Círculos: Lisboa e Setúbal - cld.pt · 3 sentido figurado: animar-se, sair, descer de...

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1 Nome: Carlos Melo Círculos: Lisboa e Setúbal Viva Companheiro(a), Apresento este meu texto ainda inédito, (escrito em 2002 e registado em 2003 - processo 5358/02 da Inspeção Geral das Atividades Culturais), porque, apesar do tempo passado, considero-o atual. Por exemplo, no que digo acerca dos partidos (Pág. 96) Quanto ao que farei como deputado, disse-o na página da candidatura. E fazer o que prometo, dará com certeza suficiente trabalho para quatro anos! Obrigado e… boa leitura. I G A C INSPKÍXÀO-CliRAL DAS A C T I V I D A D ES C U 1. T l II A I S MC MLNlililtJO DA CuLlliR.\ E X M O ( A ) S E N H O R ( A ) C A R L O S A L B E R T O F R E I T A S D E G O U V E I A E M E L O Processo: 5358/02 Data: 24/02/03 N/ Referência: 651 /DRCAC/IGAC Palácio F o z , Praça d o s R e s t a u r a d o r e s , 1 2 5 0 L I S B O A T e l e f o n e : 2 1 3 2 1 2 5 0 0 F a x : 2 1 3 2 1 2 5 5 1

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Nome: Carlos Melo

Círculos: Lisboa e Setúbal

Viva Companheiro(a),

Apresento este meu texto ainda inédito, (escrito

em 2002 e registado em 2003 - processo

5358/02 da Inspeção Geral das Atividades

Culturais), porque, apesar do tempo passado,

considero-o atual. Por exemplo, no que digo

acerca dos partidos (Pág. 96)

Quanto ao que farei como deputado, disse-o na

página da candidatura. E fazer o que prometo,

dará com certeza suficiente trabalho para

quatro anos!

Obrigado e… boa leitura.

I G A C INSPKÍXÀO-CliRAL

DAS A C T I V I D A D ES

C U 1. T l II A I S

MC MLNlililtJO DA CuLlliR.\

E X M O ( A ) S E N H O R ( A )

C A R L O S A L B E R T O F R E I T A S D E G O U V E I A E M E L O

Processo: 5358/02 Data: 24/02/03 N/ Referência: 651 /DRCAC/IGAC Palácio F o z , Praça d o s R e s t a u r a d o r e s , 1 2 5 0 L I S B O A

T e l e f o n e : 2 1 3 2 1 2 5 0 0 F a x : 2 1 3 2 1 2 5 5 1

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“OBRA LIGTH

LIGTH OBRA”

"Ligth" no dicionário de inglês-português da

Porto editora, de 1987:

1) luz , claridade, esclarecimento, vivacidade,

aspecto, aparência e, em sentido figurado,

estrela luminar, pessoa proeminente, inspiração,

clarabóia, janela ou a parte mais clara de um

quadro.

2) Leve, claro, ligeiro, vivo, activo, frívolo,

trivial, fácil, alegre, gracioso, elegante,

delicado, brando, pouco forte, átono, de uma

maneira leve, levemente.

3) Particípio passado de to lit: incendiar,

pegar fogo a, alumiar, cair, iluminar-se ou, em

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sentido figurado: animar-se, sair, descer de

(carruagem), desmontar, cair.

A natureza projectada num pacífico pôr de Sol,

a alvorada de raios alegres e familiares, a chuva

miúda que mal convida ao abrigo, enfim, o ameno

e o comedido entram no elenco do nosso tema mas

não o vendával e muito menos o caos.

O ligth condena-se a uma fala espumosa que

nunca mergulha no conteúdo do líquido, na sua

espessa profundidade.

O gosto da superfície.

Conversa sem âncora, á deriva, ao sabor do

momento, da "patine" e do seu deslizar. O dizer

por dizer, mantendo a conversa no fio da língua,

sem nunca a chamar pelo seu nome para que nem de

si tenha consciência.

A consciência não é ligth.

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A premência da morte preocupa-a e o ligth não

mata. Distrai, desvia, rodeia mas nunca atinge o

centro. Eterno movimento em volta, o ligth é uma

criança que recusa crescer e, no entanto, não

fica monstruosa ou, se arrisca a deformidade, o

mal torna-se num atributo positivo, à semelhança

dos "castrati" que compensavam a deficiência

física numa atraente voz.

A natureza humana é muito pouco ligth e daí a

contradição.

O homem e a mulher, nados na fábrica ocidental,

anseiam por ser ligth, por se deslocarem à

velocidade do som e, se possível, estarem em

múltiplos lugares ao mesmo tempo, como se não

possuíssem espessura ou passado, fossem livres do

peso e da memória. Mas a velocidade das

experiências não se compadece com um organismo

que possui o seu próprio ritmo e todos já

passámos pela desagradável experiência de

abraçarmos B enquanto lembramos A. Sensação nada

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ligth.

O passado não é ligth, por mais que a colecção

dos dias tenha sido uma amálgama de

superficialidades.

Haverá uma marca leve?

O ligth é...

O ligth é a borboleta a esvoaçar que nunca

vemos morrer.

O ligth, enquanto escrito não pode aumentar

indefinidamente. "Guerra e Paz" de Tolstoi não é

ligth, assim como não o será "Em busca do Tempo

Perdido" por mais ligth que hajam sido as

jornadas de Proust. Mas uma obra ligth nunca terá

quinhentas páginas, e, a possuí-las, apresentar-

se-ão em tão pequenos trechos que se lêem em

escassíssimos minutos, como quem engole um boi em

spray, de modo a não lhe sentir a dimensão.

O ligth é digestivo e consumível, com tudo o

que a palavra implica. Ou seja, substituível,

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sendo que a velocidade de consumo de um objecto

é, em regra, função da nossa capacidade em

substituí-lo.

Num mundo onde as pessoas, por fazerem de peças

de máquina, são consumíveis como qualquer produto

que sai das suas próprias mãos, tornam-se tambem

elas lixo mal a máquina as dispense.

O estado de objecto atinge-se por um alheamento

da complexidade humana e, no mundo-consumo, o

objecto-pessoa tem tanto êxito como qualquer

outro artefacto ou mercadoria. Tal estado é o

ideal para quantos pretendem o sucesso pois,

tornados seres ligth - sem peso nem raízes -

produzem independemente do meio. Se Antígona diz

"nasci para amar" o ser ligth afirma "nasci para

voar"

O ligth não possui essência ou o seu âmago

compõe-se de evanescência, uma fragrância que

permite o tom mas não a base. Sem idade, passado

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ou futuro, consome-se no instante, tal como o

retrato de Dorian Gray, fixo num eterno presente.

O ligth disfarça o insustentável ou, pelo

menos, adia-o numa sucessão de "liftings" que

afixam no rosto, não as rugas, mas as sucessivas

fugas ao tempo.

O tabaco é ligth porque profundamente

canceroso.

Esta dualidade, este verso e anverso da mesma

realidade: de um lado o permanente e, do outro, o

acessório e o "gadget", de uma banda o peso e,

noutra, a ligeireza, ganha sentido num contexto

de dualidade, cujos termos mais conhecidos são o

espírito e a carne. Ligth, naturalmente, só o

primeiro e daí que a segunda se sujeite a

tratamentos com o objectivo de se transmutar tal

como outrora os cilícios espiritualizavam o corpo

que submetiam.

“Corpo ligth” - dirá a publicidade e todos o

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entenderão.

Um corpo ligth não tem outro fazer que não seja

o da fruição. Nunca será, como diria Foulcaut, um

"lugar de castigo". Daí que a magreza seja uma

obsessão dos estilistas pois o interior - o

sangue, as excreções, o aparelho digestivo, etc -

reenvia para o domínio da necessidade e esta não

é ligth. Comer sim, mas bombons, vestir sim, mas

peles - nas quais a função de aquecimento, embora

suprida, logo cede à da ostentação. O corpo é um

lugar de ambiguidades só possivel de levar à rua

depois de embalado e domesticado. Todos já fomos

crianças e sabemos o que significa. "Se não te

portares bem, não tornas a sair."

Nada mais ligth que uma passagem de modelos

cujo domínio não vai além de uma estação. A moda

renova-se num constante desespero contra o tempo,

travestindo-o sem nunca o reconhecer. O modelo,

embora exiba produtos cujo destino se realiza no

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social, existe fora do espaço e do tempo, numa

eterna juventude, numa permanente "passarelle",

num "illo tempore" longínquo e reservado.

O canal televisivo mais ligth é o que

permanentemente exibe passagens de modelos. Em

todo o caso o mais irreal ou o mais fantástico no

sentido da lenda: nele o mito renova-se a cada

nova investida do modelo, sempre jovem, sempre

produzido, sempre impecável: a eterna juventude,

o Olimpo e os seus deuses.

Vestir ligth é isso mesmo: trajar ligeiro, pôr,

inclusive, com o smoking umas chinelas (haverá

maior contradição do que enfaixar o corpo e,

depois, colocar os pés à mostra?) Mas o pé

desnudo torna o seu utente mais leve e confere-

lhe um sinal que funciona como abertura (ligth)

em relação à carga uniformizadora do fato.

O ligth funciona como ornamento

descongestionador de um peso, ou válvula de

escape a que não se quer, ou pode, pôr termo.

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Ligth total seria o nu? Impossível ideal: o nu

é mesmo nu e ostenta o peso da carne.

A moda ligth, superficial e "despreocupada",

veste os cargos de mais alta gravidade, os que

decidem do destino de milhões de seres humanos, e

os seus representantes apresentam-se, não como

outrora, de elmos e protegidos por escudos ou

carregados de dragonas, mas fingindo pertencer à

esfera do jogo e do aleatório: um presidente

americano, no seu rancho, deixa-se fotografar em

“jeans” enquanto não decide com os seus pares da

divisão do mundo.

Mundo de brincar, onde a brincar se mata, com

uma pistola comprada na loja da esquina e que, na

primeira oportunidade, o cidadão Smith leva para

o mercado e se diverte a disparar.

Morte e vida talvez não se tenham tornado mais

frequentes do que outrora mas a sua transmissão

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pelos meios de comunicação, a sua apropriação por

uma "sociedade cuca", sociedade em que todos

cucam todos e de muita coscuvilhice se alimenta,

tornou o acto de morrer banal, corriqueiro, um

empecilho, enfim, desprovido de qualquer

significado transcendente. Morrer abraçado a uma

bomba que se acredita que há-de melhorar o mundo

surge, aos olhos do indivíduo desde cedo

martirizado por uma propaganda odiosa - mas

eficiente porque apoiada em factos - como uma

benção, um antídoto contra o anonimato, a

salvação. E, ao mesmo tempo, a transmissão

mediática dos efeitos do seu acto, contribui

para banalizar ainda mais a morte, inclusive a

sua.

A "gaffe" - ou a crise - são o arranhão no

verniz ligth, a quebra na linguagem-cifrada do

"como está? bem obrigado". E porque o corpo, com

o cortejo das suas necessidades e desejos, é tudo

menos ligth, ele está, na sociedade que se

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pretende permissiva e ligth, sob constante

vigilância.

Os corpos têm de ser um só, no caso um corpo

jovem, tendendo para a androgenia púbere. Que a

exacerbação do estado infantil acarrete um

acréscimo de pedofilia, à qual sucumbem os já de

si propensos ou os elos mais fracos da cadeia,

não importa. É apenas o preço da ilusão numa

eterna juventude de uma sociedade também em

deliquescência, pois que fatalmente em renovação.

E quanto mais o mundo se carregar de sombrias

ameaças, permitindo a obliteração das melhores

esperanças, mais a criança encarnará o modelo, o

ideal, qual membro indefeso e pronto, como

outrora, a ser oferecido ao deus que se apazigua.

