Funo Social do Contrato e da Empresa:aspectos jurdicos da responsabilidade socialempresarial nas relaes de consumo
Daniela Vasconcellos Gomes1
DESENVOLVIMENTO EM QUESTOEditora Uniju ano 4 n. 7 jan./jun. 2006 p. 127-152
Resumo
Se em uma poca passada o Direito era voltado exclusivamente proteo de direitosindividuais, atualmente sua maior preocupao a tutela do interesse social. O contrato e aempresa so institutos jurdicos de grande importncia para o desenvolvimento social, e nasociedade contempornea abandonam seu carter tradicional de mera circulao de rique-zas para servirem de instrumentos na busca de maior justia social. Diante do comprome-timento de todos os setores da sociedade com a responsabilidade social, as empresastambm passam a adotar uma nova postura no somente perante seus clientes, masdiante de toda a comunidade.
Palavras-chave: Funo social. Responsabilidade social. tica empresarial. Direito do con-sumidor.
Abstract
If at a previous moment the Law one was come back exclusively to the protection ofindividual rights, currently its bigger concern is the guardianship of the social interest. Thecontract and the company are legal justinian codes of great importance for the socialdevelopment, and in the society contemporary they abandon its traditional character ofmere circulation of wealth to serve of instruments in the search of bigger social justice.Ahead of the engagement of all the sectors of the society with the social responsibility, thecompanies also start to not only adopt a new position before its customers, but to all thecommunity.
Keywords: Social function. Social responsibility. Ethical enterprise. Consumers law.
1 Especialista em Direito Civil Contemporneo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); aluna do Mestrado
em Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS); componente do Grupo de Pesquisa Metamorfose
Jurdica (CNPq/UCS); advogada ([email protected]).
Daniela Vasconcellos Gomes
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Introduo
A idia de funo social no recente no Direito, mas verdadeira-
mente um resultado da evoluo dos tempos. H muito se formula a
noo de funo social da propriedade, pois no mais possvel aceitar
sua clssica concepo individualista, de poder absoluto de um sujeito
sobre determinado objeto. Mais recentemente, o conceito de funo so-
cial teve reflexos nos contratos e nas empresas.
Nos contratos, principais instrumentos jurdicos para a circulao
de riquezas, a funo social tem por objetivo trazer equilbrio material
nas relaes e impor o predomnio do interesse coletivo sobre os interes-
ses privados. O contrato no deixa de ter sua funo eminentemente
econmica, mas a ela somada a funo social, em busca de justia
social.
Com base na funo social, tambm no se admite mais que a
empresa busque apenas o lucro e o desenvolvimento econmico. Atual-
mente a empresa, ao desenvolver suas atividades, deve procurar tam-
bm o desenvolvimento social, incluindo a criao e a manuteno de
empregos, a preservao do meio ambiente, o incentivo educao,
cultura e ao consumo consciente.
Esse comprometimento com o desenvolvimento social tem sido
chamado de responsabilidade social. Uma das faces da responsabilidade
social o dilogo com as partes interessadas: clientes, fornecedores, acio-
nistas, enfim, a comunidade em geral. Neste estudo buscar-se- demons-
trar a interligao entre a responsabilidade social e a funo social do
contrato e da empresa, especialmente nas relaes desta com seus con-
s u m i d o r e s .
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
129Desenvolvimento em Questo
Alguns Aspectos da Funo Social
Funo Social da Propriedade
O Direito Civil clssico era tomado por uma viso extremamente
individualista, que visava exclusivamente a proteger os interesses da
burguesia. Assim era com todos os institutos privados, e em especial, a
propriedade. O direito de propriedade era considerado o direito subjeti-
vo supremo, em que seu titular detinha a prerrogativa de usar seu poder
de forma absoluta, atendendo a sua vontade de maneira a preservar uni-
camente seus interesses.
Essa era a realidade da estrutura liberal, que estava fundamentada na
idia de direito subjetivo, que, em matria patrimonial, manifestava-se na
proteo concedida ao indivduo de poder ilimitado sobre as coisas subme-
tidas ao seu arbtrio (Gomes, 2001, p. XXIV). Nesse sentido, tambm a idia
de funo social tem origem no direito subjetivo, e somente sem olvidar
desse fato possvel discernir a funo social de outros conceitos. A funo
social de tal forma ligada ao direito subjetivo que somente exigvel no
exerccio deste determinado direito (Tomasevicius Filho, 2003, p. 40).
O princpio da funo social relativiza o individualismo que mar-
cou o tratamento do direito de propriedade na codificao oitocentista. A
propriedade no deixou de ser direito subjetivo tutelado pelo
ordenamento jurdico, mas a funo social altera a estrutura e o regime
jurdico do direito de propriedade, atuando sobre o seu conceito e o seu
contedo (Silva, 1997, p. 239-240).
A funo social amolda o direito individual de propriedade e o
interesse individual do proprietrio ao interesse de toda a coletividade
(Hironaka, 1988, p. 142). A noo de funo social da propriedade afasta
a idia da propriedade individual como corolrio da liberdade indivi-
dual e absoluta (Szaniawski, 2000, p. 133) e impe ao proprietrio que
utilize sua propriedade de maneira a conjugar o seu interesse individual
e o interesse coletivo.
