CAPÍTULO V
SEMIÓTICA E TEORIA COMUNICACIONAL DO DIREITO
SUMÁRIO: 1. Língua, linguagem e fala; 1.1. O signo; 1.2. Suporte físico, significado e significação do direito positivo e da Ciência do Direito; 2. Semiótica e direito; 3. Teoria comunicacional do direito; 4. O direito como texto; 4.1. Texto e conteúdo; 4.2. Dialogismo - contexto e intertextualidade.
1. LÍNGUA, LINGUAGEM E FALA
Os conceitos de “língua”, “linguagem” e “fala”, tornam-se
indispensáveis à Teoria do Direito quando tomamos seu objeto como um corpo de
linguagem produzido dentro de um contexto comunicacional.
Sem a pretensão de uma análise mais rigorosa, mesmo porque esta não
é a finalidade deste trabalho, dentre outras várias acepções, consideramos a língua como
um sistema de signos em vigor em determinada comunidade, isto é, o código aceito e
utilizado numa sociedade como instrumento de comunicação entre seus membros. Este
código pode ser idiomático (ex: o português, o francês, o inglês, o alemão, etc.) ou não-
idiomático (ex: expressão corporal, vestuário, mobiliário, arquitetura, pintura, música,
etc.), desde que se preste à comunicação entre sujeitos1.
Enquanto sistema convencional de signos, a língua é uma instituição
social, isto significa que atos individuais isolados não têm o condão de modificá-la, sua
alteração pressupõe uma evolução histórica2. Apesar de ser social, a língua é um
depósito que está dentro de nós, imerso no inconsciente humano como um sistema de
signos e de regras de utilização destes signos.
1 Para o estudo do direito interessa-nos a língua idiomática. 2 Diferente da língua é a sua gramática (da língua idiomática), consistente nas regras que a convencionam. A gramática de uma língua pode ser alterada de um dia para outro, não a língua.
A diferença entre língua e fala aparece na obra de FERDINAND DE
SAUSSURE. Segundo o lingüista, consiste a fala num ato individual de seleção e
atualização da língua3. Seleção porque por meio dela o homem escolhe, dentre a
infinidade de signos e regras contidos em seu inconsciente (língua), as palavras e as
relações a serem estabelecidas entre elas, de forma que lhe parece mais apropriada. E
atualização porque ao utilizar-se deste ou daquele signo, bem como desta ou daquela
estruturação, os mantém presentes, como elementos de uma língua.
Enquanto a língua caracteriza-se como uma instituição social,
depositada no nosso inconsciente dentro de um processo histórico-evolutivo, a fala tem
caráter pessoal, ela traz consigo a “individualidade” manifesta nas escolhas daquele que
se utiliza da língua. A língua é algo estático que se movimenta (transforma) por meio da
fala. Já a fala é algo dinâmico, ela é a língua em movimento.
É com a prática da fala que a língua vai sendo depositada dentro de
nós e que ela se mantém viva no seio de uma sociedade. Enquanto a língua com suas
regras e signos determina a fala, as seleções da fala vão consolidando e modificando as
convenções sígnicas da língua, de modo que é impossível compreendê-las
dissociadamente.
A linguagem é o produto da fala, é o resultado da utilização da língua
por um sujeito. De modo mais abrangente podemos dizer que ela é a “capacidade do ser
humano para comunicar-se por intermédio de signos, cujo conjunto sistematizado é a
língua”4. Neste sentido, língua, fala e linguagem são conceitos conexos, tão interligados
que por vezes utilizamos o termo “linguagem” para referirmo-nos tanto à língua, quanto
à fala. Mas, por apreço à diferenciação, em termos mais simples, sintetiza-se que a
língua é a linguagem sem a fala e a fala é a linguagem sem a língua.
1.1. O signo
Falar em língua, linguagem e fala remete-nos a outro termo: o signo.
Num conceito mais genérico, o signo é tudo que representa algo para alguém, um
objeto, um desenho, um dado físico, um gesto, uma expressão facial, etc. Num conceito
3 Curso de lingüística geral, p. 18. 4 Direito tributário, linguagem e método, p. 32.
mais específico, adotando-se as terminologias de EDMUND HUSSERL, o signo é uma
relação triádica entre: (i) um suporte físico; (ii) um significado; e (iii) uma
significação5.
O suporte físico é a parte material do signo, apreendida pelos nossos
sentidos, aquilo com o qual temos contato fisicamente (ex: os gestos da mímica; as
ondas sonoras da fala, as marcas de tinta no papel da escrita, as roupas do vestuário,
etc.). Ele refere-se a algo que está no mundo (concreto, imaginário, subjetivo, empírico,
atual, passado ou futuro), denominado de seu significado, entendido como a
representação individualizada do suporte físico. E, suscita na mente de quem o
interpreta uma noção, idéia ou conceito, que é sua significação6.