No púbere, o cidadão, envergonhado e culpado

pela destruição que o seu domínio envolve,

escamoteia a própria responsabilidade.

A pedofilia é o casamento obsceno entre o mal e

o bem, o afogamento, no corpo da vítima inocente,

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de uma culpa maior.

O mito Marilyn Monroe não reside numa sábia

mistura de mulher e criança?

A luz jovem

Ser ligth é ter a agilidade do que ainda não

criou raízes, a despreocupação do que ainda não

despertou e paira no mundo do sonho.

A juventude é por definição ligth, pois, por

mais infeliz que seja, o status de jovem

assemelha-se a uma “graça”, algo como a garantia

que protege um objecto recém-adquirido, cujo

defeito pode ser remediado sem prejuízo do

consumidor. Jovem é o que, se souber o que mais

tarde saberá, deixa imediatamente de sê-lo. Há

na juventude um conhecimento parcial das coisas,

um sabor ainda não completo pela gama da

experiência, uma paleta onde faltam, não,

necessariamente, todas as cores mas alguns tons,

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aos quais só se acede pelo trabalho sobre si

mesmo, pela elaboração de uma longa experiência.

Nem todos os adultos a adquirirão mas o jovem de

certeza que não a possui.

A juventude, saborosamente inconsciente e

impulsiva, é ligth graças a uma cesura natural

que a própria idade exerce, e, sob o seu único

comando, o mundo sucumbiria de frenesim e

esgotamento.

No entanto, a dupla característica de jovem e

ligth atraem precisamente as forças do peso e da

consistência, da responsabilidade e do arcaico.

Como se, por osmose, elas pudessem desviar a

luz jovem em seu benefício, levando-a ao moinho

das suas próprias motivações, oferecendo sangue

novo - e ligth, ou seja, ainda não contaminado

por um destino - aos seus desejos, dando uma

aparência de novas a tantas causas caducas. O

sangue do bebé - dizia-se outrora - serviria ao

elixir da juventude.

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A juventude, o seu modo de ser ligth, atrai,

pois, engrenagens nada ligthes, que a colocam ao

seu serviço e, nos casos mais radicais, acabam

por exterminá-la.

A pedofilia e a guerra são dois extremos unidos

por um mesmo paradigma: a carne ao serviço de um

Senhor.

Corpos caducos podem dirigir uma guerra mas não

a levam à vitória. Desta contradição resulta que,

desde cedo, os adultos, associados sob o nome da

nação, tribo ou simplesmente máfia, educam as

"suas" crianças no sentido de que elas contraiam

uma dívida que, mais tarde, se necessário,

pagarão “orgulhosamente” com a vida.

"Deixai vir a mim as criancinhas" - já dizia,

noutro contexto, Jesus. O mercado, esse, acaba de

descobri-las.

O humano não nasce autónomo. A sua espécie,

como muitas outras, necessita de um tempo de

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maturação para aceder à vida independente. E,

mesmo quando a obtém, ao contrário doutras raças

que, sofrendo idêntico processo, ficam de

imediato em contacto com a alimentação lá onde

ela existe - o tigre caça a gazela, a raposa a

perdiz, etc. - o humano vem a encontrar entre ele

e os bens de que necessita (o alimento, a

caverna, a instrução) uma série de instituições

que os controlam, e podem mesmo impedir-lhes o

acesso.

O nascituro vem ao mundo no seio de um

subgrupo que, mal ou bem, domina os meios de

alcançar o seu próprio sustento e, em

consequência, os da sua prole. Assim, fica de

imediato cativo de uma dívida, tanto maior

quantos os benefícios recebidos e o seu pagamento

traduz-se na obrigação moral de um sentimento de

gratidão. Amar pai, mãe, clan, pátria, Deus,

etc. consta da cartilha de qualquer recém-

nascido, mas apenas a criança priviligiada acede

de imediato a uma vida ligth, na qual a maioria

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desses itens germinam e ganham sentido.

Quanto á criança nascida em ambiente de fome

outra realidade aprenderá.

Ou seja, a idade infantil, ligth por natureza,

luz, infelizmente pouco, para a maioria das

crianças: umas, nascidas na abundância são logo

sobrecarregadas pelos mil e uns adestramentos

típicos do seu grupo, afim de que, adquirindo-

lhe as características, possam usufruir das

respectivas vantagens; outras, vindas ao mundo na

penúria, logo devem lutar pela sobrevivência.

Num e noutro caso, a sobre-exploração, a somar

aos erros inconscientes cometidos pelos

educadores e reproduzidos gerações a fio, atrazam

a melhoria social dos talentos humanos.

Consome (-Te)!

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Se a dependência se inscreve na natureza das

coisas (vimos ao mundo carentes de cuidados) ela

não tem que ser obrigatoriamente o nosso destino.

A sociedade humana deve formar cada um no

sentido da sua própria autonomia, de modo a que

as escolhas individuais advenham, não de

automatismos característicos do mundo dos

insectos, mas de desejos levados a cabo em plena

consciência. Ou seja, mercê de actos livres.

Porém uma sociedade de massas, ou de consumo,

poderá formar outra coisa que não consumidora?

Dir-se-ia que não e, no entanto, a história

ensina que a essência é dual e, logo, contém em

si o germe da mudança.

Na escola reside o foco transformador da

sociedade de consumo, pois é ela a sua primeira

fábrica.

A escola oficial, propagada com o

industrialismo, democratizada nos últimos

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decénios pela necessidade de trabalhadores

especializados e gerida nos ministérios por

pessoal que se reveza, ora nos altos postos do

Estado, ora na gerência das multinacionais, está

ao serviço destas, das quais é também uma

segregação. Assim, esta escola embala estudantes

que, mal formados - ou "acabados"? - integrarão,

a maioria, os terminais das ditas multinacionais

e alguns – poucos - os postos que as controlam.

Na generalidade a escola-hangar forma

consumidores ou seja, uniformiza comportamentos e

gera massas. E estas que outrora preferiram

Barrabás a Cristo, elevaram Hitler ao poder e

ameaçam hoje com novas e semelhantes proezas não

são ligth.

A massa, embora procure a lei do menor esforço,

obedece a fundos pouco ligth e os seus actos,

diluídos na irresponsabilidade colectiva,

revelam-se frequentemente sangrentos. Mas, ó

paradoxo!, esta escola oficial, herdeira falhada

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das aquisições libertárias de um Maio 68 e em

acordo ainda com a promoção dos produtos das

mega-empresas, pretende-se ligth!

A esta primeira contradição, a de uma escola

cuja natureza e resultados não são ligth mas que

deseja sê-lo, acrescem outras contradições, a

saber:

1) Qualquer adestramento com a sua necessidade

de paciência, disciplina e assiduidade é, em si

mesmo, trabalhoso e a Escola não escapa, apesar

das suas pretensões facilitistas, ou erradamente

democratizantes, a esta dureza.

2) Os estudantes possuem pelo menos dois graus

de leveza: o da própria juventude e outro,

disseminado pelos "media", o qual consiste na

crença de um bem-estar obtido sem esforço, senão

mesmo por efeitos mágicos ou virtuais.

3) A escola para investigar a verdade tem de

fazer uma autocrítica rigorosa. Ora, explicará

ela que o ensino que ministra, serve, na prática,

para levar a consumir acefalicamente, oferecendo

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pelo meio ao cidadão um cartão de eleitor

("democracia obriga") trabalho – ou subsídio de

desemprego - de modo a que, provido de dinheiro

e capacidade eleitoral, o cidadão cumpra a

grandiloquente tarefa de consumir?

Veja-se em esquema, o conjunto destas (e

doutras) contradições "escolares", para melhor

analizar o seu resultado:

1. Em relação ao funcionamento:

Escola que, em acordo com os adquiridos da

década de sessenta, pretende pôr em prática

métodos ligth, versus:

- Natureza pesada de qualquer aprendizagem

- Aumento súbito da população escolar, dando

origem a turmas cheias (e com carteiras, em

regra, dispostas ainda hierarquicamente: umas à

frente, outras atrás)

- Alunos cada vez mais originários de meios

marginalizados, e logo, insatisfeitos e zangados.

- Recrutamento de professores, sem atenção à

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sua qualidade pedagógiga pois uma coisa é o saber

e outra comunicá-lo.

- Escola consciente das suas próprias

contradições, denotando-as no mau estar dos

adultos que nela funcionam, os quais se

confrontam com problemas que não alcançam

solucionar pelos meios ao seu dispôr.

- Ensino que incentiva a procura das boas notas

desgarradas da avaliação (que não existe) do

“sentimento social” , tal como o definiu Alfred

Adler, existente no aluno: que interessa à

sociedade um saber tecnológico posto ao serviço

da construção de câmaras de gás?

2. Em relação às expectativas:

Escola que pretende dar acesso à vida ligth,

versus:

- Ensino pesado e problemático.

- Estudantes que, concluída a escolaridade,

deparam com o desemprego ou um emprego aquém das

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expectativas.

3. No que respeita à própria escola enquanto

exemplo pedagógico:

- a Escola não pode assumir as suas

contradições, sob pena de se desdizer e,

porventura, paralisar. Ou seja, a Escola cujo

dever é ensinar métodos de alcançar a verdade,

afixa ela mesma uma máscara e fala mentira.

Acrescente-se ainda a particularidade dos

alunos estarem numa idade em que a máscara

social ainda não se definiu e que, em

consequência, detectam facilmente as contradições

e a falsidade, reagindo-lhes com revolta.

Um tal "cocktail" não pode resultar senão num

lugar por excelência de conflito social, uma

"chaga" diariamente reaberta e a ninguém deve

admirar que:

- Professores lamentem já não poder castigar

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corporalmente os alunos.

- Alunos agridam os professores e estes, quando

se descontrolam, ajam da mesma forma.

- Alunos se esmurrem, roubem ou violem entre si

e, mais recentemente, imitando os adultos fora da

escola, tomem uma arma e matem o que encontrem

pela frente.

- Escolas sejam sementeira de núcleos de

agressão social tais como "skins", "neo-nazis" e

outros.

- Haja pouco cuidado na selecção dos

professores como se fosse consensual que, para um

tal meio, “quanto pior melhor”.

Mas, e vendo-o noutra óptica, o ensino oficial

da sociedade neo-liberal, na qual o mercado é rei

e senhor, não deve ensinar a sobreviver na selva?

Não é, pois, coerente que a Escola assuma o que

na realidade é: uma academia que ensina a arte da

guerra? Além de que o aluno estudioso até

conseguirá completar a sua formação em tal meio

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(ou apesar dele) e, desde que assíduo, há-de um

dia concluir o seu percurso de estudante com a

"escola" toda.

Tudo certo e "honny soit qui mal y pense".

Não te conheças, rebenta!

A cesura ligth - o mal de um lado e o bem do

outro - também é possível porque, desde cedo, se

ensina a criança a proibir-se os maus

pensamentos.

Mas o pensamento é um todo, não passível de

partir em bocados sem que o resultado sofra o

efeito da amputação. Pensar isto e não o seu

contrário é impedir a luta dos dissemelhantes e a

sua posterior união que, por sua vez, se

subdividirá, e, assim, "ad aeternum".

A dualidade faz parte do mesmo e o "não" sem o

"sim" não tem significado nem valor. No entanto,

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em vez de se fortalecer no conhecimento de ambos

os componentes da vida, o pensamento primário,

ligth pela censura que se impõe, exclui o que não

compreende ou sujeita-o a forças odiosas, como no

caso da mulher para a mentalidade medieval

eclesiástica, exorcizada na figura da bruxa

medieval.

