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Capítulo 1 O Gênio e a metafísica Neste capítulo, nosso intuito é apresentar, em linhas gerais, a trajetória do conceito de gênio na tradição do pensamento filosófico, para ver como Nietzsche dialoga com a referida tradição metafísica, ora considerando o gênio como o comunicador de uma verdade fundamental, ora considerando como um simples criador, que cria suas próprias verdades. É a primeira consideração que mais nos interessa aqui, presente na obra O Nascimento da Tragédia, onde encontramos o gênio unido com a idéia de “absoluto”, fazendo-o aproximar do projeto romântico. 1.1. O gênio na Antiguidade: entre gregos e romanos Quando se referiam à criação poética, os gregos preferiam o termo entusiasmo. Para Sócrates, a arte da tragédia e dos ditirambos são atribuídos ao entusiasmo. Para o Sócrates da Apologia a Sócrates, as criações poéticas não são atribuídas a um saber, mas a um dom natural, a uma inspiração divina – o entusiasmo. Em Sócrates o demônio é uma indicação divina de como proceder para se prevenir dos perigos decorrentes das decisões humanas. Esta voz demoníaca se desliga fortemente da racionalidade e se tornará mais tarde, na renascença, a representação das vozes sobrenaturais da poesia. É a partir daí então que a idéia de gênio se liga à criação artística. Tal conotação artística ocorreu devido à mistura dos significados dos termos demônio e entusiasmo. Edgard Zilsel evidencia uma relação estreita entre a idéia de gênio (genius) e a idéia de demônio em Sócrates 1 . Sócrates reconhecia no demônio a voz interior do filósofo que previne os perigos físicos e morais de suas ações ou decisões 2 . Esta expressão, em Sócrates, significa o caráter divino ou transcendente do chamamento 3 . 1 Zilsel, Edgar. Le Génie – Historie d’une notion de l’antiquité à la renaissance (traduction de Michel Thévenaz)Paris: Les Édition de Minuit,1993, p. 33 2 Xenofonte. Apologia de Sócrates. (tradução de Maria Lacerda de Moura) Rio de Janeiro: Ediouro, 1980, 31D. 3 O cristianismo adotou a seu modo a doutrina dos demônios, chamando anjos os demônios bons e de demônio os anjos maus.

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Capítulo 1

O Gênio e a metafísica

Neste capítulo, nosso intuito é apresentar, em linhas gerais, a trajetória do

conceito de gênio na tradição do pensamento filosófico, para ver como Nietzsche dialoga

com a referida tradição metafísica, ora considerando o gênio como o comunicador de uma

verdade fundamental, ora considerando como um simples criador, que cria suas próprias

verdades. É a primeira consideração que mais nos interessa aqui, presente na obra O

Nascimento da Tragédia, onde encontramos o gênio unido com a idéia de “absoluto”,

fazendo-o aproximar do projeto romântico.

1.1. O gênio na Antiguidade: entre gregos e romanos

Quando se referiam à criação poética, os gregos preferiam o termo

entusiasmo. Para Sócrates, a arte da tragédia e dos ditirambos são atribuídos ao entusiasmo.

Para o Sócrates da Apologia a Sócrates, as criações poéticas não são atribuídas a um saber,

mas a um dom natural, a uma inspiração divina – o entusiasmo.

Em Sócrates o demônio é uma indicação divina de como proceder para se

prevenir dos perigos decorrentes das decisões humanas. Esta voz demoníaca se desliga

fortemente da racionalidade e se tornará mais tarde, na renascença, a representação das

vozes sobrenaturais da poesia. É a partir daí então que a idéia de gênio se liga à criação

artística. Tal conotação artística ocorreu devido à mistura dos significados dos termos

demônio e entusiasmo. Edgard Zilsel evidencia uma relação estreita entre a idéia de gênio

(genius) e a idéia de demônio em Sócrates1. Sócrates reconhecia no demônio a voz interior

do filósofo que previne os perigos físicos e morais de suas ações ou decisões2. Esta

expressão, em Sócrates, significa o caráter divino ou transcendente do chamamento3.

1 Zilsel, Edgar. Le Génie – Historie d’une notion de l’antiquité à la renaissance (traduction de Michel Thévenaz)Paris: Les Édition de Minuit,1993, p. 33 2 Xenofonte. Apologia de Sócrates. (tradução de Maria Lacerda de Moura) Rio de Janeiro: Ediouro, 1980, 31D. 3 O cristianismo adotou a seu modo a doutrina dos demônios, chamando anjos os demônios bons e de demônio os anjos maus.

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Em O Banquete, Sócrates mostra que cabe ao gênio a tarefa de interpretar e

transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses. Assim o

gênio, como o demônio, revela uma certa comunicação entre o humano e o sobre-humano.

“Um deus, com efeito, não se aproxima de um homem. Toda comunicação que se estabelece entre os deuses e os homens estejam estes acordados ou dormindo, é sempre feita por intermédio dos gênios. O homem a quem são feitas essas comunicações e que as conhece, é um homem inspirado; todos os outros, os que só conhecem um pouco das artes e de certas manipulações não passam de artífices. Há muitos gênios, e sobretudo diferente espécies deles”4

Na Apologia a Sócrates, ao interrogar os poetas, Sócrates percebe que suas

criações não são advindas de um saber, mas de uma inspiração divina, ou seja, do

entusiasmo. Sócrates não concebe a idéia de um saber na arte poética e acaba por preferir o

artesão que produz algo, segundo regras conhecidas por ele. Assim, os gênios eram seres

privilegiados que se comunicavam com os Deuses. Os atos criativos como os da poesia

eram atribuídos ao entusiasmo, já os atos criativos da pintura e escultura eram atribuídos à

razão, à técnica. Quando Sócrates expulsa os poetas da República, ele acentua que os

poetas desviam o homem do bem, sendo que o bem é conquistado através de processos

racionais, capazes de tirar o homem do mero mundo das aparências.

O verdadeiro pode ser desvendado, segundo Platão, através da contemplação

filosófica. O mundo das idéias poderia então ser vislumbrado em detrimento ao mundo

fenomênico, onde tudo é apenas sombra da verdade. A arte na antiguidade era vista pelos

filósofos da época de Sócrates como sombras, que não deixavam de impedir o caminho

para a verdade, ou seja, o bem platônico. No Timeu (41 A) Platão considerava os demônios

como divindades criadas pelo Demiurgo – a divindade artífice que cria o mundo à

semelhança da realidade ideal. O neoplatonismo, por sua vez, multiplicou os demônios

considerando-os todos como emanações da divindade suprema.

A concepção aristotélica do termo se expressa na capacidade inventiva. Para o

filósofo estagirista, o gênio é um homem de exceção e uma de suas características é a

melancolia. No seu problema XXX, Aristóteles mostra, por meio de exemplos, que todo

ser de exceção é melancólico. Neste texto, Aristóteles descreve cientificamente o

funcionamento do corpo, mostrando como a fisiologia influencia na formação de um

indivíduo de exceção ou gênio. Aristóteles se refere à melancolia como um caráter de

4 Platão, O Banquete . (tradução de Jorge Paleikat) Rio de janeiro: Editora Globo, 1960, p.163-164.

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exceção, por ser causa de um desequilíbrio térmico do próprio corpo. Porém, é preciso

lembrar que, para Aristóteles, todo gênio é melancólico, mas nem todo melancólico é

gênio. O gênio deve exprimir uma intensa capacidade inventiva que aparece nos grandes

homens de Estado, e também em alguns artistas e filósofos.

