EXPRESSÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NO COTIDIANO DE UMA TURMA
DO ENSINO FUNDAMENTAL A PARTIR DO PIBID PEDAGOGIA
Jaciluz Dias – Universidade Federal de Lavras1
Carolina Faria Alvarenga – Universidade Federal de Lavras2
Um menino com pipi; uma menina com perereca; várias crianças curiosas; uma nova
forma de pensar o processo educativo; e muitos jeitos de recontar uma história: ingredientes
bastantes para se produzir uma mistura alquímica. E não é a escola um dos lugares possíveis
para essa experimentação? Um rico espaço para se desenvolver a metodologia alquimista:
“Uma ciência sem caminhos para, assim, deixar desejar múltiplas possibilidades de caminhar.
Uma ciência sem modelos, em que o único paradigma permitido é o da invenção”
(CARDOSO, 2014, p. 222).
Inventar é o desafio das educadoras e dos educadores contemporâneos. Mas, também,
reinventar-se é necessário. Ainda mais em um contexto marcado pelo excesso de informações
e pela diversidade de tecnologias de informação e comunicação, com destaque para o uso de
imagens, que (re)produzem e veiculam saberes e fazeres (SCHWENGBER, 2014; SABAT,
2001).
Também por isso, escolheu-se, neste artigo, desenvolver uma análise a partir de
desenhos produzidos por crianças do 1º e do 4º ano do Ensino Fundamental sobre o livro Ceci
tem pipi?, de Thierry Lenain (2012). A atividade foi conduzida pela equipe do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência – Pibid Pedagogia da Universidade Federal de
Lavras (Ufla), em uma escola da rede estadual de ensino, no ano de 2014.
O Pibid Pedagogia na Ufla
O Pibid, como política de valorização do magistério, tem como objetivo articular a
formação de estudantes de licenciaturas, a atualização de professoras/es da educação básica e
o diálogo desses/as com docentes universitários/as. Visando a importância da formação
1 Assistente em Administração da Universidade Federal de Lavras (Ufla); Graduanda em Pedagogia na Ufla;
Integrante do Grupo de Pesquisa: Relações entre a Filosofia e Educação para a Sexualidade na
Contemporaneidade: a problemática da formação docente (Fesex). 2 Professora Assistente do Departamento de Educação da Ufla; Mestra em Educação pela Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (USP); Integrante do Grupo de Pesquisa: Relações entre a Filosofia e
Educação para a Sexualidade na Contemporaneidade: a problemática da formação docente (Fesex).
docente, sem perder de vista a formação discente desde os primeiros anos do processo
educativo, o Departamento de Educação (Ded), o Colegiado do Curso de Pedagogia a
distância e o Grupo de Pesquisa: Relações entre a Filosofia e Educação para a Sexualidade na
Contemporaneidade: a problemática da formação docente – Fesex, coordenado pela Profa.
Dra. Cláudia Maria Ribeiro (Ded/Ufla), passaram a integrar o Pibid, em 20143. Atualmente, o
Pibid Pedagogia conta com nove licenciandas e um licenciando do curso de Pedagogia a
distância, “desafiando a inserção da educação para as sexualidades, a dinâmica da diversidade
sexual e das relações de gênero” (RIBEIRO; ALVARENGA, 2014, p. 190), em duas escolas
estaduais e uma escola municipal, em Lavras/MG.
O projeto desenvolve atividades multidisciplinares, fundamentadas nos estudos
feministas, nos estudos culturais e nos referenciais pós-estruturalistas. As atividades incluem:
reuniões com a comunidade escolar para discussões sobre as concepções teóricas e
metodológicas a serem utilizadas; organização da biblioteca das escolas; criação de uma sala
temática e do Laboratório de Apoio à Ação Docente; planejamento de minicursos e oficinas;
realização de grupos de estudos teóricos; composição de um Diário de Bordo pelos/as
licenciandos/as com o registro reflexivo das atividades; entre outras (RIBEIRO;
ALVARENGA, 2014, p. 191-2). Assim, ao longo do ano, são desenvolvidas, nas escolas que
recebem o Pibid Pedagogia, oficinas em que músicas, poemas, vídeos e livros de história
motivam conversas e produções acerca de relações de gênero e sexualidade.