O maniqueísmo mantém-se na nossa sociedade a

qual, no entanto, detém já meios para saber que o

mal, as tendências socialmente destrutivas não se

anulam pela recusa do seu pensar mas, sim, pelo

diálogo com essas mesmas forças até esvaziá-las

da sua motivação, o que pressupõe, naturalmente,

a sua análise.

Porem não é isto que acontece e o desejo de

destruição - é sobretudo disso que se trata e

tanto mais acutilante o problema quanto a vida se

processa num cenário cada vez mais bélico, se é

que esta ferocidade não é já um tributo à errada

forma de lidar com o "mal" - cresce numa

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sociedade que, embora se deseje ligth, ou por

isso mesmo, não sabe lidar com a sua parte

negativa senão pela sua - inútil - exclusão.

Outrora vivia-se para morrer e, através da

morte, ascender.

Hoje nasce-se para ser, aqui e agora, rico e

eternamente novo.

Ligth.

Uma tão parca e infantil utopia não pode senão

causar mal-estar nos que a procuram, se é que não

transforma a sociedade que a incentiva numa

imensa “disneylandia”, gerida por multinacionais

que vendem brinquedos e armas, colocando os povos

uns contra os outros, à semelhança das famílias

reinantes do antigo regime quando ganhavam

territórios e respectivas populações em herança.

Os "serial-killer" da nossa época ou, numa sua

versão mais ligth, os votos numa extrema direita

excluídora do imigrante (e excluir o que já de si

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é excluído obedece a uma dupla lei do menor

esforço) são acções marcadas pela necessidade de

um bode expiatório, equivalentes ás que, ao longo

do tempo, incentivaram populações à diabolização

dos judeus ou ao seu extermínio, acções essas,

como tantas outras do mesmo jaez, possíveis

graças à má gestão - nada inocente pois

beneficiária dos grupos que as instigam - das

tensões "destrutivas" normalmente existentes em

qualquer ser vivo.

Porque dialogar com o "mal", percebê-lo em nós

e ver, em pensamento, até onde lhe vai a

extensão, além desse conhecimento nos tornar mais

humildes, há-de contribuir para enfraquecer os

grupos bélicos que, igualmente ao longo da

história humana, têm preconizado a extinção desse

mesmo "mal", naturalmente com as armas que eles

mesmos vendem, em vez da sua assimilação. Esta,

na verdade, obriga a uma actuação em

profundidade, pois implica o estudo das

circunstâncias produtoras do "mal", levando a

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actuar sobre a sua raiz, isto é, sobre o "bem" e

o "mal", ou seja, sobre tudo.

Uma "reealpolitik" como o nome indica, age

sobre uma eficaz leitura da realidade e não sobre

fantasias próximas da banda desenhada.

A luta radical contra o "mal" consiste em

retirar-lhe domínios, quer percebendo-os e

actuando sobre as suas causas, e assim

esterilizando-o, quer por um exercício de análise

que o desconstrua.

Quantas vezes o "mal" não passa de um

preconceito ou, muito simplesmente, o nome por

que dá um interesse não assumido: a expulsão dos

cristãos-novos serviu aos que compravam as suas

riquezas ao desbarato, o extermínio dos judeus ao

armamento hitleriano e a caça ao "terrorista", se

não vigiada, beneficiará os que desejam o fim das

garantias humanas e, mesmo, a destruição da

democracia.

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(Não está em causa a necessidade de vigiar os

que, de todos os lados, conspiram contra uma

sociedade que se pretende cada vez mais

democrática - e teima em permanecer

democraticamente ligth, isto é, superficialmente

democrática - mas, e isso sim, chamar a atenção

para que não se deite fora a criança com a água

do banho.)

Mas actuar na raiz das coisas vai contra uma

sociedade que, não sendo ligth, pretende no

entanto parecê-lo. Afinal as coisas estão bem

como estão, pois os "lobbies" armamentistas

vendem cada vez mais (como não lhes recorrer

quando se quer dominar outrém e, aliás, a guerra

tem sido, ao longo da história humana, a

actividade tradicional dos grupos dominantes) o

negócio das drogas, as quais alheiam de um mundo

cada vez menos ligth, também se recomendam - os

novos tóxicos dizem-se eles mesmos ligth - e,

"last but not least", os que mais sofrem com isto

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tudo encontram-se, afinal, enfraquecidos além de

bem vigiados.

Outrora a pax romana, hoje a do “hamburger”,

mesmo que nos custe a saúde e o planeta.

Há que instruir, abrir mão de preconceitos que

tomam o valor de verdades absolutas, acabar com a

projecção dos nossos medos nos seres mais frágeis

da cadeia humana, em regra o elemento estrangeiro

e, na verdade, o minoritário.

Combater a crendice e a ignorância populares,

as quais ao longo da historia têm servido de

pretexto aos grupos no poder - ontem através de

um ensino elitista hoje, mais sofisticadamente,

pelo controlo dos meios de comunicação - para

armar o braço que mata o que não interessa a esse

mesmo poder.

Combater o mal onde não está (ou fazer guerras

para exterminá-lo como outrora as cruzadas contra

o turco) resulta num desbaratar de energias

32

que, bem aplicadas, poriam em causa a própria

necessidade de mando (não confundir mando com

gestão) criando, porventura, um mundo

verdadeiramente ligth.

Mas a realidade é que nas democracias, onde o

chefe necessita do voto popular para legalizar o

seu poder, a instrução tem tambem progredido na

justa medida em que permite a sua eleição. E,

pese à ilusão obreirista, a vida do dominado

comum, com cama, comida e circo garantidos –

leia-se reality shows”, concursos distribuidores

de dinheiro, etc. - surge, a seus olhos, desde

que a escassez não ultrapasse certos limites,

preferível ao risco da autonomia. Esta exige o

repúdio da lei do menor esforço e gerações de

servidão interiorizaram-lhe o pavor se é que,

muitos dos seus dirigentes, instalados numa

confortável "oposição", não são o seu pior

inimigo.

Enfim, do lado dos que mandam e do outro, o dos

33

que, em democracia representativa, fazem mandar

os que mandam, um mesmo objectivo: uma vida

ligth.

O suícida iluminado

A qualidade ligth da juventude torna-a

idealista, fazendo-a:

Acreditar em soluções "fáceis" (e tantas

vezes difíceis para o Outro)

Separar domínios da realidade que,

interligados, obrigam a um cuidadoso

manuseamento.

Não admira, pois, que entre os caçadores de

energia ligth, ou ligth-jovem, quais pedófilos do

espírito e não menos senão ainda mais perigosos -

porque raramente denunciados - se encontrem as

mais diversas associações com respostas

aparentemente radicais para tudo mas, na verdade,

34

infantis e arcaicas.

Assim:

Da união do factor ligth da juventude com a

comum projecção do desejo sexual resultam

símbolos sexuais para consumo das várias

indústrias.

Jovem imbuído da ideia de uma pátria a

defender dá origem ao "valoroso" soldado

desconhecido (se ninguem defendesse "a pátria"

não haveria guerra de todo)

O militante neo-nazi é, em regra, um jovem

apanhado por uma ideia caduca e fictícia e,

quando ao serviço de um partido religioso, de uma

"jihad", o jovem "luminoso" transforma-se num

suicída-bomba, o qual, à semelhança dos faraós

antigos, se faz sepultar rodeado de comitiva com

a diferença de que a corte faraónica, comungando

da mesma crença do rá, viajava para o outro

mundo obedecendo a um protocolo que já lhe

presidira à vida e para o qual se prepara desde a

35

nascença, enquanto o suicída-bomba apanha as

suas vitimas desprevenidas, num acto que

funciona como o de um justiceiro cego e surdo,

mas vociferador de fogo, sob cujo poder cada qual

paga pelo facto de ter nascido, independentemente

da sua situação ou ideias.

Se a morte do bonzo imolado na praça pública,

durante a guerra do Vietname ou, mais

recentemente, a do estudante Ian pallak,

reenviam para um protesto que se quer, a par e

passo, testemunhado - pois trata-se de um

suicídio "lento", quase se diria ligth, como se

fosse possível retirar-lhe a dor para ficar

apenas o acto, o protesto, qual morte oferecida à

contemplação do transeunte e apelando a uma

adesão aos pontos de vista do sacrificado, num

processo que lembra a narração bíblica da agonia

de Cristo, o acto do suicída-bomba, pelo

contrário, irrompe ditatorialmente e logo mata,

numa destruição orgíaca que o seu autor pretende

36

regeneradora mas na qual ele próprio conserva um

lugar à parte, pois, como qualquer ditador

acumulando bens na Suiça para quando deposto, o

suicída-bomba reserva-se tambem um lugar

privilegiado no pós-chacina: o além reservado aos

heróis da “guerra santa.”

O assassino-bomba é indiferente aos que com ele

morrem pelo menos a dois níveis: retira-lhes a

vida e não lhe importa que as suas vítimas

acreditem, ou não, no além. Ele, porém, morre

feliz porque a sua acção o há-de ressuscitar.

Qual o adolescente, encandeado de ligth, criado

num ambiente instàvel e violento, vendo os seus

amigos e familiares maltratados, a braços ele

próprio com as crises próprias da sua idade, que

não se sente tentado a matar ao mesmo tempo

vários coelhos: "dar uma solução" aos seus

problemas, conferir um sentido à sua vida,

tornando-a “útil” a uma causa e, ainda por cima,

ganhando a garantia da sua entrada no rol dos

37

heróis santos?

O casamento entre dois princípios tão opostos,

de um lado a luz e a vida e do outro o martírio

não devem admirar-nos: muitos dos melhores

intelectuais do ocidente a ele se entregaram na

nossa idade média. Isto é, demos o exemplo.

Talvez seja util pensar como nos libertámos de

tais prisões, pois só assim evitaremos as penas

com que, quer os carrascos, quer as suas vítimas,

nos ameaçam.

O corpo ligth

O corpo, pela sua própria existência, invoca a

morte.

Como enaltecê-lo sem torná-la igualmente

presente, tanto mais que, a ocidente, os partidos

das religiões tradicionais estão em fase de

decadência - e mudança - e o além-túmulo passa

38

por uma etapa de reformulação?

Se é que este novo ensejo de crença no além não

tem a ver igualmente com o culto do corpo numa

sociedade em ressaca de ilusões políticas, que

tudo reduz a sexo e dinheiro, deixando um sabor a

nada nos bolsos, cheios de bingalhada, o dos

pobres, e de irisão o dos ricos, e frustrando a

ambos.

Desaparecida a essência, e com a sociedade

incapaz de admitir em seu lugar a existência e a

concomitante responsabilidade, tudo se assemelha

e, por fim, nada vale.

Resta o refugio no além, a crença num novo

paraíso, ja nem dependente da concepção dos

partidos que velam por tais coisas mas

fundamentado na ciência, nos testemunhos dos que

passaram pele estado de "morte virtual". Ou ainda

um novo misticismo, igualmente ligth, onde cada

um é deus sem ter que criar coisa nenhuma e muito

menos a si próprio.

39

(Longe da nossa intenção arvorarmos em

defensores ou blafesmadores de um "além", do

qual, na verdade, ninguém sabe. Mas não deixamos

de fazer as associações que achamos possíveis

entre crença e desespero social, da mesma forma

que Holywood satisfaz os seus clientes com tanto

mais fantástico quanto mais miserável a sua

realidade).

O além, no ocidente, libertou-se dos seus

custos e à sua porta já não se encontra, nem o

cão das três cabeças nem o anjo da divina

balança aferindo passados.

O novo éden é igualmente ligth e ninguém lá

pede o sacríficio do próprio filho. (Na verdade

ele custa, segundo Erno Gruen, a separação de si

mas isso já entrou nos costumes, ou seja,

aprende-se primeiro em casa e depois aperfeiçoa-

se na escola)

O "outro mundo" tornou-se também ligth porque

40

abstrai do bem e do mal e a ele acede quem quer

que tenha vivido neste: éden democrático, direito

nascido com a espécie humana, já que os restantes

animais continuam sem alma, condição sine qua

non para que o humano a possua e os maltrate.