A melancolia foi também classificada como loucura, e Hércules é

exemplificado como o homem afetado por dois tipos de loucura: a primeira que o leva a

massacrar seus filhos e a segunda que provoca sua desaparição no Etna. Essas duas

tragédias fornecem os paradigmas das duas extremidades da melancolia: a loucura (ek-

stasis) e as úlceras pelo outro. Aristóteles menciona a palavra Ekstasis para se referir à

loucura, e acaba por aproximá-la do indivíduo de exceção ou gênio. Platão define a loucura

no Fedro da seguinte maneira: “Há duas espécies de loucura (mania), uma que é devida às

doenças humanas, a outra a uma transformação, sob a influência divina, nas nossas

práticas ordinárias” (265 a). Mais adiante, como veremos no capítulo II, Schopenhauer

também aproxima o gênio da loucura.Sócrates, no Fedro de Platão, distingue os delírios

divinos entre aquele que vem de Apolo (inspiração divinatória), aquele que vem de

Dionísio (inspiração mística), aquele pelo qual as musas são responsáveis (a inspiração

poética), e o delírio devido à Afrodite e ao amor (265 b e 244-245).

O gênio romano, na interpretação artística, era representado por anjos

acompanhados de objetos alegóricos, para expressar as artes, as paixões. Os gênios são

conhecidos por uma chama que envolve suas cabeças. O culto do gênio (genius) na religião

dos romanos era um dos mais importantes, sendo que ao mesmo tempo sua significação

sempre foi enigmática. Assim seu conceito nunca é aplicado do mesmo modo sem que se

confunda com outros. O conceito primordial de gênio é a força divina que engendra e a

primeira manifestação de sua ação foi a união dos sexos – assim o ato nupcial era chamado

de genialis. O gênio romano era simbolizado por um homem e uma serpente, que

significavam geração, procriação.

Para compreender o que o gênio despertou na sensibilidade dos romanos é

preciso remontar ao culto dos povos primitivos. O culto tributado ao gênio se baseava em

simples oferendas feitas no dia do nascimento, que não implicavam em derramamento de

sangue. As oferendas consistiam sobretudo em vinhos (símbolo da alegria), flores e

incenso. Em seguida havia dança. Horácio associa o culto do gênio às comemorações

campestres que os primitivos campesinos se acostumaram a fazer para celebrar o término

do trabalho e o início do descanso no inverno. O gênio se torna então um espírito protetor

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individual ao qual prestamos juramentos. Na vida cotidiana, se jurava pelo gênio aos

amigos. Costumava-se juntar ao nome do amigo uma invocação aos guardiões do lugar. Ao

jurar pelo gênio, os romanos colocavam a mão na testa, como sendo o lugar onde reside a

força da inteligência que governa a vida do homem.

A origem do gênio romano está em uma alma livre, independente do corpo ou

de algum órgão determinado. A alma humana se livra do corpo na forma de um pássaro,

verme ou serpente e pode até mesmo se separar do corpo durante a vida para perambular

livremente sob uma forma animal. Sua autonomia em forma de serpente, pássaro ou verme

encarna a vitalidade humana cuja toda força e mistério se manifesta acerca da procriação e

do nascimento. A idéia dos romanos, de que todo homem tem um genius e toda mulher

uma Juno, está ligada às funções vitais : quando um soldado partia para o combate, seu

gênio deveria permanecer perto de sua mulher dando-lhe um filho e consagrando o leito

conjugal e a data de nascimento – lectus genialis, genius natalis. E quando se festejava o

dia do nascimento e o dia do casamento, os romanos estavam celebrando seu gênio5. O

adjetivo genialis não tinha o significado moderno de “genial”. Genialis estava ligado à

idéia de “guloso” ou “festivo”. Referindo-se à astrologia, Horácio identificou o gênio aos

espíritos dos astros que determinam o horóscopo e a diversidade de caracteres. O gênio se

aplicava ainda aos Deuses que representavam a abundância, a alegria e a prosperidade

(Baco, Ceres, Saturno); como também às estações do ano em que o homem saboreia

pacificamente o fruto de seu trabalho, e a tudo que na vida é ventura e felicidade.

Segundo as crenças animistas primitivas, toda coisa é dotada de um espírito

vivente particular e esse pequeno espírito – genius loci – foi transportado a certos lugares,

colinas e vales ou edifícios importantes. Mesmo as personalidades jurídicas como as

comunidades, os corpos de profissões, as cidades, os destacamentos militares, possuíam seu

gênio. O povo também o possuía, embora de forma mais artificial. Até mesmo os espíritos

dos mortos, das larvas e dos fantasmas foram, por vezes, chamados de genni. O gênio era

atribuído, às vezes, por zombaria, a certos livros ou obras de arte. Todos esses lugares e

pessoas tinham seus gênios em um altar representado por uma serpente, ou uma criança

com asas freqüentemente acompanhada de uma serpente. O gênio encarna a força vital e a

alma humana (masculina) sob forma de uma serpente separada do corpo, tornando-se em

seguida a individualidade vivente.

5 Seneque. Lettres a Lucilus (trad. H. Noblot,), 95,41 – HORACE , Odes, III, 17, 14.Paris: Les Belles Lettres, Paris 1957

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O símbolo da serpente aparece em inúmeros desenhos, junto a uma família –

simbolizando a geração. Não era incomum naquele tempo a criação de serpentes em casa.

A tradição grega também deixou numerosas lendas de homens célebres nascidos da união

de mulheres com serpentes – que eram encarnações dos gênios das divindades. O paralelo

que podemos fazer entre o gênio grego e o gênio romano é o demônio benéfico.

A palavra Genius é uma espécie de descendente da palavra socrática

daimonion. O gênio romano é uma tradução do daimonion grego e também não tinha

conotação artística. O gênio romano se assemelha ao demônio grego por atribuir o espírito

protetor de um indivíduo. Enquanto a demonologia grega desenvolveu a idéia de que o

homem possui dois gênios, um bom e outro mal, um branco e outro negro, o gênio romano

era simplesmente um espírito protetor individual ao qual prestamos juramentos.

Na modernidade, existe uma grande confusão no uso das palavras genius e

ingenium. Freqüentemente chama-se de “gênio” o homem que se caracteriza pelo vigor,

poder, honra e dignidade e outras vezes o chama de simplesmente ingenium. Por ingenium

– palavra derivada de genie, vocábulo francês – entendia-se a faculdade humana do

descobrir e do inventar. Mas a palavra gênio foi usada para descrever o ingenium. Assim o

gênio é usado no sentido de talento inato ou grande capacidade intelectual. O gênio da

língua, da história e do cristianismo podem ser frases aceitáveis, nesse sentido. É preciso

levar em conta o termo “engenho”, que é distinto do intelecto, porém participa dele. Tal

termo procura exprimir a capacidade de encontrar semelhanças entre coisas desconexas.6 É

caracterizado por sua velocidade e por sempre buscar uma síntese. Sua origem é, portanto,

o ingenium latino, a partir do qual se modelaram o italiano ingegno, o francês esprit e o

inglês wit. Wit etimologicamente, significa conhecimento em geral.7 No final do séc. XVII

o termo se identifica com a poesia se igualando a imaginação.