Daniela Vasconcellos Gomes
130Ano 4 n. 7 jan./jun. 2006
Para cumprir sua funo a propriedade deve produzir de modo a
contribuir para a melhoria de condies, no s de seu titular, mas de
toda a coletividade, em respeito ao objetivo constitucional de construir
uma sociedade justa e solidria. A propriedade que no cumpre sua fun-
o social no pode ser tutelada pelo ordenamento, que submete os inte-
resses patrimoniais aos princpios fundamentais.
A Constituio Federal garante o direito de propriedade, desde
que este exera sua funo social.2 O prprio texto constitucional deter-
mina a funcionalidade da propriedade, ao estabelecer a dignidade da
pessoa humana como fundamento da Repblica e determinar como ob-
jetivo fundamental a justia social. Assim sendo, a propriedade somente
poder ser considerada socialmente funcional quando respeitar a digni-
dade da pessoa humana e contribuir para o desenvolvimento nacional e
a diminuio das desigualdades sociais (Gondinho, 2000, p. 413).
O direito de propriedade no concedido ou reconhecido3 em
razo da funo social, mas deve ser exercido de acordo com esta. A
funo social constitui-se, ento, em ttulo justificativo dos poderes do
titular da propriedade.
2 O direito de propriedade e a funo social da propriedade esto expressos na Constituio Federal de 1988
como direitos fundamentais (artigo 5: Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida,
liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII garantido o direito
de propriedade; XXIII a propriedade atender a sua funo social) e como princpios da ordem econ-
mica (artigo 170: A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, observados os seguintes princ-
pios: (...) II propriedade privada; III funo social da propriedade), com a mesma fora normativa,
constituindo mandamentos que merecem igual observncia.
3 Em sentido contrrio, entende Derani (2002, p. 59): A norma que dispe sobre a funo social da propriedade
cria o nus do proprietrio privado perante a sociedade. (...) O nus imposto sobre o sujeito proprietrio
significa que sua atuao deve trazer um resultado vantajoso para a sociedade, a fim de que este poder indivi-
dualizado seja reconhecido legalmente [sem grifo no original].
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
131Desenvolvimento em Questo
A funo social no se limita apenas a impor restries aos pode-res do proprietrio. Entre outros autores que compartilham esseposicionamento, Pietro Perlingieri (2002, p. 226) defende que essa vi-so restrita de funo social incompleta, pois se aproximaria muito daconcepo tradicional,4 afirmando que:
Em um sistema inspirado na solidariedade poltica, econmica e so-cial e ao pleno desenvolvimento da pessoa (...) o contedo da funosocial assume um papel de tipo promocional, no sentido de que adisciplina das formas de propriedade e as suas interpretaes deve-riam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre osquais se funda o ordenamento. E isso no se realiza somente finali-zando a disciplina dos limites funo social.
Da mesma forma que a funo social da propriedade no se res-tringe imposio de limites, sua efetividade no pode ser verificadaapenas pelo seu fim alcanado, pois o atendimento funo social umprocesso em que o resultado conforme fins sociais a coroao do de-senvolvimento da relao de propriedade (Derani, 2002, p. 60).
Mesmo que a funo social da propriedade seja uma concepomutvel, que se adapta de acordo com o momento histrico e o respectivoordenamento positivo vigente (Gondinho, 2000, p. 429), a socialidade dapropriedade no resultado apenas da proteo que lhe conferida atual-mente pela Constituio Federal e pelo Cdigo Civil. A socialidade no atributo exclusivo da propriedade, mas de todo o direito (Szaniawski, 2000,p. 155). Assim, no rege apenas o instituto da propriedade, aspecto estticoda riqueza, mas tambm a empresa, considerada no seu aspecto dinmico, eo contrato,5 instrumento jurdico para a sua circulao (Lobo, 2002, p. 191).
4 De acordo com Martins-Costa e Branco (2002, p. 146), a noo de funo social comeou a ser formulada pela
jurisprudncia francesa a partir da figura do abuso de direito, mas ainda estava restrita imposio de deter-
minados limites ao poder absoluto do proprietrio, de modo que no alterava a estrutura do direito subjetivo.
5 Para Theodoro Jnior (2003, p. 36), o princpio da socialidade est inserido no direito contratual no Cdigo
Civil de 2002 como o compromisso de todo o direito dos contratos com a ideologia constitucional de
submeter a ordem econmica aos critrios sociais, mediante a harmonizao da liberdade individual (auto-
nomia da vontade) com os interesses da coletividade (funo social).
Daniela Vasconcellos Gomes
132Ano 4 n. 7 jan./jun. 2006
Funo Social do Contrato
O contrato um instituto jurdico destinado a promover a realiza-
o de operaes econmicas na sociedade. O contrato continua como
instrumento eficaz na finalidade de possibilitar a circulao e acumula-
o de riquezas (Mello, 2002, p. 17), mas, da mesma forma que a proprieda-
de, atualmente regulado e limitado, com o objetivo de alcanar sua
funo social (Marques, 2002, p. 102).
A funo social do contrato j era prevista na Constituio Federal
de 1988 por interpretao extensiva, com base no preceito constitucio-
nal da funo social da propriedade considerada em sentido amplo, es-
tendida s obrigaes e aos contratos, como concepo de justia que
orienta toda a ordem econmica. Com o advento do novo Cdigo Civil,
tem disposio especfica, com o artigo 421,6 que restringe expressa-
mente os limites da liberdade contratual.
