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Nome: Carlos Melo
Círculos: Lisboa e Setúbal
Viva Companheiro(a),
Apresento este meu texto ainda inédito, (escrito
em 2002 e registado em 2003 - processo
5358/02 da Inspeção Geral das Atividades
Culturais), porque, apesar do tempo passado,
considero-o atual. Por exemplo, no que digo
acerca dos partidos (Pág. 96)
Quanto ao que farei como deputado, disse-o na
página da candidatura. E fazer o que prometo,
dará com certeza suficiente trabalho para
quatro anos!
Obrigado e… boa leitura.
I G A C INSPKÍXÀO-CliRAL
DAS A C T I V I D A D ES
C U 1. T l II A I S
MC MLNlililtJO DA CuLlliR.\
E X M O ( A ) S E N H O R ( A )
C A R L O S A L B E R T O F R E I T A S D E G O U V E I A E M E L O
Processo: 5358/02 Data: 24/02/03 N/ Referência: 651 /DRCAC/IGAC Palácio F o z , Praça d o s R e s t a u r a d o r e s , 1 2 5 0 L I S B O A
T e l e f o n e : 2 1 3 2 1 2 5 0 0 F a x : 2 1 3 2 1 2 5 5 1
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“OBRA LIGTH
LIGTH OBRA”
"Ligth" no dicionário de inglês-português da
Porto editora, de 1987:
1) luz , claridade, esclarecimento, vivacidade,
aspecto, aparência e, em sentido figurado,
estrela luminar, pessoa proeminente, inspiração,
clarabóia, janela ou a parte mais clara de um
quadro.
2) Leve, claro, ligeiro, vivo, activo, frívolo,
trivial, fácil, alegre, gracioso, elegante,
delicado, brando, pouco forte, átono, de uma
maneira leve, levemente.
3) Particípio passado de to lit: incendiar,
pegar fogo a, alumiar, cair, iluminar-se ou, em
3
sentido figurado: animar-se, sair, descer de
(carruagem), desmontar, cair.
A natureza projectada num pacífico pôr de Sol,
a alvorada de raios alegres e familiares, a chuva
miúda que mal convida ao abrigo, enfim, o ameno
e o comedido entram no elenco do nosso tema mas
não o vendával e muito menos o caos.
O ligth condena-se a uma fala espumosa que
nunca mergulha no conteúdo do líquido, na sua
espessa profundidade.
O gosto da superfície.
Conversa sem âncora, á deriva, ao sabor do
momento, da "patine" e do seu deslizar. O dizer
por dizer, mantendo a conversa no fio da língua,
sem nunca a chamar pelo seu nome para que nem de
si tenha consciência.
A consciência não é ligth.
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A premência da morte preocupa-a e o ligth não
mata. Distrai, desvia, rodeia mas nunca atinge o
centro. Eterno movimento em volta, o ligth é uma
criança que recusa crescer e, no entanto, não
fica monstruosa ou, se arrisca a deformidade, o
mal torna-se num atributo positivo, à semelhança
dos "castrati" que compensavam a deficiência
física numa atraente voz.
A natureza humana é muito pouco ligth e daí a
contradição.
O homem e a mulher, nados na fábrica ocidental,
anseiam por ser ligth, por se deslocarem à
velocidade do som e, se possível, estarem em
múltiplos lugares ao mesmo tempo, como se não
possuíssem espessura ou passado, fossem livres do
peso e da memória. Mas a velocidade das
experiências não se compadece com um organismo
que possui o seu próprio ritmo e todos já
passámos pela desagradável experiência de
abraçarmos B enquanto lembramos A. Sensação nada
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ligth.
O passado não é ligth, por mais que a colecção
dos dias tenha sido uma amálgama de
superficialidades.
Haverá uma marca leve?
O ligth é...
O ligth é a borboleta a esvoaçar que nunca
vemos morrer.
O ligth, enquanto escrito não pode aumentar
indefinidamente. "Guerra e Paz" de Tolstoi não é
ligth, assim como não o será "Em busca do Tempo
Perdido" por mais ligth que hajam sido as
jornadas de Proust. Mas uma obra ligth nunca terá
quinhentas páginas, e, a possuí-las, apresentar-
se-ão em tão pequenos trechos que se lêem em
escassíssimos minutos, como quem engole um boi em
spray, de modo a não lhe sentir a dimensão.
O ligth é digestivo e consumível, com tudo o
que a palavra implica. Ou seja, substituível,
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sendo que a velocidade de consumo de um objecto
é, em regra, função da nossa capacidade em
substituí-lo.
Num mundo onde as pessoas, por fazerem de peças
de máquina, são consumíveis como qualquer produto
que sai das suas próprias mãos, tornam-se tambem
elas lixo mal a máquina as dispense.
O estado de objecto atinge-se por um alheamento
da complexidade humana e, no mundo-consumo, o
objecto-pessoa tem tanto êxito como qualquer
outro artefacto ou mercadoria. Tal estado é o
ideal para quantos pretendem o sucesso pois,
tornados seres ligth - sem peso nem raízes -
produzem independemente do meio. Se Antígona diz
"nasci para amar" o ser ligth afirma "nasci para
voar"
O ligth não possui essência ou o seu âmago
compõe-se de evanescência, uma fragrância que
permite o tom mas não a base. Sem idade, passado
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ou futuro, consome-se no instante, tal como o
retrato de Dorian Gray, fixo num eterno presente.
O ligth disfarça o insustentável ou, pelo
menos, adia-o numa sucessão de "liftings" que
afixam no rosto, não as rugas, mas as sucessivas
fugas ao tempo.
O tabaco é ligth porque profundamente
canceroso.
Esta dualidade, este verso e anverso da mesma
realidade: de um lado o permanente e, do outro, o
acessório e o "gadget", de uma banda o peso e,
noutra, a ligeireza, ganha sentido num contexto
de dualidade, cujos termos mais conhecidos são o
espírito e a carne. Ligth, naturalmente, só o
primeiro e daí que a segunda se sujeite a
tratamentos com o objectivo de se transmutar tal
como outrora os cilícios espiritualizavam o corpo
que submetiam.
“Corpo ligth” - dirá a publicidade e todos o
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entenderão.
Um corpo ligth não tem outro fazer que não seja
o da fruição. Nunca será, como diria Foulcaut, um
"lugar de castigo". Daí que a magreza seja uma
obsessão dos estilistas pois o interior - o
sangue, as excreções, o aparelho digestivo, etc -
reenvia para o domínio da necessidade e esta não
é ligth. Comer sim, mas bombons, vestir sim, mas
peles - nas quais a função de aquecimento, embora
suprida, logo cede à da ostentação. O corpo é um
lugar de ambiguidades só possivel de levar à rua
depois de embalado e domesticado. Todos já fomos
crianças e sabemos o que significa. "Se não te
portares bem, não tornas a sair."
Nada mais ligth que uma passagem de modelos
cujo domínio não vai além de uma estação. A moda
renova-se num constante desespero contra o tempo,
travestindo-o sem nunca o reconhecer. O modelo,
embora exiba produtos cujo destino se realiza no
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social, existe fora do espaço e do tempo, numa
eterna juventude, numa permanente "passarelle",
num "illo tempore" longínquo e reservado.
O canal televisivo mais ligth é o que
permanentemente exibe passagens de modelos. Em
todo o caso o mais irreal ou o mais fantástico no
sentido da lenda: nele o mito renova-se a cada
nova investida do modelo, sempre jovem, sempre
produzido, sempre impecável: a eterna juventude,
o Olimpo e os seus deuses.
Vestir ligth é isso mesmo: trajar ligeiro, pôr,
inclusive, com o smoking umas chinelas (haverá
maior contradição do que enfaixar o corpo e,
depois, colocar os pés à mostra?) Mas o pé
desnudo torna o seu utente mais leve e confere-
lhe um sinal que funciona como abertura (ligth)
em relação à carga uniformizadora do fato.
O ligth funciona como ornamento
descongestionador de um peso, ou válvula de
escape a que não se quer, ou pode, pôr termo.
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Ligth total seria o nu? Impossível ideal: o nu
é mesmo nu e ostenta o peso da carne.
A moda ligth, superficial e "despreocupada",
veste os cargos de mais alta gravidade, os que
decidem do destino de milhões de seres humanos, e
os seus representantes apresentam-se, não como
outrora, de elmos e protegidos por escudos ou
carregados de dragonas, mas fingindo pertencer à
esfera do jogo e do aleatório: um presidente
americano, no seu rancho, deixa-se fotografar em
“jeans” enquanto não decide com os seus pares da
divisão do mundo.
Mundo de brincar, onde a brincar se mata, com
uma pistola comprada na loja da esquina e que, na
primeira oportunidade, o cidadão Smith leva para
o mercado e se diverte a disparar.
Morte e vida talvez não se tenham tornado mais
frequentes do que outrora mas a sua transmissão
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pelos meios de comunicação, a sua apropriação por
uma "sociedade cuca", sociedade em que todos
cucam todos e de muita coscuvilhice se alimenta,
tornou o acto de morrer banal, corriqueiro, um
empecilho, enfim, desprovido de qualquer
significado transcendente. Morrer abraçado a uma
bomba que se acredita que há-de melhorar o mundo
surge, aos olhos do indivíduo desde cedo
martirizado por uma propaganda odiosa - mas
eficiente porque apoiada em factos - como uma
benção, um antídoto contra o anonimato, a
salvação. E, ao mesmo tempo, a transmissão
mediática dos efeitos do seu acto, contribui
para banalizar ainda mais a morte, inclusive a
sua.
A "gaffe" - ou a crise - são o arranhão no
verniz ligth, a quebra na linguagem-cifrada do
"como está? bem obrigado". E porque o corpo, com
o cortejo das suas necessidades e desejos, é tudo
menos ligth, ele está, na sociedade que se
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pretende permissiva e ligth, sob constante
vigilância.
Os corpos têm de ser um só, no caso um corpo
jovem, tendendo para a androgenia púbere. Que a
exacerbação do estado infantil acarrete um
acréscimo de pedofilia, à qual sucumbem os já de
si propensos ou os elos mais fracos da cadeia,
não importa. É apenas o preço da ilusão numa
eterna juventude de uma sociedade também em
deliquescência, pois que fatalmente em renovação.
E quanto mais o mundo se carregar de sombrias
ameaças, permitindo a obliteração das melhores
esperanças, mais a criança encarnará o modelo, o
ideal, qual membro indefeso e pronto, como
outrora, a ser oferecido ao deus que se apazigua.
No púbere, o cidadão, envergonhado e culpado
pela destruição que o seu domínio envolve,
escamoteia a própria responsabilidade.
A pedofilia é o casamento obsceno entre o mal e
o bem, o afogamento, no corpo da vítima inocente,
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de uma culpa maior.
O mito Marilyn Monroe não reside numa sábia
mistura de mulher e criança?
A luz jovem
Ser ligth é ter a agilidade do que ainda não
criou raízes, a despreocupação do que ainda não
despertou e paira no mundo do sonho.
A juventude é por definição ligth, pois, por
mais infeliz que seja, o status de jovem
assemelha-se a uma “graça”, algo como a garantia
que protege um objecto recém-adquirido, cujo
defeito pode ser remediado sem prejuízo do
consumidor. Jovem é o que, se souber o que mais
tarde saberá, deixa imediatamente de sê-lo. Há
na juventude um conhecimento parcial das coisas,
um sabor ainda não completo pela gama da
experiência, uma paleta onde faltam, não,
necessariamente, todas as cores mas alguns tons,
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aos quais só se acede pelo trabalho sobre si
mesmo, pela elaboração de uma longa experiência.