“Talento natural, vivacidade de imaginação, o ‘ingegno/esprit/wit’ refere-se a uma faculdade que escapa aos processos analíticos lentos – ‘ingenium’ dará origem também, a gênio. É o lugar da perspicácia, a solução de compromisso entre o intelecto e os processos analíticos. O

6 Dobránszky, Enid Abreu. No Tear de Palas: Imaginação e Gênio no Séc.XVIII – Uma Introdução. Campinas: Papirus: Editora da Universidade de Campinas, 1992, p.48 7 No Leviatã, Hobbes utiliza o termo wit – que como vimos é muito próximo da significação moderna de gênio (que se refere mais ao ingenium do que ao genius) - e distingue o Wit natural do Wit adquirido: o natural é aquele que se adquire apenas através da prática e da experiência sem método, cultura ou instrução. Suas características principais estão na celeridade da imaginação (isto é, na rapidez da passagem de um pensamento ao outro) e a firmeza de direção para um fim escolhido. Assim o wit adquirido por método ou instrução é razão da qual deriva a ciência. “Daquelas que observam suas semelhanças, caso seja daquelas que são raramente observadas pelos outros, diz-se que tem um bom “wit” natural, como o que, nesta circunstância, se pretende identificar uma boa imaginação. Mas, em caso que tal discernimento não seja fácil, diz-se que tem um bom juízo” (Dobránszky, 1992:50)

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‘ingenium’ age no sentido de profundidade, opondo-se, por sua leveza e rapidez (‘a celeritas mentis’), ao ‘judicium’, isto é, às qualidades de discernimento e de escolha, a faculdade da apreciação, por excelência, do gosto clássico.” 8

Constatamos então que contrariamente ao gênio moderno, o gênio antigo não

qualifica uma inteligência superior nem um talento inato (ingenium), a não ser que

forcemos seu significado. Assim, os que forçam seu significado equiparam o genius antigo

ao adjetivo genialis que seria capaz de evocar a voz do ingenium, que significa a plenitude

das faculdades intelectuais, a facilidade do espírito para dar luz às concepções belas e

originais – termo que mais tarde se tornará sinônimo de gênio como artista. A partir daí, o

conceito de gênio se aplica ao talento criador, que descobre regiões inexploradas, em

contraposição ao talento vulgar e mediano. Portanto, dizer que este homem é um homem de

gênio é utilizar o gênio na concepção bem mais tardia dos franceses.

1.2. O gênio em O Nascimento da Tragédia: o Arquíloco

Em O nascimento da Tragédia Nietzsche presta uma homenagem a Wagner,

por ter resgatado a tragédia grega, o que fez com que ele fosse considerado gênio pelo

filósofo. Nietzsche, nessa obra, encara a tragédia grega como uma categoria estética.

Assim, no fenômeno trágico, o tema estético adquire a condição de um princípio

ontológico; fundamento que faz, ao nosso ver, de O Nascimento da Tragédia, um livro

metafísico. Porém neste livro, Nietzsche já executa uma ontologia negativa, que pretende

solapar com a idéia tradicional de ser.

A arte trágica, neste seu primeiro livro, era capaz de mostrar a vida essencial

do mundo (Wesen) e assim se tornava o “organon” da filosofia, sendo a via de acesso para

a compreensão original. Nietzsche considerava que a intuição conceitual só é original

quando estiver conectada com uma visão profunda da arte, que consiga refletir sobre o que

a própria arte experimenta na criação. Nietzsche concorda com os gregos que a arte é

somente um modo de ser, e portanto em vez de propor uma visão conceitual do fenômeno

estético, como Kant, Nietzsche apresenta categoria estéticas para formular sua visão

fundamental de ser. E é justamente isso que confere ao Nascimento da Tragédia um caráter

romântico. Tal livro pode ser considerado metafísico porque a arte é colocada no centro e é

a partir dela que o nosso filósofo decifra o mundo. A arte não é vista somente como

8 Idem op.cit. p.49

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“atividade metafísica” mas como o aclaramento do que existe “como fundamento do

mundo”.

A arte trágica representa a vida trágica do mundo. O trágico é a primeira

fórmula fundamental de Nietzsche para a experiência do ser. Partindo do trágico, Nietzsche

entra em oposição com o cristianismo, cuja idéia de redenção é essencial. No mundo

trágico não há redenção como sinônimo de salvação de um existente finito em sua

finitude9. Na visão trágica do mundo encontram-se confundidas vida e morte, ascensão e

decadência. O trágico não é um pessimismo passivo, mas uma descoberta que modifica o

pensamento de Nietzsche e o liberta da herança de Schopenhauer.

A aceitação trágica nasce do conhecimento fundamental de que todas as

formas finitas são elementos temporários no grande caos da vida, onde o declínio do finito

não significa uma simples destruição, mas o regresso ao fundo da vida do qual surgiram

todas as coisas individualizadas. Na tragédia grega, Nietzsche percebe que quando as

coisas finitas estão voltadas para a destruição elas se revertem para o fundo infinito. E é

deste fundo infinito que o existente finito retira formas de si. A esta oposição Nietzsche

chamará de oposição entre o apolíneo e o dionisíaco.

Nietzsche se serve desta diferença como se fosse uma oposição genuína em O

Nascimento da tragédia. No desenvolvimento de seu pensamento, porém, esta posição

inicial se torna mais radical, e o apolíneo é integrado ao dionisíaco.

Em O Nascimento da Tragédia o gênio é visto como um artista. Sendo que o

artista ainda é considerado metafisicamente, pois aí ainda existe uma separação entre arte e

vida. A arte estaria em nível superior, e somente o artista privilegiado – o gênio – era capaz

de fazer essa conexão. Neste livro, era na tragédia Ática que se traduzia a obra do gênio,

através da união dos instintos apolíneos e dionisíacos. Através da reflexão sobre a tragédia

e o pensamento trágico pretendemos esclarecer um pouco mais a idéia de gênio em

Nietzsche. Sua interpretação da tragédia passa por autores alemães com Hördelin. Para

este, é a Hybrys que representa a essência do trágico. A partir deste tema podemos articulá-

lo como dois outros temas importantes nas reflexões sobre o conceito de gênio: a loucura e

a vontade de saber. A Hybrys pode ser traduzida por desmesura, transgressão, sair da

medida da dimensão dos Deuses. Na terminologia nietzschiana, podemos identificá-la à

vontade de saber. Para Nietzsche, a epopéia, que trata do belo, se relaciona ao indivíduo

enquanto a tragédia, que trata do sublime, é o aniquilamento do indivíduo. Diferentemente

9 Fink, Eugen. A Filosofia de Nietzsche, Lisboa: Editorial Presença,1983, p.18.

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da concepção humanista, o pensamento trágico mostra o aniquilamento do homem. Assim,

a apresentação racional do trágico é, para Nietzsche, uma apresentação do dionisíaco sob

uma forma apolínea. Gilles Deleuze liga o apolíneo nietzschiano ao racional10. O racional

seria o congelamento do apolíneo.

Nietzsche pensa a Grécia dividida em dois tempos: um pré-homérico, dos

titãs, da discórdia, velhice e morte, e o mundo homérico. O mundo homérico inaugura, para

Nietzsche, a idéia de civilização, criando a oposição entre bárbaros e civilizados. É a partir

do mundo homérico que o comportamento bárbaro passa a ser regulado. A partir de

Homero, o mundo da discórdia, da luta de todos contra todos, é representado de forma

apolínea nas epopéias. Portanto, para Nietzsche, os gregos são humanos e cruéis. Os

gregos, para se defenderem da crueldade, escreveram suas epopéias, suas tragédias. Desta

maneira, a crueldade passou a ser domesticada, para que ela não acabasse por destruir a

vida de todos, e o homem pudesse desenvolver ainda mais seu instinto de

autoconservação. É a partir de Homero que terror e beleza tentam harmonizar-se. A

tentativa de viver bem, na expectativa constante da morte. O gênio de Nietzsche reside na

idéia de uma criação necessária para que o mundo dos homens pudesse fazer sentido. Os

gregos “criaram” para escaparem do terror da existência.

Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche agradece aos gregos pela

extraordinária educação estética que os conduziu a uma alta qualidade de vida e cultura. Os

gregos tinham conhecimento do terror e horror da existência, e mesmo assim não buscavam

uma consolação além vida. Nietzsche identifica os artistas gregos como autênticos

educadores, pois cultivavam a sensibilidade em prol de uma vida afirmativa. As tragédias

gregas educavam a sensibilidade e a autoconsciência, não deixando o homem sucumbir em

náusea e desespero.

O homem do conhecimento é, para Nietzsche, o homem do engano, e por isto

este homem acredita em verdades acessíveis. A arte da natureza nos preserva do

conhecimento, pois a natureza dissimula para os homens a verdade. O homem se apóia em

ilusões que mascaram o caráter criminoso da vida. Para Nietzsche, nós lidamos com o

nosso próprio corpo com uma consciência fantasmagórica. O filósofo, por sua vez, tem

necessidade então de espiar pelas frestas da fantasmagoria. Em O Nascimento da Tragédia

é como se houvesse um homem dormindo no dorso do tigre embalado pela natureza. Ao

surgir a dúvida se o homem deve ser acordado, o Nietzsche dessa obra prefere ouvir os

10 Deleuze, Gilles. A Filosofia de Nietzsche.

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conselhos da arte e deixá-lo dormir. Mas o Nietzsche posterior ao Nascimento da Tragédia

preferiria acordá-lo. Assim inicia um confronto entre a dimensão ilusória e o niilismo. O

niilismo pode ser considerado como um otimismo da ciência que redundaria na perda da

capacidade de criar.

O Nascimento da Tragédia foi indicado posteriormente por Nietzsche como

sendo um livro metafísico, que deveria ser superado. Para nós, se é um livro metafísico, o é

em termos. Este livro já anuncia que a decadência na Grécia antiga se dá com Sócrates, que

funda o discurso racional e inaugura a busca incessante pela verdade. Assim, esta verdade

socrática, que fundamentaria todo pensamento metafísico denunciado por Nietzsche, já é

combatida em O Nascimento da Tragédia. Nesta época, Nietzsche elogiava a Grécia antiga

compreendendo o século V, o século IV, e mais ou menos, a primeira metade do século III,

que marca o surgimento do filósofo Sócrates11.

O gênio de O Nascimento da Tragédia é metafísico, quando este é um artista

que consegue representar o uno primordial, ou seja, a união das forças apolíneas e

dionisíacas. O gênio, nessa obra, foi representado por Arquíloco, o primeiro poeta lírico,

que uniu princípios apolíneos e dionisíacos. Arquíloco se fez primeiro enquanto artista

dionisíaco, totalmente um só com o uno-primordial, com sua dor e contradição, para depois

produzir a réplica desse uno primordial em forma de música. Esta música torna-lhe visível,

como numa imagem similar do sonho.

A investigação que Nietzsche propõe neste livro é conhecer o gênio apolíneo,

dionisíaco e de sua sobras de arte. Mas a compreensão que Nietzsche busca é uma

compreensão intuitiva. Para o filósofo, a antiguidade mostrou Homero e Arquíloco como

naturezas inteiramente originais. Homero para Nietzsche era o sonhador imerso em si

mesmo, o artista naïf apolíneo, e Arquíloco era o belicoso servidor das musas, tangido

através da existência. Nietzsche vai contra a idéia de que Homero seja superior Arquíloco

por este ser um artista subjetivo, preso as malhas do “eu”. Nietzsche valoriza o artista

objetivo que através da pura contemplação desinteressada produz uma obra

verdadeiramente artística. Muitos estetas consideram Arquíloco um poeta subjetivo por

sempre evocar a palavra “eu” em seus poemas. Mas Nietzsche tenta mostrar o contrário: o

eu-lírico soa a partir do abismo do ser, o mundo caótico e dolorido de Dionísio. Assim,

quando Arquíloco, o primeiro lírico dos gregos, manifesta seu amor furioso e, ao mesmo

tempo, seu ódio pelas filhas de Licambes não é propriamente a sua paixão que ele

11 Legrand , Gérad. Os Pré-Socráticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1987, p.164.

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representa, e sim a força dionisíaca. Tal encantamento dionisíaco produz poemas líricos, ou

tragédias e ditirambos.

“O artista plástico e simultaneamente o épico, se parente, está mergulhado na pura contemplação das imagens. O músico dionisíaco, inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor primordial e eco primordial desta. O gênio lírico sente brotar, da mística auto-alienação e estado de unidade, um mundo de imagens e de símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo do artista plástico e do épico”12

Nietzsche mostra o exemplo dado por Schiller sobre a descrição do ato de

poetar. Schiller confessou, segundo Nietzsche, que como condição preparatória do ato de

poetar ele tinha um estado de ânimo musical. O sentimento do poeta alemão se apresenta,

no início, sem um objeto claro e determinado. Tal objeto se forma mais tarde.

Primeiramente acontece uma certa disposição musical e posteriormente é que Schiller

elabora a idéia poética.

“As imagens do poeta lírico, ao contrário, nada são exceto ele mesmo e como que tão somente objetivações diversas de si próprio. Por essa razão, ele, como centro motor daquele mundo, precisa dizer “eu”: só que essa eudade (Ichheit) não é a mesma que a do homem empírico-real, desperto, mas sim a única “eudade” verdadeiramente existente (seiende) e eterna, em repouso no fundo das coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio lírico penetra com o olhar até o cerne do ser” 13

Assim Arquíloco já não é Arquíloco como indivíduo – metafisicamente

falando – e sim o gênio universal. O sofrimento de Arquíloco é apenas simbolicamente

representado no homem Arquíloco. O seu sofrimento é o fundamento dionisíaco do mundo.

O homem Arquíloco não pode jamais ser poeta, pois o poeta para Nietzsche não é subjetivo

e por isso gênio.

Nietzsche propõe um sujeito artista para se libertar da vontade individual e

assim contradizer Schopenhauer. Trataremos deste filósofo no capítulo 3 dessa dissertação,

mas vale salientar aqui que Schopenhauer via uma certa inadequação na arte estética, pois o

sujeito que quer e promove seus egoísmos só pode ser pensado como adversário, e não

como origem da arte.

“Pois, acima de tudo, para a nossa degradação e exaltação, uma coisa nos deve ficar clara, a de que toda a comédia da arte não é absolutamente representada por nossa causa, para a nossa melhoria e educação,

12 Nietzsche, Friedrich.O Nascimento da Tragédia (tradução de J. Guinsburg), São Paulo, Companhia das Letras,2001, p.45. 13 Idem op.cit. p.45

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tampouco que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas deveríamos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos, para o verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte – pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente – enquanto, sem dúvida, a nossa consciência a respeito dessa nossa significação mal se distingue da consciência que têm, quanto à batalha representada, os guerreiros pintados em uma tela.” 14

Aqui a proximidade com o movimento romântico é notória. Nietzsche acredita

em um artista primordial do mundo, que somente o gênio, através da procriação artística, é

capaz de se fundir a ele. Através de tal fusão o artista passa a saber algo da perene essência

da arte. O gênio é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, ao mesmo tempo também poeta, ator

e espectador.