Desse modo, o contrato no se presta apenas a criar direitos e
deveres para as partes individualmente consideradas, mas tambm o as-
pecto social que incrementa seu engajamento na sociedade globalizada,
atendendo funo social antes de qualquer coisa. A funo social
orientada pelos ideais do Estado social, que recoloca o ser humano como
centro da preocupao do Direito, com o objetivo de promover a digni-
dade humana e a justia social.7 Nessa linha, ao contrrio do que ocorria
no Estado liberal, o Estado social tem um papel intervencionista em
relao atividade negocial, estabelecendo por meio da legislao os
fins sociais que os institutos privados devem obedecer, relativos dig-
nidade da pessoa humana e reduo das desigualdades culturais e ma-
teriais (Tepedino, 1999, p. 201).
6 Dispe o artigo 421/CC: A liberdade de contratar ser exercida em razo e nos limites da funo social do
contrato.
7 Sobre a noo de justia social, ver Farias, 1998, p. 58ss.
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
133Desenvolvimento em Questo
Trata-se de uma nova concepo de contrato, que Cludia Lima
Marques (2002, p. 101) assim sintetiza:
A nova concepo de contrato uma concepo social deste instru-
mento jurdico, para a qual no s o momento da manifestao da
vontade (consenso) importa, mas onde tambm e principalmente os
efeitos do contrato na sociedade sero levados em conta e onde a
condio social e econmica das pessoas nele envolvidas ganha em
importncia.
Dentro dessa concepo moderna de contrato, regras de ordem
pblica impem que o interesse coletivo prevalea sobre as convenin-
cias individuais, com o intuito de impedir que o mais forte economica-
mente se sobreponha ao mais fraco (Moura, 1988, p. 249). Nesse contex-
to, a funo social somente ser alcanada quando o contrato reunir a
justia contratual e o bem comum (Santos, 2002, p. 101). De modo que o
contrato deve estar perfeito e equilibrado internamente, respeitando a
autonomia privada, a boa-f objetiva e o equilbrio contratual, e sob o
ponto de vista externo, deve atender aos interesses da coletividade (San-
tos, 2003, p. 109).
A base da funo social do contrato no consenso entre os auto-
res. Para alguns, a superao do individualismo e a imposio da solida-
riedade no direito contratual estariam baseadas no princpio da igualda-
de substancial.8 Outros, como Antnio Junqueira de Azevedo, entendem
que a funo social do contrato estabelecida constitucionalmente pelo
caput do artigo 170 da Constituio Federal, ao impor que as relaes
contratuais no podem trazer qualquer prejuzo sociedade, devendo se
estabelecer em uma ordem social harmnica (Theodoro Jnior, 2003,
p. 45). H, ainda, quem baseie a fundamentao constitucional do con-
trato nos princpios da dignidade da pessoa humana e da livre iniciativa,
8 Com esse posicionamento, Reis, 2001, p. 126.
Daniela Vasconcellos Gomes
134Ano 4 n. 7 jan./jun. 2006
em que o contrato deve conciliar esses dois preceitos constitucionais em
busca do desenvolvimento nacional e da justia social (Hora Neto, 2003,p. 46). Paulo Nalin (2001, p. 223), embora reconhea a dificuldade dessadefinio conceitual, defende que o princpio privado da boa-f objeti-va, fundado no valor constitucional da solidariedade, seria o fundamentomais slido para caracterizar a funo social do contrato.
importante ressaltar que, embora o contrato tenha uma funosocial a cumprir, sua funo econmica no foi afastada. Assim, ao mes-mo tempo em que deve haver a conciliao entre os interesses particula-res e os da coletividade, os direitos individuais devem ser respeitados,de vez que tambm so protegidos constitucionalmente.9 De modo queo contrato continua como acordo entre as partes interessadas para alcan-ar um determinado objetivo, por elas definido em todos os seus aspec-tos (Wald, 2002, p. 28-29).
Para reforar a importncia que ainda possui dentro do cenrioeconmico, vale salientar que o contrato no mais o instrumento aservio da propriedade, mas sim a servio da empresa, para atendimentodas suas finalidades (Seleme, 2000, p. 268). Com esse entendimento,
Enzo Roppo (1998, p. 67) afirma:
Se o contrato adquire relevncia cada vez maior com o progressivoafirmar-se do primado da iniciativa da empresa relativamente ao exer-ccio do direito de propriedade, tambm porque este constitui uminstrumento indispensvel ao desenvolvimento profcuo e eficaz de toda a
atividade econmica organizada.
De modo que se percebe claramente a interligao entre proprie-dade, contrato e empresa, pelo qual todos esses institutos devem, almde cumprir seu papel econmico, igualmente desempenhar sua funosocial, sempre privilegiando os interesses da sociedade em detrimentode vantagens individuais.
9 Os direitos contratuais so protegidos pelo artigo 5, LIV/CF, em virtude do qual ningum pode ser privado
dos seus bens e dos seus direitos sem o devido processo legal.
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
135Desenvolvimento em Questo
Funo Social da Empresa
A importncia da empresa na sociedade contempornea incon-
testvel, pois a instituio social que proporciona a maior parte dos
bens e servios oferecidos e consumidos no mercado, alm de fornecer
considervel parcela de suas receitas ao Estado (Arnoldi; Michelan, 2002,
p. 244). A empresa tem estreita ligao com o instituto da propriedade,
mas a sua concepo tradicional, com o objetivo nico de gerar riquezas e
obter lucros para os seus proprietrios/acionistas, no atende s atuais ne-
cessidades econmico-sociais da sociedade (Duarte; Dias, 1986, p. 52).
