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Do Sagrado ao Profano:
A História e o Impacto das Imagens em Cinema Paradiso1
Thiago da Silva RABELO
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Lucas Alves de BRITO3
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO
RESUMO
O presente artigo faz uma análise de Cinema Paradiso (1988) através, principalmente, das
ideias de Vilém Flusser (2014), encarando o filme menos como homenagem ao cinema do que
como uma reflexão sobre a história das imagens na arte e no mundo. Para isso enfatiza-se a
relação entre três personagens (Adelfio, Salvatore e Alfredo), tratados aqui como
representantes de períodos históricos distintos no que diz respeito à transformação,
disseminação e percepção do campo imagético. Por fim, busca-se a partir de uma análise
fílmica fundamentada em Thompson e Bordwell (2010) aspectos formais que confirmem ou
não as hipóteses levantadas pela perspectiva flusseriana.
PALAVRAS-CHAVE: Análise; Vilém Flusser; Cinema Paradiso; História; Imagens.
INTRODUÇÃO
Dirigido por Giuseppe Tornatore, o longa-metragem Cinema Paradiso (1988) narra a
trajetória de Salvatore Di Vita, apelidado de Totò, em duas linhas temporais distintas:
enquanto residente, no passado, do pequeno e devastado vilarejo de Giancaldo, localizado
num sul da Itália pertencente ao pós-Segunda Guerra Mundial, e também na posição
(presente) de um cineasta bem-sucedido. A trama discorre sobre sua amizade com Alfredo –
nascida ainda na infância –, projecionista do cinema que dá título ao longa-metragem, e a
paixão nutrida por ambos em relação aos filmes que viram na época. Além disso, a obra
retrata temas variados, como as dificuldades de uma mãe solteira vitimada pela guerra (Totó e
sua irmã são criados sem pai), a relação do protagonista com a igreja, o surgimento das
primeiras paixões em sua adolescência, o recrutamento militar durante a guerra, entre outros.
Apesar de comumente compreendido como uma grande homenagem ao cinema e suas
transformações ao longo das décadas, busca-se neste artigo uma nova perspectiva: analisar o
filme baseando-se, principalmente, nos conceitos de Vilém Flusser (2014). Dessa forma, nos
1 Trabalho apresentado no GP Cinema, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do
41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestrando do programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás. E-mail:
[email protected]. 3 Mestrando do programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás. E-mail:
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interessa entender Cinema Paradiso (1988) enquanto metáfora à história da produção,
disseminação e percepção das imagens, vistas aqui como elementos centrais de um debate
envolvendo não apenas o impacto que tal processo teve no passado, mas que continua tendo
num mundo cada vez mais dominado por dispositivos capazes de reproduzi-las. Para isso,
enfatizamos a relação entre três personagens de Cinema Paradiso: o padre Adelfio, o
projecionista Alfredo e o cineasta Salvatore Di Vita (Totò), ao passo que a própria estrutura
do texto (dividida em três partes principais) segue a lógica dessa relação. Por fim, e seguindo
o que dizem Thompson e Bordwell (2010), procuramos realizar uma análise fílmica do
recorte proposto na busca por aspectos formais que confirmem ou não as possibilidades
levantadas pela visão flusseriana.
1. PADRE ADELFIO E O SAGRADO
O Cinema Paradiso é o único cinema do vilarejo de Giancaldo, local onde ambienta-
se o filme de Tornatore. No início da obra a Igreja é sua proprietária, sendo padre Adelfio
(interpretado por Leopoldo Trieste) o responsável por administrá-lo. Munido de seu pequeno
sino, Adelfio assiste aos filmes antes que as obras sejam colocadas em cartaz, como forma de
censurá-las caso perceba nelas trechos impróprios, principalmente no que diz respeito a
imagens com teor sexual. Quando isso acontece, Adelfio soa fervorosamente o sino para que
Alfredo (Philippe Noiret), o único projecionista da cidade, possa extraí-las do rolo de filme.