Nem todos os adultos a adquirirão mas o jovem de
certeza que não a possui.
A juventude, saborosamente inconsciente e
impulsiva, é ligth graças a uma cesura natural
que a própria idade exerce, e, sob o seu único
comando, o mundo sucumbiria de frenesim e
esgotamento.
No entanto, a dupla característica de jovem e
ligth atraem precisamente as forças do peso e da
consistência, da responsabilidade e do arcaico.
Como se, por osmose, elas pudessem desviar a
luz jovem em seu benefício, levando-a ao moinho
das suas próprias motivações, oferecendo sangue
novo - e ligth, ou seja, ainda não contaminado
por um destino - aos seus desejos, dando uma
aparência de novas a tantas causas caducas. O
sangue do bebé - dizia-se outrora - serviria ao
elixir da juventude.
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A juventude, o seu modo de ser ligth, atrai,
pois, engrenagens nada ligthes, que a colocam ao
seu serviço e, nos casos mais radicais, acabam
por exterminá-la.
A pedofilia e a guerra são dois extremos unidos
por um mesmo paradigma: a carne ao serviço de um
Senhor.
Corpos caducos podem dirigir uma guerra mas não
a levam à vitória. Desta contradição resulta que,
desde cedo, os adultos, associados sob o nome da
nação, tribo ou simplesmente máfia, educam as
"suas" crianças no sentido de que elas contraiam
uma dívida que, mais tarde, se necessário,
pagarão “orgulhosamente” com a vida.
"Deixai vir a mim as criancinhas" - já dizia,
noutro contexto, Jesus. O mercado, esse, acaba de
descobri-las.
O humano não nasce autónomo. A sua espécie,
como muitas outras, necessita de um tempo de
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maturação para aceder à vida independente. E,
mesmo quando a obtém, ao contrário doutras raças
que, sofrendo idêntico processo, ficam de
imediato em contacto com a alimentação lá onde
ela existe - o tigre caça a gazela, a raposa a
perdiz, etc. - o humano vem a encontrar entre ele
e os bens de que necessita (o alimento, a
caverna, a instrução) uma série de instituições
que os controlam, e podem mesmo impedir-lhes o
acesso.
O nascituro vem ao mundo no seio de um
subgrupo que, mal ou bem, domina os meios de
alcançar o seu próprio sustento e, em
consequência, os da sua prole. Assim, fica de
imediato cativo de uma dívida, tanto maior
quantos os benefícios recebidos e o seu pagamento
traduz-se na obrigação moral de um sentimento de
gratidão. Amar pai, mãe, clan, pátria, Deus,
etc. consta da cartilha de qualquer recém-
nascido, mas apenas a criança priviligiada acede
de imediato a uma vida ligth, na qual a maioria
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desses itens germinam e ganham sentido.
Quanto á criança nascida em ambiente de fome
outra realidade aprenderá.
Ou seja, a idade infantil, ligth por natureza,
luz, infelizmente pouco, para a maioria das
crianças: umas, nascidas na abundância são logo
sobrecarregadas pelos mil e uns adestramentos
típicos do seu grupo, afim de que, adquirindo-
lhe as características, possam usufruir das
respectivas vantagens; outras, vindas ao mundo na
penúria, logo devem lutar pela sobrevivência.
Num e noutro caso, a sobre-exploração, a somar
aos erros inconscientes cometidos pelos
educadores e reproduzidos gerações a fio, atrazam
a melhoria social dos talentos humanos.
Consome (-Te)!
18
Se a dependência se inscreve na natureza das
coisas (vimos ao mundo carentes de cuidados) ela
não tem que ser obrigatoriamente o nosso destino.
A sociedade humana deve formar cada um no
sentido da sua própria autonomia, de modo a que
as escolhas individuais advenham, não de
automatismos característicos do mundo dos
insectos, mas de desejos levados a cabo em plena
consciência. Ou seja, mercê de actos livres.
Porém uma sociedade de massas, ou de consumo,
poderá formar outra coisa que não consumidora?
Dir-se-ia que não e, no entanto, a história
ensina que a essência é dual e, logo, contém em
si o germe da mudança.
Na escola reside o foco transformador da
sociedade de consumo, pois é ela a sua primeira
fábrica.
A escola oficial, propagada com o
industrialismo, democratizada nos últimos
19
decénios pela necessidade de trabalhadores
especializados e gerida nos ministérios por
pessoal que se reveza, ora nos altos postos do
Estado, ora na gerência das multinacionais, está
ao serviço destas, das quais é também uma
segregação. Assim, esta escola embala estudantes
que, mal formados - ou "acabados"? - integrarão,
a maioria, os terminais das ditas multinacionais
e alguns – poucos - os postos que as controlam.
Na generalidade a escola-hangar forma
consumidores ou seja, uniformiza comportamentos e
gera massas. E estas que outrora preferiram
Barrabás a Cristo, elevaram Hitler ao poder e
ameaçam hoje com novas e semelhantes proezas não
são ligth.
A massa, embora procure a lei do menor esforço,
obedece a fundos pouco ligth e os seus actos,
diluídos na irresponsabilidade colectiva,
revelam-se frequentemente sangrentos. Mas, ó
paradoxo!, esta escola oficial, herdeira falhada
20
das aquisições libertárias de um Maio 68 e em
acordo ainda com a promoção dos produtos das
mega-empresas, pretende-se ligth!
A esta primeira contradição, a de uma escola
cuja natureza e resultados não são ligth mas que
deseja sê-lo, acrescem outras contradições, a
saber:
1) Qualquer adestramento com a sua necessidade
de paciência, disciplina e assiduidade é, em si
mesmo, trabalhoso e a Escola não escapa, apesar
das suas pretensões facilitistas, ou erradamente
democratizantes, a esta dureza.
2) Os estudantes possuem pelo menos dois graus
de leveza: o da própria juventude e outro,
disseminado pelos "media", o qual consiste na
crença de um bem-estar obtido sem esforço, senão
mesmo por efeitos mágicos ou virtuais.
3) A escola para investigar a verdade tem de
fazer uma autocrítica rigorosa. Ora, explicará
ela que o ensino que ministra, serve, na prática,
para levar a consumir acefalicamente, oferecendo
21
pelo meio ao cidadão um cartão de eleitor
("democracia obriga") trabalho – ou subsídio de
desemprego - de modo a que, provido de dinheiro
e capacidade eleitoral, o cidadão cumpra a
grandiloquente tarefa de consumir?
Veja-se em esquema, o conjunto destas (e
doutras) contradições "escolares", para melhor
analizar o seu resultado:
1. Em relação ao funcionamento:
Escola que, em acordo com os adquiridos da
década de sessenta, pretende pôr em prática
métodos ligth, versus:
- Natureza pesada de qualquer aprendizagem
- Aumento súbito da população escolar, dando
origem a turmas cheias (e com carteiras, em
regra, dispostas ainda hierarquicamente: umas à
frente, outras atrás)
- Alunos cada vez mais originários de meios
marginalizados, e logo, insatisfeitos e zangados.
- Recrutamento de professores, sem atenção à
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sua qualidade pedagógiga pois uma coisa é o saber
e outra comunicá-lo.
- Escola consciente das suas próprias
contradições, denotando-as no mau estar dos
adultos que nela funcionam, os quais se
confrontam com problemas que não alcançam
solucionar pelos meios ao seu dispôr.
- Ensino que incentiva a procura das boas notas
desgarradas da avaliação (que não existe) do
“sentimento social” , tal como o definiu Alfred
Adler, existente no aluno: que interessa à
sociedade um saber tecnológico posto ao serviço
da construção de câmaras de gás?
2. Em relação às expectativas:
Escola que pretende dar acesso à vida ligth,
versus:
- Ensino pesado e problemático.
- Estudantes que, concluída a escolaridade,
deparam com o desemprego ou um emprego aquém das
23
expectativas.
3. No que respeita à própria escola enquanto
exemplo pedagógico:
- a Escola não pode assumir as suas
contradições, sob pena de se desdizer e,
porventura, paralisar. Ou seja, a Escola cujo
dever é ensinar métodos de alcançar a verdade,
afixa ela mesma uma máscara e fala mentira.
Acrescente-se ainda a particularidade dos
alunos estarem numa idade em que a máscara
social ainda não se definiu e que, em
consequência, detectam facilmente as contradições
e a falsidade, reagindo-lhes com revolta.
Um tal "cocktail" não pode resultar senão num
lugar por excelência de conflito social, uma
"chaga" diariamente reaberta e a ninguém deve
admirar que:
- Professores lamentem já não poder castigar
24
corporalmente os alunos.
- Alunos agridam os professores e estes, quando
se descontrolam, ajam da mesma forma.
- Alunos se esmurrem, roubem ou violem entre si
e, mais recentemente, imitando os adultos fora da
escola, tomem uma arma e matem o que encontrem
pela frente.
- Escolas sejam sementeira de núcleos de
agressão social tais como "skins", "neo-nazis" e
outros.
- Haja pouco cuidado na selecção dos
professores como se fosse consensual que, para um
tal meio, “quanto pior melhor”.
Mas, e vendo-o noutra óptica, o ensino oficial
da sociedade neo-liberal, na qual o mercado é rei
e senhor, não deve ensinar a sobreviver na selva?
Não é, pois, coerente que a Escola assuma o que
na realidade é: uma academia que ensina a arte da
guerra? Além de que o aluno estudioso até
conseguirá completar a sua formação em tal meio
25
(ou apesar dele) e, desde que assíduo, há-de um
dia concluir o seu percurso de estudante com a
"escola" toda.
Tudo certo e "honny soit qui mal y pense".
Não te conheças, rebenta!
A cesura ligth - o mal de um lado e o bem do
outro - também é possível porque, desde cedo, se
ensina a criança a proibir-se os maus
pensamentos.
Mas o pensamento é um todo, não passível de
partir em bocados sem que o resultado sofra o
efeito da amputação. Pensar isto e não o seu
contrário é impedir a luta dos dissemelhantes e a
sua posterior união que, por sua vez, se
subdividirá, e, assim, "ad aeternum".
A dualidade faz parte do mesmo e o "não" sem o
"sim" não tem significado nem valor. No entanto,
26
em vez de se fortalecer no conhecimento de ambos
os componentes da vida, o pensamento primário,
ligth pela censura que se impõe, exclui o que não
compreende ou sujeita-o a forças odiosas, como no
caso da mulher para a mentalidade medieval
eclesiástica, exorcizada na figura da bruxa
medieval.
O maniqueísmo mantém-se na nossa sociedade a
qual, no entanto, detém já meios para saber que o
mal, as tendências socialmente destrutivas não se
anulam pela recusa do seu pensar mas, sim, pelo
diálogo com essas mesmas forças até esvaziá-las
da sua motivação, o que pressupõe, naturalmente,
a sua análise.
Porem não é isto que acontece e o desejo de
destruição - é sobretudo disso que se trata e
tanto mais acutilante o problema quanto a vida se
processa num cenário cada vez mais bélico, se é
que esta ferocidade não é já um tributo à errada
forma de lidar com o "mal" - cresce numa
27
sociedade que, embora se deseje ligth, ou por
isso mesmo, não sabe lidar com a sua parte
negativa senão pela sua - inútil - exclusão.
Outrora vivia-se para morrer e, através da
morte, ascender.
Hoje nasce-se para ser, aqui e agora, rico e
eternamente novo.
Ligth.
