este reconhecimento das diferenas
modula os esforos de ao afirmativa na admisso de estudantes, nas contrataes
acadmicas e na concesso de ajuda financeira. (Sykes & Billingsley, 2004).
A FF rompeu a tradio das instituies filantrpicas. No lugar de conceder
financiamentos baseados no mrito das instituies acadmicas, a FF atribuiu-se a
misso de revolucionar por dentro as prprias instituies. Os impactos dessa orientao
na paisagem acadmica dos Estados Unidos no devem ser minimizados. Os
financiamentos da fundao para educao e cultura no pas somaram US$ 94 milhes,
apenas em 1994. Tais financiamentos so vinculados no apenas ao imperativo da
transformao curricular como tambm adoo de critrios de diversidade nas
equipes de pesquisadores e no corpo docente: De acordo com um artigo recente na
Chronicle of Philanthropy, todas as candidaturas a financiamentos devem incluir um
quadro de diversidade (...) que detalha o nmero de no-brancos e mulheres
envolvidos no projeto e, s vezes, no conjunto da instituio. (Sykes & Billingsley,
2004).Contudo, a difuso acelerada do empreendimento multiculturalista nos Estados
Unidos no decorre primariamente do poder financeiro da FF. Durante a Copa do
Mundo de Futebol de 2006, o zagueiro francs Thuram reagiu s reclamaes de Jean-
Marie Le Pen, o lder da Frente Nacional, que mencionara uma vez mais o excesso de
negros na seleo de seu pas. Em entrevista imprensa, Thuram esclareceu: No sou
negro, sou francs. Le Pen deveria saber que assim como existem negros franceses,
existem loiros e morenos, e no so convocados para a seleo por sua cor, mas porserem franceses. (Folha de S. Paulo, 30/6/2006). A afirmao identitria do zagueiro
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corresponde plenamente experincia histrica da Frana, que inscreveu na
Constituio de 1795 o princpio do direito da terra. Nos Estados Unidos, uma
experincia diferente coagulou-se na noo do melting-pot o caldo cultural no qual os
elementos originais se misturam mas nunca se fundem.
A identidade, nos Estados Unidos, define-se pela gota de sangue, que separa
as pessoas em grupos imiscveis. As categorias censitrias brancos, afro-
americanos, nativos, hispnicos e asiticos aparecem como identidades
naturais e proporcionam um fundamento poltico para a narrativa multiculturalista. De
certa forma, o princpio jurdico do separados, mas iguais (separated but equal), base
da discriminao legal no passado, revela sua persistncia nas polticas de reparao
que varreram o pas a partir dos anos 70. Sou afro-americano, talvez respondesse um
Thuram norte-americano, referendando parcialmente o rtulo de estrangeiro que Le
Pen lhe pregava.
O ressurgimento triunfante da raa, nos Estados Unidos, foi promovido pela
esquerda, mas abriu caminho para a restaurao da raciologia de direita. Um
exemplo o livroA curva do sino, que agarra o fio perdido do racismo cientfico do
sculo XIX: Aps a demonstrao meticulosa de muitos grficos, quadros e
estatsticas, e farto uso dos resultados de testes de inteligncia, pretendeu-se comprovar
a inferioridade mental dos negros americanos. Seu apelo final aos leitores para que
cada um reconhea a sua identidade racial e, em conseqncia disso, o seu lugar na
hierarquia social, dando-se ensejo a uma sociedade harmoniosa a despeito de suas
desigualdades. (Azevedo, 2004:216).
A negao radical da raa uma singularidade francesa. Mas, como explica o
antroplogo Peter Fry, so marcantes as diferenas nas identidades nacionais
construdas pelas antigas colnias britnicas e portuguesas: Os britnicos construram
as suas colnias celebrando (e at produzindo e exacerbando) as particularidadesculturais dos seus sditos. Os portugueses embarcaram num processo de seduo
cultural, imaginando, pelo menos, um mundo onde todos seriam portadores da cultura
portuguesa. A lgica do sistema britnico levou a Jim Crow e ao apartheidno passado,
e a solidariedades tnicas e raciais no presente. (...) A lgica do sistema portugus
levou a um sistema de escravido assimilacionista no passado e a um ideal de
democracia racial at muito recentemente. (Fry, 2003:335).
A luta contra o apartheidganhou amplitude com a revolta de Soweto, de junhode 1976. O levante foi conduzido pelos jovens estudantes secundaristas negros que se
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rebelaram contra o ensino em africner, o idioma oficial da frica do Sul dos
africnderes, e exigiam a sua substituio pelo ingls. Soweto j era uma vasta township
de Johannesburgo, h muito conectada culturalmente s influncias estrangeiras. Uma
descrio da aglomerao, nos anos 50, revela as razes da revolta: noite, os
povoados ganhavam vida, vigor e confiana, vibrando com o jazz, o swing e a gria
americana, que desafiavam qualquer noo de temporariedade ou tribalismo (...).
(Sampson, 1988:87). Os multiculturalistas so incapazes de compreender isso e se
surpreenderiam se algum resolvesse aplicar, com boas razes, o termo afro-
americanos para fazer referncia no aos negros dos Estados Unidos mas aos jovens
africanos de Soweto.
O multiculturalismo celebra a linhagem, a ancestralidade, as razes culturais.
Nos terrenos histrico e filosfico, ele se inscreve firmemente na tradio romntica do
direito do sangue. O apartheid representou uma reao romntica modernidade e
colocou em movimento as engrenagens de uma engenharia social multiculturalista avant
la lettre. Por meio do poder de Estado, mas tambm da etnologia, a tribo africnder
dominante fabricou cientificamente e classificou legalmente as etnias da frica do
Sul. No seu auge, o Estado africnder montou o cenrio institucional para a criao de
uma confederao de naes, sob a forma territorial dos bantustes (Magnoli, 1992).
Quando o apartheid desabou e a maioria negra assumiu o poder, as identidades
existentes no foram abolidas, mas reinterpretadas. Por essa via, emergiu a nao do
arco-ris e, sem sobressaltos maiores, implantaram-se polticas abrangentes de ao
afirmativa.
As aes afirmativas sul-africanas apresentam-se como medidas de reparao
e incluem metas raciais para os grupos desfavorecidos (africanos, indianos e
coloureds) nos corpos docentes, discentes e entre servidores das universidores, mas no
existem cotas previamente definidas. Algumas dessas prticas de incluso j existiamdurante o apartheid, em universidades liberais, historicamente brancas, de idioma ingls
(Silva, 2006). As polticas de reparao estenderam-se para o mercado de trabalho e o
financiamento estatal de empresas privadas. Uma meta do governo, sob a rubrica do
black empowerment, que 25% das empresas do pas sejam de propriedade de negros
at 2010. O arcebispo Desmond Tutu, lder das lutas contra o apartheid, acusou o
black empowerment de beneficiar no a maioria, mas uma elite que tende a se
reciclar (Guest, 2004).