Eis uma das formas através da qual a Igreja procura impedir que os moradores de Giancaldo
cometam pecados.
Figura 1: Padre Adelfio censura as imagens no cinema
Fonte: Blu-Ray do filme. Tempo do frame: 11’45’’.
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Padre Adelfio e os primeiros anos do Cinema Paradiso, partindo do que diz o prisma
flusseriano, representam o modo com que os antigos lidavam com a criação e o publicar da
arte, a partir do qual compreendiam que sempre atrás da criação de um produto, há uma
abstração, um ideal.
No livro Comunicologia: reflexões sobre o futuro, Vilém Flusser (2014) exemplifica
esse fenômeno com a figura do sapateiro que manipula os materiais disponíveis ao seu redor,
com a finalidade de alcançar no produto final a “ideia do sapato”. Entretanto, a prática nunca
alcança inteiramente seu conceito. Não é o artesão que define o valor de sua obra, mas os
teóricos, que, neste caso, são os membros da Igreja. O artesão vai ao espaço público expor seu
produto, criado em seu espaço privado, para ser avaliado por um padre, apto a estimar quão
próximo a criação chegou de seu ideal, definindo, por fim, um preço justo a este.
Neste caso, a criação opera em um sistema autoritário, discurso que Flusser (2014)
chama de piramidal . Deus é o verdadeiro e único autor de todas as obras, o único emissor. Os
membros da Igreja, por compreenderem melhor as escrituras (a teoria), funcionam como
intermediários encarregados de interpretar as mensagens e repassar à população. No discurso
piramidal da igreja, existem “dois tipos de funções dos padres: a superior, a magistral, a do
transmitir à massa; e a inferior, a ministerial, a de excluir ruídos, para manter a mensagem e a
informação o mais claras possível” (FLUSSER, 2014, p. 59). No filme, Padre Adelfio tem
ambas as funções: a de transmitir as imagens ao vilarejo e a de filtrar seu conteúdo,
eliminando aquilo que gera confusão sobre a mensagem divina. As imagens são mágicas,
pertencentes de um ritual em que o cinema é o espaço público de socialização.
Percebemos essa ligação entre imagens, magia e religião também nos estudos de
Morin (2014, p. 185), sobretudo quando o autor afirma que “a estética e a arte, herdeiras
quintessenciais da magia, da imagem, do sonho e da religião, procuraram se constituir em
áreas fechadas; e são hoje as grandes reservas do imaginário”. Além disso, Bordwell (2008, p.
331) complementa o diálogo afirmando que o cinema, “graças à fotografia e à ilusão de
movimento, pode captar certas regularidades na realidade perceptual com grande exatidão e
vigor”, e que, por isso, “tornou-se um poderoso meio de comunicação visual transcultural”.
O Cinema Paradiso, como o próprio nome leva a entender, é, desta forma, o paraíso
das imagens (ou do imaginário), o Éden das representações do mundo objetivo, livre do
profano graças aos membros da Igreja, intermediários da mensagem divina e responsáveis por
retirarem seus ruídos, buscando se aproximarem do conceito de “filme ideal”. Devido à sua já
citada capacidade de transpor barreiras culturais (e também sociais, tendo em vista a
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quantidade de analfabetos durante as sessões), o cinema, aos olhos do padre Adelfio, é capaz
tanto de entreter quanto de estimular vícios, independentemente do poderio cultural ou
econômico de seu público. Disso nasce sua estratégia de censura.
Além dessa missão, padre Adelfio tem a árdua tarefa de lutar contra o que Flusser
(2014) chama de contra-ataque das imagens. O contra-ataque é um conceito chave na obra do
autor, entendido por ele como o principal agente da história humana, inspirado na homeostase
da biologia e no feedback (retroalimentação) da cibernética.
