Capítulo 1
O Gênio e a metafísica
Neste capítulo, nosso intuito é apresentar, em linhas gerais, a trajetória do
conceito de gênio na tradição do pensamento filosófico, para ver como Nietzsche dialoga
com a referida tradição metafísica, ora considerando o gênio como o comunicador de uma
verdade fundamental, ora considerando como um simples criador, que cria suas próprias
verdades. É a primeira consideração que mais nos interessa aqui, presente na obra O
Nascimento da Tragédia, onde encontramos o gênio unido com a idéia de “absoluto”,
fazendo-o aproximar do projeto romântico.
1.1. O gênio na Antiguidade: entre gregos e romanos
Quando se referiam à criação poética, os gregos preferiam o termo
entusiasmo. Para Sócrates, a arte da tragédia e dos ditirambos são atribuídos ao entusiasmo.
Para o Sócrates da Apologia a Sócrates, as criações poéticas não são atribuídas a um saber,
mas a um dom natural, a uma inspiração divina – o entusiasmo.
Em Sócrates o demônio é uma indicação divina de como proceder para se
prevenir dos perigos decorrentes das decisões humanas. Esta voz demoníaca se desliga
fortemente da racionalidade e se tornará mais tarde, na renascença, a representação das
vozes sobrenaturais da poesia. É a partir daí então que a idéia de gênio se liga à criação
artística. Tal conotação artística ocorreu devido à mistura dos significados dos termos
demônio e entusiasmo. Edgard Zilsel evidencia uma relação estreita entre a idéia de gênio
(genius) e a idéia de demônio em Sócrates1. Sócrates reconhecia no demônio a voz interior
do filósofo que previne os perigos físicos e morais de suas ações ou decisões2. Esta
expressão, em Sócrates, significa o caráter divino ou transcendente do chamamento3.
1 Zilsel, Edgar. Le Génie – Historie d’une notion de l’antiquité à la renaissance (traduction de Michel Thévenaz)Paris: Les Édition de Minuit,1993, p. 33 2 Xenofonte. Apologia de Sócrates. (tradução de Maria Lacerda de Moura) Rio de Janeiro: Ediouro, 1980, 31D. 3 O cristianismo adotou a seu modo a doutrina dos demônios, chamando anjos os demônios bons e de demônio os anjos maus.
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Em O Banquete, Sócrates mostra que cabe ao gênio a tarefa de interpretar e
transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses. Assim o
gênio, como o demônio, revela uma certa comunicação entre o humano e o sobre-humano.
“Um deus, com efeito, não se aproxima de um homem. Toda comunicação que se estabelece entre os deuses e os homens estejam estes acordados ou dormindo, é sempre feita por intermédio dos gênios. O homem a quem são feitas essas comunicações e que as conhece, é um homem inspirado; todos os outros, os que só conhecem um pouco das artes e de certas manipulações não passam de artífices. Há muitos gênios, e sobretudo diferente espécies deles”4
Na Apologia a Sócrates, ao interrogar os poetas, Sócrates percebe que suas
criações não são advindas de um saber, mas de uma inspiração divina, ou seja, do
entusiasmo. Sócrates não concebe a idéia de um saber na arte poética e acaba por preferir o
artesão que produz algo, segundo regras conhecidas por ele. Assim, os gênios eram seres
privilegiados que se comunicavam com os Deuses. Os atos criativos como os da poesia
eram atribuídos ao entusiasmo, já os atos criativos da pintura e escultura eram atribuídos à
razão, à técnica. Quando Sócrates expulsa os poetas da República, ele acentua que os
poetas desviam o homem do bem, sendo que o bem é conquistado através de processos
racionais, capazes de tirar o homem do mero mundo das aparências.
O verdadeiro pode ser desvendado, segundo Platão, através da contemplação
filosófica. O mundo das idéias poderia então ser vislumbrado em detrimento ao mundo
fenomênico, onde tudo é apenas sombra da verdade. A arte na antiguidade era vista pelos
filósofos da época de Sócrates como sombras, que não deixavam de impedir o caminho
para a verdade, ou seja, o bem platônico. No Timeu (41 A) Platão considerava os demônios
como divindades criadas pelo Demiurgo – a divindade artífice que cria o mundo à
semelhança da realidade ideal. O neoplatonismo, por sua vez, multiplicou os demônios
considerando-os todos como emanações da divindade suprema.
A concepção aristotélica do termo se expressa na capacidade inventiva. Para o
filósofo estagirista, o gênio é um homem de exceção e uma de suas características é a
melancolia. No seu problema XXX, Aristóteles mostra, por meio de exemplos, que todo
ser de exceção é melancólico. Neste texto, Aristóteles descreve cientificamente o
funcionamento do corpo, mostrando como a fisiologia influencia na formação de um
indivíduo de exceção ou gênio. Aristóteles se refere à melancolia como um caráter de
4 Platão, O Banquete . (tradução de Jorge Paleikat) Rio de janeiro: Editora Globo, 1960, p.163-164.
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exceção, por ser causa de um desequilíbrio térmico do próprio corpo. Porém, é preciso
lembrar que, para Aristóteles, todo gênio é melancólico, mas nem todo melancólico é
gênio. O gênio deve exprimir uma intensa capacidade inventiva que aparece nos grandes
homens de Estado, e também em alguns artistas e filósofos.
A melancolia foi também classificada como loucura, e Hércules é
exemplificado como o homem afetado por dois tipos de loucura: a primeira que o leva a
massacrar seus filhos e a segunda que provoca sua desaparição no Etna. Essas duas
tragédias fornecem os paradigmas das duas extremidades da melancolia: a loucura (ek-
stasis) e as úlceras pelo outro. Aristóteles menciona a palavra Ekstasis para se referir à
loucura, e acaba por aproximá-la do indivíduo de exceção ou gênio. Platão define a loucura
no Fedro da seguinte maneira: “Há duas espécies de loucura (mania), uma que é devida às
doenças humanas, a outra a uma transformação, sob a influência divina, nas nossas
práticas ordinárias” (265 a). Mais adiante, como veremos no capítulo II, Schopenhauer
também aproxima o gênio da loucura.Sócrates, no Fedro de Platão, distingue os delírios
divinos entre aquele que vem de Apolo (inspiração divinatória), aquele que vem de
Dionísio (inspiração mística), aquele pelo qual as musas são responsáveis (a inspiração
poética), e o delírio devido à Afrodite e ao amor (265 b e 244-245).
O gênio romano, na interpretação artística, era representado por anjos
acompanhados de objetos alegóricos, para expressar as artes, as paixões. Os gênios são
conhecidos por uma chama que envolve suas cabeças. O culto do gênio (genius) na religião
dos romanos era um dos mais importantes, sendo que ao mesmo tempo sua significação
sempre foi enigmática. Assim seu conceito nunca é aplicado do mesmo modo sem que se
confunda com outros. O conceito primordial de gênio é a força divina que engendra e a
primeira manifestação de sua ação foi a união dos sexos – assim o ato nupcial era chamado
de genialis. O gênio romano era simbolizado por um homem e uma serpente, que
significavam geração, procriação.