No reino animal, assim como na taxinomia, o

homem domina.

E se o acesso ao além se tornou aberto a

qualquer racional é porque a sociedade ligth é

massivamente segregadora. Mas como esperar o

contrário se ainda não se aprendeu a viver sem um

bode expiatório? E como não há-de ele surgir na

figura daquele que, às massas, lembra os tempos

ainda recentes da sua própria escravatura: o

emigrante, o sem direitos, diariamente suado para

conforto do branco ocidental? Não é ele a

testemunha incómoda do nosso êxito?

Outrora o paraíso tinha o preço dos cilícios e

o castigo da carne era a sua senha, a sua palavra

41

de passe. Mas como acreditá-lo, ou, mais grave,

ter dele necessidade, depois que se "descobriram"

as novas terras, importaram como escravos os seus

povos, se inventou a máquina a vapor e, abolido

legalmente o tráfego humano, se transformou a

escravatura em "fluxo migratório"?

Sem tudo isto alguma vez o ligth, aqui e agora,

se imporia?

O culto do corpo tem a marca do desgaste nas

horas suadas no ginásio mas, na publicidade, na

montra social, os corpos não se cansam nem

envelhecem, as coisas não têm preço e, quando o

assumem, o pagamento é cheio de facilidades e

mesmo alegre: o consumo feliz.

A sociedade industrial, com a sua cadeia

produtiva, o gaz das fábricas, a fuligem e os

bairros operários nunca poderia ser ligth, pois

nela o parto das coisas era por demais evidente e

a dor sempre presente. O "self made men" do sec.

42

XIX e inícios do XX, o homem que conquistou a

pulso uma posição no mundo, não é um exemplo de

humanidade ligth porque traz no rosto o suor da

sua ascensão. Pelo contrário, o "feliz" ricaço

(os ricos são "felizes" numa sociedade que

associa dinheiro e bem-estar) que obteve a

fortuna por herança, numa gôndola ou concurso de

TV, esse sim, é ligth.

A sociedade pós-industrial pretende-se ligth,

pois nela o dinheiro produz dinheiro, o suor dá

lugar ao serviço, a fábrica cheia de barulho e

tumulto transformou-se no trabalho em casa ou,

pelo menos, deixou de ser o seu símbolo. E a

produção pesada, deslocando-se, por razões de mão

de obra mais barata, para as zonas pobres do

planeta, donde o ligth anda erradicado ou

pertence a uma ínfima minoria, tende a fazer

desaparecer os detritos industriais do Ocidente.

Os países ricos pretendem ser visualmente

ligth.

43

O ligth esbarra a todo o momento na realidade

dos conflitos sociais, no cancro do pulmão, nas

águas inquinadas, no ar irrespirável, nas marés

negras, na extinção das espécies, na ameaça que

nos suceda o mesmo.

Mas ser ligth é viver alheio disto tudo e,

principalmente, de si mesmo, possuir uma

existência sem mancha de nafta e sobretudo sem

peso. Como, noutro contexto, dirá Kundera "a

insustentável leveza do ser", cuja fórmula não

deixa de marcar a capacidade humana em se

ausentar do corpo, da infra-estrutura que a marca

e condiciona.

O preservativo é o objecto mais ligth dos

nossos dias, senão um seu símbolo: retém o mal,

exorciza o excesso e... afasta o Outro.

O turismo, nascido na classe ligth, não pode

44

ser senão ligth. Ele transforma o planeta numa

estrada percorrida em poucas horas, iguala a

paisagem, consome-a num "cocktail" onde o

dissemelhante deixa de ser eficaz para se erigir

numa aparência de paleta de pintor: as cores,

tantas vezes puras, estão lá mas o importante é

o resultado no quadro, a obra final.

Depois da viagem turística importa mais a

amálgama de sensações recolhidas que o saber em

profundidade deste e daquele sítio. Dai o valor

do bilhete postal que apresenta a imagem de um

humano, desnudo e bronzeado e que se vende em

qualquer lugar onde haja Sol e praias. Ao

turista, finalmente alheio ao que visita, a mesma

foto serve para diferentes legendas: Portugal,

Maiorca, Haiti, etc..

Viajar é cansativo e inseguro e o "ligth

travell" sintetiza, em modo de viagem, o que o

consumidor deseja da vida: uma travessia

anestesiada, isto é, sem peso.

Viver sim mas com reservas.

45

Mais do que viajar o interessante é ter

viajado, haver acumulado kilómetros e circuitos

do mundo, mas tudo em tamanho de algibeira,

consumível, filmado e dócil: ligth, sem guerra ou

fome. Local contaminado por qualquer destas

peçonhas não é visitável embora alguém lá tenha

de viver. Por fim, o turista espalhar-se-à por

uma reserva fortemente vigiada, cujos postos de

controlo e segurança se desvanecerão na paisagem

de modo a fazerem-se esquecer.

O mundo ligth é ameaçado a todo o momento pela

investida da vida e dos seus problemas,

nomeadamente os da sobrevivência, pois resolve-os

apenas a contento de uns poucos.

Os "happy few", cristalização visível de uma

época que erigiu o trabalho como modo de vida mas

ao qual uns tantos olímpicamente escapam,

realizam o protótipo da vida ligth. Nada os

preocupa e vivem num mar de facilidades e prazer

46

- assim os projecta o pobre diabo que, da vida,

só conhece o esforço e neste (que remédio!) busca

a sua gratificação, usando a cruz de Cristo ao

peito para se mentalizar do seu destino e auto-

consolar.

O cristinanismo, propagado no meio escravo e

conhecedor do esforço, é tudo menos ligth e o

período renascentista da igreja surge, com o

Bórgia, nem mesmo ligth mas corrupto.

Na verdade, não há confissão religiosa ligth

pois são domínios que se opôem. Quer porque a

concretização eclesiástica de uma religiosidade

- o partido religioso que, assente na terra e

quantas vezes na lama, a propaga e defende - se

vê a braços com tarefas muito pouco ecuménicas,

quer porque qualquer deus é, por natureza,

totalitário. E a totalidade não é ligth.

Mesmo a crença cátara, que permitia ao seu

adepto o alheamento de muitas das regras que o

47

cristianismo impõe, concluía com a

obrigatoriedade do jejum antes da morte.

Uma religião ligth anunciar-se-ia, pois, inútil

apesar de, num primeiro tempo, a ascese que

qualquer via religiosa implica parecer possível

de conjugar com o afastamento da vida real que o

ligth opera. Mas a renúncia deste último vende-se

como um produto acabado, uma "pizza" pronta a ser

comida e nunca como um percurso a realizar.

Se, para obter uma vida ligth, devo submeter-me

a cinquenta anos de árduo trabalho, de imediato

essa vida deixa de ter valor ligth.

O ligth é alheio ao esforço e ignora-o.

Alheia à dor, a anestesia é o domínio, por

excelência, do ligth.

A monarquia moderna, onde ela resiste, bem

gostaria de ser ligth se, com demasiada

frequência, a não envolvessem escândalos e

descalabros, pois, lá onde sobreviveram às

mudanças, o rei e a rainha, preservados para

48

exemplo do povo, são seres para além dos

conflitos, garantes de uma unidade composta de

todas as diferenças. Anestesiadora do

dissemelhante e enaltecedora do que une,

atenuadora das dúvidas do talvez, a monarquia

constitucional, liberta da decisão política e do

seu ónus, permite-se ser - e deve sê-lo para que

funcione - cada vez mais ligth, mais passageira,

menos pesada na vida dos seus cidadãos. Como

modelos cruzando a "passarelle", os reis e as

princesas mostram as boas maneiras, oferecem-se

como profissionais da educação e da generosidade.

Dizendo que a garrafa está meio cheia, em vez de

meio vazia, a monarquia tem por mister mostrar o

lado agradável da vida, a sua possibilidade de

não ser uma corrida contra o relógio nem um mar

de dores. O cidadão comum conhece-as bem demais

para necessitar que lhas lembrem. Por isso ao rei

e á rainha perdoa-se o "doce fare niente" o qual,

na verdade, cumpre a função de se mostrar

possível ou, dito por outras palavras, tornar

49

evidente que o reino da política e da luta pelo

poder é susceptível de ser olimpicamente

ignorado. Uma vida ligth, suspensa no abismo da

feroz concorrência mas a ela aparentemente

alheia. E como vive-la permanentemente afastado

das mazelas do dia a dia, das doenças sociais e

outras, seria, afinal, imperdoável aos que

cumprem funções assim representativas, o rei ou a

rainha - e a necessidade da dupla heterossexual

já diz da imagem de "harmonia conjugal" que se

pretende, qual anúncio publicitário, vender -

obrigam-se a um sem número de visitas a doentes,

hospitais e centros de infelicidade. Os reis só

usufruem uma vida ligth desde que,

periodicamente, mergulhem no trágico humano,

preço, afinal, que a burguesia lhes impôs para

tolerá-los. Mas lá estão para evidencia da

possibilidade ligth e, no limite, e não menos

desprezível, afastar pelo exemplo o povo da

"sujidade" da política, colocando a reparação dos

males sociais, da guerra, enfim, na esfera da

50

caridade. Sua Alteza visitou o asilo Tal. Quando

o membro de uma família reinante vai mais além e

chama os bois pelo seu nome, corre o risco de

perder o "status".

Nascido para não agir, não é o menos irónico

dos destinos, este do monarca que, outrora,

clamava quero, posso e mando!

No fundo todos queremos uma vida de reis que

nem sequer mandem porque, enfim, mandar pressupõe

decidir.

Seja ligth e nem sequer seja!

A leveza absoluta.

Arte, divertimento e ligth

A pop art, ao descontextualizar os objectos

familiares, retirando-os da paisagem mercantil

51

torna-os objectos ligth: a lata de sopa de A.

Wharol ou o urinol de M. Duchamps libertaram-se

do servilismo da utilidade primária a que estavam

destinados e ascenderam à categoria de objectos-

mundo, auto-suficientes e capazes, eles também,

de uma cosmogonia. Retirados do consumo,

simbolizam-no: a lata - o “fast-food”, o urinol -

o cosmo das necessidades humanas. E, se por este

lado, continuam a não ser ligth, pois constituem

uma memória, quer de um ritmo vida que nada tem

de ligth, quer da fatal condição humana, por

outro, o seu destaque - conferido por alguém que

se diferenciou do comum mimando Midas que fazia

ouro quanto tocava - confere a tais objectos a

singularidade do único, do que saiu da série, do

que se libertou da massa informe e suada. Nesta

perspectiva, afastados da sua origem, tornaram-se

ligth, à semelhança do universo célebre que lhes

deu origem, o qual, por via da indústria que o

explora, retém da vedeta o “glamour”, as jóias ou

o champagne mas não a dura aprendizagem do

52

ofício, o levantar pelas seis da manhã para

comparecer no terreno nas filmagens às oito, ou o

incessante tormento do artista em prol da sua

obra.

As indústrias do divertimento vendem ligth mas

trabalham duro.

A multinacional do futebol é a que mais envolve

o consumidor nos seus meandros financeiros ao

publicitar as compras e transferências das suas

vedetas por preços astronómicos para o comum dos

mortais. Num ápice o consumidor é posto perante

ordenados que nunca virá a ganhar e, não menos

perverso, levado a aceitar o sistema que os

permite, com tudo o que significam de injustiça

social ou, dito doutra forma, o consumidor acaba

por aplaudir o que o esmaga.

