DOSSI ROLEZINHOS
SHOPPING CENTERS E VIOLAES DE DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DE SO PAULO
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Fabiana Cristina Severi
Nickole Sanchez Frizzarim
Dossi Rolezinhos:
Shopping Centers e violao de Direitos Humanos no estado de So Paulo
Editora FDRP
2015
1
DOSSI ROLEZINHOS: SHOPPING CENTERS E VIOLAO DE DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DE SO PAULO
Realizao: Ncleo de Assessoria Jurdica Popular da FDRP/USP
Organizadores: Fabiana Cristina Severi (FDRP/USP). Nickole Sanchez Frizzarim (NAJURP/USP).
Edio: Faculdade de Direito de Ribeiro Preto da USP
Diagramao: Fabiana Cristina Severi.
Tiragem: 200 exemplares. Distribuio gratuita.
Ncleo de Assessoria Jurdica Popular da FDRP/USP - NAJURP
Avenida Bandeirantes, 3900 Monte Alegre Ribeiro Preto SP. Campus USP Avenida Professor Aymar Baptista do Prado, 835 Faculdade de Direito de Ribeiro Preto. CEP: 14040-906
ISBN:
Imagem da Capa: Gabriela de Oliveira Leal
1 edio, 2015
62 pginas
A Faculdade de Direito de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo no se responsabiliza pelas opinies emitidas nesta obra.
Todos os direitos desta edio reservados Faculdade de Direito de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo.
Apoios
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Ministrio da Educao Programa de Educao Tutorial (PET)
Pr-Reitorias de Graduao e de Extenso da USP
Fundo Brasil de Direitos Humanos
Coletivo Negro da USP de Ribeiro Preto
Comisso de Direitos da Criana e do Adolescente da OAB subseo de Ribeiro Preto-SP
2
FICHA CATALOGRAFICA
S4983 Severi, Fabiana Cristina
Dossi Rolezinhos: Shopping Centers e violao de Direitos Humanos no Estado de
So Paulo / Fabiana Cristina Severi, Nickole Sanchez Frizzarim. Ribeiro Preto:
Faculdade de Direito de Ribeiro Preto FDRP/USP, 2015.
62 p.
ISBN
1. Shopping centers. 2. Rolezinhos. 3. Direitos humanos. I. Severi, Fabiana Cristina. II. Frizzarim, Nickole Sanchez. III. Ttulo.
3
SUMRIO
Apresentao ............................................................................................................................................................................. 4
O perfil dos processos judiciais sobre os rolezinhos em So Paulo ............................................................................... 7
O rolezinho e as novas catedrais ......................................................................................................................................... 12
Rolezinho: o dinheiro contra a liberdade ........................................................................................................................... 14
A proteo jurdica de grupos sociais ................................................................................................................................. 15
Por que ocupar os shopping centers? ....................................................................................................................................... 17
A segregao institucionalizada ........................................................................................................................................... 22
Histrico de criminalizao da populao negra como fundamentao do preconceito existente no rolezinho .............................................................................................................................................................................. 24
Lazer: Direito social e mercantilizao em fluxos e contra-fluxos ................................................................................ 28
Entre o pblico e o privado: Os Shopping centers como espaos de lazer e da cidade ................................................. 30
O caso rolezinho: Estmulo reviso da teoria dos bens pblicos e construo de uma escala de dominialidade .......................................................................................................................................................................... 33
Anlise Jurdica da Portaria 02/2015 do poder judicirio em Ribeiro Preto/SP ...................................................... 35
Rolezinhos e violao de direitos das crianas e adolescentes ....................................................................................... 38
Audincia Pblica sobre a Portaria do Judicirio em Ribeiro Preto: Um breve relato ............................................ 41
ANEXOS ................................................................................................................................................................................ 43
1: inteiro teor da representao encaminhada vara da infncia e da juventude de ribeiro preto-sp pelos shopping centers .................................................................................................................................................................... 43
2: manifestao do ministrio pblico do estado de so paulo sobre a representao dos shopping centers de ribeiro preto-sp ..................................................................................................................................................................... 44
3: deciso do juiz de direito da vara da infncia e juventude de ribeiro preto-sp no mbito da representao feita pelos shopping centers da cidade ............................................................................................................................... 45
4: Habeas Corpus impetrado pela Defensoria do Estado de So Paulo contra a Portaria 01/2015 da Vara da Infncia e Juventude de Ribeiro Preto ............................................................................................................................. 47
4
APRESENTAO
Desde o incio de 2014, os chamados rolezinhos (encontro de adolescentes das periferias urbanas em
Shopping Centers) ganharam visibilidade nacional e internacional, em face da apreenso causada entre parcelas de
frequentadores habituais e dos lojistas. No demorou muito para que tais grupos virassem tema, na verdade rus,
em dezenas de processos no Judicirio brasileiro.
A principal estratgia jurdica, primeiramente utilizada pela maior parte dos advogados de tais
empreendimentos, foi ingressar com aes judiciais denominadas Interditos Proibitrios1, com o objetivo de
impedir o acesso desses adolescentes aos estabelecimentos comerciais, inclusive com possibilidade de uso de fora
policial.
Ou seja, mesmo vendendo, cotidianamente, a imagem de que so rplicas do espao pblico ideal em uma
sociedade do consumo, tais estabelecimentos valeram-se de um instituto jurdico tpico do direito privado para
reivindicar um suposto direito de restrio do acesso de grupos ou sujeitos indesejveis. Foram pelas vrias
ambiguidades a imbricadas que, talvez, as respostas do Judicirio brasileiro no tenham sido, todas elas, favorveis
aos lojistas ou aos jovens e adolescentes.
S no estado de So Paulo, identificamos, at o ms de abril de 2015, 27 pedidos judiciais desse tipo
realizados junto ao Judicirio do estado de So Paulo, em 1 e 2 instncias. A maioria desses processos foi extinto
sem julgamento do mrito, apesar da obteno de liminares, em alguns deles (em 7 casos julgados na 1 instncia),
proibindo os adolescentes de realizarem os encontros nos Shoppings. Na quase totalidade dos processos os rus no
chegaram a ser citados.
Uma novidade no tratamento jurdico dado aos episdios dos rolezinhos apareceu em Ribeiro Preto. No
dia 20 de maro de 2015, o Juiz de Direito da Vara da Infncia e da Juventude e do Idoso, em menos de 24h aps
ingresso de pedido formal de representantes de dois Shopping Centers da cidade (Santa rsula e Ribeiro Shopping),
criou a Portaria n 01/2015 (logo em seguida modificada pela Portaria 2/2015) visando proibir o acesso e a
permanncia de crianas e adolescentes, com menos de 15 anos de idade (depois alterado para 13 anos),
desacompanhados de seus pais ou representantes legais, nos dias de sexta-feira, sbado e domingo, em qualquer
horrio, nos dois centros comerciais.
Uma das suas principais motivaes do Juiz em questo foi a proteo de alguns direitos dos jovens. De
acordo com ele, a medida foi tomada tendo em vista o fato de que rotineiramente um grande nmero de crianas e
adolescentes tem se reunido, nos finais de semana, nos espaos dos centros comerciais denominados Shopping
Santa rsula e Ribeiro Shopping, promovendo desordens e tumulto, criando situaes de risco e insegurana
para eles mesmos.
Assim, ao invs de um interdito proibitrio que tinha os jovens e adolescentes apenas no lugar de rus
processuais, os representantes dos Shoppings da cidade conseguiram lograr xito junto ao Judicirio local situando,
ambiguamente, os adolescentes em dois campos processuais: como rus e vtimas. O pedido foi feito no formato de
1De acordo com o direito brasileiro, tais aes so destinadas proteo do possuidor contra atos de turbao de sua posse, ou
seja, quando o possuidor (de bem imvel) tem sua posse perturbada por algum. O que se pede em juzo, ento, alguma medida que possa fazer cessar o ato do turbador.
5
uma representao, junto Vara da Infncia e da Adolescncia da Comarca local e envolvia a restrio do ingresso
dos menores, por meio da criao de uma portaria. Tal portaria seria uma medida preventiva de garantia da
integridade fsica e da segurana de tais menores em razo dos possveis acidentes decorrentes das algazarras e
aglomeraes que esses mesmos menores realizam2.
Contra a deciso judicial que criou as Portarias n. 01/2015 e 02/2015, no ltimo dia 09 de abril, a
Defensoria Pblica do Estado de So Paulo ingressou com um Habeas Corpus Coletivo. Seus argumentos
sintonizam-se com os posicionamentos expressos por diversos movimentos populares e grupos sociais da regio
sobre as Portarias Judiciais.
O presente dossi procurou reunir uma boa parcela dessas vozes sociais, indignadas com as inmeras
violaes de direitos humanos que a Portaria Judicial enseja, em especial, os direitos humanos de jovens e
adolescentes pobres e negros das periferias da cidade. Ele parte dos esforos que o Ncleo de Assessoria Jurdica
Popular de Ribeiro Preto (NAJURP) tem feito nos ltimos anos de contribuir com a problematizao das
situaes de violao de direitos humanos na regio.
Alm de pesquisas, ensaios e estudos abordando aspectos, sobretudo, sociais e jurdicos implicados no
fenmeno dos rolezinhos, o Dossi traz tambm, em seus anexos, cpia das principais peas processuais do caso de
Ribeiro Preto para que o pblico em geral possa analisar seu contedo.
Tanto o Juiz de Direito que baixou a tal Portaria, quanto o Defensor Pblico que ingressou com o Habeas
Corpus Coletivo contra a deciso que criou a Portaria, fundamentaram seus atos no princpio da proteo integral
s crianas e adolescentes. Mas as consequncias (reais e possveis) de tais atos para cada grupo social mais
diretamente afetado pelo processo judicial em questo so bastante diferenciadas, ainda que esses agentes pblicos
(Juiz e Defensor) no tenham toda a compreenso disso.
De fato, nem sempre possvel ao profissional do Direito, sobretudo quem tem a incumbncia de tomar
uma deciso judicial (representante do Poder Judicirio), compreender os fenmenos sociais presentes no caso
estudado, em sua totalidade e complexidade. Em boa parte, essa dificuldade se d em razo dos prprios limites dos
meios por meio dos quais os fenmenos so apresentados.