Para compreender o que o gênio despertou na sensibilidade dos romanos é
preciso remontar ao culto dos povos primitivos. O culto tributado ao gênio se baseava em
simples oferendas feitas no dia do nascimento, que não implicavam em derramamento de
sangue. As oferendas consistiam sobretudo em vinhos (símbolo da alegria), flores e
incenso. Em seguida havia dança. Horácio associa o culto do gênio às comemorações
campestres que os primitivos campesinos se acostumaram a fazer para celebrar o término
do trabalho e o início do descanso no inverno. O gênio se torna então um espírito protetor
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individual ao qual prestamos juramentos. Na vida cotidiana, se jurava pelo gênio aos
amigos. Costumava-se juntar ao nome do amigo uma invocação aos guardiões do lugar. Ao
jurar pelo gênio, os romanos colocavam a mão na testa, como sendo o lugar onde reside a
força da inteligência que governa a vida do homem.
A origem do gênio romano está em uma alma livre, independente do corpo ou
de algum órgão determinado. A alma humana se livra do corpo na forma de um pássaro,
verme ou serpente e pode até mesmo se separar do corpo durante a vida para perambular
livremente sob uma forma animal. Sua autonomia em forma de serpente, pássaro ou verme
encarna a vitalidade humana cuja toda força e mistério se manifesta acerca da procriação e
do nascimento. A idéia dos romanos, de que todo homem tem um genius e toda mulher
uma Juno, está ligada às funções vitais : quando um soldado partia para o combate, seu
gênio deveria permanecer perto de sua mulher dando-lhe um filho e consagrando o leito
conjugal e a data de nascimento – lectus genialis, genius natalis. E quando se festejava o
dia do nascimento e o dia do casamento, os romanos estavam celebrando seu gênio5. O
adjetivo genialis não tinha o significado moderno de “genial”. Genialis estava ligado à
idéia de “guloso” ou “festivo”. Referindo-se à astrologia, Horácio identificou o gênio aos
espíritos dos astros que determinam o horóscopo e a diversidade de caracteres. O gênio se
aplicava ainda aos Deuses que representavam a abundância, a alegria e a prosperidade
(Baco, Ceres, Saturno); como também às estações do ano em que o homem saboreia
pacificamente o fruto de seu trabalho, e a tudo que na vida é ventura e felicidade.
Segundo as crenças animistas primitivas, toda coisa é dotada de um espírito
vivente particular e esse pequeno espírito – genius loci – foi transportado a certos lugares,
colinas e vales ou edifícios importantes. Mesmo as personalidades jurídicas como as
comunidades, os corpos de profissões, as cidades, os destacamentos militares, possuíam seu
gênio. O povo também o possuía, embora de forma mais artificial. Até mesmo os espíritos
dos mortos, das larvas e dos fantasmas foram, por vezes, chamados de genni. O gênio era
atribuído, às vezes, por zombaria, a certos livros ou obras de arte. Todos esses lugares e
pessoas tinham seus gênios em um altar representado por uma serpente, ou uma criança
com asas freqüentemente acompanhada de uma serpente. O gênio encarna a força vital e a
alma humana (masculina) sob forma de uma serpente separada do corpo, tornando-se em
seguida a individualidade vivente.
5 Seneque. Lettres a Lucilus (trad. H. Noblot,), 95,41 – HORACE , Odes, III, 17, 14.Paris: Les Belles Lettres, Paris 1957
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O símbolo da serpente aparece em inúmeros desenhos, junto a uma família –
simbolizando a geração. Não era incomum naquele tempo a criação de serpentes em casa.
A tradição grega também deixou numerosas lendas de homens célebres nascidos da união
de mulheres com serpentes – que eram encarnações dos gênios das divindades. O paralelo
que podemos fazer entre o gênio grego e o gênio romano é o demônio benéfico.
A palavra Genius é uma espécie de descendente da palavra socrática
daimonion. O gênio romano é uma tradução do daimonion grego e também não tinha
conotação artística. O gênio romano se assemelha ao demônio grego por atribuir o espírito
protetor de um indivíduo. Enquanto a demonologia grega desenvolveu a idéia de que o
homem possui dois gênios, um bom e outro mal, um branco e outro negro, o gênio romano
era simplesmente um espírito protetor individual ao qual prestamos juramentos.
Na modernidade, existe uma grande confusão no uso das palavras genius e
ingenium. Freqüentemente chama-se de “gênio” o homem que se caracteriza pelo vigor,
poder, honra e dignidade e outras vezes o chama de simplesmente ingenium. Por ingenium
– palavra derivada de genie, vocábulo francês – entendia-se a faculdade humana do
descobrir e do inventar. Mas a palavra gênio foi usada para descrever o ingenium. Assim o
gênio é usado no sentido de talento inato ou grande capacidade intelectual. O gênio da
língua, da história e do cristianismo podem ser frases aceitáveis, nesse sentido. É preciso
levar em conta o termo “engenho”, que é distinto do intelecto, porém participa dele. Tal
termo procura exprimir a capacidade de encontrar semelhanças entre coisas desconexas.6 É
caracterizado por sua velocidade e por sempre buscar uma síntese. Sua origem é, portanto,
o ingenium latino, a partir do qual se modelaram o italiano ingegno, o francês esprit e o
inglês wit. Wit etimologicamente, significa conhecimento em geral.7 No final do séc. XVII
o termo se identifica com a poesia se igualando a imaginação.
“Talento natural, vivacidade de imaginação, o ‘ingegno/esprit/wit’ refere-se a uma faculdade que escapa aos processos analíticos lentos – ‘ingenium’ dará origem também, a gênio. É o lugar da perspicácia, a solução de compromisso entre o intelecto e os processos analíticos. O
6 Dobránszky, Enid Abreu. No Tear de Palas: Imaginação e Gênio no Séc.XVIII – Uma Introdução. Campinas: Papirus: Editora da Universidade de Campinas, 1992, p.48 7 No Leviatã, Hobbes utiliza o termo wit – que como vimos é muito próximo da significação moderna de gênio (que se refere mais ao ingenium do que ao genius) - e distingue o Wit natural do Wit adquirido: o natural é aquele que se adquire apenas através da prática e da experiência sem método, cultura ou instrução. Suas características principais estão na celeridade da imaginação (isto é, na rapidez da passagem de um pensamento ao outro) e a firmeza de direção para um fim escolhido. Assim o wit adquirido por método ou instrução é razão da qual deriva a ciência. “Daquelas que observam suas semelhanças, caso seja daquelas que são raramente observadas pelos outros, diz-se que tem um bom “wit” natural, como o que, nesta circunstância, se pretende identificar uma boa imaginação. Mas, em caso que tal discernimento não seja fácil, diz-se que tem um bom juízo” (Dobránszky, 1992:50)
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‘ingenium’ age no sentido de profundidade, opondo-se, por sua leveza e rapidez (‘a celeritas mentis’), ao ‘judicium’, isto é, às qualidades de discernimento e de escolha, a faculdade da apreciação, por excelência, do gosto clássico.” 8
Constatamos então que contrariamente ao gênio moderno, o gênio antigo não
qualifica uma inteligência superior nem um talento inato (ingenium), a não ser que
forcemos seu significado. Assim, os que forçam seu significado equiparam o genius antigo
ao adjetivo genialis que seria capaz de evocar a voz do ingenium, que significa a plenitude
das faculdades intelectuais, a facilidade do espírito para dar luz às concepções belas e
originais – termo que mais tarde se tornará sinônimo de gênio como artista. A partir daí, o
conceito de gênio se aplica ao talento criador, que descobre regiões inexploradas, em
contraposição ao talento vulgar e mediano. Portanto, dizer que este homem é um homem de
gênio é utilizar o gênio na concepção bem mais tardia dos franceses.