Uma tão parca e infantil utopia não pode senão
causar mal-estar nos que a procuram, se é que não
transforma a sociedade que a incentiva numa
imensa “disneylandia”, gerida por multinacionais
que vendem brinquedos e armas, colocando os povos
uns contra os outros, à semelhança das famílias
reinantes do antigo regime quando ganhavam
territórios e respectivas populações em herança.
Os "serial-killer" da nossa época ou, numa sua
versão mais ligth, os votos numa extrema direita
excluídora do imigrante (e excluir o que já de si
28
é excluído obedece a uma dupla lei do menor
esforço) são acções marcadas pela necessidade de
um bode expiatório, equivalentes ás que, ao longo
do tempo, incentivaram populações à diabolização
dos judeus ou ao seu extermínio, acções essas,
como tantas outras do mesmo jaez, possíveis
graças à má gestão - nada inocente pois
beneficiária dos grupos que as instigam - das
tensões "destrutivas" normalmente existentes em
qualquer ser vivo.
Porque dialogar com o "mal", percebê-lo em nós
e ver, em pensamento, até onde lhe vai a
extensão, além desse conhecimento nos tornar mais
humildes, há-de contribuir para enfraquecer os
grupos bélicos que, igualmente ao longo da
história humana, têm preconizado a extinção desse
mesmo "mal", naturalmente com as armas que eles
mesmos vendem, em vez da sua assimilação. Esta,
na verdade, obriga a uma actuação em
profundidade, pois implica o estudo das
circunstâncias produtoras do "mal", levando a
29
actuar sobre a sua raiz, isto é, sobre o "bem" e
o "mal", ou seja, sobre tudo.
Uma "reealpolitik" como o nome indica, age
sobre uma eficaz leitura da realidade e não sobre
fantasias próximas da banda desenhada.
A luta radical contra o "mal" consiste em
retirar-lhe domínios, quer percebendo-os e
actuando sobre as suas causas, e assim
esterilizando-o, quer por um exercício de análise
que o desconstrua.
Quantas vezes o "mal" não passa de um
preconceito ou, muito simplesmente, o nome por
que dá um interesse não assumido: a expulsão dos
cristãos-novos serviu aos que compravam as suas
riquezas ao desbarato, o extermínio dos judeus ao
armamento hitleriano e a caça ao "terrorista", se
não vigiada, beneficiará os que desejam o fim das
garantias humanas e, mesmo, a destruição da
democracia.
30
(Não está em causa a necessidade de vigiar os
que, de todos os lados, conspiram contra uma
sociedade que se pretende cada vez mais
democrática - e teima em permanecer
democraticamente ligth, isto é, superficialmente
democrática - mas, e isso sim, chamar a atenção
para que não se deite fora a criança com a água
do banho.)
Mas actuar na raiz das coisas vai contra uma
sociedade que, não sendo ligth, pretende no
entanto parecê-lo. Afinal as coisas estão bem
como estão, pois os "lobbies" armamentistas
vendem cada vez mais (como não lhes recorrer
quando se quer dominar outrém e, aliás, a guerra
tem sido, ao longo da história humana, a
actividade tradicional dos grupos dominantes) o
negócio das drogas, as quais alheiam de um mundo
cada vez menos ligth, também se recomendam - os
novos tóxicos dizem-se eles mesmos ligth - e,
"last but not least", os que mais sofrem com isto
31
tudo encontram-se, afinal, enfraquecidos além de
bem vigiados.
Outrora a pax romana, hoje a do “hamburger”,
mesmo que nos custe a saúde e o planeta.
Há que instruir, abrir mão de preconceitos que
tomam o valor de verdades absolutas, acabar com a
projecção dos nossos medos nos seres mais frágeis
da cadeia humana, em regra o elemento estrangeiro
e, na verdade, o minoritário.
Combater a crendice e a ignorância populares,
as quais ao longo da historia têm servido de
pretexto aos grupos no poder - ontem através de
um ensino elitista hoje, mais sofisticadamente,
pelo controlo dos meios de comunicação - para
armar o braço que mata o que não interessa a esse
mesmo poder.
Combater o mal onde não está (ou fazer guerras
para exterminá-lo como outrora as cruzadas contra
o turco) resulta num desbaratar de energias
32
que, bem aplicadas, poriam em causa a própria
necessidade de mando (não confundir mando com
gestão) criando, porventura, um mundo
verdadeiramente ligth.
Mas a realidade é que nas democracias, onde o
chefe necessita do voto popular para legalizar o
seu poder, a instrução tem tambem progredido na
justa medida em que permite a sua eleição. E,
pese à ilusão obreirista, a vida do dominado
comum, com cama, comida e circo garantidos –
leia-se reality shows”, concursos distribuidores
de dinheiro, etc. - surge, a seus olhos, desde
que a escassez não ultrapasse certos limites,
preferível ao risco da autonomia. Esta exige o
repúdio da lei do menor esforço e gerações de
servidão interiorizaram-lhe o pavor se é que,
muitos dos seus dirigentes, instalados numa
confortável "oposição", não são o seu pior
inimigo.
Enfim, do lado dos que mandam e do outro, o dos
33
que, em democracia representativa, fazem mandar
os que mandam, um mesmo objectivo: uma vida
ligth.
O suícida iluminado
A qualidade ligth da juventude torna-a
idealista, fazendo-a:
Acreditar em soluções "fáceis" (e tantas
vezes difíceis para o Outro)
Separar domínios da realidade que,
interligados, obrigam a um cuidadoso
manuseamento.
Não admira, pois, que entre os caçadores de
energia ligth, ou ligth-jovem, quais pedófilos do
espírito e não menos senão ainda mais perigosos -
porque raramente denunciados - se encontrem as
mais diversas associações com respostas
aparentemente radicais para tudo mas, na verdade,
34
infantis e arcaicas.
Assim:
Da união do factor ligth da juventude com a
comum projecção do desejo sexual resultam
símbolos sexuais para consumo das várias
indústrias.
Jovem imbuído da ideia de uma pátria a
defender dá origem ao "valoroso" soldado
desconhecido (se ninguem defendesse "a pátria"
não haveria guerra de todo)
O militante neo-nazi é, em regra, um jovem
apanhado por uma ideia caduca e fictícia e,
quando ao serviço de um partido religioso, de uma
"jihad", o jovem "luminoso" transforma-se num
suicída-bomba, o qual, à semelhança dos faraós
antigos, se faz sepultar rodeado de comitiva com
a diferença de que a corte faraónica, comungando
da mesma crença do rá, viajava para o outro
mundo obedecendo a um protocolo que já lhe
presidira à vida e para o qual se prepara desde a
35
nascença, enquanto o suicída-bomba apanha as
suas vitimas desprevenidas, num acto que
funciona como o de um justiceiro cego e surdo,
mas vociferador de fogo, sob cujo poder cada qual
paga pelo facto de ter nascido, independentemente
da sua situação ou ideias.
Se a morte do bonzo imolado na praça pública,
durante a guerra do Vietname ou, mais
recentemente, a do estudante Ian pallak,
reenviam para um protesto que se quer, a par e
passo, testemunhado - pois trata-se de um
suicídio "lento", quase se diria ligth, como se
fosse possível retirar-lhe a dor para ficar
apenas o acto, o protesto, qual morte oferecida à
contemplação do transeunte e apelando a uma
adesão aos pontos de vista do sacrificado, num
processo que lembra a narração bíblica da agonia
de Cristo, o acto do suicída-bomba, pelo
contrário, irrompe ditatorialmente e logo mata,
numa destruição orgíaca que o seu autor pretende
36
regeneradora mas na qual ele próprio conserva um
lugar à parte, pois, como qualquer ditador
acumulando bens na Suiça para quando deposto, o
suicída-bomba reserva-se tambem um lugar
privilegiado no pós-chacina: o além reservado aos
heróis da “guerra santa.”
O assassino-bomba é indiferente aos que com ele
morrem pelo menos a dois níveis: retira-lhes a
vida e não lhe importa que as suas vítimas
acreditem, ou não, no além. Ele, porém, morre
feliz porque a sua acção o há-de ressuscitar.
Qual o adolescente, encandeado de ligth, criado
num ambiente instàvel e violento, vendo os seus
amigos e familiares maltratados, a braços ele
próprio com as crises próprias da sua idade, que
não se sente tentado a matar ao mesmo tempo
vários coelhos: "dar uma solução" aos seus
problemas, conferir um sentido à sua vida,
tornando-a “útil” a uma causa e, ainda por cima,
ganhando a garantia da sua entrada no rol dos
37
heróis santos?
O casamento entre dois princípios tão opostos,
de um lado a luz e a vida e do outro o martírio
não devem admirar-nos: muitos dos melhores
intelectuais do ocidente a ele se entregaram na
nossa idade média. Isto é, demos o exemplo.
Talvez seja util pensar como nos libertámos de
tais prisões, pois só assim evitaremos as penas
com que, quer os carrascos, quer as suas vítimas,
nos ameaçam.
O corpo ligth
O corpo, pela sua própria existência, invoca a
morte.
Como enaltecê-lo sem torná-la igualmente
presente, tanto mais que, a ocidente, os partidos
das religiões tradicionais estão em fase de
decadência - e mudança - e o além-túmulo passa
38
por uma etapa de reformulação?
Se é que este novo ensejo de crença no além não
tem a ver igualmente com o culto do corpo numa
sociedade em ressaca de ilusões políticas, que
tudo reduz a sexo e dinheiro, deixando um sabor a
nada nos bolsos, cheios de bingalhada, o dos
pobres, e de irisão o dos ricos, e frustrando a
ambos.
Desaparecida a essência, e com a sociedade
incapaz de admitir em seu lugar a existência e a
concomitante responsabilidade, tudo se assemelha
e, por fim, nada vale.
Resta o refugio no além, a crença num novo
paraíso, ja nem dependente da concepção dos
partidos que velam por tais coisas mas
fundamentado na ciência, nos testemunhos dos que
passaram pele estado de "morte virtual". Ou ainda
um novo misticismo, igualmente ligth, onde cada
um é deus sem ter que criar coisa nenhuma e muito
menos a si próprio.
39
(Longe da nossa intenção arvorarmos em
defensores ou blafesmadores de um "além", do
qual, na verdade, ninguém sabe. Mas não deixamos
de fazer as associações que achamos possíveis
entre crença e desespero social, da mesma forma
que Holywood satisfaz os seus clientes com tanto
mais fantástico quanto mais miserável a sua
realidade).
O além, no ocidente, libertou-se dos seus
custos e à sua porta já não se encontra, nem o
cão das três cabeças nem o anjo da divina
balança aferindo passados.
O novo éden é igualmente ligth e ninguém lá
pede o sacríficio do próprio filho. (Na verdade
ele custa, segundo Erno Gruen, a separação de si
mas isso já entrou nos costumes, ou seja,
aprende-se primeiro em casa e depois aperfeiçoa-
se na escola)
O "outro mundo" tornou-se também ligth porque
40
abstrai do bem e do mal e a ele acede quem quer
que tenha vivido neste: éden democrático, direito
nascido com a espécie humana, já que os restantes
animais continuam sem alma, condição sine qua
non para que o humano a possua e os maltrate.
No reino animal, assim como na taxinomia, o
homem domina.
E se o acesso ao além se tornou aberto a
qualquer racional é porque a sociedade ligth é
massivamente segregadora. Mas como esperar o
contrário se ainda não se aprendeu a viver sem um
bode expiatório? E como não há-de ele surgir na
figura daquele que, às massas, lembra os tempos
ainda recentes da sua própria escravatura: o
emigrante, o sem direitos, diariamente suado para
conforto do branco ocidental? Não é ele a
testemunha incómoda do nosso êxito?