A palavra “gato”, por exemplo, é um signo: As marcas de tinta “G A
T O” gravadas no papel é o seu suporte físico. Este suporte físico refere-se a uma
realidade individualizada, por nós conhecida como “um mamífero, domesticado, da
espécie dos felinos” – seu significado. E, suscita na mente de quem o lê e o interpreta
um conceito (idéia), variável de pessoa para pessoa, de acordo com os valores inerentes
a cada um, que é a sua significação.
A ilustração abaixo ajuda-nos a visualizar melhor esta noção de signo:
significação
Signo
“GATO” suporte físico
significado
5 Há um grande descompasso entre os autores a respeito das denominações atribuídas aos termos (elementos) do signo e ao fato de ser tal relação triádia ou bilateral. CARNAP utiliza-se da terminologia indicador e indicado; SAUSSURE significante e significado; UBERTO ECO significante, referente e significado; PIRCE signo, objeto e interpretante; MORIS veículo sígnico, denotatum e designatum (PAULO DE BARROS CARVALHO, Apostila de Lógica Jurídica do Curso de Pós-Graduação da PUC-SP, p. 12-13). 6 PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito tributário linguagem e método, p. 33-34
Explicando: A palavra “GATO” que está no papel é o suporte físico; o
“gato” animal () é seu significado; e o “gato” que aparece na nossa cabeça quando
lemos a palavra é sua significação. O signo, nesta concepção, é um suporte físico que se
associa a um significado e que suscita uma significação, compondo o que se denomina
de triângulo semiótico, uma relação entre esses três elementos.
Trabalhando com os pressupostos do giro-lingüístico (fixados no
capítulo I deste trabalho) a idéia de significação e significado se misturam, pois a
realidade a que se refere qualquer suporte físico é construída pelo intérprete e, portanto,
sempre condicionada as suas vivências7. Da mesma forma, tanto o significado, quanto a
significação, materializam-se noutros suportes físicos, já que nenhuma realidade existe
senão pela linguagem. Mas, justamente, por ser o signo uma relação todos estes
conceitos estão intimamente ligados, de modo que um influi diretamente na existência
do outro8. Todo suporte físico suscita uma interpretação (significação), que constitui
uma realidade como seu significado, esta realidade, por sua vez, é também uma
linguagem, materializa-se num suporte físico, que suscita outra interpretação
(significação), numa semiose sem fim9.
Os signos podem ser de várias espécies. Muitos são os autores e
inúmeras são as classificações empregadas para diferenciá-los. Dentre elas, destaca-se a
proposta de CHARLES S. PEIRCE, que separa os signos em três tipos de acordo com a
relação estabelecida entre o suporte físico e seu significado: (i) índice; (ii) ícone; e (iii)
símbolo10. O índice mantém vínculo físico (natural) com o objeto que indica (ex:
fumaça é índice de fogo; febre é índice de infecção). O ícone tenta reproduzir o objeto
que representa (ex: foto; caricatura; filme; pintura). E, o símbolo é um signo
arbitrariamente construído, a relação que seu suporte físico mantém com o objeto que
representa é imposta de forma convencional pelos membros de uma sociedade (ex:
7 O significado de “fazenda”, por exemplo, depende da minha significação de “fazenda”, pois sem ela, a fazenda (objeto representado pelo signo) não existe para mim. 8 É, por isso, que alguns autores preferem explicar o signo como uma relação diádica (na terminologia de SAUSSURE, significante – no lugar de “suporte físico”; e significado). Outros se utilizam da diferenciação entre “significado denotativo” e “significado conotativo”. O primeiro, desprovido de valor; e o segundo articulando às vivências do intérprete (ROLAND BARTHES A retórica da imagem, p.41). O pôr-do-sol (suporte físico), por exemplo, denota o fim de mais um dia, mas pode conotar saudade, serenidade, solidão, dependendo de quem o interpreta. Preferimos não trabalhar com tal diferenciação, pois utilizamos “denotação” e “conotação” em outro sentido. 9 “Semiose” aqui entendida como o processo de um signo gerar outro. 10 PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito tributário, linguagem e método, p. 35.
placas de trânsito; palavras; sinais luminosos; bandeiras; brasões de família). Para nós,
interessa os signos desta última espécie (os símbolos), pois são eles, na forma
idiomática escrita (palavras11), que constituem nosso objeto de estudo, o direito
positivo.