1.2. O gênio em O Nascimento da Tragédia: o Arquíloco
Em O nascimento da Tragédia Nietzsche presta uma homenagem a Wagner,
por ter resgatado a tragédia grega, o que fez com que ele fosse considerado gênio pelo
filósofo. Nietzsche, nessa obra, encara a tragédia grega como uma categoria estética.
Assim, no fenômeno trágico, o tema estético adquire a condição de um princípio
ontológico; fundamento que faz, ao nosso ver, de O Nascimento da Tragédia, um livro
metafísico. Porém neste livro, Nietzsche já executa uma ontologia negativa, que pretende
solapar com a idéia tradicional de ser.
A arte trágica, neste seu primeiro livro, era capaz de mostrar a vida essencial
do mundo (Wesen) e assim se tornava o “organon” da filosofia, sendo a via de acesso para
a compreensão original. Nietzsche considerava que a intuição conceitual só é original
quando estiver conectada com uma visão profunda da arte, que consiga refletir sobre o que
a própria arte experimenta na criação. Nietzsche concorda com os gregos que a arte é
somente um modo de ser, e portanto em vez de propor uma visão conceitual do fenômeno
estético, como Kant, Nietzsche apresenta categoria estéticas para formular sua visão
fundamental de ser. E é justamente isso que confere ao Nascimento da Tragédia um caráter
romântico. Tal livro pode ser considerado metafísico porque a arte é colocada no centro e é
a partir dela que o nosso filósofo decifra o mundo. A arte não é vista somente como
8 Idem op.cit. p.49
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“atividade metafísica” mas como o aclaramento do que existe “como fundamento do
mundo”.
A arte trágica representa a vida trágica do mundo. O trágico é a primeira
fórmula fundamental de Nietzsche para a experiência do ser. Partindo do trágico, Nietzsche
entra em oposição com o cristianismo, cuja idéia de redenção é essencial. No mundo
trágico não há redenção como sinônimo de salvação de um existente finito em sua
finitude9. Na visão trágica do mundo encontram-se confundidas vida e morte, ascensão e
decadência. O trágico não é um pessimismo passivo, mas uma descoberta que modifica o
pensamento de Nietzsche e o liberta da herança de Schopenhauer.
A aceitação trágica nasce do conhecimento fundamental de que todas as
formas finitas são elementos temporários no grande caos da vida, onde o declínio do finito
não significa uma simples destruição, mas o regresso ao fundo da vida do qual surgiram
todas as coisas individualizadas. Na tragédia grega, Nietzsche percebe que quando as
coisas finitas estão voltadas para a destruição elas se revertem para o fundo infinito. E é
deste fundo infinito que o existente finito retira formas de si. A esta oposição Nietzsche
chamará de oposição entre o apolíneo e o dionisíaco.
Nietzsche se serve desta diferença como se fosse uma oposição genuína em O
Nascimento da tragédia. No desenvolvimento de seu pensamento, porém, esta posição
inicial se torna mais radical, e o apolíneo é integrado ao dionisíaco.
Em O Nascimento da Tragédia o gênio é visto como um artista. Sendo que o
artista ainda é considerado metafisicamente, pois aí ainda existe uma separação entre arte e
vida. A arte estaria em nível superior, e somente o artista privilegiado – o gênio – era capaz
de fazer essa conexão. Neste livro, era na tragédia Ática que se traduzia a obra do gênio,
através da união dos instintos apolíneos e dionisíacos. Através da reflexão sobre a tragédia
e o pensamento trágico pretendemos esclarecer um pouco mais a idéia de gênio em
Nietzsche. Sua interpretação da tragédia passa por autores alemães com Hördelin. Para
este, é a Hybrys que representa a essência do trágico. A partir deste tema podemos articulá-
lo como dois outros temas importantes nas reflexões sobre o conceito de gênio: a loucura e
a vontade de saber. A Hybrys pode ser traduzida por desmesura, transgressão, sair da
medida da dimensão dos Deuses. Na terminologia nietzschiana, podemos identificá-la à
vontade de saber. Para Nietzsche, a epopéia, que trata do belo, se relaciona ao indivíduo
enquanto a tragédia, que trata do sublime, é o aniquilamento do indivíduo. Diferentemente
9 Fink, Eugen. A Filosofia de Nietzsche, Lisboa: Editorial Presença,1983, p.18.
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da concepção humanista, o pensamento trágico mostra o aniquilamento do homem. Assim,
a apresentação racional do trágico é, para Nietzsche, uma apresentação do dionisíaco sob
uma forma apolínea. Gilles Deleuze liga o apolíneo nietzschiano ao racional10. O racional
seria o congelamento do apolíneo.
Nietzsche pensa a Grécia dividida em dois tempos: um pré-homérico, dos
titãs, da discórdia, velhice e morte, e o mundo homérico. O mundo homérico inaugura, para
Nietzsche, a idéia de civilização, criando a oposição entre bárbaros e civilizados. É a partir
do mundo homérico que o comportamento bárbaro passa a ser regulado. A partir de
Homero, o mundo da discórdia, da luta de todos contra todos, é representado de forma
apolínea nas epopéias. Portanto, para Nietzsche, os gregos são humanos e cruéis. Os
gregos, para se defenderem da crueldade, escreveram suas epopéias, suas tragédias. Desta
maneira, a crueldade passou a ser domesticada, para que ela não acabasse por destruir a
vida de todos, e o homem pudesse desenvolver ainda mais seu instinto de
autoconservação. É a partir de Homero que terror e beleza tentam harmonizar-se. A
tentativa de viver bem, na expectativa constante da morte. O gênio de Nietzsche reside na
idéia de uma criação necessária para que o mundo dos homens pudesse fazer sentido. Os
gregos “criaram” para escaparem do terror da existência.
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche agradece aos gregos pela
extraordinária educação estética que os conduziu a uma alta qualidade de vida e cultura. Os
gregos tinham conhecimento do terror e horror da existência, e mesmo assim não buscavam
uma consolação além vida. Nietzsche identifica os artistas gregos como autênticos
educadores, pois cultivavam a sensibilidade em prol de uma vida afirmativa. As tragédias
gregas educavam a sensibilidade e a autoconsciência, não deixando o homem sucumbir em
náusea e desespero.
O homem do conhecimento é, para Nietzsche, o homem do engano, e por isto
este homem acredita em verdades acessíveis. A arte da natureza nos preserva do
conhecimento, pois a natureza dissimula para os homens a verdade. O homem se apóia em
ilusões que mascaram o caráter criminoso da vida. Para Nietzsche, nós lidamos com o
nosso próprio corpo com uma consciência fantasmagórica. O filósofo, por sua vez, tem
necessidade então de espiar pelas frestas da fantasmagoria. Em O Nascimento da Tragédia
é como se houvesse um homem dormindo no dorso do tigre embalado pela natureza. Ao
surgir a dúvida se o homem deve ser acordado, o Nietzsche dessa obra prefere ouvir os
10 Deleuze, Gilles. A Filosofia de Nietzsche.
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conselhos da arte e deixá-lo dormir. Mas o Nietzsche posterior ao Nascimento da Tragédia
preferiria acordá-lo. Assim inicia um confronto entre a dimensão ilusória e o niilismo. O
niilismo pode ser considerado como um otimismo da ciência que redundaria na perda da
capacidade de criar.