Outrora o paraíso tinha o preço dos cilícios e
o castigo da carne era a sua senha, a sua palavra
41
de passe. Mas como acreditá-lo, ou, mais grave,
ter dele necessidade, depois que se "descobriram"
as novas terras, importaram como escravos os seus
povos, se inventou a máquina a vapor e, abolido
legalmente o tráfego humano, se transformou a
escravatura em "fluxo migratório"?
Sem tudo isto alguma vez o ligth, aqui e agora,
se imporia?
O culto do corpo tem a marca do desgaste nas
horas suadas no ginásio mas, na publicidade, na
montra social, os corpos não se cansam nem
envelhecem, as coisas não têm preço e, quando o
assumem, o pagamento é cheio de facilidades e
mesmo alegre: o consumo feliz.
A sociedade industrial, com a sua cadeia
produtiva, o gaz das fábricas, a fuligem e os
bairros operários nunca poderia ser ligth, pois
nela o parto das coisas era por demais evidente e
a dor sempre presente. O "self made men" do sec.
42
XIX e inícios do XX, o homem que conquistou a
pulso uma posição no mundo, não é um exemplo de
humanidade ligth porque traz no rosto o suor da
sua ascensão. Pelo contrário, o "feliz" ricaço
(os ricos são "felizes" numa sociedade que
associa dinheiro e bem-estar) que obteve a
fortuna por herança, numa gôndola ou concurso de
TV, esse sim, é ligth.
A sociedade pós-industrial pretende-se ligth,
pois nela o dinheiro produz dinheiro, o suor dá
lugar ao serviço, a fábrica cheia de barulho e
tumulto transformou-se no trabalho em casa ou,
pelo menos, deixou de ser o seu símbolo. E a
produção pesada, deslocando-se, por razões de mão
de obra mais barata, para as zonas pobres do
planeta, donde o ligth anda erradicado ou
pertence a uma ínfima minoria, tende a fazer
desaparecer os detritos industriais do Ocidente.
Os países ricos pretendem ser visualmente
ligth.
43
O ligth esbarra a todo o momento na realidade
dos conflitos sociais, no cancro do pulmão, nas
águas inquinadas, no ar irrespirável, nas marés
negras, na extinção das espécies, na ameaça que
nos suceda o mesmo.
Mas ser ligth é viver alheio disto tudo e,
principalmente, de si mesmo, possuir uma
existência sem mancha de nafta e sobretudo sem
peso. Como, noutro contexto, dirá Kundera "a
insustentável leveza do ser", cuja fórmula não
deixa de marcar a capacidade humana em se
ausentar do corpo, da infra-estrutura que a marca
e condiciona.
O preservativo é o objecto mais ligth dos
nossos dias, senão um seu símbolo: retém o mal,
exorciza o excesso e... afasta o Outro.
O turismo, nascido na classe ligth, não pode
44
ser senão ligth. Ele transforma o planeta numa
estrada percorrida em poucas horas, iguala a
paisagem, consome-a num "cocktail" onde o
dissemelhante deixa de ser eficaz para se erigir
numa aparência de paleta de pintor: as cores,
tantas vezes puras, estão lá mas o importante é
o resultado no quadro, a obra final.
Depois da viagem turística importa mais a
amálgama de sensações recolhidas que o saber em
profundidade deste e daquele sítio. Dai o valor
do bilhete postal que apresenta a imagem de um
humano, desnudo e bronzeado e que se vende em
qualquer lugar onde haja Sol e praias. Ao
turista, finalmente alheio ao que visita, a mesma
foto serve para diferentes legendas: Portugal,
Maiorca, Haiti, etc..
Viajar é cansativo e inseguro e o "ligth
travell" sintetiza, em modo de viagem, o que o
consumidor deseja da vida: uma travessia
anestesiada, isto é, sem peso.
Viver sim mas com reservas.
45
Mais do que viajar o interessante é ter
viajado, haver acumulado kilómetros e circuitos
do mundo, mas tudo em tamanho de algibeira,
consumível, filmado e dócil: ligth, sem guerra ou
fome. Local contaminado por qualquer destas
peçonhas não é visitável embora alguém lá tenha
de viver. Por fim, o turista espalhar-se-à por
uma reserva fortemente vigiada, cujos postos de
controlo e segurança se desvanecerão na paisagem
de modo a fazerem-se esquecer.
O mundo ligth é ameaçado a todo o momento pela
investida da vida e dos seus problemas,
nomeadamente os da sobrevivência, pois resolve-os
apenas a contento de uns poucos.
Os "happy few", cristalização visível de uma
época que erigiu o trabalho como modo de vida mas
ao qual uns tantos olímpicamente escapam,
realizam o protótipo da vida ligth. Nada os
preocupa e vivem num mar de facilidades e prazer
46
- assim os projecta o pobre diabo que, da vida,
só conhece o esforço e neste (que remédio!) busca
a sua gratificação, usando a cruz de Cristo ao
peito para se mentalizar do seu destino e auto-
consolar.
O cristinanismo, propagado no meio escravo e
conhecedor do esforço, é tudo menos ligth e o
período renascentista da igreja surge, com o
Bórgia, nem mesmo ligth mas corrupto.
Na verdade, não há confissão religiosa ligth
pois são domínios que se opôem. Quer porque a
concretização eclesiástica de uma religiosidade
- o partido religioso que, assente na terra e
quantas vezes na lama, a propaga e defende - se
vê a braços com tarefas muito pouco ecuménicas,
quer porque qualquer deus é, por natureza,
totalitário. E a totalidade não é ligth.
Mesmo a crença cátara, que permitia ao seu
adepto o alheamento de muitas das regras que o
47
cristianismo impõe, concluía com a
obrigatoriedade do jejum antes da morte.
Uma religião ligth anunciar-se-ia, pois, inútil
apesar de, num primeiro tempo, a ascese que
qualquer via religiosa implica parecer possível
de conjugar com o afastamento da vida real que o
ligth opera. Mas a renúncia deste último vende-se
como um produto acabado, uma "pizza" pronta a ser
comida e nunca como um percurso a realizar.
Se, para obter uma vida ligth, devo submeter-me
a cinquenta anos de árduo trabalho, de imediato
essa vida deixa de ter valor ligth.
O ligth é alheio ao esforço e ignora-o.
Alheia à dor, a anestesia é o domínio, por
excelência, do ligth.
A monarquia moderna, onde ela resiste, bem
gostaria de ser ligth se, com demasiada
frequência, a não envolvessem escândalos e
descalabros, pois, lá onde sobreviveram às
mudanças, o rei e a rainha, preservados para
48
exemplo do povo, são seres para além dos
conflitos, garantes de uma unidade composta de
todas as diferenças. Anestesiadora do
dissemelhante e enaltecedora do que une,
atenuadora das dúvidas do talvez, a monarquia
constitucional, liberta da decisão política e do
seu ónus, permite-se ser - e deve sê-lo para que
funcione - cada vez mais ligth, mais passageira,
menos pesada na vida dos seus cidadãos. Como
modelos cruzando a "passarelle", os reis e as
princesas mostram as boas maneiras, oferecem-se
como profissionais da educação e da generosidade.
Dizendo que a garrafa está meio cheia, em vez de
meio vazia, a monarquia tem por mister mostrar o
lado agradável da vida, a sua possibilidade de
não ser uma corrida contra o relógio nem um mar
de dores. O cidadão comum conhece-as bem demais
para necessitar que lhas lembrem. Por isso ao rei
e á rainha perdoa-se o "doce fare niente" o qual,
na verdade, cumpre a função de se mostrar
possível ou, dito por outras palavras, tornar
49
evidente que o reino da política e da luta pelo
poder é susceptível de ser olimpicamente
ignorado. Uma vida ligth, suspensa no abismo da
feroz concorrência mas a ela aparentemente
alheia. E como vive-la permanentemente afastado
das mazelas do dia a dia, das doenças sociais e
outras, seria, afinal, imperdoável aos que
cumprem funções assim representativas, o rei ou a
rainha - e a necessidade da dupla heterossexual
já diz da imagem de "harmonia conjugal" que se
pretende, qual anúncio publicitário, vender -
obrigam-se a um sem número de visitas a doentes,
hospitais e centros de infelicidade. Os reis só
usufruem uma vida ligth desde que,
periodicamente, mergulhem no trágico humano,
preço, afinal, que a burguesia lhes impôs para
tolerá-los. Mas lá estão para evidencia da
possibilidade ligth e, no limite, e não menos
desprezível, afastar pelo exemplo o povo da
"sujidade" da política, colocando a reparação dos
males sociais, da guerra, enfim, na esfera da
50
caridade. Sua Alteza visitou o asilo Tal. Quando
o membro de uma família reinante vai mais além e
chama os bois pelo seu nome, corre o risco de
perder o "status".
Nascido para não agir, não é o menos irónico
dos destinos, este do monarca que, outrora,
clamava quero, posso e mando!
No fundo todos queremos uma vida de reis que
nem sequer mandem porque, enfim, mandar pressupõe
decidir.
Seja ligth e nem sequer seja!
A leveza absoluta.
Arte, divertimento e ligth
A pop art, ao descontextualizar os objectos
familiares, retirando-os da paisagem mercantil
51
torna-os objectos ligth: a lata de sopa de A.
Wharol ou o urinol de M. Duchamps libertaram-se
do servilismo da utilidade primária a que estavam
destinados e ascenderam à categoria de objectos-
mundo, auto-suficientes e capazes, eles também,
de uma cosmogonia. Retirados do consumo,
simbolizam-no: a lata - o “fast-food”, o urinol -
o cosmo das necessidades humanas. E, se por este
lado, continuam a não ser ligth, pois constituem
uma memória, quer de um ritmo vida que nada tem
de ligth, quer da fatal condição humana, por
outro, o seu destaque - conferido por alguém que
se diferenciou do comum mimando Midas que fazia
ouro quanto tocava - confere a tais objectos a
singularidade do único, do que saiu da série, do
que se libertou da massa informe e suada. Nesta
perspectiva, afastados da sua origem, tornaram-se
ligth, à semelhança do universo célebre que lhes
deu origem, o qual, por via da indústria que o
explora, retém da vedeta o “glamour”, as jóias ou
o champagne mas não a dura aprendizagem do
52
ofício, o levantar pelas seis da manhã para
comparecer no terreno nas filmagens às oito, ou o
incessante tormento do artista em prol da sua
obra.
As indústrias do divertimento vendem ligth mas
trabalham duro.
A multinacional do futebol é a que mais envolve
o consumidor nos seus meandros financeiros ao
publicitar as compras e transferências das suas
vedetas por preços astronómicos para o comum dos
mortais. Num ápice o consumidor é posto perante
ordenados que nunca virá a ganhar e, não menos
perverso, levado a aceitar o sistema que os
permite, com tudo o que significam de injustiça
social ou, dito doutra forma, o consumidor acaba
por aplaudir o que o esmaga.
O futebol é actualmente a melhor montra do
capitalismo, pois ao contrário do actor de
Hollywood, tambem empregado de uma indústria de
lazer onde as cabeças de cartaz são bem pagas mas
53
de cujo "cachet" se fala menos, o futebolista
traz o preço estampado na camisola e lembra ao
cidadão comum, não só que ele também o tem como a
ridicularia do seu valor.
Nenhum outro sector do mercado tornou tão banal
a aplicação do verbo "vender" à pessoa humana
talvez porque, bem implantado popularmente,
desde cedo a massa conhece o preço das coisas.
A passiva aceitação por parte das camadas que,
precisamente, pior vivem, de ordenados
desproporcionadíssimos em relação às necessidades
humanas constitui a ginja no bolo da edificação
da insensibilidade capitalista.