Na sociedade contempornea h a conformao de uma nova cons-
cincia, com a retomada de certos valores como a valorizao do ser
humano e a preocupao com o aspecto social. De modo que a empresa
tradicional entra em conflito com os presentes anseios da sociedade, que
espera que ela no apenas fornea produtos ou servios de qualidade,
gere empregos, pague seus impostos e no polua o meio ambiente. A
empresa precisa redefinir sua funo na sociedade, considerando em suas
atividades no apenas os anseios de seus acionistas, mas de toda a cole-
tividade. Ela deve demonstrar sua utilidade social, contribuir para a jus-
tia social e o bem comum (Duarte; Dias, 1986, p. 38).
A empresa permanece com sua essncia de produo e circulao
de riquezas, mas suas atividades devem estar comprometidas com a bus-
ca de maior justia social em nosso pas. A posio defendida por Fbio
Comparato (1996, p. 43) de que a empresa tem e deve ter por nico
propsito a obteno de lucros, e que sua funo social a residiria, j no
pode ser aceita, por se tratar de uma viso desatualizada, em
desconformidade com os anseios sociais atuais. A empresa desempenha
hoje um papel muito importante na sociedade, de forma que no pode se
eximir de cumprir tambm uma funo social.
A funo social da empresa se manifesta mediante um conjunto
de aes que envolvem o poder-dever da instituio de empreender
suas atividades em harmonia com o interesse pblico. Derivada da teo-
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136Ano 4 n. 7 jan./jun. 2006
ria da funo social da propriedade, seu fundamento est no poder que a
empresa detm, pois ela representa um influente agente socioeconmico
no local onde exerce suas atividades. em razo do poder que lhe
inerente que a empresa deve arcar com um papel social perante a comu-
nidade (Arnoldi; Michelan, 2002, p. 247).
H quem entenda, como Orlando Gomes, que a empresa deve
cumprir o seu papel social no pelo poder que detm na sociedade, mas
porque a forma de exercer o direito de propriedade de certos bens. Ao
tratar de funo social, sob a perspectiva que defende, h de se distinguir
os bens de consumo dos de produo, pois acredita que aqueles so de
uso pessoal e livres de qualquer restrio, enquanto estes exercidos
atualmente sob a forma de empresa devem sujeitar-se s disposies e
limitaes legais, para evitar que ocorram abusos (Gomes, 2001, p. 75).
Esse um posicionamento controvertido, pois h autores que de-
fendem que realmente s pode ser exigido da empresa o cumprimento
da funo social no exerccio de sua atividade econmica,10 enquanto
outros entendem que todos os bens devem cumprir com sua funo social,
e no apenas os destinados produo.11 H ainda quem julgue que os
bens que devem atender a uma funo social esto elencados expressa-
mente na Constituio Federal.12
De qualquer forma, a necessidade de a empresa desempenhar,
juntamente com sua funo econmica, uma funo social, cada vez
mais reconhecida, tanto por juristas quanto pelos prprios empresrios.
10 Como, por exemplo, Fbio Konder Comparato (1986, p. 72-75), Eros Roberto Grau (2000, p. 258) e
Eduardo Tomasevicius Filho (2003, p. 40).
11 Apenas para citar alguns: Andr Osrio Gondinho (2000, p. 426-428), Carlos Arajo Leonetti (1999, p.
736ss), Diana Coelho Barbosa (1995, p. 111), Elimar Szaniawski (2000, p. 152-153).
12 Com esse entendimento, Cristiane Derani (2002, p. 63-66) acredita que os bens aptos a servir aos inte-
resses privados e da coletividade sejam: os destinados produo econmica (artigo 170,III/CF), a pro-
priedade urbana (artigo 182, 2/CF), a propriedade agrria (artigo 186/CF), os bens culturais (artigo 216/
CF) e os bens ambientais (artigo 225/CF).
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
137Desenvolvimento em Questo
Embora ainda em fase de construo, a matria no de fato novidade
em nosso ordenamento, pois j estava consagrada no Direito brasileiro
desde 1976, pelo artigo 116, pargrafo nico,13 e do artigo 15414 da Lei
de Sociedades por Aes (Lei 6.404/76).
Ademais, pode-se considerar ainda que a prpria Constituio
Federal de 1988, ao estabelecer como fundamento do pas a dignidade
da pessoa humana (artigo 1, III/CF), objetivo fundamental construo
de uma sociedade mais justa e solidria (artigo 3, I/CF), e como princ-
pios da ordem econmica a funo social da propriedade e a reduo das
desigualdades regionais e sociais (artigo 170, III e VII/CF), j estava
direcionando a empresa para sua finalidade social.15
No resta dvida que estamos diante de um novo direito de em-
presa, no qual se percebe a imposio de uma tica empresarial,16 em
que a empresa, no exerccio de suas atividades, ao mesmo tempo em que
busca o lucro deve desempenhar seus deveres e responsabilidades sociais.
E em razo desse atual cenrio jurdico que as aes resultantes da
funo social da empresa no devem ser confundidas com filantropia ou
marketing, ou ainda, mero modismo (Nones, 2002, p. 116), como vere-
mos a seguir.
13 Artigo 116, pargrafo nico da Lei 6.404/76: O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer
a companhia realizar o seu objetivo a cumprir sua funo social, e tem deveres e responsabilidades para com
os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos
e interesses deve lealmente respeitar e atender.
14 Artigo 154 da Lei 6.404/76: O administrador deve exercer as atribuies que a lei e o estatuto lhe
conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigncias do bem pblico e da
funo social da empresa.