O Nascimento da Tragédia foi indicado posteriormente por Nietzsche como
sendo um livro metafísico, que deveria ser superado. Para nós, se é um livro metafísico, o é
em termos. Este livro já anuncia que a decadência na Grécia antiga se dá com Sócrates, que
funda o discurso racional e inaugura a busca incessante pela verdade. Assim, esta verdade
socrática, que fundamentaria todo pensamento metafísico denunciado por Nietzsche, já é
combatida em O Nascimento da Tragédia. Nesta época, Nietzsche elogiava a Grécia antiga
compreendendo o século V, o século IV, e mais ou menos, a primeira metade do século III,
que marca o surgimento do filósofo Sócrates11.
O gênio de O Nascimento da Tragédia é metafísico, quando este é um artista
que consegue representar o uno primordial, ou seja, a união das forças apolíneas e
dionisíacas. O gênio, nessa obra, foi representado por Arquíloco, o primeiro poeta lírico,
que uniu princípios apolíneos e dionisíacos. Arquíloco se fez primeiro enquanto artista
dionisíaco, totalmente um só com o uno-primordial, com sua dor e contradição, para depois
produzir a réplica desse uno primordial em forma de música. Esta música torna-lhe visível,
como numa imagem similar do sonho.
A investigação que Nietzsche propõe neste livro é conhecer o gênio apolíneo,
dionisíaco e de sua sobras de arte. Mas a compreensão que Nietzsche busca é uma
compreensão intuitiva. Para o filósofo, a antiguidade mostrou Homero e Arquíloco como
naturezas inteiramente originais. Homero para Nietzsche era o sonhador imerso em si
mesmo, o artista naïf apolíneo, e Arquíloco era o belicoso servidor das musas, tangido
através da existência. Nietzsche vai contra a idéia de que Homero seja superior Arquíloco
por este ser um artista subjetivo, preso as malhas do “eu”. Nietzsche valoriza o artista
objetivo que através da pura contemplação desinteressada produz uma obra
verdadeiramente artística. Muitos estetas consideram Arquíloco um poeta subjetivo por
sempre evocar a palavra “eu” em seus poemas. Mas Nietzsche tenta mostrar o contrário: o
eu-lírico soa a partir do abismo do ser, o mundo caótico e dolorido de Dionísio. Assim,
quando Arquíloco, o primeiro lírico dos gregos, manifesta seu amor furioso e, ao mesmo
tempo, seu ódio pelas filhas de Licambes não é propriamente a sua paixão que ele
11 Legrand , Gérad. Os Pré-Socráticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1987, p.164.
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representa, e sim a força dionisíaca. Tal encantamento dionisíaco produz poemas líricos, ou
tragédias e ditirambos.
“O artista plástico e simultaneamente o épico, se parente, está mergulhado na pura contemplação das imagens. O músico dionisíaco, inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor primordial e eco primordial desta. O gênio lírico sente brotar, da mística auto-alienação e estado de unidade, um mundo de imagens e de símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo do artista plástico e do épico”12
Nietzsche mostra o exemplo dado por Schiller sobre a descrição do ato de
poetar. Schiller confessou, segundo Nietzsche, que como condição preparatória do ato de
poetar ele tinha um estado de ânimo musical. O sentimento do poeta alemão se apresenta,
no início, sem um objeto claro e determinado. Tal objeto se forma mais tarde.
Primeiramente acontece uma certa disposição musical e posteriormente é que Schiller
elabora a idéia poética.
“As imagens do poeta lírico, ao contrário, nada são exceto ele mesmo e como que tão somente objetivações diversas de si próprio. Por essa razão, ele, como centro motor daquele mundo, precisa dizer “eu”: só que essa eudade (Ichheit) não é a mesma que a do homem empírico-real, desperto, mas sim a única “eudade” verdadeiramente existente (seiende) e eterna, em repouso no fundo das coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio lírico penetra com o olhar até o cerne do ser” 13
Assim Arquíloco já não é Arquíloco como indivíduo – metafisicamente
falando – e sim o gênio universal. O sofrimento de Arquíloco é apenas simbolicamente
representado no homem Arquíloco. O seu sofrimento é o fundamento dionisíaco do mundo.
O homem Arquíloco não pode jamais ser poeta, pois o poeta para Nietzsche não é subjetivo
e por isso gênio.
Nietzsche propõe um sujeito artista para se libertar da vontade individual e
assim contradizer Schopenhauer. Trataremos deste filósofo no capítulo 3 dessa dissertação,
mas vale salientar aqui que Schopenhauer via uma certa inadequação na arte estética, pois o
sujeito que quer e promove seus egoísmos só pode ser pensado como adversário, e não
como origem da arte.
“Pois, acima de tudo, para a nossa degradação e exaltação, uma coisa nos deve ficar clara, a de que toda a comédia da arte não é absolutamente representada por nossa causa, para a nossa melhoria e educação,
12 Nietzsche, Friedrich.O Nascimento da Tragédia (tradução de J. Guinsburg), São Paulo, Companhia das Letras,2001, p.45. 13 Idem op.cit. p.45
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tampouco que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas deveríamos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos, para o verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte – pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente – enquanto, sem dúvida, a nossa consciência a respeito dessa nossa significação mal se distingue da consciência que têm, quanto à batalha representada, os guerreiros pintados em uma tela.” 14
Aqui a proximidade com o movimento romântico é notória. Nietzsche acredita
em um artista primordial do mundo, que somente o gênio, através da procriação artística, é
capaz de se fundir a ele. Através de tal fusão o artista passa a saber algo da perene essência
da arte. O gênio é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, ao mesmo tempo também poeta, ator
e espectador.
Nietzsche dá extrema valorização a Arquíloco por que foi ele que introduziu a
canção popular (Volkslied) na literatura. Assim, segundo Nietsche, os gregos consagraram
um lugar para Arquíloco ao lado de Homero. O nosso filósofo tenta mostrar em O
Nascimento da Tragédia o que caracteriza a oposição entre poesia épica apolínea e a
canção popular. A canção popular é para ele um espelho musical do mundo que procura
uma aparência onírica paralela e a exprime na poesia.15 Assim a melodia é o que há de
mais universal e por isso mesmo suporta diversas objetivações. A melodia gera a poesia.
A origem musical da linguagem é afirmada em O Nascimento da Tragédia .
Nietzsche mostra uma certa nostalgia de um tempo onde a linguagem não designava o ser
das coisas. Nietzsche mostra o artista como algo primitivo. Por trás de todo conceito existe
um ato criativo. Nesta época Nietzsche insiste no caráter figurativo da linguagem. A
linguagem nasceria da música, em um tempo onde não se pretendia revelar o ser das
coisas. A música nasce não para denominar algo de forma irrestrita, mas apenas para
exprimir uma sensação, um estímulo nervoso. Para Nietzsche, a cultura moderna é a cultura
da escrita que salienta cada vez mais o caráter sólido do conceito como indicador da
verdade.