Cabe ressaltar, ainda, a vanguarda do Pibid Pedagogia da Ufla, por seu trabalho com
as temáticas das relações de gênero e sexualidade, inserida intencionalmente nos currículos da
Educação Básica. Um levantamento realizado nas bases de dados do Google Acadêmico e da
Scientific Electronic Library Online (SciELO), utilizando-se termos que procuraram associar
os grupos do Pibid e as temáticas de “gênero”, “sexualidade” e “diversidade sexual”,
demonstrou que o foco das ações é a Educação Sexual, em uma abordagem de conceitos
como uso de preservativos, gravidez e DSTs e as publicações estão restritas aos anais de
eventos acadêmicos ou a revistas internas dos programas, circunscritas nas áreas de Ciências
Biológicas e Educação Física. Apenas dois artigos foram encontrados em periódicos: um de
integrantes do Pibid Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)4 e
3 O Pibid Pedagogia da Ufla é coordenado pela Profa. Dra. Cláudia Maria Ribeiro e a coordenação adjunta é de
responsabilidade da Profa. Msa. Carolina Faria Alvarenga, coautora desse artigo. 4 AZEVEDO, Leandra Batista de; SCHONS, Patricia; WELTER, Tânia. A escola como espaço de reflexão: um
relato de uma experiência docente em gênero e sexualidade. Revista Café com Sociologia.Vol. 3, n. 2. Maio de
2014.
outro ligado ao subprojeto de Pedagogia, de autoria das coordenadoras do Pibid Pedagogia da
Ufla (RIBEIRO; ALVARENGA, 2014).
A importância do Pibid Pedagogia consiste, portanto, em seu enfoque na educação
para a sexualidade e as relações de gênero, ultrapassando o estudo das “características
sexuais” humanas para analisar “a forma como essas características são representadas ou
valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas, que vai constituir, efetivamente, o que é
feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um momento histórico” (LOURO, 1997,
p. 21).
Problematizações sobre gênero e sexualidade a partir de Ceci tem pipi?
Parte-se do pressuposto de que “as pesquisas sobre e com crianças, inclusive com o
objetivo de escutar suas vozes, compreender como constroem representações, teorias e
hipóteses, entendem que estas são produtoras de cultura como sujeitos sociais e históricos”
(XAVIER FILHA, 2012, p. 630). Portanto, o desafio, em nossa pesquisa, foi afinarmos nosso
olhar para aquilo que elas nos diziam, por meio dos desenhos e de suas falas. A história, nesse
contexto, é entendida como um aparato cultural que permite problematizarmos muitas
questões do nosso cotidiano.
Os questionamentos tiveram como base os diários de bordo elaborados pelas/o
licenciandas/o do Pibid Pedagogia, as fotografias tiradas durante a realização das oficinas e os
desenhos e textos produzidos por 24 crianças do 1º ano e 16 crianças do 4º ano. O mote da
atividade foi a leitura do livro de Thierry Lenain, Ceci tem pipi?, ilustrado por Delphine
Durand e traduzido por Heloisa Jahn, que conta a história de Max e Ceci e da curiosidade de
Max em descobrir se Ceci faz parte do pessoal com-pipi ou sem-pipi.