Mas, o que nos interessa fixar neste tópico é a premissa de que toda
linguagem compõe-se, invariavelmente, por estes três elementos: suporte físico,
significado e significação, inerentes aos signos que a constitui. Imersos na concepção
do giro-lingüístico de que vivemos num mundo de linguagem, sendo o signo uma
relação (entre um suporte físico, um significado e uma significação) e a linguagem um
conjunto estruturado de signos, em última instância, podemos afirmar que vivemos num
mundo de relações, relações entre significados, significações e suportes físicos.
1.2. Suporte físico, significado e significação do direito positivo e da Ciência do Direito
Sendo constituídos por linguagem, tanto o direito positivo, quanto à
Ciência do Direito consubstanciam-se num conjunto estruturado de signos. Os signos do
direito positivo, no entanto, diferenciam-se dos signos da Ciência do Direito e estas
diferenças se reforçam quando examinamos os elementos do triângulo semiótico de
cada uma destas linguagens.
O direito positivo, enquanto corpo de linguagem voltado à região das
condutas intersubjetivas, com a finalidade de implementar certos valores almejados pela
sociedade, tem como suporte físico os enunciados prescritivos que o compõem
materialmente (ex: artigos, incisos e parágrafos de uma lei). Tais enunciados reportam-
se à conduta humana, mais especificamente às relações intersubjetivas, que é seu
significado. E, suscitam na mente daqueles que os interpretam a construção de normas
jurídicas, que se constituem na sua significação.
Diferentemente, a Ciência do Direito, enquanto corpo de linguagem
voltado ao direito positivo com finalidades cognitivas, tem como suporte físico os
enunciados descritivos que a compõem materialmente (ex: linhas e parágrafos de um
livro de doutrina). Tais enunciados reportam-se ao direito positivo, que é seu
11 CHARLES SANDES PIRCE ensina: “todas as palavras, sentenças, livros e outros signos convencionais são símbolos”. (Semiótica e filosofia, p. 126).
significado. E, suscitam na mente de quem os interpreta uma série de proposições
descritivas (ex: juízos do tipo “S é P” construídos na mente de um aluno de direito
quando da leitura de um livro de doutrina – “a regra do art. 121 do Código Penal
prescreve que se matar alguém deve ser a pena de reclusão”). A ilustração abaixo
permite uma melhor comparação:
proposição descritiva
(significação)
S é P norma
jurídica (significação)
Explicando: A figura triangular 1 representa o direito positivo
enquanto signo, seu suporte físico são os enunciados prescritivos (), que têm como
objeto (significado) as condutas intersubjetivas (↔) e sua significação são as
normas jurídicas construídas na mente daqueles que os interpreta (HC). Quando quem
interpreta enuncia na forma descritiva as significações construídas de modo sistemático
e mediante um método próprio (operação identificada no gráfico pela seta pontilhada
superior), produz outro signo, a Ciência do Direito, (representado pela figura triangular
2). Seu suporte físico materializa-se na forma de enunciados descritivos (), que tem
como objeto (significado) o direito positivo (como indica a seta pontilhada inferior, em
direção ao triângulo semiótico 1) e sua significação são as proposições descritivas
construídas na mente daqueles que os interpreta (S é P). Logo temos: (i) no signo direito
positivo, os textos de lei como suporte físico; as condutas intersubjetivas por ele
reguladas como significado; e as normas jurídicas como significação; e (ii) no signo
enunciados prescritivos
(suporte físico)
↔condutas
intersubjetivas (significado)
HC
direito positivo
enuncia
Ciência do
Direito
2 direito positivo (significado)
enunciados descritivos
(suporte físico)
1
Ciência do Direito, os livros doutrinários, as ondas sonoras produzidas numa
conferência como suporte físico; o direito positivo como significado; e as proposições
descritivas como significação.
A afirmação feita linhas acima, de que significação e significado se
misturam, dado que a realidade (significado) a que se refere qualquer suporte físico
acaba sendo aquela construída pelo intérprete (significação), é reforçada no exemplo
desta ilustração. Nota-se que, a significação do direito acaba por determinar o seu
significado, ou seja, o modo como as relações intersubjetivas são disciplinadas. A
“realidade” jurídica à qual o enunciado prescritivo faz referência, acaba sendo aquela
construída pelo intérprete. Da mesma forma, a interpretação da doutrina pelo aluno
(significação) influi no modo como a realidade “direito positivo” para ele se apresenta.
São todos conceitos interligados e, por isso, tão fáceis de serem misturados.