Nietzsche dá extrema valorização a Arquíloco por que foi ele que introduziu a

canção popular (Volkslied) na literatura. Assim, segundo Nietsche, os gregos consagraram

um lugar para Arquíloco ao lado de Homero. O nosso filósofo tenta mostrar em O

Nascimento da Tragédia o que caracteriza a oposição entre poesia épica apolínea e a

canção popular. A canção popular é para ele um espelho musical do mundo que procura

uma aparência onírica paralela e a exprime na poesia.15 Assim a melodia é o que há de

mais universal e por isso mesmo suporta diversas objetivações. A melodia gera a poesia.

A origem musical da linguagem é afirmada em O Nascimento da Tragédia .

Nietzsche mostra uma certa nostalgia de um tempo onde a linguagem não designava o ser

das coisas. Nietzsche mostra o artista como algo primitivo. Por trás de todo conceito existe

um ato criativo. Nesta época Nietzsche insiste no caráter figurativo da linguagem. A

linguagem nasceria da música, em um tempo onde não se pretendia revelar o ser das

coisas. A música nasce não para denominar algo de forma irrestrita, mas apenas para

exprimir uma sensação, um estímulo nervoso. Para Nietzsche, a cultura moderna é a cultura

da escrita que salienta cada vez mais o caráter sólido do conceito como indicador da

verdade.

“Quem examinar algumas canções populares como Des Knaben Wunderborn (A corneta mágica do menino) descobrirá incontáveis exemplos de como a melodia incessantemente geradora lança “a sua volta centelhas de imagens, as quais em sua policromia, em sua abrupta mudança, em sua turbulenta precipitação, revelam uma força selvagemmente estranha à aparência épica e ao seu tranqüilo fluir. Do

14 Idem op.cit. p.47 15 Idem, op.cit. p.48.

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ponto de vista do epos, esse mundo desigual e irregular da lírica deve simplesmente ser condenado.” 16

Nietzsche explica que a música aparece no espelho da imagística e do

conceito como vontade, no sentido Schopenhauriano, que a considera a contraposição ao

estado de ânimo estético, puramente contemplativo, destituído de vontade.

"Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão (Anschauung) de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações. Tomamos estas denominações dos gregos, que tornam perceptíveis à mente perspicaz os profundos ensinamentos secretos de sua visão da arte, não, a bem dizer, por meio de conceitos, mas nas figuras penetrantemente claras de seu mundo dos deuses.A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico (Bildner), a apolínea, e a arte não-figurada (unbildlichen) da música, a de Dionísio : ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da” vontade” helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática” 17

Nietzsche elaborou em sua obra tipos humanos que para ele, eram sobretudo,

tipos criadores. Tais tipos humanos criados pelo filósofo devem ser compreendidos no

contexto da tradição, pois, do contrário, se tornam algo caricato e risório. Assim como

Platão e Aristóteles, Nietzsche também tem sua concepção de homem. Entretanto, o

homem em sua filosofia oscila entre duas significações. A primeira desenvolvida em O

Nascimento da Tragédia compreende o homem como um ser investido de sua missão

cósmica, e na segunda, desenvolvida após 1872, o homem é visto na esfera do simples

humano.

Nietzsche usa, ao longo de sua obra, tanto a forma der Genius, referindo-se ao

espírito criativo incorpóreo, quanto a forma das Genie, mais moderna, tomada do francês.

Enquanto der Genius designa o espírito criativo incorpóreo, das Genie se refere a uma

pessoa, um grande homem de gênio. O gênio como espírito criativo incorpóreo é mais

16 Idem, op.cit. p.49. 17 O Nascimento da Tragédia, Parágrafo 1 , p.27.

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utilizado quando Nietzsche tenta mostrar uma nova forma de interação com o mundo.

Nietzsche propõe que, na relação entre educador e educando, haja o “engendramento do

gênio” (der Genius) para que o novo seja sempre criado.

O gênio não é mais algo dado a priori, concedido a poucos privilegiados que

podiam acessar o uno primordial, ou seja, a verdade. O gênio, que Nietzsche atribuiu em O

Nascimento da Tragédia a um grande artista e posteriormente aos homens criadores de

novos valores, assume o mesmo sentido da versão mais moderna do termo, genie.

Entre em 1872 e 1875, Nietzsche está envolvido em um ambiente acadêmico,

como professor de filologia clássica, e via de perto o funcionamento da estrutura das

instituições de ensino, acompanhando a situação cultural na Alemanha. Notava um sistema

educacional dissociado da vida e empenhado em desenvolver o “filisteu da cultura”18, que

é incapaz de criar, limitando-se a imitar ou consumir, submetendo a cultura às leis que

regem as relações comerciais. É neste contexto que Nietzsche escreve as Considerações

Extemporâneas, entre 1873 e 1875. O tema da primeira e segunda extemporâneas – David

Strauss, o confesso e o escritor, e Das vantagens e dos inconvenientes da história para a

vida - é a historicidade do homem. A crítica da cultura aplica-se primeiramente a uma

degenerescência do sentido histórico, a uma hipertrofia da contemplação do passado, sob as

quais rompe o programa de uma cultura viva.

Nas outras duas Considerações Extemporâneas, Schopenhauer como

Educador e Richard Wagner em Bayreuth, Nietzsche delineia a imagem do gênio como o

centro essencial de uma cultura, não de uma cultura já existente – pois em relação a uma

dada cultura o gênio se comporta intempestivamente – mas de uma cultura futura. Nas

Extemporâneas, não é formulada a metafísica do gênio, que está por trás de todos os seus

textos, e que encontrou, no Nascimento da Tragédia, a sua expressão perfeitamente clara.

Nietzsche, nas Extemporâneas, considera a cultura atendo-se ao plano simplesmente

humano, e, deste modo, permanece como que velada a função cósmica do gênio. Porém, ao

abordar o problema da cultura, Nietzsche ainda não consumou nenhum desvio em relação

ao seu primeiro ponto de partida metafísico que ele formula na esteira de Schopenhauer19.

Posto que o homem deva ocupar o centro de sua doutrina do gênio, aqui ainda não 18 Nietzsche define o que significa “filisteu da cultura”: A palavra “filisteu“ era empregada nos meios universitários e servia para designar aqueles que estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres execravam a liberdade gozada pelos estudantes. 19 A concepção redentora da arte, como sendo capaz de promover uma fusão com o uno primordial, inspirada na Tragédia Grega, e também na filosofia de Schopenhauer. Nos limites deste capítulo, nos restringiremos ao exame do texto Schopenhauer como educador, por sua relação com o caráter metafísico das primeiras formulações de Nietzsche sobre o gênio. Nos deteremos em maiores detalhes nas aproximações e distanciamentos entre as concepções dos dois filósofos no capítulo 3.

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encontramos uma antropologia liberta da metafísica tal como aparece no segundo e

terceiro período da produção intelectual de Nietzsche.

Mas já em um texto de 1873, Introdução Teorética sobre a Verdade e a

Mentira no Sentido Extra Moral, dois anos após o Nascimento da Tragédia, Nietzsche

assinala que o conhecimento é uma invenção, ou seja, não existe um sujeito puro de

conhecimento. Através do instinto de autoconservação, o homem, como animal inteligente

que é, cria o conhecimento. Considerar que o gênio de O Nascimento da Tragédia tem a

origem em um sentimento metafísico é o mesmo que considerar que a arte já estava dada,

ao menos em estado implícito, envolta neste sentimento metafísico.