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A difuso do multiculturalismo no mundo anglo-saxnico repercutiu nas
instituies multilaterais e o modelo britnico (e norte-americano) converteu-se em
modelo internacional: Hoje essa a lgica que impera nas organizaes internacionais
as mais diversas (Fry, 2003:335). No ps-guerra, sob o impacto das lutas anticoloniais
na sia e na frica, a Unesco declarava que menos que um fato biolgico, raa um
mito social e, como tal, tem causado em anos recentes pesados danos em termos de
vidas e sofrimentos humanos.3 Atualmente, em particular aps a Conferncia de
Durban de 2001, essa linguagem foi praticamente abolida em todo o sistema das Naes
Unidas.
A globalizao do paradigma multicultural, contudo, no um processo
natural, mas o resultado das iniciativas de agentes polticos definidos, em especial as
fundaes filantrpicas norte-americanas e as ONGs que elas financiam e orientam. A
FF passou a difundir mais ativamente as polticas de diversidade em escala
internacional a partir dos anos 80, impulsionando a constituio de redes de ativistas na
Amrica Latina, frica e sia. No final do ano fiscal de 2004, seu portflio de
investimentos atingiu US$ 10,5 bilhes e os financiamentos anuais totalizaram US$ 520
milhes. No Brasil (Rio de Janeiro) e na frica do Sul (Johannesburgo) estavam dois
dos 12 escritrios globais da fundao.
A FF tem uma longa histria de apoio s cincias sociais brasileiras (Miceli,
1995). George Zarur, acadmico que manteve prolongada relao com a fundao,
reconhece e lamenta que, h mais de duas dcadas, seus financiamentos para o Brasil
priorizem fortemente a disseminao do programa racialista (Zarur, eletrnico). Num
artigo explicitamente destinado a defender a atuao da fundao no Brasil, Edward
Telles reconhece o forte dirigismo impresso aos financiamentos: A Ford-Brasil requer
uma tabulao da diversidade e uma explicao de todos os seus financiados em todos
os campos de atuao. Isto inclui mais de cem apoios por ano, dos quais menos de vinteso, principalmente, sobre questes raciais. Esta tabulao enumera toda a equipe em
diferentes nveis, de acordo com critrios de gnero (...), de raa (brancos/no-brancos),
e a explicao induz os financiados a explicarem por que eles refletem, ou no, a
diversidade local com respeito a gnero e cor e o que eles pretendem fazer para
melhorar isto. (Telles, 2002:153).
A Conferncia de Durban, de 2001, situa-se no cruzamento dos campos de fora
das instituies multilaterais e das fundaes filantrpicas globais. Realizada sob osauspcios das Naes Unidas, na frica do Sul do ps-apartheid e do black
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empowerment, a conferncia foi dominada pelas ONGs multiculturalistas e produziu
as bases polticas e jurdicas para uma nova etapa de radicalizao das polticas
racialistas.
O conflito no Oriente Mdio deflagrou um cisma no encontro de Durban. Por
iniciativa de uma coalizo de interesses envolvendo pases rabes e muulmanos,
ativistas de direitos humanos e multiculturalistas, a conferncia aprovou uma resoluo
identificando sionismo e racismo o que provocou a retirada das delegaes dos
Estados Unidos e de Israel, alm de declaraes formais da Austrlia e do Chile
deplorando a hipocrisia do encontro. Os Estados africanos, por seu turno,
pressionaram por um claro pedido de desculpas das naes que se beneficiaram do
trfico de escravos, mas no conseguiram incluir a exigncia no texto final em virtude
da oposio de Estados europeus.
A Declarao e o Programa de Ao de Durban constituem um tenso
compromisso entre o conceito clssico de igualdade poltica e os conceitos de etnia e
raa do multiculturalismo.4 Ao lado da reafirmao e detalhamento dos princpios gerais
proclamados pela Declarao Universal dos Direitos Humanos, a Declarao
consagra a diversidade cultural como valioso patrimnio para o desenvolvimento e
bem-estar da humanidade e reconhece o multiculturalismo como valor internacional.
Mais concretamente, para o que interessa s polticas racialistas, a Declarao
oficializa o conceito de afrodescendentes e solicita o reconhecimento da cultura e
identidade dos afrodescendentes nas Amricas e, de modo geral, nas regies da
dispora africana. Sob uma linguagem atenuada, o Programa de Ao adota as
noes de reparaes e aes afirmativas ou positivas, especialmente em
comunidades de descendncia primariamente africana.
Em Durban, procurou-se inserir o princpio da diversidade no direito
internacional. Mas, sobretudo, a conferncia engajou-se na produo de umacoletividade internacional vitimizada, que aparece como detentora de um direito
reparao. A imagem de uma nao diasprica os afrodescendentes constituda
com base na ancestralidade e na cultura tem evidentes e perigosas implicaes polticas.
De acordo com os textos adotados pela ONU, os Estados das Amricas deveriam
renunciar idia de unidade nacional e reconhecer suas sociedades como comunidades
plurinacionais. No Brasil, isso significa desistir da idia-fora de mestiagem, sobre a
qual se ergueu a identidade nacional.
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Enquanto se internacionalizava, o empreendimento multiculturalista
experimentava uma retrao na sua ptria de origem. Em 2003, apenas dois anos aps a
Conferncia de Durban, a Corte Suprema dos Estados Unidos limitou os programas de
ao afirmativa de cunho racial, ao proibir a adoo de cotas numricas no sistema de
ensino. Numa deciso mais contundente, adotada a 28 de junho de 2007, a Corte
Suprema proibiu, por maioria de 5 votos contra 4, o uso da raa como critrio para a
tomada de decises individuais sobre o ingresso de estudantes em escolas de ensino
mdio.
O ncleo da deciso da maioria ficou sintetizado nas seguintes palavras: Aes
governamentais que dividem o povo por meio da raa so essencialmente suspeitas pois
tais classificaes promovem noes de inferioridade racial e conduzem a polticas de
hostilidade racial; reforam a crena, sustentada por tantos durante tanto tempo de nossa
histria, de que os indivduos devem ser avaliados pela cor da sua pele; endossam
argumentaes baseadas na raa e a concepo de uma nao dividida em blocos
raciais, contribuindo desse modo para uma escalada de hostilidade racial e conflito.5
No seu argumento, o presidente da Corte, John G. Roberts Jr., escreveu que o
caminho para acabar com a discriminao baseada na raa acabar com a discriminao
baseada na raa. H um sentido claro na reiterao: a inverso do sinal da
discriminao, como se faz nas aes afirmativas raciais, consagra a raa no domnio
legal, destruindo o princpio da cidadania. O prembulo da Constituio americana
comea com a invocao Ns, o povo dos Estados Unidos..., que se tornou clebre
porque, pela primeira vez na histria, fundava-se uma nao sobre o alicerce de um
contrato poltico entre cidados iguais. O povo no existe se os direitos comuns se
convertem em privilgios distribudos segundo critrios raciais.