“Quem examinar algumas canções populares como Des Knaben Wunderborn (A corneta mágica do menino) descobrirá incontáveis exemplos de como a melodia incessantemente geradora lança “a sua volta centelhas de imagens, as quais em sua policromia, em sua abrupta mudança, em sua turbulenta precipitação, revelam uma força selvagemmente estranha à aparência épica e ao seu tranqüilo fluir. Do
14 Idem op.cit. p.47 15 Idem, op.cit. p.48.
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ponto de vista do epos, esse mundo desigual e irregular da lírica deve simplesmente ser condenado.” 16
Nietzsche explica que a música aparece no espelho da imagística e do
conceito como vontade, no sentido Schopenhauriano, que a considera a contraposição ao
estado de ânimo estético, puramente contemplativo, destituído de vontade.
"Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão (Anschauung) de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações. Tomamos estas denominações dos gregos, que tornam perceptíveis à mente perspicaz os profundos ensinamentos secretos de sua visão da arte, não, a bem dizer, por meio de conceitos, mas nas figuras penetrantemente claras de seu mundo dos deuses.A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico (Bildner), a apolínea, e a arte não-figurada (unbildlichen) da música, a de Dionísio : ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da” vontade” helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática” 17
Nietzsche elaborou em sua obra tipos humanos que para ele, eram sobretudo,
tipos criadores. Tais tipos humanos criados pelo filósofo devem ser compreendidos no
contexto da tradição, pois, do contrário, se tornam algo caricato e risório. Assim como
Platão e Aristóteles, Nietzsche também tem sua concepção de homem. Entretanto, o
homem em sua filosofia oscila entre duas significações. A primeira desenvolvida em O
Nascimento da Tragédia compreende o homem como um ser investido de sua missão
cósmica, e na segunda, desenvolvida após 1872, o homem é visto na esfera do simples
humano.
Nietzsche usa, ao longo de sua obra, tanto a forma der Genius, referindo-se ao
espírito criativo incorpóreo, quanto a forma das Genie, mais moderna, tomada do francês.
Enquanto der Genius designa o espírito criativo incorpóreo, das Genie se refere a uma
pessoa, um grande homem de gênio. O gênio como espírito criativo incorpóreo é mais
16 Idem, op.cit. p.49. 17 O Nascimento da Tragédia, Parágrafo 1 , p.27.
27
utilizado quando Nietzsche tenta mostrar uma nova forma de interação com o mundo.
Nietzsche propõe que, na relação entre educador e educando, haja o “engendramento do
gênio” (der Genius) para que o novo seja sempre criado.
O gênio não é mais algo dado a priori, concedido a poucos privilegiados que
podiam acessar o uno primordial, ou seja, a verdade. O gênio, que Nietzsche atribuiu em O
Nascimento da Tragédia a um grande artista e posteriormente aos homens criadores de
novos valores, assume o mesmo sentido da versão mais moderna do termo, genie.
Entre em 1872 e 1875, Nietzsche está envolvido em um ambiente acadêmico,
como professor de filologia clássica, e via de perto o funcionamento da estrutura das
instituições de ensino, acompanhando a situação cultural na Alemanha. Notava um sistema
educacional dissociado da vida e empenhado em desenvolver o “filisteu da cultura”18, que
é incapaz de criar, limitando-se a imitar ou consumir, submetendo a cultura às leis que
regem as relações comerciais. É neste contexto que Nietzsche escreve as Considerações
Extemporâneas, entre 1873 e 1875. O tema da primeira e segunda extemporâneas – David
Strauss, o confesso e o escritor, e Das vantagens e dos inconvenientes da história para a
vida - é a historicidade do homem. A crítica da cultura aplica-se primeiramente a uma
degenerescência do sentido histórico, a uma hipertrofia da contemplação do passado, sob as
quais rompe o programa de uma cultura viva.
Nas outras duas Considerações Extemporâneas, Schopenhauer como
Educador e Richard Wagner em Bayreuth, Nietzsche delineia a imagem do gênio como o
centro essencial de uma cultura, não de uma cultura já existente – pois em relação a uma
dada cultura o gênio se comporta intempestivamente – mas de uma cultura futura. Nas
Extemporâneas, não é formulada a metafísica do gênio, que está por trás de todos os seus
textos, e que encontrou, no Nascimento da Tragédia, a sua expressão perfeitamente clara.
Nietzsche, nas Extemporâneas, considera a cultura atendo-se ao plano simplesmente
humano, e, deste modo, permanece como que velada a função cósmica do gênio. Porém, ao
abordar o problema da cultura, Nietzsche ainda não consumou nenhum desvio em relação
ao seu primeiro ponto de partida metafísico que ele formula na esteira de Schopenhauer19.
Posto que o homem deva ocupar o centro de sua doutrina do gênio, aqui ainda não 18 Nietzsche define o que significa “filisteu da cultura”: A palavra “filisteu“ era empregada nos meios universitários e servia para designar aqueles que estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres execravam a liberdade gozada pelos estudantes. 19 A concepção redentora da arte, como sendo capaz de promover uma fusão com o uno primordial, inspirada na Tragédia Grega, e também na filosofia de Schopenhauer. Nos limites deste capítulo, nos restringiremos ao exame do texto Schopenhauer como educador, por sua relação com o caráter metafísico das primeiras formulações de Nietzsche sobre o gênio. Nos deteremos em maiores detalhes nas aproximações e distanciamentos entre as concepções dos dois filósofos no capítulo 3.
28
encontramos uma antropologia liberta da metafísica tal como aparece no segundo e
terceiro período da produção intelectual de Nietzsche.
Mas já em um texto de 1873, Introdução Teorética sobre a Verdade e a
Mentira no Sentido Extra Moral, dois anos após o Nascimento da Tragédia, Nietzsche
assinala que o conhecimento é uma invenção, ou seja, não existe um sujeito puro de
conhecimento. Através do instinto de autoconservação, o homem, como animal inteligente
que é, cria o conhecimento. Considerar que o gênio de O Nascimento da Tragédia tem a
origem em um sentimento metafísico é o mesmo que considerar que a arte já estava dada,
ao menos em estado implícito, envolta neste sentimento metafísico.
Então, mesmo em sua primeira fase, Nietzsche rompe com a idéia de um
sujeito puro de conhecimento que, em O Nascimento da Tragédia, parecia ser representado
pela figura do gênio. Em suas Considerações Extemporâneas, o gênio é visto como um
objetivo para as instituições de ensino. Para Nietzsche, todo sistema educacional deveria
estar impregnado do espírito do gênio, onde a criatividade e a busca por novos caminhos
está sempre presente. O gênio então já não têm um caráter sobre-humano como parecia ter
em O Nascimento da Tragédia.
Ao criticar a cultura de sua época, preocupada com o simples acúmulo de
conhecimento, Nietzsche vê o gênio como um indivíduo autêntico, capaz de traçar seu
próprio caminho na busca de ser o que se é. Vale ressaltar que ser o que ser é não significa
uma introspecção psicológica, mas antes um espelhamento no qual o homem se vê como
mero reflexo da beleza e da medida que ele mesmo criou. Ser autêntico é perceber todo
conhecimento como uma invenção e, a partir daí, criar o seu próprio conhecimento, de
modo que a vida não seja apenas a reprodução de valores já estabelecidos.