Então, mesmo em sua primeira fase, Nietzsche rompe com a idéia de um

sujeito puro de conhecimento que, em O Nascimento da Tragédia, parecia ser representado

pela figura do gênio. Em suas Considerações Extemporâneas, o gênio é visto como um

objetivo para as instituições de ensino. Para Nietzsche, todo sistema educacional deveria

estar impregnado do espírito do gênio, onde a criatividade e a busca por novos caminhos

está sempre presente. O gênio então já não têm um caráter sobre-humano como parecia ter

em O Nascimento da Tragédia.

Ao criticar a cultura de sua época, preocupada com o simples acúmulo de

conhecimento, Nietzsche vê o gênio como um indivíduo autêntico, capaz de traçar seu

próprio caminho na busca de ser o que se é. Vale ressaltar que ser o que ser é não significa

uma introspecção psicológica, mas antes um espelhamento no qual o homem se vê como

mero reflexo da beleza e da medida que ele mesmo criou. Ser autêntico é perceber todo

conhecimento como uma invenção e, a partir daí, criar o seu próprio conhecimento, de

modo que a vida não seja apenas a reprodução de valores já estabelecidos.

Assim, um gênio metafísico em Nietzsche só pode ser identificado em O

Nascimento da Tragédia. A partir daí o filósofo passa a considerar o gênio como uma

tarefa do futuro simplesmente humano, como tarefa de uma humanidade liberta de

ilusões20.

Porém não consideramos o livro O Nascimento da Tragédia como um livro

completamente metafísico, com fez Nietzsche. É bem verdade que as forças apolíneas e

dionisíacas não deixavam de ser algo primordial, verdadeiro; mas, neste livro, Nietzsche já

denunciava a racionalidade platônica. Nietzsche via o culto à racionalidade como a

20 Roberto Machado. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999, pág. 33.

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estrutura fundamental da cultura metafísica. Assim, não acreditamos em uma ruptura

radical do jovem Nietzsche com suas fases posteriores.

1.3. O romantismo alemão: Schiller e Schelling

Foi Rousseau, que com a idéia de uma natureza com a qual o espírito tende a

confundir-se, desenvolvendo uma espécie de volúpia cósmica, que forneceu a chave para a

filosofia romântica alemã. A interiorização da natureza permite um mergulho na própria

interioridade humana. A partir desta interioridade, ou introspecção, podemos compreender

a idéia central da filosofia de Rousseau. A partir dessa interioridade podemos compreender

a natureza, e uma natureza isenta ainda de mãos humanas, estranha e anterior à cultura, de

uma pureza divina que nos pode revelar o absoluto.

Estas idéias de Rousseau21 encontraram profunda repercussão no espírito dos

“gênios” do chamado pré-romantismo alemão, o Sturm und Drang. A expressão máxima da

natureza é, para os românticos, o gênio insubmisso a qualquer tentativa de controle. O

gênio não pode ser explicado por nenhuma forma de combinação de faculdades ou pela

alquimia de elementos psíquicos, pois ele é indefinível e sua força é a força da própria

natureza. Só podemos compreender o gênio a partir daquilo que é incompreensível.

Devemos partir não de um exame racional, mas de um sentir unitário que mergulhe em

regiões mais profundas. Não é a razão que define o gênio, mas o fundamento de nossas

idéias, aquela região subterrânea que nos habita e que será batizada pelos românticos de

inconsciente. Esta zona obscura deve ser explorada por ser ela a zona original, coincidente

com o Divino, verdade última e ponto de partida do homem. Todo Romantismo

permanecerá fiel à idéia de que a irracionalidade é uma força positiva: o caos constrói,

compõe. Lembramos que Nietzsche dirá: “é necessário que o caos vos habite, para que

possais dar a luz a uma estrela Bailarina” (AFZ, 5)

Daí o tema do demoníaco no Sturm und Drang – tempestade e ímpeto – que

leva a considerar o gênio como o valor máximo. O gênio é o Kraftmensch, o homem

habitado pela força da natureza, que faz dele um demiurgo apto a manifestar todas as suas

possibilidades, o infinito da pulsação cósmica que traz consigo e que o anima. Antecipando

Nietzsche, é caracterizado pelos românticos como uma espécie de super-homem. A ordem,

a virtude, a moral, são substituídas pelo caos criativo, pela força do gênio, pelas paixões

vitais além de toda medida. O gênio, por isto mesmo não conhece leis: ele é sua própria lei,

21 Bornheim, Gerd A. Aspectos Filosóficos do Romantismo. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1959, p.27

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rebelando-se contra tudo o que tende a reprimir sua força. Os jovens gênios apresentam-no

freqüentemente como um revoltado contra a sociedade, as convenções sociais, o

despotismo do estado ou religião (Goetz Von Berlichingen de Goethe; Os Ladrões, Intriga

e Amor de Schiller)22.

Segundo Ernest Cassirer, foi no Iluminismo, mais precisamente com

Schaftsbury que a questão do gênio passou a ser tratada de maneira filosófica. A frase que

bem ilustra a filosofia de Schaftsbury é a seguinte: “Toda beleza é verdade”. Porém, ele

não entende a verdade no sentido de conhecimentos teóricos, de teses e de juízos redutíveis

a regras lógicas, fixas. Verdade, para ele, significa a harmonia interna do universo. A

verdade obtida através do belo abole toda fronteira entre mundo interior e exterior;

descobre-se que a mesma lei universal rege os dois mundos. É por meio do belo que o

homem alcança a mais perfeita harmonia entre si mesmo e o mundo. Através do belo,

realiza-se a síntese não somente entre sujeito e objeto, mas também entre o homem e deus.

Pois a oposição entre homem e deus é abolida desde que pensemos o homem não enquanto

criatura. O homem deve ser pensado segundo a força originária que o habita. Não como ser

criado, mas como ser criador.

Em síntese, Schaftsbury quer desarmar a mais grave objeção levantada por

Platão, para desqualificá-la num sentido filosófico. Nem a análise lógica nem a observação

empírica poderiam conduzir ao gênio. Só uma estética da intuição é capaz de dar-lhe todo

seu peso e seu verdadeiro conteúdo. Schaftsbury retirou a noção de gênio do plano da

simples sensação e do simples juízo, e colocou-a no plano das forças produtivas,

constitutivas e criadoras. Desse modo, segundo Cassirer, Schaftsbury deu ao

desenvolvimento futuro do problema do gênio um centro filosófico sólido que será

conservado pelos fundadores da teoria estética. É daí que parte o caminho direto que leva

ao problema fundamental da história do pensamento alemão do século XVIII: A crítica do

Juízo de Kant23.

Foi especificamente o movimento romântico que apontou para a possibilidade

de uma intuição intelectual através da arte. Se, para os românticos um conhecimento pode

ser produzido através da arte, para Kant isto é impossível. No próximo capítulo

examinaremos a Crítica do Juízo para melhor compreender as noções de arte e

conhecimento em Kant. Nos limites deste capítulo, porém, trataremos apenas da relação

entre o romantismo alemão e Kant na conceituação do gênio.

22 Bornhein, Gerd. Aspectos Filosóficos do Romantismo . Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,1959, p.30. 23 Cassirer, Ernst. A Filosofia do Iluminismo , São Paulo: Editora da Unicamp, 1997, p.419

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Kant se referia à intuição no sentindo tradicional do termo afirmando que “a

intuição é a representação tal qual seria pela sua dependência da imediata presença do

objeto” (Prolegômenos, parágrafo 8). Assim, intuição é o conhecimento ao qual o objeto

esta sempre presente. Porém, Kant considera dois tipos de intuições: a intuição sensível e a

intuição intelectual, que é a que nos interessa aqui. A intuição sensível é aquela de todo ser

pensante finito, ao qual o objeto é dado se tornando afecção e passividade (CRP, Analítica

dos conceitos, seção I).

