Download - Fazer a ponte entre as culturas económicas da Europa · de agir como uma espécie de tradutor das virtudes da disciplina para as lín-guas mediterrânicas. Ao mesmo tem- ... guei

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Mario Monti

Já há uns anos que me sinto co-mo se vivesse intelectualmentenos Alpes. Isto porque, no deba-te das questões europeias e no

Conselho Europeu, muitas vezes tivede agir como uma espécie de tradutordas virtudes da disciplina para as lín-guas mediterrânicas. Ao mesmo tem-po, junto dos países do norte, servi deintérprete de algumas dificuldades sen-tidas pelo sul da Europa.

Para o futuro da Europa é essencial umprocesso de aprendizagem mútua. O sul,à medida que fique mais em sintoniacom os méritos da economia social demercado, deve ser mais determinado naprossecução da disciplina fiscal e das re-formas estruturais. Da mesma forma, onorte, a Alemanha em particular, deveapreciar que esses esforços dos países dosul não poderão gerar melhorias susten-táveis a menos que a política europeia setorne mais amiga do crescimento.

Quando em maio de 2013 a União Eu-ropeia (UE) assumiu que a Itália, apósdois anos de uma política fiscal muitoapertada, já não precisava de estar sobo chamado procedimento de défice ex-cessivo da UE, isso foi visto no país co-mo o momento de sair de uma prisão,de reencontrar a liberdade. Não é deforma alguma o caso, embora a novasituação contribua certamente parauma redução das taxas de juro, tendoportanto um efeito de retorno favorá-vel no próprio orçamento.

Houve mesmo quem tomasse a deci-são da UE como uma admissão pelaUnião de que tinha exagerado nas me-didas impostas à partida. Outros salta-ram do reconhecimento obtido pela Itá-lia para discussões sobre novas formasde gastar o dinheiro, como se já nãoexistissem os normais constrangimen-tos do orçamento, tendentes a salva-guardar a estabilidade e a proteger asgerações vindouras.

De facto, para os países da Europa dosul alcançarem uma situação orçamen-tal estável que seja sustentável vão terque proceder a mais ajustamentos cul-turais. Em particular, o público em ge-ral tem de perceber que a disciplina or-çamental dá frutos, o que está corretomas não é óbvio. Acho que é crítico, napróxima fase de elaboração das políti-cas, persuadir as pessoas de que a disci-plina fiscal não é um tributo forçado pa-go aos deuses que moram nas zonas se-tentrionais da Europa. É mero compor-tamento económico apropriado.

A Europa do norte, no entanto, tam-bém tem de dar qualquer coisa. Isso sig-nifica um entendimento mais profundodo papel do investimento na atividadeeconómica. O tratado de Maastrichtnão distingue suficientemente bem en-tre despesa pública para consumo e pa-ra investimento. Por conseguinte, des-de o momento em que o Pacto de Esta-bilidade foi introduzido nos anos 90,muitos países europeus alcançaram adisciplina orçamental com o corte des-proporcionado do investimento públi-co, o qual é normalmente menos dolo-roso em termos políticos — ainda quemais danoso para o futuro económico esocial de um país — em vez do corte nadespesa pública corrente.

Como é evidente, está longe de ser fá-cil distinguir entre os diferentes tipos deinvestimento público — quer sejam in-vestimentos produtivos ou pseudoinves-timentos (como quando um governotransfere fundos de empresas do Estadopara cobrir os seus défices correntes).

É preciso trabalhar seriamente e comrigor nas definições e medidas e haverásempre uma margem para o subjetivis-mo. Mas isso não são boas justificaçõespara assumir que todo o investimentodo sector público é essencialmenteigual a consumo, ou carece de qualquermérito económico e intenção produti-va. Ainda assim, é isso precisamenteque ocorre se o Pacto for tomado peloseu valor facial.

Agora que o sul se aproxima por fimdos conceitos económicos e fiscais daEuropa do norte, é encorajador notarque a Comissão Europeia e o ConselhoEuropeu, nos seus papéis respetivos deenformar as políticas e práticas da UE, eatrás deles também em certa medida aAlemanha, parecem tornar-se cuidado-samente um pouco menos relutantesem aplicar até certo grau uma flexibili-dade ponderada, modesta, controlada esupervisionada, no sentido de uma apli-cação mais racional — e de forma algu-ma permissiva — do Pacto. Por exem-plo, há um par de anos foi decidido quepaíses que não estejam em situação dedéfice excessivo poderiam receber algu-ma flexibilidade limitada no que se refe-re ao investimento do sector público.

Mas, e quanto às reformas estrutu-rais? Há mais países a ter êxito no ajus-tamento dos seus orçamentos do quena árdua tarefa de reformas estrutu-

rais profundas, embora estas tenham si-do reconhecidas como principal priori-dade, particularmente na medida emque todos percebemos que o cerne daquestão é a competitividade.

Então, porque vemos melhores resul-tados na luta pela disciplina fiscal doque pelas reformas estruturais? Che-guei à conclusão de que há duas razõespara isso. A primeira diz respeito à rela-ção de governos frágeis contra gruposde interesse organizados.

A tarefa do Governo é mais dura quan-do medidas certas de reforma afetamos interesses de grupos bem organiza-dos, empresariais, profissionais liberaisou trabalhadores do sector privado.Tais passos podem, por exemplo, au-mentar a competição no mercado, var-rendo rendas confortáveis de certosmercados. Os efeitos de medidas orça-mentais como o aumento dos impostossão, por comparação, mais difusos.

O segundo fator é que a Europa aju-da menos no que é em última instân-cia a tarefa mais importante: refor-mas estruturais. O foco da união mo-netária europeia tem estado na obten-ção da disciplina orçamental. É porisso que os constrangimentos, a moni-torização e as sanções têm sido maisfortes para essa parte do trabalhodos governos dos Estados-membros.

Em última instância, isto leva-nos a

uma simples lei do mínimo esforço: seum Governo enfrenta oposição domés-tica mais forte às reformas estrutu-rais, e recebe menos incentivo da Euro-pa para as executar, em comparaçãocom a consolidação orçamental, é lógi-co que se progrida menos nas refor-mas estruturais.

Eis porque vejo com satisfação a re-cente reorientação da política da UE —não a afastar-se da disciplina fiscalmas no sentido de pôr a tónica nas re-comendações específicas de cada paísexecutar as reformas estruturais. Istoreforça a influência da UE sobre os go-vernos e dá mais força a cada um delesfrente a grupos nacionais organizados,tudo no interesse de alcançar refor-mas estruturais.

Juntamente com alguns mecanismosde acompanhamento que facilitem o fi-nanciamento das reformas naquelespaíses que ainda enfrentem prémios derisco altos mas que sigam as políticasrecomendadas pela UE, estas altera-ções podem ser boas para pôr a Europana senda de mais reformas para o cres-cimento e o emprego.

O autor foi primeiro-ministro da Itália

e presidente do Berggruen Institute

on Governance’s Council for the Future of Europe

Copyright: The Globalist, 2013.

www.theglobalist.com

Fazer a ponte entre as culturaseconómicas da Europa

É positiva a recente reorientação da política da UE no sentido de pôr a tónica na concretização das reformas estruturais

Os países do sul da Europa vão ter de fazer “ajustamentos culturais” FOTO TIAGO MIRANDA

Acho que é crítico,na próxima fase deelaboração das políticas,persuadir as pessoas deque a disciplina fiscal nãoé um tributo forçado pagoaos deuses que moramnas zonas setentrionaisda Europa

OPINIÃO

Expresso, 21 de dezembro de 2013 ECONOMIA 31