15 Para Eduardo Teixeira Farah (2002, p. 675), os princpios que regulam a ordem econmica devem estar em
harmonia com as diretrizes estabelecidas pelos artigos 1 e 3 da Constituio Federal, em especial a da
dignidade da pessoa humana e a da solidariedade social.
16 a observncia de uma tica empresarial que distingue a boa da m corporao, a empresa idnea da
inidnea, o verdadeiro empresrio do aventureiro (Lamy Filho, 1992, p. 59-60).
Daniela Vasconcellos Gomes
138Ano 4 n. 7 jan./jun. 2006
Responsabilidade Social empresarial
Conceito e Fundamento
A responsabilidade social uma nova conscincia do contexto
social e cultural no qual se inserem as empresas e os cidados. Ela pode
ser entendida como a contribuio direta destes para o desenvolvimento
social, e a criao de uma sociedade mais justa e igualitria, por meio da
conduo correta de seus negcios ou de suas aes pessoais.
Sob o enfoque empresarial, a responsabilidade social consiste em
uma nova forma de gesto, baseada em valores e atitudes ticas, e preo-
cupada com o impacto que suas atividades causam em todas as partes
envolvidas os chamados stakeholders17 , de forma que a empresa se
torne co-responsvel pelo desenvolvimento social.
A responsabilidade social empresarial pode ser percebida em dois
mbitos distintos: interno e externo. No mbito interno so considerados
parceiros nas atividades empresariais: acionistas, investidores, adminis-
tradores e funcionrios. J no mbito externo esto includas todas as
relaes com terceiros, tais como credores, fornecedores, consumidores,
concorrentes, comunidade, governo e meio ambiente.
Assim, a conduta na administrao dos negcios deve ser permeada
pelo comprometimento, integrao e colaborao com a comunidade.
Segundo Peter Drucker (2002, p. 706), as responsabilidades sociais so
as obrigaes da entidade para com a sociedade em que opera. Ou, de
acordo com a Comisso das Comunidades Europias (2001), a respon-
sabilidade social das empresas , essencialmente, um conceito segundo
o qual as empresas decidem, numa base voluntria, contribuir para uma
sociedade mais justa e para um ambiente mais limpo.
17 Segundo Patrcia Almeida Ashley (2003, p. 167), stakeholders so agentes sociais e econmicos cujos
interesses afetam ou so afetados por uma empresa.
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
139Desenvolvimento em Questo
Para Patrcia Almeida Ashley (2003, p. 6-7), o significado de res-
ponsabilidade social pode ser explicado da seguinte forma:
Responsabilidade social pode ser definida como o compromisso que
uma organizao deve ter para com a sociedade, expresso por meio
de atos e atitudes que a afetam positivamente, de modo amplo, ou a
alguma comunidade, de modo especfico, agindo proativamente e
coerentemente no que tange a seu papel especfico na sociedade e a
sua prestao de contas para com ela.
Em razo da pouca tradio na matria, em nosso pas ainda
comum confundir cidadania empresarial com filantropia, ou com investi-
mentos que a entidade faz na comunidade. A filantropia no deixa de ser
ao social da empresa que beneficia a comunidade, mas a idia de
responsabilidade social muito mais abrangente (Grajew, 2000, p. 40).
Para ter uma boa imagem perante o mercado, e conquistar a confiana
das pessoas de suas relaes, j no basta que a empresa faa doaes
esparsas ou participe de determinadas campanhas. necessrio um com-
prometimento maior, em que todas as atividades empreendidas pela
entidade tenham resultado positivo em toda a sociedade.
Com a responsabilidade social, a empresa no pode mais se restrin-
gir obteno do maior lucro possvel para os acionistas da organizao,
pois suas responsabilidades no so somente as prescritas em lei, mas tam-
bm incluem as determinadas pela tica. H um imperativo tico de com-
prometimento com toda a sociedade, buscando atender, alm de suas de-
mandas econmicas, as exigncias sociais (Duarte; Dias, 1986, p. 51-56).
Dentro dessa viso mais solidarista,18 para que justifique sua exis-
tncia a empresa deve proporcionar benefcios comunidade. Assim
como ocorre com a propriedade, a empresa somente se legitima ao afir-
18 O direito de solidariedade se sobrepe ao individualismo em matria de organizao social e poltica.
Trata-se de uma ruptura na histria do Estado de Direito (Farias, 1998, p. 277).
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mar valores que transcendam seu titular (Justen Filho, 1998, p. 130). De
maneira que a organizao deve assumir toda a responsabilidade poreventuais custos sociais de suas atividades como poluio, acidentesde trabalho, degradao do meio ambiente, dano ao consumidor, etc. elevar em considerao, alm dos objetivos dos acionistas, os anseios dacomunidade (Duarte; Dias, 1986, p. 39).
O fundamento da responsabilidade social nos negcios est no po-der que a empresa detm, no s poder econmico, mas tambm polticoe social. Diante principalmente de sua importncia econmica, as empre-sas no podem fazer valer seu poder de maneira a atender unicamente aosinteresses de seus titulares. Ao exercer suas atividades, a empresa deveconjugar seus objetivos especialmente a busca do lucro com os interes-ses e as necessidades da comunidade onde atua (Tomasevicius Filho, 2003,p. 47), pois muitas de suas decises tm conseqncias que influenciam avida da sociedade em geral (Lamy Filho, 1992, p. 58).