Por isso, alm das peas processuais que do incio e corpo ao processo judicial e dos meios de provas
admitidas pela legislao, preciso tambm se valer de outras fontes de pesquisa que contribuam para que os
fenmenos sociais em questo possam ser compreendidos para alm dos contornos com que eles se manifestam
nos processos. Entendemos que s demandas envolvendo, de alguma maneira, o fenmeno dos rolezinhos,
cabvel tal advertncia.
difcil entender os rolezinhos e a as consequncias das respostas judiciais s demandas dos Shopping
Centers de modo isolado da realidade social. Precisamos, necessariamente, ligar o tema o mais diretamente possvel
aos aspectos mais centrais do tipo societal em que vivemos e tentar construir uma forma de anlise do caso que seja
minimamente suficiente para que seja possvel perceber as consequncias diferenciadas das decises judiciais para
cada grupo social.
2Nesse sentido, os representantes dos estabelecimentos comerciais argumentam, no processo, que os menores poderiam, por
exemplo, ser atropelados ou agredidos por outros frequentadores dos shoppings, ou mesmo despencarem das escadas ou pisos superiores dos estabelecimentos.
6
Por exemplo, como querer entender as reaes dos shoppings contrrias aos rolezinhos de forma
desarticulada do fenmeno, cada vez mais crescente no pas, de banalizao geral da violncia contra jovens pobres
e negros moradores das periferias urbanas? Dados do Mapa da Violncia no Brasil mostram que em 2012, dos mais
de 56 mil mortos por homicdios no Brasil, mais da metade eram jovens e destes 77% eram negros e 93,3% eram
homens.
Nossa expectativa a de que os textos aqui reunidos possam, em alguma medida, explicitar parte das
contradies imbricadas nos processos judiciais envolvendo os chamados rolezinhos e contribuir com o
embasamento terico dos atos e decises judiciais envolvendo tais fenmenos e com o fortalecimento dos ideais
democrticos no interior das instituies que compem o sistema de justia brasileiro.
7
O PERFIL DOS PROCESSOS JUDICIAIS SOBRE OS ROLEZINHOS EM SO PAULO
Fabiana Cristina Severi3
Nickole Sanchez Frizzarim4
Saulo Simon Borges5
Desde 2014, os rolezinhos tm ensejado uma diversidade de anlises no apenas no campo das cincias
sociais e humanas, mas tambm na esfera do Direito, sobretudo em face do comportamento do sistema de justia
em relao aos casos judicializados. O presente texto pretende apresentar algumas consideraes breves sobre
aspectos da judicializao dos conflitos envolvendo o fenmenos dos rolezinhos, a partir da anlise de processos do
Poder Judicirio do Estado de So Paulo.
Para tanto, fizemos um primeiro levantamento de dados na base virtual do Tribunal de Justia do Estado
de So Paulo de acrdos (decises de 2 grau) que utilizassem, em seu teor, o termo rolezinho. Como resultado,
foram encontrados 22 acrdos, dentre os quais 20 apresentaram alguma empresa administradora de Shopping
Centers em um dos polos da ao processual.
Interessante ressaltar que no encontramos nenhum acrdo referente a processos judiciais envolvendo
lojistas, pessoas fsicas ou jurdicas com pedidos de algum tipo de reparao (danos patrimoniais ou morais)
decorrente de atos praticados por jovens, crianas ou adolescentes no contexto dos rolezinhos. Pelo contrrio, em
meio a tal amostra, o nico caso de processo com pedido de reparao de danos (morais) indicava como autor no
processo um adolescente e, como ru, um Shopping Center.
Do total dos 22 acrdos encontrados, quase a metade (10 deles) mantm um mesmo padro: decises
concernentes de aes judiciais do tipo Interdito Proibitriocom pedido de liminares, ingressadas por
empreendimentos comerciais (Shopping centers) contra grupos de jovens.
Abaixo, segue um mapa com o logotipo de alguns dos Shopping Centers envolvidos nos processos judiciais
identificados na busca jurisprudencial do Tribunal de Justia do estado de So Paulo:
3 Professora Doutora da FDRP-USP. Coordenadora do Ncleo de Assessoria Jurdica Popular de Ribeiro Preto (NAJURP) da
FDRP-USP.
4 Advogada. Assessora popular do Ncleo de Assessoria Jurdica Popular de Ribeiro Preto (NAJURP) da FDRP-USP. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.
5 Assessor popular do Ncleo de Assessoria Jurdica Popular de Ribeiro Preto (NAJURP) da FDRP-USP. Graduando em Direito da FDRP-USP.
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Aps essa primeira busca na base virtual de dados, fizemos um novo levantamento tentando identificar os
Processos Judiciais de Interdito Proibitrio movidos por Shopping Centers (ou seus representantes) contra grupos de
jovens, finalizados ou em andamento, de 1 instncia, desde 2014. A pesquisa trouxe mais 13 decises de 1 grau.
No total, identificamos 27 interditos proibitrios apreciados no 1 e 2 graus do Tribunal de Justia de So Paulo,
ao menos em seu pedido liminar.
Em 11 dos 13 processos de Interdito Proibitrio apreciados em 1 grau, no houve contestao por parte
dos rus. A nosso ver, esse dado extremamente relevante, na medida em que explicita as desigualdades reais de
condies de acesso justia, entre os jovens indicados como rus nos processos e os representantes dos
empreendimentos comerciais em questo. Na realidade, a ausncia de contestaes (em muitos dos processos, os
rus indicados na ao no foram nem citados formalmente) por parte dos jovens mera consequncia do
baixssimo nmero de citaes cumpridas no mbito de tais processos, o que revela um grave problema processual.
Alm disso, como na maioria dos processos os rus indicados so sujeitos coletivos genricos6, as decises
liminares so tomadas sem que seja possvel, de fato, que os juzes ouam os jovens. Essa questo tambm
evidencia a dificuldade de realizao da defesa processual de categorias ou grupos sociais que figuram no polo
passivo das aes judiciais. Sabemos por exemplo, da legitimidade de agir de alguns agentes do sistema de justia
(como a Defensoria Pblica e o Ministrio Pblico) em aes processuais que visam efetivar ou defender direitos
coletivos ou difusos, ainda que os beneficirios da tutela sejam indefinveis (direitos de titularidade difusa). Mas no
h essa mesma clareza quanto ao papel desses mesmos agentes, por exemplo, na defesa de sujeitos coletivos
quando estes so rus no processo. Ou seja, foram raros os casos de Interditos Proibitrios da nossa amostra em
que o Ministrio Pblico ou a Defensoria Pblica realizaram algum tipo de interveno processual.
As decises liminares obtidas pelos Shoppings para que seja possvel proibir a realizao dos rolezinhos ou o
ingresso de jovens nos espaos dos Shoppings acabam por reforar a possibilidade de criminalizao indireta das
6Em alguns processos, por exemplo, encontramos no plo passivo termos como: Rolezinho no shopping; Especial de
nataaaaaaaaal $$; Encontro dos solteiros/as, Encontro de fs do Evandro Farias & Talitinha Neves. So os nomes dos eventos da forma como aparecem em redes sociais virtuais, seguidos, por vezes, da meno a um ou dois nomes dos jovens organizadores do evento em tais redes.
9
condutas daqueles grupos ou pessoas que os administradores dos Shoppings selecionarem, de acordo com critrios
de sua convenincia.
Em Franca-SP a Defensoria Pblica do Estado de So Paulo defendeu suainterveno processual para
atuarno Processo Judicial movido pelos empreendedores do Franca-Shopping contra o que eles chamaram de
conglomerado de jovens invasores, a fim de garantir a tutela jurisdicional adequada dos direitos coletivos dos
jovens.
Com relao ao contedo das 13 decises dos Interditos Proibitrios de 1 grau, 5 foram desfavorveis aos
pedidos dos Shoppings e 8 foram favorveis. Ou seja, em 38,5% dos casos, a Justia Estadual indeferiu o pedido de
liminar feito pelos Shoppings para que eles pudessem proibir o acesso dos jovens aos estabelecimentos. Vale destacar,
porm, que em 3 destes casos, apesar do indeferimento do pedido, a Justia expediu ofcio Poltica Militar como
forma de garantir a segurana no local.
Nos casos em que a Justia estadual foi favorvel ao pedido dos Shoppings, a motivao principal da deciso
foi o risco incolumidade dos frequentadores e da propriedade privada. Nos casos de indeferimento do pedido dos
Shoppings, a motivao centrou-se, principalmente, na ausncia de provas de desordem ou na impossibilidade
jurdica do pedido7.
Quando analisamos as decises dos Interditos Proibitrios de 2 grau (10 acrdos), o percentual de
ocorrncias desfavorveis aos pedidos dos Shoppings de quase 100%. Dos 10 acrdos encontrados, 9 so
desfavorveis aos pedidos dos Shoppings e 1 deles tem como objeto principal a discusso sobre o valor da causa e
no o contedo dos pedidos principais da ao. Ou seja, no encontramos nenhuma deciso favorvel aos pedidos
dos Shopping Centers no Tribunal de Justia de So Paulo, envolvendo aes de Interdito Proibitrio contra grupos
de jovens em decorrncia das prticas de rolezinhos.
A maioria das decises de 2 grau entende que a via judicial no seria o meio adequado para a resoluo
desse tipo de conflito. Muitas delas tambm se referem carncia de provas que comprovem a real ameaa que os
eventos possam trazer8.Alm dos 10 acrdos, identificamos no 2 grau 7 decises monocrticas, sendo que 4
referem-se a aes judiciais do tipo Interdito Proibitrio. Dessas 4, metade delas foram desfavorveis ao pedido dos
representantes dos Shoppings.
Abaixo segue uma tabela com os dados dos processos de Interdito Proibitrios encontrados em nosso
levantamento:
Interditos Proibitrios apreciados no Poder Judicirio do Estado de So Paulo envolvendo rolezinhos
Shopping Cidade Nmero do Processo
Data da Sentena
Deciso
CenterVale - So Jos dos 4009786- 12.06.2014 Desfavorvel. Indeferimento da liminar.
7Segue um trecho de deciso ilustrativo nesse sentido: Ainda que no se ignore que o rolezinho, novo fenmeno social de
encontro de enorme quantidade de jovens convocados pela internet, por conhecida rede social, ultrapassa, como no raro se observa, os limites da ordem, (...) no se justifica a concesso do interdito proibitrio perseguido, porque, de um lado, no h como impedir o ingresso de uns e liberar o acesso de outros, com base em simples esteretipos, em locais de livre acesso ao pblico e porque, de outro, o objetivo da parte, a despeito do aparente abuso do direito de livre manifestao, no o de preservar o direito de posse propriamente dito que ela exerce sobre o empreendimento em si, mas sim o de evitar a ocorrncia de fatos criminosos comumente verificados e passveis de ocorrer.