A rigor, o povo no existiu plenamente nos Estados Unidos durante toda a
vigncia da escravido e nem mesmo depois, enquanto perdurou o princpio doseparados, mas iguais. A fronteira legal da raa foi suprimida apenas com a vitria do
movimento pelos direitos civis, nos anos 60. A vitria comeou a ser construda em
1954, quando a Corte Suprema julgou o caso Brown versus Board of Education e, por
unanimidade, declarou que as escolas no podiam ser iguais, se eram separadas. Ali,
tombou a segregao racial no ensino e emergiu o paradigma ao qual novamente se
curvou a maioria da Corte em 2007. No seu argumento, o juiz Roberts Jr. voltou-se
explicitamente para a letra e o esprito de Brown versus Board of Education.
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O juiz Anthony Kennedy alinhou-se com a maioria, mas proferiu um voto
separado, dissentindo parcialmente. Primeiro, ele protestou: Quem exatamente
branco e quem no-branco? Ser forado a viver sob um rtulo racial oficial
inconsistente com a dignidade dos indivduos na nossa sociedade. E um rtulo que um
indivduo impotente para mudar!. Depois, sustentou a legalidade de iniciativas como
a seleo de reas residenciais racialmente segregadas para os investimentos prioritrios
em educao pblica. O seu voto representa uma contestao direta da noo de
classificao racial, que est entranhada na tradio histrica americana. Ele tambm
aponta um caminho para a formulao de polticas de ao afirmativa de contedo no-
racial.
Contra Freyre: a difamao da miscigenao
Pierre Bourdieu e Loic Wacquant argumentaram que as polticas racialistas no
Brasil so uma importao do modelo dos Estados Unidos, promovida pela ao global
das fundaes filantrpicas e pela influncia internacional dos acadmicos-ativistas
norte-americanos: Com efeito, o que pensar desses pesquisadores americanos que vo
ao Brasil encorajar os lderes do movimento negro a adotar as tticas do movimento
afro-americano de defesa dos direitos civis e denunciar a categoria pardo (...) a fim de
mobilizar todos os brasileiros de ascendncia africana a partir de uma oposio
dicotmica entre afro-brasileiros e brancos no preciso momento em que, nos Estados
Unidos, os indivduos de origem mista se mobilizam a fim de que o Estado americano
(a comear pelos Institutos de Recenseamento) reconhea, oficialmente, os americanos
mestios, deixando de os classificar fora sob a etiqueta exclusiva de negro? (...).
Semelhantes constataes nos autorizam a pensar que a descoberta to recente quanto
repentina da globalizao da raa (...) resulta, no de uma brusca convergncia dos
modos de dominao etno-racial nos diferentes pases, mas antes da quase
universalizao do follk conceptnorte-americano de raa sob o efeio da exportao
mundial das categorias eruditas americanas. (Bourdieu & Wacquant, 2002:23).
Contudo, a anlise evidentemente incompleta, se no coloca a questo de saber
por que os conceitos importados experimentaram recepo positiva em amplos setores
da academia e, eventualmente, converteram-se em poltica de Estado. O que se
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circunda, nessa argumentao, a prvia desmontagem de uma imagem do Brasil
desenhada por Gilberto Freyre e assentada na valorizao da mestiagem.
Freyre jamais ocultou a violncia da escravido acusao que lhe fazem os
racialistas dos nossos dias. Em Casa-grande & senzala, exps minuciosamente os
sofrimentos a que eram submetidos os escravos mas, sobretudo, rompeu com o
racismo cientfico e seu paradigma da superioridade racial dos brancos. Os racialistas
o apontam tambm como o formulador do conceito de democracia racial,
confundindo-o com a valorizao da miscigenao: Por conta da tremenda influncia
de Gilberto Freyre a partir dos anos 30, os brasileiros foram capazes de achar sua
salvao atravs da celebrao da miscigenao e da construo ideolgica da
democracia racial. (Telles, 2002:149).
No foi Freyre quem cunhou a expresso democracia racial e, embora a tenha
empregado algumas poucas vezes nos anos 60, trata-se de uma noo estranha ao ncleo
do seu pensamento: o que ele via como realidade era a mestiagem e no o convvio
sem conflito entre raas estanques (Kamel, 2006:18). Para Freyre, as culturas dos
diferentes componentes da nao brasileira existem em cada um dos brasileiros e
nesse sentido ele expressou, na linguagem da sociologia, o ideal modernista de nao.
A revoluo conceitual freyreana propiciou a superao da imagem do pas
elaborada pelo Imprio, cuja elite enxergava na populao negra o obstculo principal
para a construo de uma civilizao moderna nos trpicos. O elogio da mestiagem
reconciliou a nao consigo mesma, descortinando um futuro baseado na igualdade
poltica dos cidados.
No ps-guerra, com Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy
Nogueira e Carlos Hasenbalg, a imagem freyreana do Brasil sofreu a contestao de
uma sociologia profundamente influenciada pelo marxismo. Ironicamente, essa
contestao abriria caminho para o racialismo contemporneo, que substitui o conceitode classes sociais pelo de raas.
Fernando Henrique e Florestan Fernandes introduziram a taxonomia polar
branco/negro e, sob formas distintas, tenderam a estabelecer relaes de
correspondncia entre raa e classe. Eles interpretaram a sociedade brasileira luz das
noes paralelas de capitalismo e atraso. O primeiro, em Capitalismo e escravido no
Brasil meridional, de 1961, explicou o preconceito de raa como fruto da representao
do negro ocioso, criada aps a Abolio e decorrente da marginalizao econmica dapopulao negra. O segundo, notadamente na obraA integrao do negro na sociedade
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de classes, publicada em 1964, explicou a excluso da populao negra brasileira e a
discriminao racial como heranas da escravido, que tenderiam a desaparecer com o
desenvolvimento do capitalismo (Fry, 2003:217).
As diferenas entre Brasil e Estados Unidos nas percepes raciais, nos
padres de segregao espacial, nos casamentos mistos e nas atitudes diante da
diversidade no foram ignoradas por essa sociologia, que esbarrava continuamente na
dificuldade de aplicar entre ns os conceitos norte-americanos. O reconhecimento dessa
dificuldade explicitou-se com Oracy Nogueira, que tentou contorn-la por meio da
distino conceitual entre preconceito de origem e preconceito de marca. O
preconceito de origem, vigente nos Estados Unidos, determina o pertencimento racial
pela regra da gota de sangue. O preconceito de marca, que vigoraria no Brasil,
utiliza o critrio da aparncia fisionmica.
Ali Kamel argumenta que a clebre distino tem o efeito paradoxal de
promover uma identificao. No fim das contas, Brasil e Estados Unidos representariam
apenas verses alternativas do fenmeno comum do preconceito racial. Em vez de ver
as nossas especificidades e, diante delas, opor-nos frontalmente situao americana,
Oracy acaba por nos igualar, tornando-nos, como sociedade, to racistas quanto os
americanos (Kamel, 2006:21). De fato, a tese dos preconceitos paralelos afastava o
problema que a originou, sem solucion-lo. Do ponto de vista de uma histria
comparada, ignorava algo fundamental: enquanto, nos Estados Unidos, a discriminao
racial corporificou-se na lei at os anos 60, a legislao republicana brasileira sempre a
proibiu.