Torna-se evidente, ento, que a responsabilidade social empresa-rial e a funo social da empresa so conceitos interligados, e os deverese responsabilidades sociais decorrem da prpria funo social da empre-sa. E a esta, para ser considerada cidad, precisa assumir um compromis-so a favor da promoo da cidadania e do desenvolvimento das comuni-dades, ajustando-se s atuais necessidades sociais.
Outro fator que levou exigncia de uma atitude mais compro-metida das empresas com a justia social a incapacidade dos governospara resolverem os principais problemas sociais, o que faz com que asatividades empresariais precisam contribuir para a melhoria da qualida-de de vida de toda a sociedade (Drucker, 2002, p. 326-327). Se o Primei-ro Setor, que o prprio Estado, no consegue promover o bem-estarsocial, e o Segundo Setor o mercado favorece a desigualdade e aexcluso social, realmente necessrio estruturao e o funcionamen-
to do Terceiro Setor,19 base da formao de uma nova ordem social,
19 O Terceiro Setor uma esfera pblica no-governamental, que compreende aes particulares que visam
ao bem-estar pblico, especialmente a diminuio da pobreza, da desigualdade e da excluso social.
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
141Desenvolvimento em Questo
defendida pelo socilogo alemo Claus Offe.20 Ou seja, face a ineficcia
do Estado frente a todos os problemas sociais que enfrentamos em nosso
pas, a responsabilidade social uma maneira de as empresas colabora-
rem com o Estado ao invs de ficar esperando que o Estado tome todas
as providncias nessas reas (Tomasevicius Filho, 2003, p. 46).
Embora reconhecendo esses valores de cunho social, h autores
que defendem que a principal responsabilidade social da empresa o
bom desempenho de sua prpria funo.21 Se a entidade no desempe-
nhar bem sua atividade, no gerar riquezas nem empregos, e no poder
ser considerada socialmente responsvel, ainda que desenvolva muitas
atividades teis para a sociedade. Assim, para realizar atividades em be-
nefcio da comunidade, as empresas no podem prejudicar o desempe-
nho de sua atividade principal, que, nesse raciocnio, constituem sua
responsabilidade fundamental e o motivo de sua existncia.22
Com semelhantes objees responsabilidade social empresarial,
Friedman entende que dirigir uma organizao sem buscar exclusiva-
mente o mximo de lucratividade violar as obrigaes legais, morais e
institucionais da corporao. J Leavitt baseia sua rejeio no aspecto
institucional, afirmando que outras instituies como governo, igrejas,
ONGs atuam em prol das necessidades sociais. Alm disso, os adminis-
tradores no teriam legitimidade, tempo ou tcnica para tais atividades,
que seriam essencialmente um nus sobre o lucro dos acionistas (Ashley,
2003, p. 21-22).
20 Para Offe (apud Melo Neto; Froes, 2001, p. 2), ao lado do Estado e do mercado, entidades comunitrias
como as ONGs e as igrejas vo formar uma nova ordem social.
21 Com o mesmo posicionamento de Peter Drucker, defende Eduardo Farah (2002, p. 689-690):
Indubitavelmente o principal dever da empresa, em face da solidariedade social, permanecer viva e
operativa, ou seja, manter-se econmica e financeiramente estvel.
22 Reafirmando sua atitude extremamente receosa diante da responsabilidade social nos negcios, Drucker
(2002, p. 343-350) argumenta ainda ser esta uma dupla irresponsabilidade por parte das empresas, posto
que no possuiriam competncia para exercer tais atividades, e porque configuraria uma nsia de poder,
que em verdade caberia s autoridades.
Daniela Vasconcellos Gomes
142Ano 4 n. 7 jan./jun. 2006
Apesar de tudo, a relutncia em aceitar que as organizaes de-vem exercer, ao lado de suas habituais atividades econmicas, aesbenficas para a comunidade, cada vez menor. Mesmo as empresasmais conservadoras vem na responsabilidade social uma forma depotencializar seu desenvolvimento, e at aumentar seu lucro. Isso por-que resultados positivos como a valorizao da marca e da imageminstitucional, aumento da lealdade dos consumidores e maior capacida-de de recrutar e manter talentos em seus quadros funcionais so percebi-dos nas entidades comprometidas com o bem-estar social.
Por isso, necessrio cautela antes de concluir que uma empresaest assumindo verdadeiramente suas responsabilidades sociais. impor-tante saber os reais motivos de sua atuao, para que no seja apenas mo-tivada por marketing, para evitar possveis questes judiciais ou de formacompensatria a atividades prejudiciais que desenvolve. A motivao daempresa ao se comprometer com atividades de interesse social deve serautntica, pois somente com um real compromisso com a comunidade que a empresa torna-se socialmente responsvel e traz consigo a possibili-dade de desenvolvimento sustentvel (Duarte; Dias, 1986, p. 114).
Responsabilidade Socialdas Empresas com seus Consumidores
Para ser considerada socialmente responsvel extremamente
importante avaliar a maneira pela qual a organizao se relaciona, no s
com o mercado, mas com toda a comunidade. Considerando seu pblico
externo, percebe-se que o respeito aos consumidores uma caractersti-
ca essencial para uma atitude responsvel da empresa. O compromisso
social, nesse sentido, no de excluir quaisquer possibilidades de erros
que so passveis de ocorrer em qualquer atividade , mas a forma
como so tratados (Vilela, 2002, p. 206). Nas relaes das empresas com
seus consumidores, o diferencial est no elemento tico imposto pela
legislao nas contrataes. Essas normas impostas so essencialmente
as provenientes das leis de defesa dos direitos do consumidor.