2. SEMIÓTICA E DIREITO
Semiótica é a Teoria Geral dos Signos, é a Ciência que se presta ao
estudo das unidades representativas do discurso. Sendo constituída por linguagem, cuja
unidade elementar é o signo, a Semiótica aparece como uma das técnicas mediante a
qual o direito positivo pode ser investigado.
Conforme leciona PAULO DE BARROS CARVALHO, PIRCE e
outro americano – CHARLES MORRIS – distinguem três planos na investigação dos
sistemas sígnicos: (i) sintático; (ii) semântico; (iii) pragmático12. No plano sintático
estudam-se as relações dos signos entre si, ou seja, os vínculos que se estabelecem entre
eles quando estruturados num discurso. No plano semântico, são examinadas as relações
do signo com a realidade que ele exprime (suporte físico e significado). E, no plano
pragmático, a atenção se volta às relações dos signos com seus utentes de linguagem,
isto é, ao modo como os emissores e os destinatários lidam com o signo no contexto
comunicacional.
A sintaxe da língua portuguesa, por exemplo, analisa as relações das
palavras na frase e das frases no discurso. A semântica preocupa-se com o significado
12 Direito tributário, linguagem e método, p. 36.
destas palavras e frases. E, a pragmática examina o modo pelo qual as pessoas se
utilizam destas palavras e frases na realização para se comunicarem.
Aplicando esta técnica ao direito positivo, o estudo de seu plano
sintático, que tem a Lógica como forte instrumento, permite conhecer as relações
estruturais do sistema e de sua unidade, a norma jurídica. O ingresso no seu plano
semântico possibilita a análise dos conteúdos significativos atribuídos aos símbolos
positivados. É nele que lidamos com os problemas de vaguidade, ambigüidade e carga
valorativa das palavras e que estabelecemos a ponte que liga a linguagem normativa à
conduta intersubjetiva que ela regula. E, as investidas de ordem pragmática permitem
observar o modo como os sujeitos utilizam-se da linguagem jurídica para implantar
certos valores almejados socialmente. É nele que se investiga o manuseio dos textos
pelos tribunais, bem como questões de criação e aplicação de normas jurídicas13.
Em suma, o ângulo sintático conduz a uma análise estrutural, o
semântico a uma análise conceitual (de conteúdo) e o plano pragmático a uma análise
do uso da linguagem jurídica. Cada um destes planos caracteriza-se como um ponto de
vista sobre o direito, de modo que para conhecê-lo devemos percorrer todos eles.
O uso da Semiótica como técnica metodológica favorece o estudo
analítico. Não podemos esquecer, no entanto, que esta perspectiva está sempre envolta
por critérios ideológicos delimitados pelas vivências do intérprete, principalmente no
que diz respeito aos planos semânticos e pragmáticos, o que só reforça nossas
convicções a respeito da propriedade do método hermenêutico-analítico empregado no
estudo do direito positivo.
3. TEORIA COMUNICACIONAL DO DIREITO POSITIVO
Até agora tratamos do direito positivo como um corpo de linguagem
prescritiva, não podemos esquecer, no entanto, que esta linguagem encontra-se inserida
num contexto comunicacional, apresentando-se, assim, como um fenômeno de
comunicação. O direito, sob este ponto de vista, é um sistema de mensagens, insertas
num processo comunicacional, produzidas pelo homem e por ele utilizadas com a
finalidade de canalizar o comportamento inter-humano em direção a valores que a 13 Curso de Direito Tributário, p. 98.
sociedade almeja realizar. Mas, o que nos interessa, agora, é saber por que o direito
positivo se manifesta lingüisticamente. Por que o direcionamento de condutas
intersubjetivas se dá no plano comunicacional? E, o que implica esta tomada de posição.
Como já vimos (no capítulo II deste trabalho) o direito é um objeto
cultural, que se materializa na forma idiomática escrita. O que, por vezes, bloqueia-nos
de vê-lo assim é o fato dele ser um instrumento de intervenção social e não de
intervenção no mundo físico. Esta dificuldade também se revela porque muitos não se
atentam para a separação entre os sistemas do direito positivo e da realidade social, não
o enxergando como uma linguagem prescritiva que toma como objeto a linguagem
social, a fim de manipulá-la. Sem esta separação o direito positivo é visto como um
objeto natural, que nasce e se modifica conforme surgem e se transformam as diversas
relações humanas, ou então, como objeto ideal, uma espécie de vetor agregado ao
homem que o direciona ao justo.