“Entendendo por homeostase a capacidade do organismo de se manter estável no
confronto com as vicissitudes do ambiente, as máquinas também realizam algo
similar por meio do feedback. Este já havia sido teorizado, desde os anos 1930,
como fluxo de informação e estava sendo estudado e empregado para aumentar a
estabilidade de sistemas mecânicos, graças à estabilidade autorregulada por meio de
corretores cibernéticos. Chamado mais propriamente de feedback loop, sua função é
levar o output de um sistema em consideração de modo a provocar o ajustamento de
sua performance a uma resposta desejada. A partir desse ponto de vista, a síntese do
orgânico e do maquínico sustenta-se no seguinte tripé: informação, controle e
comunicação” (FELINTO; SANTAELLA, 2012, p. 27-28).
O homem ao manipular os objetos do mundo a partir de informações e memórias
adquiridas é contra-atacado pelos objetos, sendo também transformado por este: o homem
transforma o galho em bengala ao mesmo tempo que o galho transforma a maneira de andar e
a compreensão humana do passo (FLUSSER, 2014).
“A história da cultura começa com o armazenamento de informações adquiridas em
partes do mundo da vida que são transformadas em objetos para essa finalidade. Por
meio do armazenamento de informações de objetos. Até então eles insistiam no
mundo da vida. Graças à abstração de objetos destinados a empregá-los como
memórias, os homens não só ainda insistem - decerto não como se ainda fossemos
macacos -, mas também existem. Em nós há uma cisão. Somos dentro e fora. Os
objetos que empregamos como apoios das memórias contra-atacam repercutindo
entre nós” (FLUSSER, 2014, p. 121).
Quando o homem cria as imagens a fim de representar algo e orientá-lo no mundo
objetivo, as imagens reagem e começam a tomar o primeiro plano, o do mundo objetivo.
Concomitantemente, a imagem passa a representar algo e a se colocar à frente da realidade:
“em vez de reconhecer o mundo na imagem, começo a reconhecer a imagem no mundo. Em
vez de me orientar no mundo objetivo com a ajuda da imagem, começo a me orientar na
imagem com a ajuda do mundo objetivo” (FLUSSER, 2014, p. 129). A relação de padre
Adelfio com Alfredo e Totò revela essa batalha, retratada como um esforço ridículo contra o
poder das imagens e a mudança do papel da arte ao longo história.
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Os dois projecionistas do Cinema Paradiso, dessa forma, são aqueles que,
embriagados pelo cinema, colocam o mundo das imagens em primeiro plano ao invés do
mundo objetivo, buscando em suas vidas aquilo que conheceram através dos filmes.
Figura 2: Através de recursos formais variados, filme reforça proximidade entre visões de Totò e Alfredo.
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem dos autores. Tempo dos frames, da esquerda para direita: 42’54’’ e 8’47’’.
A seguir, analisa-se Alfredo, o primeiro projecionista do Cinema Paradiso. Enquanto
padre Adelfio representa as crenças e as práticas dos antigos - a imagem como algo sagrado,
ritualístico, espiritual, ligado a um discurso piramidal e hierárquico -, Alfredo representa o
momento de transgressão do homem, que retira o lado divino da criação, reivindicando as
obras como fruto da técnica e do trabalho humano. Entretanto, como argumenta Flusser
(2014), todos os objetos manipulados contra-atacam. Ao defender o homem como o autor das
imagens, profanando o sagrado, assim como Eva, o projecionista é castigado pela sua
desobediência, sendo expulso do paraíso.
2. ALFREDO E O PROFANO
Em uma das sequências de Cinema Paradiso, a última sessão da noite está lotada, com
clientes protestando por ficarem de fora e por terem esperado em vão na fila durante horas.
Olhando a multidão da cabine, Alfredo diz a Totò: “Uma multidão não pensa, não sabe o que
faz”. A frase é originalmente dita por Joe Wilson, personagem interpretado por Spencer Tracy
em Fúria (Fury, 1936). Assim, as grandes lições de vida passadas a Totò por Alfredo ao
longo de boa parte da trama nascem de frases retiradas de filmes, exemplo de como o
projecionista sempre coloca as imagens em primeiro plano, em detrimento do mundo
objetivo.