8Podemos ilustrar com trechos de um dos acrdos encontrados: No caso dos autos no se verifica o requisito da ameaa de turbao ou de esbulho possessrio. Nenhum fato foi relatado pela autora que pudesse se traduzir em ameaa posse ou em receio de concretizao de ameaa. Ameaas s pessoas ou danos a patrimnio se resolvem na rea criminal, no por meio de ao possessria. (...) Depois, o local destinado ao pblico em geral e por isso as medidas de proteo posse so inadequadas."
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Campos/SP 64.2013.8.26.0577 Expedio de ofcio Polcia Militar. (1 instncia)
Iguatemi - Campinas/SP 1000325-19.2014.8.26.0114
21.01.2014 Desfavorvel. Indeferimento da liminar. Expedio de ofcio Polcia Militar.(1 instncia)
JK Iguatemi - So Paulo/SP 1001597-90.2014.8.26.0100
01.04.2014 Favorvel. Liminar deferida. Expedio de ofcio Polcia Militar. (1 instncia)
Campo Limpo - So Paulo/SP 1000656-46.2014.8.26.0002
19.02.2014 Favorvel. Liminar deferida. Expedio de ofcio Polcia Militar. (1 instncia)
Center Norte - So Paulo/SP 1000935-35.2014.8.26.0001
06.02.2014 Favorvel. Liminar deferida. Expedio de ofcio Polcia Militar. (1 instncia)
Campo Limpo - So Paulo/SP 1001420-32.2014.8.26.0002
04.02.2014 Favorvel. Liminar deferida. Expedio de ofcio Polcia Militar. (1 instncia)
Jardim Sul - So Paulo/SP 1001477-50.2014.8.26.0002
18.02.2014 Desfavorvel. Liminar indeferida. Cabe ao autor provocar a Polcia Militar (1 instncia)
Condomnio Franca Shopping Center Franca/SP
1001287-53.2015.8.26.0196
29.01.2015 Favorvel. Liminar deferida. (1 instncia)
Associao Brasileira de Lojistas - ALSHOP
2011268-32.2014.8.26.0000
31.01.2014 Favorvel. Liminar deferida. Expedio de ofcio Polcia Militar ( 1 instncia)
Consrcio Shopping Metr Itaquera So Paulo
4004450-43.2013.8.26.0007
13.01.2015 Favorvel. (1 instncia)
Consrcio Shopping Metr Itaquera So Paulo
1017094-35.2014.8.26.0007
05.11.2014 Favorvel. Liminar havia sido concedida. Perda do interesse processual.(1 instncia)
Miramar Empreendimentos Imobilirios So Paulo
1007118-98.2014.8.26.0590
28.08.2014 Desfavorvel. Liminar indeferida. Ao rejeitada. (1 instncia)
Condomnio Civil Center Plaza Shopping So Paulo
1002419-98.2014.8.26.0320
25.04.2014 Desfavorvel. Liminar indeferida. Expedio de ofcio Polcia Militar.(1 instncia)
Yorg Participaes Do Brasil Ltda
1001737-51.2014.8.26.0577
10.02.2015 Desfavorvel. Perda do interesse processual. (2 instncia)
Miramar Empreendimentos Imobilirios So Paulo
1003881-56.2014.8.26.0590
14.10.2014 Desfavorvel. (2 instncia)
Empresa Patrimonial Industrial IV LTDA e outros. So Paulo
2051937-30.2014.8.26.0000
19.05.2014 Desfavorvel. Manteve indeferimento da liminar. (2 instncia)
Terral Participaes e Empreendimentos Ltda, Nassau Empreendimentos Imobilirios Ltda E Buriti Shopping - Guar
2048852-36.2014.8.26.0000
08.05.2014 Parcial. Discusso sobre o valor da causa. (2 instncia)
Syngenta Proteo de Cultivos Ltda Itpolis.
0003284-19.2013.8.26.0274
08.05.2014 Desfavorvel. Lcito provocar a fora policial em caso de desordem.(2 instncia)
Profitto Holding Participaes S/A So Paulo
2022439-83.2014.8.26.0000
08.04.2014 Desfavorvel. (2 instncia)
ASSOCIAO BRASILEIRA DE LOJISTAS - ALSHOP
2011268-32.2014.8.26.0000
08.05.2014 Desfavorvel (2 instncia)
Empresa Patrimonial Industrial IV LTDA e outros. So Paulo
2016720-23.2014.8.26.0000
10.03.2014 Desfavorvel. Deciso que indeferiu a liminar mantida. (2 instncia)
Condomnio Bourbon Shopping So Paulo
0008473-87.2014.8.26.0000
12.03.2014 Desfavorvel. (2 instncia)
Condomnio Shopping Parque Dom Pedro Campinas
2002160-76.2014.8.26.0000
29.01.2014 Desfavorvel. Lcito procurar auxlio da fora policial.(2 instncia)
Parque das Bandeiras Incorporaes Imobilirias S/A e outros Campinas/SP
0016922-34.2014.8.26.0000
11.12.2014 Desfavorvel. Deciso Monocrtica. Perda do objeto.(2 instncia)
Dokka Empreendimentos Imobilirios e Participaes S/A So Paulo
2034005-29.2014.8.26.0000
07.03.2014 Desfavorvel. Deciso Monocrtica.(2 instncia)
Shopping Center Plaza De So Bernardo So Bernardo do Campo
2022447-60.2014.8.26.0000
21.02.2014 Favorvel. Perda de objeto. Deciso Monocrtica.(2 instncia)
BR Malls Participaes S.A. e Fundo de Investimento Imobilirio BM So Paulo
2005777-44.2014.8.26.0000
12.02.2014 Favorvel homologao da desistncia da ao. Deciso Monocrtica.(2 instncia)
Fonte: pgina virtual do Tribunal de Justia de So Paulo.
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O que podemos perceber com a anlise breve sobre o perfil dos processos judiciais envolvendo os
chamados rolezinhos que, mesmo com poucas excees (58% de decises liminares no 1 grau e nenhuma
deciso no 2 grau), os Shopping Centers no conseguiram obter xito nas aes judiciais de Interdito Proibitrio
visando coibir a prtica dos rolezinhos nos estabelecimentos, ao menos na Justia do estado de So Paulo. Ou seja,
os Shoppings conseguiram apenas algumas decises liminares, em quase a metade dos casos, sendo que quase a
totalidade delas foi reformada pelo Tribunal de Justia em 2 instncia.
Talvez em razo dos sucessivos fracassos judiciais dos Shoppings ao utilizarem a via dos Interditos
Proibitrios para conseguirem proibir os rolezinhos, em Ribeiro Preto os representantes de dois Shopping
Centersbuscaram seguir um caminho diferente. Ao invs de uma ao judicial do tipo Interdito Proibitrio, eles
encaminharam uma representao ao Ministrio Pblico de So Paulo solicitando que a proibio fosse realizada a
fim de se garantir a proteo integral dos jovens que frequentam os estabelecimentos. De rus, os jovens passaram
a figurar como possveis vtimas de seus prprios atos de algazarra nos Shoppings.
O novo tipo de pedido parece buscar inspirao no antigo Cdigo de Menores (revogado pelo Estatuto da
Criana e do Adolescente Lei 8069/90), especificamente no tipo de Portaria Judicial conhecida como toque de
recolher (restrio do direito de ir e vir de crianas e adolescentes aps determinado horrio sem
acompanhamento dos responsveis). O fundamento do pedido est na atuao preventiva do Judicirio em face do
perigo que as prticas do rolezinho podem significar aos jovens que dele participam (podem cair das escadas
rolantes, serem ofendidos verbal e fisicamente por lojistas ou demais consumidores ou serem pisoteados em
eventuais tumultos).
isso que a Portaria 01/2015, modificada dias depois pela Portaria 02/2015, da Vara da Infncia e da
Juventude da Comarca de Ribeiro Preto-SP veio disciplinar: o acesso de jovens e crianas a apenas 2 dos 4
Shoppings da cidade: ficou proibido, pelo prazo de 90 dias, o ingresso de crianas menores de 13 anos no Shopping
Santa rsula e no Ribeiro-Shopping desacompanhados de seus pais ou responsveis, nos diais de sexta-feira, sbado
e domingo.
No dia 24 de abril, atendendo ao pedido feito pela administrao do Plaza Avenida Shopping e inspirado na
deciso judicial de Ribeiro Preto-SP, o Juiz da Infncia e Juventude da comarca de So Jos do Rio Preto-SP,
Evandro Pelarin, tambm criou uma Portaria que probe menores de 16 anos de frequentarem o estabelecimento
desacompanhados de um responsvel, nas sextas-feiras e sbados, depois das 18h.
12
O ROLEZINHO E AS NOVAS CATEDRAIS
Antnio Alberto Machado9
O chamado rolezinho, como todos sabemos, uma recente manifestao de pessoas da periferia que
ocorre no interior de shopping centers, geralmente combinada por meio das redes sociais, caracterizada pela presena
de um grande nmero de jovens que se encontram e provocam alguma barulheira, tanto pelas msicas do gnero
funk que costumam cantar nessas ocasies quanto pela algazarra tpica de qualquer encontro juvenil.
Pelo que se sabe, o tal rolezinho s isso, nada mais. Ento, por que ser que ele provoca tanta reao e
at medo por parte dos proprietrios de Shopping Centers, por parte das autoridades constitudas responsveis pela
manuteno da ordem e tambm por parte dos naturais frequentadores desses novos e suntuosos templos do
consumismo?
A explicao para os rolezinhos complexa, por isso, sempre ser um fracasso tentar entend-los por meio
da tica reducionista da represso e do punitivismo. Se no desejamos continuar compreendendo (e explicando) as
nossas questes sociais como simples casos de polcia, alis, como sempre se fez, melhor que comecemos a
entender fenmenos similares ao rolezinho a partir de uma tica complexa (Edgar Morin) que procure
compreender tambm o lugar, o olhar e a fala do outro, respeitando diferenas e diferentes.
A complexidade dos rolezinhos comea j com o fato eloquente de que eles so manifestaes de jovens da
periferia. Pronto, eis a uma primeira chance de enxergar as diferenas: se existem jovens da periferia porque
existem jovens do centro. Isto quer dizer que pode haver a uma espcie de apartheid, uma separao social ou
mesmo uma disfarada segregao na sociedade.