Com que direito combato um sistema cuja vedeta
incenso?
A noção de que pobreza e riqueza são dois
compartimentos estanques, alheios um ao outro, é
um dos aspectos mais conseguidos da vitória
54
capitalista a qual vende por inato o resultado de
uma longo processo produtivo cujo fermento é a
injustiça.
O condomínio luxuoso, cercado por muros e
vigiado por video, convive com o bairro de lata
mas essa vizinhança já não escandaliza. Pelo
contrário ela é apreciada como uma representação
na terra do melhor e do pior, do céu e do
inferno, os quais "sempre existiram", para graça
de uns e castigo doutros, caldeada esta
interpretação por uma cultura oriental,
apressadamente digerida, a qual justifica a
existência num ou noutro lado da barricada
através de fatais “karmas”.
A idade média imiscui-se na era pós-industrial,
não pelo lado da solidariedade e dever cristão
para com o Outro, mas na sua parte mais perversa,
a que nesse tempo impedia mentalmente o servo da
gleba de se imaginar com direito à mesa do senhor
55
a não ser que fosse à de Cristo e, naturalmente,
depois de morto.
Ao aceitar que uns ganhem num minuto o que
outros, na melhor das hipóteses, levarão anos a
amontoar, o futebol banalizou, aos olhos do
cidadão comum, o ligth de uns poucos e, mais do
que isso, fê-lo com a benevolente cumplicidade da
hard vida da grande maioria.
A justiça tornou-se uma linha recta e
proporcional: se eu pago tanto por bilhete para
ver Fulano de Tal, este deve ganhar X vezes as
pessoas que o querem ver, transposição perversa
de um seu a seu dono alheio aos condicionalismos
da coisa, às iniquidades do nascimento, às
necessidades reais em questão. Não admira, pois,
que qualquer imposto progressivo sofra a maior
resistência: ele é um dos impostos menos ligth, o
que melhor reflecte sobre quem cai.
56
Arte e religião
Não ser de si próprio é o ponto de união entre
o místico e o artista, pois ambos obedecem a um
dever mais alto, situado além do aqui e agora.
Dai a actualidade de todas as Antígonas, pois o
chefe de estado obedece também a um dever
superior - o da sociedade civil - e os dois
poderes raramente se entendem.
O artista e o místico trabalham na restauração
do tempo mítico - lá onde o deus e os animais
falam - enquanto o chefe de Estado apela ao bem
geral e profano.
O artista regressa ao mito enquanto faz a sua
obra e o místico realiza o mesmo percurso pelo
trabalho sobre si próprio até, finalmente, sentir
a " graça".
Tratando do assunto noutro texto (1) evoque-se
no entanto a afinidade entre o actor e o místico
com ambos a fazerem do próprio corpo uma ponte: o
57
primeiro para a transcendência através do
personagem e o último, tantas vezes através de
alguém objecto da sua crença – Buda, Cristo,
Maomé, ou Outro - atingindo o divino. Mas a
regra parece geral: o estilo da obra de arte
reflecte a vida do artista e nesta medida vida e
produto artístico – ou transcendência -
misturam-se.
O fabrico da obra artística não é, pois, ligth
e, muitas vezes o resultado, na vida do próprio
artista, dos objectos que produz tornam-no
maldito aos olhos do poder estatal ou
eclesiástico.
O místico e o artista seguem uma razão
diferente – e tantas vezes oposta – à razão
apreciada pela sociedade onde se incluem e são
disso testemunho o que uns e outro sofreram em
campos de concentração ou na fogueira. Ou, mais
vizinho a nós, a marginalização nas prateleiras
58
do não promovível pelas multinacionais do gosto.
Dócil é o "kitsch" que merece ser ligth,
quanto mais não seja pela recusa em enfrentar as
questões da sua época, pelo refúgio nas receitas
passadas, preferindo o conforto do reconhecimento
à estranheza da solidão.
O "kitsch" realiza a expectativa do Leitor
comum, apresentando-lhe a obra tal como ele ou
ela, cidadãos vulgares, a conceberiam, sem
surpresa e com o desenlace esperado, segundo as
vias consentâneas com a moral oficial, os seus
elementos enquadrados no mais convencional
modelo. As representações estereotipadas do
"kitsch" são o exemplo de um universo depurado do
seu perigo e das suas ameaças.
Cultura e ligth
59
A “cultura de massa” é ligth e obtém-se através
de pílulas pouco concentradas de factos
culturais, datas, "fait-divers," episódios
apimentados, capas de revista, nos melhores casos
edições de bolso.
Uma sua característica é a separação dos
saberes em compartimentos estanques a qual
transparece nos testes e concursos que a
propagam: quem fez isto? Em que ano aquilo?
Questões como "Relacione X com Y" próprias de
quem aprendeu a pensar em vez de decorar são
estranhas à "cultura de massa."
A alta cultura, (por oposição a uma "baixa
cultura" tal como outrora o latim popular ou
"sermo popularis" se opunha ao latim erudito)
enquanto interligação e esforço globalizante,
fica fora do domínio do cidadão massificado,
capaz de saber uma efeméride, uma data, mas não
de discorrer e correlacionar eventos, para além
do indispensável ao dia a dia de uma sociedade no
entanto complexa.
60
Herdeiro do camponês que veio para a cidade e
se tornou operário, este cidadão, que só
recentemente conquistou o direito a férias pagas,
e, portanto, ao lazer, cuja integração na esfera
do consumo é recente, tornou-se um elemento
fundamental da sociedade de consumo, senão a sua
razão.
Tudo se lhe vende e tudo ele hipoteca para
poder comprar.
A integração no consumo não seria possível, por
um lado sem a luta levada a cabo pelo movimento
operário no século passado e parte do século
vinte e, por outro, sem uma resposta integradora
do próprio capital divulgando ideais
igualitários acessiveis através do mercado: tem e
serás. O acesso ao trabalho - alcandorado a
direito – fez crer que o topo da escala social
estava o alcance do trabalhador desde que ele
pudesse vender a sua força de trabalho.
Na realidade, neste mesmo mercado nenhuma
ascensão social se realiza sem uma forte
61
componente de exploração do esforço alheio, ainda
que este seja capitalizado sob a forma do prémio
que sai na gôndola.
A alta cultura (ou erudita) exige estudo e
constrói-se com a paciencia de um entomólogo,
precisamente o que o homem e a mulher comuns não
possuem, pois saem esforçados das oficinas onde
passam o dia, seja ela a caixa do supermercado, o
balcão de atendimento ou a cadeira frente ao
computador debitando textos alheios. Quanto às
horas de descanso resta a televisão e o
entretimento o qual, como o nome indica, serve
para entreter enquanto não surge de novo o
fundamental: o trabalho. Há também as férias mas
a necessidade de valorizá-las pela sua
demonstração social, não pouco tempo rouba ao
que poderia ser um retiro regenerador. Porém,
para aceder ao tal retiro, o cidadão comum
necessitaria de uma cultura que não fosse de
massa e o ciclo vicioso encerra-se.
62
Cidadão-spaguetti porque massificado e
massificado porque cidadão pertencente à massa, o
novo proletariado de colarinho branco possui uma
única forma de abandonar, antes da reforma, a sua
situação de pagador de prestações: os jogos de
azar, sejam eles o totoloto, o totobola, a
lotaria, etc., nomes dos vários anzóis que dão
cor à sua dura luta por um lugar ao sol.
Neste a vida a sério, a vida com cultura,
trabalho e lazer, tudo interligado e constituindo
um todo, uma vida ligth, não já porque desligada
do seu valor mais profundo - um fazer que lhe
confere sentido - mas porque, enfim, lhe foi
permitido prescindir do dramatismo do seu peso,
tornar a passagem por esta terra um mero jogo
onde ócio e labor se completam e não excluem.
Ironia do destino, esta mesma vida depende
mais de uma atitude mental que de uma carteira
cheia. Mas não é a menor vitória do capitalismo
ter associado felicidade e dinheiro.
63
A sociedade cristã não resistiu ao estado, ruíu
sob o consumo e sobrevive em alguns iluminados
que, para melhor se protegerem, só para si se
assumem.
A “cultura de massa” é ligth por uma
negatividade dupla: impregna o seu possuidor de
uma saber seccionado, às “prestações”, não
globalizador e, pois que de cultura se trata - e
"não há maior crime do que o que se perpetua
contra o espírito" , impõe uma separação nele
mesmo: de um lado a vida, do outro os factos, as
datas, os nomes, enfim, os mexericos.
O jornalismo de massa pretende colmatar esta
diferença entre dois ligthes: num a caixa do
super, condenada a sê-lo toda a vida, e do outro
o romance – rosa ou não, pouco importa – vivido
pelo poderoso entre cruzeiros em ilhas
paradisíacas e veiculado pela revista vip.
Ligth contra ligth.
Ou luta onde os primeiros são cúmplices da
64
maquinação que os destrói pela leitura – e compra
- do que a publicita, dando-lhe a aparência de
uma necessidade.
A caminho do lugar da escravatura, o escravo d'
hoje lê o artigo que, ou o distrai da sua
condição, ou o convence da sua necessidade,
senão, e tal define o “jornalismo popular”,
reunindo na mesma leitura a ambos os aspectos.
A cultura do esforço, ou erudita, liberta e
diferencia enquanto a “cultura de massa” nivela e
prende.
Produto de um ensino que a democracia permitiu
à custa de torná-lo massificador - resta saber se
tal preço seria obrigatório - o cidadão comum
completa, em adulto, nas lojas de trezentos o
saber que aprendeu em edições truncadas de bolso.
Homem erudito e homem comum têm hoje de idêntico
um mesmo ponto de partida: a escolaridade
obrigatória mas, depois, nada mais os une. Embora
65
ambos trabalhem, o primeiro, cumprido o horário,
encontra ainda fôlego para ir mais além, ocupando
o lazer num esforço de mais saber que é tudo
menos ligth.
A esperança de que a revolução tecnológica
permitiria ao ser industrial a paragem da cadeia
que lhe deu vida mas trucidou manter-se-à?
"Para que me serve isto?" é a queixa
fundamental do estudante comum, amestrado desde
criança num gosto ligth. A cultura de
relacionamento (para diferenciá-la do saber de
papagaio) é, como acima se disse, algo que se faz
de aparentes inutilidades as quais, ao longo de
uma imensa paciência, compõem o "puzzle" do
saber. Mas a pressa, a necessidade da
rentabilidade não permite, por um lado, o tempo
que o "acabamento" de um tal cidadão exige e, por
outro, a noção do próprio esforço é já estranha
aos "meios de comunicação" que preconizam e
vendem o "fast". Assim, o jovem da classe
66
popular é levado pelas revistas e programas que o
manipulam - e já por si herdeiro de pais
manipulados - a querer depressa a preparação
profissional, que o fará um parafuso rodando
apressadamente, até que chegue à reforma,
passada, no melhor dos casos, rodando também como
uma borboleta nas asas do turismo sénior.
A separação dos saberes é ligth pois a parte
não sabendo em que zona do todo se insere, ignora
o seu papel e abstrai da sua responsabilidade.
A cultura erudita sabe porque sabe, permite a
ponte entre os assuntos e, no limite, reduz tudo
a uns poucos de temas obssessivos para a mente
humana. Pelo contrario a “cultura de massa” se
não custa a adquirir, porque vai de encontro ao
fácil e desejável pela lei do menor esforço,
aprisiona o seu cultor na teia dos seus
mexericos, dando-lhe da vida uma imagem
fraccionada.