Segundo Morin (2014, p. 54), “quem frui um filme não pode se considerar proprietário
da imagem”. Dessa forma, Alfredo, comovido pela indignação e revolta daqueles expulsos do
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cinema, resolve “roubar” as imagens normalmente apresentadas no interior do local. O
projecionista manipula os espelhos da máquina, conseguindo refletir a luz do projetor de
modo que seu feixe seja duplicado e, assim, produza imagens tanto dentro da sessão quanto
nas paredes das casas próximas ao cinema, agradando a multidão desesperada do lado de fora.
Todavia, a criação de Alfredo acarreta no superaquecimento do projetor, que logo se
incendeia, destruindo o Cinema Paradiso e machucando o personagem gravemente,
deixando-o cego e com múltiplas queimaduras.
Figura 3: O roubo das imagens por Alfredo e seu castigo
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem dos autores. Tempo dos frames, do canto superior esquerdo ao canto inferior
direito: 49’16’’, 50’27’’, 55’35’’ e 53’24’’.
Tendo como base as ideias de Flusser (2014), compreende-se Alfredo como a
transformação histórica da percepção da imagem como sagrada para algo produzido através
da técnica e do trabalho. O mercado livre e a burguesia são os responsáveis por romperem
essa ideia, defendendo que o sapato vem da mente do sapateiro e não de um ideal mágico.
Rompe-se a relação autoritária da Igreja em favor da lei de oferta e demanda, saindo de um
discurso piramidal para algo mais próximo de um discurso circular (há vários autores ao invés
de um único “autor-deus”), em que a técnica e a ciência tomam o lugar de destaque na
sociedade (FLUSSER, 2014).
Assim como Prometeu, o titã que roubou o fogo dos deuses para dar aos homens na
mitologia grega, Alfredo “rouba” as imagens, retirando-as de seu espaço sagrado para agradar
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os cidadãos de seu vilarejo. O pecado ocorre ao romper a relação hierárquica divina
piramidal, compreendendo as imagens como fruto das ferramentas humanas. Enquanto
Prometeu é punido pelos deuses sendo amarrado em uma rocha por toda eternidade, na
companhia de uma águia que come seu fígado todos os dias (sempre regenerado no dia
seguinte), Alfredo fica cego, impossibilitado de trabalhar e ver as imagens que mais amava,
em um dos contra-ataques das imagens após a transformação do divino em humano, do
sagrado em profano.
É somente após perder a visão que Alfredo coloca o mundo objetivo no lugar do
mundo abstrato das imagens. No seu último conselho a Totò, recomenda que saia de sua
cidade, vá a Roma e não volte até realizar o seu sonho. Em tom melancólico ele diz: “É
preciso ir embora por muito tempo, por muitos e muitos anos, para encontrar, na volta, a tua
gente, a terra onde nasceu. Agora não é possível. Você está mais cego do que eu”. Curioso à
origem da fala, Totò pergunta: "Quem disse isso? Gary Cooper, James Stewart, Henry
Fonda?". Totò então se surpreende ao saber que aquelas palavras não vieram dos filmes e sim
de Alfredo, que em seguida complementa: “a vida não é como você viu no cinema. A vida é
mais difícil".
2. 1 O Cinema Paradiso após o incidente de Alfredo
Como consequência do incêndio, as imagens passam do campo da Igreja, sem
condição financeira de reconstruir o cinema, para o campo do mercado, através do napolitano
Spaccafico (Enzo Cannavale), habitante da vila que havia ganhado na loteria e decide
comprar o espaço. Segundo Charney e Schwartz (2001, p. 96, grifo dos autores), “a
modernidade, em resumo, foi concebida como um bombardeio de estímulos”. Dessa forma, a
mudança é analisada como a transição da arte e suas imagens de divinas, mágicas, para frutos
do homem e do mercado.