Tendo em conta ser o sistema social constituído por atos de
comunicação, sabemos que as pessoas só se relacionam entre si quando estão em
disposição de se entenderem, quando entre elas existe um sistema de signos que
assegure a interação. Sob este referencial, logo percebemos que não há outra maneira a
ser utilizada pela sociedade, para direcionar relações inter-humanas, que não seja por
atos de comunicação. Impor formas normativas ao comportamento social só é possível,
neste sentido, mediante um processo comunicacional, com a produção de uma
linguagem própria, que é a linguagem das normas. Ganha força, aqui, a observação de
LOURIVAL VILANOVA sempre lembrada por PAULO DE BARROS CARVALHO:
Altera-se o mundo físico mediante o trabalho e a tecnologia, que o potencia em
resultados. E altera-se o mundo social mediante a linguagem das normas, uma classe
da qual é a linguagem do direito14. Neste sentido, é que entendemos o direito como
fenômeno comunicacional (sub-sistema do sistema social).
Especificando o conceito geral que fixamos quando tratamos da teoria
dos sistemas, de acordo com ROMAM JAKOBSON, a “comunicação” é a
“transmissão, por um agente emissor, de uma mensagem, veiculada por um canal, para
14 As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 34.
um agente receptor, segundo código comum e dentro de um contexto”15. O autor
identifica seis elementos do processo comunicacional: (i) remetente, que envia a
mensagem; (ii) destinatário, que a recebe; (iii) a mensagem; (iv) um contexto que a
envolve, comum ao remetente e ao destinatário; (v) um código, também comum ao
remetente e ao destinatário, no qual ela se verbalize (vi) um contato, canal físico que
conecte o receptor ao destinatário. A estes seis elementos PAULO DE BARROS
CARVALHO adiciona mais um: (vii) a conexão psicológica entre emissor e receptor16.
Na falta de um deles a comunicação não se instaura, de modo que não há sociedade e
nem direito.
A ilustração abaixo representa o processo comunicativo e seus
elementos17:
contexto
conexão psicológica
Explicando: Um sujeito emissor, por meio de um canal físico (ex:
papel, ondas sonoras, mãos), mediante um código devidamente estruturado (ex: língua
portuguesa) emite uma mensagem (a ser decodificada) a outro sujeito (destinatário), ao
qual se encontra psicologicamente conectado, inserido no seu contexto histórico-
cultural. A mensagem é possível de ser decodificada e compreendida pelo destinatário
por ser o código comum, por ele e o emissor vivenciarem o mesmo contexto e por
estarem conectados psicologicamente. Conforme representa a figura, a mensagem
(forma oval) está “imersa” no código (forma retangular pontiaguda mais escura,
15 Lingüística e comunicação, p. 123 16 Direito tributário, linguagem e método, p. 166-167 17 ULISSES INFANTE, Do texto ao texto, p. 214.
emissor destinatário
canal código
mensagem
direcionada ao destinatário) e este “imerso” (gravado) no contato ou canal (forma
retangular pontiaguda mais clara, direcionada ao destinatário), todos eles, bem como
emissor e destinatário inserem-se no contexto (forma retangular que envolve toda a
representação) e estes dois últimos mantêm uma conexão psicológica (flexa arcada
superior).
Aplicando estes conceitos ao direito positivo temos: o agente
competente como emissor; os sujeitos das prescrições como destinatários; a norma
jurídica como a mensagem; as circunstâncias histórico-culturais que envolvem emissor
e receptor como contexto; a concentração subjetiva de ambos na expedição e recepção
da mensagem como a conexão psicológica; a língua portuguesa como código comum; o
diário oficial, enquanto suporte físico, onde se encontram gravadas as palavras na
forma de marcas de tintas no papel, como o canal que estabelece a conexão entre
emissor e destinatário.
Logo percebemos que sem um destes elementos o direito não existe.
Retira-se o agente competente (emissor) e a mensagem nem é produzida (não há
codificação). Retira-se o destinatário e a mensagem perde a sua função, pois não haverá
transmissão. Sem o canal não há contato entre emissor e destinatário e a mensagem
também não é transmitida (não há suporte físico para que ela se materialize). Sem um
contexto e uma conexão psicológica duas pessoas não se conectam, se há conexão é
porque esta se deu em alguma circunstância histórica e porque há um vínculo
psicológico unindo duas pessoas. Se o código não é comum torna-se impossível a
decodificação e a mensagem não aparece. Nestes termos o direito é comunicação e é
por este motivo que GREGORIO ROBLES DE MORCHON propõe uma Teoria
Comunicacional para o estudo do direito18.