Um passo decisivo na desmontagem da imagem freyreana foi dado por
Hasenbalg, no final da dcada de 70, que utilizou um aparato estatstico sofisticado para
sustentar a tese segundo a qual as desigualdades econmicas entre brancos e negros
no se vinculariam herana da escravido mas, diretamente, discriminao racial(Hasenbalg, 1979). Essa ruptura da ruptura est na raiz da multiplicao de estudos
estatsticos produzidos pelos racialistas com a finalidade precpua de demonstrar o
adgio que reza que pobreza tem cor e raa.
De Florestan Fernandes e Fernando Henrique a Carlos Hasenbalg h uma
transio de fundo. Para os primeiros, capitalismo e classes sociais eram as categorias
decisivas, enquanto para o ltimo, assim como para os racialistas contemporneos, o
que existe antes de tudo so raas e discriminao. Mas, ao longo dessa transio,consolidou-se a taxonomia polar de inspirao norte-americana como descrio
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sociolgica do Brasil. A opo por essa taxonomia no deve ser entendida simplesmente
como mimetismo ou importao. Yvonne Maggie observou que, em A integrao do
negro na sociedade de classes, Florestan Fernandes utilizou os termos negro e
branco segundo o desejo dos ativistas negros seus informantes (Fry, 2003:223).
Do ponto de vista poltico, a questo da taxonomia ocupa um lugar vital para o
movimento negro, pois a imagem de uma nao miscigenada muito mais do que um
paradigma sociolgico confinado obra de Gilberto Freyre. Essa imagem, filtrada pelos
procedimentos classificatrios estabelecidos pelo IBGE e pelos olhos do recenseador,
exprime-se nos censos pela amplitude e generalidade da categoria pardos. Tudo se
torna mais confuso quando no h filtros. Na Pesquisa Nacional por Amostra de
Domiclios (Pnad) de 1976, um levantamento baseado na autodeclarao de raa/cor e
no nas categorias censitrias fechadas do IBGE, mais de 40% dos respondentes
optaram por descries intermedirias entre as categorias branco e preto. Segundo a
antroploga Lilia Schwarcz, (...) o conjunto de nomes mostrou-se muito mais
complexo do que o abrangente termopardo. O resultado da enquete indica a riqueza da
representao com relao cor e o quanto a sua definio problemtica. (Schwarcz,
1998:26).
Ironicamente, sob a bandeira da diversidade, os racialistas e a maior parte do
movimento negro entregaram-se tarefa de abolir a riqueza da representao com
relao cor. As descries inesperadas de cor/raa de 1976 foram interpretadas como
expresso de falsa conscincia ou mesmo como provas de que um racismo
avassalador bloqueava a correta autodeclarao racial de dois quintos dos brasileiros.
Como conseqncia, o Censo Demogrfico de 1991 foi precedido pela campanha No
deixe sua cor passar em branco, promovida por ONGs racialistas com apoio discreto
do poder pblico, que encorajava os no-brancos a se declararem negros.
Mas as estatsticas so o fenmeno derivado, no o principal. A fabricao deuma nao bicolor solicita a elaborao de uma narrativa racial completa da histria do
Brasil. Essa narrativa, fundada na noo da opresso multissecular dos negros por
uma elite branca, est sendo redigida nas ltimas dcadas e deve se tornar parte
integrante do currculo escolar em todo o pas.
O projeto do Estatuto Racial determina a introduo de uma disciplina intitulada
Histria Geral da frica e do Negro no Brasil nas escolas de ensino fundamental e
mdio, e autoriza o MEC a elaborar o seu programa (Art. 21). O Conselho Nacional de
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Educao antecipou-se eventual aprovao do Estatuto e tornou obrigatria a nova
disciplina, sob a denominao Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana.6
primeira vista, a idia supre uma notria lacuna nos contedos tradicionais de
Histria e, em tese, poderia ser abraada consensualmente. Mas um exame do Parecer
do Conselho Nacional de Educao de maro de 2004, que define o esprito da lei,
revela o sentido ideolgico da iniciativa. Numa de suas passagens, logo depois de
reconhecer ritualmente o princpio da igualdade bsica de pessoa humana como sujeito
de direitos, o Parecer introduz o essencialismo cultural, afirmando que o
fortalecimento de identidades e de direitos deve conduzir para (...) o esclarecimento a
respeito de equvocos quanto a uma identidade humana universal (Fry, 2003:345-
346).
A construo de uma narrativa racialista da histria do Brasil, com novos heris
oficiais e datas de memria, comeou com a iniciativa de substituir a comemorao do
13 de Maio (Abolio) pela celebrao do 20 de Novembro (Conscincia Negra). O site
Com Cincia O Brasil Negro explica a origem da iniciativa: H 32 anos, o poeta
gacho Oliveira Silveira sugeria ao seu grupo que o 20 de novembro fosse comemorado
como o Dia Nacional da Conscincia Negra, pois era mais significativo para a
comunidade negra brasileira do que o 13 de maio. Treze de maio traio, liberdade sem
asas e fome sem po, assim definia Silveira o Dia da Abolio da Escravatura em um
de seus poemas. Em 1971 o 20 de novembro foi celebrado pela primeira vez. A idia se
espalhou por outros movimentos sociais de luta contra a discriminao racial e, no final
dos anos 1970, j aparecia como proposta nacional do Movimento Negro Unificado.
(http://www.comciencia.br/reportagens/negros/03.shtml).
No ocorreu ao movimento negro, majoritariamente pautado pela agenda do
racialismo, incentivar a comemorao das duas datas. A substituio de uma data de
memria pela outra tem significados simblicos evidentes. A Abolio foi a primeiraluta social moderna de mbito nacional na histria do pas. O movimento abolicionista,
compartilhado por brasileiros de todos os tons de pele, mobilizou no apenas escritores
e intelectuais, mas operrios grficos, ferrovirios e jangadeiros. Os clubes
abolicionistas articularam-se a ex-escravos e escravos em revolta, incitando fugas das
fazendas e ajudando a esconder os fugitivos.
O Imprio do Brasil sustentou por todo o tempo possvel o trfico de escravos e
a escravido. Quando a princesa Isabel assinou o ato abolicionista, o sistema escravistaj se encontrava em runas, destrudo por uma longa luta popular que atravessou as
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classes sociais e dissolveu as bases polticas que sustentavam o Imprio. A simbologia
da Abolio organiza-se em torno do conceito de igualdade poltica e aponta na direo
do combate por direitos sociais universais. Mas, evidentemente, no oferece sustentao
para as polticas diferencialistas.
A celebrao de Palmares, por seu turno, descortina outras possibilidades.