Se no poder de padre Adelfio o cinema era censurado, em uma relação piramidal que
buscava remover os ruídos da mensagem do autor-deus para manter a ordem e as vontades da
Igreja, com Spaccafico o Nuovo Cinema Paradiso tem como missão apenas o lucro. Para isso,
remove todas as censuras indesejáveis do passado, embriagando os clientes no excesso das
imagens.
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Figura 4: O Novo Cinema Paradiso.
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem do autor. Tempo dos frames, do canto superior esquerdo ao canto inferior
direito: 56’43’’, 58’38’’, 63’11’’ e 63’44’’
Na Figura 4, observa-se algumas das mudanças. No primeiro quadro, nota-se que a
entrada do cinema surge mais chamativa, com diversas luzes multicoloridas. O espetáculo
antes reservado aos limites da grande tela começa a se espalhar para o vilarejo (leia-se: para o
mundo objetivo). No segundo quadro, a primeira sessão do novo cinema. Quando Padre
Adelfio vê uma cena de beijo, levanta por impulso seu sino. Entretanto, rapidamente nota que
não possui mais nenhum poder sobre estas imagens e desiste de soá-lo, esboçando um olhar
derrotado enquanto a platéia aplaude uma cena sensual que, pela primeira vez, é exibida sem
cortes em Giancaldo. O terceiro e o último quadro revelam o domínio do profano no espaço
antes sagrado. Se no passado a sexualidade era censurada, ao passo que atos de libidinagem
tinham que ser executados às escondidas, agora ela surge em demasia. Os adolescentes se
masturbando com trechos sensuais dos filmes mostram o homem cada vez mais dominado
pelas imagens, em oposição ao mundo objetivo, enquanto que no último quadro a prostituição
ocorrida nas sessões é vista como a perda do sentimento de espaço mágico, divino do cinema.
"A modernidade transformou a estrutura não apenas da experiência diária fortuita,
mas também da experiência programada, orquestrada. À medida que o ambiente
urbano ficava cada vez mais intenso, o mesmo ocorria com as sensações dos
entretenimentos comerciais. [...] Uma grande quantidade de diversões aumentou
muito a ênfase dada ao espetáculo, ao sensacionalismo e à surpresa. Em uma escala
mais modesta, esses elementos sempre haviam feito parte das diversões voltadas
para platéias proletárias, mas a nova prevlaência e poder da sensação imediata e
emocionante definiram uma era fundamentalmente diferente do entretenimento
popular". (CHARNEY; SCHWARTZ, 2001, p. 112)
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O Nuovo Cinema Paradiso também é a passagem do bastão de projecionista de
Alfredo para Totò, seu pupilo, treinado desde pequeno por seu mestre para manejar a
máquina. A seguir, analisa-se a trajetória do cineasta Salvatore Di Vita (Salvatore
Cascio/Marco Leonardi/Jacques Perrin), o Totò, protagonista da história, e de seu fascínio
pelas imagens produzidas a partir do cinema.
3. TOTÓ E O AMOR ÀS IMAGENS
Totò, assim como Alfredo, é um homem fascinado pelas imagens. Com o pai morto na
guerra, vive sua infância com sua mãe e irmã mais nova, em um vilarejo que ainda possuía as
ruínas nascidas durante o conflito. Desinteressado pelos ensinamentos e rituais da igreja de
padre Adelfio, Totò logo se apaixona pelos filmes exibidos em Cinema Paradiso.
Segundo Flusser (2014), o cinema representa o homem cansado da história.
Exemplifica-se essa característica no protagonista do filme com a cena ilustrada na Figura 5,
em que Totò e sua mãe caminham sobre as ruínas do vilarejo. Ele nota que sua mãe está
chorando e fica triste, entretanto ao avistar um cartaz de “...E o Vento Levou” (Gone With the
Wind, 1939) nas paredes destruídas, esquece por um momento todo o sofrimento e esboça um
sorriso.