Ao observarmos o direito como um fenômeno comunicacional fica
fácil de identificarmos e compreendermos os diversos enfoques que podem ser dados
ao seu estudo. Se tomarmos como objeto a emissão da mensagem, teremos uma Teoria
das Fontes do Direito, ou uma Teoria Política do Direito. Se nosso enfoque recair sobre
o contexto, provavelmente produziremos uma Teoria Histórica do Direito. Se a analise
tiver como objeto a conduta dos destinatários, a contribuição cientifica será uma Teoria
18 in Teoria del Derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho).
Sociológica do Direito e assim por diante. Mas, como já vimos (no capítulo II) o estudo
do direito positivo pressupõe a decodificação do código no qual ele se materializa e
atém-se à mensagem legislada, pois é nela que se encontra o direcionamento dos
comportamentos intersubjetivos.
Trabalhar o direito como conjunto de normas jurídicas, enquanto
mensagem transmitida dentro de um processo comunicacional, também facilita
compreendermos a dificuldade de sua concretização, dado os vários fatores que influem
na codificação, transmissão e decodificação da mensagem e os obstáculos susceptíveis
a cada etapa do processo comunicacional. Em primeiro lugar, a existência de uma
mensagem jurídica pressupõe um emissor próprio, eleito pelo sistema como apto a
produzir normas jurídicas. É preciso também que este emissor tenha capacidade para
lidar com o código, ou seja, para estruturar-lhe de modo que seja compreendido pelo
destinatário. A transmissão da mensagem pressupõe boa qualidade do canal. Se, por
exemplo, as marcas de tinta estiverem borradas ou apagadas nada se transmite. No caso
da mensagem jurídica ainda há uma especialidade, pois o direito prescreve o canal
apropriado para veiculá-la. Outro obstáculo é o código, além da necessidade de ser
comum ao emissor e receptor, ele deve estar bem estruturado. Além de tudo isso, a
mensagem modifica-se de acordo com o contexto em que é decodificada e em razão de
fatores vivenciais de seu destinatário. Uma teoria comunicacional do direito permite-
nos esta visualização.
4. O DIREITO COMO TEXTO
Do processo comunicacional, o que temos acesso é o substrato
lingüístico, seu produto, base empírica para que o destinatário construa a mensagem
emitida. A mensagem não vem pronta, como muitos pressupõem, ela é o sentido do
código estruturado pelo emissor e só aparece na mente do destinatário, com sua
decodificação. Até a ilustração reproduzida acima dá-nos a impressão de que o
destinatário recebe a mensagem, como se ela viesse pronta, no entanto, o que acontece
em qualquer processo comunicacional não é isso. O destinatário tem acesso apenas ao
suporte fisco (canal ou contato), nele ele reconhece o código e mediante a existência de
um contexto constrói a mensagem na forma de significação.
Com o direito positivo não é diferente. Tudo a que se tem acesso são
palavras, um conjunto de signos devidamente estruturados na forma de textos e todo o
esforço do destinatário volta-se para a construção do sentido destas palavras, para a
decodificação do código e compreensão da mensagem legislada.
Ao conjunto estruturado de signos pelo qual se viabiliza a
comunicação, dá-se o nome de linguagem (língua + fala). Daí a afirmação segundo a
qual o direito positivo se manifesta em linguagem. Fisicamente ele se apresenta na
forma idiomática escrita, é composto por signos arbitrariamente construídos e aceitos
por convenções lingüísticas (símbolos). Este é o seu dado empírico, por isso, qualquer
estudo jurídico que se pretenda tem como ponto de partida e de retorno a linguagem.
Para sabermos, por exemplo, que regras jurídicas disciplinam as
relações familiares, a compra e venda de bens, a constituição de uma sociedade, a
contratação de funcionários, etc., temos que nos dirigir aos Códigos Civil, Comercial e
à Consolidação de Leis Trabalhistas. E o que encontramos nos Códigos, e nas Leis
senão um aglomerado de palavras gravadas num papel? Tudo a que temos acesso, na
nossa experiência sensorial com o direito positivo, são palavras estruturadas em frases e
sistematizadas na forma de textos. Assim sendo, o trato com o direito positivo sempre
nos conduz ao manejo de textos19.
Não há outra saída para o jurista, o aplicador, o advogado, o estudante
de direito senão o manejo de textos. Quando o Poder Constituinte promulga a
Constituição Federal, produz um texto, quando o legislador edita uma Lei produz um
texto, quando a administração edita atos administrativos o faz mediante a produção de
textos, quando o juiz sentencia, produz um texto, o advogado, ao peticionar, produz um
texto, os particulares ao contratarem, também produzem um texto. A Constituição
Federal, os Códigos, as Leis, os Decretos, as resoluções, portarias, atos administrativos,
sentenças, acórdãos, contratos, regulamentos, etc., apresentam-se invariavelmente como
textos. Logo, não há outro modo de lidar com o direito que não seja o trato com textos.