A “alta cultura" simplifica, despoja e,
67
finalmente, liberta.
O desinteresse pela intervenção política, pelo
agir civilmente, deve-se também à retirada para o
privado, para o sectorizado do que é parte de um
todo e seu componente. Não é evidente que a
complexidade social leve a uma maior ignorância
da sua trama. O que dificulta o seu deslindar é a
fragmentação do real em muitos reais que se
apresentam como estanques. Como se alguém
conscientemente resolvesse dividir a realidade
numa multiplicidade de reais para melhor
controlar a de todos, apresentando-os como
independentes.
A realidade abstraída da sua natural
complexidade e contundência, despida e asséptica
tal como uma casa do "big brother" onde tudo se
passa excepto o que passa no mundo: pessoas
vivendo uma quotidiano onde o que importa é a
luta pela sobrevivência, a conquista do prémio,
68
fechadas sobre si , cada qual metida no seu
próprio casulo, na sua vida pessoal, nas suas
tricas.
Vida de chinelo.
Para alcançar uma maior eficácia este género de
“shows” deveria submeter os concorrentes a uma
operação que lhes retirasse a memória do
passado. Então o corte com o exterior tornar-se-
ia completo e o espectador ganharia a visão de
comportamentos reactivos autênticos,
"espontâneos", dignos de insectos, isto é, não
determinados pela memória social, política, etc.
Comportamentos ligth, puramente ligth.
A "alta cultura" responsabiliza mas o mundo
ligth, nos cartazes que o anunciam, é
predominantemente jovem, pretensamente
irresponsável, um universo no qual a morte é um
conhecimento, não uma experiência
consciencializada.
69
Morrer não é ligth.
A cremação aumenta os seus créditos, não apenas
porque seja mais limpo e deixe os terrenos livres
para o imobiliário mas porque, no fundo, afasta
para sempre, ou reduz às dimensões de uma pequena
gaveta, o que outrora exigia um túmulo.
Não se morre, não se fala da morte, a cerimónia
fúnebre tende para reunir a estrita família que,
lamentavelmente, tem de assistir ainda ao evento
e, depois, torna-se à vida, o mais possível
ligth.
A sociedade ligth, nascida com a tecnologia e o
guindaste, ou quando este se miniaturizou de modo
a caber no bolso de cada consumidor, abomina o
trabalho e quer tudo feito, tudo pronto, tudo
comprado e sem sequer provas no alfaiate. Este,
tornado uma profissão de luxo, consagra-se aos
poucos cujo rendimento lhes permite a recusa
dessa "ligeireza".
Ao contrário do apregoado, a vida do poderoso
70
não é ligth mas cheia de tudo. E, se surge, aos
olhos da maioria carente, como ligth, é porque
ela confunde a facilidade que o poderoso possui
em satisfazer todos os itens de uma vida plena,
com o seu resultado.
O pleno não é ligth.
Sempre mais claro...
A segurança ligth é eficaz e não se vê.
Ela rodeia-nos sem nos constranger como um halo
espiritual ou um escudo invisível. Serve e não se
impõe, esta lá e não se afirma, como num hotel de
cinco estrelas onde tudo se vigia mas não se
capta nenhum olho observador. E a vida decorre
simples sob um exército tecnológico, um
verdadeiro estado de sítio a rodear cada um dos
nossos movimentos. Mas o que importa é a
aparência e o ligth vive da ilusão e não da
71
verdade.
Porque o ligth radica numa verdade escamoteada
e é verdadeiro na sua mentira, a sua margem de
manobra é escassa e necessita de uma realidade
tratada mas, ó paradoxo, com aparencia de
espontânea. A sua imagem ideal será a do cruzeiro
num oceano circundado de arame farpado. Mas da
popa do navio só se distingue o horizonte límpido
e sereno e a naturalidade dos gestos nunca
esbarra no arame farpado das fronteiras. Então a
espontâneadade dos movimentos é possível, pois
que inofensivos e sem alcance.
A limpeza do ligth é da ordem do genocidio
depois do qual, cobertos de terra os corpos do
crime, o seu autor exclama, sentado no terraço do
seu lazer: calmo é o campo!
Porém o onze de Setembro veio lembrar ao
ocidental que a sua reserva, alternativa ou não,
72
findou: tudo se passa aqui e a guerra está em
toda a parte. O mundo, tornado doravante pequeno,
possui uma memória que tudo regista e o que se
faz além pode ser pago aqui.
Para o mal e para o bem.
O onze de Setembro trouxe, pois, ao âmago do
império outrora branco, o que sobretudo não
desejávamos ver, ou tanto já banalizámos que
aceitamos jantar como certos antigos: na presença
de escravos esfomeados, afim de melhor
consciencializarmos o apetite.
Quem, perante um ecrã que debita corpos
dilacerados, quer pela fome, quer pelos seus
efeitos mais afastados, ainda ousa fechá-lo
porque, enfim, “está a comer”?
Janta-se no regozijo de não pertencer à maioria
dilacerada pela injustiça, concluindo com um
ámen, nem já necessariamente dita, porque
73
interiorizada, oração: "Obrigado meu Deus porque
os que vejo diariamente morrerem por um bocado
de pão não sou eu nem nenhum dos meus".
Comemos na sala das autópsias, e, efeito não
menos precioso, grudamos com uma solidariedade de
potenciais "vitimas" (livres graças ao divino, à
sorte ou, simplesmente, ao termos nascido na
parte "boa" do planeta) a família que somos.
Família ou, dado o seu contexto, mafia?
Seguro e ligth tornaram-se dificilmente
conciliáveis e o pó do antrax pode atravessar num
mero envelope as fronteiras. Mas a cegueira
humana não desaparece pelo simples facto de
encontrar cura no oftalmologista. Tal como a lei
do menor esforço é inerente ao humano, por mais
homens, mulheres ou crianças esforçados que o
mundo prodigalize, assim haverá sempre quem,
apesar das condições adversas, queira viver, num
74
universo de brincar. O ligth será, pois, a sua
senha, doravante restrita a mundos cada vez mais
fechados e cenografados, subscritos em pequenos
utensílios que trazem a sua marca, fetiches que o
cidadão transporta consigo e lhe alimenta a
ilusão de uma vida ausente de qualquer risco.
Ligth de bolso, para todo o serviço e ocasião.
Maço de tabaco ligth, yogurte ligth, chocolate
ligth, toda uma panóplia de objectos que,
reunidos, preenchem as horas de um dia bem
ocupado, um quotidiano vivido sob a sigla do
seguro, mesmo no meio da ameaça das bombas.
Quanto menos espaço tem o canário não mais canta?
Frenesim de morte.
Ideal ligth
Quanto mais o mundo se torna insuportável e
conflituoso mais a vida ligth surge como um ideal
necessário, senão urgente.
75
A confiança do investidor influencia o clima
económico e a sua instabilidade não auxilia à
realização dos dividendos. Consumidor e
investidor têm, pois, de manter a calma, estar
seguros de que o seu dinheiro terá uma volta bem
recompensada. Os sobressaltos não podem exceder
os tanti quanti habituais ao normal processar do
mundo que ora temos. Quanto vá além é nocivo.
Ligth para todos, mesmo à custa da mais negra
escuridão para a maioria.
O avesso do ligth não oferece surpresas.
Outrora a conquista esforçada do paraíso, agora
a felicidade automática, o prazer sem ascese.
Pronto a ser saboreado.
Ligth.
E poderia ser doutro modo numa sociedade
embriagada pela bugiganga e obsessão do domínio?
76
O que no ocidente circula na pub, nos media, é o
delírio de um hipotético bem-estar, apesar do
sempre possível tornado, da queda do avião ou,
ultimamente, da bomba terrorista. De um lado o
desespero e do outro a surdez, pois, como repetia
Abbé Pierre, o dinheiro gasto a combater o
terrorismo daria para melhorar a sorte dos que o
justificam.
Enfim, nada disto é ligth, é mesmo o seu
contrário, apesar da onde de música que a tudo
invade, num desejo de submergir o ruído da vida
num outro que o substitua, cadenciado e idêntico,
monotonamente agitado e adormecedor.
Ligth.
O ouvido ligth
O silêncio ou a sonoridade que nos era
permitido ouvir como bruá-bruá do local público,
77
a confusão das vozes no café, o tinir dos
talhares no restaurante, tudo isso foi abafado a
partir da década de oitenta pela invasão de um
exército de matracas sonoras, com mais ou menos
talento, mas todas elas idênticas, de modo que
passar de um texto musical a outro é o mesmo que
permanecer no mesmo: a repetição, a segurança de
não ouvir nada de diferente e, portanto, de novo,
a incriatividade e a normalização de qualquer
surpresa.
Não há sítio comum que não tenha por fundo a
sua "música ambiente", na verdade nem de fundo
mas de acompanhamento, senão mesmo sobreposta ao
volume da voz em conversa, numa continuação da
musica colada aos ouvidos, pois a necessidade de
ouvir-sempre-qualquer-coisa expandiu-se com o uso
dos audiofones uniformizando as diferenças.
A música que ensurdece reduz o mundo a uma
paisagem onde os outros falam e gesticulam mudo.
Um mundo que o pseudo musicólogo - na verdade
surdo à custa de ouvir o mesmo - recusa, ou
78
igualiza, numa operação ligth de coar a dor para
reter a militarizada dança.
A insensibilização.
Lá, nas alturas da repetição contínua, absorvo-
me num eden anulador do Outro, o qual não me
perturba devido à barreira do som que lhe ergo.
Universo sonoro ligth, ambiente ligth que
transporto comigo para o meio inclusive da
tragédia, e lhe dá cor, pois sem música de fundo
já nada se concebe.
À semelhança da marca estampada na camisola,
qual rez que o selo do dono - no caso uma
multinacional - assinala, trago também nos
ouvidos, no cérebro, senão à frente dos olhos, o
refrão de uma música igualmente de consumo, a
mais das vezes embrutecedora e, sobretudo,
colonizadora. Não num volume que me permita ser
eu a dominá-la mas, pelo contrário, num outro,
uniforme, no qual ela me leva, transporta lá
aonde deseja: à evasão acéfala do que, de tão
79
distante, se perde, à fuga a mim mesmo e, pois
um acto não vai sem outro, à fuga do Próximo.
Ouvir, ouvir até ser totalmente desatento numa
acção que condensa o efeito ligth unificando-lhe
os tempos: não só impeço a vida de se revelar na
sua multiplicidade de aspectos como eu próprio,
pouco a pouco, ensurdeço ao que me tire desse
sonho de uma igualdade anestesiante.
Isolado num mundo sonoro e asséptico, viciado
no produto que as multinacionais do gosto impõem,
o falso melómano paira surdo ao que seja,
inclusive, condição sine qua non do seu gosto, ao
que ouve.
Os audiofones, outrora usados para uma melhor
concentração na diversidade do texto musical,
foram apropriados pela massa para defesa da mesma
massa que a rodeia, ou seja, de si mesma.
Efeito paradoxal e aglomerador: defendo-me com
80
ruído contra o ruído e, por fim, aceito em altos
berros aquilo que, precisamente, quero apagar.
O prejuízo para a saúde que tais aparelhos
provocam, ou, nos locais nocturnos, o volume do
som muito acima do tolerado pelo ouvido normal ,
impõem a surdez que a tudo coloca termo,
resolvendo o problema do que não se quer ouvir da
forma mais radical. Como que a dizer que no
universo ligth a invisibilidade e a
insensibilidade são as normas.
Os audiofones funcionam hoje, para a massa como
um cancro da audição.