A obra, escrita originalmente em francês, Mademoiselle Zazie a-t-elle um zizi?, utiliza-
se da figura do mamute para demonstrar a oposição entre dois grupos: os com-pipi,
caracterizados por sua força e associados à figura masculina; e os sem-pipi, denominação
dada às meninas, que “não tinham uma certa coisa!” (LENAIN, 2012, p. 9). Coincidência ou
não, a palavra “mamute” tem a mesma origem do livro em questão, já que entrou para a
língua portuguesa por meio do russo “mamot” e do francês “mammouth” (FERREIRA, 1986,
p. 1237). E é também de origem francesa a grande discussão sobre a articulação entre gênero,
sexualidade e as relações de saber e poder.
Em relação ao conceito de gênero, é preciso desconstruir uma suposta separação e
hierarquização entre o que é feminino e masculino e perceber que as relações sociais estão
imersas em relações de poder, entendidas aqui a partir de Michel Foucault, considerando que
o poder não é algo “unificado, coerente e centralizado” (SCOTT, 1995, p. 86).
Joan Scott (1995), historiadora feminista norte-americana, cunha o conceito de gênero
para questionar a visão de que há uma essência feminina, associada à docilidade, à
amorosidade, à emoção e ao cuidado, e, de outro lado, de forma dicotômica, uma essência
masculina, ligada à virilidade, à racionalidade, à força e à agressividade. Essas relações são
criadas em determinado momento histórico e político e estão imersas nas relações de poder.
Em diálogo com Jacques Derrida, Scott (1995, p. 84) destaca a “necessidade de uma rejeição
do caráter fixo e permanente da oposição binária, de uma historicização e de uma
desconstrução genuínas dos termos da diferença sexual”.
A respeito do conceito de sexualidade, entendido como um dispositivo histórico,
Foucault problematiza e o define como:
o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade
subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede de
superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a
incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos
controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas
grandes estratégias de saber e de poder (FOUCAULT, 2014, p. 115).
Guacira Louro (2001) também desconstrói o conceito de sexualidade, ao afirmar que é
social e político e não apenas pessoal. Tanto os corpos como as formas de expressar desejos e
prazeres ganham sentido na cultura em que estão inseridos. Por meio de “muitos processos, de
cuidados físicos, exercícios, roupas, adornos, inscrevemos nos corpos marcas de identidades
e, consequentemente, de diferenciação” (LOURO, 2001, p. 9). Portanto, nesse processo,
inscreve-se a atribuição de diferenças, que, por sua vez, “implica a instituição de
desigualdades, de ordenamentos, de hierarquias” (p. 9).
A ironia da história de Lenain é que Ceci, a princípio menosprezada por Max, tem sua
imagem associada à de um mamute, já que o desenha (enquanto Max esperava que ela
desenhasse flores) e os tem no pijama. Além disso, são questionados os atributos
convencionados aos meninos, como subir em árvores, andar de bicicleta e brigar, coisas que
Ceci faz com desenvoltura, o que leva Max a pensar, várias vezes, “Qual é a dessa garota?”
(LENAIN, 2012, p. 14).
Importante notar, também, a relação entre o corpo e o espaço. A curiosidade de Max
começa no espaço da escola e a vontade dele em saber se Ceci tem pipi estende-se ao
banheiro e a casa dela, espaços privados. Também aparece no espaço da brincadeira, mas em
um ambiente associado ao universo masculino: o campo de futebol. Contudo, é somente na
praia, espaço público, que Max chega a uma conclusão definitiva: Ceci tem perereca.
Há que se questionar, nesse caso, se há espaços restritos para ser menino ou menina, se
a sexualidade pode ser vivenciada privativa ou publicamente, já que as formas de vivenciar a
sexualidade variam conforme o passar dos anos, mas, sobretudo, tais experiências são vividas
de modo diferente, de acordo com o lugar onde se dão. Nesse contexto, também se altera a
forma como meninos e meninas constroem sua identidade como homens e mulheres e, por
isso, “observamos que o gênero constitui a “chave” para se compreender como feminilidades
e masculinidades são construídas e engendradas por relações de poder no espaço e no tempo
em que são significadas socialmente” (COSTA et al., 2012, p. 135).