Zumbi no viveu no Brasil mas na formao social de um enclave colonial-mercantil
portugus. Na luta desesperada que liderou, no existia a alternativa de mudar o mundo,
mas apenas a de segregar os seus num outro mundo, que foi Palmares. Na usina de
reviso histrica do racialismo, Zumbi surge como heri negro em luta contra a
opresso branca e o quilombo se converte em metfora do programa de separao
poltica e jurdica das raas.
A operao simblica, iniciada pelo movimento negro, tornou-se poltica de
Estado, como atesta a resposta da ministra Matilde Ribeiro a uma pergunta sobre a
importncia do 20 de Novembro: o melhor exemplo de ao simblica que
poderamos ter, que nos obriga, enquanto governo, a reconhecer que existiu Zumbi dos
Palmares, que existiu a luta histrica contra a escravido, e que a Abolio no aboliu.
Aboliu administrativamente, mas no incluiu os negros como cidados e cidads de
direito. O movimento negro teve uma atuao visionria 35 anos atrs (...). Isso hoje
fato, a agenda pblica brasileira tem (...) Zumbi dos Palmares como heri nacional.
(Caros Amigos, n 116, novembro de 2006).
De FHC a Lula: ao afirmativa no Brasil
Nos seus pronunciamentos e entrevistas como presidente, Fernando Henrique
Cardoso oscilou sempre entre o reconhecimento do valor da mestiagem e a sugesto de
que a cor da pele dividia a nao em dois conjuntos polares. Ali Kamel reproduz
algumas dessas tomadas de posio e interpreta a adoo de polticas afirmativas como
a continuidade do pensamento do socilogo Fernando Henrique na ao do presidente
FHC (Kamel, 2006:34).
O Estatuto Racial estava prefigurado em 1996, no PNDH de Fernando Henrique
Cardoso, que determinava a incluso do quesito cor nos sistemas de informao
demogrfica e nos bancos de dados pblicos, o incentivo criao de Conselhos da
Comunidade Negra nas esferas estadual e municipal, o apoio a aes de discriminao
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positiva realizadas pela iniciativa privada e o desenvolvimento de aes afirmativas
para acesso de negros a cursos profissionalizantes e universidade. O mesmo
documento adotava uma providncia administrativa de grande alcance poltico e
ideolgico: a determinao, dirigida ao IBGE, de considerar os mulatos, os pardos e os
pretos como integrantes do contingente da populao negra.
O IBGE resistiu, silenciosamente, orientao oficial que prev o uso do termo
negros nas suas pesquisas demogrficas e econmicas. A opo do rgo pela
preservao da categoria pardos evidencia o apego ao esprito do princpio da
autodeclarao de cor/raa. Contudo, amparadas na palavra do Estado, as ONGs do
racialismo entregaram-se fabricao de produtos estatsticos, de duvidosa qualidade,
que ocultam os pardos sob o rtulo abrangente de negros.
A maior parte das determinaes do PNDH sobre aes afirmativas no entrou
em vigor, o que revela a ambivalncia do governo Fernando Henrique Cardoso diante
do tema da raa. Mas, em novembro de 2001, a Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) adotou, pioneiramente, o sistema de cotas raciais para ingresso e, nas
esferas federal, estadual e municipal, as ONGs do racialismo tornaram-se parceiras do
poder pblico, iniciando uma trajetria que as conduziria, no governo Lula da Silva, ao
controle de uma secretaria com status ministeral e a misso de desenvolver as polticas
da raa nos mais diversos mbitos.
A parceria das ONGs com o poder pblico revelou toda a sua fora na
preparao da Conferncia de Durban, da qual a delegao brasileira participou como
ativa defensora do multiculturalismo. Imediatamente depois do encontro, um discurso
de Fernando Henrique Cardoso anunciou a formulao de polticas afirmativas para
os afrodescendentes, incluindo projetos para a formao de lideranas negras e
projetos de apoio a empreendedores negros (Kamel, 2006:36). O segundo PNDH foi
lanado a 13 de maio de 2002, junto com um Programa Nacional de Aes Afirmativasque previa a adoo de metas percentuais de afrodescendentes no preenchimento de
cargos em comisso do Grupo-Direo e Assessoramento Superiores uma
determinao que ressurgiria no projeto do Estatuto Racial (Art. 65). A nao bicolor
tomava forma, sob os auspcios do Estado.
Os alicerces polticos do racialismo foram implantadas no governo Fernando
Henrique Cardoso e, do ponto de vista conceitual, o governo Lula da Silva apenas deu
continuidade orientao anterior. A novidade, extremamente significativa, foi acriao da Seppir. Nas democracia representativas, o aparelho de Estado visto como
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uma mquina administrativa impessoal e apartidria, destinada a assegurar a execuo
das polticas de governo e o cumprimento da lei. A regra de ouro a separao entre a
esfera pblica e a esfera dos interesses privados, da qual tambm fazem parte os grupos
de presso, as ONGs e os think-tanks. A Seppir, concebida no governo Lula da Silva
como um enclave de ONGs e uma usina de ideologias, desafia essa regra.
Ao longo de sua carreira, a ministra Matilde Ribeiro personificou a ativista de
uma ONG racialista (Soweto Organizao Negra), a intelectual engajada nas polticas
da diversidade (Centro de Estudos sobre Trabalho e Desigualdades CEERT) e a
militante e administradora pblica petista (prefeituras de Osasco, So Paulo e Santo
Andr). Nas duas primeiras condies, integrou-se s redes do multiculturalismo
sustentadas pela FF. Na ltima, articulou essas redes ao esquema poltico do PT. Sob a
sua direo, a Seppir estatizou as ONGs racialistas e a maior parte do movimento
negro, imprimindo s suas doutrinas o selo de polticas oficiais.
A Seppir conta com oramento modesto, mas revelou-se um dos mais ativos e
eficazes ministrios do governo Lula da Silva. Seu segredo funcionar como plo
oficial de articulao dos aparatos do multiculturalismo na academia, nas ONGs e nos
movimentos sociais. A articulao abrange conexes internacionais extensas e
diversificadas, apoiadas sobre a FF e as instituies multilaterais. Os recursos
financeiros que a Seppir mobiliza de fato, indiretamente, tornam irrelevante a dimenso
de seu oramento oficial.
Com o advento da Seppir, as polticas racialistas adquiriram abrangncia
dificilmente previsvel no governo Fernando Henrique Cardoso. A Secretaria conseguiu
formular programas para implementao em outros ministrios, cumprindo a sua
vocao de usina ideolgica do governo Lula da Silva. No mbito do MEC, disseminou-
se a classificao racial compulsria dos estudantes, em todos os nveis, multiplicaram-
se nas universidades federais as polticas de cotas raciais e o ProUni ganhou ntidorecorte racialista. No mbito do Ministrio da Sade, implementou-se a iniciativa de
Sade da Populao Negra, que tem repercusses identitrias cruciais. No mbito do
Ministrio o Desenvolvimento Agrrio, o programa de identificao e delimitao de
terras quilombolas ganhou dinmica incontrolvel.