A intuição intelectual é entretanto originária e criativa; é aquela pela qual o

próprio objeto é posto ou criado e por isso própria somente ao Ser criador, de Deus (ibid.

parágrafo 8). A Intuição intelectual é em outros termos a intuição divina da filosofia

tradicional: a presença do objeto a esta intuição é inevitável e necessária porque o objeto é

criado pela própria intuição.

Esta distinção Kantiana foi conservada pelo romantismo, mas somente com a

finalidade de reivindicar para o homem a Intuição intelectual ou criativa que Kant e os

antigos reservaram para Deus. Para os Românticos, o conhecimento humano é o mesmo

conhecimento com que o espírito absoluto ou criador conhece a si mesmo, ou é ao menos

um aspecto ou um momento dela.

Segundo Gerd Bornhein, os filósofos pós-kantianos estavam concentrados em

certos problemas que Kant não soubera resolver, certas antinomias que punham em

manifesta contradição o seu sistema: as antinomias entre sensibilidade e entendimento,

entre realidade numenal, e, sobretudo, entre ciência e moral. Estes dualismos, que

atravessam todo o pensamento de Kant, atingem suas conseqüências últimas na irredutível

oposição entre o mundo da natureza e o mundo da espiritualidade. Ao mundo sensível Kant

opõe o mundo espiritual. O real sensível, é objeto da ciência. Nele não existe liberdade.

Tudo acontece dentro de um rigoroso encadeamento de causas e efeitos perfeitamente

previsíveis.

Kant, porém, não reduz o homem a aspectos sensíveis pois, se assim fizesse, o

homem seria apenas um animal qualquer. Então, no mundo do determinismo, no mundo da

natureza sensitiva, das inclinações, Kant constrói um outro mundo. O mundo da liberdade

espiritual, da liberdade dos valores morais. Então, o mundo animal é submisso ao

determinismo, e o mundo espiritual, da moralidade, é incondicionado. Esta radical oposição

entre mundo da natureza e mundo espiritual, encontrará, nos pós-kantianos, diversas

tentativas de superação.

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Com os românticos, o gênio será interpretado tanto numa leitura mais

kantiana, como “sistema de talentos”, quanto noutra mais fichtiana, como “plural interior”.

Fitche tenta promover, por meio de uma unificação entre o filósofo transcendental e o

homem real, a formação completa das faculdades do espírito. Essa unificação real do

homem e do filósofo acontece no artista, e pode ser pensada como um desdobramento da

terceira crítica de Kant, e da educação estética de Schiller, ambas entendidas à luz da

passagem do sensível ao supra-sensível

Para Schelling, a apresentação sensível do absoluto seria possível através da

arte. O Absoluto, por não conter a distinção entre sujeito-objeto, seria então a superação da

limitação kantiana—em que o tempo mediaria a relação sujeito-objeto. Kant, ao criticar a

autonomia do sujeito em Descartes, mostra que entre o transcendental (pensamento) e o

empírico existe o espaço e tempo regulando todas as nossas relações.

Schelling pensa na possibilidade de uma representação do absoluto a partir

dos três níveis do conhecimento propostos por Spinoza: 1)As afecções: visão física do

corpo; modificação de um corpo; 2) As idéias :Conhecimento pela causa e não pelo efeito;

3) Essência: conhecer Deus (absoluto) é conhecer como ele conhece.

Schelling então levanta a questão: de onde poderia Spinoza ter tido a idéia de

intuição intelectual de Deus, senão da intuição intelectual de si mesmo? Sair da idéia de

presente passado e futuro e alcançar o eterno, e, conseqüentemente a representação sensível

do absoluto, só é possível através da dissolução da dicotomia sujeito-objeto, e de um

combate contra o caráter passageiro do tempo. Assim, o que antes era categorizado como o

que passou, o que aconteceu, agora se mostra eterno.

“Quanto mais afastado de mim está o mundo, quanto mais intermediários eu coloco entre ele e mim, tanto mais limitada é minha intuição dele, tanto mais impossível aquele abandono ao mundo, aquela aproximação mútua, aquele sucumbir em luta de ambos os lados (o princípio próprio da beleza). A verdadeira arte, ou antes o theion, o que é divino na arte, é um princípio interior que forma sua matéria de dentro para fora e reage com violência a todo mecanismo tosco, a toda acumulação sem regra de matéria vinda de fora”. Perdemos esse princípio interior (idéia do eu) quando perdemos a intuição intelectual do mundo, que surge pela unificação instantânea dos dois princípios conflitantes em nós, e que está perdida desde o momento em que não pode mais haver em nós nem luta nem unificação.” 24

24 Schelling. Friedrich Von. Cartas sobre o Dogmatismo e Criticismo, (tradução de Manfred Schröter) coleção Os pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1973, Primeira Carta, p.180

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Para Schelling, a apresentação sensível do absoluto seria possível por meio da

arte, pois a arte não conteria a distinção entre sujeito e objeto. Assim, ele pensou na

superação do limite kantiano em que o tempo e o espaço mediariam a relação sujeito-

objeto, como notamos nesta passagem de A crítica da Razão Pura:

“É impossível conceber que não exista espaço, ainda que se possa pensar que nele não exista nenhum objeto”. Ele é considerado como a condição de possibilidade dos fenômenos, e não como uma representação deles dependente; e é uma representação a priori, que é o fundamento dos fenômenos externos.” 25

Schelling tentará conciliar a filosofia do eu transcendental com o problema da

natureza. Pela razão, o homem afasta-se sempre mais da unidade e acentua a

multiplicidade, a individualidade, o particular, destacando-se e opondo-se ao mundo. O

sujeito absoluto, enquanto vontade pura, impõe o mundo; o sujeito relativo, maculado pela

razão, se opõe ao mundo. Por isto Schelling considera a análise racional como mero

instrumento, pois o pensamento discursivo fica sempre aquém do objeto da filosofia, e não

consegue atingir o princípio primeiro, fonte de toda realidade e de todo filosofar. A

reflexão barra o caminho ao sujeito absoluto sem o qual não pode haver vida espiritual

autêntica. Para Schelling, a única forma de atingir o absoluto é através da intuição

intelectual. É por meio dela que o homem pode se livrar da multiplicidade, de tudo que é

condicionado e penetrar na origem de todo saber filosófico autêntico.

“Esse conceito eterno do ser humano em Deus, como causa imediata de suas produções, é aquilo que se chama gênio, o “gênio”, por assim dizer, o divino que habita o ser humano. Ele é um pedaço da absolutez de Deus ...Ora, quanto mais o universo é intuído já nesse conceito por si, tanto mais orgânico é o artista; quanto mais une a finitude a infinitude, tanto mais produtivo ele é.” 26

O fim último é a unidade e, conseqüentemente, o absoluto. Para Schelling o

artista genial não se prende às aparências, mas, através delas, atinge a coisa em si (as

idéias) presente na mente divina, revelando-a na obra de arte, como testemunho do

absoluto. A arte desvela a verdade última, coincidindo verdade e beleza. Toda metafísica,

segundo Schelling, se apresenta dentro de uma dimensão estética. Cada obra de arte, cada

quadro, cada sinfonia revela a seu modo a idéia divina de beleza, ou ao menos concorre,

como fragmento da obra total de determinado artista para nos conduzir ao absoluto. Daí a

25 Kant, Immanuel. Crítica da Razão Pura (Tradução de J. Rodrigues de Merege), São Paulo, Ediouro,1995 1ª seção (Da estética transcendental do espaço), p.44. 26 Schelling, Friedrich Von. Filosofia da Arte(Tradução de Márcio Suzuki) São Paulo,Edusp,2001, p.119.