O futebol é actualmente a melhor montra do

capitalismo, pois ao contrário do actor de

Hollywood, tambem empregado de uma indústria de

lazer onde as cabeças de cartaz são bem pagas mas

53

de cujo "cachet" se fala menos, o futebolista

traz o preço estampado na camisola e lembra ao

cidadão comum, não só que ele também o tem como a

ridicularia do seu valor.

Nenhum outro sector do mercado tornou tão banal

a aplicação do verbo "vender" à pessoa humana

talvez porque, bem implantado popularmente,

desde cedo a massa conhece o preço das coisas.

A passiva aceitação por parte das camadas que,

precisamente, pior vivem, de ordenados

desproporcionadíssimos em relação às necessidades

humanas constitui a ginja no bolo da edificação

da insensibilidade capitalista.

Com que direito combato um sistema cuja vedeta

incenso?

A noção de que pobreza e riqueza são dois

compartimentos estanques, alheios um ao outro, é

um dos aspectos mais conseguidos da vitória

54

capitalista a qual vende por inato o resultado de

uma longo processo produtivo cujo fermento é a

injustiça.

O condomínio luxuoso, cercado por muros e

vigiado por video, convive com o bairro de lata

mas essa vizinhança já não escandaliza. Pelo

contrário ela é apreciada como uma representação

na terra do melhor e do pior, do céu e do

inferno, os quais "sempre existiram", para graça

de uns e castigo doutros, caldeada esta

interpretação por uma cultura oriental,

apressadamente digerida, a qual justifica a

existência num ou noutro lado da barricada

através de fatais “karmas”.

A idade média imiscui-se na era pós-industrial,

não pelo lado da solidariedade e dever cristão

para com o Outro, mas na sua parte mais perversa,

a que nesse tempo impedia mentalmente o servo da

gleba de se imaginar com direito à mesa do senhor

55

a não ser que fosse à de Cristo e, naturalmente,

depois de morto.

Ao aceitar que uns ganhem num minuto o que

outros, na melhor das hipóteses, levarão anos a

amontoar, o futebol banalizou, aos olhos do

cidadão comum, o ligth de uns poucos e, mais do

que isso, fê-lo com a benevolente cumplicidade da

hard vida da grande maioria.

A justiça tornou-se uma linha recta e

proporcional: se eu pago tanto por bilhete para

ver Fulano de Tal, este deve ganhar X vezes as

pessoas que o querem ver, transposição perversa

de um seu a seu dono alheio aos condicionalismos

da coisa, às iniquidades do nascimento, às

necessidades reais em questão. Não admira, pois,

que qualquer imposto progressivo sofra a maior

resistência: ele é um dos impostos menos ligth, o

que melhor reflecte sobre quem cai.

56

Arte e religião

Não ser de si próprio é o ponto de união entre

o místico e o artista, pois ambos obedecem a um

dever mais alto, situado além do aqui e agora.

Dai a actualidade de todas as Antígonas, pois o

chefe de estado obedece também a um dever

superior - o da sociedade civil - e os dois

poderes raramente se entendem.

O artista e o místico trabalham na restauração

do tempo mítico - lá onde o deus e os animais

falam - enquanto o chefe de Estado apela ao bem

geral e profano.

O artista regressa ao mito enquanto faz a sua

obra e o místico realiza o mesmo percurso pelo

trabalho sobre si próprio até, finalmente, sentir

a " graça".

Tratando do assunto noutro texto (1) evoque-se

no entanto a afinidade entre o actor e o místico

com ambos a fazerem do próprio corpo uma ponte: o

57

primeiro para a transcendência através do

personagem e o último, tantas vezes através de

alguém objecto da sua crença – Buda, Cristo,

Maomé, ou Outro - atingindo o divino. Mas a

regra parece geral: o estilo da obra de arte

reflecte a vida do artista e nesta medida vida e

produto artístico – ou transcendência -

misturam-se.

O fabrico da obra artística não é, pois, ligth

e, muitas vezes o resultado, na vida do próprio

artista, dos objectos que produz tornam-no

maldito aos olhos do poder estatal ou

eclesiástico.

O místico e o artista seguem uma razão

diferente – e tantas vezes oposta – à razão

apreciada pela sociedade onde se incluem e são

disso testemunho o que uns e outro sofreram em

campos de concentração ou na fogueira. Ou, mais

vizinho a nós, a marginalização nas prateleiras

58

do não promovível pelas multinacionais do gosto.

Dócil é o "kitsch" que merece ser ligth,

quanto mais não seja pela recusa em enfrentar as

questões da sua época, pelo refúgio nas receitas

passadas, preferindo o conforto do reconhecimento

à estranheza da solidão.

O "kitsch" realiza a expectativa do Leitor

comum, apresentando-lhe a obra tal como ele ou

ela, cidadãos vulgares, a conceberiam, sem

surpresa e com o desenlace esperado, segundo as

vias consentâneas com a moral oficial, os seus

elementos enquadrados no mais convencional

modelo. As representações estereotipadas do

"kitsch" são o exemplo de um universo depurado do

seu perigo e das suas ameaças.

Cultura e ligth

59

A “cultura de massa” é ligth e obtém-se através

de pílulas pouco concentradas de factos

culturais, datas, "fait-divers," episódios

apimentados, capas de revista, nos melhores casos

edições de bolso.

Uma sua característica é a separação dos

saberes em compartimentos estanques a qual

transparece nos testes e concursos que a

propagam: quem fez isto? Em que ano aquilo?

Questões como "Relacione X com Y" próprias de

quem aprendeu a pensar em vez de decorar são

estranhas à "cultura de massa."

A alta cultura, (por oposição a uma "baixa

cultura" tal como outrora o latim popular ou

"sermo popularis" se opunha ao latim erudito)

enquanto interligação e esforço globalizante,

fica fora do domínio do cidadão massificado,

capaz de saber uma efeméride, uma data, mas não

de discorrer e correlacionar eventos, para além

do indispensável ao dia a dia de uma sociedade no

entanto complexa.

60

Herdeiro do camponês que veio para a cidade e

se tornou operário, este cidadão, que só

recentemente conquistou o direito a férias pagas,

e, portanto, ao lazer, cuja integração na esfera

do consumo é recente, tornou-se um elemento

fundamental da sociedade de consumo, senão a sua

razão.

Tudo se lhe vende e tudo ele hipoteca para

poder comprar.

A integração no consumo não seria possível, por

um lado sem a luta levada a cabo pelo movimento

operário no século passado e parte do século

vinte e, por outro, sem uma resposta integradora

do próprio capital divulgando ideais

igualitários acessiveis através do mercado: tem e

serás. O acesso ao trabalho - alcandorado a

direito – fez crer que o topo da escala social

estava o alcance do trabalhador desde que ele

pudesse vender a sua força de trabalho.

Na realidade, neste mesmo mercado nenhuma

ascensão social se realiza sem uma forte

61

componente de exploração do esforço alheio, ainda

que este seja capitalizado sob a forma do prémio

que sai na gôndola.

A alta cultura (ou erudita) exige estudo e

constrói-se com a paciencia de um entomólogo,

precisamente o que o homem e a mulher comuns não

possuem, pois saem esforçados das oficinas onde

passam o dia, seja ela a caixa do supermercado, o

balcão de atendimento ou a cadeira frente ao

computador debitando textos alheios. Quanto às

horas de descanso resta a televisão e o

entretimento o qual, como o nome indica, serve

para entreter enquanto não surge de novo o

fundamental: o trabalho. Há também as férias mas

a necessidade de valorizá-las pela sua

demonstração social, não pouco tempo rouba ao

que poderia ser um retiro regenerador. Porém,

para aceder ao tal retiro, o cidadão comum

necessitaria de uma cultura que não fosse de

massa e o ciclo vicioso encerra-se.

62

Cidadão-spaguetti porque massificado e

massificado porque cidadão pertencente à massa, o

novo proletariado de colarinho branco possui uma

única forma de abandonar, antes da reforma, a sua

situação de pagador de prestações: os jogos de

azar, sejam eles o totoloto, o totobola, a

lotaria, etc., nomes dos vários anzóis que dão

cor à sua dura luta por um lugar ao sol.

Neste a vida a sério, a vida com cultura,

trabalho e lazer, tudo interligado e constituindo

um todo, uma vida ligth, não já porque desligada

do seu valor mais profundo - um fazer que lhe

confere sentido - mas porque, enfim, lhe foi

permitido prescindir do dramatismo do seu peso,

tornar a passagem por esta terra um mero jogo

onde ócio e labor se completam e não excluem.

Ironia do destino, esta mesma vida depende

mais de uma atitude mental que de uma carteira

cheia. Mas não é a menor vitória do capitalismo

ter associado felicidade e dinheiro.

63

A sociedade cristã não resistiu ao estado, ruíu

sob o consumo e sobrevive em alguns iluminados

que, para melhor se protegerem, só para si se

assumem.

A “cultura de massa” é ligth por uma

negatividade dupla: impregna o seu possuidor de

uma saber seccionado, às “prestações”, não

globalizador e, pois que de cultura se trata - e

"não há maior crime do que o que se perpetua

contra o espírito" , impõe uma separação nele

mesmo: de um lado a vida, do outro os factos, as

datas, os nomes, enfim, os mexericos.

O jornalismo de massa pretende colmatar esta

diferença entre dois ligthes: num a caixa do

super, condenada a sê-lo toda a vida, e do outro

o romance – rosa ou não, pouco importa – vivido

pelo poderoso entre cruzeiros em ilhas

paradisíacas e veiculado pela revista vip.

Ligth contra ligth.

Ou luta onde os primeiros são cúmplices da

64

maquinação que os destrói pela leitura – e compra

- do que a publicita, dando-lhe a aparência de

uma necessidade.

A caminho do lugar da escravatura, o escravo d'

hoje lê o artigo que, ou o distrai da sua

condição, ou o convence da sua necessidade,

senão, e tal define o “jornalismo popular”,

reunindo na mesma leitura a ambos os aspectos.

A cultura do esforço, ou erudita, liberta e

diferencia enquanto a “cultura de massa” nivela e

prende.

Produto de um ensino que a democracia permitiu

à custa de torná-lo massificador - resta saber se

tal preço seria obrigatório - o cidadão comum

completa, em adulto, nas lojas de trezentos o

saber que aprendeu em edições truncadas de bolso.

Homem erudito e homem comum têm hoje de idêntico

um mesmo ponto de partida: a escolaridade

obrigatória mas, depois, nada mais os une. Embora

65

ambos trabalhem, o primeiro, cumprido o horário,

encontra ainda fôlego para ir mais além, ocupando

o lazer num esforço de mais saber que é tudo

menos ligth.

A esperança de que a revolução tecnológica

permitiria ao ser industrial a paragem da cadeia

que lhe deu vida mas trucidou manter-se-à?

"Para que me serve isto?" é a queixa

fundamental do estudante comum, amestrado desde

criança num gosto ligth. A cultura de

relacionamento (para diferenciá-la do saber de

papagaio) é, como acima se disse, algo que se faz

de aparentes inutilidades as quais, ao longo de

uma imensa paciência, compõem o "puzzle" do

saber. Mas a pressa, a necessidade da

rentabilidade não permite, por um lado, o tempo

que o "acabamento" de um tal cidadão exige e, por

outro, a noção do próprio esforço é já estranha

aos "meios de comunicação" que preconizam e

vendem o "fast". Assim, o jovem da classe

66

popular é levado pelas revistas e programas que o

manipulam - e já por si herdeiro de pais

manipulados - a querer depressa a preparação

profissional, que o fará um parafuso rodando

apressadamente, até que chegue à reforma,

passada, no melhor dos casos, rodando também como

uma borboleta nas asas do turismo sénior.

A separação dos saberes é ligth pois a parte

não sabendo em que zona do todo se insere, ignora

o seu papel e abstrai da sua responsabilidade.