Assim, um gênio metafísico em Nietzsche só pode ser identificado em O
Nascimento da Tragédia. A partir daí o filósofo passa a considerar o gênio como uma
tarefa do futuro simplesmente humano, como tarefa de uma humanidade liberta de
ilusões20.
Porém não consideramos o livro O Nascimento da Tragédia como um livro
completamente metafísico, com fez Nietzsche. É bem verdade que as forças apolíneas e
dionisíacas não deixavam de ser algo primordial, verdadeiro; mas, neste livro, Nietzsche já
denunciava a racionalidade platônica. Nietzsche via o culto à racionalidade como a
20 Roberto Machado. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999, pág. 33.
29
estrutura fundamental da cultura metafísica. Assim, não acreditamos em uma ruptura
radical do jovem Nietzsche com suas fases posteriores.
1.3. O romantismo alemão: Schiller e Schelling
Foi Rousseau, que com a idéia de uma natureza com a qual o espírito tende a
confundir-se, desenvolvendo uma espécie de volúpia cósmica, que forneceu a chave para a
filosofia romântica alemã. A interiorização da natureza permite um mergulho na própria
interioridade humana. A partir desta interioridade, ou introspecção, podemos compreender
a idéia central da filosofia de Rousseau. A partir dessa interioridade podemos compreender
a natureza, e uma natureza isenta ainda de mãos humanas, estranha e anterior à cultura, de
uma pureza divina que nos pode revelar o absoluto.
Estas idéias de Rousseau21 encontraram profunda repercussão no espírito dos
“gênios” do chamado pré-romantismo alemão, o Sturm und Drang. A expressão máxima da
natureza é, para os românticos, o gênio insubmisso a qualquer tentativa de controle. O
gênio não pode ser explicado por nenhuma forma de combinação de faculdades ou pela
alquimia de elementos psíquicos, pois ele é indefinível e sua força é a força da própria
natureza. Só podemos compreender o gênio a partir daquilo que é incompreensível.
Devemos partir não de um exame racional, mas de um sentir unitário que mergulhe em
regiões mais profundas. Não é a razão que define o gênio, mas o fundamento de nossas
idéias, aquela região subterrânea que nos habita e que será batizada pelos românticos de
inconsciente. Esta zona obscura deve ser explorada por ser ela a zona original, coincidente
com o Divino, verdade última e ponto de partida do homem. Todo Romantismo
permanecerá fiel à idéia de que a irracionalidade é uma força positiva: o caos constrói,
compõe. Lembramos que Nietzsche dirá: “é necessário que o caos vos habite, para que
possais dar a luz a uma estrela Bailarina” (AFZ, 5)
Daí o tema do demoníaco no Sturm und Drang – tempestade e ímpeto – que
leva a considerar o gênio como o valor máximo. O gênio é o Kraftmensch, o homem
habitado pela força da natureza, que faz dele um demiurgo apto a manifestar todas as suas
possibilidades, o infinito da pulsação cósmica que traz consigo e que o anima. Antecipando
Nietzsche, é caracterizado pelos românticos como uma espécie de super-homem. A ordem,
a virtude, a moral, são substituídas pelo caos criativo, pela força do gênio, pelas paixões
vitais além de toda medida. O gênio, por isto mesmo não conhece leis: ele é sua própria lei,
21 Bornheim, Gerd A. Aspectos Filosóficos do Romantismo. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1959, p.27
30
rebelando-se contra tudo o que tende a reprimir sua força. Os jovens gênios apresentam-no
freqüentemente como um revoltado contra a sociedade, as convenções sociais, o
despotismo do estado ou religião (Goetz Von Berlichingen de Goethe; Os Ladrões, Intriga
e Amor de Schiller)22.
Segundo Ernest Cassirer, foi no Iluminismo, mais precisamente com
Schaftsbury que a questão do gênio passou a ser tratada de maneira filosófica. A frase que
bem ilustra a filosofia de Schaftsbury é a seguinte: “Toda beleza é verdade”. Porém, ele
não entende a verdade no sentido de conhecimentos teóricos, de teses e de juízos redutíveis
a regras lógicas, fixas. Verdade, para ele, significa a harmonia interna do universo. A
verdade obtida através do belo abole toda fronteira entre mundo interior e exterior;
descobre-se que a mesma lei universal rege os dois mundos. É por meio do belo que o
homem alcança a mais perfeita harmonia entre si mesmo e o mundo. Através do belo,
realiza-se a síntese não somente entre sujeito e objeto, mas também entre o homem e deus.
Pois a oposição entre homem e deus é abolida desde que pensemos o homem não enquanto
criatura. O homem deve ser pensado segundo a força originária que o habita. Não como ser
criado, mas como ser criador.
Em síntese, Schaftsbury quer desarmar a mais grave objeção levantada por
Platão, para desqualificá-la num sentido filosófico. Nem a análise lógica nem a observação
empírica poderiam conduzir ao gênio. Só uma estética da intuição é capaz de dar-lhe todo
seu peso e seu verdadeiro conteúdo. Schaftsbury retirou a noção de gênio do plano da
simples sensação e do simples juízo, e colocou-a no plano das forças produtivas,
constitutivas e criadoras. Desse modo, segundo Cassirer, Schaftsbury deu ao
desenvolvimento futuro do problema do gênio um centro filosófico sólido que será
conservado pelos fundadores da teoria estética. É daí que parte o caminho direto que leva
ao problema fundamental da história do pensamento alemão do século XVIII: A crítica do
Juízo de Kant23.
Foi especificamente o movimento romântico que apontou para a possibilidade
de uma intuição intelectual através da arte. Se, para os românticos um conhecimento pode
ser produzido através da arte, para Kant isto é impossível. No próximo capítulo
examinaremos a Crítica do Juízo para melhor compreender as noções de arte e
conhecimento em Kant. Nos limites deste capítulo, porém, trataremos apenas da relação
entre o romantismo alemão e Kant na conceituação do gênio.
22 Bornhein, Gerd. Aspectos Filosóficos do Romantismo . Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,1959, p.30. 23 Cassirer, Ernst. A Filosofia do Iluminismo , São Paulo: Editora da Unicamp, 1997, p.419
31
Kant se referia à intuição no sentindo tradicional do termo afirmando que “a
intuição é a representação tal qual seria pela sua dependência da imediata presença do
objeto” (Prolegômenos, parágrafo 8). Assim, intuição é o conhecimento ao qual o objeto
esta sempre presente. Porém, Kant considera dois tipos de intuições: a intuição sensível e a
intuição intelectual, que é a que nos interessa aqui. A intuição sensível é aquela de todo ser
pensante finito, ao qual o objeto é dado se tornando afecção e passividade (CRP, Analítica
dos conceitos, seção I).
A intuição intelectual é entretanto originária e criativa; é aquela pela qual o
próprio objeto é posto ou criado e por isso própria somente ao Ser criador, de Deus (ibid.
parágrafo 8). A Intuição intelectual é em outros termos a intuição divina da filosofia
tradicional: a presença do objeto a esta intuição é inevitável e necessária porque o objeto é
criado pela própria intuição.