A verdadeira natureza da Secretaria de Matilde Ribeiro transparece em dois
episdios curiosos, nos quais os representantes da ministra rasgam a regra da
impessoalidade na administrao pblica:
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Em abril de 2006, o escritor Geraldo Carneiro, colaborador da minissrie JK,
da TV Globo, compareceu a uma reunio a convite Seppir. Com ele, mesa,
sentaram-se a subsecretria e o diretor de Polticas de Aes Afirmativas, Maria
Ins Barbosa e Jorge Carneiro. Os representantes do Estado encaminharam-lhe
um abaixo-assinado de ONGs do movimento negro contra a estigmatizao da
imagem negra e violncia contra as mulheres negras. Na verdade, ningum
acusou o escritor de distorcer fatos histricos. Maria Ins Barbosa explicou-lhe a
necessidade de reescrever a trama segundo critrios oficiais: A ausncia de
outros personagens refora a percepo do espectador. Estamos num momento
de desconstruo dos esteretipos e no podemos esquecer que a arte recria a
realidade. Consideramos a necessidade de um patamar de dignidade e luta que
sempre estiveram presentes na histria do povo negro
(http://www.planalto.gov.br/seppir/, acessado em 6 de abril de 2006).
No dia 3 de agosto de 2006, por iniciativa do senador Paulo Paim, o Senado
promoveu Audincia Pblica destinada discusso do Estatuto da Igualdade
Racial. Na ocasio, funcionrios pblicos com crachs da Seppir misturaram-se
a militantes de ONGs racialistas no plenrio para apupar os debatedores
convidados Jos Carlos Miranda (Movimento negro Socialista) e Roque Ferreira
(Comunidade Negra de Bauru), que expunham suas discordncias em relao ao
projeto.
Segundo antigas lideranas de entidades do movimento negro, a Seppir
desempenha papel significativo de cooptao de ativistas, que acabaria por degradar os
laos entre as organizaes sociais e suas bases. Essas lideranas observam que a
converso de ativistas em assessores de rgos oficiais e o influxo de financiamentos
obtidos pela mediao das autoridades tm impacto negativo sobre a autonomia e a
vitalidade das entidades do movimento negro. O processo brasileiro reproduziria, emlinhas gerais, o esvaziamento experimentado nos Estados Unidos pelos movimentos de
minorias na dcada de 70, quando especialistas e assessores das fundaes filantrpicas
passaram a tutelar as organizaes sociais (Roelofs, 2003).
O processo tem forte impacto poltico, como revela a trajetria seguida pelo
Movimento Negro Unificado (MNU). O MNU foi fundado em julho de 1978, num ato
pblico que reuniu milhares de pessoas nas escadarias do Teatro Municipal de So
Paulo. Do ponto de vista ideolgico, o Movimento organizou-se em torno dos conceitosde africanidade e dispora africana, formulados originalmente pelo pan-africanismo.
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O norte-americano W. E. B Du Bois (1868-1963) e o jamaicano Marcus Garvey
(1887-1940), pais fundadores do pan-africanismo, interpretaram a histria sob o
prisma das raas, de acordo com os paradigmas vigentes no seu tempo. Garvey chegou a
proclamar sua crena na pureza racial e preconizou o retorno frica, mas morreu
sem pisar no continente. Du Bois, por outro lado, defendia a organizao dos negros nos
pases da dispora mas transferiu-se para Gana a convite do presidente Kwame
Nkrumah em 1961 e pouco depois naturalizou-se cidado gans.
Garvey e Du Bois tornaram-se amargos antagonistas pessoais e trocaram
acusaes de racismo e colaboracionismo. Nenhum deles conhecia o caleidoscpio
cultural africano e, apesar das divergncias, ambos ergueram a bandeira da Nao-
frica, cuja unidade repousaria no antagonismo com a figura do branco escravista e
imperialista. A noo romntica da africanidade, com suas bvias conotaes
biolgicas e culturais, a fonte principal do MNU que, entretanto, sempre admitiu a
filiao de brancos e jamais adotou uma linguagem racista.
Na sua origem, o MNU associou o africanismo meta histrica do socialismo.
Palmares foi imaginado como um experimento de igualdade e uma inspirao de
transformao social. A concluso do Manifesto distribudo por seus militantes no
cortejo Curuzu/Pelourinho do Dia da Conscincia Negra de 2001 dizia: No primeiro 20
de novembro do milnio, o ideal socialista defendido por Zumbi dos Palmares,
permanece vivo na memria de quem arregaa as mangas para lutar pela igualdade.
Ciente desta responsabilidade, o Movimento negro Unificado MNU, conclama toda a
sociedade brasileira, em particular o povo negro, para cobrar essa dvida social. Isso s
ser possvel com intensas lutas, em todos os campos, contra o Estado brasileiro e suas
elites dominantes. preciso exigir: reparao j!
(http://br.geocities.com/racismo_nao/mnu.htm).
O conceito de reparao tinha um amplo significado histrico, para o MNUdas origens. Os africanos, da frica e da dispora, constituiriam uma nica nao
em luta contra o capitalismo branco. A vitria e a verdadeira reparao seria
possvel apenas pela transformao das sociedades e pela superao do capitalismo, em
escala internacional. Mas, quando o Manifesto do 20 de novembro de 2001 era
distribudo nas ruas de Salvador, o significado dos conceitos j conhecia profunda
mudana.
A preparao da Conferncia de Durban instilou divergncias de princpio nadireo e nas bases do MNU. Havia uma significativa resistncia participao no
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encontro, que refletia as desconfianas em relao ao modelo racialista norte-americano
e s ONGs que o difundiam. As polticas de aes afirmativas e cotas raciais eram
interpretadas por muitos como estratgias direcionadas para a incorporao de uma elite
negra na ordem dominante. No fim, um MNU descaracterizado, dilacerado por rupturas
e dissidncias, incorporou-se ao processo de Durban e acabou por se alinhar s polticas
da Seppir.
O novo MNU que emergiu de Durban conserva o africanismo mas
renunciou ao socialismo. Os dirigentes remanescentes aceitaram traduzir as polticas de
cotas como medidas parciais de reparao. A incorporao do termo nos
pronunciamentos da ministra Matilde Ribeiro, nos documentos oficiais da Seppir e no
Estatuto Racial reflete a barganha poltica que propiciou a cooptao do MNU.
No passado recente, a questo racial era objeto de acesos debates mesmo entre
os racialistas. As divergncias expressavam no apenas legtimas diferenas de opinio,
mas experincias polticas distintas de entidades, pesquisadores e movimentos sociais.
A Seppir fez tabula rasa dessa pluralidade de vises no campo racialista, uniformizando
o pensamento e as plataformas de ao. Atualmente, no Brasil, o racialismo uma
doutrina de Estado que molda a ao dos agentes no-estatais atuantes na cena poltica.