Figura 5: Totò entre a história e o cinema
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem dos autores. Tempo dos frames, do canto superior esquerdo ao canto inferior
direito: 45’25’’, 45’37’’, 45’58’’ e 46’05’’
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“Nos primórdios [...], as imagens significavam janelas, passagens ou ligações com o
mundo exterior. Através delas, o homem tomava parte na Criação. Posteriormente,
enquanto imagem de Deus, ele passou a produzir imagens semelhantes a si mesmo,
meros espelhos, que, na melhor das hipóteses, refletiam seus próprios rostos, e, na
pior, apenas uma imagem desfigurada de si mesmos. Vendo-se a si mesmo, tendo a
imagem assassinado os corpos, o homem já não vê tampouco o outro.”
(MARCONDES FILHO, p. 155, 2007)
O cinema funciona, segundo Flusser (2014), como a alegoria da caverna de Platão ao
contrário. Na alegoria do livro A República, Platão (2012), em uma crítica à política, descreve
escravos acorrentados, contra suas vontades, em uma caverna que possui uma fogueira que
emite as sombras das pessoas que passam do lado de fora da caverna. Os escravos são
iludidos a compreender as sombras, o mundo aparente, a política, como a verdade. Busca-se
como libertação política a fuga da caverna e suas sombras para o sol.
O contrário ocorre no cinema: “as pessoas que vão ao cinema estavam no sol e querem
apenas as sombras” (FLUSSER, 2014, p. 230). As pessoas vão em direção às sombras,
conscientes de suas condições de sombras, imagens produzidas e transmitidas por feixes de
luz emitidos por um projetor. As imagens do cinema são fortes o bastante para, segundo o
autor, superar os rituais religiosos.
“A missa católica está ultrapassada. Na missa católica, o pão transforma-se em
carne. No cinema, uma pessoa se transforma, de algo vivo, em algo estendido. A
coisa estendida é adequadamente biunívoca em relação a uma coisa aritmética. Não
existe milagre maior de metamorfose do que o cinema” (FLUSSER, 2014, p. 230)
Enquanto Totò não consegue se manter acordado na missa de padre Adelfio, com
Alfredo o garoto se apaixona pelo cinema e esquece um pouco as mazelas do mundo objetivo.
Seguindo os passos do antigo projecionista, almeja controlar as imagens, tornando-se um
grande cineasta no futuro. O protagonista busca encontrar no mundo real as imagens pelas
quais se apaixonou no cinema de sua infância.
Alfredo, por sua vez, representa a reinvindicação do papel de autor pelo homem,
substituindo o divino pela ciência e a técnica, Totò é a rebeldia daquelas pessoas que buscam
os fragmentos que lhes foram censurados. No caso do protagonista, tratam-se das cenas
cortadas por padre Adelfio, logo após o homem já ter tomado o papel de destaque,
promovendo o excesso das imagens. Em outro contra-ataque, padre Adelfio, ao apostar na
censura, acaba instigando Totò a buscar no mundo objetivo as imagens românticas extraídas
dos filmes de sua infância.
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Figura 6: padrões formais ressaltam busca de Totò, no mundo objetivo, por imagens que o marcaram
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem dos autores. Tempo dos frames, da esquerda para a direita: 82’20’’ e 88’50’’.
Esse fenômeno é compreendido claramente na última cena de Cinema Paradiso
(Figura 7). Salvatore Di Vita retorna depois de 30 anos a Giancaldo, para o velório de
Alfredo. Em sua breve estadia, sua mãe lamenta que, apesar de o filho ter atingindo seu
objetivo de se tornar um cineasta, nunca conseguiu se apaixonar por alguém enquanto adulto,
tendo romances passageiros e efêmeros com várias mulheres. Após esse momento, Salvatore
recebe, como herança de seu falecido amigo, um rolo de filme. Ao reproduzi-lo, se emociona
por reconhecer na tela trechos censurados a pedido de padre Adelfio.
Por se interessar muito mais pelo plano das imagens do que pelo plano objetivo, Totò
nunca se apaixona. Salvatore passa grande parte de sua vida atrás das imagens, abandonando
sua história e aqueles ligados a ela. Seu amor é o idealizado, inalcançável como aquele
“sapato ideal” de Flusser (2014), presentes nas imagens proibidas de sua infância em
Giancaldo.