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pluralidade das manifestações artísticas, pois nenhuma obra de arte, pode, por si só, revelar

toda riqueza do absoluto.

Para os românticos, um dos maiores feitos da filosofia transcendental consiste

na “regularização” do gênio, isto é, a única maneira possível de dar regras a uma atividade

sem regras. Fitche, ao considerar que a “vida” não pode ser alcançada por nenhum

conceito, propunha que a filosofia se libertasse de uma visão estritamente esquemática. A

filosofia, então, deveria se tornar um prazer efetivo, uma obra de arte. Para Fitche, a

artificialidade da construção filosófica deveria estar vinculada à vida. O romantismo

considera que o sujeito filosofante se distingue do objeto do filosofar, mas ao mesmo

tempo unifica-se com ele em uma obra única.

Essas idéias são de longa tradição no pensamento germânico, cujos

precursores mais imediatos foram Goethe e Schiller. Schiller se ocupou longamente com a

união do natural com o espiritual. Schiller queria unir a subjetividade kantiana do sujeito

com o forte sentido da natureza de Goethe. Neste sentido, Goethe foi, segundo Gerd

Bornheim, uma exceção da cultura alemã, pois a regra era tentar assenhorar-se da natureza,

vivida sempre como algo nostálgico, distante, que termina sendo objeto de culto. Schiller

via a natureza como uma força incontrolável, e via na arte o único caminho para conciliá-la

com a vida espiritual e subordiná-la às idéias morais do homem.

Através do cultivo da arte, da educação estética, a vida instintiva do homem se

tornaria aos poucos mais nobre, submetendo docilmente a vida moral. O que a ética

kantiana pretende conseguir com uma normatividade rigorosa, através de um dever-ser

impiedoso, a educação estética do homem, segundo Schiller, realizaria pelo

desenvolvimento natural e harmônico. Os românticos não consideravam a arte como um

fim último. A arte romântica sempre pretende ser o grande meio de aperfeiçoamento do

homem, a grande educadora da humanidade.

Para Schiller a oposição entre estes dois princípios pode ser superada através

de um novo princípio – com elementos dos princípios formais e materiais – que é uma

natureza elevada (autêntica e artística) com uma sensibilidade em harmonia com a beleza e

a criatividade. Estas idéias de Schiller fazem com que Nietzsche as identifique de alguma

maneira com o apolíneo e o dionisíaco. Assim, viver seria o emprego da tragédia dionisíaca

juntamente com um estado apolíneo, mais criativo (artístico) e elevado. Mas é na análise

nietzschiana da tragédia que fica clara a influência do movimento romântico,

principalmente de Friedrich Schiller.

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Foi ainda na juventude que Nietzsche conheceu a obra de Friedrich Schiller.

Schiller valorizava a criação artística e via nela uma maneira de se alcançar a autenticidade,

em busca de um indivíduo criativo e livre. Assim, Schiller fazia com que Nietzsche

vislumbrasse algo diferente da educação que lhe era dada, e lhe fornecia elementos para

pensar o modo como o gênio deveria ser ensinado. Uma educação que despertasse a

criatividade, para que esta resultasse em liberdade e autenticidade.

Em A Educação Estética do Homem, uma série de cartas escritas 50 anos

antes do nascimento de Nietzsche, Friedrich Schiller vê na educação estética o caminho

para uma humanidade mais rica e mais humana, se orientando também pela sociedade

grega. Schiller afirma que o belo, ou o juízo sobre o belo, nunca é inteiramente puro, a

medida que, na experiência, o homem sempre se entregará à contemplação estética

conforme o seu estado de espírito momentâneo. Desta forma, o equilíbrio perfeito

necessário à apreciação “pura” do belo é descrito por Schiller assim:

“Esse equilíbrio permanece sempre apenas uma idéia, que jamais pode ser plenamente alcançada pela realidade. Nesta restará sempre o predomínio de um elemento sobre o outro, e o mais alto que a experiência pode atingir é uma variação entre os dois princípios /formal e material/, em que ora domine a forma e ora a realidade. A beleza na idéia, portanto, é eternamente una e indivisível, pois pode existir um único equilíbrio; a beleza na experiência contudo, será eternamente dupla, pois na variação o equilíbrio poderá ser transgredido por uma dupla maneira, para aquém e para além.” 27

Em Schiller, a noção de educação (Erziehung) deve ser entendida como a

chave para a intensificação da vida, e aponta um modelo de educação que se baseia em

cultivar juntamente a sensibilidade estética e os poderes artístico-criativos. Porém,

Nietzsche não pode ser visto como um mero imitador de Schiller neste aspecto. Ele

aprofunda estas idéias de maneira que as mesmas se afastam de uma certa ingenuidade do

romantismo schilleriano.

Nietzsche estava convencido que a experiência de enfrentamento como

educador é completamente essencial para encontrar o caminho para um novo “sim” para a

vida que não dependa das ilusões, que em O Nascimento da Tragédia eram os únicos

meios de evitar o pessimismo schopenhauriano e a calamidade do fim-mortal niilista.Assim

para efeito de compreensão, podemos imaginar na obra de Nietzsche, um certo

ensinamento estético.

27 Schiller,Friedrich A Educação Estética do Homem. (Tradução de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki) São Paulo, Editora Iluminuras,1995, Carta XVI, pág 87.

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Os gregos eram educadores que, através da vida afirmativa e da criação de

uma cultura trágica, transmitiam um estado elevado e extraordinário. Nesse trabalho

inaugural (O Nascimento da Tragédia), Nietzsche não só desenvolveu a sua prematura

concepção do mundo, como ainda expôs uma idéia diretriz da cultura ao apresentar o

helenismo da idade trágica no seu estilo artístico como um paradigma da cultura futura.

É a partir deste fundamento que se deve entender o desejo de reformar a

cultura. Nietzsche vê na característica criativa da arte o caminho para uma educação onde

possa prevalecer o indivíduo mesmo, ou seja, o ser autêntico, criador de valores e

responsável por suas criações. Diz Nietzsche:

“Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revelam o que são verdadeiramente o sentido original e a substÂncia fundamental da tua essência, algo que resiste absolutamente a qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido: teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores.” 28

O primeiro período da obra do filósofo, que aqui ficou esboçado em função do

seu ponto de vista metafísico e do seu conceito da cultura, é, entretanto, ainda

essencialmente definido pela atitude dele em face da filosofia grega, pela maneira como

Nietzsche considera o problema dela.

A conduta de Nietzsche nos parece educacional e estética porque nosso

filósofo visa ensinar um tipo humano que deveria ser formado, e está estritamente ligado à

criação artística, porque é necessário mudar a maneira de sentir, além de criar com

autenticidade. Tal projeto tem profunda ligação com as concepções sobre educação de

Friedrich Schiller, que a enxergava como um meio para a intensificação da vida. Porém,

este tipo humano não deve ser encarado como um ideal a ser alcançado, visto que

Nietzsche é crítico de todos os ideais. Este tipo humano deveria ser encarado antes como

um estímulo do que um modelo a ser seguido. O educador nietzschiano é um instrutor, de

quem as instruções são recebidas, mas apreendidas de uma maneira própria.

28 Nietzsche, Friedrich. Escritos sobre Educação. In: Schopenhauer como Educador , Rio de Janeiro – São Paulo, Editoras PUC-RIO e Loyola,2003,parágrafo 1, páginas 141-142 .

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