Excesso de cor: a raa como obsesso
Nos Estados Unidos, as polticas de ao afirmativa comearam na dcada de
1970. No decnio anterior, a parcela de negros abaixo da linha de pobreza reduziu-se de
47% para 30%. Na dcada das cotas raciais, a reduo atingiu apenas um ponto
percentual. Na frica do Sul, entre 1995 e 2000, sob um ambicioso programa de ao
afirmativa, a renda mdia das famlias negras reduziu-se em 19% e a desigualdade
nacional de renda aumentou. O economista norte-americano Thomas Sowell
demonstrou que aes afirmativas so consistentes com a ampliao das desigualdades
sociais e que tais polticas beneficiam apenas os integrantes da elite econmica do grupo
tnico ou racial teoricamente visado (Sowell, 2004).
No uma concluso espantosa, pois cotas nas universidades e no mercado de
trabalho produzem uma concorrncia restrita, intra-grupo, da qual saem vencedores os
indivduos com renda mais elevada e melhor formao escolar e profissional. Contudo,
no plano do discurso poltico, os defensores das cotas procuram assentar a legitimidade
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dessas estratgias na alegao de que elas so instrumentos de reduo das
desigualdades sociais. por isso que um componente crucial na introduo das polticas
de cotas tem sido a difuso da idia de que o Brasil no seria uma sociedade de classes
atravessada por profundas desigualdades de renda mas uma sociedade estamental
dividida rigidamente por fronteiras raciais.
Desde o trabalho de Hasenbalg, inmeros estudos estatsticos tentam comprovar
a assertiva de que a pobreza tem cor e raa. O mais destacado exemplo recente dessa
tentativa a pesquisa Retrato das Desigualdades, publicada pelo Instituto de Pesquisa
Econmica Aplicada (IPEA), que ganhou uma segunda edio em 2006.7 Conduzida
por pesquisadoras alinhadas com o paradigma racialista e ritualmente citada pela
ministra Matilde Ribeiro, a pesquisa ostenta o selo de um respeitado instituto oficial
mas manipula grosseiramente informaes do banco de dados do IBGE com a
finalidade de provar os seus prprios pressupostos.
O ponto de partida a fuso das categorias censitrias pretos e pardos na
categoria ideolgica negros. A supresso dos pardos produz magicamente um
Brasil dividido ao meio em brancos (51%) e negros (48%). Todos os grficos e
tabelas apresentados trazem a observao de que a populao negra composta de
pretos e pardos. Essa nota tcnica, que se sustenta apenas na deciso poltica adotada
no PNDH de 1996, o pilar estrutural da pesquisa. Sem ele, as concluses
desmoronariam por inteiro, pois os indicadores do IBGE insistem em mostrar que, em
mdia, a pobreza atinge mais amplamente os pardos do que os pretos. Os primeiros
tm menor rendimento mdio e menos anos de estudo, um forte indcio de que as
desigualdades sociais no pas no decorrem do preconceito racial.
No Brasil, o 1% mais rico da populao, constitudo essencialmente por
brancos, detm renda quase igual dos 50% mais pobres. Essa disparidade extrema
puxa para cima todos os indicadores econmicos e sociais referentes aos brancos,escondendo as massas de pobres com pele clara que habitam as periferias das
metrpoles, o serto nordestino e as vrzeas amaznicas. As autoras de Retrato das
Desigualdades usam, preferencialmente, as mdias gerais. O procedimento rudimentar
no decorre de incompetncia tcnica mas da paixo ideolgica. Ele funciona para
extrair as concluses paralelas de que os pobres so pobres por serem negros e de que
a pobreza no gruda em pessoas de pele menos escura.
Mas, sobretudo, a pesquisa no contempla uma abordagem geogrfica, passandoao largo das desigualdades regionais. Entretanto, h fortes indcios de que a questo
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regional muito mais relevante que a questo racial para explicar as desigualdades
sociais no Brasil. De acordo com dados do IBGE, cerca de 75% dos brancos vivem no
Sudeste e no Sul, as regies mais ricas do pas, enquanto 53% dos negros vivem no
Nordeste e no Norte, as regies mais pobres. Uma cartografia da distribuio dos mais
pobres (famlias com rendimento inferior a trs salrios mnimos) e dos mais ricos
(famlias com rendimento superior a dez salrios mnimos) evidencia que a cor da pele
predominante nos dois grupos a mesma que predomina na populao em geral, em
cada regio brasileira (Thry & Mello, 2005:113). De modo geral, os negros do
Sudeste e do Sul apresentam indicadores sociais melhores que aqueles dos brancos do
Nordeste e do Norte. Alm disso, um estudo estatstico recente sobre a desigualdade de
renda no Nordeste prova que as diferenas de rendimento no interior de grupos de
raa so muito mais significativas que as desigualdades entre esses grupos na
determinao da desigualdade total (Siqueira & Siqueira, 2006).
Os argumentos estatsticos dos racialistas foram submetido a cuidadoso exame
por Ali Kamel. Ele mostrou as falcias geradas pelo uso de dados agregados, que
ocultam as diferenas de renda e educao no interior dos grupos de cor. Sobre essa
base, ergueu convicentemente a tese de que as desigualdades de renda refletem as
desigualdades no sistema educacional, no o preconceito racial (Kamel, 2006:59-64). A
sua concluso que apenas fortes investimentos na educao pblica podem reduzir as
desigualdades sociais em geral e ampliar as oportunidades de incluso da populao
pobre, de todas as cores.
A engenharia social das raas depara-se, no Brasil, com a dificuldade bvia de
produzir a imagem de uma nao bicolor. Para sustentar o seu paradigma, os racialistas
procuraram produzir um desenho estatstico que consagrasse a existncia distinta e
ntida de uma populao afrodescendente. Sob presso das ONGs racialistas e de parte
do movimento negro, o IBGE aceitou fazer testes com a categoria afrodescendentes,mas o experimento fracassou pois uma proporo muito pequena dos declarantes
amostrados optou por essa autodeclarao.
O uso da categoria afrodescendentes como sinnimo de negros, como
propem os racialistas, no encontra sustentao cientfica. Na verdade, de modo geral,
os fentipos raciais no apresentam correspondncia estatisticamente aceitvel com as
informaes a respeito da ancestralidade gentica.
Um estudo da populao brasileira mostrou a inadequao de tentar identificarcor ou raa com ancestralidade geogrfica e de intercambiar termos como Branco,
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Caucasiano e Europeu, de um lado, e Negro ou Africano, de outro (Pena et alli, 2006).
Na mesma direo, outro estudo gentico calculou, com base nas informaes do censo
2000, que entre os 90.647.461 autoclassificados brancos do pas h aproximadamente
30 milhes que so descendentes de africanos (afrodescendentes) e um nmero
equivalente de descendentes de amerndios, pelo menos pelo lado materno (Pena,
2005:331-332).
Sempre que confrontados com tais concluses, os racialistas argumentam que
suas polticas baseiam-se na raa como constructo social e asseguram que rejeitam a
noo de raa biolgica. O antroplogo Kabengele Munanga, um defensor das polticas
de cotas raciais, sustenta que os racismos populares se reproduzem a partir de raas
fictcias, ou raas sociais (Munanga, 2004). Mas diversas iniciativas coordenadas pela
Seppir e pelo Ministrio da Sade sugerem que, na prtica, existe significativa
ambivalncia acerca desse tema.