Logo, quando os diferentes, os apartados e perifricos tentam ocupar os espaos que seriam
normalmente ocupados pelos centrais natural que haja mesmo alguma reao. E a reao ser ainda maior se a
ocupao feita pelo outro trouxer consigo hbitos, linguagens, comportamentos e culturas perifricas que causam
enorme estranheza normalidade do Centro.
Mas, a complexidade prpria da convivncia com os diferentes e com as diferenas no para por a. De
fato, preciso enxergar tambm que no caso dos rolezinhos as diferenas (que so at desejveis) no so simples
diferenas, pois, no fundo, elas traduzem a face perniciosa da desigualdade. Se os diferentes so um fenmeno
natural at desejvel, a desigualdade, pelo contrrio, uma construo indesejvel dos homens!
Assim, reprimir e controlar fora quaisquer manifestaes (comportamentais, culturais, habituais etc.) dos
diferentes pode ser algo que afronta a prpria natureza e, no caso particular dos rolezinhos, certamente uma
atitude que favorece a perpetuao da desigualdade, pois, com a represso define-se na marra o lugar que deve ser
ocupado pelos diferentes ou pelos desiguais.
Outro aspecto complexo dos rolezinhos, frequentemente confundido com baderna, o fato de que os
jovens entram nos shopping centers em grande nmero, cantando as msicas do seu cotidiano e, com isso, perturbam
9 Promotor de Justia na Comarca de Ribeiro Preto. Professor Livre Docente de Processo Penal da UNESP/Franca.
13
o sossego e contrariam a forte disciplina, que muitos chamam de ordem pblica, observada nesses espaos do
Centro onde devem transitar apenas os normais que respeitam normas.
Mas, para alm da simples ideia reducionista de baderna, preciso entender que o comportamento dos
rolezeiros pode ser uma maneira de reivindicar direitos como, por exemplo, o direito cidade, frequentando os
espaos urbanos frequentados igualitariamente por todos (art. 2 da Lei n 10.257/01).
E pode ser tambm a afirmao poltica de alguns direitos constitucionais como o direito de ir e vir, o
direito de entrar e ficar em quaisquer espaos abertos ao pblico, o direito de reunio pacfica, o direito igualdade
e, finalmente, o direito de existir e ser ouvido, tudo isso assegurado pelo art. 5 da Constituio Federal.
Todavia, apesar da proteo desses direitos todos, no h dvida de que o rolezinho tem sido tratado como
manifestao fora da ordem, verdadeira infrao que ameaa a norma, os normais e a normalidade, pois,
alm de expressar ruidosamente os valores e comportamentos da periferia, os rolezeiros negam a norma
fundamental vigente nos novos templos do mercado: NO CONSOMEM NADA OU QUASE NADA.
H uma ritualidade meio sagrada dentro das novas catedrais do consumo. Ou seja, as pessoas devem
ingressar nos shopping centers em ordem, como ingressavam silenciosamente nas antigas catedrais; devem observar as
normas do mercado, como observavam as regras do missal; devem cultuar as mercadorias como cultuavam as
santidades; e, finalmente, devem adquirir os bens que asseguram a felicidade terrena, assim como adquiriam as
indulgncias que assegurava a entrada no reino dos cus.
Esse exatamente o ritual sagrado que os rolezeiros no obedecem nos atuais templos do consumo,
pois, no entram em ordem nas novas catedrais, no observam o missal do mercado, no cultuam as
mercadorias porque no podem compr-las, e no adquirem os bens que os poderiam tornar felizes e normais,
negando assim a lgica do consumo ou barbrie.
Mas, a verdadeira barbrie o enquadramento moral dos pobres, a estigmatizao, a criminalizao e as
atitudes repressivas diante das formas diferentes de sociabilidades, sobretudo, diante das sociabilidades populares,
como so os casos, por exemplo, dos bailes funks nas periferias e dos rolezinhos nos modernos e inexpugnveis
shopping centers.
A subordinao de todas as manifestaes comportamentais (e tambm culturais) a um nico padro de
comportamento, um padro oficial que no inclui as diferenas, algo que o filsofo francs Miguel Foucault, no
seu clssico Vigiar e punir, j entendia como uma espcie de adestramento, uma disciplina normalizadora que
funciona maneira de um pequeno mecanismo penal.
Num de seus romances filosficos, A caverna, o escritor Jos Saramago preferiu utilizar a alegoria da
caverna de Plato para compreender a vida contempornea que se passa, em boa parte, dentro dos Shopping
Centers. O Centro, diz um dos personagens, existe para distribuir bens materiais e espirituais que podem dar um
novo sentido para milhes e milhes de pessoas que andavam por a infelizes, frustradas, desamparadas.
Mas, adverte o prprio escritor portugus, dentro das cavernas h sempre o risco da queda no
obscurantismo e na barbrie, pois quando entramos ali, apesar das luzes, como se estivssemos a caminhar na
escurido, o passo seguinte tanto poder ser para avanar como para cair.
14
ROLEZINHO: O DINHEIRO CONTRA A LIBERDADE
Caio Jesus Granduque Jos10
O filsofo Walter Benjamin conjecturou que o sistema capitalista funciona como uma autntica religio.
No seria por acaso a semelhana entre expresses como crdito e crena, dbito e culpa, que operam de maneira
similar tanto no domnio religioso quanto na esfera econmica.
Estar em dbito com Deus ou com o credor o inferno para o pecador-endividado. Atentar contra a
crena na sacrossanta sociedade de mercado configura-se numa grande blasfmia. Atrapalhar o culto ao lucro ganha
ares de profanao.
Por essas razes, os rolezeiros encarnam os novos hereges. Sua presena nos Shopping Centers, novos
templos da sociedade de consumo, incomoda. O desconforto s pessoas de bem se d tanto por no participarem
do culto (s vo ao local para passear e no compram nada), quanto por ousarem fazer parte da celebrao (quanta
insolncia terem condies de compra prximas s da classe mdia).
Em defesa da ordem sagrada, os lojistas lanam mo de solues simplistas e autoritrias, como a proibio
do ingresso de jovens desacompanhados dos pais, verdadeiro atentado s liberdades por restringir direitos
fundamentais sem garantir a proteo de outros direitos com o mesmo status constitucional. Por isso, inmeras
decises judiciais no tm acolhido os pedidos dos shoppings.
Liberdade no um presente que se ganha sem nenhum esforo, mas sim um bem que se conquista com
obstinao todos os dias. Qualquer restrio a esse valor supremo merece a pronta resistncia das foras
democrticas. por isso que, diferentemente de Goethe, que afirmou preferir a injustia desordem, preferiremos,
como Albert Camus, eternamente a desordem injustia, j que no h justia nem liberdade possveis quando
o dinheiro sempre o rei ou o prprio Deus.
1010 Defensor Pblico do Estado de So Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito de So Paulo. Mestre e graduado
em Direito pela UNESP/Franca.
15
A PROTEO JURDICA DE GRUPOS SOCIAIS
Camilo Zufelato11
A convivncia em sociedade marcada pela composio de agrupamentos. Cada pessoa, ainda que
individualmente seja portadora de autonomia e independncia, integra grupos, e por essa razo passa a ter tambm
uma identidade coletiva, na medida em que comunga caractersticas, necessidades, direitos e deveres que so
comuns a outros sujeitos. Um aspecto central dessa questo permitir que a atuao coletiva do sujeito seja
compatibilizada com a atuao individual. No campo do direito, essa dicotomia individual versus coletivo sem
sempre de simples assimilao. Isso porque h uma forte tendncia individualista e liberal que por muito tempo
fortaleceu a dimenso individual em detrimento da coletiva, dificultando ou mesmo impedindo que se fossem
reconhecidos direitos a grupo ou coletividade. Em suma, nosso direito ainda extremamente individualista e
patrimonialista.
Contudo, cada vez mais frequente a identidade coletiva de grupos na sociedade contempornea, de modo
que preciso que se d instrumental jurdico para a defesa dos direitos de tais grupos; essa proteo s coletividades
deve passar por basicamente dois momentos importantes: i) primeiro o reconhecimento de direitos aos
componentes do grupo, permitindo assim que certas situaes jurdicas que at ento no eram consideradas
legtimas passam a ser; ii) e depois dar instrumentos hbeis para que esses direitos previamente reconhecidos sejam
efetivos e tenham poder coercitivo, inclusive por meio da tutela do Poder Judicirio.
H inmeros exemplos de direitos relativos a grupos sociais, como os contribuintes de um dado tributo, os
usurios do Sistema nico de Sade, os consumidores de um produto com defeito, os idosos que podem utilizar o
sistema de transporte pblico gratuitamente, os estudantes de um colgio particular, as crianas que tm direito
creche, os servidores pblicos que tm direito greve, dentre vrios outros.
Um aspecto relevante que a ordem jurdico-constitucional vigente bastante rica no reconhecimento de
situaes de grupos que so legitimadas pelo direito, ou seja, h muitos direitos coletivos que eram inexistentes
antes da atual Constituio. Mas, por outro lado, nem sempre h o respeito imediato e integral desses direitos, nem
pelo Estado, nem pelos particulares, o que faz necessrio a busca pela proteo pelo Poder Judicirio.
Dentre esses direitos de grupos sociais, h alguns que so claramente relacionados com coletividades que
so historicamente excludas da esfera de proteo pelo direito, e, por consequncia, h, de igual modo, uma maior
resistncia para o reconhecimento e o exerccio do direito dos integrantes desses grupos. So exemplos os
movimentos sociais que reivindicam tratamento igualitrio, como os de gnero e raa.
Importante destacar tambm que como resqucio da viso individual e patrimonialista do direito os grupos
sociais que congregam sujeitos excludos social e economicamente, muito embora tenham suas situaes jurdicas
de alguma maneira reconhecidas pela Constituio vigente, encontram fortes resistncias no exerccio desses
direitos em funo, sobretudo da condio de excludos sociais. Em outras palavras, os grupos sociais no
patrimonializados tm bem maior resistncia em reivindicar seus direitos do que os grupos patrimonializados. Basta
pensar na proteo do grupo dos consumidores de um determinado produto, de um lado, e de outro os catadores
11 Professor Doutor de Processo Civil da FDRP-USP.
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de materiais reclicveis. No resta dvida de que h um aparato jurdico de defesa do primeiro grupo muito mais
eficiente do que o segundo.