É neste sentido que GREGORIO ROBLES MORCHON sustenta ser o “direito um
grande texto composto de múltiplos textos parciais”20.
19 GREGORIO ROBLES MORCHON, Teoria del Derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho), p. 69. 20 Idem, Idem, p. 70.
No direito brasileiro estes textos são necessariamente escritos.
Pensemos em qualquer manifestação jurídica e logo percebemos que ela se encontra
reduzida a termo. Desde as manifestações mais complexas como a Constituição Federal
e os compêndios legislativos até as mais simples como as resoluções e portarias se
apresentam na forma de texto escrito, cuja função pragmática é direcionar
comportamentos intersubjetivos.
4.1. Texto e conteúdo
Toda linguagem só assim o é porque tem um sentido. Se voltarmos
nossa atenção ao texto, enquanto conjunto estruturado de símbolos, logo percebemos
que ele comporta três ângulos de análise atinentes à ontologia relacional dos signos que
o integram. Como já tivemos a oportunidade de estudar, ainda neste capítulo, os signos
compõem-se de um substrato material, que tem natureza física e lhes serve de suporte
(suporte físico); de uma dimensão ideal construída na mente daquele que o interpreta
(significação); e de um campo de referencial, isto é, alusivo aos objetos por ele
referidos com os quais mantém relação semântica (significado). Ao compreendermos o
texto como um conjunto de signos ordenados com o intuito comunicacional, facilmente
podemos visualizar estes três ângulos de observação.
Dos três planos que compõem as relações sígnicas de um texto,
aquele a que temos acesso é o seu suporte físico, que é a base para construção das
significações e o dado referencial dos significados. É nele que as manifestações
subjetivas do emissor da mensagem ganham objetividade e tornam-se intersubjetivas,
vale dizer, se materializam e podem ser conhecidas (interpretadas) por outros.
O suporte físico de um texto é o seu dado material empírico. Na
linguagem escrita são as marcas de tinta gravadas sobre um papel. É unicamente a estas
marcas de tinta que temos acesso quando lidamos com os textos escritos e é a partir
delas, por meio de um processo interpretativo, que construímos seu sentido. Aquele que
não sabe manusear tais marcas e que não consegue associá-las a um significado, não é
capaz de construir sentido algum, olha para aquele aglomerado de símbolos e só vê
marcas de tinta sobre o papel. Isto nos prova duas coisas: (i) primeiro que o sentido não
está no suporte físico, ele é construído na mente daquele que o interpreta; e (ii)
segundo, que não existe texto sem sentido. Não existe um suporte físico ao qual não
possamos atribuir uma significação. Se não houver a possibilidade de interpretá-lo, ou
seja, de se construir um sentido, o suporte físico perde sua função e não podemos mais
falar na existência de signos.
Atentando para esta unicidade PAULO DE BARROS CARVALHO
faz uma distinção quanto ao uso do termo “texto”. Por muitas vezes a palavra é
utilizada para denotar o suporte físico, dado material ao qual temos acesso na
construção do sentido, por outras vezes, a mesma palavra é utilizada para referir ao
suporte físico e seu sentido. Verifica-se aqui, mais uma vez, o problema da
ambigüidade que impregna o uso das palavras. Por exemplo, quando se diz: “vamos
interpretar o texto” utiliza-se o termo “texto” na acepção de suporte físico,
diferentemente, quando se diz: “o texto é sobre direito positivo”, utiliza-se o mesmo
termo na acepção de suporte físico mais sua significação.
Para resolver este problema o autor propõe uma simples, mas precisa,
distinção entre texto em sentido estrito e texto em acepção ampla21. Stricto sensu o
“texto” restringe-se apenas ao suporte físico, dado material tomado como base empírica
para construção de significações (refere-se ao primeiro exemplo) aquilo que
GREGORIO ROBLES denomina de “texto bruto”22. Já em sentido amplo de “texto”
abrange sua implicitude, seu sentido (refere-se ao segundo exemplo).
Transportando estas considerações genéricas para a especificidade
dos textos do direito positivo, percebemos estes dois planos: (i) do texto em sentido
estrito, suporte físico, dado empírico do direito positivo; e (ii) do conteúdo normativo,
composto pelas significações construídas na mente daquele que interpreta seus
enunciados prescritivos.
A norma jurídica encontra-se no plano das significações, do conteúdo
dos textos do direito positivo. Ela existe na mente humana como resultado da
interpretação dos enunciados que compõem seu plano de expressão. Nos dizeres de
21 Fundamentos jurídicos da incidência tributária, p. 16. 22 Teoria del derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho), cap. 5. Conforme estudamos no cap. III, item 6 deste trabalho.