A cultura erudita sabe porque sabe, permite a

ponte entre os assuntos e, no limite, reduz tudo

a uns poucos de temas obssessivos para a mente

humana. Pelo contrario a “cultura de massa” se

não custa a adquirir, porque vai de encontro ao

fácil e desejável pela lei do menor esforço,

aprisiona o seu cultor na teia dos seus

mexericos, dando-lhe da vida uma imagem

fraccionada.

A “alta cultura" simplifica, despoja e,

67

finalmente, liberta.

O desinteresse pela intervenção política, pelo

agir civilmente, deve-se também à retirada para o

privado, para o sectorizado do que é parte de um

todo e seu componente. Não é evidente que a

complexidade social leve a uma maior ignorância

da sua trama. O que dificulta o seu deslindar é a

fragmentação do real em muitos reais que se

apresentam como estanques. Como se alguém

conscientemente resolvesse dividir a realidade

numa multiplicidade de reais para melhor

controlar a de todos, apresentando-os como

independentes.

A realidade abstraída da sua natural

complexidade e contundência, despida e asséptica

tal como uma casa do "big brother" onde tudo se

passa excepto o que passa no mundo: pessoas

vivendo uma quotidiano onde o que importa é a

luta pela sobrevivência, a conquista do prémio,

68

fechadas sobre si , cada qual metida no seu

próprio casulo, na sua vida pessoal, nas suas

tricas.

Vida de chinelo.

Para alcançar uma maior eficácia este género de

“shows” deveria submeter os concorrentes a uma

operação que lhes retirasse a memória do

passado. Então o corte com o exterior tornar-se-

ia completo e o espectador ganharia a visão de

comportamentos reactivos autênticos,

"espontâneos", dignos de insectos, isto é, não

determinados pela memória social, política, etc.

Comportamentos ligth, puramente ligth.

A "alta cultura" responsabiliza mas o mundo

ligth, nos cartazes que o anunciam, é

predominantemente jovem, pretensamente

irresponsável, um universo no qual a morte é um

conhecimento, não uma experiência

consciencializada.

69

Morrer não é ligth.

A cremação aumenta os seus créditos, não apenas

porque seja mais limpo e deixe os terrenos livres

para o imobiliário mas porque, no fundo, afasta

para sempre, ou reduz às dimensões de uma pequena

gaveta, o que outrora exigia um túmulo.

Não se morre, não se fala da morte, a cerimónia

fúnebre tende para reunir a estrita família que,

lamentavelmente, tem de assistir ainda ao evento

e, depois, torna-se à vida, o mais possível

ligth.

A sociedade ligth, nascida com a tecnologia e o

guindaste, ou quando este se miniaturizou de modo

a caber no bolso de cada consumidor, abomina o

trabalho e quer tudo feito, tudo pronto, tudo

comprado e sem sequer provas no alfaiate. Este,

tornado uma profissão de luxo, consagra-se aos

poucos cujo rendimento lhes permite a recusa

dessa "ligeireza".

Ao contrário do apregoado, a vida do poderoso

70

não é ligth mas cheia de tudo. E, se surge, aos

olhos da maioria carente, como ligth, é porque

ela confunde a facilidade que o poderoso possui

em satisfazer todos os itens de uma vida plena,

com o seu resultado.

O pleno não é ligth.

Sempre mais claro...

A segurança ligth é eficaz e não se vê.

Ela rodeia-nos sem nos constranger como um halo

espiritual ou um escudo invisível. Serve e não se

impõe, esta lá e não se afirma, como num hotel de

cinco estrelas onde tudo se vigia mas não se

capta nenhum olho observador. E a vida decorre

simples sob um exército tecnológico, um

verdadeiro estado de sítio a rodear cada um dos

nossos movimentos. Mas o que importa é a

aparência e o ligth vive da ilusão e não da

71

verdade.

Porque o ligth radica numa verdade escamoteada

e é verdadeiro na sua mentira, a sua margem de

manobra é escassa e necessita de uma realidade

tratada mas, ó paradoxo, com aparencia de

espontânea. A sua imagem ideal será a do cruzeiro

num oceano circundado de arame farpado. Mas da

popa do navio só se distingue o horizonte límpido

e sereno e a naturalidade dos gestos nunca

esbarra no arame farpado das fronteiras. Então a

espontâneadade dos movimentos é possível, pois

que inofensivos e sem alcance.

A limpeza do ligth é da ordem do genocidio

depois do qual, cobertos de terra os corpos do

crime, o seu autor exclama, sentado no terraço do

seu lazer: calmo é o campo!

Porém o onze de Setembro veio lembrar ao

ocidental que a sua reserva, alternativa ou não,

72

findou: tudo se passa aqui e a guerra está em

toda a parte. O mundo, tornado doravante pequeno,

possui uma memória que tudo regista e o que se

faz além pode ser pago aqui.

Para o mal e para o bem.

O onze de Setembro trouxe, pois, ao âmago do

império outrora branco, o que sobretudo não

desejávamos ver, ou tanto já banalizámos que

aceitamos jantar como certos antigos: na presença

de escravos esfomeados, afim de melhor

consciencializarmos o apetite.

Quem, perante um ecrã que debita corpos

dilacerados, quer pela fome, quer pelos seus

efeitos mais afastados, ainda ousa fechá-lo

porque, enfim, “está a comer”?

Janta-se no regozijo de não pertencer à maioria

dilacerada pela injustiça, concluindo com um

ámen, nem já necessariamente dita, porque

73

interiorizada, oração: "Obrigado meu Deus porque

os que vejo diariamente morrerem por um bocado

de pão não sou eu nem nenhum dos meus".

Comemos na sala das autópsias, e, efeito não

menos precioso, grudamos com uma solidariedade de

potenciais "vitimas" (livres graças ao divino, à

sorte ou, simplesmente, ao termos nascido na

parte "boa" do planeta) a família que somos.

Família ou, dado o seu contexto, mafia?

Seguro e ligth tornaram-se dificilmente

conciliáveis e o pó do antrax pode atravessar num

mero envelope as fronteiras. Mas a cegueira

humana não desaparece pelo simples facto de

encontrar cura no oftalmologista. Tal como a lei

do menor esforço é inerente ao humano, por mais

homens, mulheres ou crianças esforçados que o

mundo prodigalize, assim haverá sempre quem,

apesar das condições adversas, queira viver, num

74

universo de brincar. O ligth será, pois, a sua

senha, doravante restrita a mundos cada vez mais

fechados e cenografados, subscritos em pequenos

utensílios que trazem a sua marca, fetiches que o

cidadão transporta consigo e lhe alimenta a

ilusão de uma vida ausente de qualquer risco.

Ligth de bolso, para todo o serviço e ocasião.

Maço de tabaco ligth, yogurte ligth, chocolate

ligth, toda uma panóplia de objectos que,

reunidos, preenchem as horas de um dia bem

ocupado, um quotidiano vivido sob a sigla do

seguro, mesmo no meio da ameaça das bombas.

Quanto menos espaço tem o canário não mais canta?

Frenesim de morte.

Ideal ligth

Quanto mais o mundo se torna insuportável e

conflituoso mais a vida ligth surge como um ideal

necessário, senão urgente.

75

A confiança do investidor influencia o clima

económico e a sua instabilidade não auxilia à

realização dos dividendos. Consumidor e

investidor têm, pois, de manter a calma, estar

seguros de que o seu dinheiro terá uma volta bem

recompensada. Os sobressaltos não podem exceder

os tanti quanti habituais ao normal processar do

mundo que ora temos. Quanto vá além é nocivo.

Ligth para todos, mesmo à custa da mais negra

escuridão para a maioria.

O avesso do ligth não oferece surpresas.

Outrora a conquista esforçada do paraíso, agora

a felicidade automática, o prazer sem ascese.

Pronto a ser saboreado.

Ligth.

E poderia ser doutro modo numa sociedade

embriagada pela bugiganga e obsessão do domínio?

76

O que no ocidente circula na pub, nos media, é o

delírio de um hipotético bem-estar, apesar do

sempre possível tornado, da queda do avião ou,

ultimamente, da bomba terrorista. De um lado o

desespero e do outro a surdez, pois, como repetia

Abbé Pierre, o dinheiro gasto a combater o

terrorismo daria para melhorar a sorte dos que o

justificam.

Enfim, nada disto é ligth, é mesmo o seu

contrário, apesar da onde de música que a tudo

invade, num desejo de submergir o ruído da vida

num outro que o substitua, cadenciado e idêntico,

monotonamente agitado e adormecedor.

Ligth.

O ouvido ligth

O silêncio ou a sonoridade que nos era

permitido ouvir como bruá-bruá do local público,

77

a confusão das vozes no café, o tinir dos

talhares no restaurante, tudo isso foi abafado a

partir da década de oitenta pela invasão de um

exército de matracas sonoras, com mais ou menos

talento, mas todas elas idênticas, de modo que

passar de um texto musical a outro é o mesmo que

permanecer no mesmo: a repetição, a segurança de

não ouvir nada de diferente e, portanto, de novo,

a incriatividade e a normalização de qualquer

surpresa.

Não há sítio comum que não tenha por fundo a

sua "música ambiente", na verdade nem de fundo

mas de acompanhamento, senão mesmo sobreposta ao

volume da voz em conversa, numa continuação da

musica colada aos ouvidos, pois a necessidade de

ouvir-sempre-qualquer-coisa expandiu-se com o uso

dos audiofones uniformizando as diferenças.

A música que ensurdece reduz o mundo a uma

paisagem onde os outros falam e gesticulam mudo.

Um mundo que o pseudo musicólogo - na verdade

surdo à custa de ouvir o mesmo - recusa, ou

78

igualiza, numa operação ligth de coar a dor para

reter a militarizada dança.

A insensibilização.

Lá, nas alturas da repetição contínua, absorvo-

me num eden anulador do Outro, o qual não me

perturba devido à barreira do som que lhe ergo.

Universo sonoro ligth, ambiente ligth que

transporto comigo para o meio inclusive da

tragédia, e lhe dá cor, pois sem música de fundo

já nada se concebe.

À semelhança da marca estampada na camisola,

qual rez que o selo do dono - no caso uma

multinacional - assinala, trago também nos

ouvidos, no cérebro, senão à frente dos olhos, o

refrão de uma música igualmente de consumo, a

mais das vezes embrutecedora e, sobretudo,

colonizadora. Não num volume que me permita ser

eu a dominá-la mas, pelo contrário, num outro,

uniforme, no qual ela me leva, transporta lá

aonde deseja: à evasão acéfala do que, de tão

79

distante, se perde, à fuga a mim mesmo e, pois

um acto não vai sem outro, à fuga do Próximo.

Ouvir, ouvir até ser totalmente desatento numa

acção que condensa o efeito ligth unificando-lhe

os tempos: não só impeço a vida de se revelar na

sua multiplicidade de aspectos como eu próprio,

pouco a pouco, ensurdeço ao que me tire desse

sonho de uma igualdade anestesiante.

Isolado num mundo sonoro e asséptico, viciado

no produto que as multinacionais do gosto impõem,

o falso melómano paira surdo ao que seja,

inclusive, condição sine qua non do seu gosto, ao

que ouve.

Os audiofones, outrora usados para uma melhor

concentração na diversidade do texto musical,

foram apropriados pela massa para defesa da mesma

massa que a rodeia, ou seja, de si mesma.

Efeito paradoxal e aglomerador: defendo-me com

80

ruído contra o ruído e, por fim, aceito em altos

berros aquilo que, precisamente, quero apagar.