Esta distinção Kantiana foi conservada pelo romantismo, mas somente com a
finalidade de reivindicar para o homem a Intuição intelectual ou criativa que Kant e os
antigos reservaram para Deus. Para os Românticos, o conhecimento humano é o mesmo
conhecimento com que o espírito absoluto ou criador conhece a si mesmo, ou é ao menos
um aspecto ou um momento dela.
Segundo Gerd Bornhein, os filósofos pós-kantianos estavam concentrados em
certos problemas que Kant não soubera resolver, certas antinomias que punham em
manifesta contradição o seu sistema: as antinomias entre sensibilidade e entendimento,
entre realidade numenal, e, sobretudo, entre ciência e moral. Estes dualismos, que
atravessam todo o pensamento de Kant, atingem suas conseqüências últimas na irredutível
oposição entre o mundo da natureza e o mundo da espiritualidade. Ao mundo sensível Kant
opõe o mundo espiritual. O real sensível, é objeto da ciência. Nele não existe liberdade.
Tudo acontece dentro de um rigoroso encadeamento de causas e efeitos perfeitamente
previsíveis.
Kant, porém, não reduz o homem a aspectos sensíveis pois, se assim fizesse, o
homem seria apenas um animal qualquer. Então, no mundo do determinismo, no mundo da
natureza sensitiva, das inclinações, Kant constrói um outro mundo. O mundo da liberdade
espiritual, da liberdade dos valores morais. Então, o mundo animal é submisso ao
determinismo, e o mundo espiritual, da moralidade, é incondicionado. Esta radical oposição
entre mundo da natureza e mundo espiritual, encontrará, nos pós-kantianos, diversas
tentativas de superação.
32
Com os românticos, o gênio será interpretado tanto numa leitura mais
kantiana, como “sistema de talentos”, quanto noutra mais fichtiana, como “plural interior”.
Fitche tenta promover, por meio de uma unificação entre o filósofo transcendental e o
homem real, a formação completa das faculdades do espírito. Essa unificação real do
homem e do filósofo acontece no artista, e pode ser pensada como um desdobramento da
terceira crítica de Kant, e da educação estética de Schiller, ambas entendidas à luz da
passagem do sensível ao supra-sensível
Para Schelling, a apresentação sensível do absoluto seria possível através da
arte. O Absoluto, por não conter a distinção entre sujeito-objeto, seria então a superação da
limitação kantiana—em que o tempo mediaria a relação sujeito-objeto. Kant, ao criticar a
autonomia do sujeito em Descartes, mostra que entre o transcendental (pensamento) e o
empírico existe o espaço e tempo regulando todas as nossas relações.
Schelling pensa na possibilidade de uma representação do absoluto a partir
dos três níveis do conhecimento propostos por Spinoza: 1)As afecções: visão física do
corpo; modificação de um corpo; 2) As idéias :Conhecimento pela causa e não pelo efeito;
3) Essência: conhecer Deus (absoluto) é conhecer como ele conhece.
Schelling então levanta a questão: de onde poderia Spinoza ter tido a idéia de
intuição intelectual de Deus, senão da intuição intelectual de si mesmo? Sair da idéia de
presente passado e futuro e alcançar o eterno, e, conseqüentemente a representação sensível
do absoluto, só é possível através da dissolução da dicotomia sujeito-objeto, e de um
combate contra o caráter passageiro do tempo. Assim, o que antes era categorizado como o
que passou, o que aconteceu, agora se mostra eterno.
“Quanto mais afastado de mim está o mundo, quanto mais intermediários eu coloco entre ele e mim, tanto mais limitada é minha intuição dele, tanto mais impossível aquele abandono ao mundo, aquela aproximação mútua, aquele sucumbir em luta de ambos os lados (o princípio próprio da beleza). A verdadeira arte, ou antes o theion, o que é divino na arte, é um princípio interior que forma sua matéria de dentro para fora e reage com violência a todo mecanismo tosco, a toda acumulação sem regra de matéria vinda de fora”. Perdemos esse princípio interior (idéia do eu) quando perdemos a intuição intelectual do mundo, que surge pela unificação instantânea dos dois princípios conflitantes em nós, e que está perdida desde o momento em que não pode mais haver em nós nem luta nem unificação.” 24
24 Schelling. Friedrich Von. Cartas sobre o Dogmatismo e Criticismo, (tradução de Manfred Schröter) coleção Os pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1973, Primeira Carta, p.180
33
Para Schelling, a apresentação sensível do absoluto seria possível por meio da
arte, pois a arte não conteria a distinção entre sujeito e objeto. Assim, ele pensou na
superação do limite kantiano em que o tempo e o espaço mediariam a relação sujeito-
objeto, como notamos nesta passagem de A crítica da Razão Pura:
“É impossível conceber que não exista espaço, ainda que se possa pensar que nele não exista nenhum objeto”. Ele é considerado como a condição de possibilidade dos fenômenos, e não como uma representação deles dependente; e é uma representação a priori, que é o fundamento dos fenômenos externos.” 25
Schelling tentará conciliar a filosofia do eu transcendental com o problema da
natureza. Pela razão, o homem afasta-se sempre mais da unidade e acentua a
multiplicidade, a individualidade, o particular, destacando-se e opondo-se ao mundo. O
sujeito absoluto, enquanto vontade pura, impõe o mundo; o sujeito relativo, maculado pela
razão, se opõe ao mundo. Por isto Schelling considera a análise racional como mero
instrumento, pois o pensamento discursivo fica sempre aquém do objeto da filosofia, e não
consegue atingir o princípio primeiro, fonte de toda realidade e de todo filosofar. A
reflexão barra o caminho ao sujeito absoluto sem o qual não pode haver vida espiritual
autêntica. Para Schelling, a única forma de atingir o absoluto é através da intuição
intelectual. É por meio dela que o homem pode se livrar da multiplicidade, de tudo que é
condicionado e penetrar na origem de todo saber filosófico autêntico.
“Esse conceito eterno do ser humano em Deus, como causa imediata de suas produções, é aquilo que se chama gênio, o “gênio”, por assim dizer, o divino que habita o ser humano. Ele é um pedaço da absolutez de Deus ...Ora, quanto mais o universo é intuído já nesse conceito por si, tanto mais orgânico é o artista; quanto mais une a finitude a infinitude, tanto mais produtivo ele é.” 26
O fim último é a unidade e, conseqüentemente, o absoluto. Para Schelling o
artista genial não se prende às aparências, mas, através delas, atinge a coisa em si (as
idéias) presente na mente divina, revelando-a na obra de arte, como testemunho do
absoluto. A arte desvela a verdade última, coincidindo verdade e beleza. Toda metafísica,
segundo Schelling, se apresenta dentro de uma dimensão estética. Cada obra de arte, cada
quadro, cada sinfonia revela a seu modo a idéia divina de beleza, ou ao menos concorre,
como fragmento da obra total de determinado artista para nos conduzir ao absoluto. Daí a
25 Kant, Immanuel. Crítica da Razão Pura (Tradução de J. Rodrigues de Merege), São Paulo, Ediouro,1995 1ª seção (Da estética transcendental do espaço), p.44. 26 Schelling, Friedrich Von. Filosofia da Arte(Tradução de Márcio Suzuki) São Paulo,Edusp,2001, p.119.
34
pluralidade das manifestações artísticas, pois nenhuma obra de arte, pode, por si só, revelar
toda riqueza do absoluto.