Dito isso, possvel analisar o rolezinho como um verdadeiro fenmeno de grupo social, caracterizado
basicamente pela unio de jovens adolescentes de classe mdia e baixa, por intermdio da internet, para a reunio
em shopping centers. Em realidade, a prpria existncia desse fenmeno social est relaciona com a absoluta ausncia
de polticas pblicas de cultura, esporte e entretenimento voltados para esse grupo social, que se vale de tais
encontros como forma de manifestao social. Fica bastante claro que se trata de um grupo, e de um movimento,
pois s tem sentido a existncia de um rolezinho quando realizado por uma multido de jovens.
bastante ntido que se trata de um grupo social marcadamente de excludos sociais, uma vez que os
jovens que podem consumidor outros formas de lazer, cultura e diverso buscam outros alternativas que no o
rolezinho. E exatamente essa caracterstica comum que une todo o grupo, vale dizer jovens carentes, que tanto
incomoda e gera resistncia dos grupos patrimonialistas.
Por trs da judicializao do fenmeno social do rolezinho est a ideia de manuteno da predominncia
dos grupos que detm patrimnio contra os grupos que no o detm, o que pode ser facilmente visualizado uma
vez que o instrumento processual utilizado para proibir os rolezinhos a tradicional ao possessria, desde sempre
manejada por aquele que possui algo.
A atual ordem jurdica brasileira no admite qualquer privilgio de tutela judicial para grupos dotados de
carter patrimonial. preciso tratar o rolezinho como um fenmeno de grupo, manifestao social coletiva de
jovens excludos das polticas pblicas de estmulo ao desenvolvimento integral de adolescentes, e no como ao
criminosa to somente porque se realiza em centros comerciais que tradicionalmente so destinados para os grupos
sociais de adolescentes inclusive dotados de patrimnio.
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POR QUE OCUPAR OS SHOPPING CENTERS?
Valquria Padilha12
Os conhecidos rolezinhos, que ganharam destaque no Brasil nos anos recentes, desafiam jornalistas,
cientistas sociais, juzes, lojistas, proprietrios de shoppings e populao em geral a no s compreenderem, mas
principalmente proporem soluo a esse problema inquietante. Trata-se de mais um desses fenmenos sociais
intrigantes que aparecem para desordenar a ordem e abalar as estruturas tomadas como certas. Afinal, quem so
esses jovens estranhos que chegam em grupos organizados nos centros comerciais e impem sua presena
incmoda aos frequentadores habitus, aos lojistas e aos donos dos shoppings? sabido que os praticantes dos
rolezinhos so jovens que vivem nas periferias das cidades e que, de forma geral, esto apartados no s do que
poderiam ser os benefcios de polticas pblicas eficientes (em educao, sade, lazer, cultura) - se as tivssemos em
nosso pas - mas, das supostas benesses do capitalismo e de sua sociedade de consumo. Medidas judiciais
proibitivas e segregacionistas certamente no so solues para esse fenmeno altamente revelador de uma
sociedade de desigualdades e injustias sociais.
Conforme j escrevi em meu livro Shopping Center: a catedral das mercadorias, esses centros de consumo criados
no ps-guerra (anos 1950) pelos estadunidenses, expandiram-se rapidamente no Brasil a partir dos anos 1960 e no
param de crescer. Dados da ABRASCE (Associao Brasileira de Shopping Centers), mostram que o mercado de
shopping centers brasileiro registrou, em 2014, alta de 10% nas vendas em relao a 201313. Transformaram-se nas
catedrais do consumo, onde os clientes-consumidores so cultuados como reis junto com as mgicas mercadorias
que traro felicidade, beleza, juventude, virilidade, liberdade, status e distino social aos seus novos possuidores. As
novas catedrais do consumo so o lcus privilegiado para a divulgao da religio do mercado e o rito social do
consumo. Mas, nessa catedral, no so todos bem-vindos, pois alguns no possuem as habilidades exigidas para
seguir essa religio. preciso no s vestir-se adequadamente, demonstrar que possui dinheiro (real ou virtual),
comportar-se conforme as regras locais, mas tambm se deve saber decodificar os smbolos da sociedade de
consumo.
Na sociedade de consumo, aprendemos, sejamos ricos ou pobres, que o que valem so as marcas, a posse
de objetos da moda, frequentar os lugares certos - como os shopping centers, onde se tem (ou tinha) a certeza de
circular apenas entre iguais. A publicidade que nos assola 24 horas por dia e preenche quase todos os espaos e
tempos de nossas vidas - novamente, sejamos pobres ou ricos - nos formata para desejarmos os culos mais caros,
um tnis da marca X, a cala que a atriz usa na novela, o bon de tal cantor, o ltimo celular lanado etc. Os que
tm poder de compra esto desfrutando da iluso do conforto do pertencimento. Os que no tm, ou compram as
imitaes e falsificaes para desfilarem os smbolos que sabem ser de status social, roubam ou ficam na angstia
por no poderem adentrar o mundo da fantasia. Lembro-me do caso de uma senhora que era faxineira de uma
12 Sociloga. Professora Doutora de sociologia no Departamento de Administrao da FEA-RP, na USP (Universidade de So
Paulo) em Ribeiro Preto-SP. Autora dos livros Shopping Center: a catedral das mercadorias (Boitempo, 2006), Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito (Alnea, 2000) e organizadora do livro Dialtica do lazer (Cortez, 2006), dentre outros. E-mail: [email protected].
13 Disponvel em: Acesso em: 04 mai. 2015. Trata-se de um setor que no v crise!
18
conhecida minha que no tinha os dentes da frente, mas, recusou ajuda da patroa alegando que estava juntando
dinheiro para comprar as botas que uma cantora famosa estava lanando. A sociedade de consumo leva as pessoas
a essa ridcula alienao da dignidade em troca de mercadorias, marcas e seus cdigos culturais. Ter as botas de uma
artista mais importante do que ter todos os dentes na boca.
Por isso, resta a pergunta que no quer calar: por que esses jovens de periferia, que gostam de funk
ostentao e gastam dinheiro comprando roupas e assessrios caros, escolheram justamente os shopping centers
como palco de seu movimento? Por que eles no escolheram ocupar uma universidade pblica como a USP?
Imaginem vocs as salas de aula da USP cheias desses intrusos de repente? Que susto seria! A lgica que est por
trs das ocupaes pode parecer a mesma, mas infelizmente, no . Os frequentadores da USP, docentes e alunos,
por certo, no reconheceriam os rolezeiros da periferia como seus iguais e sentiriam medo ou repulsa caso eles
decidissem ocupar sua universidade enquanto eles estivessem assistindo suas aulas. Certamente, a polcia seria
chamada e a justia seria acionada para criar medidas proibitivas de acesso desses estrangeiros USP.
Mas, por que os shopping centers atraem a periferia e a USP no? Precisamos saber o que a cultura do
consumo para entender a escolha das catedrais das mercadorias como cenrio dos rolezinhos. Nossa sociedade,
infelizmente, criou tantos abismos entre os pobres e o saber escolar, a cincia, a tecnologia, a cultura e as artes, que
no h nenhuma vantagem em reivindicar o compartilhamento desses espaos com os outros. Eles nem devem
saber o que se faz dentro dos muros da USP. Mas, sabem o que os shopping centers guardam no que chamei de
mundo de dentro. A posse de mercadorias e de marcas ganha o peso da posse de um tesouro que nos classifica
na sociedade. A posse do saber e da cultura no significa nada nessa lgica do capital e do consumo em que nos
encontramos atolados. A classe mdia e os ricos, de alguma forma sabem disso tambm, mas cumprem o protocolo
que o socilogo francs Pierre Bourdieu muito bem analisou em seu livro A Distino e delimitam seus territrios
no espao urbano do capital.
Se os rolezinhos causam terror aos cidados dignos que querem desfrutar de seu lazer nos moldes de uma
sociedade saudvel14 e se tais centros comerciais so espaos de lazer importantes para os jovens desta cidade15,
por que alguns juzes determinam que os rolezeiros da periferia no pertencem aos grupos de cidados dignos e
de jovens desta cidade? Em nome de que esteretipo de consumidor o judicirio estaria atuando? Se os shopping
centers so espaos de lazer (ainda que seja um tipo reificado de lazer-mercadoria) - que, por sinal, preenchem
estrategicamente uma lacuna enorme das polticas pblicas nesse setor - por que alguns jovens tm direito a esse
lazer e outros no? Qual a mtrica utilizada para determinar quem entra e quem no entra no mundo de dentro?
Poderamos falar de privilgio (no sentido de ser lei privada) de uns sobre outros?
Provavelmente, o que os fatos recentes confirmam a tese de que o consumidor est substituindo o
cidado. Como bem disse Noam Chomsky, em seu livro O lucro ou as pessoas? liberdade sem oportunidades um
presente diablico, e a negao dessas oportunidades, um crime. (p.101). Ele tambm assevera que o caminho
para um mundo mais justo e mais livre est muito afastado do campo delimitado pelo privilgio e pelo poder.
(p.103). Seria esse o campo da justia e do direito no Brasil?
14 Citado por Bruno Csar da Silva e Pedro Cavenaghi Neto no HABEAS CORPUS COLETIVO em favor das crianas e
adolescentes domiciliados ou que se encontrem em carter transitrio dentro dos limites da Comarca de Ribeiro Preto/SP, contra ato do juzo da vara da infncia e juventude da comarca de Ribeiro Preto, que instaurou a Portaria n1/2015.
15 Idem.
19
INVISIBILIDADE, INSEGURANA E CONSUMO: A SECESSO DOS
BEM-SUCEDIDOS NOS SHOPPINGS DE RIBEIRO PRETO
Marcio Henrique Pereira Ponzilacqua16
Hugo Rezende Henriques17
A localizao de shoppings e grandes centros de compras na arquitetura urbanstica de grandes cidades
evidencia seu papel no imaginrio social e, ao mesmo tempo, desvela seu poder simblico, associado reproduo
dos costumes e da estratificao social. Alm de espaos privilegiados de consumo, assumem o estatuto simblico
de local de encontro, de lazer, uma alternativa segura e acessvel para os indivduos. Embora tudo isso se constitua
quase sempre como illusio (Bourdieu, 2007: 222) e acaba por refletir e fomentar a segmentao social, que imprime
relaes lquidas, descartveis e fluidas, com elevado grau de excluso, porquanto fomenta a diviso da sociedade
entre os estabelecidos e os outsiders. Imprime-se aquilo que Bauman designa como a secesso dos bem-
sucedidos, os que contam e so includos, ante e os que so banidos ou rejeitados por no alcanarem os padres de
consumo esperados ou desejados (Bauman, 49-55).