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
143Desenvolvimento em Questo
O Direito do Consumidor um Direito especial, aplicvel s rela-
es de consumo, e tem por finalidade restabelecer o equilbrio contratual,
com a efetivao de uma igualdade jurdica entre as partes para compen-
sar a desigualdade material entre os contratantes, com base nos princpios
da boa-f, da transparncia e da lealdade. A desigualdade se revela pela
superioridade tcnica e econmica do fornecedor, que tem condies e
conhecimentos muito mais amplos do que o consumidor, que, muitas
vezes, no tem condies de manifestar sua vontade de maneira conscien-
te e livre.
Quando houve o reconhecimento de que as escolhas do consumi-
dor eram induzidas pelos fornecedores, mediante promessas de qualida-
de nem sempre reais, fez-se necessrio evitar e corrigir tal abuso de
direito para restabelecer a justia, respeitando a real vontade das partes.
Assim, o Estado interveio para evitar que clusulas contratuais fossem
impostas unilateralmente pelos fornecedores aos consumidores. Diante
de tal realidade, o Cdigo de Defesa do Consumidor restringiu a liberda-
de contratual no mbito das relaes de consumo, invalidando clusulas
e instituindo padres de conduta a serem seguidos pelos fornecedores
de produtos e servios.
O Cdigo de Defesa Consumidor (Lei 8.078/90) uma lei de
funo social,23 que, ao impor uma nova conduta, visa a tutelar um grupo
especfico de indivduos considerados vulnerveis s prticas abusivas
do livre mercado. Essa legislao d efetividade norma constitucio-
nal24 determinadora da proteo dos consumidores, eis que reconhecida
a sua vulnerabilidade no mercado de consumo ante os demais agentes
23 As leis de funo social so as leis tpicas do intervencionismo do Estado social no domnio econmico,
criadas com a finalidade de servir de parmetro de nova orientao, de efetivo instrumento para alcanar
o equilbrio social que o legislador moderno pretende realizar, ao buscar a proteo dos interesses da parte
mais fraca de uma relao jurdica.
24 Na Constituio Federal os direitos do consumidor esto elencados entre os direitos fundamentais (artigo
5, XXXII/CF) e os princpios que regem a atividade econmica (artigo 170, V/CF).
Daniela Vasconcellos Gomes
144Ano 4 n. 7 jan./jun. 2006
econmicos. Suas normas so de interesse social, s quais o legislador
concedeu um abrangente e interdisciplinar campo de aplicao, para que
possam cumprir sua funo de transformar a sociedade. Com a prevalncia
dos interesses pblicos sobre os privados, deu-se incio a uma transfor-
mao, pela qual as normas imperativas passaram a regular as contrataes,
representando um avano no alcance da funo social do contrato.
Na sociedade de consumo moderna, procura do equilbrio
contratual, o Direito destaca o papel da lei como limitadora e como verda-
deira legitimadora da autonomia da vontade, pois passa a proteger deter-
minados interesses sociais, valorizando a confiana depositada no vnculo,
as expectativas e a boa-f das partes contratantes (Marques, 2002, p. 101).
O Cdigo de Defesa do Consumidor expressa a boa-f objetiva como prin-
cpio geral da legislao de consumo,25 e a sua prevalncia em todos os
momentos do contrato, sob pena de nulidade (Nalin, 2001, p. 137).
O mundo contemporneo impe uma noo ps-moderna de contra-
to, em que novos ditames tais como a relatividade dos contratos, a boa-f
objetiva, a eqidade das prestaes, a defesa do hipossuficiente, a justia
contratual e a finalidade do contrato devem ser obrigatoriamente obser-
vados, revelando um respeito maior pelos interesses sociais envolvidos.
Diante desse cenrio, fica claro que em todos os contratos realiza-
dos pelas empresas deve estar sempre presente a diretriz constitucional
da solidariedade social, que obriga as organizaes a respeitarem seus
consumidores e toda a comunidade. Se no respeitar o consumidor, a
empresa no pode ser considerada socialmente responsvel,26 e, da mes-
25 A imposio da boa-f no ocorre somente nas relaes de consumo, pois o Cdigo Civil (Lei 10.406/02),
dispe, no artigo 422: Os contratantes so obrigados a guardar, assim na concluso do contrato, como em
sua execuo, os princpios da probidade e boa-f, de modo que este princpio deve ser observado em
todas as contrataes.
26 Nesse sentido, Oded Grajew (2000, p. 42) ressalta que: Uma empresa socialmente responsvel no pode
produzir maus produtos. Ela fabrica produtos de qualidade, seguros, e presta bons servios. Isso faz parte
do respeito ao consumidor.
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
145Desenvolvimento em Questo
ma forma, no ser possvel a construo de uma sociedade realmente
solidria. Nesse sentido, mesmo que o advento do Cdigo de Defesa do
Consumidor represente um grande avano em busca de maior equilbrio
nas relaes de consumo, a solidariedade social somente ser plenamen-
te alcanada com o total respeito aos consumidores. E quanto maior for a
informao e a educao nesse sentido, maior participao os consumi-
dores tero nesse processo, eis que tero maiores exigncias quanto
responsabilidade e ao comprometimento das empresas com a comunida-
de (Farah, 2002, p. 706-708).