Figura 7: Salvatore se emociona com a herança de Alfredo
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem dos autores. Tempo dos frames, do canto superior esquerdo ao canto inferior
direito: 118’05’’, 118’46’’, 119’17’’ e 119’09’’.
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4. A INVASÃO DAS IMAGENS A PARTIR DA FORMA FÍLMICA
Ao longo da presente análise de Cinema Paradiso a partir do pensamento de Flusser
(2014), nota-se a utilização dos personagens Adelfio, Alfredo e Salvatore como representantes
do processo histórico que culminou na presença das imagens não apenas dentro de espaços
específicos, como o cinema ou a igreja, mas também nas ruas, nas casas e até mesmo no
imaginário do ser humano, entendido aqui como “prática mágica espontânea da mente que
sonha” (MORIN, 2014, p. 100).
Dessa forma, entende-se como movimento natural dessa investigação a busca por
outros aspectos fílmicos que reforcem a trajetória sinalizada pelos três personagens. Para isso,
apostamos na busca por padrões formais de repetição ocorridos ao longo de Cinema Paradiso.
Segundo Thompson e Bordwell (2010, p. 66-68, tradução nossa), “ao pensar sobre filmes, é
necessário procurar por similaridades e diferenças”, ao passo que “é importante adotar um
termo para descrever repetições formais, e o mais comum deles é motif”.
Ao decompor Cinema Paradiso em segmentos, baseados na divisão do filme a partir
dos personagens analisados, percebeu-se, através de motifs, a associação do padre Adelfio a
imagens sacras (cruzes e estátuas) espalhadas pelo local que dá título à obra (Figura 8). Aqui,
imagens sob domínio da religião ganham ênfase, sendo até mesmo “estocadas” dentro dos
móveis da sacristia – ou seja, atuando enquanto propriedade privada –, além de também serem
utilizadas como forma de isolar Totò no quadro. Tais escolhas formais, além de confirmarem
pontos importantes do pensamento flusseriano (sistema piramidal; Igreja como única
mensageira de Deus), reforçam a distância entre Adelfio e a criança, ou entre a prática
executada pelo padre e a forma a partir da qual Totò enxerga aquele mundo.
Figura 8: Padre Adelfio no controle das imagens (e se afastando de Totò no processo)
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem dos autores. Tempo dos frames, da esquerda para a direita: 07’29’’, 08’33’’ e
08’40’’.
No que diz respeito a Alfredo e Totò, o motif mais recorrente nasce daquilo que
chamamos de exteriorização da imagem, processo no qual o controle de padre Adelfio sobre
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as imagens chega ao fim por conta do incêndio provocado pelo projecionista. É a partir desse
instante que elas começam a se espalhar através do vilarejo de Giancaldo. Assim, é natural
que a forma a partir da qual Totò e Alfredo enxergam o mundo se torne dominante e que, por
isso, diversos enquadramentos dentro de enquadramentos comecem a surgir durante o longa
(figura 9), que faz das paredes, janelas e outras linhas do vilarejo matéria-prima de suas
escolhas formais. O mundo objetivo, seguindo o pensamento de Flusser (2014), começa a ser
utilizado como auxílio na busca pelo mundo imagético. A modernidade chegou.
Figura 9: Depois que Alfredo “liberta” as primeiras imagens, Giancaldo passa a ser palco delas.
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem dos autores. Tempo dos frames, do canto superior esquerdo até o canto
inferior direito: 53’07’’, 84’53’’, 93’01’’, 135’19’’, 124’01’’e 76’51’’.
Mas essa mesma modernidade, em Cinema Paradiso, não se interessa apenas pela
presença das imagens no mundo objetivo: ela estimula também o exagero relacionado a essa
presença. Tornatore e sua equipe tratam de evidenciar essa invasão a partir de quadros
recorrentes nos quais carros, cartazes, outdoors e anúncios publicitários de outros tipos
passam a decorar Giancaldo (figura 10). Neste instante, fecha-se o ciclo proposto pelo
presente estudo e também pelo próprio filme, que faz da demolição do Cinema Paradiso uma
forma de indicar o poderio das imagens sobre o mundo real.