Se, de acordo com o espaço, muda a forma de expressão da sexualidade, compreender
a sua importância no contexto pedagógico é determinante para se trabalhar gênero e
sexualidade na escola. E como esse é um lugar que ainda restringe o falar abertamente sobre
tal tema, há, portanto, que se remodelar o espaço a fim de facilitar o diálogo e a mudança de
paradigmas.
Novos espaços, novas formas de pensar, de criar, de se expressar
Segundo o diário de bordo do/as discentes do Pibid Pedagogia, houve, inicialmente, a
leitura de Ceci tem pipi?. Contudo, como as crianças permaneceram nas carteiras, na
configuração tradicional da sala, acabaram não se concentrando na história. Por isso, na
oficina seguinte, houve uma reorganização do espaço e as crianças sentaram-se em roda, no
chão, fato que contribuiu para que elas se atentassem à narrativa. Os olhinhos brilhavam e
estar perto da professora que contava novamente a história possibilitou o envolvimento e o
interesse das crianças. O que pareciam detalhes – a forma de se sentar para a atividade ou o
limite da sala – constitui elementos essenciais à prática pedagógica.
Nas palavras de Alicia Fernandez, “o corpo também é imagem de gozo, o dispor do
corpo dá ao ato de conhecer a alegria sem a qual não há verdadeira aprendizagem”
(FERNANDEZ, 1991, p. 60), o que indica a importância de se considerar a expressão do
corpo – e, por conseguinte – de sua sexualidade, no processo de ensino-aprendizagem.
Todavia, ao passar a integrar as práticas cotidianas da escola, o Pibid Pedagogia deparou-se
com inúmeros resquícios de uma pedagogia tradicional, que separa corpo e mente, valoriza a
cópia, a repetição e a falta de criatividade.
Dessa forma, como proposta de formação inicial e também continuada para as/os
docentes que já atuam nas escolas, é responsabilidade do Programa questionar o currículo da
escola, ao mesmo tempo considerar os muitos aspectos envolvidos na relação criança-
educador/a. E currículo é entendido aqui na perspectiva pós-estruturalista, que vai além de
apenas perguntar “como ensinar”, mas “o quê ensinar?” e, sobretudo, “por que ensinar isso e
não aquilo?” (SILVA, 1999). Por isso, aos poucos, o grupo foi percebendo que era preciso
mudar: desde os assuntos a serem abordados até como isso se daria, começando por uma nova
configuração do espaço da sala e da ocupação de outros espaços.
O incólume modelo da disposição das carteiras em filas facilita a “disciplina” e a
“organização”, mas a imposição do limite da mesa, da cadeira e das paredes da sala impede a
liberdade criativa:
Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem,
provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos
indicativos de interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo
disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num determinado modelo de
fala; concebe e usa o tempo e o espaço de uma forma particular. Mãos, olhos
e ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente
desatentos ou desajeitados para outras tantas (LOURO, 2001, p. 14).
Uma das primeiras publicações oriundas das atividades do Pibid Pedagogia foi o artigo
“Tranca a porta! Não deixa elas saírem” – um contexto para emergir as expressões das
crianças sobre gênero e sexualidade (RIBEIRO; ALVARENGA, 2014). Nele, as autoras
relatam o início dos trabalhos e os frutos que começaram a ser gerados. A frase que intitula o
texto é de uma criança que, diante do novo mundo proposto pelo subprojeto, não quer que o
grupo saia e as atividades cessem:
Nesse jogo complexo e instável, navegando pelo dito e não dito,
mergulhamos nesse contexto institucional em que também a configuração do
espaço traz inúmeros códigos e que nos desafiam às resistências: a
configuração das carteiras nas salas de aulas, a ocupação de outros espaços
na escola tais como as mesas enormes do refeitório, a quadra coberta, a sala
de vídeo. Ou simplesmente as propostas de atividades em grupo! (RIBEIRO;
ALVARENGA, 2014, p. 200).