Dessa forma, no so raros os casos de shoppings quase inacessveis populao em geral, seja por
carecerem de meios de transporte pblicos que lhes confira acesso, seja por estabelecerem padres tcitos de
vesturio; de poder de consumo; de comportamento; de seus clientes-alvo.
Assim se estabelece uma contradio primria, entre aquilo a que tais ambientes idealmente se propem. As
informaes contidas nos sites dos prprios shoppings ribeiro-pretanos revelam esses ambiguidade. O site do
Ribeiro-Shopping expressa O Ribeiro Shopping complementou e modernizou os tradicionais pontos de
convivncia que as praas exercem na cidade e aquilo que de fato realizam, ou seja, a complementao e
modernizao dos tradicionais pontos de convivncia para uma camada especfica da populao, as classes mais
abastadas. O stio eletrnico do Shopping Santa rsula faz questo de enfatizar, por exemplo, que 57% do seu
pblico frequentador composto por indivduos das classes A e B.
Em recente deciso, o juzo da Vara da Infncia e da Juventude e do Idoso de Ribeiro Preto acatou o
pedido que aduziram Shopping Santa rsula e Ribeiro Shopping para que fosse autorizado o controle da entrada
de crianas e adolescentes em seus estabelecimentos, no que acreditam ser uma proteo a tais crianas e
adolescentes, bem como a seus funcionrios e clientes.
Nas razes da petio inicial protocolada, alegam que tm sido alvo de invases e baderna promovidas
por grupos de menores, e que nas referidas incurses, em poucos minutos, centenas de menores (cerca de 400),
se renem nos corredores dos shopping centers e causam algazarras, correria, praticam atos obscenos, consumem
bebidas alcolicas, orquestram gritaria e desordem. Alegam, ainda, que tais eventos colocariam em risco os
prprios adolescentes, e justamente nesse argumento que acreditam encontrar a justificativa para que o juzo
determine o controle da entrada de crianas e adolescentes em suas dependncias.
Se as razes, aparentemente, apresentam certa lgica formal, ainda que caream de suporte jurdico, como
denunciam outras anlises, resta avaliar, numa perspectiva sociojurdica, o que tais argumentos no revelam numa
primeira leitura.
16 Professor Associado da FDRP USP, ministra as disciplinas de Sociologia Geral e do Direito.
17 Mestrando no Curso de Ps-Graduao em Direito da mesma FDRP USP.
20
A primeira anlise fundamental se encontra na perspectiva adotada pelos autores do pedido, e de certa
maneira chancelada pelo Judicirio, da figura do adolescente. Neste caso, refora-se a figura de um adolescente
incapaz de qualquer tipo de prudncia ou mesmo de raciocnios utilitrios. concebido um indivduo praticamente
incapaz, dependente de decises heternomas, inclusive aquelas que para seu suposto bem lhe restrinja direitos.
Isso corresponde a um modelo social e de criminologia em que se confere a criana e ao adolescente uma espcie
de subcidadania, quando no mesmo criminalizada sua conduta, considerada desviante, sobretudo se oriundo dos
estratos sociais inferiores. Trata-se especialmente de um problema de invisibilidade, de desconsiderao de parcela
considervel da populao, a quem se nega reconhecimento e cujos elementos basilares so a produo de imagens
deformadas mediante a construo de esteretipos, impingindo-lhes as cicatrizes do rebaixamento poltico e
moral da invisibilidade e da humilhao (CARVALHO, 2014:149).
Uma segunda anlise fundamental a da caracterizao do pedido das empresas. O pedido justificado por
um suposto risco geral s crianas e adolescentes no ambiente do shopping. Requerem que a Portaria restrinja o
acesso de adolescentes to somente no perodo aps as 18h de sextas-feiras e aps as 15h de sbados. E continuam,
requerendo que as crianas e adolescentes sejam levados por pais ou responsveis e, deixados nas dependncias do
shopping, l possam continuar mesmo sozinhos. Por fim, requerem que o juiz no estabelea sano pelo no
cumprimento da referida Portaria.
Esses pedidos embora no sejam claros em suas intenes so facilmente interpretveis. Os
estabelecimentos comerciais requerem controle nos momentos de maior volume de negcios e cujo interesse
comercial inegvel, e neste caso, a permanncia dos adolescentes impedida justamente nos horrios que
comumente eles utilizam para seu lazer e que poderiam oferecer risco aos negcios. Por outro lado, aqueles
adolescentes que possuem pais com certo poder aquisitivo, que podem lev-los at o shopping e l deix-los, so
bem-vindos; aqueles cujos pais teriam de, talvez caminhar longas distncias at o shopping, ou mesmo no teriam
condies de acompanhar os filhos nos transportes pblicos por carecerem de recurso e tempo para tanto, no
interessam ao estabelecimento. Portanto, o argumento do risco geral s crianas e adolescentes a mscara pela
qual se protege o interesse comercial. No bastasse isso, os referidos shoppings pedem para que no lhes seja aplicada
qualquer sano pelo descumprimento da Portaria que, em tese, foi expedida para a proteo dos adolescentes. Ou
seja, requer-se que o Judicirio conceda uma verdadeira carta branca aos estabelecimentos para que realizem um
juzo de convenincia prprio, e possivelmente lastreado em bices sociais, acerca de quando, e claro, contra quem,
exercero a restrio de direitos de que cuida a referida Portaria.
Outra anlise necessria concerne dimenso dos eventos relatados pelos estabelecimentos. Em sua
petio, reportam, sem qualquer comprovao, que os eventos teriam at 400 adolescentes. Nos sites dos dois
shoppings h informao a respeito do nmero de pessoas que por l circulam anualmente: de acordo com o site do
Shopping Santa rsula, seriam 8 milhes de pessoas ao ano (grosso modo, mdia de cerca de 22 mil pessoas por dia, ou
quase 2 mil pessoas por hora de funcionamento). O site do Ribeiro Shopping, por sua vez, reporta que circulariam
anualmente por suas dependncias cerca de 12.5 milhes de pessoas ao ano (mdia de cerca de 34 mil pessoas por
dia, ou quase 3 mil pessoas por hora de funcionamento). O estabelecimento logicamente capacitado para
comportar nmero de pessoas muito superior a esta mdia, especialmente em determinadas pocas do ano, como
no natal, estes nmeros devem subir consideravelmente, e ainda assim o shopping consegue funcionar normalmente.
21
Da se depreende que o estabelecimento deva ter mecanismos de segurana capazes de lidar tranquilamente
com um nmero to reduzido de indivduos quanto os reportados nos eventos que buscam coibir. Ademais,
possuem sistemas de vigilncia capazes de identificar eventuais aes que possam ser interpretadas como possveis
atos infracionais, encaminhando tudo isso para as autoridades competentes, por meio de boletins de ocorrncia.
Portanto, mediante o aparelho de segurana diferenciado que possuem, deveriam ter mecanismos de previso e
suporte para um nmero maior de clientes/consumidores e, ao mesmo tempo, favorecer a segurana de todos.
Conclui-se, das rpidas anlises aqui empreendidas, portanto, que os referidos estabelecimentos parecem
buscar o Poder Pblico com o intuito de chancelar aes que podem facilmente ser interpretadas como
discriminatrias e atentatrias ao princpio fundante da igualdade. Alm disso, parecem se imiscuir da
responsabilidade que se propuseram a oferecer, de segurana e bem-estar para seus frequentadores. Nesse caso, a
iniciativa privada prefere recorrer ao sistema judicirio, requerendo a privao de um direito a alguns indivduos
repita-se, de classe social muito bem delimitada do que aceitarem essa nova manifestao cultural como vlida e
digna de respeito, garantindo segurana e bem-estar tambm a estes frequentadores, e utilizando de seus sistemas de
vigilncia para garantir que eventuais indivduos que tomassem atitudes legalmente proibidas fossem
responsabilizados. Retira-se direitos de grupos j to privadas de direitos, de espaos de lazer e de oportunidades, e
repassa-se ao Poder Pblico a responsabilidade dos estabelecimentos privados de cuidarem da segurana e do bem-
estar de todos os seus frequentadores.
Referncias
CARVALHO, Thiago Fabres. Criminologia, (In)visibilidade, reconhecimento: o controle penal da
subcidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
BOURDIEU, Pierre. O podersimblico. Trad. Fernando Tomaz. 11. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
BAUMAN, Zigmunt. A comunidade: a busca por segurana no mundo atual. Trad. Plinio Dentizien. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 2003.
22
A SEGREGAO INSTITUCIONALIZADA
Coletivo Negro da USP de Ribeiro Preto/SP
O termo apartheid significa, literalmente, separao e foi um regime de segregao racial que ocorreu no
apenas na frica do Sul, mas assolou pases como os EUA sob o nome de Leis de Jim Crow. O Brasil sofre, at
hoje, a gide desse regime de segregao e, no obstante ter existido mais de trs sculos e meio de escravido (354
anos), o Brasil foi o ltimo pas a promover a abolio e mesmo aps a abolio no se teve uma medida de poltica
pblica que reinserisse os ex-escravos a um mercado que se abria, ao contrrio, estes foram expulsos e excludos das
terras. Em suma: os negros serviram como escravos, mas no como trabalhadores. A liberdade, portanto, no foi
acompanhada de igualdade. Essa histria criou um hiato, uma falha na consolidao de uma cidadania (ao ter
excludo mais de 90% da populao escrava que constitua esse pas) excluindo a populao preta de todos os
espaos.
No final do sculo XVIII em diante, inseriu-se uma ideologia europeia do branqueamento que levou o
racismo desse pas tornar-se covarde, ou seja, no nomeado. So os espaos que nos oferecem o sentido de
pertena, que nos constituem enquanto ser. Portanto, o direito de transitar, seja no aspecto fsico (ir e vir) ou no
aspecto ideolgico (mobilizao dos aspectos culturais), torna-nos visveis. No entanto, observamos que a estrutura
social em que estamos inseridos negou, historicamente, o direito de um grupo especfico de existir. Isso criou um
retalho na sociedade, uma segregao vista no tecido tnico-social. E observamos o sintoma dessa violncia
institucionalizada, desse apartheid declarado at hoje.