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Figura 10: Por fim, outdoors, cartazes e vários outros estímulos visuais tomam conta de Giancaldo.
Fonte: Blu-Ray do filme. Colagem dos autores. Tempo dos frames, da esquerda para a direita: 133’23’’ e
126’27’’.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da relação de Adelfio, Alfredo e Salvatore em Cinema Paradiso permitiu
compreender principalmente aquilo que Flusser (2014) chama de contra-ataque das coisas. O
homem ao modificar um objeto é, consequentemente, também modificado. As imagens, que
no começo servem de apoio para as ações dos indivíduos no mundo objetivo, tornam-se
objetos de adoração e propósito: “quando alguma coisa representa (vorstellen) outra coisa, ela
também se apresenta à frente (sich vorstellen) da outra. Quando uma imagem representa uma
paisagem, ela também veda a paisagem.” (FLUSSER, 2014, p. 39). Ao segmentar o estudo
nestes três personagens, viabilizou-se uma visão clara das principais transformações históricas
das imagens segundo o autor, partindo de uma concepção sagrada e indo até uma abordagem
profana. Padre Adelfio representa o período das imagens sagradas e divinas, Alfredo o
período das imagens como fruto da técnica dos homens, da ciência, e das demandas do
mercado da burguesia, ao passo que Salvatore retrata a imagem na modernidade, seu excesso
e adoração.
A partir da abordagem baseada em Thompson e Bordwell (2010), obteve-se um
método de coleta e análise que permitiu à investigação se manter, a todo momento, dentro do
filme estudado, evitando interpretações que deixassem a obra de lado. Assim, o prisma
flusseriano se viu associado a planos, cenas e sequências específicas, tratadas enquanto parte
de um todo fílmico decomposto a partir de repetições (motifs). Percebe-se que tal estratégia
apenas contribui para um estudo interessado em averiguar funções simbólicas presentes em
elementos essenciais do filme
Mais do que uma forma de colocar à prova as ideias de Flusser (2014), no entanto,
Cinema Paradiso também é capaz de sustentar a presença de outros autores igualmente
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018
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interessados pelo trajeto das imagens ao longo da história. Criou-se, portanto, um diálogo que,
mesmo não tendo a pretensão de esgotar o assunto, confirma as suposições relacionadas a
Adelfio, Salvatore e Alfredo surgindo no filme enquanto metáforas. Conclui-se, portanto, que
o filme vai além de uma mera homenagem ao cinema, sendo capaz de sucitar reflexões
igualmente ricas e atuais sobre o processo de produção, disseminação e percepção da imagem,
sobretudo quando leva-se em consideração os rumos tecnológicos tomados pelo ser humano
nas últimas décadas.
REFERÊNCIAS
CINEMA Paradiso. Direção: Giuseppe Tornatore. Produção: Franco Cristaldi. Roma: Cristaldifilm,
1988. Blu-ray.
BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. Tradução de Maria Luiza Machado Jatobá. São
Paulo: Papirus Editora, 2008.
CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. Tradução
de Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
FELINTO, Erick; SANTAELLA, Lúcia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o pós-
humanismo. São Paulo: Paulus, 2012.
FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as conferências de Bochum. São Paulo:
Martin Fontes, 2014.
MARCONDES FILHO, Ciro. As imagens que nos aprisionam e a escapada a partir do corpo:
sobre Dietmar Kamper. In: Comunicação & Cultura, nº 4, 2007, p. 153-174.
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Tradução de Luciano Loprete. São Paulo: É
Realizações Editora, 2014.
PLATÃO. A República. Brasília: Editora Kiron, 2012.
THOMPSON, Kristin; BORDWELL, David. Film art: an introduction. Nova Iorque: McGraw-Hill
Education, 2010.
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