Ou seja, ocupar outros espaços, propor atividades em duplas, trios ou grupos,
reorganizar o espaço da própria sala. Ações que carregam outra concepção de educação “por
conceber os corpos como algo que se movimenta entre espaços” (BRITZMAN, 2000, p. 64).
Essa vontade de pulsar, segundo a autora, está diretamente ligada ao aprendizado, já que “a
sexualidade permite desenvolver nossa capacidade para a curiosidade. Sem a sexualidade não
haveria qualquer curiosidade e sem curiosidade o ser humano não seria capaz de aprender”
(BRITZMAN, 2000, p. 64). Desse processo de ensino-aprendizagem fazem parte vários
instrumentos, dentre os quais a expressão artística e textual.
Ceci tem pipi? na expressão das crianças
Após a leitura da história Ceci tem pipi?, as crianças foram motivadas a desenhar a
parte da história que mais lhes chamou atenção. O grupo que estava mediando a oficina
problematizou se a diferença entre as personagens restringia-se aos seus órgãos genitais, o que
desencadeou muita interação entre as crianças, além de indagações sobre as diferenças entre
meninos e meninas e os conceitos pré-estabelecidos e aceitos pela sociedade, como a força
estar associada aos meninos e a não permissão para chorarem.
A fala das crianças retrata uma série de valores que lhe são ensinados – e muitas vezes
impostos – sobre o que é ser menino/homem e o que é ser menina/mulher em nossa
sociedade. Nesse caso, observa-se a influência da cultura no jeito de pensar das crianças, já
que “a forma como nos concebemos socialmente como homens e mulheres interfere,
diretamente, na forma como vivemos as manifestações sexuais” (COSTA et al., 2012, p. 137).
Sobre os desenhos produzidos pela turma de 1º ano, pôde-se identificar, por meio dos
nomes nas produções, nove meninos e dez meninas (cinco atividades estavam sem nome ou
com grafia que impossibilitou a identificação). Nessa gama, em oito desenhos, as personagens
aparecem com roupas e, em três desenhos, sem roupas. Faz-se importante notar que em oito
desenhos não há identificação precisa de roupas nas personagens. Contudo, mesmo
aparentando estarem nus, não há representação dos órgãos genitais, como pode ser visto nas
seguintes representações:
Quando aparecem, elas são simplificadas e restritas à representação fálica:
Permitir que a criança expresse seu ponto de vista sobre a sexualidade é fundamental
para que ela construa concepções e reconstrua modelos. A forma como, nas representações
acima, as crianças enxergam ou imaginam os órgãos genitais feminino e masculino são
construídas na cultura. O tamanho muito grande ou muito pequeno e também a desproporção
entre a representação do que seria o pênis e a personagem (ou a não representação, na maioria
dos casos) podem indicar desconhecimento do próprio corpo ou do corpo do outro, tendo em
vista ser a sexualidade um assunto tabu nas escolas e também em muitas famílias.
Mas, ao mesmo tempo, as crianças demonstram saber que órgãos genitais são marcas
que distinguem, biologicamente, meninos e meninas. É o início da descoberta de si:
Para que a criança desenvolva qualquer senso de identidade ela identifica-se
como homem ou mulher, mas o senso de si mesma como pessoa, única,
singular, desejosa, pensante, pode ficar muitas vezes petrificado, estagnado
no desempenho de seus papéis, como homem ou como mulher. A identidade
necessária para a elaboração de um papel, significada como raiz, matriz,
pode tornar-se limitante, se o senso de si mesmo como pessoa ficar
condicionado ao “ser igual”. A permanência da identidade e a sua superação
implicariam a busca da singularidade , a busca de novos significados para o
corpo sexuado (RIBEIRO, 1996, p. 112).