Recentemente, o Juiz Gentille da Vara da Infncia e da Juventude criou a Portaria 01/2015 (modificada
pela Portaria 2/2015) em Ribeiro Preto que impossibilita que adolescentes menores de 13 anos entrem em dois
Shopping Centers (Santa rsula e Ribeiro Shopping, ambos da empresa Multiplan). Essa medida de se institucionalizar
a segregao mais uma evidncia dessa violncia torpe que ocorre nessa cidade do interior de SP e que tem,
constantemente, exalado aos poros. Essa medida ocorreu por conta do fenmeno conhecido como rolezinho, por
meio dos quais jovens negros e moradores da periferia resolvem, apenas, andar/passear nos Shopping Centers (espao
de consumo dirigidoa uma classe mdia branca). Essa medida inconstitucional nos faz pensar sobre a violncia que
assola pretxs e perifricxs diariamente. Exemplos no faltam, como o recente caso de racismo ocorrido na loja da
rede Animale, que nos ilustram o quo rotineiro , na vida de crianas negras, a proibio de circular livremente nos
espaos pelo simples fato de terem nascido com a cor de pele preta. Esta cor evidencia a manifestao arquetpica
de um simulacro coletivo, o qual leva perpetuao de uma lgica falaciosa e cruel de associar esse grupo tnico
como protagonistas de uma criminalidade, ou seja, de associar o indivduo preto ao mesmo que ladro,
trombadinha, ou criminoso.
Embora a proibio deixe evidente que vlida para todos os menores de 13 anos, ela se originou de
uma lgica racista e, por isso, abre um espao para que casos de racismo sejam lidos como cumprimento da lei
tendo em vista que, cada vez que uma criana preta for expulsa de um ambiente, o estabelecimento estar
respaldado por uma norma que o permite realizar tal feito sobre o pretexto da idade. , dessa forma, um dispositivo
de camuflar e eufemizar a violncia racista.
23
Somos uma sociedade em que a maior parte dos pais de famlias de baixa renda, 77% negra, tem intensa
jornada de trabalho, alm da segunda jornada em casa. Portanto, muitos no esto disponveis para levar e
permanecer nos shoppings com seus filhos. E, muitas vezes, no caso das mulheres negras, esto cuidando dos
afazeres domsticos para que pais de classe mdia possam ter momentos de lazer com seus filhos. Essa lgica de
expropriar direitos de um grupo (pretxs da periferia) para sustentar privilgios de outro (brancxs da classe mdia e
das regies economicamente mais favorecidas da cidade) mostra a lgica racista evidenciada nas aes e nas
territorializaes geogrficas e culturais que se observa diariamente.
Alm dessa excluso, essa Portaria leva a uma segunda inconstitucionalidade, pois o controle da entrada das
crianas feito somente em que os pedestres transitam, excluindo-se essa fiscalizao da entrada do
estacionamento. Isso ilustra, mais uma vez, que crianas e famlias de renda maior so favorecidas pois no passam
pelo constrangimento de serem barradas, se tiverem carro. Logo, esta Portaria institucionaliza o classismo tambm.
Percebe-se, portanto, que essa Portaria parte da premissa de cercear o direito de um grupo especfico
(negrxs perifricxs) adentrar em um espao. Esta negao aponta para uma outra lgica cruel e que est sendo
perpassada. Essa lgica se sustenta na invisibilidade desse outro, onde essa negao nada mais do que a negao
da existncia do negrx e perifricx. Atravs dessa negao removem-se direitos como: o de adentrar um espao, o
de existir em sociedade, o de usufruir o lazer. Alm disso, quando o Poder Pblico probe grupos especficos de
transitarem e de serem visveis (o que esta Portaria causa), este desloca essa responsabilidade para interesses
privados e coloca no mercado o poder de decidir quem existe e quem no existe. Essa uma terceira violncia
cruel, pois remove direitos e se privatiza espaos, institucionalizando o apartheid em duas instncias (pblica e
privada) que deixam essa Portaria com ares de fascismo, ao segregar por etnia e pelo CEP.
Portanto, aes como essa da proibio fazem com que crianas perifricas, que so em sua maioria negras,
tenham o acesso ao lazer e cultura negado duas vezes. Primeiro, pela ausncia de espaos pblicos de lazer e
cultura nas regies perifricas. Segundo, pela proibio ao acesso s outras poucas opes de lazer disponveis na
cidade. Essa ltima negao se faz de forma violenta, pois Shoppings so diariamente vendidos como espaos de
lazer, felicidade, onde os sonhos podem acontecer e, neste ponto, a proibio refora a ideia de que o lugar dessas
crianas nos espaos excludos e negligenciados da cidade e que essas crianas no tm direito a todas essas coisas.
Por esses motivos abordados, somos veementemente contra essa Portaria, pois a mesma no fere apenas a
Constituio Federal brasileira de 1988, mas a dignidade humana como um todo.
24
HISTRICO DE CRIMINALIZAO DA POPULAO NEGRA COMO FUNDAMENTAO DO PRECONCEITO EXISTENTE NO ROLEZINHO
Inara Flora Cipriano Firmino18
Anos aps a abolio da escravatura, ainda bastante sensvel a degradao que o regime escravocrata e
senhorial operou no Brasil, por no haver garantido aos antigos agentes de trabalho escravo19, a assistncia e a
garantia que os protegesse na transio para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da
responsabilidade pela manuteno e segurana dos libertos, sem que o Estado, a Igreja, que atuou para a no
escravizao e na catequizao dos indgenas, ou qualquer outra instituio, assumissem o nus da escravido. O
liberto se viu convertido, de maneira repentina, em senhor de si mesmo e de seus dependentes, embora no
dispusesse de meios materiais para realizar essa tarefa20. As compensaes individuais ou coletivas advindas com a
transio de sistema econmico e com as migraes urbanas no alteraram a posio do negro e do mulato no
sistema de relaes econmicas e sociais. Ambos foram surpreendidos pela ecloso de uma ordem social
competitiva e urbanizada pautada por um peneiramento profissional, que no apenas os deixou margem do
processo de crescimento econmico, como contribuiu para que alguns destes jovens buscassem no crime uma sada
rpida e compensadora.21
Tais acontecimentos histricos muito contriburam para a realidade atual, na qual prevalece um contnuo e
crescente conflito entre a excluso e a incluso, entre a subordinao e a liberdade; entre a riqueza e a pobreza
individual ou coletiva e, dessa forma, o fosso de diferenas alarga-se assustadoramente. A identidade racial22
brasileira marcada pelos sistemas colonial e escravista, os quais ainda nos remetem, mesmo aps a abolio, a uma
desvalorizao da figura do negro, baseada em teses da inferioridade biolgica, corroborando com a perpetuao do
racismo por toda a estrutura da sociedade brasileira. O discurso racista conferiu base de sustentao para a
explorao da mo-de-obra africana, a concentrao de poder nas mos das elites brancas locais no ps-
independncia e para a manuteno da explorao de um povo, pelas intransigncias do capital. O racismo foi o
amparo ideolgico, em que o pas se apoiou (e ainda se apia), para fazer vivel um pacto social pautado no mito da
democracia racial, do qual a elite nacional nunca abriu mo.23
18 Assessora popular do Ncleo de Assessoria Jurdica Popular de Ribeiro Preto (NAJURP) da FDRP-USP. Graduanda em
Direito da FDRP-USP.
19 Categoria criada por Florestan Fernades na obra A insero do negro na sociedade de classe, volume 1.
20 FERNANDES, Florestan. Vol. 1. P. 29
21 Idem, pp. 161 e 172.
22 A identidade tnica e racial um fenmeno historicamente construdo ou desconstrudo. Nos Estados Unidos, onde, ao contrrio do que se pensa, a escravido tambm produziu uma significativa populao miscigenada, definiu-se que 1/8 de sangue negro fazia do indivduo um negro, a despeito da clareza de sua cor de pele. Aqui tambm definimos que 1/8 de sangue branco deveria ser um passaporte para a brancura. Vem dos tempos da escravido manipulao da identidade do negro de pele clara como paradigma de um estgio mais avanado de ideal esttico humano. Acreditava-se que todo negro de pele escura deveria perseguir diferentes mecanismos de embraquecimento. Aqui, aprendemos a no saber o que somos e, sobretudo, o que queremos querer ser. Tem sido ensinado a usar a miscigenao ou a mestiagemcomo carta de alforria do estigma da negritude: um tom de pele mais claro, cabelos mais lisos ou um par de olhos verdes herdados de um ancestral europeu so suficientes para fazer algum que descenda de negros se sentir pardo ou branco, ou ser "promovido" socialmente a essa categorias (CARNEIRO, Sueli. p. 63/65).
23 FLAUZINA, Ana Luza Pinheiro. Corpo negro cado no cho, 2006.
25
Dialogando com esse contexto, a concepo de criminologia da Escola Positivista foi transplantada com
maior aceitao para a realidade brasileira, no como uma mera incorporao de uma cultura europeia, mas como
uma necessidade apresentada pela elite brasileira que controlava o pas no final do Imprio e incio da Repblica24.
Tais ideias positivistas possibilitaram a aceitao e a legitimao de uma nova ordem social que se formava no Brasil
diante da transio poltica. Porm, esta incorporao foi feita sem que se alterassem as razes sociais que eram
fundadas na desigualdade trazida do sistema escravista. Assim, o sistema penal fundamentou-se no no delito e na
classificao das aes delituosas, mas sim no autor e na classificao tipolgica dos autores do delito,
demonstrando assim um julgamento determinista da realidade na qual se inseria o homem.25
Com o nascimento da Criminologia Positivista, as teorias raciais cientficas aliaram cincia, tcnica e a
possibilidade de deslocar a problemtica da desigualdade racial para o mbito criminal e, assim, implementar uma
poltica de controle social efetivo. Como consequncia, o racismo26 ganhou uma dimenso instrumental e, de igual
modo, a possibilidade de convivncia com discursos sobre a neutralidade de aplicao da lei. Trata-se da utilizao
da criminologia como um processo de formalizao das desigualdades sociais e como forma de controle social,
sendo que tal utilidade somada ao estigma negativo criado na figura do negro foi passada das cincias para o senso
comum, persistindo no iderio social at os dias de hoje27.