Para os românticos, um dos maiores feitos da filosofia transcendental consiste
na “regularização” do gênio, isto é, a única maneira possível de dar regras a uma atividade
sem regras. Fitche, ao considerar que a “vida” não pode ser alcançada por nenhum
conceito, propunha que a filosofia se libertasse de uma visão estritamente esquemática. A
filosofia, então, deveria se tornar um prazer efetivo, uma obra de arte. Para Fitche, a
artificialidade da construção filosófica deveria estar vinculada à vida. O romantismo
considera que o sujeito filosofante se distingue do objeto do filosofar, mas ao mesmo
tempo unifica-se com ele em uma obra única.
Essas idéias são de longa tradição no pensamento germânico, cujos
precursores mais imediatos foram Goethe e Schiller. Schiller se ocupou longamente com a
união do natural com o espiritual. Schiller queria unir a subjetividade kantiana do sujeito
com o forte sentido da natureza de Goethe. Neste sentido, Goethe foi, segundo Gerd
Bornheim, uma exceção da cultura alemã, pois a regra era tentar assenhorar-se da natureza,
vivida sempre como algo nostálgico, distante, que termina sendo objeto de culto. Schiller
via a natureza como uma força incontrolável, e via na arte o único caminho para conciliá-la
com a vida espiritual e subordiná-la às idéias morais do homem.
Através do cultivo da arte, da educação estética, a vida instintiva do homem se
tornaria aos poucos mais nobre, submetendo docilmente a vida moral. O que a ética
kantiana pretende conseguir com uma normatividade rigorosa, através de um dever-ser
impiedoso, a educação estética do homem, segundo Schiller, realizaria pelo
desenvolvimento natural e harmônico. Os românticos não consideravam a arte como um
fim último. A arte romântica sempre pretende ser o grande meio de aperfeiçoamento do
homem, a grande educadora da humanidade.
Para Schiller a oposição entre estes dois princípios pode ser superada através
de um novo princípio – com elementos dos princípios formais e materiais – que é uma
natureza elevada (autêntica e artística) com uma sensibilidade em harmonia com a beleza e
a criatividade. Estas idéias de Schiller fazem com que Nietzsche as identifique de alguma
maneira com o apolíneo e o dionisíaco. Assim, viver seria o emprego da tragédia dionisíaca
juntamente com um estado apolíneo, mais criativo (artístico) e elevado. Mas é na análise
nietzschiana da tragédia que fica clara a influência do movimento romântico,
principalmente de Friedrich Schiller.
35
Foi ainda na juventude que Nietzsche conheceu a obra de Friedrich Schiller.
Schiller valorizava a criação artística e via nela uma maneira de se alcançar a autenticidade,
em busca de um indivíduo criativo e livre. Assim, Schiller fazia com que Nietzsche
vislumbrasse algo diferente da educação que lhe era dada, e lhe fornecia elementos para
pensar o modo como o gênio deveria ser ensinado. Uma educação que despertasse a
criatividade, para que esta resultasse em liberdade e autenticidade.
Em A Educação Estética do Homem, uma série de cartas escritas 50 anos
antes do nascimento de Nietzsche, Friedrich Schiller vê na educação estética o caminho
para uma humanidade mais rica e mais humana, se orientando também pela sociedade
grega. Schiller afirma que o belo, ou o juízo sobre o belo, nunca é inteiramente puro, a
medida que, na experiência, o homem sempre se entregará à contemplação estética
conforme o seu estado de espírito momentâneo. Desta forma, o equilíbrio perfeito
necessário à apreciação “pura” do belo é descrito por Schiller assim:
“Esse equilíbrio permanece sempre apenas uma idéia, que jamais pode ser plenamente alcançada pela realidade. Nesta restará sempre o predomínio de um elemento sobre o outro, e o mais alto que a experiência pode atingir é uma variação entre os dois princípios /formal e material/, em que ora domine a forma e ora a realidade. A beleza na idéia, portanto, é eternamente una e indivisível, pois pode existir um único equilíbrio; a beleza na experiência contudo, será eternamente dupla, pois na variação o equilíbrio poderá ser transgredido por uma dupla maneira, para aquém e para além.” 27
Em Schiller, a noção de educação (Erziehung) deve ser entendida como a
chave para a intensificação da vida, e aponta um modelo de educação que se baseia em
cultivar juntamente a sensibilidade estética e os poderes artístico-criativos. Porém,
Nietzsche não pode ser visto como um mero imitador de Schiller neste aspecto. Ele
aprofunda estas idéias de maneira que as mesmas se afastam de uma certa ingenuidade do
romantismo schilleriano.
Nietzsche estava convencido que a experiência de enfrentamento como
educador é completamente essencial para encontrar o caminho para um novo “sim” para a
vida que não dependa das ilusões, que em O Nascimento da Tragédia eram os únicos
meios de evitar o pessimismo schopenhauriano e a calamidade do fim-mortal niilista.Assim
para efeito de compreensão, podemos imaginar na obra de Nietzsche, um certo
ensinamento estético.
27 Schiller,Friedrich A Educação Estética do Homem. (Tradução de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki) São Paulo, Editora Iluminuras,1995, Carta XVI, pág 87.
36
Os gregos eram educadores que, através da vida afirmativa e da criação de
uma cultura trágica, transmitiam um estado elevado e extraordinário. Nesse trabalho
inaugural (O Nascimento da Tragédia), Nietzsche não só desenvolveu a sua prematura
concepção do mundo, como ainda expôs uma idéia diretriz da cultura ao apresentar o
helenismo da idade trágica no seu estilo artístico como um paradigma da cultura futura.
É a partir deste fundamento que se deve entender o desejo de reformar a
cultura. Nietzsche vê na característica criativa da arte o caminho para uma educação onde
possa prevalecer o indivíduo mesmo, ou seja, o ser autêntico, criador de valores e
responsável por suas criações. Diz Nietzsche:
“Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revelam o que são verdadeiramente o sentido original e a substÂncia fundamental da tua essência, algo que resiste absolutamente a qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido: teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores.” 28
O primeiro período da obra do filósofo, que aqui ficou esboçado em função do
seu ponto de vista metafísico e do seu conceito da cultura, é, entretanto, ainda
essencialmente definido pela atitude dele em face da filosofia grega, pela maneira como
Nietzsche considera o problema dela.
A conduta de Nietzsche nos parece educacional e estética porque nosso
filósofo visa ensinar um tipo humano que deveria ser formado, e está estritamente ligado à
criação artística, porque é necessário mudar a maneira de sentir, além de criar com
autenticidade. Tal projeto tem profunda ligação com as concepções sobre educação de
Friedrich Schiller, que a enxergava como um meio para a intensificação da vida. Porém,
este tipo humano não deve ser encarado como um ideal a ser alcançado, visto que
Nietzsche é crítico de todos os ideais. Este tipo humano deveria ser encarado antes como
um estímulo do que um modelo a ser seguido. O educador nietzschiano é um instrutor, de
quem as instruções são recebidas, mas apreendidas de uma maneira própria.
28 Nietzsche, Friedrich. Escritos sobre Educação. In: Schopenhauer como Educador , Rio de Janeiro – São Paulo, Editoras PUC-RIO e Loyola,2003,parágrafo 1, páginas 141-142 .
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