O monótono bombardeamento musical a que somos
sujeitos é ligth porque o objectivo de tal
cacofonia é o de tornar presente a vida tal como
a encaram as multinacionais donas do nosso
quotidiano, desejosas de nos submeterem à corrida
pelo último modelo, deitando fora o que comprámos
81
há um mês atrás e endividando-nos em prol do
novo, numa luta desenfreada que só é ligth num
aspecto: o de nos insensibilizar através da
brutalização constante.
Correr para o nada, fugir de si mesmo acabando
por dar consigo de costas voltadas e sem que nos
reconheçamos. Ali vai um outro!
Números em movimento ao som de caixas
registadoras contabilizando os lucros da demissão
e do apagamento.
A separação promíscua
O universo ligth, ou dito por outra forma "la
vie en rose" só é possível através de uma
abstracção, de um coamento da vida pelo filtro
que retém o que não agrada e deixa passar o
aprazível. No entanto, fazer isto e sentir prazer
82
num tal universo, na sua existência, em vez de
uma asfixiante falta de verdade - o negativo e o
positivo compõem o que existe e a dualidade é
constante em quanto se conhece - só é possível
porque lá atrás, em acordo com Erno Gruen fomos
exercitados na separação, numa visão
tendenciosamente unívoca das coisas, afim de
sobreviver ao sofrimento e à solidão.
E como o mesmo processo social a todos forma e
faz, a sociedade aplaude a divisão do ser porque
dela deriva o seu fundamento e sobrevivência.
Pelo contrário, o homem e a mulher que se queiram
unos estão destinados a um castigo social que
pode ir da retenção no hospital psiquiátrico à
prisão, sendo provavelmente os artistas - mas a
quantos se abre esta estreita via? - os mais
felizes entre os que tentam essa união consigo
próprios: ao cultor da arte tudo se permite mesmo
a...unidade. Mas de que falamos? Do ser que não é
uma máscara ás três da tarde e outra às sete mas
integra a ambas no mesmo, pois o seu fundo é uno:
83
um ser que é todo o tempo, à semelhança do deus,
cuja imagem não apresenta seccionamento.
Deus - dizem os teólogos - simplesmente é.
Mas dos tantos que trazem o deus na boca
quantos tentam sê-lo?
Outros ligthes
Também o estado, depois de haver sido
absolutista, assumiu, no final dos anos setenta
do século passado, uma feição ligth: foi o
estado neo-liberal, a venda na haste pública de
serviços que até ai competiam ao bem-comum, a
privatização de muito que o caracterizava: água,
luz, transportes, saúde ou aposentações passaram,
em muitos casos, para as mãos dos poderes
privados.
Ao mesmo tempo que a publicidade dava a
conhecer os produtos ligth, o estado, culpado de
84
Auschwitch e Sibéria, desfazia-se da sua carga e
responsabilidade sociais mantendo na sua esfera
apenas o "indispensável", nomeadamente a captação
dos impostos além das polícias.
Um estado "leve" que o slogan "seja o cidadão
nulo" poderia anunciar, escondendo que, em troca,
paga pela bitola privada - isto é, a do mercado,
serviços até ha pouco gratuitos. Fenómeno
simultâneo com a decadência dos países
socialistas, o capitalismo privado aproveita a
circunstância para varrer o que pode do serviço
público, processo em que saiem vencedoras as
multinacionais que hoje subjugam a esfera
política, as mesmas que propagandeiam os produtos
ligth e, do mesmo passo, patrocinam as campanhas
eleitorais de presidentes, ministros e
respectivos adjuntos, os quais provavelmente
virão a ser - ou já foram - gerentes dessas
mesmas multinacionais.
Santa aliança ou o poder de uma só cor, a
realização, a nível político, do homem
85
unidimensional apontado por Marcuse nos anos
sessenta.
O político ligth, bem falante e
convenientemente maquilhado para o circo da TV,
destinado a satisfazer as clientelas mais amplas
e por isso mesmo condenado a promover e ser
protagonista de campanhas ligth - as quais, por
própria definição do ligth, não podem ir à raiz
dos assuntos - barafusta mas nada muda de
concreto.
O concreto não é ligth - pois implica a vida no
seu todo - e a política ligth - de direita ou
esquerda - não resolve os problemas sociais mas
abre caminho, face a um eleitorado insatisfeito,
aos movimentos extremistas que, sem o confessarem
para não assustarem as massas, anseiam pela
revolução.
Ou seja, o ideal da mudança radical passou a
ser representado, não já pelas esquerdas - ainda
não há muito exultantes com a exemplaridade da
revolução dos cravos em Portugal - mas pela
86
direita mais à direita.
Incapaz de um programa realmente digno do
século vinte e um, no qual a exigência seja uma
vida mais fácil - ou ligth no bom sentido - com
dever de serviço social para todos e direito a
cada vez mais ócio e satisfação das necessidades
básicas - casa, saude e instrução - a Europa
vive assustada como velha tia revolucionária e
nostálgica. Nos seus tempos "oh, quando eu era
nova!" foi radical mas os que hoje falam em
revolução - extrema direita e islamismos - lutam
já contra ela! E se o estado dirigista que, na
década de sessenta esta mesma Europa defendia, se
mostrou na Rússia, Alemanha, China e noutros
infelizes lugares, sanguinário, o seu
esvaziamento mostrou a não menor ferocidade das
multinacionais.
As recentes vitórias da extrema direita devem-
se, pois, ao estado ligth o qual, a continuar
assim, será por elas tomado e, finalmente, muito
pouco ligth será, a não ser, é claro para os
87
tantos que o dominarão. A história está cheia
destes exemplos assumidos sob os mais variados
nomes mas todos pretendendo construir um homem
novo. Talvez desta feita se chame homem ligth.
O "bom" ligth
A visão ligth das coisas contém em si uma
desdramatização de aspectos que, em parte,
deixaram de ser relevantes.
Sem pretender esgotar o seu elenco, cite-se:
O "Sexo dos Anjos".
Deixou de importar se o homem tem um tonus
feminino ou a mulher características outrora
88
atribuídas ao "sexo forte".
O ligth, com a sua capacidade filtrante e
purificadora, reteve dos sexos o que lhe
importava - a sua possibilidade de consumo - e
deitou fora tabús que, abalados por Maio 68,
ficaram definitivamente para trás. A androgenia
erigiu-se em modelo e o consumidor, mais do que
uma vagina ou um pénis, é isso mesmo: um
consumidor.
A rigidez mental
Corolário do muito que se disse no primeira
parte deste escrito, pensar, com a queda da
ilusão racionalista, passou a actividade que, se
nenhuma publicidade recomendou "pense leve!", o
conselho não deixa de estar implícito na proposta
de um modo de vida ligth.
Os códigos de honra cuja transgressão
acarretavam a vergonha e a perda da "dignidade"
ficaram ainda mais obsoletos e a incoerencia teve
89
foros de cidadania. Faz hoje assim e amanhã
assado, não te comprometas (e muito menos
politicamente - o ligth repudia o empenhamento e
o militante, ao contrário do diletante, não é
ligth) não cries raízes, sê leve, ágil,
espontâneo, etc., todos estes itens levaram o
público consumidor a familiarizar-se - estes
fenómenos têm origem noutras esferas da produção
social mas só massificam a partir do momento em
que atingem os "media" - com a mudança, a
ligeireza, a troca, pois doutro modo como
usaríamos hoje uma marca e amanhã a que logo a
substitui?
O "pensamento mole" serve, e reflecte, uma
sociedade em forte mudança que necessita de
varrer dos seus quadros mentais referencias
estáticas para se adaptar a novos tempos. Bico de
dois gumes, leva atrás de si o ainda útil e o
mau porque obsoleto. Este item mais deveria
colocar-se num campo intermédio entre o positivo
90
e o negativo. Libertou das hierarquias - e
sobretudo da do próprio, da de um super-ego
coerenciador e vigilante - mas deixou como
herança, sobretudo na geração seguinte, uma fome
de valores ou "verdade". Ora, sendo a verdade o
resultado de um esforço e sabendo nós que a lei
geral é a do menor, qualquer esfomeado de
valores é vítima fácil do primeiro vigarista que
surja na rua a vendê-los.
A proliferação de grupos que negociam em nome
de Deus e, no melhor dos casos - mas à custa de
quanta intransigencia em relação ao Outro? -
vendem sessões de terapia de grupo, cujas curas
atribuem não a Moreno ou a outro seu fundador,
mas a Jesus, ai estão para comprová-lo.
- A perca do transcendente
As coisas valem pelo prazer que dão no aqui e
agora, no imediato.
O sacrifício em nome de uma causa passou de
moda, pelo menos para um ocidental, pois a vida,
91
a existência passou a valor primeiro. A própria
filosofia mudou de campo, ou voltou ao antigo, e
vira-se para a felicidade quotidiana, para o
sentimento do bem-estar consigo. Em risco, pois,
o cristianismo do Cristo pregado na cruz,
provavelmente substituído um dia, quando o
feminino atingir todo o seu direito e plenitude,
por uma "pieta" à Miguel Ângelo, símbolo não
mais amplo que o do sacrifício mas mais
apropriado a uma civilização que deseja proteger
a vida e não apenas vivê-la como uma ponte para o
paraíso.
- A aceitação do efémero
Se aceito o ligeiro, o leve, aceito, acto
contínuo, o efémero.
Longe da aceitação da Morte, fenómeno que o
produto ligth esquece, o efémero incentiva o
gosto pela transmutação. Aceitá-lo é a extensão
última do consumo a que a dita sociedade convoca
tudo o que a compõe: nem já a duração de uma hora
92
mas a de breves segundos, numa existência cuja
evanescencia passa a ser a sua essencia, a sua
mais-valia.
No efémero celebra-se o que não tem senão
escassa existencia. Este no entanto, não pode
cair na sua própria armadilha a qual consistiria
em celebrar a morte de tal modo vida e ocaso se
lhe associam.
Efémero, segundo o modo de vida ligth,
eternamente efémero, eternamente jovem, efémero
sempre. E o sabor vem desta onda que, suspensa,
nunca rebenta, como se fosse possível prolongar
para todo o sempre os breves momentos que
precedem a descarga do orgasmo, num prazer
eternamente renovado como o que expressa o verso
de Valery "la mer toujours recommencéé". O fumo
"inofensivo" do tabaco, o prazer do yogurte que
não engorda, a sensação, enfim, liberta do seu
desgaste.
Um mundo só bom, e naturalmente morto, por
falha de contradição.
93
- O elogio do fácil
Do enaltecimento de uma vida de prazer e
liberta da sua carga mortífera, faz-se a passagem
- da mesma forma que no anúncio o corpo jovem do
desportista e um automóvel se associam para criar
uma imagem de potencia - para a facilidade na
obtenção das coisas, as quais, doravante, deixam
de ter o preço do sacrifício.
As rugas de um rosto envelhecido são
desnecessárias numa sociedade infantilizada que
deseja a experiência sem o seu custo, num sempre
renovado laboratório que nunca acuse o seu uso.
(E de novo a cruz do cristianismo a perder a
força do seu significado)
Não engordar não custa passar fome mas, apenas,
comer diferentemente.
O fácil, o sem esforço - valor enganador para
uma plebe que, extenuada pelo trabalho, sonha há
séculos uma vida de nababo sem mesmo arcar com o
ódio dos que há-de explorar - essa capacidade de,
94
a um sinal dos dedos, aceder à posse - seja de
si, seja do mundo - é igualmente propagandeada
pela publicidade do ligth - ou por toda a
publicidade pois o ligth é apenas o seu aspecto
mais assumido - e contribui para amolecer e
confortabilizar o social que se lhe entrega.