Essa transposio obteve reflexos no espao acadmico. Nina Rodrigues, na obra "Os africanos no Brasil",
relata a impossibilidade ou a lentido de aquisio de civilizao europeia pelos negros e diz que os anseios por
igualdade e de progresso a uma condio humana, que era destinada aos brancos, no passava de uma "utopia de
filantropos", ou de planos ambiciosos de poder sectrio. Por essa razo, os negros submeter-se-iam
administrao "inteligente e exploradora dos brancos.28
A oposio entre um controle social baseado na dominao de indivduos e outro na dominao de grupos
humanos (raciais) foi o fio condutor da obra de Nina Rodrigues. O autor questionava-se sobre quem deveria ser
controlado os indivduos abstratamente ou as raas inferiores e seus descendentes? A resposta foi o
desenvolvimento, a partir do conflito de civilizaes, de uma teoria da mestiagem e da criminalidade.29 O ideal
clssico de aplicao igualitria das normas era, para Nina, uma incongruncia e algo no aplicvel a uma realidade
misturada como a brasileira. parcela da populao em estgio inferior de evoluo, negros e mestios, deveria ser
aplicado um Cdigo Penal e medidas de controle e represso compatveis com suas formas primitivas de
penalidade.30
24 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira, 2012.
25 BARATTA, Alessandro, p. 39.
26 Foi durante o sculo XIX, que se sistematizou na Europa a ideologia da hierarquizao dos homens em funo das pertenas raciais. Mas a ideia de que as capacidades intelectuais e a cultural se transmitem de forma hereditria e desigual de acordo com as raas, ideia que toma como indicador principal, embora no exclusivo, a cor da pele, com o branco europeu do norte a ocupar o topo dessa hierarquia, uma interpretao dominante no campo intelectual e cientfico europeu da poca.
27"O que importa para o Brasil determinar o quanto de inferioridade lhe advm da populao negra que possui a dificuldade de civilizar-se e se essa inferioridade fica totalmente compensada pela miscigenao, processo natural pelo qual os negros esto se integrando ao povo brasileiro, para a grande massa de sua populao de cor". (RODRIGUES, Nina, p. 238/239).
28RODRIGUES, Nina, p. 238.
29Idem.
30 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira, p.234.
26
Esse o entendimento que perpetua at os dias de hoje na sociedade brasileira. Os negros continuam a ser
objeto de controle do Estado, por meio da marginalizao, pobreza e limitado acesso educao e justia. Peritos
da ONU, que visitaram o Brasil em dezembro de 2013 para a realizao de pesquisa sobre a situao do racismo no
pas, apresentaram a constatao de que so os negros os mais assassinados no pas, so os que tm a menor
escolaridade, os menores salrios, a maior taxa de desemprego, menor acesso sade, so os que morrem mais
cedo e tm a menor participao no Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, so os que mais lotam as prises e
os que menos ocupam postos nos governos,31 sem mencionar a ausncia em posies hierrquicas superiores na
empresa.
Dessa afirmao podem-se verificar as diferentes faces do racismo existentes na sociedade brasileira: o (1)
institucional, referente a uma modalidade de discriminao indireta, que trata de prtica ou uma medida que,
embora neutra, sem carter volitivo, tem impacto diferenciado sobre indivduos ou grupos; (2) o estrutural que
aquele inerente ordem social, s suas estruturas e mecanismos jurdicos, a qual tem sido institucionalizada em
todos os mbitos das sociedades e resulta em prticas discriminatrias32,(3) interpessoal referente a
comportamentos discriminatrios na vida cotidiana das pessoas; e o (4) pessoal/internalizado que seria quando as
prprias pessoas negras enxergam a si mesmas e as suas comunidades por meio dos olhos da cultura dominante-
quando os negros aplicam em si mesmos os esteretipos negativos que h sobre o seu grupo.
A questo dos rolezinhos est pautada no racismo estrutural e institucional que fundamentam o Estado
brasileiro. Do racismo institucional observa-se a problemtica de uma segurana pblica direcionada represso de
determinado grupo social, como forma de discriminao indireta. O sistema de segurana pblica brasileiro ainda
identifica na pessoa negra um suspeito em potencial, alm de coloc-la em uma situao de vulnerabilidade,
insegurana e em contato com atos de represso extrema. Em vez de acentuar a dimenso volitiva individual, o ato
institucional da discriminao volta-se para a dinmica social e a "naturalidade da discriminao" que ela engendra
em instituies pblicas ou privadas. Como essas agncias de controle agem contaminadas pelo racismo
institucional, a baixa efetividade das contenes penais, judiciais ou extrajudiciais ao racismo vista como forma de
garantia de um padro de estrutura social e das relaes nela existentes.
Ao se impedir a circulao de jovens de uma determinada classe social, que representam esta minoria
discriminada, perpetua-se, mais uma vez, a dinmica discriminatria do Estado. Demonstra a negatividade da
imagem do negro, a impossibilidade de ascenso social desse grupo, que no pode frequentar os mesmo espaos
pertencentes a uma elite branca.
Diante da noo de racismo institucional tem-se que a democracia racial, crena estabelecida por normas e
princpios constitucionais que ditam a reduo das desigualdades sociais e a promoo do bem comum, sem
preconceito de origem, raa, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminao (art. 3, incisos III e IV),
contrape-se a ftica realidade brasileira de um racismo que estrutural. Concretizou-se, no passar dos anos, uma
31Segundo este relatrio da ONU, apesar de fazer parte de mais de 50% da populao, os afro-brasileiros representam apenas
20% do PIB e o desemprego 50% superior ao restante da sociedade, sendo que a renda a metade da populao branca. Identificou-se que a violncia exercida pela polcia baseada na cor da pele: em 2010, 76,6% dos homicdios no pas envolveram afro-brasileiros.
32ARANTES, Paulo de Tarso Lugon, p. 136.
27
naturalizao da hierarquia racial, na qual o racismo assegurou a reproduo, quase que automtica, da
discriminao dos negros.33
A luta antirracismo pressupe uma mudana significativa no apenas no referencial simblico que rege as
relaes sociais, mas tambm na atuao dos agentes pblicos e das instituies frente questo. O direito
utilizado como instrumento de controle social, reproduzindo as relaes de hierarquia que so baseadas nas
categorias de sujeitos, para promover avaliaes binrias (bom X mal) estabelecidas pela ausncia de neutralidade
social persistente desde a poca colonial. O desejo de afastar o mal pela punio e castigo impede que se discutam
novas formas de organizao da sociedade, assim como a busca por mecanismos alternativos de resoluo desse
conflito "racial". O resultado desse pensamento punitivista, o qual teve incio com o Estado no perodo colonial, a
perpetuao do racismo social pelo modelo judicial de gerenciamento da desigualdade.
Referncias
ARANTES, Paulo de Tarso Lugon. O caso Simone Andr Diniz e a luta contra o racismo estrutural no Brasil. Direito, Estado e Sociedade: novembro, 2007. BARATA, Alessandro. Criminologia Crtica e crtica do direito penal: Introduo sociologia do direito penal. Traduo: Juarez Cirino dos Santos. 6 ed.. Rio de Janeiro: Editora Renavan, 2011. CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. So Paulo: Selo Negro, 2011. FERNANDES, Florestan. A integrao no negro na sociedade de classes: ensaio de interpretao sociolgica. Vol. 1, 5 ed. So Paul: Globo, 2008. FLAUZINA, Ana Luza Pinheiro. Corpo negro cado no cho: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Tese de Mestrado- Universidade de Braslia, Braslia, 2006. PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalizao do Racismo entre poltica de reconhecimento e meio de legitimao do controle social dos no reconhecidos. Tese de Doutorado- Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. So Paulo: Madras, 2008.
33 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira, p. 280.
28
LAZER: DIREITO SOCIAL E MERCANTILIZAO EM FLUXOS E CONTRA-FLUXOS
Reinaldo Pacheco34
Direito social presente na Carta Magna brasileira, o lazer segue sendo um fenmeno da modernidade.
Contraposto ao tempo de trabalho, o lazer d-se num tempo de no trabalho e como resultado das lutas sociais
incessantes que ocorreram durante mais de dois sculos para a reduo das jornadas laborais.
O lazer ocorre por meio da escolha relativamente autnoma de prticas e atividades prazerosas, ldicas e
pela atitude do sujeito no pleno exerccio de seu direito. Esta possibilidade de escolha relativa e no absoluta: faz-
se o que se quer dentro do que possvel e nem sempre o universo das prticas possveis contemplam os desejos
dos sujeitos e grupos sociais.
O lazer pode ser entendido como toda e qualquer prtica cultural (sim, at mesmo os rolezinhos...)
realizadas com relativa autonomia, num tempo e espao especficos, condicionadas por outras obrigaes e relaes
sociais que demarcam identidades dos sujeitos e grupos e podem contribuir na formao e transformao social e
cultural. No sentido contrrio, o lazer pode tambm ser utilizado como instrumento de controle social e
mercantilizao do tempo, desprovendo-o assim de sua condio emancipatria. A fragmentao de aes no
campo das atividades de lazer, por parte do setor pbico e privado, acaba por subtrair do lazer essa condio de
promoo do desenvolvimento social e cultural dos sujeitos. Tal o caso, no meu entender, dos chamados
rolezinhos nos shoppings. Ressalta-se, no entanto, que os jovens que assim se manifestam tm todo o direito de
estabelecerem entre si suas redes de sociabilidade e promover formas de encontro em espaos que so considerados
abertos ao pblico, tais como os shoppings. A segregao destes jovens destes espaos espelha a mxima contradio
de um sistema social que no ofereceu a eles outras possibilidades de afirmao de uma identidade seno aquelas
provindas da sociedade de consumo.
Direito social assegurado, o Estado torna-se responsvel na medida em que a concretizao deste direito
faz-se por meio de polticas pblicas. Se por um lado o lazer algo inerente ao sistema capitalista, subproduto do
trabalho e mercantilizado, por outro, transformou-se numa necessidade humana fundamental. Neste conflito que se
estabelece entre proprietrios de shopping centers e grupos juvenis, apelar ao apoio do Estado para que estes jovens
organizem suas formas de encontro em parques pblicos, por exemplo, de um cinismo descabido. Parece-nos que
este fenmeno, os rolezinhos, carece de maiores investigaes empricas. Parte dos jovens, especialmente aqueles
oriundos de famlias em processo de ascenso econmica, encontram no shopping center uma possiblidade
interessante de sociabilidade que refora laos identitrios. Alis, esta uma das caractersticas das prticas de lazer
pouco explorada na literatura: o fato que o lazer elemento social que molda a identidade dos sujeitos.
Ora, se a estes jovens os espaos pblicos vistos como espaos de ningum e no como espaos de todos
no foram apresentados como capazes de auxiliar a construir a sua cidadania, se a condio de cidado
apresentada a estes jovens foi a da integrao sociedade de consumo, talvez fosse esperada tal manifestao. Entre
ostentar marcas e circular por um grande centro de compras e ser segregado em algum espao pblico, certo
34 Professor Doutor da EACH-USP.
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