Com relação às cores, característica típica de desenhos infantis, 20 apresentaram-se
coloridos e quatro praticamente sem cor. Há que se questionar, nesse caso, se elas e eles não
quiseram colorir ou se simplesmente não deu tempo de fazê-lo. Destaca-se, ainda, o fato de
que apenas em seis casos a representação do menino e da menina recebe os nomes de “Ceci” e
“Max” (em um, apenas o menino recebe o nome de Max e, em dois, os nomes aparecem
soltos, sem associação com as personagens).
Nota-se, ainda, que, já nessa faixa etária, há associação de cores e tipos de roupas a
meninas e meninos, o que reflete as representações sociais: o rosa é associado à menina e o
azul, ao menino. Além do tipo de vestuário: saia e vestido caracterizando as meninas e calça,
os meninos; ou, também, dos brinquedos e objetos: carrinho para os meninos e flores e laços
para as meninas. Os desenhos são reflexo do pensamento incutido nas crianças desde cedo.
Portanto, “se desde essa etapa da vida as subjetividades e as identidades são construídas,
torna-se importante atentar para as práticas cotidianas desses sujeitos, a fim de compreender
como as desigualdades de gênero podem ser (re)produzidas” (FONSECA, 2014., p. 2).
Há três desenhos, contudo, que se diferem:
O primeiro deles, feito por um menino, tem a representação de uma menina com um
vestido azul. Já os dois desenhos que seguem, feitos por meninas, têm a representação do
cabelo dele em vermelho e do dela em azul. Contudo, o último ainda mantém a representação
das roupas em vermelho para ela e azul para ele.
Importante notar, ainda, que, na maioria dos desenhos, Ceci é representada usando um
vestido, o que se difere do livro, no qual Delphine Durand representa a personagem com blusa
e saia na maior parte da história (com calça e blusa de pijama em uma ilustração e sem roupa
na cena da praia). Apesar disso, a blusa de Ceci é vermelha, enquanto a calça de Max é azul, o
que demonstra que, por mais que o livro possibilite repensar as questões de gênero, ainda há
conceitos que estão tão arraigados que se tornam difíceis de mudar.
Já as produções da turma do 4º ano, que contém tanto pequenas redações quanto
desenhos, foram feitas por nove meninas e sete meninos, identificados pelos nomes nas
folhas. Nas ilustrações que acompanham o texto, Ceci e Max são representados com roupas
em seis desenhos, sem roupas em oito desenhos e em duas produções não há desenhos de
nenhum tipo.
Ao contrário das atividades do 1º ano, nesse caso, há mais representações do menino e
da menina sem cores: dez, enquanto cinco têm cores. E, assim como na outra turma, aqui
também – e de modo mais recorrente – a cor azul foi diretamente associada ao menino,
enquanto coube à menina as cores rosa, vermelho e laranja. Da mesma foram, os vestuários e
acessórios foram associados a ela (saia, vestido, laço) em oposição a ele (calça, short e boné).
Se no livro, Ceci não usa vestido ou laço e pratica atividades comumente associadas ao
universo dos meninos, há que se questionar o motivo de, nos desenhos das crianças, ainda
haver essa distinção:
A afirmação de que a menina tem de usar o rosa e o menino o azul extrapola
a questão ligada ao gosto pessoal por cores. Essa questão é eminentemente
social, pois se aprende, desde muito cedo e no decorrer da vida, que essas
cores identificam os meninos e as meninas. Essas cores produzem marcas
identitárias, não permitindo pensar em outras formas de se fazer homem e de
se fazer mulher. Ao contrário, demarcam a única forma legítima de ser
masculino e de ser feminino (XAVIER FILHA, 2012, p. 635).