O prejuízo para a saúde que tais aparelhos

provocam, ou, nos locais nocturnos, o volume do

som muito acima do tolerado pelo ouvido normal ,

impõem a surdez que a tudo coloca termo,

resolvendo o problema do que não se quer ouvir da

forma mais radical. Como que a dizer que no

universo ligth a invisibilidade e a

insensibilidade são as normas.

Os audiofones funcionam hoje, para a massa como

um cancro da audição.

O monótono bombardeamento musical a que somos

sujeitos é ligth porque o objectivo de tal

cacofonia é o de tornar presente a vida tal como

a encaram as multinacionais donas do nosso

quotidiano, desejosas de nos submeterem à corrida

pelo último modelo, deitando fora o que comprámos

81

há um mês atrás e endividando-nos em prol do

novo, numa luta desenfreada que só é ligth num

aspecto: o de nos insensibilizar através da

brutalização constante.

Correr para o nada, fugir de si mesmo acabando

por dar consigo de costas voltadas e sem que nos

reconheçamos. Ali vai um outro!

Números em movimento ao som de caixas

registadoras contabilizando os lucros da demissão

e do apagamento.

A separação promíscua

O universo ligth, ou dito por outra forma "la

vie en rose" só é possível através de uma

abstracção, de um coamento da vida pelo filtro

que retém o que não agrada e deixa passar o

aprazível. No entanto, fazer isto e sentir prazer

82

num tal universo, na sua existência, em vez de

uma asfixiante falta de verdade - o negativo e o

positivo compõem o que existe e a dualidade é

constante em quanto se conhece - só é possível

porque lá atrás, em acordo com Erno Gruen fomos

exercitados na separação, numa visão

tendenciosamente unívoca das coisas, afim de

sobreviver ao sofrimento e à solidão.

E como o mesmo processo social a todos forma e

faz, a sociedade aplaude a divisão do ser porque

dela deriva o seu fundamento e sobrevivência.

Pelo contrário, o homem e a mulher que se queiram

unos estão destinados a um castigo social que

pode ir da retenção no hospital psiquiátrico à

prisão, sendo provavelmente os artistas - mas a

quantos se abre esta estreita via? - os mais

felizes entre os que tentam essa união consigo

próprios: ao cultor da arte tudo se permite mesmo

a...unidade. Mas de que falamos? Do ser que não é

uma máscara ás três da tarde e outra às sete mas

integra a ambas no mesmo, pois o seu fundo é uno:

83

um ser que é todo o tempo, à semelhança do deus,

cuja imagem não apresenta seccionamento.

Deus - dizem os teólogos - simplesmente é.

Mas dos tantos que trazem o deus na boca

quantos tentam sê-lo?

Outros ligthes

Também o estado, depois de haver sido

absolutista, assumiu, no final dos anos setenta

do século passado, uma feição ligth: foi o

estado neo-liberal, a venda na haste pública de

serviços que até ai competiam ao bem-comum, a

privatização de muito que o caracterizava: água,

luz, transportes, saúde ou aposentações passaram,

em muitos casos, para as mãos dos poderes

privados.

Ao mesmo tempo que a publicidade dava a

conhecer os produtos ligth, o estado, culpado de

84

Auschwitch e Sibéria, desfazia-se da sua carga e

responsabilidade sociais mantendo na sua esfera

apenas o "indispensável", nomeadamente a captação

dos impostos além das polícias.

Um estado "leve" que o slogan "seja o cidadão

nulo" poderia anunciar, escondendo que, em troca,

paga pela bitola privada - isto é, a do mercado,

serviços até ha pouco gratuitos. Fenómeno

simultâneo com a decadência dos países

socialistas, o capitalismo privado aproveita a

circunstância para varrer o que pode do serviço

público, processo em que saiem vencedoras as

multinacionais que hoje subjugam a esfera

política, as mesmas que propagandeiam os produtos

ligth e, do mesmo passo, patrocinam as campanhas

eleitorais de presidentes, ministros e

respectivos adjuntos, os quais provavelmente

virão a ser - ou já foram - gerentes dessas

mesmas multinacionais.

Santa aliança ou o poder de uma só cor, a

realização, a nível político, do homem

85

unidimensional apontado por Marcuse nos anos

sessenta.

O político ligth, bem falante e

convenientemente maquilhado para o circo da TV,

destinado a satisfazer as clientelas mais amplas

e por isso mesmo condenado a promover e ser

protagonista de campanhas ligth - as quais, por

própria definição do ligth, não podem ir à raiz

dos assuntos - barafusta mas nada muda de

concreto.

O concreto não é ligth - pois implica a vida no

seu todo - e a política ligth - de direita ou

esquerda - não resolve os problemas sociais mas

abre caminho, face a um eleitorado insatisfeito,

aos movimentos extremistas que, sem o confessarem

para não assustarem as massas, anseiam pela

revolução.

Ou seja, o ideal da mudança radical passou a

ser representado, não já pelas esquerdas - ainda

não há muito exultantes com a exemplaridade da

revolução dos cravos em Portugal - mas pela

86

direita mais à direita.

Incapaz de um programa realmente digno do

século vinte e um, no qual a exigência seja uma

vida mais fácil - ou ligth no bom sentido - com

dever de serviço social para todos e direito a

cada vez mais ócio e satisfação das necessidades

básicas - casa, saude e instrução - a Europa

vive assustada como velha tia revolucionária e

nostálgica. Nos seus tempos "oh, quando eu era

nova!" foi radical mas os que hoje falam em

revolução - extrema direita e islamismos - lutam

já contra ela! E se o estado dirigista que, na

década de sessenta esta mesma Europa defendia, se

mostrou na Rússia, Alemanha, China e noutros

infelizes lugares, sanguinário, o seu

esvaziamento mostrou a não menor ferocidade das

multinacionais.

As recentes vitórias da extrema direita devem-

se, pois, ao estado ligth o qual, a continuar

assim, será por elas tomado e, finalmente, muito

pouco ligth será, a não ser, é claro para os

87

tantos que o dominarão. A história está cheia

destes exemplos assumidos sob os mais variados

nomes mas todos pretendendo construir um homem

novo. Talvez desta feita se chame homem ligth.

O "bom" ligth

A visão ligth das coisas contém em si uma

desdramatização de aspectos que, em parte,

deixaram de ser relevantes.

Sem pretender esgotar o seu elenco, cite-se:

O "Sexo dos Anjos".

Deixou de importar se o homem tem um tonus

feminino ou a mulher características outrora

88

atribuídas ao "sexo forte".

O ligth, com a sua capacidade filtrante e

purificadora, reteve dos sexos o que lhe

importava - a sua possibilidade de consumo - e

deitou fora tabús que, abalados por Maio 68,

ficaram definitivamente para trás. A androgenia

erigiu-se em modelo e o consumidor, mais do que

uma vagina ou um pénis, é isso mesmo: um

consumidor.

A rigidez mental

Corolário do muito que se disse no primeira

parte deste escrito, pensar, com a queda da

ilusão racionalista, passou a actividade que, se

nenhuma publicidade recomendou "pense leve!", o

conselho não deixa de estar implícito na proposta

de um modo de vida ligth.

Os códigos de honra cuja transgressão

acarretavam a vergonha e a perda da "dignidade"

ficaram ainda mais obsoletos e a incoerencia teve

89

foros de cidadania. Faz hoje assim e amanhã

assado, não te comprometas (e muito menos

politicamente - o ligth repudia o empenhamento e

o militante, ao contrário do diletante, não é

ligth) não cries raízes, sê leve, ágil,

espontâneo, etc., todos estes itens levaram o

público consumidor a familiarizar-se - estes

fenómenos têm origem noutras esferas da produção

social mas só massificam a partir do momento em

que atingem os "media" - com a mudança, a

ligeireza, a troca, pois doutro modo como

usaríamos hoje uma marca e amanhã a que logo a

substitui?

O "pensamento mole" serve, e reflecte, uma

sociedade em forte mudança que necessita de

varrer dos seus quadros mentais referencias

estáticas para se adaptar a novos tempos. Bico de

dois gumes, leva atrás de si o ainda útil e o

mau porque obsoleto. Este item mais deveria

colocar-se num campo intermédio entre o positivo

90

e o negativo. Libertou das hierarquias - e

sobretudo da do próprio, da de um super-ego

coerenciador e vigilante - mas deixou como

herança, sobretudo na geração seguinte, uma fome

de valores ou "verdade". Ora, sendo a verdade o

resultado de um esforço e sabendo nós que a lei

geral é a do menor, qualquer esfomeado de

valores é vítima fácil do primeiro vigarista que

surja na rua a vendê-los.

A proliferação de grupos que negociam em nome

de Deus e, no melhor dos casos - mas à custa de

quanta intransigencia em relação ao Outro? -

vendem sessões de terapia de grupo, cujas curas

atribuem não a Moreno ou a outro seu fundador,

mas a Jesus, ai estão para comprová-lo.

- A perca do transcendente

As coisas valem pelo prazer que dão no aqui e

agora, no imediato.

O sacrifício em nome de uma causa passou de

moda, pelo menos para um ocidental, pois a vida,

91

a existência passou a valor primeiro. A própria

filosofia mudou de campo, ou voltou ao antigo, e

vira-se para a felicidade quotidiana, para o

sentimento do bem-estar consigo. Em risco, pois,

o cristianismo do Cristo pregado na cruz,

provavelmente substituído um dia, quando o

feminino atingir todo o seu direito e plenitude,

por uma "pieta" à Miguel Ângelo, símbolo não

mais amplo que o do sacrifício mas mais

apropriado a uma civilização que deseja proteger

a vida e não apenas vivê-la como uma ponte para o

paraíso.

- A aceitação do efémero

Se aceito o ligeiro, o leve, aceito, acto

contínuo, o efémero.

Longe da aceitação da Morte, fenómeno que o

produto ligth esquece, o efémero incentiva o

gosto pela transmutação. Aceitá-lo é a extensão

última do consumo a que a dita sociedade convoca

tudo o que a compõe: nem já a duração de uma hora

92

mas a de breves segundos, numa existência cuja

evanescencia passa a ser a sua essencia, a sua

mais-valia.

No efémero celebra-se o que não tem senão

escassa existencia. Este no entanto, não pode

cair na sua própria armadilha a qual consistiria

em celebrar a morte de tal modo vida e ocaso se

lhe associam.

Efémero, segundo o modo de vida ligth,

eternamente efémero, eternamente jovem, efémero

sempre. E o sabor vem desta onda que, suspensa,

nunca rebenta, como se fosse possível prolongar

para todo o sempre os breves momentos que

precedem a descarga do orgasmo, num prazer

eternamente renovado como o que expressa o verso

de Valery "la mer toujours recommencéé". O fumo

"inofensivo" do tabaco, o prazer do yogurte que

não engorda, a sensação, enfim, liberta do seu

desgaste.

Um mundo só bom, e naturalmente morto, por

falha de contradição.

93

- O elogio do fácil

Do enaltecimento de uma vida de prazer e

liberta da sua carga mortífera, faz-se a passagem

- da mesma forma que no anúncio o corpo jovem do

desportista e um automóvel se associam para criar

uma imagem de potencia - para a facilidade na

obtenção das coisas, as quais, doravante, deixam

de ter o preço do sacrifício.

As rugas de um rosto envelhecido são

desnecessárias numa sociedade infantilizada que

deseja a experiência sem o seu custo, num sempre

renovado laboratório que nunca acuse o seu uso.

(E de novo a cruz do cristianismo a perder a

força do seu significado)

Não engordar não custa passar fome mas, apenas,

comer diferentemente.

O fácil, o sem esforço - valor enganador para

uma plebe que, extenuada pelo trabalho, sonha há

séculos uma vida de nababo sem mesmo arcar com o

ódio dos que há-de explorar - essa capacidade de,

94

a um sinal dos dedos, aceder à posse - seja de

si, seja do mundo - é igualmente propagandeada

pela publicidade do ligth - ou por toda a

publicidade pois o ligth é apenas o seu aspecto

mais assumido - e contribui para amolecer e

confortabilizar o social que se lhe entrega.