PAULO DE BARROS CARVALHO ela é exatamente o juízo (ou pensamento) que a
leitura do texto provoca em nosso espírito23.
4.2. Dialogismo - contexto e intertextualidade
Todo texto (aqui utilizado na sua acepção ampla) é envolvido por um
contexto, isto é, encontra-se inserido num processo histórico-social onde atuam
determinadas formações ideológicas. Neste sentido, podemos dizer que não há texto
sem contexto.
O contexto é formado por todos os enunciados com os quais um texto
se relaciona. Nenhum texto é individual, todo discurso, inserto num processo
comunicacional, independente de sua dimensão, mantém relação com outros
discursos24, pois, segundo os pressupostos com os quais trabalhamos, nenhum
enunciado se volta para a realidade em si, senão para outros enunciados que os
circundam. Neste sentido, todo texto (em acepção ampla) é atravessado, ocupado por
textos alheios, de modo que para apreendermos seu sentido, não basta identificarmos o
significado das unidades que o compõem (signos), é preciso perceber as relações que ele
mantém com outros textos25.
As relações de sentido que se estabelecem entre dois textos são
denominadas de “dialogismo”26. Como todo texto é dialógico, isto é, mantém relações
com outros textos, o dialogismo acaba sendo, nas palavras de JOSÉ LUIZ FIORIN, o
princípio construtivo dos textos. Construímos um enunciado a partir de outros
enunciados e ele é compreendido porque mantém relação dialógica com outros
enunciados.
Qualquer relação dialógica é denominada intertextualidade. O direito
positivo como texto, relaciona-se cognoscitivamente com outros sistemas (social,
econômico, político, histórico, etc), que também são lingüísticos. Há, neste sentido, uma
intertextualidade externa (contexto não-jurídico) muito importante, pois, apesar do foco 23 Curso de direito tributário, p. 8. 24 Na Semiótica o termo “texto” é empregado para denotar o plano de expressão, enquanto o termo “discurso” é utilizado para denotar o plano de conteúdo (Diálogos com Barkhin – ed. UFPR – p. 32). 25 JOSÉ LUIZ FIORIN, Introdução ao pensamento de Barkhin, p. 23. 26 Podemos diferençar dois tipos de dialogismo: (i) o que se estabelece ente o texto produzido pelo emissor da mensagem e o construído pelo intérprete; (ii) o que se estabelece entre o texto e todos os outros que informam seu conteúdo.
da análise jurídica não recair sobre seu contexto histórico-social, é esta relação dialógica
que molda as valorações do intérprete. Como sistema, as unidades do direito positivo
também se relacionam entre si. Há, neste sentido, uma intertextualidade interna
(contexto jurídico), na qual se justificam e fundamentam todas as construções
significativas da análise jurídica.
Atento à separação entre texto e contexto, PAULO DE BARROS
CARVALHO chama atenção para a possibilidade de termos dois pontos de vista sobre
o texto: (i) um interno; e (ii) outro externo. “Fala-se numa análise interna, recaindo
sobre os procedimentos e mecanismos que armam a estrutura do texto, e numa análise
externa, envolvendo a circunstância histórica e sociológica em que o texto foi
produzido”27. A primeira análise tem como foco o texto como produto do processo
comunicacional e a segunda recai sobre o texto enquanto instrumento de comunicação
entre dois sujeitos, abarcando as manifestações lingüísticas e extralingüísticas que o
envolvem.
Transpondo tais considerações para o direito positivo temos que: (i)
uma análise interna leva em conta seu contexto jurídico; e (ii) uma análise externa seu
contexto não jurídico. Nossa proposta é uma análise interna do texto jurídico. O
contexto histórico-social em que se encontra envolvida sua produção exerce total
influência na construção das significações jurídicas, mas não é ele que nos serve como
base para construção destas significações. Nossa forma de estudar o direito, conforme já
propunha KELSEN28, isola as manifestações normativas e as desassocia de qualquer
outra espécie de manifestação que não seja jurídica. É, portanto, uma análise interna aos
textos jurídicos. No entanto, tal análise não foge à noção externa. Para concebermos o
direito como ele é (numa visão culturalista), não podemos ignorar a existência de seu
contexto, mesmo que a análise sobre ele não recaia. Sem a contextualização, não há
como dizer qual é o direito, porque para o compreendermos atribuímos valores ao seu
suporte físico, e os valores são imprescindíveis de historicidade.
27 Fundamentos jurídicos da incidência tributária, p. 16. 28 Teoria pura do direito, p. 1.
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