Na Tv observamos meia dúzia de indivíduos a
quem pagamos para, numa ilha deserta, fazerem
por nós, a experiência da “verdadeira” luta pela
sobrevivência.
Vida em diferido, vida preservada do cheiro da
experiência.
Ligth vida!
Onde o ligth seria (porventura) útil
- Multinacionais-ligth
Ao contrário das suas pesadas congéneres
95
envolvidas activamente na política (a ITT
financiou o golpe de Pinochet no Chile, em 1971)
interessadas exclusivamente nos respectivos
lucros e muito pouco na felicidade dos seus
clientes, a multinacional ligth caracterizar-se-à
por:
- Contribuir para a leveza do ambiente,
evitando poluí-lo.
- Fabricar com transparência, não empregando
mão de obra recrutada no mercado negro, infantil
ou diminuída nos seus direitos.
- Incentivar a democracia dentro e fora da
empresa: no interior pela adopção de métodos
participativos e no exterior recusando
implantar-se onde os direitos humanos sejam
negados.
- Distribuição periódica dos lucros que não se
destinem a auto-investimento por quantos nela
trabalham.
96
- Partidos ligth
Entrar num partido - sustentáculo do poder de
estado democrático - é um "drama", assinalado com
direito a parangonas nos jornais, para o caso dos
notáveis e inútil, na realidade, para o cidadão
comum que, uma vez lá dentro, se limita, na
grande maioria dos casos, a bater palmas em
sessões propositadamente realizadas para o efeito
ou, o que é o mesmo, dada a sua ineficácia, a
barafustar contra o vento.
Que resta, pois, para evitar que o cidadão
comum se desligue definitivamente da vida
política senão "ligthizar" os partidos, tornando-
os, enfim, leves e ágeis? Ou dito de uma forma
culinária "ao menu".
Explique-se:
Hoje em dia o filiado num partido tem que
aceitar uma solução do mesmo, ainda que não
concorde com ela. A disciplina partidária assim o
exige, tal como outrora, na empresa onde se
empregava para toda a vida, o trabalhador
97
obedecia cegamente ao chefe, na esperança,
sobretudo se mais novo, de vir um dia a
substitui-lo.
Isso acabou.
Hoje muda-se de emprego e, a não ser que crie a
sua própria empresa, o homem ou a mulher comuns
nunca substituirão o patrão, entidade cada vez
mais fluida e virtual, sobretudo no respeitante
às sociedades por acções.
No respeitante aos partidos propõe-se, pois, a
mesma mobilidade, a saber:
Se o militante não está de acordo com a solução
para o problema X que o partido onde se filiou,
preconiza, deve reconhecer-se-lhe o direito de
colaborar com outro partido no qual, para o mesmo
problema, o militante encontra uma solução mais
em acordo com a sua consciência. E - residiria
aqui o aspecto ligth deste tipo de organizações
- essa colaboração não implicaria, em caso algum,
a saída do partido (chamemos-lhe partido-base)
onde primeiro se filiou.
98
De facto, porque não poderá o militante – pois
que o é - colaborar num partido em determinada
solução e, noutra, no partido vizinho? Porque
terá que resolver tudo no mesmo? Naturalmente
será de esperar que o leque de partidos onde o
militante colabore pertença a um mesmo espectro
mas.... se não for? Porque o problema há-de ser
do partido e não do militante? Ser coerente é um
valor em si? O que importa, aqui e agora, não é
não prejudicar o outro e cumprir o código civil?
Finalmente, ao cabo de uma vida partidária
intensa, o militante terá colaborado sempre
segundo a sua consciência - passo fundamental
para a criação do indivíduo desmassificado - e
alargado a experiência do Outro. Não é o
objectivo da democracia?
A "partidarite" - tal como outrora velhos
brazões das familias aristocráticas que tantas
guerras pretextaram - tenderá a acabar e a ficar
em realce a vida política, a colaboração
interpartidária (ao alcance de qualquer e não
99
apenas das elites quando e onde elas decidem)
enfim, o serviço de Estado.
Sob a fórmula de "ligthização" dos partidos
propõe-se, pois, a sua aproximação à realidade do
cidadão comum o qual, numas eleições vota num
partido e, nas seguintes, noutro. Além de que no
partido-ligth há a imediata noção do peso das
suas decisões pela aferição dos que as não
seguem.
Os partidos leves permitiriam uma vida política
mais adaptada ao ritmo do nosso quotidiano e, não
menos importante, mais transparente.
A contribuição do estado para o partido-ligth
não se traduziria em dinheiro mas em mão-d'-obra.
Um partido ligth com direito, devida à sua
votação, a dinheiros públicos recebê-los-ia, não
em "cash" mas em funcionários aptos a prestarem
apoio logístico na área das finanças, imagem,
etc. etc..
Tais funcionários, independentes do poder
100
circunstancialmente eleito, deontologicamente
apartidários, ou verdadeiramente de Estado,
seriam, afinal, garantes da ordem democrática,
pois, por própria natureza de funções, saberiam,
no aqui e agora, a proveniência dos dinheiros
partidários.
Quem não é contra o estado democrático porque
há-de temê-los?
- Escola ligth
Escola ligth? Será possível? Sê-lo-ia se fosse
viável encontrar um método de ensino que não
obrigasse ao esforço, onde a aprendizagem se
tornasse um jogo permanente no qual o cansaço
surgisse unicamente por jogá-lo. E, é claro, o
jogo-método teria que ser suficientemente
maleável para permitir a sua substituição, a
partir do momento em que enjoasse. Mas isto é
possível?
101
A resposta reside na tecnologia e na capacidade
humana em traduzir por imagens os conceitos
fundamentais que baseiam o nosso saber.
Princípios matemáticos, físicos, etc, deveriam
ser de fácil compreensão - aliás, começam a sê-
lo - a partir de esquemas virtuais e lúdicos.
Mas... e o resto? A cultura, entendida como fonte
inter ligadora de tudo, de integração última do
humano no cosmos, tornando a ambos cúmplices?
Poder-se-à algum dia ensiná-la através de um
jogo, uma brincadeira, uma simulação?
Duvido.
Se assim for, se não se mostrar viável aprender
senão por um sempe renovado desejo de “querer
saber” o qual justifique o esforço em adquiri-lo,
não haverá nunca uma escola ligth, embora possa
existir um ensino ligth, meramente técnico,
separado da sabedoria, entendida esta como o
molho onde mergulha o conhecimento científico e
102
lhe dá o sabor, à semelhança do tempo que
informa o vinho.
Em consequência a escola cultural, não a
exclusivamente técnica, e porque exigirá sempre
esforço, tenderá a recrutar um género de crianças
ou adultos mais susceptíveis de se submeterem ao
trabalho de aprender.
De nada serve oferecer pérolas a porcos.
Mas também é preciso ter a certeza de que as
ditas pérolas foram suficientemente exibidas
para que ninguém, mas absolutamente ninguém,
argumente que não as saboreou por desconhecer a
sua existência: estes os parâmetros da
democracia, ou da escola democrática e
esclarecida.
Tal escola, prodigalizando meios de cultura,
requer o esforço e não será ligth. Mas, ao
serviço de alunos verdadeiramente interessados em
aprender, acabará por produzir um ensino fácil e
agradável, pois “quem corre por gosto não cansa”.
103
Tal escola, da mesma forma que reúne alunos
interessados em saber, congregará professores com
gosto e vocação em ensinar, uns e outros
apaixonados pela investigação da verdade, pelo
prazer do "chamar os bois pelo seu nome".
Tal escola saber-se elitista - qual o problema
de sê-lo desde que aberta a qualquer que a deseje
frequentar? - não porque construída sobre falsas
divisões, económicas, sexuais, de pigmentação de
pele ou credo religioso - mas porque exigirá a
cada um o melhor de si mesmo e uma mesma atitude:
a de querer saber... para saber.
Quem financiará uma tal escola?
- As multinacionais-ligth em colaboração com o
Estado.
Qual o interessse que umas e outro retirarão
das respectivas contribuições?
- Passarem a dispôr de pessoal altamente
especializado e, ao mesmo tempo, erudito, capaz
104
de visualizar e integrar os problemas sectoriais
na complexa globalidade social.
Os gestores do futuro não deverão ser
advogados, engenheiros ou arquitectos mas
especialistas em globalidade, pessoas que, pelo
seu vasto conhecimento, estarão em condições de
estabelecer pontes entre os diversos fazeres e
interesses sociais.
Uma tal escola formará pontífices da sociedade
civil, obedecendo a um único credo: torná-la cada
vez mais laica e democrática. Quer no bem quer...
no mal.
105
Conclusão
Domínio de si, domínio da natureza, domínio do
Outro, extermínio do Mal...
Mas o mal d' agora não foi o bem d' há pouco e
o mal d' ontem não se identificou já com o bem de
agora?
Desconfortável?
Certamente que sim para quem queira tudo
estipulado e bem delineado, os campos distintos e
a todo o tempo os mesmos: a mudança não interessa
ao universo ligth a não ser que se efectue dentro
do mesmo ou se situe no campo da máscara.
Desconfortável ainda para quem da vida só
aceita o seguro, e, de preferência, um seguro
ainda seguro num qualquer outro seguro, acabando
a viver de tal modo guardado - e separado de si -
106
que mais vive morto.
O correcto, e em acordo com o processo natural,
é a integração dos extremos, permitindo que a
dialéctica se consuma e dê ao mundo novos mundos.
Porque o "Mal" não passa de uma abstracção e, di-
lo a história, o humano aprecia que lhe lancem
uma imagem, como ao cão um osso, e alguém grite,
se possível ao som de um hino: "Eis o mal! Ataca"
A humanidade, cujo estádio de desenvolvimento
se assemelha ao do adolescente que, ora acerta no
cravo, ora na ferradura, nunca recusou o que lhe
proporcionasse um menor esforço e o êxito da roda
demonstra-o.
O ligth com o seu ideal de leve, ligeiro e
espontâneo, invadiu a vida de todos os dias:
temos a guerra ligth (a qual "só atinge o Mal" )
ganharemos, por própria necessidade da reforma
dos partidos, uns tantos que serão ligth e, se
uma revolução sem sangue é igualmente ligth,
então a dos Cravos, em Portugal, foi um seu
primeiro exemplo.
107
A liberdade, ameaçada pelo reino do lucro -
utopia tão prejudicial e irrealizável como
qualquer outra, a não ser que, para levá-la a
cabo, nos dispúnhamos a sacrificar o planeta e
com ele a vida humana - ou convence o Estado do
dever de ser a sua guardiã, oferecendo ao cidadão
mais frágil um leque de opções que lha permitam,
ou casa os ideais anarquistas, instituindo de
imediato a célula humana como sede de todo o
poder. Mas esta última hipótese muito poucos
estão em condições de realizá-la mais se
identificando com o esforço dos primeiros
cristãos: sós e dispostos ao sacrifício pessoal.
O cidadão comum quer ser rico, quer ascender à
categoria de consumidor máximo e, por outro lado,
aquele a quem essa via não interessa, mas
consciente do seu poder, muitas vezes retira-se
e cala-se, num viver à parte que acha solução,
subjectiva herdeira da crença do "socialismo num
108
só país".
Pensar desenvolve o pensamento e a humanidade
só sairá da crise que todas as mudanças provocam,
se ousar pensar tudo de tudo, pois só assim
encontrará as soluções à altura dos problemas que
enfrenta, inexistentes num pensamento censurado
por séculos de vida clandestina.
Quem ousa descobre.
FIM
Lisboa, janeiro de 2002
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