A responsabilidade social, quando concretizada em sua forma au-
tntica, alm de ser necessria por seu fundamento tico, uma atitude
que traz outras vantagens para a empresa socialmente responsvel, alm
do benefcio comum, tal como a conquista da lealdade de seus clientes.
Percebe-se, cada vez mais, que os consumidores querem, alm de bons
produtos e servios, fornecedores que estejam comprometidos com a
melhoria da qualidade de vida da comunidade.27 Quando percebe a exis-
tncia de conscincia social, o consumidor se identifica com a empresa
sob o prisma do exerccio da cidadania, criando vnculos de fidelidade
difceis de ocorrer com entidades que cultivam valores diferentes (Melo
Neto; Froes, 2001, p. 101).
Para a empresa conquistar e manter uma boa imagem perante
o mercado, no basta apenas, como antigamente, oferecer bons produtos
e servios, gerar empregos e pagar seus impostos. Ela tem de fazer isso e
ainda colaborar no desenvolvimento social da comunidade na qual est
instalada, para corresponder s expectativas do consumidor atual, que
mostra maior conscincia e valoriza aspectos ticos ligados cidadania
(Ashley, 2003, p. 3).
27 De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Ethos e pelo jornal Valor, 31% dos consumidores
brasileiros prestigiaram ou puniram uma empresa com base em sua conduta social. Entre os identificados
como lderes de opinio, esse ndice chega a 50% e, entre os entrevistados com maior nvel de escola-
ridade, 40% revelaram o mesmo comportamento. Para 51% dos consumidores, a tica dos negcios um
dos principais fatores para se avaliar uma empresa (Ashley, 2003, p. 71).
Daniela Vasconcellos Gomes
146Ano 4 n. 7 jan./jun. 2006
Assim, no h como as empresas escaparem da realidade que se
configura atualmente: se quiserem crescer, se desenvolver, ou simples-
mente se manter no mercado, preciso que incorporem em suas ativida-
des a qualidade tica nas relaes com seus diversos pblicos. A respon-
sabilidade social empresarial um conceito em construo e requer uma
mudana cultural, mas no Brasil de hoje a maior contribuio que as
empresas podem oferecer para a consolidao de uma sociedade mais
justa e solidria (Grajew, 2000, p. 47).
Concluso
Nos pases em estgio de desenvolvimento mais avanado, a
doutrina da responsabilidade social j est consolidada. No Brasil, a
idia relativamente recente, e encontra barreiras no prprio desco-
nhecimento e conseqente receio por parte do empresariado, que
j tem de desenvolver suas atividades em meio a situao econmica
to adversa. Paulatinamente, contudo, a idia de que a responsabilida-
de social representa um encargo abandonada, e em seu lugar, cresce o
entendimento de que, alm de ser um investimento rentvel, a atitude
socialmente responsvel necessria para a construo de uma socie-
dade mais justa e solidria um dos objetivos da Repblica Federativa
do Brasil, expressa no artigo 3, inciso I da Constituio Federal de
1988.
Diante da disposio constitucional e da nova mentalidade que
vem surgindo em toda a sociedade, de construo de uma sociedade
mais justa e igualitria, a empresa no pode mais ser concebida da mes-
ma forma que em pocas anteriores. Atualmente no se aceita mais que
uma empresa vise exclusivamente ao lucro, sem se preocupar com a
repercusso que suas atividades possam causar comunidade em que
est instalada. Com a responsabilidade social, h uma profunda transfor-
mao na concepo de empresa e de seu papel na sociedade. Grandes e
FUNO SOCIAL DO CONTRATO E DA EMPRESA
147Desenvolvimento em Questo
pequenas organizaes tm responsabilidade social evidentemente
que de forma proporcional, mas nenhuma delas pode se eximir de suas
responsabilidades, de forma que todas as suas aes devem ser norteadas
pelos valores e atitudes ticas, com o objetivo de proporcionar o maior
bem possvel a toda a sociedade.
A responsabilidade social pode ter seu conceito formulado por
meio dos conhecimentos da administrao de empresas, mas tem ntima
ligao com a doutrina da funo social da empresa. A empresa, assim
como o contrato, ambos desdobramentos do direito de propriedade, ne-
cessitam atender a uma funo social. No basta apenas que esses insti-
tutos atendam aos interesses privados de seus titulares, mas devem tra-
zer benefcios a toda a coletividade. Essa interligao entre funo social
da empresa, funo social do contrato e responsabilidade social fica ain-
da mais evidente nas relaes das empresas com seus consumidores. Ao
efetuar contratos no mbito das relaes de consumo, a empresa deve
atender sua funo social, e a responsabilidade social nortear as aes
da empresa no s com os consumidores-contratantes, mas com todas as
partes envolvidas.
A responsabilidade social est presente em todas as aes das
empresas, de forma que as relaes com seus consumidores apenas
uma de suas manifestaes. Apenas foi eleito esse aspecto por permitir
uma viso clara dessa interligao entre gesto empresarial e princpios
jurdicos. No demais ressaltar que a responsabilidade social no
simples modismo, ou fenmeno passageiro que ser esquecido em pou-
co tempo. Ao contrrio, um processo contnuo e irreversvel. mo-
mento de mudana de posturas, em que deve haver a valorizao dos
valores ticos, para a construo de uma nova realidade econmica e
social. E as empresas que no se adequarem a essa nova postura, infeliz-
mente, no tero espao para continuar suas atividades.
Daniela Vasconcellos Gomes
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