Mesmo que o Pibid Pedagogia busque, em suas atividades, problematizar as formas de
ser menino e menina, ainda há muito a se questionar e construir, o que se pode notar nas
figuras abaixo, em que as cores ainda são utilizadas para marcar as diferenças de gênero:
No que concerne à representação dos órgãos sexuais feminino e masculino, nessa faixa
etária, os desenhos adquirem maior detalhamento, como se pode notar abaixo. Mesmo assim,
ainda há desproporção entre o tamanho das personagens e de seus órgãos genitais. Além
disso, a representação fálica mostra-se mais próxima da real, enquanto o que seria a vagina é
representado como algo externo ao corpo da mulher, como se fosse um pênis. Outro aspecto
relevante, tanto nos desenhos das turmas do 1º quanto do 4º ano, é a distinção entre as figuras
feminina e masculina por meio do cabelo: curto para eles e comprido para elas. Nota-se,
contudo, que, no livro Ceci tem pipi?, não dá para saber o tamanho do cabelo da menina, que
o mantém amarrado.
Com relação à composição escrita, uma produção não tem texto; cinco produções têm
textos curtos e dez têm resumos gerais que, na maioria dos casos, terminam na cena do
acampamento na praia, quando Max vê que Ceci não tem pipi. Mesmo assim, não há
referência aos “com-pipi” e às “com perereca”, cuja ilustração encerra o livro. De acordo com
os diários de bordo da equipe do Pibid Pedagogia, a recorrência da cena da praia pode ter se
dado pelo fato de ser nesse momento que Max – e os/as leitores/as/ouvintes – saciam sua
curiosidade, vendo que Ceci não tem pipi, mas perereca.
Daí a responsabilidade das/os educadoras/es que, em vez de reforçar preconceitos,
precisam contribuir para uma mudança de paradigma. Ao final da atividade, motivadas pela
equipe, as crianças entenderam que meninos têm pipi e meninas, perereca, mas que a
diferença sexual não as impede de realizar as mesmas atividades, como jogar futebol e subir
em árvores, por exemplo.
No entanto, essa desconstrução não é linear. Não é porque perceberam que as
diferenças podem implicar em desigualdade que já mudaram seu modo de pensar – e
representar – o tema. Assim, preconceitos, discriminações e marcas estigmatizadas ainda se
mantêm, o que reforça a importância de se continuar o trabalho com as crianças, devendo
haver “trocas de pontos de vista, construção de novos saberes e adoção de novas atitudes”
(RIBEIRO, 1996, p. 110).
Propor uma nova forma de pensar as relações de gênero e a sexualidade nas escolas se
faz necessário, tendo em vista que, “na complexidade das redes de informação e comunicação
experimentada pelo homem[ser humano] contemporâneo, não há praticamente um lugar, um
dia de sua vida em que ele não seja chamado ou cuidar do seu corpo ou a perscrutar a própria
sexualidade” (SANTOS, 2014, p. 12). Contudo, é preciso enfrentar os obstáculos impostos
para esse estudo, já que esse assunto ainda causa incômodo nas/os profissionais da educação e
nas famílias das crianças. Se já é complexo falar sobre o caráter biológico da sexualidade
humana, que dirá aprofundar o assunto para tratar da diversidade sexual e das relações de
gênero.
Cada detalhe das atividades do Pibid Pedagogia, desde a reconfiguração do espaço até
a problematização de assuntos preteridos, passando pela forma como isso é feito, com música,
dança, pintura, poesia, brincadeira, configura uma alquimia própria para se (re)pensar a
educação. E não é à toa que as crianças pedem: “Tranca a porta! Não deixa elas saírem”
(RIBEIRO; ALVARENGA, 2014, p. 187). Isso porque “um/a pesquisador/a alquimista em
educação e em currículo, insatisfeito/a com o já sabido e os costumeiros ditos, busca construir
um texto, uma realidade, sobre o que observa, experimenta e inventa” (CARDOSO, 2014, p.
239). E é nessa tentativa que o Pibid Pedagogia vem observando, experimentando e
inventando o cotidiano de trabalho com as/os licenciandas/os, professoras das escolas e,
sobretudo, com as crianças.
REFERÊNCIAS
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