Na Tv observamos meia dúzia de indivíduos a

quem pagamos para, numa ilha deserta, fazerem

por nós, a experiência da “verdadeira” luta pela

sobrevivência.

Vida em diferido, vida preservada do cheiro da

experiência.

Ligth vida!

Onde o ligth seria (porventura) útil

- Multinacionais-ligth

Ao contrário das suas pesadas congéneres

95

envolvidas activamente na política (a ITT

financiou o golpe de Pinochet no Chile, em 1971)

interessadas exclusivamente nos respectivos

lucros e muito pouco na felicidade dos seus

clientes, a multinacional ligth caracterizar-se-à

por:

- Contribuir para a leveza do ambiente,

evitando poluí-lo.

- Fabricar com transparência, não empregando

mão de obra recrutada no mercado negro, infantil

ou diminuída nos seus direitos.

- Incentivar a democracia dentro e fora da

empresa: no interior pela adopção de métodos

participativos e no exterior recusando

implantar-se onde os direitos humanos sejam

negados.

- Distribuição periódica dos lucros que não se

destinem a auto-investimento por quantos nela

trabalham.

96

- Partidos ligth

Entrar num partido - sustentáculo do poder de

estado democrático - é um "drama", assinalado com

direito a parangonas nos jornais, para o caso dos

notáveis e inútil, na realidade, para o cidadão

comum que, uma vez lá dentro, se limita, na

grande maioria dos casos, a bater palmas em

sessões propositadamente realizadas para o efeito

ou, o que é o mesmo, dada a sua ineficácia, a

barafustar contra o vento.

Que resta, pois, para evitar que o cidadão

comum se desligue definitivamente da vida

política senão "ligthizar" os partidos, tornando-

os, enfim, leves e ágeis? Ou dito de uma forma

culinária "ao menu".

Explique-se:

Hoje em dia o filiado num partido tem que

aceitar uma solução do mesmo, ainda que não

concorde com ela. A disciplina partidária assim o

exige, tal como outrora, na empresa onde se

empregava para toda a vida, o trabalhador

97

obedecia cegamente ao chefe, na esperança,

sobretudo se mais novo, de vir um dia a

substitui-lo.

Isso acabou.

Hoje muda-se de emprego e, a não ser que crie a

sua própria empresa, o homem ou a mulher comuns

nunca substituirão o patrão, entidade cada vez

mais fluida e virtual, sobretudo no respeitante

às sociedades por acções.

No respeitante aos partidos propõe-se, pois, a

mesma mobilidade, a saber:

Se o militante não está de acordo com a solução

para o problema X que o partido onde se filiou,

preconiza, deve reconhecer-se-lhe o direito de

colaborar com outro partido no qual, para o mesmo

problema, o militante encontra uma solução mais

em acordo com a sua consciência. E - residiria

aqui o aspecto ligth deste tipo de organizações

- essa colaboração não implicaria, em caso algum,

a saída do partido (chamemos-lhe partido-base)

onde primeiro se filiou.

98

De facto, porque não poderá o militante – pois

que o é - colaborar num partido em determinada

solução e, noutra, no partido vizinho? Porque

terá que resolver tudo no mesmo? Naturalmente

será de esperar que o leque de partidos onde o

militante colabore pertença a um mesmo espectro

mas.... se não for? Porque o problema há-de ser

do partido e não do militante? Ser coerente é um

valor em si? O que importa, aqui e agora, não é

não prejudicar o outro e cumprir o código civil?

Finalmente, ao cabo de uma vida partidária

intensa, o militante terá colaborado sempre

segundo a sua consciência - passo fundamental

para a criação do indivíduo desmassificado - e

alargado a experiência do Outro. Não é o

objectivo da democracia?

A "partidarite" - tal como outrora velhos

brazões das familias aristocráticas que tantas

guerras pretextaram - tenderá a acabar e a ficar

em realce a vida política, a colaboração

interpartidária (ao alcance de qualquer e não

99

apenas das elites quando e onde elas decidem)

enfim, o serviço de Estado.

Sob a fórmula de "ligthização" dos partidos

propõe-se, pois, a sua aproximação à realidade do

cidadão comum o qual, numas eleições vota num

partido e, nas seguintes, noutro. Além de que no

partido-ligth há a imediata noção do peso das

suas decisões pela aferição dos que as não

seguem.

Os partidos leves permitiriam uma vida política

mais adaptada ao ritmo do nosso quotidiano e, não

menos importante, mais transparente.

A contribuição do estado para o partido-ligth

não se traduziria em dinheiro mas em mão-d'-obra.

Um partido ligth com direito, devida à sua

votação, a dinheiros públicos recebê-los-ia, não

em "cash" mas em funcionários aptos a prestarem

apoio logístico na área das finanças, imagem,

etc. etc..

Tais funcionários, independentes do poder

100

circunstancialmente eleito, deontologicamente

apartidários, ou verdadeiramente de Estado,

seriam, afinal, garantes da ordem democrática,

pois, por própria natureza de funções, saberiam,

no aqui e agora, a proveniência dos dinheiros

partidários.

Quem não é contra o estado democrático porque

há-de temê-los?

- Escola ligth

Escola ligth? Será possível? Sê-lo-ia se fosse

viável encontrar um método de ensino que não

obrigasse ao esforço, onde a aprendizagem se

tornasse um jogo permanente no qual o cansaço

surgisse unicamente por jogá-lo. E, é claro, o

jogo-método teria que ser suficientemente

maleável para permitir a sua substituição, a

partir do momento em que enjoasse. Mas isto é

possível?

101

A resposta reside na tecnologia e na capacidade

humana em traduzir por imagens os conceitos

fundamentais que baseiam o nosso saber.

Princípios matemáticos, físicos, etc, deveriam

ser de fácil compreensão - aliás, começam a sê-

lo - a partir de esquemas virtuais e lúdicos.

Mas... e o resto? A cultura, entendida como fonte

inter ligadora de tudo, de integração última do

humano no cosmos, tornando a ambos cúmplices?

Poder-se-à algum dia ensiná-la através de um

jogo, uma brincadeira, uma simulação?

Duvido.

Se assim for, se não se mostrar viável aprender

senão por um sempe renovado desejo de “querer

saber” o qual justifique o esforço em adquiri-lo,

não haverá nunca uma escola ligth, embora possa

existir um ensino ligth, meramente técnico,

separado da sabedoria, entendida esta como o

molho onde mergulha o conhecimento científico e

102

lhe dá o sabor, à semelhança do tempo que

informa o vinho.

Em consequência a escola cultural, não a

exclusivamente técnica, e porque exigirá sempre

esforço, tenderá a recrutar um género de crianças

ou adultos mais susceptíveis de se submeterem ao

trabalho de aprender.

De nada serve oferecer pérolas a porcos.

Mas também é preciso ter a certeza de que as

ditas pérolas foram suficientemente exibidas

para que ninguém, mas absolutamente ninguém,

argumente que não as saboreou por desconhecer a

sua existência: estes os parâmetros da

democracia, ou da escola democrática e

esclarecida.

Tal escola, prodigalizando meios de cultura,

requer o esforço e não será ligth. Mas, ao

serviço de alunos verdadeiramente interessados em

aprender, acabará por produzir um ensino fácil e

agradável, pois “quem corre por gosto não cansa”.

103

Tal escola, da mesma forma que reúne alunos

interessados em saber, congregará professores com

gosto e vocação em ensinar, uns e outros

apaixonados pela investigação da verdade, pelo

prazer do "chamar os bois pelo seu nome".

Tal escola saber-se elitista - qual o problema

de sê-lo desde que aberta a qualquer que a deseje

frequentar? - não porque construída sobre falsas

divisões, económicas, sexuais, de pigmentação de

pele ou credo religioso - mas porque exigirá a

cada um o melhor de si mesmo e uma mesma atitude:

a de querer saber... para saber.

Quem financiará uma tal escola?

- As multinacionais-ligth em colaboração com o

Estado.

Qual o interessse que umas e outro retirarão

das respectivas contribuições?

- Passarem a dispôr de pessoal altamente

especializado e, ao mesmo tempo, erudito, capaz

104

de visualizar e integrar os problemas sectoriais

na complexa globalidade social.

Os gestores do futuro não deverão ser

advogados, engenheiros ou arquitectos mas

especialistas em globalidade, pessoas que, pelo

seu vasto conhecimento, estarão em condições de

estabelecer pontes entre os diversos fazeres e

interesses sociais.

Uma tal escola formará pontífices da sociedade

civil, obedecendo a um único credo: torná-la cada

vez mais laica e democrática. Quer no bem quer...

no mal.

105

Conclusão

Domínio de si, domínio da natureza, domínio do

Outro, extermínio do Mal...

Mas o mal d' agora não foi o bem d' há pouco e

o mal d' ontem não se identificou já com o bem de

agora?

Desconfortável?

Certamente que sim para quem queira tudo

estipulado e bem delineado, os campos distintos e

a todo o tempo os mesmos: a mudança não interessa

ao universo ligth a não ser que se efectue dentro

do mesmo ou se situe no campo da máscara.

Desconfortável ainda para quem da vida só

aceita o seguro, e, de preferência, um seguro

ainda seguro num qualquer outro seguro, acabando

a viver de tal modo guardado - e separado de si -

106

que mais vive morto.

O correcto, e em acordo com o processo natural,

é a integração dos extremos, permitindo que a

dialéctica se consuma e dê ao mundo novos mundos.

Porque o "Mal" não passa de uma abstracção e, di-

lo a história, o humano aprecia que lhe lancem

uma imagem, como ao cão um osso, e alguém grite,

se possível ao som de um hino: "Eis o mal! Ataca"

A humanidade, cujo estádio de desenvolvimento

se assemelha ao do adolescente que, ora acerta no

cravo, ora na ferradura, nunca recusou o que lhe

proporcionasse um menor esforço e o êxito da roda

demonstra-o.

O ligth com o seu ideal de leve, ligeiro e

espontâneo, invadiu a vida de todos os dias:

temos a guerra ligth (a qual "só atinge o Mal" )

ganharemos, por própria necessidade da reforma

dos partidos, uns tantos que serão ligth e, se

uma revolução sem sangue é igualmente ligth,

então a dos Cravos, em Portugal, foi um seu

primeiro exemplo.

107

A liberdade, ameaçada pelo reino do lucro -

utopia tão prejudicial e irrealizável como

qualquer outra, a não ser que, para levá-la a

cabo, nos dispúnhamos a sacrificar o planeta e

com ele a vida humana - ou convence o Estado do

dever de ser a sua guardiã, oferecendo ao cidadão

mais frágil um leque de opções que lha permitam,

ou casa os ideais anarquistas, instituindo de

imediato a célula humana como sede de todo o

poder. Mas esta última hipótese muito poucos

estão em condições de realizá-la mais se

identificando com o esforço dos primeiros

cristãos: sós e dispostos ao sacrifício pessoal.

O cidadão comum quer ser rico, quer ascender à

categoria de consumidor máximo e, por outro lado,

aquele a quem essa via não interessa, mas

consciente do seu poder, muitas vezes retira-se

e cala-se, num viver à parte que acha solução,

subjectiva herdeira da crença do "socialismo num

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só país".

Pensar desenvolve o pensamento e a humanidade

só sairá da crise que todas as mudanças provocam,

se ousar pensar tudo de tudo, pois só assim

encontrará as soluções à altura dos problemas que

enfrenta, inexistentes num pensamento censurado

por séculos de vida clandestina.

Quem ousa descobre.

FIM

Lisboa, janeiro de 2002

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