A articulao raa/sade comeou no governo Fernando Henrique Cardoso. O
PNDH de 1996 incluiu um captulo relativo Sade da Populao Negra. Na
Conferncia Regional das Amricas contra o Racismo, realizada em Santiago (Chile),
no final de 2000, como preparao Conferncia de Durban, aprovou-se uma requisio
para que a Organizao Pan-Americana de Sade (Opas) promova aes para o
reconhecimento de raa/grupo tnico/gnero como varivel significante em matria de
sade e que desenvolva projetos especficos para preveno, diagnstico e tratamento de
pessoas de descendncia africana (Maio & Monteiro, 2005:20). No Brasil, desde
aquele evento, diversos artigos, geralmente de intelectuais negras racialistas, passaram a
sustentar a tese de que a varivel raa explica a prevalncia na populao feminina
negra de anemia falciforme, diabetes tipo II, miomas, e hipertenso arterial. Sob a
inspirao das polticas norte-americanas de raa, uma ateno particular foi consagrada
anemia falciforme.A cincia evidenciou que a anemia falciforme decorre de mutaes adaptativas
em regies endmicas de malria falciparum e que, portanto, no uma doena racial.
De acordo com o geneticista Srgio Pena: (...) a anemia falciforme ocorre
freqentemente em populaes no-negras e fora da frica (...). Deve ficar bem claro,
ento, que a anemia falciforme no uma doena de Negros nem uma doena
africana, mas sim uma doena eminentemente geogrfica, produto de uma bem
sucedida estratgia evolucionria humana para lidar com a malria causada peloPlasmodium falciparum. (Pena, 2005:338) Mas, nos Estados Unidos, entre as dcadas
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de 1920 e 1940, a doena foi estreitamente associada raa negra e, no ps-guerra,
gerou polticas de sade que tiveram o efeito de produzir uma comunidade negra
organizada para o bem-estar dos seus membros (Fry, 2005:352).
Os racialistas brasileiros, mimetizando a experincia norte-americana, enxergam
na anemia falciforme um marcador racial e uma plataforma para a iniciativa da
Sade da Populao Negra. Uma cartilha intituladaAnemia Faciforme viajemos por
essa histria..., destinada a ampla divulgao e publicada pela Associao de Anemia
Falciforme do Estado de So Paulo, pela Coordenadoria Especial do Negro do
Municpio de So Paulo e pelo MNU, apresenta a anemia falciforme como molstia
racial. Os pronunciamentos da ministra Matilde Ribeiro fazem referncias constantes
doena, associando-a ao corpo negro. O projeto do Estatuto Racial determina a
realizao obrigatria de exames em recm-nascidos, nos estabelecimentos pblicos e
privados de sade, para identificar a doena e orienta uma srie de aes voltadas para o
acompanhamento de portadores do trao falciforme (Art. 15).
A iniciativa da Sade da Populao Negra atingiu, mais recentemente, o
domnio das polticas de preveno e combate Aids. Em dezembro de 2004, numa
parceria da Seppir com a Secretaria de Direitos Humanos, o MEC e o Ministrio da
Sade foi lanado o Programa Integrado de Aes Afirmativas para Negros Brasil
AfroAtitude. O programa previa a distribuio de bolsas de estudo universitrias para
contribuir para a formao de estudantes negros como promotores de sade e de
qualidade de vida, e para a produo de conhecimentos no campo da preveno,
aconselhamento e assistncia s DST/AIDS (Fry et alli, 2007:498). Simultaneamente,
o Boletim Epidemiolgico da Aids de 2004, do Ministrio da Sade, era interpretado
pelas ONGs racialistas como prova de uma expanso maior da epidemia entre os
negros e, um ano depois, no Dia Mundial da Aids de 2005, o governo federal
selecionou a populao negra como alvo de uma campanha intitulada Aids eRacismo o Brasil tem que Viver sem Preconceito.
Admitidamente, no existe correlao entre Aids e cor da pele e no h nenhuma
evidncia de que os negros brasileiros apresentem maior vulnerabilidade Aids que
os demais grupos da populao. Mas isso no parece impedir a fabricao paulatina de
uma rede discursiva que, sedutoramente, associa a epidemia ao proconceito racial. O
discurso oficial em gestao to recente que no se encontra nenhum trao dele no
Estatuto Racial. Do ponto de vista da sade pblica, esse discurso oficial coloca emrisco a abordagem universalista do programa brasileiro de DST/Aids, que um
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fundamento reconhecido do seu sucesso. Do ponto de vista social, ele ameaa
promover, inadvertidamente, a associao preconceituosa entre Aids e ancestralidade
africana.
A identificao entre pobreza e negritude, na esfera estatstica, produz uma
perigosa equivalncia entre as noes de interesse de classe e interesse de raa. Mas a
aventura racialista no domnio da sade assinala um novo patamar na radicalizao do
projeto de engenharia social em curso no Brasil. Quando, em nome da eficcia de uma
pedagogia identitria, o corpo negro associado a doenas de raa, abre-se todo um
novo horizonte de inoculao de dio racial na sociedade brasileira.
Rumos de um debate poltico
O Conselho Universitrio da Universidade de So Paulo (USP) aprovou, em
maio de 2006, a criao do Programa de Incluso Social da USP (Inclusp), com
medidas destinadas a ampliar o acesso e a permanncia na Universidade de alunos
provenientes de escolas pblicas.8 A principal novidade foi a deciso de acrescentar 3%
na pontuao obtida no vestibular da Fuvest por alunos de escolas pblicas. Antes disso,
a USP havia criado cursos pr-vestibulares gratuitos para estudantes carentes,
implantado um campus na Zona Leste da cidade de So Paulo e ampliado as vagas em
cursos noturnos.
Tais medidas de incluso social no reduziram a saraivada de crticas dirigidas
USP pelas ONGs racialistas e pela maior parte do movimento negro, que rotineiramente
a descrevem como um baluarte da elite branca. Do ponto de vista da coalizo
racialista, no fazia diferena saber se o Inclusp surtiria efeitos positivos de incluso de
alunos carentes na Universidade. O programa estava condenado de antemo pois no
contemplava o recorte racial.
Antes da USP, em 2004, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) havia
formulado o seu Programa de Ao Afirmativa e Incluso Social (PAAIS),
apresentado como o primeiro programa de ao afirmativa sem cotas implantado em
uma universidade brasileira.9 A inscrio no PAAIS aberta a todos os que cursaram o
ensino mdio em escolas pblicas. Os inscritos recebem, automaticamente, 30 pontos a
mais na nota final. Candidatos autodeclarados pretos, pardos e indgenas recebem
dez pontos adicionais.
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O modelo da Unicamp provocou sensvel aumento de estudantes provenientes
do ensino pblico na Universidade e apresenta um recorte racial limitado, mas mesmo
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